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Masarykova univerzita Filozofická fakulta

A baianidade nas letras de e

Gilberto Gil

(závěrečnámagisterskáprácezPortugalskéhojazykaaliteratury)

JanaZrníková Vedoucí práce: PhDr.Zuzana Burianová, PhD. Brno 2007

Prohlašuji,žetutodiplomovouprácijsemvypracovalasamazapoužitíuvedené literaturyainternetovýchzdrojů.

ChtělabychpoděkovatpanídoktorceZuzaněBurianovézavedenímépráce, ochotuvéstkonzultaceinadálkuasamozřejmězavšechnycennépřipomínky.

2

A baianidade nas letras de Caetano Veloso e

Gilberto Gil

Estou pensando / no mistério das letras de música tão frágeis quando escritas / tão fortes quando cantadas a palavra cantada não é a palavra falada / nem a palavra escrita a altura a intensidade a duração a posição da palavra no espaço musical / a voz e o mood mudam tanto a palavra canto / é outra coisa AugustodeCampos

3 Índice

1.Introdução ...... 5

2.Aculturabaiananaperspectivahistórica ...... 8

3.Abaianidade ...... 16

4.AnaMPB ...... 22

5.Asbiografias ...... 25

5.1.AbiografiadeCaetanoVeloso ...... 25

5.2.AbiografiadeGilbertoGil ...... 28

6.Otropicalismo ...... 31

7.AbaianidadedeCaetanoVelosoeGilbertoGil ...... 39

7.1.Alegria ...... 40

7.2.Festas ...... 42

7.3.Religiosidade ...... 46

7.4.Sensualidade ...... 54

7.5.SaudadedaBahia ...... 56

7.6.Primazia ...... 57

7.7.OslugaresdaBahiaedeSalvador ...... 61

7.8.Aspersonalidadesbaianas ...... 63

7.9.Osladosnegativosdosbaianos ...... 65

8.Consideraçõesfinais ...... 69

Bibliografia ...... 71

Anexo ...... 74

4 1. Introdução Amúsicabrasileirasempreteveecontinuaaterumgranderenomenomundo musical. São raras, por exemplo, as pessoas que não sabem que o provém do

Brasil.Outroestilotipicamentebrasileiroéabossanova.Abossanovaconquistouo mundonaprimeirametadedosanos60doséculopassado,comsualevezaeabatida típica,masnãofoiaúltimacontribuiçãodopaístropicalparaavariedademusical.Os ritmos e danças brasileiros, surgidos durante a folia carnavalesca, causaram enormes ondasdosucessonosanos80e90(mencionemosalambadaouaxémusic).

Ariquezaeadiversidadedosgênerosmusicaisbrasileiroséincrível.Oqueteve umgrandeimpactonamúsicapopularbrasileira(MPB)eseguiuseaosucessodabossa nova foi a produção musical do movimento tropicalista. O tropicalismo, “ o único

“ismo” tipicamente brasileiro ”1, não se limitou apenas à música, mas foi essa que superouasoutrasmanifestaçõestropicalistasequecomsuasletrasacendeutambémo grandeinteresseporpartedoscríticosliteráriosoudosprópriospoetas.Odistinguido poeta,tradutorecríticoliterárioAugustodeCamposafirmou,emfinsdosanos60,que o que melhor estava se fazendo em poesia no Brasil estava sendo produzido por compositores da MPB que foi influenciada pelo tropicalismo. O mesmo considerou

CaetanoVelosoomaiorpoetadasuageração.

Assim, Caetano Veloso, o “paifundador” do movimento tropicalista, e seu

“irmãogêmeo”, Gilberto Gil, entraram no centro do interesse deste trabalho, cujo objetivo é pesquisar de que maneira a origem baiana, ou a chamada “baianidade”, deixou vestígios em sua obra poética. Vamos tentar identificar alguns dos principais assuntoseidéiasbaianospropostospeloscompositoresaolongodesuacriaçãoartística,

1AssiméchamadoporSylviaHelenaCyntrãonoprefáciodo A forma da festa – tropicalismo: a explosão e seus estilhaço. Brasília,EditoraUniversidadedeBrasília,2000,p.6.

5 sem usar nenhum limite periódico, esforçandose tanto por identificar o sentido das letrasdascançõesemsuatotalidadequantoporaanalisardetalhamentecadafragmento doenunciadoreferenteàBahia.

