<<

Revista Adusp Março 2009 O poder da palavra impressa: os livros de denúncia da tortura após o golpe de 1964 Flamarion Maués Doutorando em História na FFLCH-USP

67 Março 2009 Revista Adusp esde o golpe de 1964, existência e inibir a participação ção dos Destacamentos de Opera- a tortura voltou a ser política”. ções de Informações dos Centros utilizada como arma de Operações de Defesa Interna de repressão política. (DOI-CODI). É nesse período, en- O objetivo desse ar- O livro Torturas e torturados, tre 1969 e 1975, que serão assassi- tigo é apresentar de nados sob tortura ou desaparecerão Dforma sucinta alguns dos primeiros de Márcio Moreira (1966), a grande maioria dos mortos e de- livros publicados no Brasil que de- foi proibido e recolhido, saparecidos da ditadura brasileira. nunciaram a tortura de dissidentes Houve, ainda que de forma mui- políticos após o golpe. Trata-se de mas liberado pela justiça em to limitada, denúncias dessas atro- um levantamento preliminar, ape- julho de 1967, ano em que cidades, principalmente por meio nas de obras editadas até 1979. de cartas enviadas à imprensa por A tortura foi certamente o mais saiu a segunda edição familiares de pessoas que eram vil e covarde método utilizado presas ou sumiam repentinamente. pela ditadura brasileira de 1964 Algumas dessas cartas foram pu- contra os adversários políticos. Já em 1964 surgiram as primei- blicadas. Houve também denúncias Principalmente a partir de 1969, ras denúncias de torturas, que de- levadas a público por bispos e pela a organização de um sistema re- ram origem, em 1966, ao primeiro CNBB, ou pela OAB, mas a sua pressivo altamente centralizado e livro de denúncia desses fatos: Tor- repercussão era muito reduzida, em seletivo será uma das marcas do turas e torturados, de Márcio Mo- virtude do clima político ditatorial regime. A repressão e a tortura reira (Rio de Janeiro, Idade Nova, e da censura. não tiveram nada de improvisado: 1966). O livro foi proibido e reco- não se tratou de “excessos” de lhido pelo governo federal, sendo um ou outro militar mais violento. liberado pela justiça em julho de Foi algo planejado e estruturado, 1967, ano em que saiu a segunda realizado sob o comando das For- edição da obra. É um livro docu- ças Armadas, que empregaram mental, que procura registrar os seus homens, instalações e conhe- casos de tortura ocorridos naquele cimentos para esse fim. período da forma mais detalhada As vítimas da tortura levam suas possível. marcas para sempre. Não há como A partir de 1969, a estrutura de apagá-las. É um mal que não tem repressão será reorganizada sob no- fim, um crime cujas seqüelas são vos moldes, com o fim de combater permanentes e atingem também e eliminar a dissidência política, os familiares e amigos das vítimas. principalmente a armada, de forma Mas, para além desse aspecto, a seletiva. Em julho surgirá a Ope- tortura tem também um lado so- ração Bandeirante (OBAN), em cial, político, da maior importância. São Paulo, que inova ao criar uma Como destaca Maria Helena Mo- estrutura mais dinâmica para a re- reira Alves, em Estado e oposição pressão, em que o comando estava no Brasil – 1964-1984: “O uso gene- com as Forças Armadas, mas que ralizado e institucionalizado da tor- incluía também setores das polícias tura numa sociedade cria um ‘efeito civis estaduais. demonstrativo’ capaz de intimidar O modelo terá êxito e será insti- os que têm conhecimento de sua tucionalizado em 1970, com a cria-

