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Elaboração das vivências psíquicas: o papel da literatura

Isabela Paixão Rodrigues* Fernanda Gonçalves Moreira**

Resumo Este artigo tem como objetivo explorar como Palavras-chave a literatura pode auxiliar na elaboração de vi- Literatura, vências psíquicas, não apenas para quem escre- processo criativo, , ve como também para quem lê. Com base nos Carlos Drummond textos de C. G. Jung sobre psicologia analítica e de Andrade, literatura, e mantendo o enfoque principal no Harry Potter. processo criativo e não na interpretação da obra, o presente artigo avalia como diferentes tipos de textos (poemas, letras de músicas e livros) de épocas distintas podem representar confli- tos surgidos do inconsciente do autor ou atuar na individuação do leitor. „

* Médica residente em psiquiatria pela Escola Paulista de Medicina. E-mail: ** MD-PhD, psiquiatra e psicoterapeuta, analista junguiana pela SBPA, professora adjunta da UNIFESP. E-mail: .

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Elaboração das vivências psíquicas: o papel da literatura

1. Introdução significativo na elaboração das vivências psíqui- A literatura, também conhecida como sexta cas e, portanto, na saúde mental daqueles que arte, é fonte inesgotável de estudos. Os movi- as produzem. Paralelamente, aquele que ler o mentos literários retratam a realidade do perío- produto dessa elaboração, ainda que sem pre- do histórico em que estão inseridos, e uma aná- tensões analíticas ou interpretativas, também lise detalhada da obra de um autor específico será impactado e lidará com questões próprias. pode dizer muito sobre a vida desse indivíduo As relações entre psicologia analítica e obra de ou sua maneira de interpretar a mesma. Esse tipo arte descritas por Jung serão exemplificadas com de interpretação tem como objeto de estudo a Vinicius de Moraes, , , Fernan- arte em si, ou seja, suas considerações artísticas, do Pessoa, Carlos Drummond de Andrade e a a essência daquilo que está sendo retratado. Uma saga Harry Potter, mostrando como cada produ- outra maneira de considerar e refletir sobre a lite- ção artística pode ter impactado seus autores e ratura é direcionando o foco para o processo de consumidores. criação, ou seja, considerando o impacto da pro- A análise inclui também letras de música: ain- dução de determinada obra, e não a biografia ou da que o resultado final seja diferente, o proces- a anamnese do artista que a produziu (PALOMO, so de criação tem sobreposições importantes, e 2014, p. 40). as diferenças são cada vez mais tênues. Desde a Jung realça a importância de que as obras de utilização de trechos de obras na composição de arte não sejam avaliadas de maneira científica, letras – como, por exemplo, a citação do capítulo uma vez que tal ótica induziria um reducionismo 13 de Coríntios na música “Monte Castelo”, da prejudicial à total compreensão da obra (JUNG, banda Legião Urbana – até a musicalização com- 1922/2007, par. 108). A obra de arte, de acordo pleta de uma obra, como a que transformou uma com Jung, é maior do que o indivíduo que a es- crônica de Arnaldo Jabor na música “Amor e sexo”, creve; naturalmente trará características de seu por Rita Lee (LEE, 2016, p. 255), podemos notar autor, mas também sairá, como Pallas Athene que o processo de escrita literária e de escrita da cabeça de Zeus, formada e pronta a seus pró- musical não são apenas parecidos: por vezes, são prios moldes (JUNG, 1922/2007, par. 110). Por- o mesmo. A percepção dos dois processos de cria- tanto, manter a análise restrita à visão exata e ção artística como algo semelhante, talvez até científica, vinculando todo o significado da obra mesmo único, é ratificada pela premiação do com- à biografia do artista que a produziu, leva a uma positor americano Bob Dylan com o Prêmio Nobel privação de nuances significativas. A arte é maior de Literatura, em 2016. que seu artista, é livre das estreitezas e dificulda- Portanto, este artigo se propõe a aplicar a teo- des do que é pessoal, capaz de se desenrolar de ria que une o processo de criação artística à psi- apenas um indivíduo e atingir o coletivo, tornan- cologia analítica e observá-la em prática em diver- do-se parte do mundo interno de inúmeras ou- sas obras de variados estilos, pelo ponto de vista tras pessoas. Esse caráter a torna muito ampla do autor, do leitor e, de modo mais detalhado, para uma visão científica; porque se a ciência é o sobre como a arte se mistura com o mundo inter- conhecimento e a observação do mundo e de suas no e o processo de individuação de cada um. transformações, no que diz respeito aos indiví- duos e seus processos mentais, a arte é um agen- 2. Aquele que escreve te dessas transformações. Esta avaliação começa, naturalmente, a partir Este artigo tem como proposta justamente do indivíduo em que se inicia a obra literária. avaliar como as obras literárias podem ter papel Jung considera o autor o “solo” no qual a arte se

