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Educação E-ISSN: 2177-6210 [email protected] Universidade do Vale do Rio dos Sinos Brasil

Queiroz Ferraz, Ana Rita Crônicas risíveis da corte universitária Educação Unisinos, vol. 12, núm. 1, enero-abril, 2008, pp. 56-61 Universidade do Vale do Rio dos Sinos São Leopoldo, Brasil

Disponível em: http://www.redalyc.org/articulo.oa?id=449644445008

Como citar este artigo Número completo Sistema de Informação Científica Mais artigos Rede de Revistas Científicas da América Latina, Caribe , Espanha e Home da revista no Redalyc Projeto acadêmico sem fins lucrativos desenvolvido no âmbito da iniciativa Acesso Aberto Educação Unisinos 12(1):56-61, janeiro/abril 2008 © 2008 by Unisinos Crônicas risíveis da corte universitária

Risible chronicles of the university court

Ana Rita Queiroz Ferraz [email protected]

Resumo: A Universidade ao incorporar aos seus processos uma certa sisudez, contribui para fortalecer as narrativas hegemônicas e, conseqüentemente, o sentido “moral” da ciência. Em oposição, o riso, ambivalente e restaurador, dialoga com a seriedade aberta, na direção de uma Gaia Ciência. Avessos a toda forma de dogmatismo e fixidez, a concepção histórica do tempo e o caráter utópico, características do riso, permitem o deslocamento de perspectivas, possibilitando uma visão anticanônica da Universidade. A crônica universitária, ao narrar o cotidiano da vida institucional, reconhece-a como um corpo aberto e inacabado, incitando ao exercício da auto-ironia.

Palavras-chave: jogos de poder, humor, diálogo.

Abstract: The university incorporates too much rigidity in our processes. It contributes to the strengthening of the hegemonic narratives and to the “moral” sense of science. In contrast, laughing, ambivalent and restoring, dialogues with the open seriousness in the direction of a Gay Science. The historical conception of time and the utopian character, contrary to all forms of dogmatism and strictness, which is a typical characteristic of laughing, allow the displacement of perspectives, making possible an anti-canonical view of the university. The university chronicle, when telling the daily life of the institution, recognizes it as an open and unfinished body, encouraging the exercise of self-laughing.

Key words: power games, humor, dialogue.

Explicação prévia lada à autonomia; de legitimidade, re- Reconheço a vasta literatura so- ferindo-se à sua elitização; e de hege- bre a universidade, dos pontos de Em 2006, afirmava (Ferraz, 2006) monia, operando a hierarquização de vista histórico, político, filosófico e que a universidade sofre de uma crise saberes e valores. Apontar uma crise sociológico; contudo, o riso me con- de humor, além das já citadas por Bo- de humor me parece ser convite para fronta com a necessidade de pensá- aventura de Sousa Santos (2004) ao uma boa peleja que, entretanto e an- la desde o seu cotidiano. Assim, ao discutir a universidade do século XXI tes, requer o esclarecimento das pers- qualificar a universidade de Corte, – institucional, especialmente vincu- pectivas conceituais assumidas. faço-o no sentido de operar um des-

