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Graffiti: Arte De Rua E Espaço Escolar

Graffiti: Arte De Rua E Espaço Escolar

UNIVERSIDADE FEDERAL DE MATO GROSSO INSTITUTO DE EDUCAÇÃO PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM EDUCAÇÃO

ALANA CRISTINA TEIXEIRA CHICO

GRAFFITI: ARTE DE RUA E ESPAÇO ESCOLAR

CUIABÁ-MT 2017

UNIVERSIDADE FEDERAL DE MATO GROSSO INSTITUTO DE EDUCAÇÃO PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM EDUCAÇÃO

ALANA CRISTINA TEIXEIRA CHICO

GRAFFITI: ARTE DE RUA E ESPAÇO ESCOLAR

CUIABÁ-MT 2017

ALANA CRISTINA TEIXEIRA CHICO

GRAFFITI: ARTE DE RUA E ESPAÇO ESCOLAR

Dissertação apresentada ao Programa de Pós- Graduação em Educação da Universidade Federal de Mato Grosso como requisito para a obtenção do título de Mestre em Educação na Área de Concentração Educação, Linha de Pesquisa Movimentos Sociais, Política e Educação Popular.

Orientadora: Profa. Dra. Maria da Anunciação Pinheiro Barros Neta

Cuiabá-MT 2017

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AGRADECIMENTOS

Agradeço a cultura de rua, pela inspiração e reflexão. Sem os seus movimentos, cores e sons, meu cotidiano sem histórias. Aos professores, amigos e funcionários envolvidos no Programa de Pós Graduação em Educação da UFMT. Em especial, a minha orientadora, Anunciação, por seu olhar atencioso para a pesquisa e pelo seu carinho e cuidado comigo. Sou grata também, aos meus queridos amigos e professores, Alécio e Rodrigo, por me incentivarem desde sempre a buscar novas vias filosóficas para enxergar o mundo. Aos meus pais amorosos e queridos, Luci e Flávio, pelo suporte e incentivo. Ao meu irmão, Bruno, por ser sempre para mim uma referência de luta. Ao Rafael, meu esposo, por seu companheirismo, amizade e afeição. Sou grata também a todos os envolvidos na construção dessa pesquisa, como os artistas de rua e educados, que confiaram e acreditaram no projeto educativo desse trabalho. E por último, agradeço aos meus companheiros do grupo de Movimentos Sociais, Política e Educação Popular, por partilharem comigo as suas vivências e referências. Um salve cheio de energia positiva a todos que me incentivaram a realizar essa pesquisa. Como retribuição, dedico essa pesquisa aos meus alunos, aos meus colegas de profissão e a todos que aspiram uma educação humana. Que não tenhamos medo de romper barreiras, estigmas e obstáculos. Que o verbo “Temer” não se faça presente em nosso vocabulário. Ousemos a seguir em frente, com rebeldia alegre para transformar os nossos espaços em experiências significativas.

EPÍGRAFE

Hip hop na cabeça Uma ideia nacional O graffiti, o break, um estilo cultural Vem na paz, meu irmão Prega a união, uma rima, um beat, um papo de irmão (Da Guedes – Hip Hop criado na rua) CHICO, Alana Cristina Teixeira. Graffiti: arte de rua e espaço escolar. 2017. Dissertação (Mestrado) – Programa de Pós Graduação em Educação, Universidade Federal de Mato Grosso - UFMT, Cuiabá, 2017. 105p.

RESUMO

Essa pesquisa tem como objetivo principal identificar os desdobramentos socioculturais e educativos que o graffiti traz consigo, refletindo sobre a relação do grafiteiro com a sociedade e sobre a possibilidade de trabalhar essa arte como experiência educativa e emancipatória dentro do meio escolar. Para isso buscamos analisar as práticas de grafites inseridas nos concretos da cidade, através de abordagens históricas, sociais e educativas. Além disso, contamos com um rico material de entrevistas com quatro grafiteiros cuiabanos e quatro estudantes que vivenciaram a arte graffiti dentro da escola como atividade pedagógica. Dado a isso, adotamos como metodologia a Pesquisa-ação, uma vez que a pesquisadora em questão está inserida no contexto como artista de rua e como educadora, investigando de modo coletivo sobre as grafitagens urbanas e experiências educativas trabalhadas dentro da escola. Para mais, utilizamos Michel Foucault e Michel de Certeau como aporte teórico, para desenvolver uma reflexão filosófica das relações cotidianas e os discursos estéticos produzidos pelos grafiteiros, nos quais analisamos as representações sígneas dos enunciados materiais e não-verbais dos graffitis nos muros da cidade. E, por último, utilizamos em diálogo com Marilena Chauí, Maria da Glória Gohn e Renato Ortiz, para investigar em quais perspectivas o graffiti possa ser entendido como um referencial pedagógico no meio escolar e em qual medida ele pode estar inserido no pensamento de uma educação popular dialógica. Em relação às contribuições da pesquisa, é possível verificar que o graffiti possui uma natureza pedagógico-filosófica na qual se conecta com a dimensão popular de comunicação e foge da massificação de conteúdos pedagógicos e dos discursos dominantes vinculados à mídia. Por fim, também pudemos constatar o seu caráter de resistência, emancipação e dialogicidade num contexto de cultura de rua.

Palavras-chave: arte; graffiti; filosofia; educação; emancipação; discurso; cotidiano; comunicação.

ABSTRACT

This research has as main objective to identify the sociocultural and educational developments that graffiti brings with it, reflecting on the relationship between the graffiti artist and society and on the possibility of working this art as an educational and emancipatory experience within the school environment. For this, we seek to analyze the practices of graffiti inserted in concrete of the city, through historical, social and educational approaches. In addition, we have a rich material of interviews with four Cuiabanos graffiti artists and four students who experienced graffiti art inside the school as a pedagogical activity. Given this, we adopted as a methodology, since the researcher in question is inserted in the context as a street artist and educator, collectively investigating urban graffiti and educational experiences worked within the school. Moreover, we use Michel Foucault and Michel de Certeau as a theoretical contribution to develop a philosophical reflection of the daily relations and the aesthetic discourses produced by graffiti artists, in which we analyze the syndical representations of the material and nonverbal statements of the graffiti on the walls of the city. And finally, we use Paulo Freire in with Marilena Chauí, Maria da Glória Gohn and Renato Ortiz, to investigate in which perspectives graffiti can be understood as a pedagogical reference in the school environment and to what extent it can be inserted in the thinking of A dialogical popular . Regarding the research contributions, it is possible to verify that graffiti has a pedagogical-philosophical nature in which it connects with the popular dimension of communication and escapes from the massification of pedagogical contents and the dominant discourses linked to the media. Finally, we could also verify its character of resistance, emancipation and dialogue in a context of street culture.

Keywords: art; graffiti; ; education; emancipation; speech; everyday; communication.

LISTA DE FIGURAS

Figura 1: Grafitti em Cuiabá/MT...... 25

Figura 2: Meios discursivos no grafitti...... 26

Figura 3 – Grafitti com elementos culturais de Cuiabá...... 34

Figura 4 - Arte Graffiti feita na trincheira Jurumirim em Cuiabá...... 35

Figura 5 – Ação realizada na Escola Municipal Senhorinha...... 40

Figura 6 - Estudantes da Escola Estadual Francisco Dom Aquino escrevendo sobre a preservação do meio ambiente...... 43

Figura 7 – Reportagem sobre o apagamento dos grafittis na Avenida 23 de maio...... 52

Figura 8 – Reportagem sobre o projeto de lei de João Dória sobre pichação e graffiti...... 53

Figura 9 – Reportagem sobre anúncio do projeto de lei do Museu de Arte de rua...... 53

Figura 10 - Aniversário SubsoloArt - Oficinas de Graffiti e Stêncil da Escola Paulo Freire...... 61

Figura 11 – Grafite homenageando Paulo Freire, na Diretoria Regional de Educação Pirituba-Jaraguá da rede municipal de ensino da cidade de São Paulo...... 62

LISTA DE QUADROS

Quadro 1 – Modos de produção de arte de rua com cada participante entrevistado, bem como, os seus perfis referenciados pelas suas respectivas tags...... 67

SUMÁRIO

INTRODUÇÃO ...... 10 Capítulo I PROCESSO DE CRIAÇÃO ARTÍSTICO NA RUA ...... 14 1. Natureza metodológica da pesquisa ...... 14 2. Breve percurso histórico: o graffiti e seus principais momentos ...... 16 3. Discurso, Cotidiano e Graffiti...... 24 3.1 Discurso Estético na Arte Graffiti ...... 24 3.2 A Invenção Cotidiana presente na arte graffiti ...... 29 Capítulo II...... 38 A PRESENÇA DA DIALOGICIDADE NA ARTE GRAFFITTI ...... 38 1. As Potencialidades Educativas na Arte Graffiti através da concepção da Pedagogia do Oprimido...... 38 1.1 O Graffiti como Prática Educativa Problematizadora ...... 44 1.2 A arte graffiti como prática de Liberdade e Dialogicidade ...... 48 1.3 A ação antidialógica presente na repressão social com as artes de rua ...... 53 Capítulo III ...... 68 TRILHANDO UMA INVESTIGAÇÃO: EXPERIÊNCIA DE ARTISTAS DE RUA DE MATO GROSSO E EDUCANDOS QUE VIVENCIARAM A ARTE GRAFFITI NA ESCOLA ...... 68 1. Contexto da pesquisa: cenário e participantes ...... 68 1.1 Procedimentos de coleta e análise compreensiva das informações ...... 70 1.2 Compreensão do resultado das entrevistas ...... 73 CONSIDERAÇÕES FINAIS ...... 94 REFERÊNCIAS ...... 97 APÊNDICE ...... 102 O GRAFFITI COMO UMA POSSÍVEL FERRAMENTA PEDAGÓGICA NO MEIO ESCOLAR ...... 102 10

INTRODUÇÃO

Esse estudo foi desenvolvido a partir de outro trabalho da minha graduação de licenciatura em filosofia na Universidade Federal de Mato Grosso, realizado no momento em que precisava elaborar uma dissertação de conclusão de curso. Durante esse período inevitável, procurei investigar na filosofia, eixos que envolviam a arte e a educação. Na época priorizei uma dissertação que partisse de uma necessidade verdadeira de compreender o meu objeto de estudo, bem como, de proporcionar contribuições que pudessem ser relevantes para os professores/as nas aulas de filosofia. Em base nisso, optei a escolher um objeto de pesquisa que sempre cercou o meu cotidiano – as paredes coloridas e os rabiscos que pareciam gritar algo. Essa observação, sempre me causou curiosidade e necessidade em compreender os graffitis, sobretudo, porque desde criança e adolescente estive imersa na cultura de rua, como os cds piratas de raps comprados nas feiras de bairro e pelo meu envolvimento breve com o skate. Posso dizer que essa cultura se enraizou em mim, tanto que posteriormente me envolvi ainda mais com a arte de rua, aprendendo a dançar breakdance em festas de hip hop, fazendo graffiti, murais, e algumas vezes, pichações. A partir desse contexto, eu ansiei terminar meu curso de filosofia estudando algo que me fizesse sentido, ao menos naquele momento, em que eu estava saturada de estudar apenas correntes, pensamentos da filosofia e problemas filosóficos que não eram meus. Dessa forma, decidi, em conjunto com o meu orientador da graduação, que o foco dessa pesquisa seria o graffiti estudado sob uma abordagem filosófica e parte de uma discussão sobre o ensino de filosofia. Através dessa minha experiência pessoal com a arte de rua e do breve estudo sobre a arte graffiti, me ingressei ao mestrado oferecido pelo Programa de Pós-graduação em Educação pela Universidade Federal de Mato Grosso, com a necessidade de compreender o graffiti como parte de uma arte de rua que pode possibilitar encontros educativos através de uma concepção de educação popular. É importante salientar, que essa intenção não surgiu apenas sob o olhar de menina curiosa a respeito das cores espalhadas nos muros da cidade e arteira, mas como, uma professora que se preocupa ativa e afetivamente com as práticas educativas estabelecidas dentro da escola. Portanto, a pesquisa em questão se encontra em outros desdobramentos filosóficos e históricos, pretendendo assimilar o contexto 11

social dos artistas de rua, que estaria por trás das diversas traduções imagéticas inscritas nos espaços urbanos. E, sobretudo, de investigar se a arte graffiti possui potenciais educativos e se é possível trabalhá-los dentro da escola como experiências educativas. E, sobretudo, de olhar para o potencial educativo do graffiti e qual a possiblidade de trabalho no interior da escola. A partir disso, a presente pesquisa visou trazer para a educação um objeto de investigação pouco explorado na educação: a arte graffiti. Tendo como proposta apontar novas possibilidades de compreendê-la no cenário urbano. E de promovê-la como experiência educativa dentro do espaço escolar. A respeito dos eixos problemáticos, destacamos quatro problemas principais: como compreender a partir de uma reflexão filosófica e discursiva os meios de comunicação que a arte de rua, principalmente o graffiti, estabelece com a sociedade; Como o artista de rua relaciona a sua arte com a sociedade; Quais os potenciais educativos que o graffiti traz para a sociedade; E por último, se a arte de rua pode proporcionar práticas educativas dialógicas e emancipadoras dentro do meio escolar. A partir da apresentação inicial da pesquisa, bem como, dos problemas de pesquisa, o nosso objetivo principal é identificar os desdobramentos socioculturais e educativos que a arte graffiti traz consigo. Através da reflexão sobre a relação do grafiteiro com a sociedade e sobre a possibilidade de trabalhar essa arte como experiência educativa e emancipatória dentro do meio escolar. Deste modo, os capítulos e subcapítulos foram desenhados a partir do propósito de examinar a arte graffiti nas suas dimensões socioculturais e educativas, trazendo com eles hipóteses para respondermos nossas questões problematizadoras. Portanto, no primeiro capítulo denominado como “Processo de criação artístico na rua” procurou-se compreender a arte de rua no cenário urbano, por meio de uma breve abordagem histórica sobre o surgimento do graffiti no século XX e XXI. Com o intuito de identificá-lo como parte de uma manifestação social e estudá-lo numa abordagem filosófica, por meio de intermédio de embasamentos teóricos em Michel Foucault, Michel de Certeau e em outras literaturas que trabalham com a arte de rua, como de Anita Rink. Esses autores possibilitam condições teóricas para analisar a criação de discursos e comunicações, que um objeto artístico tão presente no cenário urbano traz com ele. Além de identificar uma manifestação diversa de expressão na qual o artista de rua estabelece em suas relações cotidianas. 12

O segundo capítulo “A Presença da Dialogicidade na Arte Graffiti” foi baseado na concepção da educação como prática libertadora de Paulo Freire em diálogo com outros autores, como Maria da Glória Gohn, Renato Ortiz e Marilena Chauí, que nos permitiram fazer outras análises no campo da educação. Em especial, no que diz respeito aos movimentos sociais e cultura popular na aproximação da arte graffiti dentro de uma prática dialógica. Dessa forma, podemos refletir sobre a potencialidade da arte em questão para dentro do meio escolar, como uma experiência educativa e pedagógica, onde se permite a criação de possibilidades e condições dos alunos compreenderem as suas respectivas realidades locais através da arte de rua. E em especial, inserir a arte graffiti dentro de um contexto de Educação Popular, em uma perspectiva emancipadora, que envolve um ensino curricular ativo, no qual o estudante possui condições de pensar a partir das suas próprias experiências de forma criativa e autônoma. O terceiro capítulo: “Trilhando uma Investigação: Experiência de Grafiteiros de Mato Grosso e Educandos que vivenciaram a Arte de Rua na Escola”, corresponde ao momento mais importante da pesquisa, aquele voltado a observar e colher experiências de artistas de rua, a fim de entender qual a relação que eles estabelecem com a sua arte e com a sociedade. Assim como, de verificar através de entrevistas, se as estudantes vivenciaram a arte graffiti dentro da escola como uma prática educativa e dialógica. E por fim, foi desenvolvido um apêndice “Graffiti: como uma possível ferramenta no meio escolar” que visa agregar com esse estudo e na sua proposta de promover um encontro educativo entre o graffiti e o meio escolar, um pequeno material didático para educadores que desejam trabalhar as artes de rua com os educandos. Podemos considerar que essa parte se refere ao cunho prático da pesquisa, devido sua aplicabilidade pedagógica. Como metodologia, a natureza desta pesquisa é a da Pesquisa-Ação. Como visto anteriormente, estou envolvida no contexto da arte de rua, como artista e em especial, estou vinculada como professora de filosofia na instituição escolar onde foram realizadas as entrevistas. Em relação à abordagem do problema, foi utilizado o método qualitativo, uma vez que se pretendeu investigar a relação entre o sujeito e o mundo, isto é, o grafiteiro com a arte de rua e do educando e a sua experiência com o graffiti dentro do espaço escolar. E para alcançar os objetivos da pesquisa, isto é, responder nossos problemas de pesquisa, levantamos bibliografias que 13

possibilitaram condições de discutir a arte graffiti numa perspectiva filosófica e educativa. Ainda analisamos os relatos de experiências dos entrevistados, registros fotográficos presentes e outras imagens que agregam na discussão da pesquisa. De modo que esses materiais coletados deram suporte para a elaboração da discussão da pesquisa, na medida em que nos forneceram condições para pensar na reflexão filosófica que a arte graffiti traz. Por fim, procuramos conhecer as dimensões políticas e culturais envolvidas no graffiti em observação a relações sociais que a arte de rua possui com a cidade, e, sobretudo, na compreensão e observação do fenômeno discursivo e cotidiano envolvido nesse tipo de arte e de como ela pode se projetar numa perspectiva popular em educação.

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Capítulo I PROCESSO DE CRIAÇÃO ARTÍSTICO NA RUA

O presente capítulo tem por objetivo apresentar uma breve abordagem histórica e social sobre o surgimento da arte graffiti no mundo, e como ela se estendeu para o Brasil. Além disso, visamos explorar algumas compreensões sobre essa arte enquanto movimento artístico e social, a partir de referências teóricas de autores que estudaram essa temática, como Anita Rink em “Graffiti: Intervenção Urbana e Arte”. Também contamos com um material de fotografias e relatos de grafiteiros, que foram retirados de outras fontes bibliográficas, como artigos, reportagens e sites. Isto se dá para enriquecer nossa reflexão sobre o graffiti como um processo de criação artístico na rua. Por fim, contamos como aporte teórico Michel Foucault em seu livro “A Ordem do Discurso” e Michel de Certeau na obra “A Invenção do Cotidiano”, para realizarmos uma abordagem filosófica sobre as inscrições grafitadas e seus respectivos discursos. Dessa forma, pretendemos contribuir para com o leitor a apresentação do graffiti e a sua inserção na sociedade. Bem como, oferecer outras análises sobre a arte em questão a partir de reflexões filosóficas a respeito das suas manifestações artísticas. Por fim, consideramos esse capítulo imprescindível para a compreensão do que iremos abordar ao decorrer da pesquisa.

1. Natureza metodológica da pesquisa

A natureza da presente pesquisa utiliza a Pesquisa-Ação como metodologia qualitativa, pois a pesquisadora está imersa no contexto da arte de rua. Podemos pontuar esse fato em três situações: como artista de rua, que faz grafitagens e murais; como professora dos estudantes entrevistados, que participou da atividade envolvendo arte graffiti na escola; e como professora em atividades de arte de rua em diferentes instituições escolares. No que se refere às atividades com arte de rua, foram trazidos registros fotográficos no corpo do texto com a referência “acervo próprio”, em especial no capítulo dois, para dimensionar a vivência da pesquisadora enquanto professora e assim fornecer ao leitor melhor visualização de sua trajetória e da sua ação na pesquisa. 15

Dessa forma, através da Pesquisa-Ação buscou-se compreender as experiências e vivências dos grafiteiros com a arte de rua e dos educandos com a vivência de trabalhar o graffiti dentro da escola, situando também a trajetória da pesquisadora, uma vez que este trabalho pretende construir possibilidades de compreender as práticas educativas presentes na arte graffiti, já que as mesmas trazem conteúdos educativos explícitos e intencionais. Conforme Thiollen (1984), o objetivo dessa metodologia não foi de avaliar conceitos apreendidos pelos artistas de rua e tampouco dos estudantes sobre a arte de rua. A sua intenção se constituiu basicamente em elencar e roteirizar os saberes de cada grupo distinto e relacionar às suas vivências enquanto grafiteiros (as). Destaca-se que para o grupo de grafiteiros, a intenção foi a de pensar junto em conjunto sobre a relação que é estabelecida com a sociedade. Tendo em vista esse fato, aos estudantes, o objetivo é basicamente educacional, pois busca compreender em quais medidas a experiência com a arte de rua na escola se caracteriza como uma prática educativa e emancipatória. A partir dessa configuração, o lócus das investigações se deu individualmente com cada grafiteiro, na rua ou no meio virtual. Com os estudantes, toda pesquisa ocorreu na própria instituição escolar. Por isso, podemos dizer que os esses dois grupos estavam conversando com a pesquisadora que trazia em si os papéis de “amiga”, “professora” e “parceira de arte de rua”, alguém que se reuniu a eles para abordar uma temática importante, nas quais grafiteiros e estudantes ultrapassam os papéis de meros participantes, pois participam da atividade como sujeitos reflexivos que vivenciaram de forma singular a arte de rua. Essa é uma característica marcante na pesquisa-ação (KINCHELOE e MCLAREN, 2006), na abordagem de uma pesquisa de prática humana que se apoia numa educação crítica e nega o reprodutivismo. Dessa forma, a pesquisa é construída por um olhar atento e reflexivo sobre as possibilidades da arte graffiti ter suas potencialidades educativas na sociedade, em especial, promovida como um mediador pedagógico no meio escolar que ajuda a chegar à reflexão filosófica, pois oferece aos estudantes novos pensamentos sobre a sua produção estética. Em suma, a pesquisa-ação como metodologia contribui para reforçar a importância da valorização e do respeito às experiências registradas na entrevista, pois o sujeito traz consigo, através de sua fala, a dimensão significativa de suas vivências. Cada indivíduo traz consigo um mundo. E isso permite uma reflexão 16

enriquecedora e diversa sobre a arte graffiti. Contudo, pode-se considerar que nem tudo alcança a clareza da expressividade através da escuta ou da observação, é preciso considerar além dos relatos orais, as fotografias das inscrições grafitadas e pichadas por artistas de rua, bem como, o registro de atividades que envolveram a arte graffiti no espaço escolar. Além da confiança dos sujeitos entrevistados com a pesquisadora, por meio de diálogos e aproximações sociais, o que possibilitou uma observação mais profunda sobre as diversas percepções que emergem durante a construção da pesquisa. Por fim, é necessário salientar que a metodologia aplicada a essa pesquisa visa uma necessidade de mudança a partir das práticas pedagógicas tradicionais, que por sua vez, tem por intuito ampliar novos caminhos a serem trabalhados no meio escolar. Resultante disso é que no final dessa pesquisa há um apêndice que propõe uma intervenção educativa no meio escolar por intermédio da arte de rua.

2. Breve percurso histórico: o graffiti e seus principais momentos

Com base na própria história, é possível dizer que a arte e a reflexão impreterivelmente fazem parte do que chamamos de Humanidade. Já na pré- história, os primeiros povos, caracterizados por muitos como primitivos, iniciaram as primeiras produções artísticas, mesmo antes de possuir uma sociedade com sofisticada organização política. Esses primeiros artistas interagiam intensamente com os elementos da natureza e refletiam o seu modo de vida, realizando intervenções gráficas nas paredes das cavernas, expressando os seus sentimentos, linguagem corporal, estratégias de caça, entre outros hábitos. Esses registros antepassados foram denominados como arte rupestre. Esta é praticamente a estreia da criação imaginativa e sensível do ser humano, ou seja, a arte1. Em Souza (2000) é possível compreender que o retrato ou panorama artístico começa a mudar com as civilizações da Mesopotâmia e com o Egito, tendo a função não somente de expressar acontecimentos diários, mas crenças, mitos religiosos, estruturas sociais e até mesmo decorações que embelezavam palácios e tinham o objetivo de prestigiar as conquistas de governadores.

1Do latim ars, significa técnica e/ou habilidade. 17

Assim, a história da arte é construída e contada constantemente, envolvendo variações de circunstâncias sociais e culturais, nas quais a participação de agentes humanos ativos e efetivos responde e corresponde às cores, sons, formas que a natureza possui, em que é demonstrado o lado contemplativo, mas também perspicaz de querer dominá-la. Ao longo do tempo e da história as reflexões resultantes desse movimento humano de enfrentar e admirar a si mesmo e o seu entorno manteve-se, mas em cenários diversos como na arquitetura e espaços públicos. Como dito anteriormente, a existência de produções imagéticas iniciou-se na pré-história com as intervenções gráficas nas paredes das cavernas, e persistiram na percepção humana sobre o mundo. De acordo com urbanista italiano Francisco Careri para BBC Brasil São Paulo, no Império Romano foi denominado pela primeira vez o termo “graffiti”, que remeteu a inscrições feitas na parede através do uso do carvão para produzir mensagens de protestos, predições o entre outros temas. Diante dos fatos históricos mencionados, as inscrições gráficas em muros, paredes e outros suportes não convencionais registram, através de pinturas, informações históricas que relatam conjuntos de crenças mitológicas, iconografias, rudimentos decorativos, arte, política e outros. De acordo com Feitosa (2004), todo aparato serve de referência para estudos científicos, filosóficos, estéticos, tecnológicos e até mesmo no conjunto de valores morais e éticos de uma sociedade. Isto porque as várias manifestações artísticas e seus temas fizeram parte da história e estão inseridas nas experiências cotidianas, consequentemente, do essencial da vida humana – abstraindo e refletindo nas inscrições gráficas a sua realidade. Os graffitis atuais remetem a um sentido diferente dos muros do passado, pois como foi visto acima, todas as manifestações humanas, em especial a artística, retratam um contexto histórico e uma realidade distinta. Mas apesar disso pode-se afirmar que as expressões gráficas possuem uma intenção atemporal e comum: a comunicação. Sob essa perspectiva, Santos (2010) esclarece que desde inscrições romanas feitas de carvão até as intervenções urbanas do século XXI houve uma necessidade de instituir uma comunicação pública, inscrevendo pensamentos e sentimentos que propiciaram aos seus espectadores uma produção vasta de pontos de vistas estéticos e manifestações de ideias e pensamentos. Nesses contextos diferentes se destacaram várias mudanças, uma delas foi da própria maneira de grafitar, isto é, a técnica de elaborar um graffiti. Verificamos 18

essa informação com Rink (2013), quando ela relata que nos anos 1950, durante o processo de industrialização, houve intensa produção têxtil, automobilística, alimentar, gráfica, e também a produção da tinta látex, que fez parte dos produtos a serem comercializados e consumidos. Diante do desenvolvimento empreendedor da época, consecutivamente houve expansões e aprimoramento de diversos produtos, entre eles, a tinta látex em spray que foi utilizada para inúmeros fins, inclusive para grafitar sobre as paredes. Porém, antes mesmo da tinta látex ser produzida em forma de spray, as intervenções grafitadas eram utilizadas através do piche, substância que possui um pigmento negro e textura grudenta e resinosa, sendo de difícil remoção. Foi através deste material que a expressão de “pichação” surgiu e apesar de ser associado como ato de vandalismo, serviu para as primeiras intervenções estéticas no espaço urbano da Contemporaneidade. Rink (2013) ainda reitera que a tinta em spray possibilitou diversas técnicas de grafitagens através de sua tecnologia de fácil manuseio. Inaugurando novas maneiras de inscrever as suas expressões artísticas, inicialmente, de maneira ilegal e informal, através de ações coletivas visando atingir o cenário público presente na sociedade. Assim, o graffiti foi visto como uma arte criminosa, como exemplifica o artigo 1632, do código penal, que assegura que os danos causados pelos crimes contra o patrimônio, isto é, praticar atos danosos como destruir, inutilizar ou deteriorar coisa alheia, está sujeito a levar uma pessoa à detenção, de seis meses a três anos, e multa, além da pena correspondente à violência. Porém, apesar da previsão jurídica, os espaços urbanos foram constantemente apropriados com arte e sensibilidade pelas intervenções do graffiti. Durante o processo industrial, a tinta látex passou a ser produzida em larga escala sob a forma de spray, tornando-se um produto acessível no comércio. Devido essa nova produção, inscrições de diversas atividades coletivas passaram a ganhar cada vez mais visibilidade, influenciando a formação dos primeiros grupos e movimentos contraculturais no ocidente. No final de 1960 apareceram na Europa pichações inscritas nas paredes como forma de protesto às inclinações conservadoras da sociedade da época. Pode-se dizer que esse movimento se iniciou nas ruas francesas em maio de 1968, quando os muros de Paris foram

2 DECRETO-LEI N.º 2.848, DE 7 DE DEZEMBRO DE 1940. Código Penal do Artigo nº163. Parte Especial Título II dos Crimes Contra o Patrimônio. Capítulo IV do Dano.