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desenvolve: ou seja, o produto literário carrega- Animal e vegetal rá características da pessoa que o escreveu, mas Que mata a vida da terra também se moldará à própria vontade (JUNG, E mata a vida do ar 1922/2007, par. 115). Ele também faz a distinção Mas que também mata a guerra... entre dois processos criativos: o introvertido, Bomba atômica que aterra! aquele em que o artista controla cada palavra que Pomba atônita da paz! é colocada no texto, produzindo uma obra mais estética e com significados ocultos menos evi- Pomba tonta, bomba atômica dentes; e o extrovertido, em que o artista é su- Tristeza, consolação jeito a um produto sobre o qual tem menor con- Flor puríssima do urânio trole, expressando sua natureza mais íntima, a Desabrochada no chão qual nunca teria coragem de manifestar conscien- Da cor pálida do helium temente, resultando numa obra um pouco mais E odor de radium fatal simbólica (JUNG, 1922/2007, par. 111). Lœlia mineral carnívora Esses dois processos não são necessaria- Radiosa rosa radical. mente exclusivos – Jung cita uma situação exem- plo de um autor tão absorto em sua obra que Nunca mais, oh bomba atômica sente que tem pleno comando sobre o que pro- Nunca, em tempo algum, jamais duz mas, na verdade, está sendo dirigido pelo Seja preciso que mates inconsciente (JUNG, 1922/2007, par. 113) – e nem Onde houve morte demais: mesmo um ou outro é característico de um de- Fique apenas tua imagem terminado autor. Na realidade, todo processo Aterradora miragem criativo parece ter algo de extrovertido e algo de Sobre as grandes catedrais: introvertido, em proporções diversas. O interjogo Guarda de uma nova era entre introversão e extroversão completaria o pro- Arcanjo insigne da paz! cesso de elaboração. Para exemplificar essa diferença na obra de um A rosa de Hiroshima mesmo artista, seguem dois poemas de Vinicius Pensem nas crianças de Moraes, “A bomba atômica – canto II” e “A rosa Mudas telepáticas de Hiroshima” (MORAES, 1954): Pensem nas meninas Cegas inexatas A bomba atômica – canto II Pensem nas mulheres A bomba atômica é triste Rotas alteradas Coisa mais triste não há Pensem nas feridas Quando cai, cai sem vontade Como rosas cálidas Vem caindo devagar Mas oh não se esqueçam Tão devagar vem caindo Da rosa da rosa Que dá tempo a um passarinho Da rosa de Hiroshima De pousar nela e voar... A rosa hereditária Coitada da bomba atômica A rosa radioativa Que não gosta de matar! Estúpida e inválida A rosa com cirrose Coitada da bomba atômica A antirrosa atômica Que não gosta de matar Sem cor sem perfume Mas que ao matar mata tudo Sem rosa sem nada.