É,porém,precisodestacarqueaobradosdoisartistasnãoéapoesiaem stricto senso. Antespodeserdesignadacomoapoesiadacanção.Adesignação“poesia“tem aqui seu fundamento porque a presença dos elementos literários na linguagem da canção brasileira contemporânea é inegável e merece consideração. É verdade que a poesia da canção e a poesia destinada à leitura possuem a mesma origem histórica e mantêm muitas afinidades, mas não são exatamente iguais. A avaliação literária das letras da música, sem tomar em consideração também a parte musical, é sempre incompleta.Aletraéapartedeumtodo(acanção)edeveestaremsincroniacomo código musical, obedecendo a uma métrica, a uma sonoridade e a um tamanho correspondentesaessaparte.Feitaparacomporaunidadecomoelementomusical,os dois se influenciam mutuamente, tanto ao nível da seleção temática, quanto ao nível estrutural: em sua origem, texto e música são inseparáveis. 2 Portanto é claro que a análisetrazidanessetrabalhotemcertoslimitesenãopodeexprimirtodaariquezada canção,airrepetíveljunçãodapalavraedotom.

Apesar de ser muito ampla a literatura sobre Caetano Veloso e Gilberto Gil, dedicase quase toda a outros aspectos. A única fonte, que se aproxima do problema determinadoporestetrabalho,éatesedeAnesFrancinedeCarvalhoMarianocomo título A arte de ser baiano: segundo as letras das canções da música popular 3,masa tese,abrangendoumperíododointeiroséculoXX,sótrazpercepçõesbásicasaotema semgrandeprofundidade.Outraobra,comotítuloprometedor A presença da Bahia na 2Parasabermaissobreasespecifidadesdaanálisedaletraver:Perrone,CharlesA. Letras e letras da música popular brasileira .RiodeJaneiro,EloEditora,1988,p.1122eGoés,Fredde . Gilbeto Gil. Literatura comentada .SãoPaulo,AbrilEducação,1982,p.15. 3Mariano,AgnesFrancinedeCarvalho. A arte de ser baiano: segundo as letras das canções da música popular .TesededoutoradodaUFBA,Salvador,2001.

6 música popular brasileira deLuizAméricoLisboa 4,limitaasuapesquisasóaoanode

1964, quando os músicos por nós analisados ainda não lançaram nenhum disco LP.

Somente umabreve menção ao nosso tema é trazidapor Felix Ayoh’omidire em sua tesededoutoramentointitulada Yorubanidade mundializada: o reinado da oralitura em textos yorubá – nigerianos e afro-baianos contemporâneos 5.Então,nãorestavanadado que tentar fazer o mosaico dos estilhaços encontrados nos depoimentos de Caetano

Veloso e Gilberto Gil e na literatura secundária sobre eles. Não podemos esqueçer, porém,asprópriasletras,quesetornamafontefundamentaleoobjetodestetrabalho.

No que diz respeito à estrutura deste trabalho, primeiro, queremos aproximar brevemente a cultura baiana porque ela tem muitas especifidades e sem esse conhecimento fundamental não podemos desdobrar o discurso sobre a baianidade. A seguir,vamosquestionaroconceitodabaianidadedeváriosângulos–oqueessetermo significaparaosbaianos,paraoutrosbrasileirose,paracompletar,queremostambém trazer„oolhardefora“.Antesdecomeçarcomonúcleodotrabalho,comaanálisedos elementos baianos na obra de Caetano Veloso e Gilberto Gil, queremos também mencionarcomoseabaianidaderefletiunasletrasdoscompositoresmaisantigos,com amaioratençãoprestadaaDorivalCaymmi.

2. A cultura baiana na perspectiva histórica 4LisboaJúnior,LuizAmérico. A presença da Bahia na música popular brasileira .Brasília, MusiMed /LinhaGráficaEditora,1990. 5FelixAyoh’omidire. Yorubanidade mundializada: o reinado da oralitura em textos yorubá – nigerianos e afro-baianos contemporâneos .TesededoutoramentodaUFBASalvador,2005.