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locamento desde o peso histórico do neiros e comediógrafos; cortesãos e dades, colegas, estudantes e amigos. conceito para a dinâmica da vida uni- cortesãs são aqueles e aquelas cujos Uma estudante, derivando o ritual, versitária, onde o riso permeia as bre- aleijões intelectuais e físicos fazem a aproximou-se do corpo e pediu ao ex- chas do instituído, desvelando jogos diversão da Corte, oxigenando-a des- Magnífico, licença para lhe contar uma de poder. de o riso cômico popular. história da mitologia afro-brasileira; Opto por uma narrativa que incor- A Corte são os homens e as mu- um grupo de quilombolas do Vale do pora a crônica como estilo, na medida lheres de ciência, são os estudantes, Paraguaçu cantou em Yoruba; repre- em que o riso não reconhece categori- são os pequenos e os grandes funci- sentantes dos índios Kiriri agitaram as universais - é circunstanciado e ra- onários, e ainda os que, à margem, melodicamente instrumentos musicais dicalmente encarnado. Tal escolha, pró- buscam participar da vida festiva e e colocaram sobre o seu peito, um co- xima do ensaio, é também provocação compartilhar das fofocas e lutas pa- car; respeitosamente, um homem tirou para refletirmos sobre a ortodoxia dos lacianas. Inclusos aqui, os aleijões o boné vermelho do MST e o dispôs discursos proferidos em terceira pes- intelectuais de poetas e outros da aos seus pés. Colegas falaram do ami- soa, característica da escrita acadêmi- mesma linhagem. go e ao amigo. Por fim, o então e atual ca que nos protege da insensatez de reitor pediu a palavra, alegando direi- uma autoria que nos implica e confron- Historiografia to de herança: “Como filho mais novo ta com o dito. O texto vivo que nos de Felippe, quero falar em nome da toma como matéria e desconhece as Foi na língua dos simples que um sua outra família: a Universidade”. Le fronteiras entre arte, filosofia e ciência, dia Lorenilson, morador de rua con- roi est mort. Vive le roi! que brinca com a liberdade de expres- templado com uma casa no Alto de A crônica universitária revela os sar livremente pensamentos e idéias, Coutos, bairro situado na periferia de intestinos da instituição. Para dizer problematiza e inventa os seus méto- Salvador (BA), após ter participado do riso é preciso que ousemos as dos. Busquei inspiração, para tanto, na de uma disciplina na Faculdade de cavidades mais íntimas da Corte. Um “razão poética” de Maria Zambrano Educação (FACED) da Universidade novo soberano, um soberano novo, (2001), nos estudos de Bakhtin (1999) Federal da (UFBA) – Universi- de idéias novas, assume o trono e sobre a Cultura Cômica popular na dade, Nação e Solidariedade – em propõe uma Universidade Nova. Pro- Idade Média e no Renascimento: o 2003, disse aos seus amigos, apon- jeto arrojado que logo ganha a ade- contexto de François Rabelais, e no tando a paisagem árida do bairro: são de outras Majestades em todo o Conde de Sabugosa (2007) que à cena “Sabe aquele meu amigo reitor que território nacional. Um movimento, as histórias da Corte. morreu”, referindo-se a Felippe Ser- dito de vanguarda, organiza-se em Este último, em 1923, dedicou-se ao pa, ex-reitor (1994-1998) e um dos pro- torno da eficácia da gestão e do pla- estudo dos divertimentos de bobos, fessores da disciplina, “pois era essa nejamento de estratégias voltadas truões, chocarreiros, bufões, invento- a universidade que ele queria: com para O futuro da universidade na res de autos e cômicos, assim deno- todos nós dentro”. A fala do ex-men- sociedade do conhecimento. Interes- minados de acordo com a época ou digo confronta-nos com o que era, se semelhante ao do senhor procura- com os seus atributos. Tinha o Con- também, um problema para Bacon, dor da Universidade de Pádua, que de, o propósito de estudar as Cortes segundo refere Guilherme de Basker- interpela Galileu (Brecht, 1976, p. 66): européias de séculos anteriores, pela ville para o seu pupilo Adso, no via da pilhéria e da língua dos sim- O nome da rosa (Eco, 2003, p. 200): PROCURADOR – Vale escudos so- ples. Sobre o denominativo de Corte “A experiência dos simples tem êxi- mente o que rende escudos. Se o se- refere não apenas a ambiência palaci- tos selvagens e incontroláveis”. En- nhor quer dinheiro, precisa produ- zir outras coisas. O senhor não pode ana, o cotidiano de reis, rainhas e agre- tão, a Corte universitária inclui a es- cobrar mais pelo saber do que ele gados, território de intrigas e lisonja- cória da cidade e territórios além- rende a quem o compra. Por exem- rias, mas também “O terreno onde as muros dos seus domínios? plo, a filosofia que o senhor Colombe rudezas da vida social se apuram, e os Mas a história é uma roda viva, e vende em Florença rende pelo menos costumes se tornam policiados” (Sa- além de Felippe Serpa, Lorenilson tam- dez mil escudos anuais ao príncipe. bugosa, 2007, p. 19). A Corte inclui a bém morreu. Enquanto o último foi A sua lei da queda dos corpos levan- aldeia e as suas gentes, inclui corte- enterrado em caixão doado pelo Ser- tou poeira, é verdade. O senhor é sãos e cortesãs, mesmo os alheios ao viço de Assistência Social da Prefei- aplaudido em Paris e em Praga. Mas as pessoas que o aplaudem não pa- Soberano. Cortesãos são os navega- tura da Cidade, o professor Felippe 57 gam o que o senhor custa à Universi- dores e cavaleiros; são os homens e foi velado com honras de ex-reitor no dade de Pádua. A sua desgraça, preza- as mulheres rudes, e são os cancio- Palácio da Reitoria. Presentes, autori-