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Os dois poemas não têm em comum apenas tendência de projetar nos outros a razão e a so- o poeta, mas também o tema central – entretan- lução para nossos conflitos faz da “paz” da bom- to, diferem diametralmente quanto à abordagem ba atômica doente, cirrótica (doença crônica grave desse tema. A primeira obra tem uma construção associada ao alcoolismo, àqueles que adoecem que parece mais calculada, sugerindo um proces- e eventualmente morrem por não conseguirem so introvertido, tentando racionalizar o atentado deixar a ilusão). atômico às cidades japonesas de Hiroshima e Comparando as duas obras, é perceptível que Nagasaki, que marcou o fim da Segunda Guerra o inconsciente se manifesta e se impõe apesar Mundial. Nessa poesia, Vinicius coloca a bomba das tentativas do consciente de privilegiar a óti- como assassina também da guerra, um instru- ca da razão sobre os acontecimentos. Também é mento de paz. A impressão de que foi uma tenta- perceptível o caminho de elaboração do autor. tiva de elaborar um acontecimento cujo impacto Em “A rosa de Hiroshima”, com o evento traumá- não tinha precedentes é fortalecida pela poesia tico melhor trabalhado psiquicamente, é possível seguinte, “A rosa de Hiroshima”, que é muito mais ao poeta uma maior aproximação da emoção, sem simbólica e emotiva. tantos disfarces ou racionalizações. Se entender- A segunda obra fala com seus leitores por mos o conjunto dos poemas como o processo de meio de símbolos tanto visuais como significa- elaboração de Vinicius, o autor passou pelo pro- tivos. A escolha do termo “rosa” alude tanto à cesso de introversão e extroversão até chegar a imagem da explosão da bomba como a conceitos um certo equilíbrio em relação ao tema. mais subjetivos, como a alusão ao feminino, à Jung, no parágrafo 448 de Símbolos da trans- delicadeza e ao não belicismo. O argumento formação, discute que, por meio da introversão, explorado racionalmente em “A bomba atômi- um aspecto arquetípico seria ativado e humani- ca – canto II” pode ajudar a compreender a es- zado, possibilitando a emergência de uma ideia colha de uma flor como metáfora para a bomba criativa salvadora, para um indivíduo ou para uma atômica: esta, como dito no primeiro poema, é comunidade. uma agente do fim da guerra, e essa promessa, A imposição do inconsciente, necessária para a promessa de paz, é simbolicamente tão bela o surgimento das obras simbólicas, é chamada quanto as rosas. por Jung de complexo autônomo, os pensamen- No entanto, nessa obra mais extrovertida e tos que se formam no inconsciente para, só en- carregada emocionalmente, Vinicius já contesta tão, irromperem para a porção consciente do indi- essa beleza. As rosas também são as mulheres víduo (JUNG, 1922/2007, par. 122). Tal conceito é e crianças que foram feitas vítimas, agora cáli- exemplificado pela descrição de Manuel Bandeira das, cegas e inexatas. Tão cegas e inexatas, é sobre sua produção literária: possível argumentar, quanto as pessoas que dis- pararam o ataque e acreditavam que isso traria Acontecem-me os poemas inesperadamente e, a paz novamente, que solucionaria magicamente às vezes, fulminantemente. De tal modo que a todos os problemas que haviam culminado na- minha impressão a posteriori é que não fiz o poe- quela guerra. ma: ele é que se faz em mim. (SENNA, 1993). Acreditar em soluções mágicas é uma tendên- cia natural do ser humano. É, assim como a rosa Esses conceitos e exemplos mostram que de Vinicius, hereditária, adjetivo que também tem tanto a teoria da psicologia analítica de Jung importante carga simbólica: além da procura por como a leitura e relato da obra de alguns poetas soluções mágicas, é da natureza humana, tam- importantes da literatura brasileira concordam bém, a tendência a conflitos e guerras. A heredi- que o processo de criação artística, por vezes, tariedade dessas características sugere que a sai do inconsciente do autor, expondo ideias e