68 Revista Adusp Março 2009

No exterior houve muitas de- grupos também colaboraram para Um dos primeiros livros edita- núncias das torturas praticadas no o surgimento das primeiras publica- dos no Brasil a denunciar a tortu- Brasil. Na Europa, na América ções — boletins, jornais e, depois, ra é o romance Bar Don Juan, de Latina (principalmente antes dos livros — editadas no exterior sobre Antonio Callado (Rio de Janeiro, golpes no e na Argentina) e o assunto. Formaram também a me- Civilização Brasileira, 1971). É nos Estados Unidos organizaram- mória desses casos. No Brasil, to- um romance crítico à luta armada, se grupos de exilados, de fami- davia, prevalecia o silêncio sobre a mas que registra a violência com liares e de pessoas, geralmente repressão e as torturas. que ela estava sendo combatida ligadas à universidade e a igrejas, pelo regime, ao mostrar como os que produziram dossiês sobre as personagens João e Laurinha fo- violações aos direitos humanos Romances de Antonio ram torturados. promovidas ou toleradas pela di- Callado (Bar Don Juan, Em 1973 outra obra de ficção tadura brasileira. Foram ações aborda o tema: As meninas, de Ly- de grande importância: apesar de 1971) e Lygia Fagundes gia Fagundes Telles (Rio de Janei- de praticamente não repercuti- (As Meninas, 1973) estão ro, José Olympio, 1973). Uma das rem no Brasil, devido à censura, personagens, Lia, é simpatizante tiveram grande repercussão in- entre os primeiros livros a dos grupos guerrilheiros de es- ternacional, criando constrangi- denunciar a tortura no Brasil querda e namora um guerrilheiro mentos ao governo. que está preso e que lhe fala das Ao reunirem farta documen- durante a Ditadura Militar torturas na prisão. No capítulo 6, tação sobre casos de torturas, surge a reprodução da carta de mortes e desaparecimentos, esses um preso político, denunciando

69 Março 2009 Revista Adusp com detalhes as torturas que havia 8) desaparecido em 14 de maio de ficção, mas sim como memórias. sofrido. De acordo com a autora, 1971. A mãe de Stuart, Zuzu An- O livro também foi editado pela trata-se de um relato verídico que gel, comprou vários exemplares nas Alfa-Omega. ela recebeu por carta de um preso bancas antes do recolhimento, e os Inventário de cicatrizes, livro de político e reproduziu na íntegra distribuiu a conhecidos2. poemas de Alex Polari (São Paulo/ no livro1. Em 1977, o romance Em câma- Rio de Janeiro, Ed. Global/Teatro Em 1974 apareceu o que talvez ra lenta (São Paulo, Alfa-Omega), Ruth Escolar/Comitê Brasileiro seja a primeira obra de não-fic- de Renato Tapajós, descreve ce- pela Anistia-RJ, 1978), descre- ção editada no país a abordar a nas de tortura sofridas por Aurora ve situações vividas pelo autor na questão da tortura, um livro de Maria Nascimento Furtado (sem prisão. pronunciamentos políticos. Trata- mencionar seu nome), militante Outro importante livro saiu se de Oposição no Brasil, hoje, de da Ação