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do Galileu, está na sua especialidade. vando o corpo em direção à terra mãe. sivo e restaurador (Alberti, 2002). O GALILEU – Eu entendo: liberdade de É preciso ressaltar que o “peso mais aspecto restaurador, e aqui me reme- comércio, liberdade de pesquisa. Li- pesado”, o peso do ressentimento to à perspectiva de François Rabe- berdade de comerciar com a pesquisa, contra o tempo do Eterno Retorno, o lais, antes citado por Ítalo Calvino, e é isso? tempo implacável do devir, é parado- cuja obra é objeto de investigação xalmente motivo de júbilo – experiên- de Bakhtin (1999), advém do rebaixa- Interessa, pois, perguntar: como cia do riso doído (Ranoñes, 2002) que mento ao corpóreo e à materialidade dialogam a tradição representada pelo afirma a tragicidade da existência. da vida, de tudo o que está no alto, Velho Pajé1 e a boa nova anunciada Os homens do poder, contudo, já partes do corpo e valores tidos como pelo seu sucessor? E mais: a Univer- não migram para o seu deserto, de- superiores; o baixo é o lugar da his- sidade Nova é uma Nova Universi- sertificaram a vida – o peso dos tota- tória-destino, da ambivalência e da dade? litarismos revela um mundo desen- afirmação do pensamento-corpo. O O riso habita o tenso e o intenso; cantado que cede às leis do comér- riso na Corte universitária, suposta- não se contrapõe ao sério, mas ao cio, tornando mercadoria o riso e ba- mente reduto dos altos valores, con- dogma. Com o primeiro dialoga e com nalizando-o como solução para a an- voca a autoderrisão – rir de si mes- o outro digladia. O riso é a terceira gústia da ausência de sentido. O po- mo. O exercício da auto-ironia ou o margem. Ao afirmar que a universi- der do capital impõe a sua suprema- escárnio e rebaixamento de tais valo- dade sofre de uma crise de humor, cia, silenciando as manifestações da res representam o triunfo sobre o bem digo o elogio da leveza que faz razão que não coadunam com os dogmatismo e a fixidez. Assim, as pro- Calvino (1990, p. 32): “[...] o humor é seus propósitos. Falamos, então, de duções acadêmicas deveriam não o cômico que perdeu o peso corpó- uma razão técnica e, por conseguin- apenas objetivar o livre questiona- reo (aquela dimensão da carnalidade te, de uma falsa tensão entre o pen- mento das narrativas hegemonica- humana que, no entanto, faz a gran- samento sério e o riso, considerando mente instituídas, mas, paralelamen- deza de Boccaccio e Rabelais) e põe que como jogo jogado a priori, o que te e sem pejo, operar a desconstru- em dúvida o eu e o mundo, com toda se objetiva é o estabelecimento de ção dos seus próprios axiomas. rede de relações que os constituem”. uma gramática única. Beira o paradoxo, contudo, dizer Nesse excerto e em todo o capítulo A relação entre os poderes ofici- que muitos daqueles que na Corte que dedica ao tema, o escritor con- ais e o riso data de muito. E de muito universitária pesquisam o riso nem trapõe à leveza, o peso, como faz tam- compreenderam os poderosos a im- sempre são pessoas ridentes, espe- bém ao citar o poeta florentino Guido portante arma que é, estrategicamen- cialmente os que não partilham da Cavalcanti: “É preciso ser leve como te incorporando-o à sua dinâmica, fina ironia que nos destrona de su- o pássaro, e não como a pluma” (Cal- desde os bobos na Corte e calendári- postos lugares e supostos saberes. vino, 1990, p. 28). O peso do viver os festivos da igreja na Idade Média Pois, no Colóquio Nacional sobre o não está, portanto, nos corpos, e Renascimento, até a midiatização do Cômico e o Trágico, realizado na “grandeza de Boccaccio e Rabelais”, humor na contemporaneidade. O alar- Universidade Federal de Ouro Preto mas na gravidade dos valores esta- deamento do riso é, hoje, um modo (MG), em 2006, num ambiente de gran- belecidos, nos preconceitos e recei- de silenciá-lo, posto que, se todos de respeito ao Saber, como é de praxe os morais impeditivos do pensamen- riem, cessam as tensões e, conse- nos encontros filosóficos, ao final da to-corpo que não cede ao peso con- qüentemente, o jogo. O sentido trá- leitura de um instigante texto sobre o ceitual. Um pensamento-corpo é leve, gico não pode padecer da falta de humor, perguntei ao conferencista, dançarino, ridente e risível. ambivalência e do diálogo. O riso, por um renomado professor de filosofia Ao declarar que a universidade essência ambivalente, histórico e ima- da Universidade de São Paulo, se sofre de uma crise de humor, remeto- nente, necessita da seriedade e da poderia afirmar que a universidade me à gravidade que se apodera do forma, como promessas restaurado- sofre uma crise de humor. Apostava espírito dos homens eruditos, distin- ras – diga-se, aqui, da seriedade aber- numa profunda e sábia resposta, pos- to do espírito da suportação (Nietzs- ta que reconhece a transitoriedade to o brilhantismo do texto, e, afinal, che, 2003), que se alegra com o “mais dos fenômenos. tratava-se de um filósofo, e, ainda por pesado dos pesos” porque experimen- Grande parte dos estudos sobre o cima, cátedra de uma meritória uni- 58 ta a sua força e a sua flexibilidade, cur- riso evidencia o seu caráter subver- versidade.