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sentimentos que o indivíduo não acessaria de Porque era uma canção para Sandra [apelidada outra maneira, permitindo-lhe analisar essas Drão] e para mim. Eu me lembro de estar senta- considerações do inconsciente para incorporá- do no chão, anotando frases no caderno, com o -las à sua elaboração das vivências e angústias violão do lado, e de repente sentir o sufoco do pessoais. coágulo da criação, e ao mesmo tempo a imi- A criação artística muitas vezes serve ao ar- nência da explosão da via criativa, e não aguen- tista de caminho de elaboração, como visto aci- tar, saindo dali e indo pro meu quarto me deitar, ma, no processo de Vinicius de Moraes em ela- então, aquele coágulo se dissolver, criando fi- borar o horror atômico, que chocou toda uma letes que se encaminhavam pra aqui e pra ali… geração. Dramas pessoais também são elabora- Aí o cérebro e o coração se intumesciam, algu- dos por meio do trabalho artístico, como expli- mas ideias fluíam, e dois, três ou quatro versos cou Gilberto Gil ao discorrer sobre o processo de saiam. (RENNÓ, 2003, p. 305). composição da música “Drão” (GIL, 1981): Neste relato, Gil descreve um momento de gran- Drão, o amor da gente é como um grão, de introversão, que, a custo de muito sofrimento, Uma semente de ilusão, vai se revertendo paulatinamente. Jung chama Tem que morrer pra germinar, atenção para o risco inerente a esse processo: Plantar nalgum lugar, Ressuscitar no chão, nossa semeadura, Se a libido fica presa no reino maravilhoso do Quem poderá fazer aquele amor morrer, mundo interior, o homem se transforma em som- Nossa caminhadura, bra para o mundo exterior, ele está morto ou gra- Dura caminhada pela estrada escura. vemente doente. Mas se a libido consegue des- Drão, não pense na separação, vencilhar-se e subir à tona, o milagre aparece: Não despedace o coração, a viagem ao submundo é uma fonte da juventu- O verdadeiro amor é vão, estende-se infinito, de para ela e da morte aparente desperta novo Imenso monolito, nossa arquitetura, vigor. (JUNG, v. 5, par. 449). Quem poderá fazer aquele amor morrer, Nossa caminha dura, É interessante perceber que o próprio artis- Cama de tatame, pela vida afora. ta, uma vez tendo vencido esses riscos e volta- Drão, os meninos são todos sãos, do, junto com a libido, dessa viagem ao mundo Os pecados são todos meus, interior, pode apresentar também compreensão Deus sabe a minha confissão, não há do processo de elaboração que acabou de o que perdoar, vivenciar. Por isso mesmo é que há de haver mais Rita Lee, em sua autobiografia, faz a associa- compaixão, ção entre um momento extremamente traumáti- Quem poderá fazer aquele amor morrer co e uma música composta anos depois: a artis- Se o amor é como um grão, ta conta que foi a última a saber de sua saída do Morre nasce, trigo grupo , quando lhe comunicaram Vive morre, pão que haviam decidido retirá-la por “não ter cali- bre como instrumentista” para seguir a direção Sobre o momento de composição, Gil explica que estavam tomando. Rita juntou suas coisas, que sua criação “apresentou altos graus de difi- pegou o carro e a estrada, parou no acostamen- culdade”, pois ela lidava com um assunto den- to e conta que “chorei, gritei, descabelei, xinguei so – o amor e o desamor, o rompimento, o fim de feito louca”. Finalizada a “cena”, se recompôs e um casamento: voltou para a casa dos pais (LEE, 2016, p. 113).

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Essa vivência retorna anos depois; nas palavras Pelo contrário, as obras consequentes de um com- da própria Rita: plexo autônomo estão repletas de símbolos. Jung define símbolo como “expressão de uma concep- Na letra da música “Mutante”, não sei se contei ção para a qual ainda não se encontrou outra ou um filme triste ou se uma personal joke para melhor” (JUNG, 1922/2007, par. 105). Uma vez que exorcizar o vudu. Depois de tanto tempo, eis que a obra simbólica tem significados passíveis de in- me reconheci como a verdadeira mutante, aque- terpretação, seu significado afeta diferentemente la coisa minha de não ser fixa no rock de uma cada um dos seus leitores, dependendo do incons- nota só, de sair do conforto ilusório para viver na ciente e do contexto em que está inserido cada fragilidade da dúvida. (LEE, 2016, p. 187). indivíduo. A relação entre a criação da obra sim- bólica e sua leitura pode ser avaliada na poesia A própria artista, após passar pelo processo “Autopsicografia”, de Fernando Pessoa: de criação e elaboração, conseguiu associá-lo à experiência que foi capaz de elaborar melhor por Autopsicografia meio da composição. O poeta é um fingidor. A descrição de Gilberto Gil sobre o processo de Finge tão completamente composição de “Drão” também demonstra certa Que chega a fingir que é dor compreensão, ainda que prática e não teórica, so- A dor que deveras sente. bre aspectos analíticos do processo criativo: E os que leem o que escreve, Outra exigência que eu me colocava era de não Na dor lida sentem bem, me precipitar. Eu queria que o fazer, a prática, o Não as duas que ele teve, empirismo da realização fossem observados Mas só a que eles não têm. pelo meu ser ali à distância: eu tinha que con- templar o feitio da canção. Ao lado do esforço, E assim nas calhas de roda da tensão concentrada, tinha que haver a des- Gira, a entreter a razão, contração, o relaxamento concentrado – as duas Esse comboio de corda coisas, e todas essas exigências sobrepostas Que se chama coração. determinando o modo de compor a canção. (PESSOA, 1942) (RENNÓ, 2003, p. 305). O ato da leitura promove uma introversão pro- Essa vivência exemplifica muito bem a procu- gressiva por parte do leitor, que gradativamente ra de equilíbrio entre introversão e extroversão, vai se fechando para seu entorno e mergulhando o controle da forma e o fluxo das emoções. naquele universo paralelo proposto pelo texto. O resultado desses processos artísticos, no Esse universo, por sua vez, vai se misturando com entanto, não pertence apenas ao seu autor; tam- o mundo interno do leitor, para onde este é leva- pouco serve somente às elaborações do artista. do, completando o processo de introversão. A obra de arte tem a capacidade de se comunicar A obra simbólica é naturalmente inquietante, com os dramas conscientes e inconscientes da- justamente por trazer significados ocultos que queles que a admiram, possibilitando também a acessam questões internas do leitor. Ao mesmo estes uma imersão em seus mundos internos. tempo, essa característica provocativa também traz à tona questões inconscientes daquele que 3. Aquele que lê interage com os símbolos, permitindo, por meio A expressão do inconsciente do autor não da introversão, o acesso a questões individuais costuma ser feita de maneira clara e objetiva. antes suprimidas no próprio inconsciente, assim