7 Tratandodaculturabaiana,omaisimportanteésalientarofatoqueelanãoé homogênea. A cultura do litoral extremosul da Bahia, da região cacaueira, é muito diferente do interior, por exemplo, da região do rio São Francisco. Até para um que visita esta zona, as diferençasentre as regiões visitadas na Bahiasão nítidas.AculináriadecadalugarnaBahiatemseusaborpróprio,osotaquedosbaianos diferedeumlugarparaoutro,assimcomoamúsicatocadanasruastemseusritmos variáveis.

Portantofalarsobreumaculturabaianaéimpossível.Masoqueentãoentender sob a designação da “cultura baiana”? Para a maioria dos brasileiros, a Bahia é intimamenteligadaàcidadedeSalvador,àsvezeschamadaaCidadedaBahia.Assim,a culturabaianaé,paraestetexto,entendida,conformeadefiniçãodeAntonioRisério, como “ a cultura predominantemente litorânea do recôncavo agrário e mercantil da

Bahia, que tem como principal núcleo urbano a tradicional Cidade do Salvador da

Bahia de Todos os Santos ”6.Essacultura,ganhandoaolongodotempoinfluênciasde váriasnações,podeserhojesimplificadamentecaracterizadacomolusobantoiorubana comtraçostupis.Tomandoemconsideraçãotambémosaspetoseconômicosepolíticos, vamosfalarsobreacontribuiçãodeváriasnaçõesparaaconstituiçãodaculturabaiana.

Osíndiostupinambás,dogrupolíngüísticotupi,foramosprimeiroshabitantes dabaíadeTodososSantos.Oscolonizadoresportugueses,quechegaramnoiníciodo séculoXVI,apesardeexercerapolíticadadizimação,nãoconseguiramextirpartodaa herançaindígena.Elapermanecenovocabuláriobaiano,principalmentenostopônimos enoléxicopesquieroe,porexemploemItapuã,obairroligadoaDorivalCaymmi,é bastantenotável.AlémdeCaymmi,tambémCaetanoVelosonotouessaherançadotupi

6Risério,António.Bahiacom„H“.In:Reis,JoséJoão(org.). Escravidão e invenção da Liberdade .São Paulo,Ed.Brasiliense,1988,p.146.

8 e compôs a melodia “TwoNaira fifty Kobo” com letra sequinte: “ a força vem dessa pedra, que canta Itapuã, fala tupi, fala iorubá ”.

Ainfluênciaportuguesaéomnipresenteenãoénecessárioabordaramplamente estaquestão.Comaforçadoscolonizadores,osportuguesesimprimiramnaBahiaas marcasdesuacultura(porexemplo,ocentrodeSalvadorcomseussobradospodese facilmenteconfundircomascidadesportuguesasdaépoca)eoportuguêstornousea

única língua oficial do Brasil inteiro. Em 1549 fundaram Salvador. A cidade já foi planejada pelo governo português com fins transnacionais e não evoluiu, como era comum,deumagrupamento,quesetransformaemvilaeposteriormenteemcidade.A

Cidade da Bahia tornouse a capital da nova colônia e seu centro comercial e administrativo que se aproveitou do comércioaçucareiro.Esseperíodo da história de

Salvador é bem caraterizado nos poemas do famoso “Boca do Inferno”, Gregório de

Mattos,que“ bebeu o mel dos engenhos nos lábios grassos das negras ”. 7Nosséculos

XVIeXVII,SalvadoreraamaiorcidadeeuropeiaforadaEuropa,mastambémomaior agrupamentoafricanoforadaÁfrica.

NosséculosXVIeXVII(depoisdaproclamaçãodaleide1570queproibiraa escravaturadosíndios),porcontadotráficodeescravos,apontaramnaBahiaospovos dogrupolingüísticobanto,vindosdeAngolaedoantigoreinodoCongo.Amãode obradelesficouimprescindívelparaaindústriaaçucareira.Apartirdosfinsdoséculo

XVIIIperderamahegemonia,quandoocomérciodeescravossemudouparaaÁfrica superequatorial(regiãodaCostadaMinaeGolfodoBenin–lugarescomasprimeiras feitorias portuguesas na África). Entretanto, esses negros bantos, apesar de contínuo processodeaculturação,deixarammarcasprofundasnasociedadebaiana.Porexemplo, eles criaram já no século XVI a importante irmandade do Rosário dos Pretos do

7Risério,António. Avant-garde na Bahia .SãoPaulo,1995,p.157.