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invadidos por escritos gráficos com palavras de ordem e outros manifestos, servindo de palco para comunicações coletivas guiadas por multidões que incitavam protestos e reivindicações, se tornando também fonte de inspirações para aqueles que visavam transformações sociais. A partir desse momento, o movimento de contracultura só tendeu a multiplicação em diversas sociedades, os muros cada vez mais serviam de interlocução para manifestação de oposição política e insatisfação social. Em Nova York, artistas e grafiteiros afetados pelo marco francês também inscreveram nos muros as ruínas sociais e políticas de seu tempo. Um dos artistas a ser destacado é Jean-Michel Basquiat, que além de manifestar indignações também tinha uma expressividade muito intensa e diferenciada, o que acabou inaugurando uma perspectiva de “estética da grafitagem” e da definiçãoo do artista-grafiteiro como aquele que possui capacidade de produzir conceitos que remetem a ousadas expressões sociais. Conforme Tânia Lima:

Durante os mornos anos 80, o pintor Basquiat provocou escândalos no mundo dos muros repletos de desenhos e pichações emaranhadas de um colorido agressivo. O pintor da era pós “contracultura”, ao pincelar seus grafites manchados, emprestava suas cores para retratar o vazio de uma época. No jogo de luz e sombra, desenhava de só uma levada suas telas como se pintasse pelo improviso jazzista do instante. Em sua „brincadeira levada a sério‟, fez do grafite de rua uma espécie ícone perene do insustentável mundo contemporâneo. Por outro lado, também soube como nenhum outro artista tirar proveito da fama ao estrear na galeria dos muros e paredes de alvenaria de um subúrbio com cara de classe média dos guetos latinos americanos. Se a arte do pós-guerra deixou os museus europeus para se alojar dentro dos museus americanos, a arte de Jean Michel Basquiat é uma travessia que saiu do meio das ruas para se alojar dentro de galerias e museus de Nova - Iorque. Esse pintor das ruas ao expressar a arte do grafite, em tom de brincadeira, movia-se para o campo das artes gráficas com um trabalho para lá de sério. No víeis [sic. Viés] da crítica social, esse artista plástico nos leva a ver a rua de dentro para dentro dos quadros manchados de uma poesia rebelde. Por ali uma parte da classe média baixa descobre sem modismo no auge dos anos 80: o grafite. (LIMA, 2013)

Basquiat foi um artista estadunidense considerado referência dos movimentos populares de Nova York e também precursor que influenciou a tendência do graffiti contemporâneo presente na arte urbana. Através de suas expressões exclusivas de crítica social acabou fazendo com que o graffiti fosse reconhecido em nível internacional e ganhasse espaço no âmbito artístico. Além de Basquiat, houve também o artista Keith Haring que ficou reconhecido pela sua notável arte pop 20

influenciada por Andy Warhol, que consistia numa ruptura entre a arte considerada erudita e pop. Haring foi o primeiro artista a levar a arte de rua para galerias, museus, bienais marcando ainda mais o seu estilo de romper as barreiras e contribuindo também para a diversificação técnica de fazer arte urbana. No Brasil, Keith Haring, teve um papel muito importante na década de 80, quando os primeiros movimentos de graffiti começaram a surgir nas ruas da capital paulista, sendo convidado a participar de uma Bienal Internacional de Arte juntamente com outros artistas-grafiteiros estadunidenses. Em sua vinda ao Brasil produziu dois grandes painéis grafitados em São Paulo, hoje apagados, mas que servem ainda como fonte de referência artística para os outros artistas devido as sua forma lúdica, colorida e excêntrica de grafitar e ainda assim, nunca se abstendo do cunho político e social. A partir dos relatos sobre os movimentos de contracultura ocorridos na Europa, pode-se concluir que os grafiteiros foram afetados pelo cenário histórico cercado de ideias e ideais sócio-políticos de sua época. Segundo Canevacci (2005), os movimentos de contracultura morreram nos anos 1980, “(...) pois morreu a política como utopia que transforma o mundo empenhado ao futuro próximo” (p.15). Para o autor, a contracultura deixa de existir quando há uma cultura dominante, nesse sentido, os movimentos de contracultura daquela época deixaram de fazer sentido quando houve a perda de contestação de forma articulada e reflexiva. Diante dessa perda, da essência contracultural permaneceram movimentos artísticos, como o graffiti, que resultaram em grupos diferenciados com expressões e intenções diversificadas de fazer arte no meio urbano. O graffiti no Brasil não surgiu no mesmo contexto contracultural europeu, mas durante o período da ditadura militar, podemos verificar essa informação em Soares (2008), o autor afirma que foram encontradas as primeiras manifestações urbanas pelos muros contra o regime posto em 1964. Foi um movimento intenso de práticas como pichações e grafitagens, especialmente a primeira, que foi expressa com frases de impacto e palavras de ordem que representavam a crítica à opressão do regime militar. A pichação fora considerada um dos recursos mais práticos e agéis devido sua técnica, que respondia muito bem a necessidade de se registrar insatisfações, expressões, ideias, evitando a denúncia naquele período histórico. Dessa forma, muitos jovens, especialmente de movimentos estudantis, impactaram as ruas da cidade com pichações nos blocos de concretos da cidades. 21

Na década de 1970, em São Paulo, as manifestações urbanas foram também marcadas pelo graffiti, que começou a ganhar visibilidade pelas imagens figurativas e poéticas, se somando também com as expressões de crítica social apontadas pelas pichações e acabou versando além de palavras de ordem, poesias, mas que remetiam ainda ao contexto político. Além disso, havia naquele momento o “stêncil art” que também fora muito utilizado para manifestações artísticas e políticas. Durante o golpe militar de 1964, houve uma tentativa de vários movimentos artísticos brasileiros de buscar construir, ou ao menos representar, a imagem do país em seu contexto, por exemplo, a Tropicália e a sua busca pela representação de uma identidade consciente e objetiva da cena brasileira daquele período. Partindo desse momento de censura militar de variadas expressões artísticas, o graffiti emerge e se populariza no país, movido pela busca de mudanças e representação coletiva. O seu papel dentro da história das artes brasileiras cada vez mais se fortificou e ganhou legitimidade como status artístico, deixando de ser reconhecido apenas pelo seu meio urbano e popular. Pode-se afirmar que isso se concretiza oficialmente na Bienal de 1985, quando foram convidados vários grafiteiros entre intelectuais e especialistas em arte para participar do evento e expor os seus trabalhos em suas galerias. Entre os expositores estavam os brasileiros Alex Vallauri, Waldemar Zaidler e Carlos Matuck. O grafiteiro Vallauri, por exemplo, trouxe para a exposição a sua influência pop-art americana, em que se refere ao uso de máscaras de papelão e da técnica de moldes vazados que serviu para os desenhos. Esse estilo de grafitagem acabou sendo considerada por Alex Gitahy3 como escola vallauriana, consistindo na transformação de moldes de materiais com textura flexível em máscara. Outras escolas classificadas por esse autor são os graffitis ligados ao movimento hip-hop oriundo do estilo americano e também a escola de Keith Haring, característica do estilo à mão livre, podendo utilizar spray, pincéis, tintas acrílicas. Diante das referências apresentadas pode-se afirmar que o cenário do graffiti no Brasil começou a se tornar referência internacional.

Vallauri, Zaidler e Matuck, escolheram o mais anônimo e pouco rentável dos suportes. É neles que os artistas vão exercer a sua intenção maior, a de provocar e instigar as pessoas a tomarem conhecimento de si mesmas. Pois trata-se disto. Observar a individualidade onde menos ela é esperada. Ver reciclados signos aos quais estão habituados. História em quadrinhos,

3 Celso Gitahy considerado um dos representantes da turma pioneira do Graffiti no Brasil. Também autor do livro “O que é Graffiti?” publicado em 1999 pela Editora Brasiliense. 22

marcas do cotidiano até finalmente, marcas psíquicas. É o caso dos signos- fetiches, do mundo mágico e encantado, do sonho infantil. Tudo como uma lição para casa que se encontra em plena rua. O choque do encontro, a invenção de signos, a redescoberta dos signos conhecidos que, pela primeira vez, parecem estar diante de nós. Ardentes, mágicos, generosos, fantasiosos, intencionais, os grafiteiros profissionais são extremamente amadores. É neste amar a dor, neste prazer e intervenção que o seu trabalho adquire foros de maioridade e de diálogo evoluindo na direção do interlocutor anônimo e das possíveis respostas (...) (Jacob Klintowitz In: MURAL Graffiti: Alex Vallauri, Carlos Matuck, Waldemar Zaidler Jr. Texto de Jacob Klintowitz. São Paulo: Galeria São Paulo, 1984.)

Assim, além dos autores expostos na Bienal de 1985, outros artistas grafiteiros já produziam muitas obras, a diferença é que a sua atuação ainda permanecia nas ruas, enquanto os grafiteiros Alex Vallauri, Carlos Matuck, Waldemar Zaidler se deslocavam entre dois meios: ruas e galerias. Entre os primeiros grafiteiros conhecidos no Brasil está o artista Binho Ribeiro que atua e contribui para o cenário do Graffiti desde 1984. Em 2011, foi construído o Museu Aberto de Arte Urbano localizado em São Paulo na Avenida Cruzeiro do Sul que contou com pinturas de diversos artistas colaboradores e teve como diretor e tutor, Binho Ribeiro. É possível verificar essa informação e visualizar as artes, através do curta-metragem “MAAU (Museu Aberto de Arte Urbana) – 2011”. Outra referência de graffiti para o Brasil, talvez a mais popularizada, se trata dos “Gêmeos”: uma dupla paulista de grafiteiros que começou sua atividade em 1986, servindo de referência e inspiração para artistas de todos os âmbitos, isto pela composição de seus desenhos que representam um imaginário vasto e colorido, repletos de realismo e ficção. A biografia dos Gêmeos indica que antes de existir um mercado específico voltado para arte do graffiti, eles utilizavam tintas de carro, reaproveitavam bicos de desodorante e perfume como material para moldarem e construírem a própria linguagem. Com o tempo e o desenvolvimento industrial, os seus desenhos passaram a ser produzidos com mais habilidade técnica e recursos materiais, contribuindo para a criação de uma identidade de grafitagem própria que fora requisitada e reconhecida por artistas do mundo todo. Atualmente, os Gêmeos fazem exposições em várias galerias do mundo, mas ainda transitam nas ruas expondo a suas artes. Sobre as informações referidas no texto sobre os Gêmeos, é possível averiguar no site4 autenticado dos grafiteiros.

4 http://www.osgemeos.com.br/pt 23

Após o aparecimento dos três brasileiros citados na XVIII Bienal em São Paulo de 1985, o cenário do graffiti no Brasil cada vez mais se aprimorou e expandiu com debate sobre arte para além das ruas, trazendo para dentro de escolas e universidades, colóquios sobre a grafitagem e sua extensão estética, epistemológica e política. Atualmente está em vigor a lei nº12408/2011, sancionada pela então presidente Dilma Roussef, que afirma que “a prática do grafite é realizada com o objetivo de valorizar o patrimônio público e privado mediante manifestação artística”. Rink (2013) afirma que atualmente muitos grafiteiros realizam projetos sociais de forma independente e até mesmo em parceria com o governo. Os desígnios dessas intervenções seguem de forma ampla, variando entre fornecer capacidade de desenvolvimento pessoal, oficinas artísticas até trabalhos que contribuem para a qualificação profissional, proporcionando aprendizagem de competências básicas. A autora ainda destaca que todas as ações realizadas pelos grafiteiros geralmente possuem o objetivo de afastar crianças e jovens, independente de suas classes sociais, da marginalidade e do envolvimento com as drogas. Dessa forma, pode-se dizer que o graffiti não só possui um papel importante na contribuição estética e histórica, mas também na sociedade. Vale ressaltar que as oficinas artísticas usualmente ocorrem junto a ONGs e escolas, oferecendo aos participantes a possibilidade de conhecerem a dimensão dessa arte e a expressarem em paredes e muros da cidade. Também leva para exposições em galerias, camisetas, painéis, entre outras formas em que o graffiti pode ganhar espaço. Ademais, os participantes tomam contato com outras manifestações artísticas, o que contribui para o aperfeiçoamento dos seus conhecimentos culturais. Rink (2013) explana que o envolvimento entre os grafiteiros e a cidade remete a uma relação estética e revigorante, pois os desenhos grafitados nas ruas demonstram um cenário com cores e movimentos que repelem a constância dos locais com a criatividade e a imaginação dos grafiteiros. Dessa forma, as uniformidades das ruas se rompem quando ganham temas provocadores e irreverentes com nuances diversos produzidos por meio do graffiti. Essa produção representativa e subjetiva por meio de signos comumente é conduzida por utopias, anseios e expectativas que compõem imagens pintadas nas paredes e muros da cidade. A partir disso, podemos compreender que a cidade está repleta de intenções que se somam e multiplicam, revelando um lugar de experiência para uma arte 24

como o graffiti, possibilitando a produção de uma nova percepção espacial, que visa também uma interlocução coletiva. A ação de grafitar resulta na delimitação de um espaço que pode ser preenchido de forma imaginativa, singular, mas, sobretudo, de reinventar e criar novos significados para os locais urbanos. É possível estabelecer que o desejo do grafitar faz com que o artista narre e compartilhe a sua realidade, isto é, cria experiências que remetem a emoções, imaginações, estéticas e valores. Além disso, há a intenção de se comunicar coletivamente. As experiências subjetivas grafitadas proporcionam um acesso público e popular, no qual todas as pessoas que transitam nas ruas podem compartilhar da informação que o grafiteiro quis proporcionar na sua narrativa sensível. Em suma, é possível afirmar que os graffitis fornecem um conjunto de elementos e formam um cenário coletivo e imaginário, que ao serem assistidos pelos espectadores urbanos podem provocar uma experiência estética coletiva que influencia nos modos de significação dos acontecimentos da própria cidade. Por consequência, o grafiteiro e suas inscrições acabam exercendo uma função social, ultrapassam a uniformidade e revigoram a produção subjetiva urbana, quebrando imposições convencionais estéticas e acadêmicas, proporciona assim, através de sua arte livre e simbólica, uma contextualização metropolitana marcada com novas interpretações e signos. Após a composição de processos históricos, sociais, políticos e artísticos no cenário do graffiti, no tópico seguinte foi investigado o conceito de cotidiano e discurso contido nas inscrições grafitadas a partir da cultura em massa de Michel de Certeau e da filosofia política de Michel Foucault.

3. Discurso, Cotidiano e Graffiti

3.1 Discurso Estético na Arte Graffiti

Suponho, mas sem ter muita certeza, que não há sociedade onde não existam narrativas maiores que se contam, se repetem e se fazem variar; fórmulas, textos, conjuntos ritualizados de discursos que se narram, conforme circunstâncias bem determinadas; coisas ditas uma vez e que se conservam, porque nelas se imagina haver algo como um segredo ou uma riqueza; Em suma, pode-se supor que há, muito regularmente nas sociedades, uma espécie de desnivelamento entre os discursos: os 25

discursos que “se dizem” no correr dos dias e das trocas, e que passam com o ato mesmo que os pronunciou; e os discursos que estão na origem de certo número de atos novos de fala que os retomam, os transformam ou falam deles, ou seja, os discursos que, indefinidamente, para além de sua formulação, são ditos, permanecem ditos e estão ainda por dizer. (FOUCAULT, 2012, p.21) No presente tópico foi trabalhado o conceito de discurso em Foucault, para, em seguida, fazer uma investigação sobre a experiência artística contida nas inscrições grafitadas. Partindo disso, se fez necessário compreender que a linguagem do graffiti, que participa de uma conjunção de formas sociais políticas, ideológicas que se encontram e que surgem como inquietações que investigam a área de conhecimento, para compreender a constituição das relações entre saber e poder do sujeito. Dessa forma, foram apontados os procedimentos de controle e exclusão do discurso em Foucault, especificamente os procedimentos externos que se fundamentam em três processos: Interdição, Separação e Loucura, Vontade de Verdade. O conceito de discurso em Foucault destaca uma sociedade de exclusão. Parte-se do princípio de interdição que restringe o direito da fala, isto é, não se pode dizer qualquer coisa em qualquer circunstância. Tal interdição revela no discurso uma assimilação entre o desejo e o poder, cuja manifestação ultrapassa o seu significado. Deste modo, o discurso não se resume pelo que ele traduz, mas pelos motivos que impulsionam a sua tradução. É através do movimento dessa manifestação que o discurso assimila o desejo de apoderamento do poder. Portanto, todo discurso ao ser enunciado, independente de seu caráter, possui uma intencionalidade de incorporar a relação entre desejo e poder. Além do procedimento de interdição, outro princípio excludente segue de uma separação e de uma rejeição. Parte de uma dualidade histórica da Idade Média entre a loucura e a razão, sendo o discurso louco considerado aquele que não possui a permissão de ser circulado como normal ou até mesmo impedido de ser pronunciado, pois era considerado nulo e suspenso. Dir-se-á que a definição de loucura mudou. Na atualidade, o discurso do “louco” não participa mais de uma separação que afasta da razão, isto porque, muitas vezes expressa um sentido aproximado de uma observação atenta, na qual mobiliza a busca de sentido por aquilo que foi pronunciado. É partindo do procedimento anterior, que sucede o último: a vontade de saber. Ora, para Foucault todo discurso implica num desejo de conhecer as 26

verdades contidas nele. Essa vontade de saber está assentada na antiga concepção grega de discurso verdadeiro, inicialmente caracterizado como o único que poderia pronunciar a justiça, logo, o único que detinha o poder. E não surpreendentemente, pertencendo apenas àqueles que tinham direito a fala. Dessa forma, o discurso verdadeiro foi considerado como referência de submissão despertando o sentimento de respeito e terror. Porém, esse cenário grego mudou com Hesíodo e Platão, distinguindo o discurso verdadeiro do discurso falso. Portanto, o discurso verdadeiro não é mais aquele que está ligado no exercício de poder, mas uma vontade de saber. Em contrapartida, lançam-se na modernidade variadas formas de vontade de verdade. Segundo Foucault, essa nova vontade se alicerça assim como outros sistemas de exclusão no suporte institucional, que controla e decide a maneira de como ser fortalecida e reconduzida, e o modo como o saber é partilhado, valorizado. Ou seja, para Foucault a vontade de verdade está apoiada em uma instituição que exerce um poder de imposição e restrição de saberes. Sobre essa relação e o direito de fala, podemos verificar na figura 1, um discurso que emite valores de mudança social.

Figura 1: Grafitti em Cuiabá/MT

Fonte: Site Olhar Direto 5

5 Acessado em 02/05/2017 às 16h34. 27

No graffiti acima, podemos interpretar que houve uma intenção de retratar um senhor simples, de feição gentil, mas com palavras muito profundas que exigem da sociedade a mudança necessária à cidade e caso ela não aconteça, é melhor sair da cidade. Isso traduz para a presente pesquisadora, que a situação nela representada parte de um contexto emergencial alertado por um cidadão comum sobre a necessidade de transformar as situações já postas na cidade. Como pode ser observado, o conceito de Discurso em Foucault investiga, sobretudo, os modos da atuação do sujeito nas relações acerca do poder. O mesmo atua como um modo de ação sobre a ação de outro sujeito livre, sendo este capaz de contestar ou aceitar as regras normatizadas pela sociedade. Desse modo, transpondo as inscrições urbanas do graffiti para a concepção foucaultiana, pode-se considerar que este se configura como uma ameaça aos discursos já pré-estabelecidos. Visto que, para Foucault há uma luta discursiva que envolve um cuidado social em controlar, elaborar e distribuir os discursos. Além desse conflito, existe uma tentativa de controle através de meios discursivos para normatizar a vida de cada indivíduo, como observado na Figura 2.

Figura 2: Meios discursivos no grafitti.

Fonte: Site Augusta SP6

6 http://augustasp.com/ruaaugusta/05/osgemeos-protestam-contra-prefeitura-de-sp-apos-grafite- apagado/. Acessado em 02/05/2017 às 14h33. 28

Na figura 2 o grafiteiro combinou dois meios diferentes para diversificar o seu discurso, a pichação e o graffiti, mais conhecido como grapixo. Pode-se observar que os dizeres inscritos direcionam para uma manifestação de inquietação político- social, pois alude uma crítica às remoções de manifestações sociais e da produção cultural através da arte urbana. Dessa forma, através da consonância entre os dizeres e o desenho, o graffiti reforça a legitimidade do seu direito de expressão gerando um reforço do mesmo através do seu discurso singular. A partir disso, o grafiteiro se objetiva como um sujeito social portador de uma voz em que profere uma reação contra os discursos dominantes que pregam hegemonização cultural, propagando a desumanização, alienação e as ações pautadas em interesses econômicos. Sobre a análise de um discurso estético sob a perspectiva filosófica em Michel Foucault, verifica-se no documentário “TV de Quinta(L) entrevista Grafiteiros Cuiabanos”, realizado por Cidadão Cultura, a presença de uma materialidade linguística que se posiciona socialmente. Isto se faz possível através dos relatos dos grafiteiros contido no documento, por exemplo, o grafiteiro Neto diz que a arte de rua é livre, ela existe independente dos estigmas sociais e discussões sobre a sua legalidade. Já o grafiteiro Gora, afirma que a arte de rua se faz como um instrumento de guerra, pois ela existe em função da necessidade de modificação da sociedade. Ele frisa que ela modifica o caminho das pessoas e a cidade. É pela arte de rua ser livre em sua natureza, que o grafiteiro Babu, diz que o graffiti não existe apenas para ser apreciado positivamente, ele se envolve com a história e existe para despertar sensações nas pessoas, ou seja, é para ser gostado ou não. Além disso, o artista acrescenta que se sente como um “super herói” quando sai para pintar na cidade, pois realiza uma atividade artística marginal num horário noturno com uma máscara no rosto para se proteger contra as toxinas do spray. E para concluir, o artista SIQ alega se sentir feliz e completo por saber que lugares inutilizados da cidade estão sendo ocupados pelo graffiti, frisando que a arte de rua é acessível a todos que querem realizá-la; por ser uma atividade artística positiva para a juventude; e por servir como ferramenta de expressão de ideias que devem ser projetadas nos espaços públicos.

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Em meio a essa normatização, o ato de grafitar repercute numa ação que se opõe aos padrões discursivos. A irrupção de seus desenhos e dizeres no cenário urbano se torna uma tentativa de inserção de novos modos de produções de discurso, e ao mesmo tempo, se coloca em um papel de resistência ocupando os meios vetados pelo discurso padrão para a formação da sua expressão artística. Diante disso, o graffiti estabelece uma nova forma de interlocução e diálogo com a sociedade, como dito, reagindo contra as regras normatizadoras. Estas, por sua vez, também respondem as novas variáveis grafitadas, impondo novas normas que participam da área de desobediência civil. Há um conflito de discursos. Como destaca Foucault:

[...] não há relação de poder sem resistência, sem escapatória ou fuga, sem inversão eventual; toda relação de poder implica, então pelo menos de modo virtual, uma estratégia de luta, sem que para tanto venham a se sobrepor, a perder sua especificidade e finalmente a se confundir. Elas constituem reciprocamente uma espécie de limite permanente, de ponto de inversão possível. Uma relação de confronto encontra seu termo, seu momento final (e a vitória de um dos dois adversários) quando o jogo das reações antagônicas é substituído por mecanismos estáveis [...] (FOUCAULT, 1995, p. 248).

3.2 A Invenção Cotidiana presente na arte graffiti

A invenção do cotidiano corresponde a uma atividade social de utilizar meios sutis, determinados e resistentes por meio de compostos de sujeitos que trabalham para distribuir a linguagem popular e instaurar seu espaço com as características de movimento e combate. Certeau (1994), em análise das criações linguísticas no Brasil, observa a produção de discursos resistentes pelos fiéis dentro das instituições religiosas, através de ritos e cantos, de forma sincera e ativa sob as condições de miséria e desigualdade. Esse uso popular da religião ganha um corpo diferenciado devido às historicidades vivenciadas por aqueles religiosos e que sob o manto divino de uma organização que realiza manutenção de uma conjuntura política predominante, ocorre à metamorfose de anseios populares através de preces, dialetos e linguagens por povos que aparentemente estão seguindo o condicionamento e o padrão instituído. Dessa forma, Certeau (1994), com a sua particularidade de pesquisa e sutileza, traz uma abordagem empática de enxergar a invenção do cotidiano de 30

forma que os campos de pesquisas científicas não saberiam compreender o fenômeno e tampouco trazer resultados honestos.

Uma formalidade das práticas cotidianas vem à tona nessas histórias, que invertem frequentemente as relações de força e, como as histórias de milagres, garantem ao oprimido a vitória num espaço maravilhoso, utópico. Este espaço protege as armas do fraco contra a realidade da ordem estabelecida. (idem, p.85)

As variações culturais presentes no cotidiano são representadas através da arte ao servir de voz àqueles que retratam o seu tempo, considerando os fenômenos históricos que os atingem. Essa prática se apropria dos cenários normativos pelas brechas que os mesmos fornecem, sendo manipuláveis pela população, mas, como alerta Certeau (1994), com arranjos bem articulados e por uma lógica própria de fomentar fenômenos e cultura. De tal forma, que enriquecem essas práticas cotidianas e as tornam complexas para serem enxergadas. As historiografias narradas através de contos populares inspiram coragem e resistência para continuar e conquistar novas vitórias. É através desse estratagema sutil que Certeau (1994) identifica a arte de dizer como um jogo lógico, aquilo que está sempre pautado em uma ordem temporal, sendo possível localizar os acontecimentos que afetam a historicidade dos sujeitos sociais. O jogo aborda essa variabilidade de fenômenos que correspondem à racionalidade de práticas de espaços, consistindo numa linguagem que combina o pensamento e a ação, resultando em uma recriação da arte de dizer popular que se eterniza na memória de uma cultura. O autor exemplifica esse jogo mutável, trazendo a sucata como objeto final oriundo de apropriações dos resíduos produzidos pela sociedade industrial, trazendo à tona diversas reinvenções passíveis de transformações. O sujeito comum vê a partir desses restos uma alternativa de produzir outros elementos, pela necessidade rudimentar de criação. Isto é, o objeto sucata não ganha sentido apenas para uma alternativa reciclável movida ao capital, mas pela criatividade dos agentes ordinários que enxergam nela novas possibilidades de recriação de uma cultura popular. A reutilização de materiais descartáveis produzidos pela indústria acaba ganhando um movimento singular na sociedade de consumo, proporcionando um novo caminho dentro de um espaço em que há um 31

modelo econômico predominante. Dessa maneira, a livre criação significa uma maneira alternativa de reagir. Nessa mesma linha de pensamento, Certeau (1994) utiliza ainda a sucata como uma metáfora a ser executada no campo de pesquisa científica, enxergando os pesquisadores que se preocupam a analisar e estudar a produção de saber residual da sociedade como combatentes, visto que, fogem da lógica do lucro da pesquisa voltada para o desenvolvimento industrial. Os pesquisadores que trabalham com a sucata estão inseridos num movimento de criação e invenção, e não voltados para uma fábrica científica que está demandada por um modelo econômico predominante nas instituições do saber. Em influência contínua em Foucault, as práticas cotidianas para Certeau estão ligadas ao um complexo conjunto de estratégias de procedimentos e técnicas discursivas, que estão suscetíveis ao procedimento de controle voltado para a manutenção de determinada tecnologia disseminada, tanto no campo social quanto no científico. Essa objeção abordada de forma conceitual em Foucault indica que a sociedade possui meios e métodos seletivos de proliferar determinadas práticas culturais e conjunto de saberes, porém, alerta Certeau (1994), que a análise do filósofo não contempla todo conjunto de táticas e estratégias construídas na sociedade. Isto é, compreende-se o lado historiográfico das funções desses procedimentos e dispositivos tecnológicos em filtrar produções de discursos, mas qual a acepção dos mesmos a serem desenvolvidos? Onde as produções discursivas que não foram enquadradas na configuração de discurso se encontram e porque as mesmas não foram observadas numa sistematização tecnológica? Tais indagações são despertadas em Certeau ao se deparar com a historiografia de Foucault sobre a sociedade de exclusão, a partir delas, o autor se refere às práticas de cotidianos que existem nas manifestações culturais de uma sociedade de consumo, seja como combate e/ou comodidade.