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como aconteceu com o autor da obra ao criar tal As casas espiam os homens símbolo. que correm atrás de mulheres. Um estudo qualitativo conduzido na Escola A tarde talvez fosse azul, Paulista de Medicina na Universidade Federal de não houvesse tantos desejos. também encontrou conclusões a res- O bonde passa cheio de pernas: peito do impacto da literatura em seu leitor (SIL- pernas brancas pretas amarelas. VA, 2016). Nesse estudo, um grupo de alunos e Para que tanta perna, meu Deus, pergunta profissionais da área se encontraram semanal- meu coração. mente ao longo de seis meses para discutir a Porém meus olhos leitura e as interpretações de um livro (Os anos não perguntam nada. de aprendizado de Wilhelm Meister, de Goethe), O homem atrás do bigode enquanto os pesquisadores analisavam as dis- é sério, simples e forte. cussões, a interpretação trazida por cada parti- Quase não conversa. cipante e a análise sobre a experiência feita por Tem poucos, raros amigos cada indivíduo. Também estudaram a história o homem atrás dos óculos e do bigode, oral de vida de quatro participantes para com- Meu Deus, por que me abandonaste preender a influência das vivências pessoais na se sabias que eu não era Deus leitura da obra. Ao fim das análises, perceberam se sabias que eu era fraco. que a validade de uma leitura não é medida pelo Mundo mundo vasto mundo, conhecimento que ela proporciona mais do que se eu me chamasse Raimundo pelas percepções que o indivíduo teve durante seria uma rima, não seria uma solução. essa leitura. Um dos participantes ponderou que Mundo mundo vasto mundo, as mudanças provocadas por uma leitura ficam mais vasto é meu coração. no inconsciente do indivíduo, alterando-o de ma- Eu não devia te dizer neira gradual e, por vezes, imperceptível. Outra, mas essa lua ainda, disse que “ao falar sobre a obra, falamos mas esse conhaque sobre nós distraidamente” (SILVA, 2016, p. 97). botam a gente comovido como o diabo. Entre muitas outras conclusões, o estudo afir- (ANDRADE, 1930, p. 11) ma que a arte é sempre modificadora (SILVA, 2016, p. 97). Ao longo de toda essa obra, Drummond dá vazão a um sentimento de estranhamento e de 4. Caminho da individuação não pertencimento ao mundo em que se encon- Um livro ou uma poesia pode colaborar com a tra; um conflito é natural, uma vez que cada pes- elaboração de um momento ou circunstância. Mas soa é de fato única e precisa dessa constatação autores também produzem uma obra inteira em para iniciar seu processo de individuação. Um nome de uma elaboração. Drummond, notada- exemplo de elaboração desse estranhamento é mente, elaborou sua melancolia ao longo de sua a já citada música “Mutante”, na qual Rita Lee já obra. Esse autor começa com a fase gauche, na se entendeu e se aceitou única, mutante. qual a ironia transborda a angústia de um eu Em “Poema das sete faces”, no entanto, maior que o mundo, isolado em pessimismo, bem Drummond está na primeira fase do processo. Ele representada pelo “Poema das sete faces”: descreve um desejo que ainda não está pronto para aceitar, e esse conflito torna o mundo dis- Quando nasci, um anjo torto torcido: casas vendo pessoas, pessoas resumi- desses que vivem na sombra das a pernas, um coração maior que o mundo. disse: Vai, Carlos! ser gauche na vida. Coração esse que é vasto de tantas dúvidas, que