9 Pelourinho, que se mantém até o presente e que, além da função religiosa e social, contribuiàdivulgaçãodaculturanegra.Aslínguasbantostêmpresençamarcantenos falarespopulares─foramelesquedeixaramnoléxicobaianoaspalavrascomo dendê , bunda , samba , candomblé , quiabo , macumba e umbanda .Osbantosestavampresentes nocarnavaldefinsdoséculoXIX,comentidadescomoosPândegosdaÁfrica;foram responsáveispelaintroduçãodacapoeiraedosambanaBahia(enoBrasilemgeral); mantiveramsuastradicionaisreligiõesatravésdoscandombléscongoeangola.

O fluxo dos bantos para a Bahia pára nos fins do século XVIII, quando teve início um período de influência marcadamente sudanesa, com a chegada dos fons do

Benin, identificados como jêjes, e dos iorubás, conhecidos também como nagôs. Por terem vindo em grande número e pelo intercâmbio constante com a costa ocidental africana,exercemconsiderávelsupremacianoséculoXIXepassama ocuparolugar central entre as culturas africanas. Já naquela época a Cidade da Bahia era o caldo cultural, porque quando os escravos chegaram para a Bahia, foram estrategicamente misturados pelos senhores de engenho, para que não houvesse a concentração das pessoasdamesmanação,afimdeevitarumarevoltaorganizada.Então,misturaramse váriasnaçõeseaculturadelescomculturasdiferents.Comasuperioridadenumerosa dosnegros,Salvadortornouse,literalmente,umacidadeafricanizada,“ pautada em um florescimento cultural jêje-nâgo, com grande ênfase na preservação de formas institucionais religiosas, animadas por uma recente memória ”. 8Masentendesequea camada portuguesa com a religião católica não desapareceu e portanto a Cidade da

Bahiapermaneceuportuguesabantojêjenagôeosincretismoeadiversidadecultural setornaumadascaracterísticasmarcantesdaBahia.

8Bacelar,Jeferson. A hierarquia das raças. Negros e brancos em Salvador .RiodeJaneiro,Pallas,2001.

10 Aqui é conveniente sublinhar a estabilidade que caracterizou a história demográficadaregião.ABahiaficouquaseinatingidaporaquiloque,daperspectivada história geral do Brasil, é chamado de “migrações secundárias” (com a exceção da imigração iberiana, que não mudou seriamente a distribuição das nações e cultura instaladanaBahia).

Atéaproclamaçãodeleiqueproibiuotráficodosnegros,em1851,chegaramà

Bahia negros de várias nações para que trabalhassem como escravos nos engenhos baianos e nos campos de tabaco. Mas os grandes dias do açúcar acabaram com o desenvolvimento da tecnologia do uso da beterraba para a produção açucareira na

EuropaecomoincrementodosengenhosdeaçúcarnoCaribe.Echegoumaisumgolpe

–adescobertadoouronasMinasGerais,noúltimodecêniodoséculoXVII.Mesmoao longodaprimeirametadedoséculoXVIII,emfavordesuasfunçõesdecomercial e centro político, Salvador era ainda a mais importante, rica e populosa cidade do

Impérioportuguês,depoisdeLisboa. 9OquemaishumilhouavaidosaCidadedaBahia foiamudançadacapitalparaoRiodeJaneiro,queofereceuasmelhorespossibilidades paraocomérciodoouro,em1763.Estamudança,bemcomoainstalaçãodasededa monarquialusitana,em1810,e,posteriormente,dasededoimpériobrasileiroatestama significânciasecundáriada“velhamulata”,reduzidadecentrodoBrasilColôniaauma função meramente regional. A Bahia vai se encerrando em si mesma e em seu isolamentomantémaarcaicatramaprodutivaquenãofoimuitoatingidapelaalteração revolucionárianasrelaçõestrabalhistascoma“LeiÁurea”de1888oqueaceleraseu declínio. O certo isolamento intesificou as relações pessoais e, assim, promoveu o desenvolvimentodecostumeslocais.NapassagemdoséculoXIXparaoséculoXX,

9Risério,António(1988),op.cit.,p.147.

11 Salvador até deixa de ser o centro regional, com Recife assumindo o comando das operaçõesnordestinaseaexpansãodoscacauaisnoeixoIlhésItabuna. 10

Até a década de 50 do século passado, Salvador continua a ser uma cidade ancoradanastradições,hierarquizadasócioracialmente,conservadoraepréindustrial.