1 Como era carinhosamente conhecido o professor Felippe Serpa.

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Pediu-me o professor que explicas- fala sem, contudo, incitar restaura- povo concorre para restaurar os seus se o despropósito: “O senhor referiu ção – característica que assume o riso princípios, mesmo que por breves e a gargalhada de ouro do filósofo, ci- desde a modernidade, segundo o pequenas fissuras no organismo so- tando Nietzsche; falou de um riso vis- mesmo Bakhtin (1999) citado pelo cial. O carnaval opera o rebaixamento ceral e corrosivo, remetendo-nos a professor. Se assim for, fazia ele um e incorpora a ambigüidade da tradi- Deleuze e a Bakhtin; pergunto: ‘Onde exercício de coerência. ção e do novo. Por princípio, é tenso está o riso num Colóquio que preten- Mas se as crônicas da Corte nar- e dialógico. de tratar do cômico e do trágico? A ram as façanhas dos doutos, também A entrega do título na praça pú- universidade ri? Caso sim, onde está não poupam os truões. Do profes- blica, onde o povo bebia e dançava o riso na universidade?”. Em pouquís- sor Felippe Serpa ouvi a história da sem entraves, fazia parte de uma sé- simas palavras o mestre apontou o entrega do prêmio de Doutor Hono- rie de eventos protagonizados pela disparate da minha questão, carente ris Causa a Caetano Veloso, durante UFBA, com o objetivo de estudar o do bom senso e da razão que caracte- o carnaval de 1998, num trio elétrico carnaval da Bahia. A transgressão rizam o discurso acadêmico. “Respon- instalado no Porto da Barra, em Sal- rendeu a esta, notas no Le Monde, di à sua pergunta, professora?”; sorri vador (BA); jogo que compartiu com em jornais locais e nacionais, além discretamente e pensei: “Não, a uni- o professor Paulo Lima, também um de problemas com a polícia e des- versidade não sofre de uma crise de inventor de autos. O caráter herético conforto com universidades do cen- humor; a universidade está de mau da solenidade guardava obediência tro-sul do país. A liturgia que tradici- humor”. “Sim, professor, o senhor res- à liturgia requerida em tais ocasiões, onalmente teria lugar na Reitoria da pondeu-me. Obrigada”. provocando tensionamentos impor- UFBA foi cumprida rigorosamente Mas a grande blague, a fabulosa tantes para fazer pensar a universi- pelo Magnífico Reitor Luis Felippe farsa, afinal, está na proclamação dos dade desde a perspectiva da praça Perret Serpa, precedida por um espe- arautos, compreendi: uma festa para pública, território da livre expressão táculo teatral organizado por profes- compartilhar. Nas suntuosas ocasi- do povo, como bem cantou o pró- sores da Escola de Teatro. Em cena, ões, quando são celebrados os mais prio Caetano Veloso, parodiando os Dioniso e personagens das músicas altos valores cortesãos, reúnem-se