Libertadora Nacional em 1978: Memórias do exílio: Bra- Marcos Freire, advogado pernam- (ALN) morta em 10 de novembro sil 1964-19??, apresentado como bucano e deputado federal pelo de 1972. O livro foi proibido e seu “Obra coletiva dirigida por Pedro MDB, que concorria à eleição pa- autor preso. Celso Uchoa Cavalcanti e Jovelino ra o Senado naquele ano (e sairia Ramos sob o patrocínio de Paulo vencedor). O livro, da editora Paz Freire, e e Terra, à época já adquirida por Em 1978, Memórias Nelson Werneck Sodré”. O livro, Fernando Gasparian (proprietá- do exílio: Brasil 1964- que já havia sido publicado em rio também do jornal alternativo 1976 em Portugal, foi editado no Opinião), reproduz discursos e de- 19?? é publicado como Brasil pela Editorial Livramento. bates parlamentares. O capítulo 2, “obra coletiva” que teria o Entre diversos depoimentos e en- intitulado “Em defesa dos direitos trevistas com exilados brasileiros, humanos”, traz denúncias sobre “patrocínio” de , destaca-se o “Dossier Frei Tito”, o desaparecimento do ex-deputa- Abdias do Nascimento e que descreve em detalhes as atro- do Rubens Paiva, reproduzindo cidades a que Tito de Alencar Li- depoimento de sua esposa, Euni- Nelson Werneck Sodré ma foi submetido, levando ao seu ce Paiva, além de abordar vários suicídio, na França, em 1974. outros casos de pessoas presas e Em 1978 houve ainda a edição desaparecidas e de denúncias de Também em 1977, Cadeia para de A sangue-quente: A morte do jor- torturas. os mortos: Histórias de ficção po- nalista Vladimir Herzog (São Paulo, Outro livro de não-ficção que lítica (São Paulo, Alfa-Omega), Alfa-Omega), longa reportagem de apresentava um breve relato sobre um livro de contos de Rodolfo Hamilton Almeida Filho que havia um caso de tortura e morte de dis- Konder, apresentava descrições sido publicada originalmente no jor- sidente político foi o 20º. volume de torturas vividas pelo próprio nal alternativo EX, em novembro de da coleção “História da Repúbli- autor em 1975, quando esteve 1975. Desmontava a versão de sui- ca Brasileira”, do historiador Hé- preso no DOI-CODI/SP. O livro cídio apresentada para a morte de lio Silva, intitulado Dos Governos foi publicado na mesma coleção Herzog e descrevia o clima de medo Militares – 1969-1974 (São Paulo, de Em câmara lenta. e terror que se vivia naqueles dias. Editora Três). Publicado em 1975, O mesmo autor publicou em Devemos mencionar ainda os li- foi retirado das livrarias pela cen- 1978 Tempo de ameaça (Autobio- vros Das catacumbas: Cartas da pri- sura por tratar, entre as páginas grafia política de um exilado), em são (1969-1971), de Frei Betto (Rio 132 e 136, da morte de Stuart Ed- que as mesmas cenas de tortura de Janeiro, Civilização Brasileira) e gar Angel, militante do Movimento são descritas, mas dessa vez não Ensaio Geral, de Antonio Marcello Revolucionário 8 de Outubro (MR- mais como parte de um texto de (São Paulo, Alfa-Omega).