Uma sociedade seria composta de certas práticas exorbitadas, organizadoras de suas instituições normativas, e de outras práticas, sem número, que ficaram como “menores”, sempre no entanto presentes, embora não organizadoras de um discurso e conservando as primícias ou os restos de hipóteses (institucionais, científicas), diferentes para esta sociedade ou para outras. É nesta múltipla e silenciosa “reserva” de procedimentos que as práticas “consumidoras” deveriam ser procuradas, com a dupla característica, detectada por Foucault, de poder, segundo modos ora minúsculos, ora majoritárias, organizar ao mesmo tempo espaços e linguagens. (idem. p.114) 32

Em vista da introdução conceitual de Foucault em procedimentos e tecnologias instituídas num campo normatizador, se mostra a Certeau, uma possibilidade de investigar os outros procedimentos indefinidos, que não foram privilegiados historicamente, mas que exercem ações na rede de tecnologias instauradas socialmente. As práticas cotidianas e as suas respectivas invenções. Nesse prisma, o autor se inspira em Bordieu e seus escritos etnológicos, uma via de pesquisa que se aproxima do objeto estudado, detectando as suas particularidades e a função que emprega em determinada teoria. Essa perspectiva traz uma percepção de estratégias que devem ser aplicadas para filtrar a lógica da prática, gêneros e propriedades, abordando um novo meio de estudar as reservas de práticas cotidianas que não foram contempladas na teoria de procedimentos de exclusão em Foucault. As necessidades de estratégias junto com as táticas fazem parte de um conjunto complexo de práticas em que o capital está inserido, em que Bordieu, destaca a existência de procedimentos essenciais que formam uma transgressão simbólica que lesa a predominância linguística.

Enfim essas práticas são todas comandadas por aquilo que eu dominarei uma economia do lugar próprio. Esta recebe, na análise de Bourdieu, duas figuras igualmente fundamentais mas não articuladas: de uma parte, a maximização do capital (os bens materiais e simbólicos) de que se constitui essencialmente o patrimônio; de outra parte, o desenvolvimento do corpo, individual e coletivo, gerador de duração (por sua fecundidade) e de espaço (por seus movimentos). (IDEM. p.123)

Com a articulação de discurso de Foucault e Bordieu sobre as práticas não discursivas, Certeau vai construindo a sua teoria da arte de fazer refletindo sobre a privação de uma linguagem desconhecida que engloba saberes práticos e perpetua de forma inculta no olhar da ciência. A arte da invenção do cotidiano que nem sempre nasce de uma reflexão, da contemplação e assimilação consciente de seu cotidiano. O fato, é que para Certeau, ela existe e de alguma forma, resiste em seu meio, pois mesmo colocada de forma ausente no foco das pesquisas científicas, ela se encontra viva: são constantes inscrições de práticas cotidianas originadas da criatividade de pessoas comuns que preenchem os espaços sociais, algumas com 33

cunho político e social, outras de sobrevivência ao meio a sociedade de consumo. Para Certeau, as existências dessas práticas também correspondem a uma construção história, em que a arte de contar e de se fazer se mantém diversas, mesmo o discurso erudito da ciência delimitando os seus espaços. A arte do saber- fazer das práticas do dia-a-dia existe na história, mesmo sem reconhecimento. As práticas de espaços, para Certeau, remetem às representações cotidianas de alterações espaciais, inscrições de ações e conjunto de operações que constroem as maneiras de fazer. Aqui, ele vê a cidade como uma figura metafórica, que se constitui por três operações: a ocorrência da produção de um espaço próprio – organização racional que inibe qualquer interferência que possa comprometer o discurso utópico e urbanístico; o senso de temporalidade “não tempo” – para possibilitar a contínua significação nas opacidades da história; e enfim, a criação do sujeito universal – que produz a cidade à maneira autêntica, oferecendo capacidade de formar um espaço a múltiplas formas de modificação e criação de discursos. Essas definições fazem parte do conceito operatório de Certeau, onde a cidade se torna um conceito operatório, em que ocorrem as tríplices operações voltadas às transformações, invenções, apropriações de objetos e seus respectivos atributos.

Os lugares são histórias fragmentárias e isoladas em si, dos passados roubados à legibilidade por outro, tempos empilhados que podem se desdobrar, mas que estão ali antes como histórias à espera e permanecem no estado de quebra-cabeças, enigmas, enfim simbolizações enquistadas na dor ou no prazer do corpo. (IDEM, p. 189)

A prática do espaço traça uma linguagem cotidiana e um conjunto simbólico de metáforas de lugares, que mesmo ocorrendo a disciplinarização dos corpos em seu espaço, essas ações insistem em transcrever os cenários urbanos com movimentos comuns que reforçam a diversificação da arte de fazer. A atividade da narrativa organiza um espaço de lugar praticado, em que as enunciações trazem uma nova concepção episteme do saber popular. A Invenção do Cotidiano em Certeau permite observar a relação entre os processos de poder com a produção de saberes nos espaços urbanos. Essa conexão instaura a possibilidade de compreender a sociedade e as suas divisões: de um lado, uma organização social normatizadora que emite discursos dominantes, impossibilitando e reprimindo quaisquer manifestações de oposição ao seu domínio; e do outro lado, um conjunto social que caminha em contraposição ao discurso dominante, construindo articulações de resistência e contestação. 34

Dessa maneira, a obra de Certeau, serve como referência preponderante para compreender o fenômeno discursivo instituído nas inscrições grafitadas e as suas respectivas ramificações, saber e poder, que se fazem presentes no meio urbano. Em consideração a isso, é pertinente observar a existência contínua de resistências em oposição à normalização e disciplinamento em sociedade. Sempre haverá conjuntos sociais que entram em contraposições com os poderes estabelecidos e que resultam em uma variação imensurável de manifestar e protestar. Essa variabilidade se ramifica em vários setores da sociedade, entre eles, a própria cultura. Há de se compreender que o graffiti ultrapassa definições simbólicas como “ato de vandalismo” e até da determinação do que é a própria arte. Ele se estende para uma necessidade social, que envolve a relação entre o sujeito com a própria vida. Ele nasce de uma cultura ordinária, em que os grafiteiros e a cidade remetem a uma relação estética e ao mesmo tempo revigorante, pois os desenhos grafitados nas ruas demonstram um cenário com cores e movimentos, que repelem a constância dos locais com a criatividade e a imaginação dos seus artistas. Dessa forma, as uniformidades das ruas se rompem quando ganham temas provocadores, irreverentes com nuances diversos, produzidos nesse meio. Nessa perspectiva, o grafiteiro, o sujeito ordinário – o sujeito comum na Invenção do Cotidiano, se objetiva como um narrador social portador de uma voz em que profere uma reação contra os discursos dominantes que pregam hegemonização cultural, propagando a desumanização, alienação e interesses econômicos. Em meio dessa normatização, o ato de grafitar repercute numa ação que se opõe aos padrões discursivos. A irrupção de seus desenhos e dizeres no cenário urbano se torna uma tentativa de inserção de novos modos de produções de discurso e ao mesmo tempo em que se coloca em um papel de resistência ocupando os meios vetados pelo discurso padrão para a formação da sua expressão artística. Como visto no início desse tópico, Michel de Certeau (1994) fornece uma leitura dos acontecimentos do dia-a-dia de forma singular, em que é possibilitado enxergar as manifestações artísticas contidas no graffiti, a construção de significações a partir da relação entre o sujeito e a própria vida e consequentemente, a existência de um transcurso semiótico na produção de exposições grafitadas. Isto posto, devido a abertura do conceito de cotidiano de Certeau, a busca em 35

compreender tanto a linguagem verbal quanto não verbal contida nos veículos de comunicação. Podemos observar na figura 3 a linguagem do graffiti materializada em valorização aos elementos culturais da capital de Mato Grosso.

Figura 3 – Grafitti com elementos culturais de Cuiabá-MT.

Fonte: Página do Facebook 7

Na imagem acima percebemos a sensibilidade e a valorização dos artistas representarem cultura popular cuiabana através do graffiti. Nota-se que na imagem há a palavra “Crew” do lado direito e do lado esquerdo “CPA”, isso significa que foi um grupo de artistas de rua da região do bairro CPA na cidade de Cuiabá que produziram essa arte. Dessa forma, torna-se um conceito em que se propõe a

7 < https://www.facebook.com/photo.php?fbid=1256162264504924&set=pb.100003334881550.- 2207520000.1494184639.&type=3&theater> Acessado em 07/05/2017 às 17h19.

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acompanhar as realidades culturais e seus respectivos contextos, viabilizando a compreensão do graffiti não apenas como um fato e um objeto, mas como um signo que age através da semiose, provocando reações pela sua produção de significado e conhecimento. Diante disso, a Invenção Cotidiana contribui de forma significativa para a compreensão do graffiti e a sua composição de linguagem peculiar.

Figura 4 - Arte Graffiti feita na trincheira Jurumirim em Cuiabá

Fonte: G18.

Na figura acima, a presente pesquisadora interpreta que o menino negro grafitado observa com atenção e estreiteza o movimento da avenida. A sua presença não é totalmente revelada, mas o seu olhar atento e até mesmo curioso sobre os acontecimentos que o cercam, torna a sua presença marcante nesse cenário urbano. Com o esboço do seu olhar, ele se insere no ambiente, mesmo que a sua face não seja vista. Como visto, o grafiteiro possui em sua expressão a intenção de organizar e utilizar elementos para a composição do seu graffiti. O sujeito interpretante (e espectador) examina os signos emitidos e decifra a

8 < http://g1.globo.com/mato-grosso/noticia/2015/01/apos-grafite-em-obras-governo-de-mt-quer- regulamentar-arte-de-rua.html> Acessado em 02/05/2017 às 16h29.

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intencionalidade do grafiteiro através de seu exercício intelectual e cognitivo. A partir disso, o sujeito interpretante capta os signos e identifica o uso social e ideológico exposto na arte. Esse percurso semiótico entre o produtor e o interpretante, contribui para a percepção do graffiti como forma discursiva que se enuncia em espaços coletivos, que interfere na comunicação local e que acompanha o campo social e político do meio interferido.

Tal mobilidade pretende estabelecer um diálogo que afeta a circulação de indivíduos que cercam determinada parte grafitada na cidade. Dessa forma, é possível afirmar que esse discurso social e informal acaba participando da sociedade, da sua história e de sua cultura. Por fim, em Michel de Certeau, conseguimos compreender que em toda invenção do cotidiano há uma necessidade social, que muitas vezes parte de uma reação de resistência e da vontade, do indivíduo, de construir práticas culturais que protagonizam determinado povo. Valorizar as invenções do cotidiano é reconhecer que as massas populares também possuem suas táticas e estratégias para resistir à cultura dominante. A partir das intervenções constantes de desenhos coloridos, letras e frases inscritas nos espaços públicos, desde muros a viadutos, demarcam visivelmente a rotina de pessoas que transitam nesse meio urbano. Através desse contexto, a pesquisa prosseguiu analisando a arte graffiti, como intervenções que trazem inscrições cheias de significações e representações sensíveis, mas numa perspectiva educativa. Dessa forma, o próximo capítulo tratou sobre a potencialidade educativa e dialógica que o graffiti traz, a partir de uma leitura sobre a concepção de educação libertadora em Paulo Freire.

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Capítulo II

A PRESENÇA DA DIALOGICIDADE NA ARTE GRAFFITTI

Vimos no capítulo anterior sobre o surgimento do graffiti e seus impactos sociais, para compreendermos as suas potencialidades educativas como experiência dialógica, emancipadora e parte de uma cultura popular. Sendo assim, buscamos em Paulo Freire a necessidade assimilar a defesa pela luta de uma educação humanizadora contida na obra Pedagogia do Oprimido, que se torna essencial para o desenvolvimento teórico do presente capítulo. Dessa forma, na utilização da obra em questão serão tecidas as principais ideias de um novo trabalho educativo que almeja uma pedagogia da libertação, em diálogo com as possibilidades de compreender o graffiti como ferramenta pedagógica. Para tanto, em cada referência conceitual freiriana abordada no texto foi realizada uma tentativa de aproximação com a arte graffiti dentro do espaço escolar, visto que a mesma possui o propósito de educação libertadora. Isto é, uma educação que valoriza a vivência e experiência dos educandos e busca emancipá- los através da afetividade e dialogicidade. Além disso, trazemos nesse capítulo registros fotográficos de atividades que ocorreram com esse tipo de arte, entre esses, algumas em que a pesquisadora participou. Essa presença será destacada na análise das imagens inseridas. Também contamos com contribuições de outros pensadores que nos ajudam a compreender o graffiti como manifestação social, cultural e parte de uma educação popular. Entre os autores, destacamos Maria da Glória Gohn em “Movimentos Sociais na Contemporaneidade”, Renato Ortiz em “Cultura Brasileira e Identidade Nacional” e Marilena Chauí em “Cultura e Democracia”.

1. As Potencialidades Educativas na Arte Graffiti através da concepção da Pedagogia do Oprimido

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Com a finalidade de compreender as potencialidades educativas da arte graffiti na concepção de educação como prática de libertação em Freire, devemos de início ressaltar que as práticas da arte graffiti já carrega consigo o caráter educativo. Tanto na sociedade, quanto inserido no espaço escolar. Para fundamentar essa afirmação, buscamos suporte em Gohn (2011) quando ela diz sobre a apropriação do uso do espaço público por organizações e movimentos coletivos, no nosso caso, manifestação da arte de rua por grafiteiros. Além disso, a autora também aborda a concepção de “educação não formal”, isto é, aquela que ocorre fora das instituições de ensino. Para ela, esses encontros sociais geram aprendizagens e saberes que se configuram como uma prática educativa. A cerca disso, vimos no capítulo anterior que a arte graffiti esteve presente em movimentos políticos, como na época da ditadura militar no Brasil, além de estabelecer ligação com projetos sociais nas cidades. Portanto, quando mensuramos as potencialidades educativas da arte graffiti, estamos nos referindo às suas dimensões discursivas estéticas, impactos sociais e finalidades políticas. E como parte do objetivo principal dessa pesquisa, estamos interessados em quais caminhos essas potencialidades se desenvolvem e como podemos abordar essa arte como experiência educativa e emancipatória dentro do meio escolar, isto é, dentro da educação formal. Realizando as considerações iniciais, precisamos compreender a concepção libertadora freireana em relação ao estado de opressão. Sendo assim, Paulo Freire traz uma configuração social dividida em duas classes: o opressor e o oprimido. O primeiro é aquele que detém o poder sobre o meio de produção e explora tudo que lhe é subjugado. Em relação à educação, o opressor pode ser o sistema educacional e em especial, a atuação opressora do próprio /a em sua sala de aula quando exclui a escolha de fala dos estudantes. Já o oprimido é aquele que se encontra numa condição de exploração e dominação, em que não detém os meios de produção e tampouco espaço de diálogo nos meios sociais. Traduz-se naquele estudante que é impedido de participar de forma autônoma de seu sistema escolar, com currículo, conteúdo e métodos avaliativos.

O grande problema está em como poderão os oprimidos, que “hospedam” o opressor em si, participar da elaboração, como seres duplos, inautênticos, da pedagogia de sua libertação. Somente na medida em que se descubram “hospedeiros” do opressor poderão contribuir para o partejamento de sua pedagogia libertadora. Enquanto vivam a dualidade na qual ser é parecer e 40

parecer é parecer com o opressor, é impossível fazê-lo. (FREIRE, 2016, p.65)

A partir dessa dicotomia entre opressor e oprimido, Paulo Freire busca de forma incessante superar essa relação social através da concepção de uma educação libertadora, em que tanto opressores quanto oprimidos partilham dessa liberdade. Para isso, se faz necessário compreender a propagação dessa dicotomia e de como a mesma afeta as relações sociais. Dessa forma, Freire aborda que tanto os opressores quanto os oprimidos vivenciam uma circunstância de desumanização, onde ocorre uma distorção da vocação do ser mais pelo roubo da humanidade. A prática de desumanidade se dá quando um sujeito ocupa um papel de superior em que a sua função é submeter o outro como posse, numa condição em que o submetido se configura como inferior. Numa próxima situação, aquele que ocupou o papel de inferior reproduzirá a relação de submissão sofrida por aquele que era tido como superior. Essa relação de dominação quando se repete, transforma-se numa prática de desumanização. Quanto maior o exercício de ações desumanas, mas desumanos os sujeitos se tornam. Da mesma forma, quanto maior as práticas humanas, mais humanidade terá. Para Paulo Freire, a presença de desumanização significa ausência de liberdade e possibilidades de novas conquistas.

A violência dos opressores, que os faz também desumanizados, não instaura outra vocação – a do ser menos. Como distorção do ser mais, o ser menos leva os oprimidos, cedo ou tarde, a lutar contra quem os fez menos. esta luta somente tem sentido quando os oprimidos, ao buscarem recuperar sua humanidade, que é uma forma de cria-la, não se sentem idealista opressores, mas restauradores da humanidade em ambos. E aí está a grande tarefa humanista e histórica dos oprimidos – libertar-se a si e aos opressores. (FREIRE, 2016, p.63)

A busca pela liberdade, segundo Paulo Freire, representa muitas vezes para os oprimidos uma ameaça a sua condição cômoda, o que resulta no medo de se libertar de toda configuração desumanizadora, tornando-se oprimido e incorporando o sentimento de incapacidade de buscar novos desafios através da ameaça de repressão por tentar assumir novos riscos. Os oprimidos, pelo estado de imersão à condição que estão inseridos, não conseguem romper o ciclo da realidade opressora e tampouco possuem disposição de lutar pela liberdade. A partir desse contexto, o autor diz sobre aquele que consegue buscar a liberdade e superar a contradição 41

entre opressores e oprimidos e que se torna um “ser humano novo” dando também um novo lugar para a libertação com a consciência de si. Mas para tal, é necessário um processo de conhecimento e reconhecimento da necessidade de lutar pela libertação, onde todos possam participar juntos da transformação da realidade.

Os oprimidos, que introjetam a “sombra” dos opressores e seguem suas pautas, temem a liberdade, na medida em que esta, implicando a expulsão desta sombra, exigiria deles que “preenchessem” o “vazio” deixado pela expulsão com outro “conteúdo” – o de sua autonomia. O de sua responsabilidade, sem o que não seriam livres. A liberdade é uma conquista, e não uma doação, exige uma permanente busca. Busca permanente que só existe no ato responsável de quem a faz. (FREIRE, 2016, p.68)

A negação dos opressores resulta uma violência que inibe a busca do direito de ser do oprimido, que vive entre o desejo e o temor de ser livre. Por isso, para Freire, a libertação é como um parto doloroso que necessita que o opressor e o oprimido libertem-se da sua própria contradição e nasçam novamente, mas como sujeitos livres. A liberdade promove a possibilidade de opções, voz, poder de fala, transformação, de criação e recriação. Dessa forma, é preciso que haja uma inserção de consciência crítica sobre a necessidade de mudança e da condição em que o sujeito está vivendo. Para que esse processo ocorra é preciso dialogar com as massas populares sobre as suas ações, de forma reflexiva e através de trabalhos educativos, em que elas sejam atuantes e narradoras de suas próprias histórias. A partir da concepção libertadora na obra Pedagogia do Oprimido de Paulo Freire, podemos aproximar o graffiti - uma arte popular e autêntica da rua - como uma mediação para trabalhos educativos de cunho libertador dentro da escola. Na medida em que arte possibilita aos educandos atribuir e recriar novos significados com base na sua realidade de um jeito criativo e autônomo, além de uma nova forma de expressão. Essas características podem ser vistas nas considerações de Gohn (2008) como parte de uma referência de inovações e matrizes geradoras de saberes, que são estabelecidas a partir um contexto social-político. Visto que o movimento da arte graffiti não ocorre de uma forma isolada, ocorre na cidade, retrata sobre o seu lócus e afeta o cotidiano das pessoas. Nesse sentido, Gohn (2008), defende que a educação está relacionada com o movimento social a partir das suas práticas de grupos e manifestações. 42

Seguindo a Pedagogia do Oprimido, o educador deve fornecer condições reflexivas e materiais para que os educandos possam participar de um trabalho educativo com consciência e emancipação sobre as suas realidades sociais. Vejamos abaixo: Educador e educandos (lideranças e massas), cointencionados à realidade, se encontram numa tarefa em que ambos são sujeitos no ato, não só de desvelá-la e, assim, criticamente conhecê-la, mas também no de recriar o conhecimento. Ao alcançarem, na reflexão e na ação em comum, este saber da realidade, se descobrem como seus refazedores permanentes. Deste modo, a presença dos oprimidos na busca de sua libertação, mais que pseudoparticipação, é o que deve ser: engajamento. (FREIRE, p.101, 2016)

A educação deve ser praticada por uma pedagogia humanizadora em que educadores e educandos podem procurar estabelecer uma relação dialógica com os educandos a fim de construir uma consciência popular ligada ao pertencimento de mundo e de uma libertação em comunhão. Os educadores devem articular o diálogo, reflexão e comunicação com os educandos para a ação libertadora. Dessa forma, a utilização da arte graffiti com os educandos não pode ser a partir de uma pseudoparticipação, faz-se necessário que o educador siga o método da consciência e compartilhe com os educandos que a arte em questão tem um contexto histórico, uma prática com diferentes finalidades na sociedade contemporânea. E por fim, que ela possui um valor artístico e epistemológico relevante no cenário urbano. A partir disso, o educador pode promover junto com os educandos uma experimentação prática e efetiva do manuseio da arte graffiti, proporcionando autonomia para que eles possam narrar e inscrever os elementos sociais da própria realidade vivenciada dentro da escola. Até mesmo, porque a arte graffiti possibilita isso para todos aqueles que buscam nela, um meio para expressar as suas angústias, mazelas sociais, resistências, contestação, entre outros sentimentos que assolam sujeitos em condição de marginal e excluído da sociedade. Para citar experiências educativas com a arte em graffiti em Cuiabá, entre elas, o projeto social chamado “FavelAtiva – a comunidade mudando a sua realidade”9, que existe desde 2007 e desenvolve projetos e atividades voltadas para a educação cultural e valorização do ser humano, nos bairros periféricos. Em especial, no Jardim Vitória pela organização de Dj Taba e Ligia Viana. De diversas ações que o grupo já promoveu, pode-se destacar a aula de stêncil que ocorreu na

9 É possível consultar mais sobre esse projeto através do site http://favelativa.blogspot.com.br/ 43

Escola Municipal Senhorinha. Nesta ação, os estudantes expressaram através do graffiti a denúncia de crime racial, a valorização da identidade negra e o amor pelo movimento Hip-hop. Essa informação pode ser verificada no acervo de registro de atividades do blog da Favelativa 10 , bem como, no perfil pessoal do grupo no facebook11. Sobre esse projeto educativo de Cuiabá, podemos considerar a partir da leitura da Pedagogia do Oprimido em Paulo Freire, uma ação libertadora, emancipadora e revolucionária, pois os estudantes inscreveram a sua realidade no próprio espaço escolar. Construíram uma representação imagética a partir de suas vivências e tiveram a possibilidade de inscrever naquele meio a sua vivência. Essa representação pública caracteriza o movimento da arte de rua, isto é, exprimir para todo o incômodo social. (figura 5).

Figura 5 – Ação realizada na Escola Municipal Senhorinha.

Fonte: Foto cedida pela grafiteira Luane Brandão.

A respeito do conteúdo da manifestação dos educandos acima, podemos citar Ortiz (2003), quando ele discute a Cultura Brasileira e a Identidade Nacional, investigando que o campo cultural participa de uma pluralidade de identidades, se distinguindo por grupos sociais e seus respectivos momentos históricos. Tendo culturas populares ditas no plural e de forma fragmentadas, correspondendo a uma

10 http://favelativa.blogspot.com.br/ 11 https://www.facebook.com/favelativa 44

memória coletiva relacionada a vivências de grupos sociais. Nessa perspectiva, podemos compreender pelo registro fotográfico acima como exemplo de cultura popular no plural, pois o projeto Favelativa, como organização social, proporcionou ao grupo de estudantes, a oportunidade de manifestar um discurso estético étnico- racial naquele espaço escolar. Este último grupo também participa como uma organização social, que exercita a sua prática de cultura popular. Sobretudo, porque o “rap” destacado pelos estudantes, segundo Teperman (2015), surgiu na Jamaica na década de 60 como gênero musical, que se traduzia em “ritmo e poesia”. Segundo o autor, há registro de negros de algumas cidades do Estados Unidos que utilizou o rap como jogos verbais de improvisação, tendo significado de “bater” ou “criticar”. E apenas na década seguinte, o gênero musical ganhou um caráter de protesto social e racial sendo apropriado pelos grupos marginalizados da sociedade, como negros e latinos. Dessa forma, assim como o graffiti, o rap, faz parte da cultura de rua, em especial ao movimento do Hip Hop. A partir disso, podemos ampliar nossa reflexão sobre a cultura estar ligada aos movimentos sociais e suas conjunturas sócio-políticas.

1.1 O Graffiti como Prática Educativa Problematizadora

No que diz respeito à desumanização da concepção bancária da educação, Paulo Freire realiza uma abordagem significante das relações entre educador e educandos, tanto dentro quanto fora da escola. Entre elas, ele destaca que há um caráter marcante nesses vínculos que predomina as ações narradoras e dissertadoras de conteúdo. Essa prática enrijece o conhecimento, pois não oferece condições para os educandos enxergarem a sua própria realidade, narrarem os seus próprios valores e elementos culturais, deixando-os desconectados de suas próprias experiências de mundo. A partir disso, o educador torna-se o único narrador da realidade, cuja função se torna sobrecarregar conteúdos narrados aos estudantes. Esse tipo de educação é denominado de dissertadora, onde prevalece “sonoridade” da palavra e não o valor transformador. A narração única do educador resulta em memorização mecânica aos educandos, em que eles não participam da narração e tampouco refletem sobre os conteúdos transmitidos pelo educador. A partir disso, Freire traz a abordagem de uma concepção “bancária”, em que há um depósito de 45

conteúdos transferidos pelo educador e há o depositante, o educando, que recebe tais transferências de forma passiva e dócil, sem nenhuma interferência sobre tais narrativas depositadas.