versos do poeta Castro Alves, na de Caetano Veloso. bonzos e doutos vindos de muitos música Frevo Novo – “A praça é do O lugar da tensão é o esteio do reinos com esse supremo fim: com- povo como o céu é do avião”. riso ambivalente e restaurador – mor- partilhar. Por antecipação definem- A praça pública é o lugar por exce- te e vida se alternaram, e a universi- se as regras do evento, a fim de que lência do carnaval, e este, como dis- dade abriu suas portas ao povo. Num sejam garantidos a ordem e o bom curso, foi atualizado, ritualisticamen- movimento invertido e de matiz pa- aproveitamento. Durante as confe- te, pela mesma instituição que outro- ródica, como bem cabia num período rências didáticas, entretanto, a lei- ra o condenou. Simbolicamente a uni- carnavalesco, a academia foi à praça tura ensimesmada dos saberes pro- versidade foi degradada e rebaixada pública. O Velho Pajé narrava os fa- duzidos poucas vezes permite ao ora- quando o deus da orgia e do caos tos e alertava-nos: “Não se trata de dor encarar o público respeitoso. E, homenageou o artista (ou a arte) que romper com o instituído, mas de ten- longe do compartilhamento de expe- abriu as portas do sagrado ao cortejo sioná-lo com o instituinte”. Fellipe riências, no mais refinado estilo bur- momesco. Sob o primado da arte e da Serpa, a um só tempo, reitor e his- lesco, tais ocasiões revelam a nossa alegria desmedida, o tom dogmático trião da sua Corte, recebeu o maior impossibilidade de uma memória co- cedeu à seriedade aberta e jovial que título de honraria da Universidade, mum e o declínio da experiência co- incorpora o riso como potência criati- post mortem. Repetimos, afinal, o letiva. Falta à mesa o bom vinho; à va. Para Bakhtin (1999, p. 360), “[o] sacrifício do bobo que, ao final dos narração, artesania. carnaval celebra o aniquilamento do períodos festivos medievais e renas- Ressalto que aquele texto é, sem velho mundo e o nascimento do centistas, depois de sagrado rei, era dúvida, uma importante produção novo, do novo ano, da nova prima- morto, como garantia do retorno da sobre o tema; entretanto, as belas vera, do novo reino. O velho mundo ordem oficial. palavras do professor não tinham aniquilado é apresentado juntamente Mas a Corte é mesmo o lugar dos corpo e eram paradoxalmente tão com o novo, representado com ele, mexericos: escândalo, outro, que me pesadas que lhe impossibilitavam como a parte agonizante do mundo aventuro narrar agora, ocorreu na sentir a dureza da cadeira onde esta- bicorporal único”. E ainda que a mer- Corte Suprema do Além Mar, no 59 va assentado. Sua resposta revelou cantilização tenha destruído o carna- Conservatório Real de Estocolmo. a opção pelo rebaixamento da minha val como discurso, o ajuntamento do Em 1997, o dramaturgo, autor e ator