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reconhece sua fraqueza e a questiona a Deus, Um amor que não tem descrição! Algo realmen- mas que ainda é inibido e silenciado atrás da fi- te MÁGICO nasceu dentro de mim quando, aos gura do homem de bigode, que não deixa seus 8 anos, eu li Harry Potter e a Pedra Filosofal ! conflitos chegarem a seus olhos. É possível apon- Isso faz parte da minha vida e da minha histó- tar que nem tudo foi elaborado ainda na produ- ria! Cada pequeno detalhe que passei ao escre- ção dessa obra: Drummond fala, ao fim, que fo- ver meu próprio livro, indo fantasiada ver os fil- ram “a lua” e “o conhaque” que o botaram como- mes, dar autógrafos, tirar fotos, aos 11 anos quan- vido, afastando-se da angústia que ainda não está do eu chorei por não receber a carta me convo- preparado para reconhecer como sua. cando para a escola! Se algum dia meus filhos Após essa primeira fase, Drummond passa tiverem o prazer de ler e assistir Harry Potter a gradativamente a se abrir para o mundo e a per- vida deles vai estar completa! São 8 anos do ceber o sofrimento deste. Passa a se perceber relacionamento mais perfeito, encantador, sin- menor que o mundo, talvez por vislumbrar a co- cronizado e mágico que alguém possa imagi- nexão com a totalidade, talvez desfazendo uma nar! 2005/2013/infinito! (ANSELMO, 2012). superidentificação com o ego. Ao desfazer a in- flação de ego, o poeta sai da posição de impo- Não é difícil compreender a relação da “gera- tência gerada pela idealização do que deveria ser. ção Harry Potter” com a saga de mesmo nome. Na Na sua fase social, marcada pela vontade do poe- época em que Harry Potter foi lançado, poucas ta de participar e tentar transformar o mundo, obras tratavam o público infanto-juvenil com tan- Drummond mostra maior percepção de potên- ta seriedade. Prova disso é que o primeiro livro cia: “Ó vida futura! nós te criaremos” (ANDRADE, da saga, Harry Potter e a pedra filosofal, foi recu- 1940, p. 46). sado algumas vezes antes de ser publicado, prin- Jung comenta, sobre o caminho da individua- cipalmente pela temática e pelo tamanho da obra. ção, que, quanto maior o grau de individuação, Portanto, os livros de J. K. Rowling introduziram, maior a conexão do sujeito com a humanidade. num mercado escasso de material semelhante, Há, ainda, a situação de uma obra ou uma saga um protagonista jovem, que não apenas passa servir de alicerce para a elaboração de toda uma por várias etapas da jornada arquetípica do herói geração. O recente fenômeno Harry Potter é um como também lida com problemas comuns de exemplo. Uma medida do impacto dessa obra so- jovens desta idade, seja em relação a amizades, bre o público infanto-juvenil foi dada pelo traba- relacionamentos ou autoconhecimento. O univer- lho de Gwilym e colaboradores, que acompanha- so mágico compôs um apelo extra para atrair o ram os registros de atendimentos de emergência interesse dos jovens leitores, mas o que tornou por trauma osteomuscular no Reino Unido nos Harry Potter tão marcante na vida de toda uma fins de semana de verão. A constatação surpreen- geração foi justamente oferecer a possibilidade dente foi que houve uma queda de quase 50% nos de se identificar com um protagonista, fazendo atendimentos em fins de semana de lançamento dessa identificação uma ferramenta de elabora- dos livros da série. O autor inicia seu artigo com a ção da passagem para a vida adulta. provocação: “Sobre as crianças deste milênio, po- A “geração Harry Potter” é principalmente demos ter duas certezas: elas vão se machucar, e composta por indivíduos que, literalmente, cres- elas (provavelmente) lerão Harry Potter” (GWILYM ceram com os livros, que estavam no começo da et al., 2005, p. 1505; tradução nossa). adolescência quando a saga teve início e eram Em 30 de abril de 2012, lia-se o seguinte de- jovens adultos na sua conclusão, dez anos de- poimento, numa rede social, no perfil de uma pois. Esses jovens acompanharam o processo de adolescente de 17 anos, ilustrando o sentimen- amadurecimento do protagonista juntamente com to da “geração Harry Potter”: o seu próprio; ainda que não fossem bruxos, eram