Em lugar de comunicar-se, o educador faz “comunicados” e depósitos que os educandos, meras incidências, recebem pacientemente, memorizam e repetem. Eis aí a concepção “bancária” de educação, em que a única margem da ação que se oferece aos educandos é a de receberem os depósitos, guarda-los e arquivá-los. Margem para serem colecionadores ou fixadoras das coisas que arquivam. (FREIRE, 2016, p. 104-105)

Na perspectiva da educação bancária não há espaço para criatividade e transformação na relação entre educadores e educandos, pois o saber possui um valor de transferência e a educação ocupa um espaço rígido. Esse processo reduz a autonomia dos educandos perante as expressões instrumentais da ideologia da opressão – em que educador se aliena na ignorância de que é o único detentor do conhecimento, que emite afirmações irredutíveis e absolutas. Para Freire essa relação se traduz numa “cultura do silêncio” em que há uma condição alienante para o educando, que por sua vez, se comporta passivamente como um sujeito que não produz saber. Além disso, algo que se faz necessário é observar nessa educação a existência de uma relação estática da realidade, deixando-a compartimentada e pronta, sem possibilidades de experiência, tampouco a percepção da mesma pelos educandos. Dessa forma, a educação bancária reflete a sociedade opressora, que comporta sujeitos passivos e obedientes na “cultura do silêncio” onde não há espaço para transformação, visto que, sujeitos são massificados a depósitos adaptáveis ao seu estado de opressão a fim de sustentar os interesses opressores através de uma educação que minimiza os educandos e aniquila a sua criticidade. O exercício da criticidade dos educandos possibilita não só enxergar o mundo em diversas perspectivas, mas como de estimulá-los a transformação, pois para Paulo Freire, a partir do desenvolvimento de uma consciência crítica se faz possível a inserção do sujeito como transformadores do mundo. Dessa forma, quanto mais são criadas barreiras para que a criticidade ocorra, mais os educandos estarão presos numa condição de ingenuidade, parcialidade da própria realidade. Onde há um vínculo composto de narrativas ou dissertações que dominam o educando, sendo o educador o único detentor de conhecimento. Nessa perspectiva 46

de educação, podemos encontrar na arte graffiti uma forma de subversão às práticas bancárias e dissertativas, visto que, eles possibilitam uma forma de revelação de mundo a partir das experiências dos educandos, onde expressar também a sua reflexão sobre as realidades que os cercam. Essa suposta subversão se aproxima da concepção de educação problematizadora em Paulo Freire, a qual se compromete com a libertação e diálogo. É possível entender a diferença entre a educação bancária e problematizadora, a partir da citação abaixo:

A primeira “assistencializa”; a segunda, criticiza. A primeira, na medida em que, servindo à dominação, inibe a criatividade e, ainda que não podendo matar a intencionalidade da consciência como um desprender-se ao mudo, a “domestica”, nega os homens na sua vocação ontológica e histórica de humanizar-se. A segunda, na medida em que, servindo à libertação, se afunda na criatividade e estimula a reflexão e ação verdadeiras dos homens sobre a realidade, responde à sua vocação, como seres que não podem autenticar-se fora da busca e da transformação criadora. (FREIRE, p.125 - p.126, 2016)

Dessa maneira, torna-se possível encontrar na experiência da arte de rua, seja através do stêncil, lambe-lambe ou até mesmo o grafismo, uma produção artística que envolve uma gama problematizadora em que o artista se coloca como narrador de sua própria realidade e locutor de seu mundo, pois é ele quem identifica a necessidade da sua expressão e de como a mesma será produzida. E como visto, tais manifestações artísticas tem caráter diverso e criativo e surgem de questões provocantes ligadas ao contexto social daquele artista. Portanto, se a educação problematizadora, em Paulo Freire, é aquela que estimula a reflexão e transforma a realidade com protagonismo dos educandos, pode-se dinamizar a arte graffiti, como uma ferramenta pedagógica de cunho problematizador, pois possibilita que o educando possa interagir a sua compreensão de mundo e intervir nele de forma reflexiva. Visto que, a arte de rua traz consigo o questionamento de fatores sociais que envolvem a cultura, como a desigualdade social, de gênero, racial, entre outras enfermidades que, em geral, atingem a sociedade brasileira. Freire (2016) aponta que o principal agente da promoção da educação problematizadora é o educador, isto é, o professor se faz necessário no fornecimento das atividades que tragam resultados que incentivem a formação consciente e crítica para com seus educandos, a fim de, alcançar em qualquer experiência educativa o objetivo problematizador. Como exemplo desse tipo de atividade, o registro trazido na figura 6. 47

Figura 6 - Estudantes da Escola Estadual Francisco Dom Aquino escrevendo sobre a preservação do meio ambiente.

Fonte: da autora.

A atividade acima foi conduzida pela presente pesquisadora, como professora de Ensino Religioso dos estudantes destacados na figura. A proposta foi confeccionar cartazes com frases desenhadas como letras de graffiti através do uso do spray. Essa produção foi exposta e apresentada no projeto interdisciplinar da escola sobre a comemoração do meio ambiente e seus respectivos cuidados. Diferente da proposta da arte graffiti, parte da educação problematizadora na concepção bancária que o papel do educador atua como sujeito exclusivo que distingue a autoridade do seu saber para transmitir aos seus educandos, de forma arbitrária, em que antagoniza a liberdade dos mesmos, como se estes fossem apenas sujeitos que precisam ser ordenados a responderem conforme o pressuposto estabelecido pelo educador. A educação nesse caso é desimaginativa e conservadora, a ação do pensar autônomo se torna sinônimo de perigo, pois ameaça a configuração do opressor e oprimido. A concepção “bancária” institui a opressão e a afinamento de alternativas educativas, em razão de que o educador é colocado como dominador por controlar toda a ação e pensar do educando. No entanto, quando o educador bancário supera a contradição de acreditar que apenas ele é o detentor da sabedoria, se permite aprender junto com os educandos, tanto quanto os alunos aprendem com ele. Dessa forma, o papel do educador estaria a serviço da libertação e não mais da opressão, isto é, se encontraria na concepção de educação problematizadora. Resultando na 48

humanização autêntica do processo do aprendizado, pois não se submete ao método de enxergar sujeitos como depósitos, mas de práxis, em que a ação e reflexão caminham junto para transformação do mundo. Em suma, a educação bancária alimenta a contradição entre educador-educando, já a problematizadora rompe com essa hierarquia de saber, proporcionando possibilidades criativas de diálogo e construção de conhecimento no aprendizado.

A concepção e a prática “bancárias”, imobilistas, “fixistas”, terminam por desconhecer os homens como seres históricos, enquanto a problematizadora parte exatamente do caráter histórico e da historicidade dos homens. Por isto mesmo é que os reconhece como seres que estão sendo, como seres inacabados, inconclusos em e com uma realidade que, sendo histórica também, é igualmente inacabada. Na verdade, diferentemente dos outros animais, que são apenas inacabados, mas não são históricos, os homens se sabem inacabados. Tem a consciência de sua inconclusão. Aí se encontram as raízes da educação mesma, como manifestação exclusivamente humana. Isto é, na inconclusão dos homens e na consciência que dela têm. Daí que seja a educação um quefazer permanente. Permanentemente, na razão da inconclusão dos homens e no devenir da realidade. (FREIRE, p.126, 2016)

O educador participa de uma nova relação na concepção de educação problematizadora através do diálogo com seus educandos, ele educa e é educado, visto que ambos trilham uma nova comunicação em mediatização pelo mundo. Isto permite que ambos possam partilhar entre si, as vivências e conhecimentos que cada um possui sobre determinado assunto. Para Paulo Freire, isso é reconhecer que cada sujeito possui uma história e ela está sendo construída de forma inacabada, por isso são legítimos os diferentes saberes que cada um traz consigo. Para expressar essa diversidade de assimilação do mundo é necessário estar em diálogo com o outro, em razão disso, o educando também educa. Essa partilha resultado da mediatização pelo mundo oferece a consciência dos sujeitos de sua inconclusão, o que gera como manifestação própria dos homens e das mulheres, a educação por ela mesma.

1.2 A arte graffiti como prática de Liberdade e Dialogicidade

A teoria da dialogicidade como prática da Liberdade em Paulo Freire, trabalha a importância do diálogo no desenvolvimento de uma educação libertadora, que se opõe ao método bancário de transmissão de conhecimentos adotados por 49

educadores tradicionais. Em tal processo destaca-se o conceito de dialogicidade, abordado por Freire com muita ênfase para uma construção educativa que valoriza a ação e reflexão. A dialogicidade permite ao educador/a e aos seus educandos uma vivência de práxis, cujo diálogo afetivo está ligado a um anseio profundo por transformar os sujeitos e o mundo. Dessa forma, a palavra diálogo é essencial para uma prática libertadora na educação, vista como um direito a todos de praticá-la e um caminho único de romper a condição de opressão dos oprimidos. Freire (2016) reitera que se o educador/a não cultiva o diálogo com os educandos, prospera uma situação cômoda em que não há estímulo para despertar uma consciência crítica dos oprimidos e tampouco, uma ação que denuncia o sistema dos opressores. Não é possível modificar o mundo, sem exercer a práxis do diálogo. Esta que se dimensiona em ação, reflexão e ação transformadora, mas, sobretudo, com o compromisso amoroso, humilde e dialógico. Sem o diálogo, não se faz possível o escutar e nem compreender o outro. Sendo assim, quando o educador/a trabalha o diálogo em sua sala de aula, ele permite que seus educandos partilhem os conhecimentos, experiências e necessidades que eles possuem em suas relações com o mundo. O/a educador/a retira a sua visão unilateral e superior e se coloca disposto a partilhar saberes e identificar como os conhecimentos podem ser trabalhados com a sua turma de educandos.

Porque é encontro de homens que pronunciam o mundo, não deve ser doação do pronunciar de uns a outros. É um ato de criação. Daí que não possa ser manhoso instrumento de que lance mão um sujeito para a conquista do outro. A conquista implícita no diálogo é a do mundo pelos sujeitos dialógicos, não a de um pelo outro. Conquista do mundo para a libertação dos homens. (FREIRE, p.136, 2016)

Esse conceito de diálogo desenvolvido por Paulo Freire não é só essencial para uma prática libertadora na educação, mas também no trabalho pedagógico com o graffiti no espaço escolar. Para proporcionar esse encontro artístico entre estudantes, se faz necessário dialogar sobre a sua compreensão por essa via de expressão e o que esperam alcançar com ela. Visto que a arte de rua parte de um local público, isto é, de um cenário urbano, onde são possíveis todas as pessoas se manifestarem sobre a sua vivência de mundo, em especial, as sua relação com as respectivas realidades sociais. 50

Dessa forma, construir um diálogo sobre a arte graffiti com os educandos é possibilitar a eles uma vivência afetiva e efetiva, através do conhecer por vias da prática da liberdade um novo modo de ressignificação da vida. Em contrapartida, aquele/a educador/a que não está passível de dialogar, está disposto a exercer o papel de opressor, no qual apenas a sua pronúncia de mundo importa, sem se interessar para as diferentes visões que o outro pode proporcionar. Com esse desinteresse e ausência de diálogo, é impossível construir uma visão de mundo juntos e muito menos transformá-lo. Quando o diálogo existe, não há mais relação de opressão, mas uma relação entre pessoas que através da comunhão buscam a consciência do mundo e a ação de transformação do mesmo. A palavra diálogo só gera confiança se estiver alicerçada em ação, caso ao contrário, é uma palavra sem conteúdo, pois não estimula confiança entre seus pares. Sendo assim, a sua prática precisa estar alçada em buscar saber juntos, acreditar uns nos outros para uma verdadeira educação libertadora.

Sem ele não há comunicação e sem esta não há verdadeira educação. A que, operando a superação da contradição educador-educandos, se instaura como situação gnosiológica, em que os sujeitos incidem seu ato congnocesnte sobre o objeto cognoscível que os mediatiza. (FREIRE, p.141, 2016)

Como visto, o diálogo é um elemento crucial para uma prática de educação libertadora. Para que isso ocorra por vias pedagógicas, Freire desenvolveu uma metodologia que assimila o diálogo e o aprendizado mediado pelo estudante. Para tal, é imprescindível a presença de temas geradores provocados por uma necessidade de investigação cognoscível dos homens. O tema gerador é um elemento espontâneo, que surge de momentos como reflexão sobre as realidades sociais que assolam cada sujeito no mundo, por isso é acompanhado de investigação e busca de saber. Esse acontecimento em sala de aula ocorre quando o/a educador/a inicia o processo dialógico com seus educandos, pois abre o caminho para que possam ser indagados os elementos da realidade e discutir sobre os mesmos. A partir desse processo dialógico cria-se o tema gerador, com o conteúdo e os seus respectivos caminhos de investigação. Isto possibilita que os educandos se percebam entre si e conheçam as variadas observações que cada um carrega sobre o mundo vivido. Esse processo é essencial para uma pedagogia libertadora, tanto 51

quanto, trazer ao encontro dos educandos a arte graffiti para dentro do espaço escolar. É importante levar a arte de rua em sua historicidade e propósito social, mas, sobretudo, no oferecimento aos educandos da possibilidade de expressarem a sua consciência sobre a realidade em que estão inseridos, ou seja, dar-lhes condições de projetar nas paredes concretas do ambiente escolar, os seus respectivos temas geradores em processo de investigação. Esse recurso favorece um encontro pedagógico libertador, mas, sobretudo de reflexão e criação de novos modos de conhecer. Pois o tema gerador para Paulo Freire surge com propósito dos educandos investigarem as dúvidas e questões que atingem a realidade deles. É preciso que eles, em diálogo com o educador/a, sejam capazes de criar uma nova forma de assimilação ao cenário ou fato investigado.

Para o educador-educando, dialógico, problematizador, o conteúdo programático da educação não é uma doação ou uma imposição – um conjunto de informes a ser depositado nos educandos –, mas a devolução organizada, sistematizada e acrescentada ao povo daqueles elementos que este lhe entregou de forma desestruturada. (FREIRE, p.142, 2016)

Em Freire, a preocupação como é realizada a construção dos conteúdos deve-se ao cuidado em não cair num método conteudista, em que o educador traz para a sala de aula o tema pronto a ser discutido, bem como, a sua maneira inflexível de trabalhá-lo. Esse método entraria na concepção de educação bancária, e só reforçaria uma relação de opressor entre oprimidos, educação essa que não permite que os educandos envolvidos possam aprender conteúdos que não fazem parte do seu domínio de vivência e experiência, isto é, não fazem sentido no processo de aprendizado para os educandos. O/a educador/a não pode depositar o conteúdo pautado em sua visão unilateral e já estabelecido, silenciando os educandos “investigadores”, afinal, para Paulo Freire, não se deve lutar pelo outro e ditar-lhes maneiras de como conhecer as coisas, mas de lutar com ele e construir juntos novas formas de conhecimento. Dado a isto, o diálogo é fundamental para a criação de uma educação como prática de liberdade e emancipação. O/a educador/a deve observar e coletar as máximas informações sobre o grupo de educandos que ele vai trabalhar a fim de restituí-lo com condições aprimoradas para problematização, debate e criação. Dar-lhes a oportunidade de 52

fala para a construção do conteúdo programático, é promover um espaço dialógico na sala de aula, em que cada um apresenta a sua experiência como sujeito no mundo e suas percepções individuais. Isso é possibilitar que surjam indagações e procuras por respostas de forma espontânea, pois elas estão associadas à necessidade de compressão que os educandos trazem consigo. Quando os conteúdos estão ligados aos temas geradores propostos pelos educandos, e não impostos pelo educador, eles se apresentam com significado pela busca ao aprendizado, pois quem fomenta a problematização e investigação são os próprios educandos. Mas é preciso salientar, que em Paulo Freire, a construção do tema gerador deva estar ligada a práxis – a prática – dos educandos. É preciso problematizar, investigar, procurar respostas e agir. A ação não deve estar associada apenas à parte intelectual, mas também para a transformação.

Numa visão libertadora, não mais “bancária” da educação, o seu conteúdo programático já não involucra finalidades a serem impostas ao povo, mas, pelo contrário, porque parte e nasce dele, em diálogo com os educadores, reflete seus anseios e esperanças. Daí a investigação da temática como ponto de partida do processo educativo, como ponto de partida de sua dialogicidade. (FREIRE, p.170, 2016)

Quando os temas geradores partem do processo de investigação, os envolvidos, educadores e educandos, passam a servirem de propulsores de novos diálogos, pois utilizam do pensamento e da linguagem para a construção de uma comunicação investigativa. Isso ocorre pela troca de experiências de suas percepções resultantes da relação com o mundo, fazendo-lhes refletir sobre a vivência do outro e de suas respectivas realidades e problemas. Nesse processo dialógico, todos os envolvidos se comunicam de forma reflexiva, para resolverem as problematizações lançadas por meio do diálogo. Dessa forma, para a libertação do oprimido é importante à pronúncia da palavra, a reflexão e a ação perante a práxis. O/a educador/a que se baseia numa educação libertadora, permite o diálogo entre todos, pautado na reflexão do cotidiano de cada um, e desafia os envolvidos a conhecerem a realidade percebida. A partir da busca por temas geradores e da dialogicidade, é possível construir um material-didático, que parte de temas delimitados de um vasto conjunto mencionado pelos educandos, sem deixar perder o valor da diversidade do todo. Essa delimitação se constitui como unidade de aprendizagem, que segue de forma 53

sequencial e faz referência particular de cada área de conhecimento. A dialogicidade também deve ser realizada entre os educadores, para que os mesmos possam sugerir outros temas, os quais são denominados por Paulo Freire como “temas dobradiça”. Além disso, o material pode conter fotografias, slides, fragmentos de textos de leitura, desenhos, filmes, entre outros. E nos é possível acrescentar, que a arte graffiti também poderia participar dessa proposta didática, em assimilação aos temas geradores levantados pelos educandos e pelos temas dobradiços propostos pelos educados. O graffiti serviria como uma ferramenta pedagógica que contribui para o pensamento de uma educação libertadora e emancipadora. Em suma, o material didático se constrói em base do diálogo com todos, sendo um aparato educativo identificável pelos educandos, visto que a partir da relação com os educadores se constitui os temas educativos do material didático. Entre os temas apresentados, o material didático sugere que o conceito Antropológico de cultura deva ser inserido como um tema central, pois permite que novos temas sejam levantados a partir da consciência de realidade de cada um, sendo assim, o tema central propicia através do diálogo outros temas a serem debatidos. Ademais, Freire (2016) reforça que existem elementos cruciais para esse processo dialógico, como: a colaboração, a união, a organização e a síntese cultural. A colaboração está envolvida com o diálogo na ação de compreender o outro e respeitá-lo pela a sua vivência. A união refere-se à massa oprimida estar unida pela busca da transformação social. A organização é crucial para que o processo revolucionário da classe oprimida ocorra, onde a pronúncia do mundo é dita por eles e não ao contrário. E por fim, a síntese cultural que fundamenta a importância do ser humano em se reconhecer como ser existente no mundo, onde é passível de compreender a permanência e a mudança da estrutura social.

1.3 A ação antidialógica presente na repressão social com as artes de rua

Paulo Freire busca refletir sobre a importância da práxis sobre a vida enquanto ser humano como ser pensante, bem como, ressaltar a importância da “ação dialógica” para a luta de rompimento com as manipulações impostas pela classe opressora. Dessa forma, objetiva-se discutir neste tópico, o que trata a teoria 54

da ação antidiálogica refletida por Freire, a fim de contribuir para a compreensão da necessidade do campo educacional dialógico que converge com a proposta de ter o graffiti como uma experiência emancipadora dentro da escola. Para tanto é preciso compreender a existência da Teoria da Ação Antidialógica, com o propósito de identificar as suas características conceituais, finalidades e consequências da mesma nas relações sociais. Além de pontuar, que a mesma faz parte da educação bancária, devido estar expressa nos modos opressores atuantes na esfera política, pois a ação Antidialógica objetiva ao ser humano, a sua conquista através da dominação e meios para adequá-lo no mundo. Nesse sentido, ela corrobora para a coisificação do sujeito como um objeto a ser obtido, impondo sob ele uma mitificação da realidade adquirida em diferentes perspectivas. Como, por exemplo, a ideia de que não existem desigualdades sociais, onde todos podem ser ricos, bastando apenas à força de vontade. Da propriedade privada, onde apenas as pessoas privilegiadas podem ter acesso. E até mesmo o mito de que a dominação opressora se importa com os direitos humanos e de que existe a máxima expressão de liberdade para todos. As existências desses mitos são cultivadas na manutenção da lógica opressora de dominação, no intuito de enraizar no cotidiano das pessoas conceitos estereotipados que vão reforçar a sua continuidade. Para tal, a mídia faz um papel crucial como instrumento de conquista, em divulgar essas verdades míticas através de slogans, marketing e pelos meios de comunicação de massa. Ela introduz de forma sutil nos espaços de relações sociais, a dominação opressora, como valores orientativos culturais.

Não se é antidialógico ou dialógico no “ar”, mas no mundo. Não se é antidialógico primeiro e opressor depois, mas simultaneamente. O antidialógico se impõe ao opressor, na situação objetiva de opressão, para, pela conquista, oprimir mais, não só economicamente, mas culturalmente, roubando o oprimido conquistado sua palavra também, sua expressividade, sua cultura. (FREIRE, p.215, 2016)

Como abordado anteriormente, as atitudes antidialógicas anulam a manifestação cultural em sua expressividade dos oprimidos, deixando-lhes sem história e características próprias. Alicerçado na ideia de Paulo Freire, podemos destacar neste trabalho, um exemplo de como as mídias atuam aos intercessores dos opressores, estimulando a extinção da identidade cultural de um povo. No dia 22 do mês de janeiro do ano de 2017, o prefeito de São Paulo João Dória do Partido da 55

Social Democracia Brasileira, realizou uma medida autoritária na capital, apagando graffitis da Avenida 23 de Maio, considerada o maior mural a céu aberto de grafitagens da América Latina. Estima-se que os graffitis da famosa avenida foram produzidos por cerca de 200 artistas com técnicas e perspectivas diferentes sobre o mundo, resultando numa riqueza artística irreverente. Essa medida ocorreu porque, segundo o prefeito, as pichações devem ser combatidas. A maioria dos graffitis apagados continha pichações ou estava danificada, salvo apenas sete obras deixadas na avenida, pois estavam “íntegras”. A ação de Dória virou manchete nos principais veículos de comunicação do país, porém, a maioria das matérias reportadas apenas registrava o ocorrido com fotos, entrevistas do próprio prefeito justificando a ação autoritária ou indicando de forma enfática que existem projetos normativos que condenam as pichações e classificam qual o local de expressividade da arte graffiti. Por outro lado, poucas matérias abordaram o acontecido sob a perspectiva dos artistas de rua e da população local, aqueles que o fizeram traziam apontamentos de que tal avenida é considerada uma referência única de arte de rua em todo o mundo. Dessa forma, a medida adotada por João Dória causou impacto não só na capital de São Paulo, como no país todo. Houve manifestações sociais criticando a medida do prefeito nas redes sociais da internet e até mesmo, através da criação de novos graffitis e pichações no mural apagado. Tais impactos soaram de forma negativa para a imagem política de Dória, sendo alvo de crítica não apenas de pichadores e grafiteiros, mas da sociedade em geral. Em meio à repercussão, o prefeito anunciou no dia 26 de janeiro do ano de 2017 através das mídias, que criará um programa que irá valorizar e promover grafiteiros e muralistas, permitindo que determinados espaços possam receber sua arte. Para participar, os artistas serão escolhidos através de uma comissão organizada pela Secretaria Municipal de Cultura, que irá observar o currículo de cada candidato e selecioná-lo para grafitar no espaço autorizado pelo poder público. Tal matéria, assim como a anterior citada e a maioria das reportagens disponibilizadas na mídia sobre o tema, apenas valorizou o enunciado político do prefeito, colocando o seu projeto de lei como uma notícia positiva ou uma boa desculpa pela sua ação anterior, sem registrar como a comunidade do graffiti enxerga a situação. 56

Como vimos no início desse trabalho, a arte de rua é espontânea, reflexiva e, sobretudo, não pede permissão para existir. As paredes e os muros que cercam os grupos sociais sempre serão alvos de manifestações criativas e expressivas carregadas pelo graffiti. A essência do graffiti é rebelde. Existe para denúncia social e o despertar reflexivo. Contudo, vimos em Paulo Freire que uma das táticas antidiálogicas é a conquista da classe dominante para os dominados. Isto se trata de manipular os oprimidos para enxergar o mundo de uma forma direcionada e de aniquilar a sua expressividade própria de refletir o mundo a partir das suas experiências particulares. Abaixo, na figura 7 vemos os fatos mencionados a partir de três reportagens divulgadas pela internet, bem como, a reação das pessoas que a leram:

Figura 7 – Reportagem sobre o apagamento dos grafittis na Avenida 23 de maio.

Fonte: Jornal O Globo.12.

12 Acessado em 01/03/2017 às 18:04. 57

Figura 8 – Reportagem sobre o projeto de lei de João Dória sobre pichação e graffiti.

Fonte: Jornal A folha. 13

Figura 9 – Reportagem sobre anúncio do projeto de lei do Museu de Arte de rua.

Fonte: Notícias Uol.14

13 Acessado em 01/03/2017 às 18:04h.

14 < https://noticias.uol.com.br/ultimas-noticias/agencia-estado/2017/01/26/apos-apagar-grafite-e- pichacao-doria-anuncia-museu-de-arte-de-rua.htm> Acessado em 01/03/2017 às 18:04h. 58

Acima dos exemplos atuais sobre o uso das mídias em favor aos que detém poder público, a primeira característica da Teoria da Ação Antidialógica se inicia com a conquista das massas, através de táticas de dominação, como a criação de mitos que subordinam as suas crenças para determinadas situações na sociedade e da “sloganização” que contribui para o condicionamento da consciência dos homens ao mundo, interferindo nas suas atitudes e enfrentamento social para a transformação da realidade oprimida. Outra característica importante da Teoria da Ação Antidialógica consiste na divisão das massas populares para a manutenção da opressão. O ato de dividir implica na separação das lideranças populares com as comunidades, a fim de prejudicar a organicidade entre eles. Essa divisão ocorre através de um rompimento com os oprimidos por meio de “treinamento de líderes” que visa articular a comunidade por capacitação de lideranças, que envolvem uma visão localista dos problemas e não de sua promoção do todo. Isto dificulta a percepção crítica da realidade e inviabiliza que a comunidade seja representada por suas aspirações e necessidades. Dessa forma, os líderes treinados, são percebidos como desconhecidos entre os moradores e exercem a divisão da comunidade. Ademais, outra maneira de fortalecer a opressão das massas, é condicionar uma visão de todos, numa perspectiva focal, visando apenas o problema latente, desconsiderando a sua origem, causas e consequências. Problema que poderia ser compreendido por uma temática geradora, buscando entender a totalidade da situação, ao invés de estagnar a compreensão numa visão parcial e particularizada da temática. Mas Paulo Freire alerta, que com a ação cultural, os líderes populares e a comunidade são envolvidos juntos como parte de um mesmo processo inserido numa visão total da realidade, visto que a cultura é resultado de um processo de transformação, pensamento crítico e reflexão.