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Dario Fo foi Prêmio Nobel de Litera- Meritum causae. Ou: Afinal, o jogo é desvelado: Saki- tura. Conhecido como um anarquis- mérito da causa saka admite a sua determinação ini- ta saltimbanco, Fo esteve exilado e cial de censurar a peça e a admiração preso por diversas vezes, acusado O que significa, afinal, afirmar que pelo talento do escritor; confessa que de subversão por tomar como alvo a Universidade vive uma crise de hu- riu. Tsubaki, envolvido pelo momen- o imperialismo e o capitalismo na mor? A etimologia da palavra crise to de intimidade revela-se: Itália, chegando a ser processado remete-nos à ruptura e formação de pelo primeiro ministro Sílvio Berlus- uma nova ordem pautada em diferen- Eu pensei em parar de escrever. Mas cone. O escândalo na Academia não tes kriterios; significa também julgar como sou um escritor de parou por aí: abriu portas para o a partir de perspectivas diversas. Por comédias...Escritores precisam ter sua escritor português José Saramago, forma de divergir. Ignorar as leis de fim, aponta para oportunidade e peri- Sua Majestade e desistir da peça é laureado em 1998, e para a drama- go. Nesse caso, a crise é oportunida- uma forma. Ignorar os censores, en- turga e novelista austríaca Elfriede de para rever as disposições do espí- cenar a peça e esperar ser preso é Jelinek, em 2004. O primeiro foi acu- rito, seus variados humores; como outra. Mas isso não me pareceu cer- sado de afrontar a Igreja Católica perigo, talvez alerte para a aderência to. Não está no sangue de escritores com o seu Evangelho Segundo Je- a fatalismos. Rir da universidade, ou de comédias. O que poderia fazer? sus Cristo (Saramago, 2005) e a se- na universidade, ou com a universi- Então eu percebi. Eu decidi usar o que me exigissem. Reescreveria tudo gunda, tida como pornográfica, por dade, é assumir instalar-se no confli- o que pedissem. Mas iria torná-la denunciar, abusando de “fantasias to e na contradição, sabendo ilusório melhor, mais engraçada e mais inte- obscenas” e “linguagem vulgar”, as o consenso das gentes. ressante que antes. Sabia que essa estratégias dos poderes dominan- Há, entretanto, alguns detalhes a seria a minha maneira. Minha manei- tes, especialmente a posição da serem considerados nesse jogo, a um ra de lutar contra as autoridades mulher e do homem no meio capita- só tempo negador e afirmador. Jogo (Hoshi, 2004). lista. Os intelectuais de todo o mun- que se estabelece entre o riso cômi- do manifestaram-se contra a natu- co popular do comediógrafo Tsubaki Cai o pano. Cessada a tensão, reza herética das indicações. A Aca- e a seriedade dos poderes hegemô- cessa o jogo. O poder oficial não demia segue o conselho que Ma- nicos, representada pelo censor do pode prescindir do riso, assim como quiavel dá aos príncipes: escolher governo, Sakisaka, em a Escola do o riso necessita da seriedade para se aqueles que lhe possam mostrar a Riso, filme de Mamoru Hoshi (2004). manter ambíguo e restaurador – re- verdade, se questionados, para que O contexto: Tóquio da Segunda cuperado da inesperada revelação, suas decisões sejam prudentes. A Guerra. O cenário: uma pequena sala Sakisaka decide não aprovar a peça; pilhéria, contudo, não é a entrada no prédio do quartel general da polí- a despeito de considerá-la perfeita, triunfal dos bobos na Corte Real, cia, guardada por um policial velho; sentencia que aquele não é tempo mas o fato de que o autor do prê- como mobiliário há apenas uma mesa para comédias. Entretanto, fará uma mio, Alfred Nobel, foi o inventor da e duas cadeiras. O cenário minima- concessão se, e somente se, todos dinamite. lista evita distrações: frente a frente, os elementos risíveis forem suprimi- Ora, se a diversidade é caracterís- o poder oficial e o riso. dos do texto. Tsubaki aceita o desa- tica da Corte universitária, todos os Sakisaka está a priori decidido a fio. “Eu quero uma comédia sem ri- dizeres adquirem legitimidade no não aprovar a peça apresentada, sadas. Isso é impossível”, afirma jogo. E apenas no jogo mantém-se a mas, provocado pela disposição do Sakisaka. “Como você saberia?”, res- tensão. Para Derrida (2003), o que jovem escritor, propõe reconsiderar ponde o comediógrafo, reiterando a difere essa de outras Cortes que re- seu julgamento, caso o texto de Tsu- distância fundamental entre o riso e querem para si o direito e o dever de baki o faça rir. Sakisaka nunca riu e a cultura oficial. Restaura-se o jogo, tudo dizer, é o compromisso de fazê- não entende as coisas da alegria. e dele nasce o texto que revela o mais lo publicamente, como testemunho Durante sete dias, propõe alterações puro dos risos, aquele que no jogo de fé, produzindo acontecimento. no texto, que são realizadas por Tsu- jogante não intenta fazer rir; aquele Traça, dessa maneira, uma distinção baki, não sem burlar as determina- que no silêncio denuncia o absurdo entre produções meramente consta- ções do censor. Sakisaka aos pou- da existência. O riso que contamina tativas e aquelas que se revelam cos vai se tornando co-autor do tex- o espírito do censor; o espírito da 60 como ato performativo – que impli- to e nele projeta-se, imaginando ce- oficialidade. Um velho guarda, um cam numa decisão e numa responsa- nas e chegando mesmo a dramatizá- policial velho, vigia a porta da pe- bilidade ético-política. las, contracenando com Tsubaki. quena sala.