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também adolescentes. Assim como as diferen- essência da arte transcende a compreensão do tes fases da obra de Carlos Drummond de Andra- artista e, até mesmo, suas experiências pessoais, de podem servir como “fio-guia” para leitores que mas o inconsciente do autor não deixa de ser estão passando por uma elaboração semelhan- onde a obra e seus símbolos se desenvolvem, te à do poeta, a série Harry Potter permitiu que a fazendo com que sejam representação e não có- geração de jovens da época se identificasse com pia ou depoimento um do outro. um protagonista que, num universo mágico e en- Aqueles que produzem arte transformam o cantador, também passou por importantes situa- conteúdo do seu inconsciente em símbolos que ções de conflitos e enfrentamentos sombrios. serão lidos e interpretados de maneiras distin- Dessa forma, ao fazer a introversão no universo tas, dependendo do inconsciente daquele que da saga e fundi-lo ao seu próprio mundo inter- for apreciá-la. Como diz Mãe, ao ser publicado, no, os jovens da “geração Harry Potter” não ape- o livro ultrapassa o autor, que não pode contro- nas puderam entender melhor seu amadureci- lar se os outros lerão sua obra como ele acha mento e processo de individuação como também que deve ser lida (MÃE, 2016). Dessa forma, uma criaram a característica identificação com a série, obra literária pode ajudar seus leitores de manei- um vínculo que foi possibilitado pela fusão des- ras distintas entre si e distintas da maneira como se universo com uma fase tão importante na for- ajudou seu escritor, uma vez que acessa temas mação pessoal. ocultos no inconsciente de cada um, oferecendo- -lhes uma nova elaboração ou, ao menos, uma 5. Considerações finais perspectiva diferente. Como Jung também diz, no O escritor Valter Hugo Mãe diz que espaços capítulo já citado, o artista é um indivíduo um carregados de livros são semelhantes a multi- pouco inadaptado, que segue por caminhos dife- dões, uma vez que os livros representam pesso- rentes dos demais e acha aquilo que o restante as (MÃE, 2016). É possível concordar com essa da sociedade sente falta sem saber. „ afirmativa mesmo sem tentar interpretar e aco- plar a obra de arte à vida pessoal do artista; a Recebido em: 4/3/2017 Revisão: 26/5/2017

Abstract Psychic experiences’ elaboration: the role of literature

This article aims to explore how literature can the interpretation of the work, the present article help to elaborate psychic experiences, not only for evaluates how different types of texts (poetry, the one who writes it but also for the one who reads lyrics and books) from different periods can repre- it. Based on Jungian texts on analytical psychology sent a conflict brought from the author’s uncon- and literature and focusing the creative process not scious or act on the reader’s individuation. „

Keywords: literature, creative process, Vinicius de Moraes, Carlos Drummond de Andrade, Harry Potter.

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Resumen Elaboración de experiencias psíquicas: el papel de la literatura

Este artículo pretende explorar cómo la litera- interpretación de la obra, se evalúa cómo diferen- tura puede ayudar a elaborar experiencias psíqui- tes tipos de textos (poesía, letras de canciones y cas, no sólo a quien la escribe sino también a libros) de distintos períodos pueden representar quien la lee. En base a los textos junguianos so- un conflicto surgido del inconsciente del autor o bre psicología analítica y literatura y con el enfoque actuar sobre la individuación del lector. „ principal en el proceso creativo en lugar de en la

Palabras clave: literatura, proceso creativo, Vinicius de Moraes, Carlos Drummond de Andrade, Harry Potter.

Referências bibliográficas ANDRADE, C. D de. Alguma Poesia. Belo Horizonte: Edições LEE, R. Rita Lee: uma autobiografia. São Paulo: Globo Livros, Pindorama, 1930. 2016.

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