A necessidade de dividir para facilitar a manutenção do estado opressor se manifesta em todas as ações da classe dominadora. Sua interferência nos sindicatos, favorecendo certos “representantes” da classe dominada que, no fundo, são seus representantes, e não de seus companheiros; a “promoção” de indivíduos que, revelando certo poder de liderança, podiam significar ameaça e que, “promovidos”, se tornam “amaciados”; a distribuição de benesses para uns e de dureza para outros, tudo são formas de dividir para manter a “ordem” que lhes interessa. (FREIRE, p.223, 2016) 59

A organicidade e a comunhão entre as massas populares representa combate às táticas de opressão. Tornando a comunidade resistente e unida, logo, uma ameaça aos opressores, visto que a união significa uma prática necessária para a ação libertadora da condição de oprimido. Além da tática de dividir para conservar a opressão, a outra característica da Teoria da Ação Antidialógica é a manipulação, cujo objetivo é alienar as massas a se conformarem e aceitarem as imposições feitas pela elite. Para tal, são utilizadas duas táticas de opressão, o populismo e o assistencialismo. O populismo consiste no caráter romântico de determinada figura política em relação às massas, onde o líder populista configura um falso diálogo com a população alvo, impregnando-lhes um falso interesse em suas aspirações e atendendo os benefícios da classe opressora. Dessa forma, essa impostora relação dialógica com caráter nacional, manipula as massas a apoiarem ideias e noções originárias dos interesses burgueses. Na qual a manipulação realizada por essas elites envolve a massa popular num processo de engodos e promessas, e ao final, aplica um intenso golpe de opressão. Nesse sentido, para Paulo Freire, o líder populista só representa verdadeiramente uma liderança popular quando está aliado integralmente aos interesses do povo, isto é, no momento em que ele supera a ambiguidade de estar entre dois polos distintos – opressor e oprimido – para estar entregue ao trabalho de organização e revolução das massas. Apenas com o rompimento do intermédio entre as elites e o povo, o líder dialoga com as massas e atua como uma autêntica liderança. Igualmente, há o assistencialismo, que não se difere em finalidade do populismo, remete a uma aparente generosidade das elites para com as massas, ludibriando-lhes sobre os seus direitos como cidadãos. É uma forma de apaziguar qualquer transtorno ou repúdio social através de discursos e programas que não visam a atender efetivamente as necessidades da população. Sobretudo, de fortalecer a conquista das massas.

O antídoto a esta manipulação está na organização criticamente consciente, cujo ponto de partida, por isto mesmo, não está em depositar nelas o conteúdo revolucionário, mas na problematização de sua posição no processo. Na problematização da realidade nacional e da própria manipulação. (FREIRE, p.229, 2016)

Esse papel paternal que o líder populista assume por intermédio de ações assistencialistas, acentua a característica de manipular as massas, retira a 60

observação do povo diante dos problemas da realidade e as suas respectivas causas, tanto quanto a busca de elucidações concretas sobre eles. Há, contudo, uma ressalva positiva abordada por Freire à vontade incessante das massas de quererem ser assistidas, tanto aqueles que já são assistidos quando aqueles que ainda anseiam receber a atenção assistencialista, dessa forma, as massas ficam na expectativa de receberem mais. Essa inquietação causa incômodo às elites, pois o objetivo e a capacidade delas não possibilita o atendimento a todos. Por fim, a última característica da Teoria da Ação Antidialógica a ser tratada e aberta as aproximações da discussão sobre o graffiti servir como ferramenta pedagógica de caráter libertador e revolucionário, intitula-se como Invasão Cultural, cuja está objetivada a inibir a criatividade popular e desvalorizar as suas produções culturais. Isso ocorre através da imposição de valores e costumes do opressor para os oprimidos, a fim de aniquilar a identidade que cada povo possui. Para contribuir com a reflexão sobre cultura, buscamos em Marilena Chauí (2008), no seu trabalho “Democracia e Cultura” a relação que os diversos significados da palavra “cultura” com movimento intelectual e político. Através das análises e investigações ideológicas que a autora traça sobre a temática cultural, ela verifica que a dominância de uma cultura sobre a outra, se dá por uma exploração econômica, exclusão social e soberania político. Mas ao mesmo tempo, nesse local de cultura dominante, há a cultura popular, produzidos pela classe trabalhadora e excluídos da sociedade, que se organizam popularmente e contestam a cultura vigente. É bem sabido, que cada sociedade cria seus costumes, crendices, hábitos, comportamentos e saberes populares, e que esse apanhado de criações faz parte da sua identificação cultural no mundo. Verificamos o que Marilena Chauí diz sobre a cultura contrária à dominante:

Se, por um instante, deixarmos de lado a noção abrangente da cultura como ordem simbólica e a tomarmos sob o prisma da criação e expressão das obras de pensamento e das obras de arte, diremos que a cultura possui três traços principais que a tornam distante do entretenimento: em primeiro lugar, é trabalho, ou seja, movimento de criação do sentido, quando a obra de arte e de pensamento capturam a experiência do mundo dado para interpretá-la, criticá-la, transcendê-la e transformá-la – é a experimentação do novo; em segundo, é a ação para dar a pensar, dar a ver, dar a refletir, a imaginar e a sentir o que se esconde sob as experiências vividas ou cotidianas, transformando-as em obras que as modificam por que se tornam conhecidas (nas obras de pensamento), densas, novas e profundas (nas obras de arte); em terceiro, numa sociedade de classes, de exploração, dominação e exclusão social, a cultura é um direito do cidadão, direito de 61

acesso aos bens e obras culturais, direito de fazer cultura e de participar das decisões sobre a política cultural. (CHAUÍ, p. 61, 2008)

Porém, esses traços criativos de cultura se abalam quando se defronta com a indústria cultural, aquela que tende a ser repetitiva, reprodutiva, de massa e para o consumo. Podemos compreender essa abordagem de Chauí, como a invasão de outras perspectivas culturais que não faz parte naturalmente daquela sociedade, e sim, de uma estratégia ideológica de alienação do sistema capitalista. Paulo Freire domina essa ação, de invasão cultural. Os invasores possuem o caráter da elite dominante e os invadidos, como as massas populares. O ato de invadir o espaço do outro, sempre carrega um caráter de violência, no qual contribui para determinada cultura perder a sua originalidade e espaço de criatividade. Isso significa que a bruta evasão das noções culturais eminentes àquela sociedade, passa a hospedar outra visão de mundo. Essa hospedagem ocorre de forma imposta, onde os invasores são autores e atores da cultura, e os invadidos são meros objetos manipuláveis. Os invasores tem a liberdade de escolha e modelam às ações, os invadidos são assediados a seguir as opções definidas pelos invasores e são modelados de acordo com o seu interesse.

Como não a nada que não tenha seu contrário, na medida em que os invadidos vão reconhecendo-se “inferiores”, necessariamente irão reconhecendo a “superioridade” dos invasores. Os valores destes passam a ser a pauta dos invadidos. Quanto mais se acentua a invasão, alienando o ser da cultura e o ser dos invadidos, mas estes quererão parecer com aqueles: andar como aqueles, vestir à sua maneira, falar ao seu modo. (FREIRE, p.236, 2016)

A partir desse sentimento de desejo de pertencimento dos hábitos e costumes dos invasores, a invasão cultural serve de instrumento antidialógico para fortalecer a opressão e conservar a tática de conquista, em consequência de constituir uma sociedade ambígua, dual, reflexa e invadida na utilização de elementos indispensáveis para alienar as massas populares e subjugá-las a uma visão de mundo, no interesse de dominar fatores econômicos, sociais e culturais. Tendo informação sobre as implicações da invasão cultural, é possível aludir essa reflexão para dentro da sala de aula, em situações em que o/a educador/a possa assumir um papel antidialógico, ao impor a sua visão de mundo e valores individuais ao restante dos educandos. Mesmo que esse papel seja assumido de forma ingênua, sem a intenção de empurrar a sua perspectiva sobre os outros. Por 62

exemplo, quando o/a educador/a diz para o educando que determinado gênero musical é ruim e que não deva ser escutado. Nesse momento, o educador/a poderia abrir um diálogo com o educando e compreender o gosto musical, iniciar uma problematização do que pode ser considerado bom ou ruim no universo musical ao invés de delimitar o bom x ruim. Enfim, a invasão cultural pode ser permeada de diversas formas em nosso cotidiano, visto que ela se torna tão prosélita no modo de ser dos indivíduos, que acabam reproduzindo as imposições que sofreram. O modo de se libertar dessa subjugação, se faz possível pelas vias dialógicas, quando o invadido se conscientiza da sua necessidade de libertação. Quando o oprimido passa a sentir a necessidade existencial de renunciar a ação opressora e vivenciar a ação dialógica. Só assim, é possível transmutar a perspectiva de “estrangeiros” para companheiros. Para haver essa mudança, é necessário que ocorra a “revolução cultural” a partir da ação cultural dialógica, onde o povo tenha o seu espaço e tempo para expressar de forma consciente a sua liberdade e criatividade. E, sobretudo em uma realidade em que ultrapassem o papel de secundários e assumam o de protagonistas de sua própria história, na busca da conscientização por uma práxis verdadeira. Para contrapor a ação Antidialógica, Paulo Freire apresenta três características essenciais para compor uma ação cultural dialógica. A primeira se denomina como Co-laboração, cuja se apresenta com o diálogo, sem interesse de conquistar ou dominar o outro, mas de fundir a liderança e as massas para um ação revolucionária. Essa fusão se dá através da comunhão e comunicação entre os homens, de forma afetiva e libertadora. A união entre os sujeitos, em co-laboração, promovem a restauração e transformação do mundo opressor x oprimidos, através do diálogo e da problematização da realidade vivida. Para tanto, Freire aponta que a liderança deve confiar nas massas, a sua capacidade de compreender a agir, mas estar atento à possibilidade do “opressor” estar hospedado nelas para não prejudicar a transformação do mundo. Além da co-laboração, existe outra característica importante que fomenta a ação cultural dialógica: Unir para libertação. A união é crucial para organizar as estruturas das relações de liderança-massa, pois consiste estar em comunhão com todos, de forma una e não dividida. Como pode ser visto no trecho abaixo:

Se para manter divididos os oprimidos se faz indispensável uma ideologia de opressão, para a sua união é inprescendível uma forma de ação cultural 63

através da qual conheçam o porquê e o como de sua “aderência” à realidade que lhes dá um conhecimento falso de si mesmos e dela. É necessário desiologizar. (FREIRE, p.269, 2016)

A união defendida por Paulo Freire precisa haver liberdade e sem dirigismo por parte da liderança. Dessa forma, outra característica importante para teoria dialógica, é a Organização. Na qual para existir, é necessário disciplina, diálogo, objetivos, tarefas, mas jamais a ação de coisificar as massas e tampouco restringir a sua participação no processo de transformação. A atuação da liderança revolucionária precisa ser contrária ao manipulador, pois ela expressa diálogo, amor e confiança com as massas populares. A organização implica o aprendizado de todos para uma pronúncia de mundo, que contém aprendizado verdadeiro, respeito mútuo e comunicação. Por fim, a ação política que contém co-laboração e organização, desenvolve uma Síntese cultural, última característica relevante para o contexto dialógico. Como visto anteriormente, a invasão cultural corresponde a uma atitude antidiálogica e acrítica aos saberes das massas. Por outro lado, a síntese demanda abertura de diálogo, não possui estratégias determinadas na relação entre lideranças e massas. Em analogia, com o educador-educando, na educação problematizadora a síntese cultural trabalha para o desvelamento e as recriações do mundo. Possibilita as massas reconhecerem por um olhar crítico de seu estado de opressão e oferecerem condições para o seu engajamento de superação. Nessa perspectiva libertadora e dialógica, liderança e povo, a ação cultural se serve para a emancipação das massas populares. Não atua com “transmissão” e “ensinamento”, mas de conhecimento e aprendizado em conjunto. Dessa forma, a síntese cultural implica a superação das estruturas estabelecidas anteriormente pelo modelo de opressão, isto é, da própria cultura alienada e alienante. Esse rompimento se dá por uma ação cultural que utiliza da história e da investigação de temática significativa do povo, gerando conteúdos programáticos, que envolvem a problematização, reflexão e criatividade para desenvolver a síntese cultural. Por fim, a invasão cultural serve a teoria Antidialógica, com táticas de manipulação e conquista. Já a síntese cultural serve a teoria dialógica, possibilitando a libertação através da organização. 64

Em suma, o referido capítulo objetivou promover um estudo sobre obra “Pedagogia do Oprimido” de Paulo Freire em diálogo com a arte graffiti, realizando uma reflexão sobre as possibilidades de romper, bem como, a sua constituição de relações opressoras contidas na estrutura social, pontuando as suas características e conceitos. Para tanto, foi necessário esmiuçar as principais ideias abordadas por Paulo Freire, visto que a intenção central foi desenvolver uma interlocução com o caráter educativo trazido pelo graffiti, tanto no cenário educador-educando, quanto na sociedade. Desse modo, se fez necessário compreender a perspectiva de Educação que Paulo Freire trabalha na obra “Pedagogia do Oprimido”, assim como de enxergar as possibilidades de considerar uma arte de rua com caráter emancipatório, libertador e revolucionário. Logo, a fim de retomar a afirmação do título do presente capítulo e deixar de forma precisa às considerações do mesmo, será resumida a justificativa da pedagogia proposta por Freire, como subsídio teórico da percepção da arte graffiti como uma experiência pedagógica engajada com as adjetivações de ser emancipadora e revolucionária. Esse estudo possibilitou refletir que a atuação da educação vai muito mais além do espaço escolar, visto que ela também existe nas relações cotidianas. Em consideração a essa livre movimentação, vale ressaltar que a educação para Paulo Freire, tem um compromisso com a revolução consciente, naquilo que o autor diz sobre liberdade, autonomia e emancipação. Isso nos permite enxergar a arte graffiti não apenas como uma ferramenta pedagógica que possa ser utilizada para auxiliar na investigação de temas geradores, ou na produção de intervenções didáticas e interdisciplinares, mas também de reconhecer uma arte que gera conhecimentos. Uma arte com caráter educativo, pois revela expressões do ser, a historicidade dos acontecimentos da cidade, reflexões sociais e inclusive, sentimentos de curiosidade, rejeição ou admiração. O graffiti, bem como a educação em Paulo Freire, pode ocorrer em todos os espaços, porque a sua finalidade é ser acessível a todos e está em consonância com a intencionalidade de transformação. O graffiti transforma a cidade pálida e cinzenta para colorida e cheia de vida. Ele apresenta ao mundo através do seu caráter subversivo, as diversas realidades de diferentes sujeitos sociais. A educação em Paulo Freire visa à transformação social, através do aprendizado em conjunto, da criticidade e da liberdade. Ela valoriza a cultura que cada educando traz consigo 65

para dentro do espaço escolar e permite que o conhecimento seja construído a partir da dialogicidade entre todos. Além disso, é preciso ressaltar que a relevância proposta de educação em diferentes campos sociais abordada por Paulo Freire, se configura na discussão da filosofia latino-americana em relação à educação no Brasil, em função disso, a necessidade por emancipação por vias educativas é latente nos planos de discussão sobre a libertação das garras opressoras. Tão logo, sobre a sua argumentação de uma sociedade estar repleta de ideologias de caráter dominante, que diverge a classe opressora entre a classe oprimida. Em combate a subjugação de valores e costumes ideológicos da cultura dominante, a educação precisa ocorrer tanto no espaço escolar, quanto nas relações de educação informal e não formal. Dessa forma, uma educação popular apoiada no projeto da pedagogia do oprimido, simboliza um ato de resistência, especialmente àqueles educadores que trabalham esse método crítico de Paulo Freire, pois compreender a totalidade – contexto histórico, político, social e cultural – da sociedade brasileira, permite aos educandos fazer a sua leitura de mundo e serem sujeitos de sua própria história. Como vimos anteriormente no início dessa pesquisa, o graffiti também surgiu com propósitos de resistência e se desenvolveu como um instrumento artístico das periferias para se manifestarem contra imposições dominantes. Em leitura a Paulo Freire, essa arte foi e é ainda um movimento cultural, que denuncia a opressão sofrida e que expressa afetividades. Nessa perspectiva, as grafitagens representam um meio de dar voz àquele que é oprimido, emancipá-lo através da livre expressão. Por isso, conclui-se que o graffiti é uma experiência emancipadora, porque possibilita aos educandos o exercício de sua autonomia e liberdade. E revolucionário, porque transforma os cenários urbanos, interfere nos trajetos cotidianos com provocações críticas e reflexivas e, sobretudo, modifica a perspectiva de que os oprimidos estão sempre silenciosos e ocultos. O graffiti, bem como a educação popular de Paulo Freire, provoca no povo a ação de reflexão sobre a opressão e as suas causas, gerando uma ação transformadora através da práxis da liberdade. No próximo capítulo sobre as entrevistas realizadas com os artistas de rua e educandos que tiveram a experiência com o graffiti dentro da escola, pode-se compreender de forma qualitativa a relação que essa arte guarda com a teoria dialógica de Freire, sobretudo na dimensão da humanização e libertação. 66

A figura 10 abaixo se refere ao registro fotográfico da Escola Paulo Freire, localizada em Santa Maria no Rio Grande do Sul, na qual contou com a participação do projeto Subsolo Art para realizar um mutirão de graffiti na instituição no ano de 2015. Esse projeto conta com vários artistas de rua e visa compartilhar com toda população da cidade as manifestações culturais oriunda do graffiti, em especial aos estudantes da instituição referida.

Figura 10 - Aniversário de 06 anos do SubsoloArt - Oficinas de Graffiti e Stêncil da Escola Paulo Freire.

Fonte: Site Subsoloart.15.

Na figura 11 pode-se perceber outro registro de manifestação artística inserida no meio escolar, mas realizada apenas por grafiteiros:

Figura 11 – Grafite homenageando Paulo Freire, na Diretoria Regional de Educação Pirituba-Jaraguá da rede municipal de ensino da cidade de São Paulo.

15 Acessado em 07/03/2017 às 11h18h.

67

Fonte: André Turra.16.

16 Acessado em 07/03/2017 às 11h28h. 68

Capítulo III

TRILHANDO UMA INVESTIGAÇÃO: EXPERIÊNCIA DE ARTISTAS DE RUA DE MATO GROSSO E EDUCANDOS QUE VIVENCIARAM A ARTE GRAFFITI NA ESCOLA

Neste capítulo foram apresentados resultados da pesquisa de campo, com o enfoque na compreensão das entrevistas realizadas com os artistas de rua de Mato Grosso, buscando colher informações sobre a relação da sua arte com a sociedade. E, também, almejou-se analisar as práticas educativas da arte graffiti a partir de entrevistas realizadas com estudantes que vivenciaram tal arte como atividade pedagógica no meio escolar. Dessa forma, a coleta de dados trabalhada nesse capítulo possui o propósito de valorizar a experiência local com a arte de rua e ainda, fornecer materiais significativos para compreender o graffiti como uma arte emancipatória e de potencial pedagógico. Portanto, espera-se contribuir para novos para conhecimentos e ampliações de possíveis caminhos de estudo para a arte de rua.

1. Contexto da pesquisa: cenário e participantes

Foram selecionados quatro artistas de rua de grande referência na produção de graffitis, stêncil e lambe-lambe. E quatro estudantes que tiveram a experiência te ter contato com a arte de rua dentro do espaço escolar. Ambos os grupos de entrevistados fazem parte da região de Cuiabá. A escolha pelos artistas foi realizada com base em três critérios: o engajamento social com a arte de rua; a contribuição com a produção da arte de rua para a baixada cuiabana e o fato dos artistas possuírem representações imagéticas e vivências distintas um dos outros com o graffiti. Em relação aos estudantes, a escolha foi realizada com base em dois critérios: relatar a vivência pessoal com a arte graffiti dentro do espaço escolar e assimilar a compreensão que cada um carrega sobre a arte de rua na sociedade. A partir das escolhas dos artistas de rua, foram entrevistados dois homens e duas mulheres. Estas foram escolhidas a fim de valorizar o protagonismo e a representatividade das mulheres no cenário da arte de rua na cidade de Cuiabá. 69

Entretanto, vale ressaltar que todos os artistas participantes dessa pesquisa possuem identidades artísticas diferentes, isto é, conteúdo e modo de produção distinta no trabalho da arte de rua. No quadro abaixo consta as técnicas artísticas diferentes que cada artista de rua trabalha, bem como, as tags que utilizam para se identificar no espaço urbano:

Quadro 1 – Modos de produção de arte de rua com cada participante entrevistado, bem como, os seus perfis referenciados pelas suas respectivas tags.17

Fonte – Da autora.

A partir da análise do quadro podemos evidenciar que cada artista trabalha com modos de produções diferentes para a arte de rua, mas ressaltamos que o quadro não evidencia qual modo o artista mais utiliza em suas criações. Apenas apresenta o envolvimento com os diferentes tipos de produção, que ele já se envolveu e/ou se envolve. Além do mais, é possível verificar a experiência que cada um traz com a arte de rua em geral. A artista Nana, por exemplo, é a única entre os três, que trabalhou com todas as categorias artísticas já referidas anteriormente na presente pesquisa. Por outro lado, o John, em seu relato de experiência, dentre as quatro opções, o graffiti foi a única técnica que ele relatou ter contato. Há outros relatos de práticas como arte de rua citadas pelos entrevistados que não estão no quadro comparativo, como o muralismo e a pichação. Em relação à escolha dos estudantes, foram selecionadas quatro adolescentes na faixa etária entre 13 a 14 anos, denominadas por elas mesmas nessa pesquisa como “Jujuba”, “Naju”, “Najara” e “Nah”. No que diz respeito à instituição escolar, chamaremos de “Colégio da Curiosidade”. Nomeado dessa forma, porque a instituição solicitou sigilo para a presente pesquisa. Além dessas informações, a presente pesquisadora ocupa o papel na relação com os estudantes,

17 As consistências dessas técnicas estão explicitadas no glossário do presente trabalho. 70

como professora de filosofia que trabalhou de forma interdisciplinar com a professora de artes, a ideia de promover um estudo sobre a arte graffiti, ficando a pesquisadora, responsável por trabalhar com os estudantes a parte prática.

1.1 Procedimentos de coleta e análise compreensiva das informações

As entrevistas ocorreram durante o período de setembro de 2016 a abril de 2017 e se deu a partir da realização de observação participante e entrevista com questões abertas. O período estendido da coleta justifica-se à disponibilidade e dificuldade da pesquisadora em ir ao encontro dos artistas, assim como, a disponibilidade dos mesmos em realizar a entrevista. Além disso, para entrevistar as educandas, foi necessário aguardar o dia em que a atividade pedagógica com a arte graffiti seria realizada. Como foi dito no tópico metodológico do primeiro capítulo, a presente pesquisadora é professora das estudantes e participou da atividade realizada. Portanto, apenas depois da data da atividade, pode-se realizar a coletar dos relatos de experiência. As entrevistas ocorreram de diferentes maneiras, com o artista John ocorreu através de vídeo conferência pelo facebook, pois o mesmo atualmente está morando fora do país. Sendo assim, a entrevista foi gravada pela pesquisadora e teve a duração aproximada de 45 minutos. De forma semelhante ocorreu com a artista Nana, onde a entrevista foi gravada por meio virtual através do aplicativo do whatsapp, cuja teve duração aproximadamente de 30 minutos. Ademais, as entrevistas com Amarelo e Lua, ocorreram através do facebook por mensagens privadas, onde os mesmos responderam o roteiro de questões trabalhadas pelos outros artistas. O primeiro porque não reside mais na cidade de Cuiabá e a artista Lua pelas dificuldades de disponibilidade e locomoção. Além disso, salientamos que a presente pesquisadora é amiga e parceira dos percursos com arte de rua, isto é, já trabalhamos juntas fazendo graffitis e murais. Em relação ao John e Amarelo, a pesquisadora não teve ainda a oportunidade de fazer arte com eles, mas nas práticas da arte de rua, quase todos se conhecem e sabem que podem contar com a parceria um do outro. Sobretudo, quando o assunto é trazer o graffiti numa perspectiva cultural. 71

Em relação aos educandos, todas as entrevistas foram previamente agendadas pela coordenação da instituição escolar e gravadas, a fim de abranger todas as informações relevantes. As perguntas realizadas foram elaboradas no intuito de compreender a relação entre a arte de rua para cada grafiteiro, a fim de observar como o graffiti se encontra a partir dos contextos históricos e sociais levantados no início da pesquisa, bem como, a relação dos educandos com o graffiti se constituiu sob condições pedagógicas no espaço escolar. Dessa forma, as questões foram produzidas a fim de obter espontaneamente a compreensão de cada entrevistado sobre as suas respectivas experiências com a arte de rua pelo questionário de perguntas abertas. Além disso, as entrevistas acompanham fotografias das artes produzidas pelos artistas e pelos educandos, com a finalidade de registrar também a representação imagética que cada um construiu. O roteiro de entrevista se resumiu em duas etapas, a primeira destina-se apenas aos artistas locais e a segunda para os educandos. A divisão foi realizada de acordo com a finalidade dos dados que visava obter. Ambas as etapas foram realizadas com o consentimento de todos os envolvidos, assim como, a divulgação dos registros fotográficos. As apresentações dos artistas se deram pelas suas próprias tags, como já ilustrado anteriormente e quanto aos educandos, eles mesmos escolheram as suas identificações. Essas representações pessoais existem para não expor os entrevistados e deixá-los confortáveis em responder as questões de forma espontânea. Na primeira etapa do roteiro de entrevistas foram levantados dados que caracterizam os tipos de artes utilizadas por cada artista de rua, a sua compreensão sobre o graffiti nas relações sociais, bem como, a sua relevância na baixada cuiabana. Essa entrevista fora construída com a intenção de valorizar a representatividade local da arte de rua em Cuiabá, possibilitando que o artista compartilhe a sua vivência e conhecimento sobre o graffiti (como no roteiro da entrevista no anexo 01). A segunda etapa diz respeito à entrevista com os educandos, que teve como finalidades principais identificar a experiência de aprendizagem por intermédio da arte graffiti, a compreensão de significados da arte de rua tanto no espaço escolar quanto na sociedade e verificar como foi desenvolvida a experiência artística dentro da própria escola. Além dessa busca por dados a serem compreendidos, a segunda 72

etapa também objetivou valorizar a representatividade de cada educando na vivência com o graffiti, bem como de buscar compreender as suas assimilações e anseios em relação à arte de rua, e, sobretudo, de averiguar a possibilidade de emancipação e empoderamento dos educandos através da expressão artística do dessa arte(Roteiro da entrevista no anexo 2). A investigação compreensiva das informações foi realizada de acordo com os resultados gerados pelo instrumento de pesquisa. Desse modo, as informações obtidas pelas entrevistas gravadas foram transcritas na íntegra e aquelas que ocorreram por meio virtual – comunicação digitalizada – foram demonstradas por completo. Logo após, portou-se uma leitura detalhada e dedicada de todo o conteúdo do material, a fim de valorizar as informações que respondiam às questões levantadas inicialmente nessa pesquisa. Outro aspecto importante sobre a compreensão dos dados obtidos pelas entrevistas foi à busca da relação com a arte graffiti na sociedade pelos grafiteiros e de seu caráter educativo dentro do espaço escolar com estudantes. Para tal, as compreensões foram feitas relacionando a partir da vivência dos artistas e educandos e as literaturas já existentes acerca do mesmo tema pesquisado. A seguir foram descritos de forma esmiuçada os procedimentos de análise compreensiva dos dados obtidos pelas etapas das entrevistas. Na primeira, onde diz respeito aos artistas de rua, como já mencionado anteriormente, foi utilizado o uso da mídia social (facebook) e o aplicativo virtual (whatsapp) como intermédio para a realização das entrevistas. Entre elas, destacamos o uso do meio da web com o grafiteiro John através da ligação de vídeo que permitiu que a conversa tivesse sido gravada e transcrita posteriormente. Da mesma forma ocorreu com a artista Nana. Em relação aos outros, foi utilizada a conversação da web digital publicado em ambiente digital no espaço denominado pelo facebook de “inbox”. Apesar das diferentes condições de coleta de dados não permitir a comunicação face a face, segundo Recuero (2009, p.119-120) a conversa por intermédio do computador, facilita o anonimato dos entrevistados e abre outras oportunidades, devido o distanciamento físico. Diferente da primeira etapa, todas as entrevistas foram realizadas e gravadas presencialmente. Em consideração as duas etapas, os procedimentos de análise não teve diferenciação, por se tratar de questões abertas em todos os casos, além de que todas remetiam as experiências individuais sobre a arte de rua, especificamente com o graffiti. Nesse sentido, foi 73

realizado um agrupamento de ideias similares que contribuem para a compreensão da arte de rua e atende a necessidade do objetivo geral da presente pesquisa. Essa estrutura foi construída de trechos retirados das transcrições das entrevistas realizadas com a compreensão dos dados por inferências da pesquisadora, baseadas nos campos teóricos da arte de rua e educação popular.