A este propósito, falase às vezes de “enigma baiano”. A Bahia não teve lugar na primeiraondademodernizaçãourbanosocial,quesearmounopaísapósarevolução de1930eaestruturaeconómicadaprovínciapermaneceessencialmenteagromercantil.

Só nos anos 50, com o desenvolvimento industrial provocado pela descoberta do petróleo e com a vinda da Petrobrás para o Recôncavo, podemos observar mudanças sérias na sociedade e na cultura baiana. Vamos dedicar mais espaço ao conjunto de elementosqueteveinfluêncianessaalteraçãomaisacentuadanosmodelosrelacionais doshabitantesdestaregiãoenocampodaculturaequepossibilitouonascimentoda tropicália. Até podemos dizer que se criou uma atmosfera de efervescência cultural propícia ao aparecimento, à formação e ao desenvolvimento de uma personalidade cultural criativa que se encarnou em artistaspensadores como Caetano Veloso ou

GlauberRocha.

De boa parte responsável por esta situação foi a implantação da Universidade

FederaldaBahia,em1946,quefoidirigidapeloreitorEdgarSantos.Elefoiumapeça chave,personagemfundamentalnoprocessododesenvolvimentoculturaldeSalvador.

Esta afirmação pode ser ilustrada pelas palavras de Gilberto Freyre, o importante antropólogobrasileiro:“ Encontrei, o ano passado, a Bahia ainda mais cheia que nos anos anteiores do espírito universitário que vai comunicando à sua vida e à sua cultura o reitor Edgard Santos...Pois, a ação renovadora desse reitor verdadeiramente magnífico não se vem limitando a dar novo ânimo ao sistema universitário baiano,

10 Ibidem,p.151.

12 considerado apenas nos seus limites convencionais. Ao contrário: ele vem se especializando em associar, de modo mais vivo, a Cidade à Universidade ”. 11 Oreitor concentrouse na instituição universitária, fazendo dela o centro da agitação cultural.

Mas,comoficaclarodacitaçãodeGilbertoFreyre,aUniversidadenãoficouencerrada em si; Egdard Santos planejava grande difusão da Universidade rumo à Cidade. Por exemplo,naaberturadosSemináriosInternacionaisdeMúsica,realizadosem1958,o reitor acentua a importância dos músicos “na vida espiritual da cidade”. 12 A

Universidadefoimuitoinovadora–em1956,porexemplo,abriramalioúnicocursode dançadenívelsuperiornopaís.

Entreasdécadasde19501960,aisoladaetradicionalCidadedaBahiaachouse de repente sob um forte influxo de informações internacionais. Foi porque Edgard

Santosdeixousecercarporcolaboradoresestrangeiros.AEscoladaDançarecebeua polonesaYankaRudzka,umadaspioneirasdadançamodernanoBrasil,oconvitedo reitor foi aceitadopelo músico alemão Hans Koellreutter, quetornou o Seminário da

Músicaem umcentrodeliberdadecriativaeexperimentaçãoartísticomusical.Soba propostadopensadorportuguêsAgostinhodaSilva,foipelaUFBAcriadooCentrodos

Estudos AfroOrientais (CEAO), o núcleo do conhecimento brasileiro acerca das realidades africanas e asiáticas. Outras pessoas com idéias vanguardistas desembarcaramnaBahia.Porexemplo,ocompositorexperimentalWalterSmetak,foi umadasfontesdainspiraçãoparaCaetanoVelosoeGilbertoGileosdoiselogiamno em sua obra. 13 Além da Universidade, outras instituções formaram o “avantgarde” baiano.NacidadefoiestabelecidooCineclubebaiano,decisivoparaadivulgaçãodos filmes nãocomercias e para a criação do Cinema Novo no país, representado por

11 Apud:Risério,António(1995),op.cit.,p.78. 12 Ibidem,p.41. 13 Comoapontaonomedomúsico,eleédaorigemtcheca.

13 GlauberRocha. 14 Sobocomandodeoutraestrangeira,arquitetaitalianaLinaBoBardi, foiconstruídaoutrainstituiçãoextrauniversitária,oMuseudaArteModerna,queéuma peçafundamentalnodesenvolvimentoculturaldacidade.