70 Revista Adusp Março 2009

Em 1979 são lançados diversos títulos que têm a tortura como tema central ou importante, entre eles Tortura, de Antonio Carlos Fon, e Dossiê Herzog, de Fernando Pacheco Jordão

Foi em 1979 que a tortura pas- sou de fato a ser um tema recorrente em diversos li- vros. O clima político um pouco mais aberto, a cam- panha da Anistia e as dis- cussões sobre reorganização partidária mostravam que o país começava a entrar em um novo momento político. Temos aí já uma variedade de obras que abordam a questão da tortura, seja como um de seus temas centrais, seja como um dos elementos do livro. Entre os livros que abordam a tortura como um de seus te- mas centrais temos: - Desaparecidos políticos: Pri- sões, seqüestros, assassinatos, or- ganizado por Reinaldo Cabral e Ronaldo Lapa (Rio de Janeiro, Edições Opção e CBA-RJ). Orga- nizado pelo CBA-RJ, é uma espé- cie de dossiê de casos de pessoas presas, torturadas, mortas ou de- saparecidas, reunindo informações detalhadas sobre cada caso. - Tortura: A história da repres- são política no Brasil, do jornalista

71 Março 2009 Revista Adusp Antonio Carlos Fon (São Paulo, de depoimentos, que ocorreria a As denúncias no exterior tam- Global). O livro é conseqüência partir daquele ano. Desses livros, bém tiveram um peso importante de uma reportagem de Fon para vários traziam relatos de torturas para que tais notícias se propagas- a revista Veja e mostra em deta- sofridas pelo próprio autor ou por sem internacionalmente, caracte- lhes como havia sido organizado pessoas com quem ele conviveu. rizando o governo brasileiro como o aparelho repressivo do regime Alguns deles: Milagre no Brasil, de uma ditadura que torturava pre- militar e como a tortura de presos (Rio de Janeiro, Ci- sos políticos, comparável a Grécia, políticos passara a ser utilizada de vilização Brasileira); Nas profun- Portugal, Espanha, Paraguai e Chi- forma sistemática e “científica” das do inferno, de Arthur Poerner le, na mesma época. contra os “subversivos”. A des- (Rio de Janeiro, Codreci) escrito Todavia, o papel dos livros que crição das técnicas de suplício é em 1976 mas publicado no Brasil no Brasil primeiro fizeram esta feita de forma circunstanciada, apenas em 1979; O que é isso, com- denúncia não pode ser subestima- de modo impactante para o leitor. panheiro?, de Fernando Gabeira do. Alguns desses livros tiveram Logo após a reportagem ter si- (Rio de Janeiro, Codecri); Poemas sucesso de vendas, ocupando as do publicada, o então ministro do do Povo da Noite, de Pedro Tierra, listas dos mais vendidos à época, Exército, general Fernando Beth- pseudônimo de Hamilton Perei- como é o caso de Tortura, Dossiê lem, pediu o enquadramento do ra da Silva (São Paulo, Editorial Herzog e O que é isso, companhei- jornalista no artigo 14 da Lei de Livramento); Confesso que peguei ro?. Segurança Nacional. em armas, de Pinheiro Salles (Belo O impacto desses trabalhos se - Dossiê Herzog: Prisão, tortura Horizonte, Editora Veja); Esquer- dava por constituírem um conjun- e morte no Brasil (São Paulo, Glo- da armada: testemunhos dos presos to de informações até certo ponto bal), de Fernando Pacheco Jor- políticos do Presídio Milton Dias consolidadas sobre os métodos de dão, uma longa reportagem que Moreira no Rio de Janeiro, organi- combate aos grupos de oposição desmonta detalhadamente a farsa zado por Luzimar Nogueira Dias clandestinos que atuaram no Bra- sobre a morte de Herzog em 1975 (Vitória, Edições do Leitor). sil entre o final dos anos 1960 e e narra todo o movimento de so- Breves conclusões. Feito este meados da década de 1970, com lidariedade e de resistência a que sumaríssimo levantamento das diversos testemunhos em primeira sua morte deu origem. principais obras publicadas nesse mão sobre as torturas, mortes e - 131-D. Linhares: Memorial da período sobre o tema, podemos desaparecimentos. prisão política, de Gilney Amorim concluir que os livros não foram Parece razoável deduzir que Viana (Contagem, Editora Histó- pioneiros na denúncia da tortu- estes livros cumpriram um certo ria/Comitê Brasileiro pela Anistia/ ra contra dissidentes políticos no papel na denúncia das arbitrarie- Movimento Feminino pela Anis- Brasil. Mesmo com as severas res- dades da ditadura e colaboraram tia). Traz as memórias e as refle- trições que a imprensa sofria, jor- para que este tema tão impor- xões do autor, então ainda preso nais e revistas estamparam em suas tante — e tão sensível para os no Rio de Janeiro. páginas algumas notícias e, prin- militares, muitos dos quais ne- O livro de Viana era de certa cipalmente, cartas que tratavam gam até hoje que existisse tortura forma sintoma do início de um do tema no período mais duro da — entrasse na pauta do debate boom de livros de memórias e repressão, entre 1969 e 1975. político nacional.

Notas * Este artigo tem como base a comunicação apresentada no evento “200 anos da imprensa no Brasil”, organizado pelo CEDEM/Unesp, em 8 e 9/10/2008. “O poder da palavra impressa” foi o título de uma das mesas. 1 SUCUPIRA, Elizabeth. “O engajamento de ”. Publicado originalmente por em 01/02/2005. Disponível em: . Acesso em 3/10/2008. 2 TELES, Janaina de Almeida. Os herdeiros da memória: a luta dos familiares de mortos e desaparecidos políticos no Brasil. Dissertação de mestrado em História, FFLCH-USP, 2005.

72