1.2 Compreensão do resultado das entrevistas

No presente tópico são manifestados e discutidos os resultados da entrevista no sentido de responder os problemas formulados no início da pesquisa, entre eles: como compreender a partir de uma reflexão filosófica os meios de comunicação e discursiva que a arte de rua estabelece com a sociedade; Como o artista de rua relaciona a sua arte com a sociedade; Quais os potenciais educativos que o graffiti traz para a sociedade; E por último, se a arte de rua pode proporcionar práticas educativas dialógicas e emancipadoras dentro do meio escolar. Para tanto, esta etapa de apresentação foi dividida em dois momentos: no primeiro, são apresentados os resultados relativos às perguntas abertas do questionário para os artistas de rua, onde o caráter das questões está voltado para a relação que eles estabelecem entre a arte com a sociedade. E, por último, são apresentados dados resultantes do questionário aberto respondido por estudantes que participaram da experiência com a arte graffiti, para sabermos se essa atividade resultou práticas educativas para eles. Dessa forma, a divisão ocorreu devido à natureza das questões norteadoras da pesquisa, como vimos, a segunda e a terceira pergunta problematizadora está estritamente ligada à vivência dos artistas de ruas. Enxergamos nessa pesquisa- ação, que apenas aqueles que protagonizam o seu papel na cultura de rua, possuem condições de nos oferecer relatos convergentes à questão. Em contrapartida, apenas os estudantes possuem circunstância de nos responder a relação que eles tiveram com a arte graffiti dentro da escola. São estes que vão nos dizer se a atividade apresentou uma experiência educativa e significativa na vivência escolar deles. Mas é claro, que enquanto pesquisa-ação, a compreensão dos relatos de experiência será analisada a partir de nossos referenciais teóricos e vivência da pesquisadora, uma vez que a mesma está inserida como sujeito participante, tanto na arte de rua quanto educadora. 74

Para cada pergunta, iremos abreviar por “P”, sendo ela acompanhada com numeração, onde nos ajuda a localizar a ordem das questões. As respostas serão denominadas de “R” seguido do nome do entrevistado. Além disso, os grifos serão marcados em negrito para maior clareza e compreensão da entrevista de questionário aberto realizada.

GRUPO UM: ARTISTAS DE RUA

A primeira questão foi realizada com o intuito de conhecer os meios de produção artística dos nossos entrevistados. Entre eles, podemos elencar: o muralismo, o graffiti, a pichação, o lambe-lambe, o stêncil e o sticker. Tais narrativas contribuem para o desenvolvimento dessa pesquisa, no quesito de conhecermos que a arte de rua possui diferentes modos artísticos. Em Certeau (1994) compreendemos esses tipos de arte de rua como parte de uma produção cultural realizada por sujeitos ordinários que criam a sua própria forma de se relacionar com o seu meio. Observamos as respostas abaixo:

1P - Qual o tipo de arte de rua que você trabalha?

JHON - R: muralismo, graffiti e pichação.

LUA - R: Chamo de Street Art. Trabalho com Lambe Lambe também.

AMARELO - R: trabalho com graffiti, mas também já fiz stencil e lamb-lamb.

NANA – R: Eu trabalho com o lambe-lambe e também pixo. Eu também fiz sticker art, só que apenas durante alguns meses, porque é meio caro assim pra fazer. A quantidade de sticker e a de lambe-lambe que dava para fazer era bem diferente. Então, acabei deixando de fazer o sticker art. Já flertei com o graffiti só que parei, porque infelizmente eu acho que a cena não é muito amigável para as mulheres. E também eu não me sinto segurança em grafitar tarde da noite ou grafitar sozinha. Quando eu e minha parceira de pichação pichamos, a gente vai de carro. Enquanto uma picha, a outra fica observando o movimento da rua. Sempre tentamos fazer o mais seguro possível. Todas as experiências acima em seu modo único de existir passam pela experimentação diversa de modos de produção artística no contexto da arte de rua. Mesmo o graffiti sendo popularmente o mais conhecido, vimos que há outros modos que fazem parte da cultura de rua. Verificar que o artista local teve um contato com uma forma de expressão considerada crime é apreender que a arte de rua faz parte de uma cinesia cultural que possui diversas linguagens e modos de comunicação. 75

Entretanto, vale observar a dificuldade que a Nana possui na inserção da arte graffiti, bem como, a posição de sua parceira como observadora. Esse quadro nos remete aos impactos sociais de uma cultura de violência contra a mulher, na qual, a mesma está sujeita a sofrer assédio e agressões. De acordo os dados compilados no Dossiê Violência contra as Mulheres18 ocorrem 05 espancamentos a cada 02 minutos, 01 estudo a cada 11 minutos, 179 de relatos de agressão por dia, entre outros casos. Isso significa que todas as mulheres brasileiras estão vulneráveis a essa pavorosa cultura machista. Portanto, entendemos que quando a Nana coloca essa situação sobre o cenário do graffiti não ser amigável a ela, é no sentido de acessibilidade e condições seguras para uma mulher realizar uma atividade artística e marginalizada nas ruas de uma grande capital. Isso se comprova ao fato de ela se sentir protegida quando há presença de outra mulher na atividade, na qual esta cumpre o apoio mútuo de observar a movimentação da rua para sua parceira realizar a sua arte. Em outras palavras, a parceira que observa verifica se ocorrerá a aproximação suspeita de algum ser humano para cometer esses crimes de violência contra a mulher e ao mesmo tempo, de algum policial com a intenção de repreender a atividade.

Vejamos abaixo as respectivas experiências com arte de rua:

2P - Como você começou a trabalhar com a arte de rua? JHON - R: a primeira vez que eu pintei com spray foi no México com um artista mexicano, foi um mural. Eu comecei a escolher viver disso, eu saia de noite de bicicleta com o spray na bolsa. Teve uma vez que fui pra rua sozinho, foi com olho e coragem. Isso ocorreu em Cuiabá. Foi numa construção. Levei o rolo, o balde. Fui levado pelo impulso de que queria fazer aquilo. Fui preparado com as minhas armas, de que se alguém aparecesse, daria uma desculpa do tipo „ei, caralho, desculpe... foi mal‟. Eu acho engraçado essas coisas. Nas primeiras vezes, eu tinha muito medo, olhava para os lados. Passava uma, duas vezes nos lugares que eu ia fazer. Checava tudo certinho e fazia rápido. Depois com o tempo, eu acho que fiquei sem senso. Eu fazia onde achava bom e não estava mais me importando com quem estava à volta.

Na resposta de John percebemos que o artista teve em suas primeiras experiências com a arte de rua, receios e medos. Relacionamos esse sentimento com o fator da proibição e criminalização que tal arte sofre no campo normativo e

18 Acesse essas informações nesse link: http://www.agenciapatriciagalvao.org.br/dossie/violencias/cultura-e-raizes-da-violencia/ 76

social, questões essas que foram mencionadas no início dessa pesquisa. Para compreendermos numa discussão ampliada sobre o sentimento de medo e vigilância desse artista, recorremos aos históricos confrontos entre a polícia e artistas de rua19, como vimos ao longo do trabalho, o graffiti não pede autorização ou curadoria, ele ocorre como arte transgressora e marginal. Para tanto, a polícia, vigilante do estado, está atenta para reprimir qualquer situação que afete a relação dominante da política. Além do mais, os grafiteiros ainda sofrem preconceito da própria sociedade. E é coerente o artista ter o sentimento de revisar o local antes e verificar se não há nenhuma ameaça a sua integridade física e em sua atividade artística. Como vimos em Freire (2016), os sujeitos acabam reproduzindo o discurso do dominante pelas condições opressoras em quais eles estão inseridos, isso implica dizer, que além da repreensão policial, outros cidadãos podem servir de vigília do Estado. Isso nos faz relembrar Foucault (2012) quando ele diz sobre os meios de exclusão que determinados discursos sofrem na sociedade. Nem tudo o que é pensado pode ser dito, pois ameaça as estruturas dos discursos dominantes que regem no campo normativo. E por isso deve haver meios para combater qualquer tipo de ação discursiva. Observemos as outras respostas:

LUA – R: eu pinto camisetas há oito anos e um ano atrás veio à vontade de expor nas ruas as estampas das camisetas, ou seja, levar a arte para fora. Comprei tintas e comecei pintar primeiro nos eventos e só depois fui para as ruas.

AMARELO – R: comecei através de amigos que faziam pichação na adolescência na cidade de Campo Grande em Mato Grosso do Sul.

NANA – R: eu comecei a trabalhar com lambe-lambe no final de 2015 e Sticker Art até o final de 2016. Eu fiz algumas modificações na forma como eu apresentava os meus lambes lambes, aproximando mais da exposição de galeria, mais para o povo, o que eu acho mais interessante.

Nas respostas acima se pode observar à apropriação da arte para uma manifestação no contexto de rua, mesmo ela sendo criminalizada, como é o caso de Amarelo. Em Certeau (1994) tais apropriações podem ser lidas como as práticas ordinárias do cotidiano. Onde os sujeitos comuns produzem a sua própria cultura

19 Confira mais sobre os confrontos nesse link: http://vaidape.com.br/2017/02/entrevista-com-pixador- sabot/ 77

numa necessidade em serem inseridos no seu espaço e história. Aprofundemos esse assunto na pergunta a seguir:

3P – Qual a relação da sua arte com a sociedade e o sentimento de liberdade?

JHON - R: Com certeza você tem coisas que não gosta na vida e quer expressar aquilo. O quão seria legal se você pudesse se expressar naquele lugar. Você precisa ter coragem para isso. Tomar a decisão de fazer isso e ir. É uma experiência muito grande pra vida. Você aprende muita coisa. Você quebra preconceitos com você mesmo. Você vê o mundo de uma forma diferente. Então, eu acho possível o graffiti ser uma forma de expressão. A rua, eu acho que é essencial para qualquer pessoa.

AMARELO – R: acho que de certa forma o meu trabalho acaba sendo uma forma de entretenimento e manifestação artística, que proporciona reflexões sobre a cidade e o próprio ser. Da realidade à fantasia.

LUA – R: o graffiti é uma forma de uma pessoa que mora na periferia se expressar na cidade. Eu mesma encontrei na arte uma forma de me comunicar com a sociedade. Ainda mais um meio que vivemos onde tudo é tão corrido. A arte é melhor forma de chamar atenção pra algum determinado assunto.

NANA – R: em 2016 eu fiz algumas modificações na forma como eu apresentava meu lambe, isso se deu após o falecimento da minha mãe. Eu me senti muito estagnada criativamente falando, porque minha mãe era minha maior inspiração. E ela morreu do nada. Então eu comecei a pensar novas formas de apresentar o meu lambe-lambe, em expressar a gratidão a minha mãe, mas também a sociedade. É da sociedade e da comunidade que eu vivo, tiro a inspiração e o desenho. Principalmente nas mulheres. 95% dos meus desenhos são mulheres. Mulheres cuiabanas, mulheres da minha família e mulheres do meu convívio. Então eu decidi expressar uma forma de gratidão. Vivemos num país, numa sociedade, que a apesar da maior parte dos museus serem gratuitos e tudo mais, ainda é muito estigmado que museu é para gente rica. A arte é pra gente rica. Sem acesso ao pobre.

As quatro respostas convergem na importância da expressividade contida na arte de rua, isto é, no papel exercido na inserção de identidades e expressão de sentimentos. Vimos que todos os artistas destacam a rua como um espaço de criação, de reflexão e inspiração. Isso retoma as práticas cotidianas pensadas por Certeau (1994), onde os indivíduos através das maneiras de se comunicar podem desenvolver novas mensagens. Nas quais problemas pessoais, sociais e políticos, tornam uma arte expressa nas paredes públicas da rua. Essa bricolagem, também pode servir para enfatizar naquele meio determinado discurso, o qual Foucault (2012) consideraria como excluído. 78

Em andamento com o resultado das entrevistas, a pergunta a seguir foi realizada na intenção de compreender a pichação, visto que ela participa da cultura de rua. Percebemos abaixo que cada artista de rua possui uma forma distinta para falar sobre esse assunto. O que devemos destacar é que entre as falas há o consenso de que assim como graffiti, a pichação faz parte do contexto da manifestação de rua. Vejamos as respostas abaixo:

4P - O que você compreende sobre a pichação?

JHON - R: o pixo é diferente, mesmo sendo da mesma vertente do graffiti. O graffiti e o pixo estão na mesma linha de expressão de rua, porém, cada uma no seu quadrado. Eu até picho, mas não sou do movimento. Para um cara ser pichador, precisa nascer lá e entender para saber. Esses que picham só por pichar, só pra dizer que é pichador, não faz parte da essência do pixo. Existe uma rixa entre pichadores se a pichação é arte ou não, mas isso sempre vai existir, assim como existe no cenário da música ou como formas de se expressar. Isso é do ser humano.

NANA – R: eu até enxergo a pichação como arte. Mas eu entendo mais a pichação como manifesto. É uma forma de comunicação. Enquanto comunicadora, eu vejo a pichação dessa forma. Enquanto pichadora, eu também vejo a pichação dessa forma. Cada um tem seu estilo. O meu pixo chega a ser fofo. Eu faço com a minha letra mesmo. E como eu fiz muita caligrafia enquanto criança fica uma coisa meio bonitinha. Mas enfim, cada um tem seu estilo. Tem coisas que, enfim, a gente precisa comunicar de alguma forma pra não ficar dentro da gente. E eu utilizo a pichação pra comunicar essas coisas. Mesmo que a pichação na verdade seja uma pichação de uma música brega. Ela comunica algo de dentro do meu ser.

Nas respostas acima percebemos que a pichação revela uma maneira diferente ao se mostrar na sociedade, no qual pode conter estilos diferentes em sua composição. Mas em todos é possível denotar a finalidade de comunicação naquele território. Em Foucault (2012) essas comunicações criadas em um universo particular podem ser traduzidas em uma linguagem que participa de uma disputa de discursos. Estes ocorrem dentro dos espaços sociais, no caso da pichação, em espaços territoriais também. Enfim, sob uma leitura foucaultiana consideramos que a pichação é mais uma forma discursiva produzida para contestar e/ou se expressar humanamente. Além disso, é importante destacar que a vontade da comunicação e da produção de discurso, parte de um contexto de silenciamento que os jovens das periferias são submetidos. É pela existência desses sujeitos e reflexão dos mesmos, 79

que a cultura de rua20 surgiu. De acordo com Gohn (2011) os movimentos sociais existem não apenas como um modo reativo as opressões que assolam o cotidiano, mas também promovem práticas que refletem sobre as suas próprias experiências. E como diria Sabotage, principal cantor de rap do movimento Hip Hop Nacional, “Se há controversa dispare/ reage ou fique calado / Porque a cultura aqui é nossa/ Mexeu com nós é roça/ Rap é compromisso, é como o míssil que destroça/ É Cosa Nostra, da favela abrindo a porta/ Só periferia que domina tal proposta”. Podemos considerar que a juventude periférica, da favela, dos subúrbios, denuncia a opressão e rompe com o silêncio. Observemos as outras respostas:

LUA – R: Vejo como arte da mesma forma que o graffite. A diferença é a estética. O picho geralmente é assinatura e símbolo e o graffiti traz desenhos protestando algo ou trazendo amor, cores para cidade. Mas os dois são proibidos.

AMARELO – R: eu não gosto quando acho de mau gosto, mas confesso que gosto de algumas coisas e já fiz também. Até um graffiti que muita gente aprecia pode ser classificado como pichação, se ele for feito sem autorização prévia. E quando é denunciado por alguma pessoa, podendo gerar muitos problemas para o grafiteiro.

Os artistas Lua e Amarelo apresentam similaridade em suas respostas ao enxergarem a pichação como uma expressão artística de arte de rua, e que pode ser vista como crime. Da mesma maneira quando o graffiti é realizado sem autorização prévia. Tal similaridade retoma o que foi desenvolvido ao longo dessa pesquisa, de que o graffiti ainda é pouco compreendido como arte e sofre criminalização, tanto no âmbito normativo quanto social. Além disso, mesmo que ambas as expressões passem pelo crivo da proibição, elas existem no que Certeau (1994) denomina como táticas criadas para contrapor algo imposto como dominante. Prosseguimos para a próxima pergunta:

5P - Você acha que o graffiti contribui em algo socialmente?

JHON - R: posso fazer uma flor dentro de uma mão, que tenha um significado. Então aquilo vai fazer com que a tua cabeça pense numa solução de resposta para você ficar confortável. Você vai olhar praquilo todo

20 É possível verificar essa informação no artigo “O negro drama do rap: entre a lei do cão e a lei da selva” de Bruno Zeni. Acesse: http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0103- 40142004000100020 80

dia e se indagar „ah, já sei, aquela mão quer dizer que isso e aquilo. E aquela flor, não sei‟. Então é essas coisas essenciais que eu vejo no contato com as pessoas da rua, isso seja no graffiti ou no picho. É uma ferramenta de espelho, isto é, de bate-volta. Isso é o essencial. Fazer cutucar com aquilo que você sempre viu que estava branco. Essas coisas são a maior experiência da rua e é por isso que está na rua, porque é onde não existe a zona de conforto de ninguém.

A partir do relato de experiência do artista acima, vemos que tanto a pichação quanto o graffiti estão na mesma situação, na qual não parte de uma comodidade. Visto que eles estão no cenário urbano para problematizar e apontar a existência das mazelas sociais. Dado a isso, são manifestações que causam desconforto, por isso dado como uma arte reflexiva e transgressora. Vejamos os outros relatos:

LUA – R: Contribui muito socialmente. Em Cuiabá aconteceu o projeto “Hip Hop Contemporâneo” no bairro Jardim Vitória. Nele ensinamos para os alunos a técnica de grafite e os outros voluntários ensinaram o break, rap, curso de DJ e locução de Rádio. São crianças sem acesso nenhum a esses elementos. A ideia é socializar e ocupar nossas crianças com atividades que não são ensinadas na sala de aula. Ocupá-las com arte e não deixa-las nas ruas perto de drogas etc.

AMARELO – R: acredito que o graffiti muitas vezes valoriza e humaniza o ambiente, tornando as pessoas mais felizes. Elas ficam mais integradas com as artes em seu dia a dia, visto que muitas pessoas não podem ir a galerias e espetáculos artísticos.

NANA – R: eu acho que o graffiti contribui muito socialmente. A arte de rua em geral contribui, porque para frequentar uma escola de arte é caro. O artista de rua não precisa passar por todos os estágios do artista tradicional, porque a arte é muito cara. E isso acaba elitizando a arte, enfim, para mim a arte de rua serve como uma forma de mudar um pouco essa história. Eu acho que a parte mais bela é que nós estamos levando a arte para população. Ela não ficará presa dentro da sala de um milionário, ou para dentro de um museu que a maior parte da população não frequenta. Enfim, o graffiti leva a arte para todas as pessoas, tornando-a popular e acessível.

Em unanimidade as respostas convergiram com afirmativa sobre o graffiti refletir contribuições sociais. Mas cada artista trouxe diferentes informações para conhecermos essa assertiva, entre elas, o uso do graffiti como ferramenta de reflexão e humanização na cidade, também como meio educativo e de emancipação para os jovens da periferia, e por fim, como meio de popularização da arte para a sociedade. Tais elementos levantados nas respostas acima auxiliam no compreender a arte graffiti por uma perspectiva dialógica de educação em Paulo Freire (2016), na medida em que ela possibilita uma arte humanizada e reflexiva. O graffiti criado 81

surge de uma relação do grafiteiro com o seu meio. Aquela arte exposta ao concreto, desperta nas outras pessoas uma vontade de assimilar o que foi projetado. Esse processo gera uma reflexão espontânea sobre o que foi grafitado e por consequência, novos significados. É sobre a arte graffiti ser feita para a interação na sociedade e seus indivíduos, que enxergamos a dialogicidade de Freire. Sobretudo, identificamos a educação popular sendo construída a partir da afetividade e preocupação social dos artistas para com o envolvimento da sua arte com a população. Ainda sobre os impactos sociais que o graffiti causa, observemos a próxima pergunta e as suas referentes respostas:

6P - Você considera o graffiti como um meio de resistência? Por quê?

JHON - R: antes era muito mais fiscalizado, eu não vivi essa época de quando era criminalizado. Eu vivi, digo, viver no exercer do graffiti, uma época em que já tinha uma aceitação maior. O graffiti em si dos anos 90 e 80, era mais bomb, mais letra, era mais em lugares específicos. Hoje em dia, chega o graffiti de várias formas, por exemplo, passo no meu trabalho ou na lanchonete e de repente tem um graffiti lá dentro. Não sei qual que é a expressão do graffiti hoje. Será que as pessoas entendem o graffiti como uma forma de expressão ou técnica?! Ou só porque muita gente tem uma lata de spray na mão já é considerado graffiti?! Há uma confusão. No meu caso, eu vivo de uma forma relacionada ao que eu faço. Buscando sempre ir a contra das coisas que pensei que eram certas. Eu não tenho preocupação em propagar a minha arte, em questões de aceitação, eu faço isso da minha vida e vendo meu trabalho na rua pra me manter. Geralmente vendo quadros na rua para amigos que me conhecem, que conhecem a minha vida. Não tenho muito interesse em participar de galeria e de todas essas outras coisas de festivais. Acontece de eu participar, mas não é meu caminho a percorrer. Eu acho que eu tenho que ficar aqui, com a rua. Eu acho muito prazeroso, você se colocar acessível por tudo que é gente, por tudo que é lado. Então a rua dá isso, onde lugares como galerias e preocupações com exposições, não proporcionam esse acesso.

Na narrativa de Jhon, a rua é o seu local de labor, bem como, da sua expressão de existência. A sua busca de ir contra as coisas que ele achou certo, permite compreender que a sua forma de viver e de se relacionar com a arte de rua foi e é construída a partir de um sujeito reflexivo e crítico sobre suas práticas, mas que também resiste a arte convencional, dada como erudita e elitista. Essa percepção assemelha com a de cotidiano em Certeau (1994), na perspectiva em que a cotidianidade concreta se faz presente na memória do entrevistado. A sua arte de rua está intrinsecamente ligada às suas práticas rotineiras e ao seu modo de vivenciar o mundo. 82

LUA – R: sem dúvidas, o graffiti é um meio para expressar. Não é só algo estético e bonito. Por trás, a pessoa que fez, tem uma história e sentimentos. Tudo isso é transferido para a arte. Então, eu vejo como um meio muito forte de resistência. A arte no geral é uma ferramenta forte para comunicação.

AMARELO – R: o graffiti é um meio de resistência desde seu surgimento. Foi considerado como um ato marginal e mais tarde tratado como obra de arte em galeria. Ele também é resistência por sua liberdade de expressar ideias de diferentes conteúdos. Como sentimentos e revoltas que muitas pessoas gostariam de falar, mas que não podem ser ouvidas.

NANA – R: é um meio de resistência do artista que não é rico, que não faz parte da elite. É a voz do artista que representa a voz da sua comunidade. É uma forma de levar o olhar do marginalizado. De que não pode ser artista tradicional, como todo mundo conhece. Não só o graffiti, como a arte de rua em geral. A arte geral é uma comunicação. A arte de rua especialmente leva esse sentimento de resistência, de valores ligados a movimentos de luta. No meu caso, o movimento feminista. No caso da minha parceira de pichação, o feminismo negro. Enfim, é uma forma de esfregar na cara das pessoas que as nossas lutas existem. Por mais que elas não queiram nossa existência. Digo isso enquanto mulher não branca.

Nas três respostas acima conhecemos o graffiti como um meio de resistência através de um uso de comunicação, onde é utilizado como forma de expressão estética e social. Lembremos mais uma vez a disputa de discursos em Foucault (2012), na qual em Certeau (1994) a vontade da comunicação do povo em assimilar a sua autonomia de fala e saber na recriação de seu meio traz um olhar de ressignificação e ao mesmo tempo de resistência. Pois mesmo o povo sofrendo medidas de uma sociedade de exclusão, recria no seu cotidiano novas linguagens e formas de relação que participam de uma cultura popular. Contudo, chamamos atenção para o relato da artista de rua Nana, que traz em sua fala a questão de gênero e racial. Para compreendermos essas temáticas, buscamos Carneiro (2003), na qual ela relembra que as mulheres negras, além da luta pela superação do sexismo, precisam romper com o silenciamento, invisibilidade e estigmas que os seus corpos sofrem. A pensadora aponta que para romper com essa opressão, é necessário haver um feminismo negro que dê contas dessas particularidades que afetam essas mulheres. Além disso, essa é uma via de movimentação política oferece a mulher negra o seu papel legitimo de novos sujeitos políticos, que está engajado numa luta antirracista no Brasil, contra o sexismo e atuante nas questões que assolam as suas vivências. Ainda sobre isso, Carneiro, diz que atentar-se as demandas específicas é afirmar que existem diversos grupos com diferentes 83

necessidades, como a de mulheres indígenas. Essas particularidades não devem ser olhadas sob uma única óptica de compreensão sócio-político. Devemos ampliar a concepção e o protagonismo do feminismo. Dado a essa discussão sobre o papel da mulher negra nos movimentos sociais, interpretamos que Nana, utiliza da sua arte para denunciar os problemas sexistas e racistas presentes num contexto cultural machista e racista. Ainda mais, por ela vivenciar essas mazelas no seu cotidiano. Ainda sobre cultura, o contexto da arte de rua em Cuiabá é avaliada de forma positiva pelos entrevistados no quesito de sua produção, mas há considerações diferentes que podemos observar nas respostas abaixo. Vejamos:

7P - Como você avalia a cena da arte de rua em geral em Cuiabá?

JHON - R: boa parte pela propagação do graffiti além dos artistas de Mato Grosso, foram os eventos culturais que vieram crescendo pela cidade, como sarau, movimentos em festivais, em praças públicas. Isso difundiu e teve mais acesso para outras pessoas verem o graffiti e esses movimentos pela cidade. E acho que Cuiabá tem uma abertura muito boa para esse tipo de expressão artística, até pelo peso cultural que existe na cidade pelos artistas dos anos 60 e 70, que teve propagação tanto nacional quanto mundial, vindo de Cuiabá. Também teve muitos murais pintados por artistas consagrados, como Sodré, Gervane de Paula e vários outros que eu poderia citar. Acho que a cidade tem uma abertura diferente. Já aceita um pouco mais. Mas tem o outro lado da moeda também. Ainda há uma repressão muito grande. Hoje, há outros artistas à frente no graffiti em Cuiabá que fazem expandir o nome da cidade nessa vertente artística pelo Brasil inteiro e por questões muito boas e de visões políticas atuais.

No momento em que o artista Jhon menciona a existência do outro lado da moeda por tanta abertura, compreendemos essa afirmação em base da entrevista completa, que talvez ele se referir numa possível perda de identidade da própria arte de rua, da mesma forma como pode se referir a vulnerabilidade dos artistas à censura policial.

LUA – R: então, em Cuiabá agora que galera está saindo mais para grafitar nas ruas. Comparando a outras cidades acho Cuiabá tranquila ainda.