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Na Corte universitária são muitas de François Rabelais. 4ª ed., São Pau- as histórias que versam sobre ocasi- lo, HUCITEC, 419 p. ões de apuro das rudezas e policia- BRECHT, B. 1976. Vida de Galileu. São mento dos costumes através de “jo- Paulo, Abril Cultural, 236 p. CALVINO, Í. 1990. Seis propostas para o gos de destreza e de gaia ciência” próximo milênio: lições americanas. (Sabugosa, 2007, p. 19). Nos interstí- 3ª ed., São Paulo, Companhia das Le- cios da cultura oficial, o riso escapa tras, 141 p. a toda forma de controle, pois que, DERRIDA, J. 2003. A universidade sem como constitutivo do Dasein, como condição. São Paulo, Estação Liberda- segunda natureza do homem, sem- de, 86 p. pre incitará jogos ainda não jogados. ECO, U. 2003. O nome da rosa. , O Globo/ São Paulo, Folha de Por isso mesmo, essa é uma nar- São Paulo, 479 p. rativa que não se conclui; desnuda, FERRAZ, A.R.Q. 2006. Caminhar, encon- antes, a minha incapacidade de jo- trar e celebrar: o riso e a arte bufa no gar como Tsubaki. O estilo rebusca- projeto pedagógico de Carlos Roberto do que me aprisiona, devo confes- Petrovich. Salvador, BA. Dissertação sar, que me angustia, peca pela falta de Mestrado. Universidade Federal da Bahia – UFBA, 180 p. da espontaneidade e da simplicida- HOSHI, M. 2004. Escola do Riso. Título de do gênero cômico. E ainda que Original: Warai no daigaku. Roteiro: não tenha a intenção de fazer rir, fla- Koki Mitani, baseado em peça teatral gro na minha escrita uma certa sisu- de sua autoria. Elenco: Kôji Yakusho, dez, característica da Corte da qual Goro Inagaki, Tae Kimura. Edição: faço parte. Este texto revela a minha Masaaki Yamamoto. Gênero: comédia busca por uma escrita risível, e finda dramática. Japão, 2004. 1 DVD. Dura- ção: 121 min. com o escárnio da minha coerência NIETZSCHE, F. 2003. Assim falou com os princípios que critico. Rir de Zaratustra: um livro para todos e para nós mesmos desloca nossas pers- ninguém. 12ª ed., Rio de Janeiro, Civi- pectivas e nos confronta com a tran- lização Brasileira, 381 p. [Das três sitoriedade da existência. Esse é, afi- metamorfoses]. nal, um convite e uma provocação RANOÑES, A.V. 2002. O riso doído: atu- alizando o mito, o rito e o teatro gre- para rirmos da nossa insustentável go. São Paulo, Agora, 250 p. leveza de ser. SABUGOSA, C. de. 2007. Bobos na Corte. Lorenilson me disse que faláva- Lisboa, Edição Caleidoscópio, 118 p. mos “indiomas” diferentes. Lorenil- SANTOS, B. de S. 2004. A universidade son também era um cortesão, posto no século XXI: para uma reforma de- que a Corte é marcada pela diversi- mocrática e emancipatória da univer- dade. Mas se a diversidade e a ambi- sidade. São Paulo, Cortez, 89 p. SARAMAGO, J. 2005. O Evangelho Se- güidade são características do riso, gundo Jesus Cristo: romance. São tratamos, então, de jogos de poder. Paulo, , 374 p. Palavra de reitor: “Quero falar da sua ZAMBRANO, M. 2001. Filosofía y outra família: a Universidade”. Que Poesía. Madrid, Fondo de Cultura Eco- Universidade? A Universidade são nômica, 123 p. tantas quantas as histórias narradas Submetido em: 18/01/2008 na Corte. Aceito em: 29/02/2008 Referências

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