Na resposta da artista Lua é possível perceber que há um novo momento no cenário da arte de rua, onde as pessoas estão cada vez mais se abrindo para a 84

prática do graffiti. Mas que ainda estamos com poucas produções de arte de rua com representatividade local.

AMARELO – R: acredito que a cenário está muito bom, apesar dos problemas para aquisição de material e dificuldades que novos artistas sofrem para manifestarem as suas artes. Mas apesar disso, enfrentam as dificuldades e se esforçam para tornar a cidade um lugar melhor, mais colorido e bom para se viver.

A partir da resposta acima, entendemos que os problemas em adquirir materiais correspondem especificamente às latas de spray e demais acessórios. Observando que na capital existe pouca variação de tintas em aerossol com a finalidade artística. Em relação às dificuldades que os novos artistas sofrem, é possível compreender a partir do mesmo ponto levantado por John no relato anterior, a condição da repressão social. Percebemos nas entrevistas que mesmo havendo a lei nº12408 abordada no início dessa pesquisa, ainda há uma criminalização social da manifestação do graffiti como produção artística. Ou seja, mesmo havendo uma regra normativa que tal arte possa ser trabalhada no espaço urbano sob autorização do proprietário do imóvel, ainda há muitas incompreensões e preconceitos por parte da sociedade sobre a arte graffiti. Sobretudo, porque ela é inata de uma cultura marginalizada, que sempre se inscreveu na marginalidade, independente da alforria das autoridades. Vejamos os próximos relatos:

NANA – R: enxergo cenário da arte de rua na baixada cuiabana de forma frutífera, onde surgem cada vez mais novas pessoas. Mas ainda é um cenário extremamente masculinizado. Mais voltado para homens. Porque falta a união entre as artistas mulheres. Por vários motivos. Eu mesma não faço graffiti porque me sinto insegura. E quando digo insegura, não é insegura pela minha arte, porque eu sei que ela tem valor. Eu me sinto insegura de segurança, de sobrevivência. Eu não vou sair de noite para grafitar, pois sei dos riscos que as mulheres sofrem só pela condição de serem mulheres. A arte de rua, infelizmente assim como o designer, assim como a cidade, assim como quase tudo no mundo, ela foi criada para o homem. Às vezes eu sinto tudo isso quando estou mais pra baixo, porque eu acho que a arte de rua ainda não é um modo perfeito para mulher se expressar. Qual modo seria esse? Eu ainda não sei.

Na fala de Nana, é possível conhecermos a presença do machismo no cenário de arte de rua em Cuiabá, tendo em visto que a artista enxerga as suas dificuldades para a realização do graffiti nas ruas cuiabanas através de uma perspectiva de questão de gênero. E de fato, essa preocupação é relevante. Quando há produção de manifestação artística nas ruas ou em algum evento público é 85

comum à abordagem de homens nas artistas com assédio e até mesmo com comentário desvalorizando o trabalho delas. Fora que, em Cuiabá, a popularidade do graffiti com as mulheres não possui uma dimensão forte ao ponto de outras mulheres se encontrarem e fortalecerem nos percursos urbanos. É muito comum ver homens organizados enquanto artistas, já com as mulheres isso não se faz presente. De acordo com Leal (2012) em seu trabalho sobre desigualdade de gênero sobre as mulheres artistas do século XXI, ela apresenta dados que demonstram as desigualdades e dificuldades que a mulher tem vivenciado na trajetória social e artística durante séculos. Como hipótese, ela propõe a existência de políticas públicas voltadas para as mulheres artistas, a fim de que elas se insiram de forma igualitária em relação aos homens no cenário cultural. Dado a isso, compreendemos a discussão que Nana aborda sobre questão de gênero na arte de rua, através de Leal, na qual irá dizer que é preciso refletir sobre essa temática, valorizar mulheres artistas silenciadas pela cultura patriarcal e valorizar as que estão vivenciando no presente século com a arte. A cerca das experiências relatadas por cada grafiteiro, afirmamos que o graffiti faz parte da arte de rua, como meio engajado com organização social. Na qual, parte da intenção de denunciar as mazelas sociais, refletir sobre a própria experiência e revigorar o espaço urbano através de uma estética marginalizada. Também percebemos que o graffiti, bem como, todos os tipos de arte de rua citadas pelos grafiteiros, possuem práticas educativas, pois promovem a oportunidade do sujeito oprimido, novas condições de se enxergar dentro da cidade. Essa nova ótica ocorre pelo desejo de transformação social e por uma via dialógica, pois a arte de rua necessita da interação do outro para fazer sentido. Em suma, concluímos que os artistas de rua enxergam a arte de rua para canalizar o desejo de mudança do estado de opressão para libertação. E que essa produção artística constitui para mais uma prática de cultura popular desenhada por sujeitos afetivos, que desejam humanizar os espaços urbanos e suas respectivas relações cotidianas. Em sequência do roteiro de entrevistas, prosseguimos com os relatos de experiência das educandas no tópico a seguir.

GRUPO DOIS: EDUCANDOS DO COLÉGIO CURIOSIDADE 86

As educandas entrevistadas – Jujuba, Naju, Najara e Nah – participaram de uma atividade interdisciplinar entre artes e filosofia com a arte graffiti no Colégio Curiosidade. Essa atividade passou por duas fases, na primeira, os educandos do 8ºano pesquisaram e apresentaram trabalhos sobre arte graffiti nas aulas de artes, e em seguida, realizaram uma oficina de dessa arte dentro do espaço escolar com a professora de Filosofia, que é a pesquisadora em questão. Como já foi mencionada no início da pesquisa, a metodologia utilizada é pesquisa-ação, pois a pesquisadora está inserida no campo investigado. Dado a isso, a inserção da pesquisadora nesse grupo de entrevistados, está como uma educadora participante na atividade com a arte graffiti, bem como, de intermediadora. Como também existe há ligação com a arte de rua, a pesquisadora-educadora durante a atividade explicou como deveria ser manuseado os sprays e tintas para compor o graffiti. Dessa forma, as experiências aqui relatadas são de duas educandas parte do mesmo contexto educacional, mas que apresentam informações e vivências distintas sobre a atividade realizada dentro do Colégio Curiosidade. Vejamos a primeira pergunta:

1P - O que você compreende por arte de rua?

JUJUBA – R: Eu acho que a arte de rua não é só o que a gente vê nela. Por exemplo, graffiti e pichação, especialmente porque são artes que a gente sempre vê. Mas eu acho que a dança também, porque trabalhamos isso na aula de artes. Enfim, a arte de rua é um pouquinho de tudo.

NAJU – R: é as pessoas se expressando em forma de arte nas paredes. São as pessoas saindo para a rua com o objetivo de se expressar com arte. Por exemplo, no que elas sentem. E a arte de rua acontece na rua porque deve ser um modo para todas as outras pessoas verem.

NAJARA – R: quando me falam de arte de rua, eu penso muito em artes que foram criadas na rua por pessoas de certa região. Elas foram para rua e começaram a criar um tipo de arte. Por exemplo, o hip hop.

NAH – R: eu acho que arte de rua é toda e qualquer mensagem ou desenho passado e feito nas ruas mesmo, ao longo das cidades.

Nas narrativas acima, percebemos que todas as educandas demonstraram a assimilação de arte de rua como uma produção artística manifestada nos espaços públicos da cidade. É interessante avaliar esse conhecimento, pois provavelmente ele se dá pelas experiências fora da escola. Elas reconhecem a arte de rua na própria rua. Isso se dá pela observação atenta das estudantes, mas também, pela 87

característica da arte de rua afetar todos em sua volta. Queira ou não. Em algum momento os olhares esbarrarão nas cores e frases.

2P - Qual o significado do graffiti dentro da escola?

JUJUBA – R: quisemos passar para todas as idades que não é diferente ser diferente. Todo mundo está ali. Cada um com as suas características. Não é relevante a cor da sua pele ou o jeito que é seu nariz. Nós desejamos mostrar isso tanto para os pequenos quanto para os maiores.

Na narrativa acima, a educanda demonstra o cuidado com a criação artística de modo que seja entendida por todos os outros educandos da escola. Isso nos relembra Paulo Freire (2016), quando o autor trata sobre a afetividade que uma educação humanizada precisa haver no meio pedagógico. A educanda estar preocupada na reflexão que aquele graffiti geraria, apresenta que houve em seu meio um processo de ensino-aprendizagem significativo. A sua experiência com a arte de rua foi construída através de uma reflexão ativa. Também percebemos a presença de um discurso racial, onde a educanda demonstra o interesse em proporcionar no ambiente escolar a importância das diversidades étnicas existentes na sociedade, com o propósito de serem valorizadas desde as crianças pequenas quanto aos adolescentes do grupo estudantil. Vejamos as próximas narrativas:

NAJU – R: as diversidades das pessoas. Tem pessoas negras e pessoas de cabelos enrolados. Mostra para as outras pessoas que não é todo mundo que tem cabelo liso. Ter cabelo enrolado também é muito bonito. Talvez até mais bonito. E a frase que colocamos no graffiti, fala sobre racismo. O tempo que as pessoas perdem ao ficarem se importando com a cor de pele e não se importa pelo o que a pessoa é de verdade.

NAJARA – R: eu acho que a nossa arte representa principalmente a diversidade. A arte que a gente faz no graffiti tem que ter um pouquinho da gente. E eu acho que teve muito de nós nessa arte, porque a nossa turma em geral sempre foi contra qualquer tipo de preconceito. E naquele graffiti tão diversificado e lindo, nós colocamos muito de nós.

NAH – R: fizemos sobre o racismo. Foi uma forma de passar uma mensagem e de falar sobre esse assunto. Foi muito importante e um modo nosso de se expressar.

Percebemos que a educação humanizada identificada na narrativa da educanda Jujuba foi partilhada pelas demais educandas. Esse dado significa para a nossa pesquisa uma contribuição positiva numa perspectiva de uma experiência pedagógica emancipadora com a arte graffiti. Visto que em Paulo Freire (2016) a educação dialógica, a educação para a liberdade, permite que os educandos se 88

expressem a partir das suas mediações com o mundo, isto é, como eles o enxergam. E como vimos nas diferentes narrativas, as educandas construíram uma arte com sentimento de autonomia na intenção de manifestar uma mensagem ao ambiente escolar, que despertasse reflexão acerca do racismo e da diversidade étnica. Analisemos a próxima pergunta:

3P- Você gostaria ter mais experiências com a arte de rua dentro do espaço escolar? Por quê?

JUJUBA – R: com certeza sim, porque eu acho que é uma coisa que a gente se sentiu. Não é uma percepção só minha, mas da turma inteira. Sentimos livres mesmo, sabe. Para poder se expressar na escola. Entramos em conjunto um consenso sobre o que fazer. Foi uma experiência muito boa. Pensamos na gente fazendo aquilo e quem veria aquilo. Eu gostaria mais de trabalhar isso na escola. Foi uma coisa relevante. Para todas as pessoas envolvidas. É importante e é uma maneira da gente se expressar da nossa forma.

NAJU – R: eu gostaria de ter mais experiências, porque eu acho legal mostrar coisas diferentes para os alunos. Não ficar só em pintura em tela.

NAJARA – R: sim, eu gostaria muito na verdade. Porque não só o graffiti, mas a dança de rua, o HIP HOP. Nossa, seria muito bom ter isso na escola. Por exemplo, na aula de artes nós nunca falamos nada sobre a arte graffiti. É uma coisa muito fechada, apenas tela todo o ano todo.

NAH – R: sim, além de ser uma coisa divertida, é uma forma de expressão. Eu acho que isso é uma coisa muito importante para mim.

A partir das narrativas acima verificamos o sentimento de liberdade vivenciado pela educanda na atividade com a arte graffiti em consonância com o desejo de se expressar mais vezes de forma autônoma e livre no seu ambiente escolar. Mas destacamos o comentário de Naju e Najara ao se referirem de forma negativa às aulas de artes do Colégio Curiosidade. Entendemos essa questão por meio de Paulo Freire (2016), quando ele diz sobre a educação bancária, aquela que é depositada para os educandos, de forma passiva, sem reflexão. Isso significa que para as educandas as aulas de artes, em específico, as pinturas em tela, não trouxeram um aprendizado verdadeiro. Elas repetem a dinâmica da aula sem o interesse relevante. Diferente da atividade com a arte graffiti, na qual elas se sentiram envolvidas na ação pedagógica trabalhada dentro da escola. Ainda sobre aprendizagem, observemos a próxima pergunta:

4P - Você acredita que podemos conhecer e aprender as coisas do mundo através da arte de rua? Como você sabe disso? 89

JUJUBA – R: sim, por experiência, de estar lá e de estar ouvindo. No nosso caso, a gente teve você, que estava lá explicando como era feito. Nós guardamos muito aquilo. Também tivemos trabalho escolar na aula de artes para falar sobre o graffiti. Eu acho que isso não foi tão legal, porque não tivemos aquela parte prática. Sabe? Foi mais uma coisa teórica, onde tivemos que apresentar um trabalho. Mas foi legal para aprendermos sobre as pessoas que fazem graffiti, na forma que elas trabalham e como buscam para se expressar.

Na narrativa acima, vemos que a atividade com a arte graffiti foi trabalhada de forma interdisciplinar, na qual poderíamos enxergar, através da concepção teórica de Paulo Freire (2016), a união de duas áreas distintas para trabalhar um mesmo assunto. Isso reflete uma educação interdisciplinar que foi pensada e contextualizada para acontecer no ambiente escolar. Vejamos as outras narrativas:

NAJU – R: a gente pôde conhecer o que as pessoas pensam e aquilo que estão sendo expresso do mundo. Elas expressam o que elas estão achando sobre ele. Mas eu não vejo uma arte de rua falando tipo „x é igual a tanto‟, matéria de escola, essas coisas acho que não.

NAJARA – R: com certeza, porque tipo, quando a pessoa faz qualquer tipo de arte, a pessoa está se expressando. Então a gente está conhecendo a pessoa e a realidade dela, entendeu? O que é muito da hora! Isso é muito bom.

NAH – R: na arte de rua, tem desenhos que eles são feitos mais para estética mesmo. Mas a maioria, eles querem passar uma mensagem. Por exemplo, a pessoa que fez a arte está insatisfeita com alguma coisa e ela expressa isso através do desenho ou de uma frase. Isso é uma forma de aprender sobre o que ela está sentindo.

A partir dos relatos acima verificamos o potencial educativo que a arte graffiti traz ao ser tratada como uma produção estética que possui um conteúdo epistemológico e requer reflexão para ser entendido. O ato dos educandos perceberem o significado da arte através de suas experiências nos remete novamente ao que Paulo Freire (2016) denomina como uma educação ativa, na qual faz sentido para os educandos não apenas no seu meio escolar, mas em suas vivências em geral. Vale ainda destacar sob a ótica “freireana”, que o olhar da educanda Naju sobre a impossibilidade do graffiti trabalhar disciplinas da escola formal, se relaciona com a sua vivência de uma educação bancária. Na qual se encontra no modelo de uma escola tradicional, onde os educadores ocupam um papel de reproduzir conteúdos para os educandos, e estes por sua vez, receber esse ensino sem serem atores de sua própria aprendizagem.

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5P - O que você aprendeu com a experiência trabalhar uma arte de rua (o graffiti) para dentro da escola?

JUJUBA – R: a minha sala conseguido entrar em um consenso sobre o que falar através da discussão e também pelo fato da pensarmos sobre as outras pessoas que veriam a arte. Então foi um pouco de tudo. Até como as pessoas trabalham para fazer o graffiti. E por fim, que ele tem sentido.

NAJU – R: na experiência que tivemos na escola de fazer o graffiti, eu aprendi a manusear o spray. Achei legal e bem difícil. Tipo, controlar o jato. É bem dificinho mesmo. Aprendi também em sala de aula que muitas pessoas criticam o graffiti. E que ele mostra as coisas do mundo, como a desigualdade social e o racismo.

NAJARA – R: eu aprendi que o graffiti é muito mais do que simplesmente ir lá, pegar o spray e começar a fazer um monte de rabisco. Entendeu? Tem toda uma coisa por trás. As pessoas acham tão simples e querem criminalizar. Tá ligado? É uma arte muito maravilhosa. E quando tu tá fazendo, você tem que colocar um pouco de ti naquilo. O graffiti é muito mais o que as pessoas acham normalmente o que é.

NAH – R: eu achei muito legal. É uma pequena manifestação. Na aula de artes a gente já tinha comentado sobre a arte graffiti, mas foi estudado bem por cima. E eu nunca tinha feito. Isso foi uma experiência nova e marcante, porque além de ter diversão, a gente também pôde passar uma mensagem através do desenho.

As narrativas acima apresentam similaridades no eixo de conceber uma prática escolar “freireana”, na qual possibilita uma pratica educativa emancipadora e interdisciplinar. Mas, especialmente, que desenvolve autonomia aos educandos e uma percepção crítica-reflexiva da sociedade. Ainda sob essa perspectiva educativa de Paulo Freire (2016) compreendemos a experiência com o graffiti para os educandos, uma arte humanizadora que permite tematizar assuntos sociais, bem como, promover a problematização. A próxima questão é importante para a presente pesquisa, no intuito de conhecer quais outras manifestações artísticas as educandas identificam como arte de rua. Esse conhecimento é interessante para a compreensão da entrevista completa com as educandas sobre a experiência das mesmas com a arte graffiti. Observemos abaixo as respostas:

6P - Quais tipos de arte de rua você conhece?

JUJUBA – R: uma dança com latas, a capoeira, o graffiti e a pichação. E junção do graffiti com pichação, o Grapixo. Acredito que só, sabendo desse jeito por nome.

É muito valorosa a perspicácia da educanda, de incluir a capoeira como parte da cultura da arte de rua. Tal menção trouxe uma reflexão pessoal na pesquisadora 91

sobre a origem da capoeira e como ela se estende atualmente. E se olharmos por um viés de Certeau (1994), a resposta da educanda faz todo sentido, visto que a capoeira é uma prática de resistência criada pelos africanos escravizados contra a opressão e violência dos colonizadores portugueses.

NAJU – R: Graffiti, Funk, Hip Hop e o Rap.

NAJARA – R: Hip Hop, Rap, Graffiti. Quando falam para mim de arte de rua, eu penso também em Pichação. Mas enfim, não sei.

NAH – R: Eu só conheço o graffiti. E a pichação, mas não sei se ela é arte.

Na mesma perspectiva que Certeau foi citado anteriormente, utilizamos a sua concepção de práticas cotidianas para compreender o Hip Hop, Rap, Funk, e Pichação. São manifestações oriundas da cultura de rua, criadas por sujeitos comuns, que criaram novos significados e símbolos estéticos em seu dia a dia. Analisemos a próxima pergunta e narrativas:

7P - Se você pudesse deixar uma mensagem a todos os grafiteiros de Cuiabá e a todos os professores que trazem para dentro da escola experiências com a arte de rua, o que você diria?

JUJUBA – R: eu diria para não terem receio. Há muita gente criticando. E isso vale muito para os grafiteiros, de rua mesmo. Aqueles que são chamados de vagabundos e ouvindo que não sabem o que estão fazendo. Mas tem um sentido. Os grafiteiros fazem críticas. Eu acho eles incríveis. Eu realmente acho. Não tenham receio, continuem fazendo. E aos os professores, que seja que nem você mesmo, que tomaram essa atitude. Porque foi muito legal para todos nós.

NAJU – R: eu falo para os grafiteiros e professores que eles continuem, porque é muito bom. Eu gostei da experiência na escola. E eu acho muito bonito. Eu acho que os grafiteiros devem continuar. É uma arte que mostra a realidade, que mostra tudo do mundo. Não tem porque os grafiteiros serem criminalizados pelas artes deles, eles não estão fazendo nada de errado. E os professores devem continuar trazendo arte de rua para escola. E aqueles não trazem deviam trazer, porque é um jeito dos alunos se expressarem e deles conhecerem outras realidades. Fazer o graffiti dá maior liberdade, podemos expressar nossa identidade na escola.

NAJARA – R: para os grafiteiros, não pararem, por favor. Pode não parecer, mas faz toda diferença. Por exemplo, quando alguém tá estressado no trânsito, olha pra sua arte e para. Tiram uns minutos para refletir sobre a sua arte. Além de deixar a cidade mais bonita, né? Para os professores, bom, alguns não têm ideia da diferença que fazem para as pessoas, crianças, adolescentes da escola. Só que é muito importante. Tem pessoas que nem sabe a diferença entre graffiti e pichação. Eu mesma não sabia a não ser pela minha irmã eu também não saberia. E saber sobre isso é extremamente importante. Antes de eles virarem adultos e ficarem julgando as pessoas, tem que conhecer um pouco. Mas para aqueles que já fazem isso, primeiro, obrigada, né?! E segundo, eu falo por quase todos que vocês 92

marcaram positivamente nossas experiências. Eu particularmente, eu não tive nada com o graffiti. Não tinha tido nenhuma experiência se não fosse essa com a professora Alana. Isso foi um marco muito positivo pra mim. Então, obrigada.

NAH – R: eu falaria para continuar, porque eu acho um movimento muito bacana e movimento de muita força. Eu acho que ele carrega muita coisa, não simples desenhos ou mensagens. Tanto pra fora quanto pra dentro da escola, o graffiti é uma coisa muito legal. Eu admiro bastante. Porque dependendo do assunto ou uma mensagem que você quer passar, você pode fazer o aluno, ou até mesmos os pais e professores, receber uma mensagem sobre um determinado tema. Pode ser preconceito, homofobia, racismo, fascismo, tanto faz, depende do tema que você escolher fazer. E eu acho que isso pode ajudar o aluno a criar uma visão diferente sobre alguma coisa. Ter uma visão diferente de mundo.

Notamos que as narrativas acima avaliam o contato com a arte graffiti dentro da escola por um viés educativo, no qual reconhecem a necessidade de ter mais experiências onde educandos possam se expressar e exercer a sua autonomia e liberdade no processo de ensino e aprendizagem. Verificamos também a relevância que a presente pesquisadora ocupou como educadora para esses estudantes, pois vemos atribuições positivas relacionadas ao seu papel de promover para dentro do ambiente escolar, uma atividade artística que possibilita os estudantes de manifestarem e refletirem sobre as suas experiências no mundo. Percebemos também nas referências para os grafiteiros, o olhar solidário, mas crítico das educandas ao deixar-lhes uma mensagem de incentivo e respeito. Por fim, examinamos que o graffiti pode promover conhecimentos de visões diferentes sobre determinado assunto no meio escolar. Através disso, compreendemos que essas últimas narrativas deixam-nos pistas sobre o papel educativo que o graffiti pode ocupar no que entendemos como uma educação libertadora dentro da escola em Paulo Freire (2016). Isto é, o graffiti se faz possível ser parte de uma experiência libertadora e emancipadora dentro do meio escolar. Mesmo sabendo que a natureza artística do graffiti é transgressora e marginal e a escola participante de um projeto político institucional, que visa atender as ordens da ideologia capitalista e opressora. Porém, através das nossas leituras realizadas nessa pesquisa e a partir das experiências escutadas dos entrevistados, vemos que há meios e estratégias da comunidade escolar e seus envolvidos, trabalharem práticas autônomas, dialógicas, emancipadoras e transformadoras. No nosso caso, entre uma pluralidade de possibilidades pedagógicas, tratamos a arte graffiti como proposta de educação popular para ser trabalhada no meio escolar. Provavelmente não na medida em que gostaríamos, devido as estruturas dominantes que nos assolam, mas ao mesmo 93

tempo, não justifica a ausência de resistência e criação de alternativas que podem possibilitar aprendizados significativos. Se partirmos de uma educação inspirada em Paulo Freire, mesmo as nossas condições materiais estarem pautadas numa relação de exploração e dominação, se deve enquanto pesquisadores-educadores procurar, assim como a própria arte graffiti propõe, a transformação e humanização dos nossos meios sociais. Que ao menos no mínimo, a escola, seja para os estudantes o espaço que eles possam se identificar, representar e explorar investigações sobre as suas vivências do cotidiano.

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CONSIDERAÇÕES FINAIS

A presente pesquisa de dissertação de mestrado assumiu como objetivo proporcionar ao campo da educação um objeto de investigação pouco explorado: a possibilidade de a arte graffiti contribuir como proposta pedagógica dentro do ambiente escolar. Assim como, de compreender essa arte de rua em seu desenvolvimento estético, histórico, educativo e seus respectivos impactos sociais no cenário urbano. Para tanto, esta investigação apoiou-se em materiais que possibilitaram entender o processo de criação e político da arte graffiti e das possibilidades de como ela pode ser trabalhada como uma experiência educativa de caráter emancipatório dentro do ambiente escolar. A pesquisa realizou-se em primeiro lugar como um estudo qualitativo sobre o desenvolvimento da arte graffiti na sociedade, observando-a como foi dado o seu surgimento, o seu desenvolvimento no Brasil e como é vista no contexto normativo e social na atualidade. Além de compreender tal arte numa abordagem filosófica a partir de distintos autores que viabilizam uma leitura reflexiva entre suas correntes teóricas ao o objeto investigado. Como visto, em Michel Foucault utilizamos a obra “A ordem do discurso” para verificarmos a existência de narrativas estéticas produzidas a partir das grafitagens, onde foi emitido um conjunto discursivo direcionado à sociedade. A produção material construída pelos grafiteiros, a partir de Foucault, possibilita entendê-la como parte de um jogo de interesses sociais e políticos que envolvem o desejo de poder e direito de fala. Já em Certeau, foi possível estabelecer uma nova compreensão sobre as inscrições grafitadas, considerando-as como parte de uma cultura ordinária que se reinventa cotidianamente, cujo caráter se traduz em cunho popular e símbolo de estratégia de resistência dentro do espaço urbano. Em seguida, utilizamos Paulo Freire em sua concepção de educação como prática libertadora para compreender se os momentos pedagógicos a arte graffiti pode ser considerada como uma prática emancipadora no ambiente escolar. Para isso, olhamos com atenção os caminhos teóricos percorridos na Pedagogia do Oprimido, os quais permitiram verificar o conceito de dialogicidade presente nas inscrições grafitadas. Isto na perspectiva em que o graffiti se insere como uma arte de rua que necessita ser apreciada pelo outro para ser compreendida. Esse processo artístico necessita ser olhado, sentido e refletido. Além do mais, o graffiti 95

se insere nos espaços urbanos para ser visto por todos, sem distinção de público. Em suma, compreendemos o conceito de dialogicidade através de uma leitura “freireana”, na qual entendemos que a arte graffiti está aberta ao diálogo, pois ela democratiza o seu acesso e permite uma relação humana e educativa com todos que circulam em sua volta. Na continuidade da pesquisa, ocupou-se por último o desenvolvimento qualitativo e empírico através da prática de pesquisa-ação sobre a arte de rua, em especial o graffiti. Essa investigação ocorreu com dois grupos: grafiteiros locais e educandos que vivenciaram tal arte dentro da escola. A partir das entrevistas, conhecemos dimensões políticas e culturais envolvidas no graffiti, bem como, as relações sociais que a arte de rua em geral estabelece com a cidade. Também conseguimos verificar a partir de uma leitura das entrevistas com os grafiteiros e educandos, a presença do fenômeno discursivo e cotidiano envolvido na arte graffiti e de como ela pode se projetar numa perspectiva educativa na escola. Com os artistas de rua foi possível perceber a legitimidade que a arte proporciona como forma de expressão estética, assim como, a denúncia às mazelas sociais. Ainda foi possível verificar a ligação social que a arte graffiti carrega dentro da sociedade, desde seu convite à reflexão social para uma educação informal, onde para os entrevistados significa uma oportunidade de canalizar sentimentos e angústias nas construções urbanas. E, sobretudo, uma preocupação dos mesmos em estar junto de um movimento de arte popular, em que o graffiti seja acessível para toda população. Para a pesquisadora deste trabalho esse dado revela ainda mais o traço de uma arte humanizada e dialógica que o graffiti em seu contexto de rua. Nos resultados coletados a partir das entrevistas das educandas, vale destacar que foi possível perceber que a arte graffiti oferece uma nova via educativa de problematização e críticas aos problemas políticos e sociais da cidade, assim como, oportunizar um meio afetivo das educandas ao se apropriarem do seu espaço escolar através da manifestação artística referida. Também foi constatada a necessidade das alunas entrevistadas a terem mais experiências que envolvem outras formas de expressão, não apenas com a arte de rua. Por fim, devemos destacar que é a partir do grupo das educandas, que conseguimos enxergar o graffiti como uma ferramenta pedagógica no espaço escolar, por via educativa emancipadora. Percebemos junto com as entrevistas 96

realizadas e a observação prática da atividade, o aprendizado significativo construído junto aos educadores. Constatamos que a arte graffiti pode ser uma prática libertadora dentro do ensino formal de aprendizagem, isso significa que podemos explorá-la como um meio interdisciplinar de aproximar o educador ao educando de forma humana e verdadeira. Dado a isso, afirmamos que é possível a arte graffiti servir como ferramenta pedagógica no meio escolar. Em síntese, a partir das práticas da arte de rua subsidiados pelas teorias dos autores da pesquisa, apropriamo-nos da história oral e mediante entrevistas realizadas conseguimos compreender que o graffiti é uma arte de resistência, pois desde sua criação foi feita para contestar discursos da classe opressora. É uma arte popular, pois é produzida por uma cultura de rua, em especial aos interesses daqueles que sofrem as mazelas sociais causadas por uma estrutura econômica pautada na desigualdade e exploração da força de trabalho. É uma arte humanizada, pois tem a dialogicidade e afetividade para aqueles que a compõe e para os outros que a apreciam. E por fim, é uma arte educativa, que desperta reflexões através de suas intervenções urbanas e também pode ser utilizada como ferramenta pedagógica dentro do espaço escolar, uma vez que ela pode facilitar o aprendizado dos educandos. Há muitas reflexões e investigações a se fazer sobre a arte graffiti, em especial na perspectiva em compreendê-la como parte de uma criação cultural de resistência às imposições sociais dominantes. Sobretudo também, por sua natureza criativa e subversiva. Afinal, compreender uma arte urbana que transita pelo crivo normativo de legalidade e pela apreensão de legitimidade como cultura popular, nos traz uma gama de reflexões sobre as reinvenções cotidianas de nossa cidade. Dessa forma, consideramos que essa pesquisa contribuiu para refletirmos sobre inscrições grafitadas que nos cercam nos espaços urbanos, mas entendemos que há muito a ser estudado e investigado. Esperamos dessa forma, não só cooperar nas reflexões acerca da cultura de rua, como estimular outros pesquisadores a investigarem nessa temática tão vasta e rica.

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REFERÊNCIAS

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GLOSSÁRIO

Arte de Rua Todo tipo de arte produzida no cenário urbano, predominante criado em periferias e subúrbios da cidade.

Graffiti Desenhos ou rabiscos realizados nos muros da cidade, através de spray e outros materiais para a sua criação. Popularmente as pessoas reconhecem o graffiti apenas como desenhos coloridos, mas há outros meios de sua produção, como stêncil, lambe-lambe, grapixo. O graffiti é utilizado para transmitir mensagens no espaço público e é comumente usado como uma arte de protesto social.

Grapixo É uma vertente do graffiti, que mistura a pichação com o graffiti. O resultado geralmente são frases, letras e desenhos juntos.

HIP HOP É um gênero musical desenvolvido pelas comunidades, latinas e afro- americanas da cidade de Nova Iorque na década de 1970. Mas ele também é considerado como uma cultura popular, que engloba as práticas do graffiti, do rap, do break-dance, da discotecagem, entre outros. Ele é utilizado para denunciar as mazelas sociais e protestar de forma política os anseios da comunidade. Dessa forma, é muito comum referenciar o graffiti como parte do movimento Hip Hop.

Lambe-Lambe É uma forma de graffiti, onde a intenção de colar desenhos e divulgar pensamentos para a sociedade. É aplicada em paredes públicas, como, dentro das universidades, muros urbanos, postes e etc.

Muralismo É uma técnica artística que produz pinturas murais sobre temas populares, como educação, política, cultura, entre outros. O seu modo de produção comumente é feito por tinta fresca com cores diferentes diluída em água e aplicado em muros urbanos.

Pichação Ato de escrever ou rabiscar nos meios públicos da cidade, como, paredes, prédios, metros, fachadas de edificações, etc. Atualmente, há um debate característico dos pichadores e artistas de rua em denominar a pichação como um meio do graffiti e até mesmo em defini-la como arte, o único consenso majoritário sobre o seu espaço é que ela faz parte da cultura de rua.

“Picho” ou “Pixo” É uma referência que os artistas de rua fazem ao mencionar uma pichação.

Serigrafia É um modo de produção arte graffiti, no qual é realizado por um processo de tinta vazada que é transferida em tecidos e outros materiais. É usado para divulgar desenhos e mensagens.

Stêncil É uma forma rápida de produzir um graffiti. Utiliza moldes vazados para a figura ou frase para ser pintados em uma superfície. Geralmente é aplicada nos muros da cidade.

Sticker art É uma arte parte do graffiti, que visa criar adesivos para serem colados em edificações públicas, lojas, muros urbanos, etc. Geralmente é criado para transmitir uma mensagem. 101

Tag É o nome ou assinatura do artista de rua. É muito comum todo arte graffiti produzida ter o referencial do seu autor.

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APÊNDICE

O GRAFFITI COMO UMA POSSÍVEL FERRAMENTA PEDAGÓGICA NO MEIO ESCOLAR

Essa parte da pesquisa refere-se ao material que a presente pesquisadora criou, com a finalidade de ser trabalhado por educadores e por outras pessoas que possuem interesse em levar a arte de rua como atividade pedagógica no meio escolar. Dessa forma, apresentamos de forma didática as variações da arte graffiti, os seus modos de produção e sugestões de serem trabalhadas. Dessa forma, consideramos que este apêndice faz parte da praticabilidade pesquisa, pois visa o seu uso como prática educativa no cotidiano escolar. A estrutura desse apêndice se divide por tópicos referentes as técnicas de arte de rua. Vale considerar que o termo “técnica” não corresponde no sentido utilitarista e reducionista da arte em questão, e sim, como tipo que tem elaboração específica. Ademais, Nesse material há tutoriais acerca disso, o graffiti como proposta pedagógica, em que possa ser utilizada nas aulas das diversas disciplinas e também, como experiência para a comunidade escolar, desenvolvendo um meio de transdisciplinaridade, isto é, um caminho educativo para abordar junto com outros professores uma unicidade de conhecimento, que trabalha elementos sociais e culturais incluídos na realidade do aluno. O graffiti pode servir de sensibilização, utilizado como recurso propulsor de um tema a ser problematizado. Através da investigação de problemas, alunos buscam compreender a indagação através de observações cotidianas e análises textuais, para, enfim, chegar à elaboração de um conceito, um intermédio a possíveis resoluções de questões que afetam a comunidade escolar. Além disso, o graffiti pode servir de síntese imagética para a investigação do problema levantado, isto é, na elaboração de um produto final exposto no ambiente da escola. Acima disso, podemos assimilar o graffiti como ferramenta pedagógica, que serve como base para a criação de uma imagem conceitual que corresponda a toda experiência filosófica dos alunos e a uma arte emancipadora, que vista reinventar o cotidiano de todos que fazem parte da escola de forma inspiradora e incentivadora às transformações no processo de aprendizado e inclusão social.

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Técnica Stêncil na escola:

O stêncil é uma arte muito utilizada no contexto do graffiti. Sua aplicação se dá através de transferência de imagens, desenhos, fotografias em paredes que participam do cenário urbano. Tal arte de rua geralmente é apropriada para protestar mensagens de cunho político, estético e até publicitário. Todas sempre com o propósito de compartilhar informações com as pessoas que transitam o local em que arte está exposta. Além disso, o stêncil contém um caráter artístico acessível, não apenas na sua visibilidade urbana, como também em sua produção material, podendo ser feita em casa. E também por ser uma arte considerada como uma das técnicas de graffitis mais rápidas de ser realizada. A partir dessa breve apresentação, o stêncil pode ser utilizado em sala de aula com o propósito de ilustração e manifestação artística, que possam ser projetadas em paredes, camisetas, cartazes e/ou em outros materiais escolares. O educador pode utilizar o stêncil para ilustrar determinados conteúdos e até mesmo trabalhar a manifestação do estudante por meio da arte de rua. É importante ressaltar que o stêncil é trabalho muito pelo viés imagético e quando discursivo, ele é composto geralmente por frases ou curtas composições linguísticas. A cerca do que foi exposto acima, aprendemos os passos para aprender fazer o graffiti de stêncil com os demais educadores e educandos no espaço escolar. Materiais necessários: imagens em contraste de stêncil, cartolina grossa, navalha ou estilete, tinta spray e fita adesiva ou fita crepe. Passos para grafitar o stêncil: a) escolher uma imagem ou frase para ser impressa ou desenhada na cartolina grossa, lembrando que ambas devem estar com contraste nítido entre partes brancas e pretas; b) o molde deve ser criado a partir do recorte com navalha das partes pretas da imagem; c) segure o molde em uma superfície prendendo-o com fita adesiva, certificando que todas as partes do stêncil estejam firmes na superfície; d) aplique o spray sobre stêncil de forma uniforme, com uma distância entre 12 cm a 15 cm, para garantir uma aplicação adequada de tinta; d) retire o molde do stêncil e reutilize em outro local. O molde para produção do stêncil não precisa ser necessariamente em cartolina grossa, pode ser em prato de isopor, vinil, radiografia, entre outros. O critério é de que o material seja resistente à tinta spray e maleável para cortar. 104

A imagem abaixo corresponde a uma prática da técnica graffiti em stêncil na Escola Estadual Ferreira Mendes, em Cuiabá, no ano de 2014, organizado pelos professores Juarid Campos de Filosofia, João Almeida de Geografia e pelo Programa Institucional de Bolsas de Iniciação à Docência (Pibid) de Filosofia da Universidade Federal de Mato Grosso (UFMT). A atividade extraclasse e transdiciplinar uniu dois professores de áreas diferentes para proporcionarem aos estudantes do ensino médio um contato com a arte de rua, com intuito de ofererecer uma nova possibilidade dos estudantes expessarem seus pensamentos e ideias no ambiente escolar. Além disso, essa experiência artística resultou em uma prática frequente dentro da escola, cuja aplicação está ligada ao processo de ensino e aprendizagem do aluno. 105

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Técnica Lambe-Lambe na escola:

O lambe-lambe também faz parte de uma manifestação artística do Graffiti, a sua técnica é muito utilizada para espalhar pelas ruas da cidade imagens/ou palavras que se referem a ideias e até mesmo poesias. É através deste conteúdo característico que a arte lambe-lambe se difere dos panfletos e cartazes publicitários colados pelos meios urbanos. Tal arte não tem cunho comercial e é considerada uma intervenção de rua que traz a legitimidade para qualquer cidadão se expressar e se manifestar artisticamente. Além disso, como toda arte de rua, é considerada pública e acessível a todos que estão na travessia urbana. Por isso, o lambe-lambe também chama atenção da sociedade, pelas suas cores vibrantes e conteúdo crítico, proporcionando um convite cotidiano para reflexão e apreciação artística. Ademais, essa arte é semelhante a um adesivo, de fácil produção e aplicação, sendo colada em espaços públicos, como: paredes, postes, pontos de ônibus, metrôs, lixeiras, entre outros lugares que carregam a cinza da metrópole. Tal fato, cativa diversos artistas, especialmente aqueles que atuam nas ruas, a praticar a técnica graffiti em lambe-lambe. Com a simplicidade de preparação, essa arte de rua pode vir a ser uma boa ferramenta pedagógica no espaço escolar, onde os estudantes junto com os educadores possam trabalhar em conjunto e espalhar lambe-lambe pela escola. É uma técnica fácil e divertida, que contém um propósito de expressão artística muito intensa para aqueles que anseiam explorar novos meios de protesto e estética no espaço social. Os educadores devem articular o propósito da arte lambe-lambe com as demais necessidades internas das realidades locais dos estudantes, visto que o lambe-lambe necessita ter um conteúdo crítico ou poético, mas sempre em demanda às necessidades sociais. Os materiais necessários para realizar o lambe-lambe são papéis de gramatura baixa, como sulfite e no tamanho A3 ou A5, cola escolar líquida, rolinho de espuma ou pincel e um pano limpo. A preparação ocorre em quatro passos: a) preparar a cola, dissolvendo-a em água, na proporção de uma cola branca para duas partes de água; b) coloque a cola preparada em um pote de sorvete ou outro recipiente que caiba o rolinho de espuma; c) espalhar a cola em todas as superfícies do papel e pregar na superfície desejada; d) passar uma mão de cola em cima do papel já colado, para finalizar a fixação o lambe-lambe; e) limpar com pano 107

umedecido com água os excessos de cola que possam surgir entorno do lambe- lambe. O lambe-lambe produzido não precisa ser necessariamente fixado com cola escolar líquida, pode ser elaborado de forma caseira com polvilho doce ou farinha de trigo com vinagre e água. Vale lembrar que os próprios estudantes podem elaborar os desenhos ou poesias a serem coladas, porém, a arte também pode ser impressa e utilizada para o lambe-lambe. A imagem abaixo se refere a uma atividade intraclasse na aula de Ensino Religioso, trabalhada pela Profª Alana Chico, cujo objetivo foi oferecer aos alunos essa experiência.

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Técnica de Sticker na escola:

A técnica “Sticker art” é um modo de produção artística pós-moderna iniciada em Nova York, popularizada por grupos de rua na década de 1990, que tem como base o uso de etiquetas adesivas coladas em diversos cantos da cidade. No Brasil, essa técnica começou ser a utilizada no meio comercial e residencial, como adesivo decorativo para fachadas de lojas e decoração em residências. Posteriormente, os stickers foram utilizados, em especial na grande metrópole São Paulo, com a intenção de intervir artisticamente na cidade, com adesivos que continham desde desenhos às mensagens de manifestação. Em suma, o Sticker art em inglês significa arte do adesivo, surgido do contexto do graffiti, pois a sua utilização foi apropriada por artistas de rua, que fizeram o seu uso para compartilhar ideologias, desejos, angústias e ideias nos cenários urbanos. E dada as suas vias de uso, assim como a pichação, no Brasil, o sticker art é proibido, sendo considerado crime por violação de patrimônio público. Mas assim como a pichação, stêncil e o lambe-lambe, a arte de adesivos persiste nas grandes cidades, insistindo ser visualizada por todos os habitantes que percorrem as ruas. Em semelhança ao lambe-lambe, o sticker popularmente contém figuras e mensagens coladas pela cidade, mas com uma técnica de produção e aplicação bem diferente. Como vimos anteriormente, o lambe-lambe pode ser utilizado por papel e colado nas paredes por cola branca, o sticker pode ser colado não apenas em paredes, em todos os lugares, até mesmo nas calçadas. Além disso, ele possui três maneiras de ser produzido. A primeira técnica de produção denomina-se serigrafia ou “silk-screen”, cujo processo de impressão exige uma tela preparada para receber a tinta vazada através de um rodo puxador. O sticker através da serigrafia é considerado pelos artistas de rua, um modo de produção em modalidade profissional, devida a sua técnica exigir conhecimentos específicos e requerer materiais pouco acessíveis. Por outro lado, existe um meio mais popular e simples para criar um sticker art, apenas utilizando um papel adesivo ou vinil transparente (adesivo plástico) e o stêncil. Nesta opção, o artista de rua deve produzir o seu molde de stêncil e aplicar spray (nas cores que desejar) em cima do papel adesivo, em seguida, aguardar em média de 15 minutos para aplicar na superfície que desejar. Por último, o sticker pode ser produzido através da mão livre, isto é, pode ser desenhado manualmente através de canetas coloridas com duração permanente 109

e a prova d‟água no papel adesivo. Não precisa aguardar a secagem, pois a aplicação da caneta é de rápida absorção no papel, sendo assim, o sticker criado precisa ser recortado com uma tesoura e pode ser colado a qualquer momento. Considerando essas diferentes técnicas de produção do sticker art para o contexto escolar e suas diversas realidades, podemos acrescentar outra opção interessante e mais econômica para a produção dos adesivos com cores. Os stickers podem ser produzidos no papel adesivo à mão livre com uma caneta permanente na cor preta e colorido por lápis de cor escolar. Após a finalização da produção do adesivo (imagem ou mensagem), colar por cima da figura um papel contact transparente para proteger da água e dar maior durabilidade ao sticker. Dessa forma, os estudantes podem produzir seus stickers arts com uma maior diversidade de cores e a instituição escolar pode facilitar a oportunidade da experimentação da arte de rua com qualidade. Todavia, a escolha do modo de produção do sticker art fica critério do/a educador/a e dos estudantes. O importante é que esse encontro pedagógico com a arte sticker, pretende estimular a criatividade e reflexão sobre a mensagem que o artista quer compartilhar com a sociedade. Nas ilustrações a seguir, é possível visualizar os três meios de produção de sticker art, assim como, os materiais que serão utilizados:

a) Serigrafia

Fonte: site decalcor. 21

21 http://www.decalcor.com.br/loja/image/data/imagem-passoapasso.jpg 110

b) Sticker em Stêncil

Fonte: sticker tutorial by Barto22

c) Sticker à mão livre

Fonte: Tutorial de como fazer seu sticker (Dabbie Olivieri).23.

22 23 111

Como fazer um Sticker

Fonte: youtube.24

Técnica de Grafismo na escola:

O grafismo dá a origem ao graffiti, por ser uma arte que se atreve a compor os espaços com repetições, cores, conceitos e movimento. A partir disso, conotamos a palavra “grafismo”, a fim de diferenciar das demais técnicas vistas nesse trabalho, que fazem parte do cenário do graffiti. Lembrando que tal palavra pode ser utilizada em outros campos artísticos, como poesia e literatura, para expressar a presença de cores e movimento. Dessa forma, utilizamos o grafismo para expressar que a técnica utilizada do movimento graffiti, é aquela que faz parte da arte de rua, sendo popularizada como “grafite” desde o Império Romano pelas suas inscrições nas paredes. Sendo assim, a arte em questão faz parte de uma técnica que está visualizada nas construções da cidade, com a característica de ser inscrita de forma imprevisível e singular. Como visto desde o início do trabalho, o graffiti expressa às mazelas sociais, o desejo de liberdade, as reflexões culturais e uma comunicação estética irreverente. Tal movimento se desenvolveu na década de 70 em Nova York até chegar ao Brasil no mesmo período, com outros desdobramentos e conotações artísticas. Além disso, é importante ressaltar que o cenário do graffiti se desenvolveu como parte da movimentação do Hip-hop, sendo considerado como um dos pilares cruciais para o movimento. Isto se deu, porque o graffiti compunha os cenários que ocorriam as práticas culturais de rap, breakdance e o DJing. O movimento surgiu

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com comunidades latinas, afro-latinas e jamaicanas, que vivenciavam situações de violência, extrema pobreza, tráfico de drogas e racismo. O graffiti surge do gueto de negros e latinos que viviam em Nova York na década de 70, dessa forma, foi através do movimento hip-hop, incluindo o graffiti, que os moradores do subúrbio resistiram ao meio hostil. Até hoje, todo esse movimento e as suas respectivas artes de rua, representam essa resistência nos centros urbanos. Mesmo com várias vertentes do uso do graffiti, ele é comumente referenciado em território brasileiro, como uma arte de protesto e de manifestação política, e não apenas, como um uso decorativo ou de caráter estético irrelevante. Assim como as outras técnicas vistas, o grafismo do graffiti deve ser apresentado aos estudantes, a sua definição e finalidade, a fim de que o encontro da arte de rua para dentro do espaço escolar seja vivenciado com eficiência e tenha assimilada a sua proposta pedagógica. Em especial, por que é o graffiti que inspira todas as outras artes de rua a se manifestarem nos paredões de concreto da cidade, de forma tão espontânea, criativa e combativa. Esse conjunto de técnicas artísticas faz parte de uma denúncia, sem armas e opressão, mas de cunho libertador e reflexivo. O graffiti é uma arte nativa da periferia e é por ela, que ele existe. Faz parte da cultura brasileira, mesmo muitos ainda negando-a, ela dá voz e expressa às realidades da rua. Devido a toda essa representatividade social e cultural, a arte graffiti precisa ser apresentada no contexto escolar com informação e ser compartilhada de uma forma em que os estudantes possam se sentir conscientes e dispostos em se apoderar dela como manifestação artística no espaço escolar. A arte graffiti sem estar acompanhada de reflexão, perde o seu caráter genuíno, por isso é necessário que ela esteja em consonância com a proposta pedagógica do espaço escolar. Em vista disso, a arte graffiti pode ser trabalhada em todas as áreas de conhecimento, desde Linguagem às Ciências Humanas, porque ela se encontra em assimilação a todos os movimentos sociais, culturais e políticos, que venham a surgir na sociedade. Cabe ao educador/a saber trabalhar as múltiplas expressões que essa arte carrega nas narrativas urbanas dentro da sala de aula ou em qualquer outro espaço que a escola possa oferecer. Para tanto, será explicado nesse tópico como o graffiti, na sua forma de expressão mais reconhecida, isto é, expresso em paredes públicas, pode ser criado em conjunto por educadores e estudantes. 113

O material de composição do graffiti pode ser diverso, além do uso de latas de spray em sua maior parte de produção, pode ser utilizado também giz de cera, tinta própria para parede, canetas coloridas com a duração permanente, enfim, entre vários outros materiais. Mas o que denota um graffiti de uma simples arte Muralista, é a sua intenção rebelde, despreocupada se aquela expressão está sendo vândala ou não e de ser acessada desde pessoas de classe alta à classe baixa. O graffiti possui os traços fortes, que combinam as cores com a necessidade de exteriorizar as vozes das ruas. Já o muralismo é produzido em sua maior parte por pincel e tinta própria para parede, tendo em seu conteúdo, uma narrativa histórica. Além de que, a sua produção pode ser em qualquer espaço, sem necessariamente ser expressa nos concretos da cidade. Mesmo a arte mural tendo começado com o movimento revolucionário dos mexicanos no século 20, por sede de manifestar a opressão à ditadura de Porfírio Diaz, ela se difere no caráter artístico, técnico, histórico e ideológico. O graffiti possui gírias, códigos, linguagem específica, grupos e técnicas, além disso, está estritamente ligado ao uso de espaços públicos. Portanto, para qualquer arte ser expressa, o graffiti precisa ser esboçado previamente antes de ser projetado no muro. Como esse material trabalha com a arte de rua em encontro ao espaço escolar, é aconselhável que o conteúdo a ser grafitado seja planejado em conjunto com os estudantes e educadores/as, além de ser manualmente esboçado em uma folha em branco. Isto porque, o graffiti é trabalhado com um material permanente e precisa ser dimensionado em proporção ao esboço traçado anteriormente. Acima do caráter do conteúdo a ser criado é preciso frisar, que o graffiti serve para uma necessidade de expressão muito latente e que essa evasão artística seja expressa em caráter público. Por isso, é importante respeitar a autonomia e a liberdade dos estudantes nesse momento tão especial quando em contato com a arte graffiti, essa experienciação deve permitir o empoderamento deles e não, para um despejo de uma ideia já fechada e indiscutível. Para a produção do graffiti, é preciso inicialmente reconhecê-lo na cidade e perceber os diferentes estilos que existem. Se não for possível, realizar o reconhecimento presencial pode ser feito via imagens disponíveis na internet. O importante é que os estudantes percebam as diferentes características que cada graffiti traz consigo. Em seguida, é preciso que o/a educador/a se reúna com o grupo de estudantes participantes para essa experienciação e dialogue com eles, sobre o 114

conteúdo a ser manifestado na parede escolar. Quando o conteúdo pensado estiver definido, é preciso que o grupo se reúna para a construção do esboço do desenho e o mesmo esteja atento com o espaço disponível para a realização da arte. Após período de reflexão e decisão sobre a arte, é preciso que o esboço no papel seja esboçado na parede, pode ser utilizado com carvão ou giz de cera. Após esse momento, basta preencher o desenho com spray e/ou com a tinta própria para parede. Para facilitar a primeira experiência com o graffiti, o contorno da imagem em vez de ser por spray, pode ser por caneta grossa permanente, e em seguida, preenchida com tinta através do manuseio de um rolo próprio para pinturas em parede. Em suma, os materiais básicos a serem utilizados para a produção do graffiti são: latas de spray na cor escolhida pelos estudantes para preencher e contornar; tinta branca com os pigmentos nas cores escolhidas para ajudar a preencher os espaços; canetas de ponta grossa com durabilidade permanente para fazer contornos; rolos próprios para pintar paredes para serem utilizadas com a tinta branca pigmentada; carvão ou giz de cera para fazer o esboço na parede; muita disposição e cuidado na produção da arte. Uma dica é realizar um exercício com os estudantes para produzirem a sua própria tag, isto é, assinatura. Esse exercício pode ocorrer no próprio caderno, lembrando que as letras devem ser espaçosas, para serem preenchidas depois. É recomendado o formato grande para as letras, a fim de proporcionar maior domínio sobre o contorno das mesmas. Em seguida, eles podem acrescentar os detalhes desejados no fundo e no preenchimento da letra. Na imagem abaixo um registro de experiência com o grafismo do graffiti na instituição privada, denominada como Colégio Portal na cidade de Cuiabá em Mato Grosso. Essa atividade foi organizada pela professora de artes Rita Ximenes e pela Professora de Filosofia, Alana Chico, em conjunto com os estudantes do 8º ano da turma de 2016. Eles tiveram aulas sobre a arte graffiti, fizeram pesquisas, debates e apresentação de trabalho sobre a arte em questão. Após esse processo de estudo teórico, decidiram entre eles elaborar um graffiti que expressasse respeito, diversidade e representatividade étnica no espaço escolar. Os materiais utilizados para realizar essa arte foram latas de spray e tinta de artesanato. 115

Fonte: foto de acervo da autora.

A partir da apresentação das diferentes técnicas existentes no universo do graffiti, é importante ressaltar que a arte de rua não é um método a ser seguido como uma receita pronta. O que foi dissertado neste capítulo diz respeito à identidade de cada arte, seu modo de produção e de como ela poderá ser trabalhada dentro do espaço escolar. Para mais, o universo do graffiti não pode ser expresso desvinculado de uma necessidade verdadeira de narrar à sociedade e às vontades subjetivas do artista de rua. Além disso, os conjuntos de técnicas artísticas relacionados fazem parte da cultura, pois eles assimilam crenças, costumes, padrões, conhecimentos, entre outros elementos partes da sociedade. Afinal, a arte de rua ela só faz sentido à sua identidade, porque o seu pertencimento é público e está engajada nas expressões urbanas. Portanto, trazer o graffiti como ferramenta pedagógica no espaço escolar é possibilitar os estudantes e a equipe pedagógica novas experiências de conhecer a 116

sua própria cidade. É possibilitar um olhar múltiplo para a sociedade e as suas organizações sociais. É visualizar a geografia das ruas à reflexão filosófica sobre o local em que se vive. É conhecer a existência de uma linguagem própria das ruas e ver que elas também possuem narrativas complexas. É calcular que para cada lata de tinta de spray representa um milhão de vozes. Enfim, a arte graffiti como um possível encontro pedagógico no espaço escolar, tende auxiliar numa construção de aprendizagem significativo para os estudantes, além de despertar a criatividade, reflexão empoderamento.