Para a ilustração da importância dos acontecimentos culturais em Salvador na década de 50 e 60, para o grupo dos artistas como Glauber Rocha, Gilberto Gil ou

Maria Bethânia, ouçamos as palavras de Caetano Veloso: “ Todos dessa geração devemos muito ao reitor Edgard Santos, devemos enormemente a dona Lina [Bo

Bardi]...Lina é responsável pela civilização de uma geração ”. 15 Os protagonistas e consumidores dessa fase do florescimento cultural, chamado também de o “avant garde” baiano, eram preponderantemente os brancos 16 , a minoria da população de

Salvador.Masosnegrosnãoficaramforadaagitaçãoculturaldaépoca,apesardenão pertenceremao“avantgarde”baiano.Sobregrandeavaliaçãodaculturanegravamos falaraseguir.

Seria injusto não mencionar outras personalidades que não pertenceram ao

“avantgarde”, mas que também contribuíram com seu trabalho ao desenvolvimento cultural da Bahia. Como já foi o caso dos artistas e pensadores citados, muitas delas eramestrangeiros.Inspiradopelaleituradoromance Jubiabá ,deJorgeAmado,eem buscadeumaculturavital,deraiznegroafricana,ofrancêsPierreVergerdecidiumorar naBahia.Impressionadopelabelezaeprofundidadedocultodocandomblé,passoua freqüentarestemundoeemsuasfotografiasapanhavaavidadosnegrosbaianos.Sema formaçãoacadêmica,tornouseumantropólogorespeitadoeumespecialistanaáreadas relaçãoesBahiaÁfrica.Tambémopintordeorigemargentina,conhecidopeloapelido

Carybé,achouafontedainspiraçãonomundodosrituaisafrobrasileiros,nosorixáse

14 Maisumaalusãoaoambientetcheco:ofilmeBarraventodeGlauberRochafoiagraciado,em1962, comoprêmodemelhorfilmedediretorestreantenofestivaldeKarlovyVary. 15 Apud:Risério,António(1995),op.cit.,p.137. 16 UmadasexceçõeséjustamenteGilbertoGil.

14 nofolcloredosbaianos.EletambémveiodelongeporcausadasreferênciasdaBahia nos livros de Jorge Amado e, apesar de não ser baiano, ele é considerado o maior retratista da chamada baianidade. A todos acima referidos, aos artistas vanguardistas, assim como a Verger e a Carybé, dedica as palavras de homenagem o escritor Jorge

Amado,quenãopodefaltar,juntamentecomDorivalCaymmi,nalistadosnomesque contribuíramaoflorescimentodaculturabaiananasdécadasde50e60.

GraçasaotrabalhodaspersonalidadescomoVergerouCarybé,nadécadade70 desenvolvese a propagação da cultura negra junto com a criação dos blocos afro, organizaçõescomunitáriasdosnegros,comoIlêAiyêe.Aculturanegrajánão

é marginalizada e, junto com aquela cultura “superior”, criada sob a influência vandguardista nos anos 60, constrói a cultura baiana contemporânea, talvez a mais significativaexpressãoculturaldoBrasilinteiro.

15 3. A baianidade AprópriaanálisedoselementosbaianosnaobradeCaetanoVelosoeGilberto

Gilnãopodeserfeitasemoesclarecimentodoconceitode„baianidade“quepodeser chamado,segundováriosautores,tambémde„identidadebaiana“,„idéiadaBahia“ou

„o que faz ser baiano“. Mas novamente queremos sublinhar que essa baianidade diz respeitoapenasàcidadedeSalvadoreaoRecôncavodaBaiadeTodososSantoscom ascidadeshistóricascomoSantoAmarodaPurificação,Cachoeira,SãoFelixeoutras.

Oconceitodebaianidadetornousetãofrequentequemereceuatéumverbete numdosdicionáriosdalínguaportuguesa,noAurélio.Lápodemosler:“ 1. Maneiras, atitudes, sentimento, próprios de baiano. 2. Amor intenso à Bahia, à sua gente, aos seus costumes ”. O sociólogo baiano Milton Moura, doutor na UFBA, tentou definir a baianidademaiscomplexamente:“ A baianidade é entendida como um texto identitário, ou seja, que realiza a asserção direta de um perfil numa dinâmica de identificação. É compreendida como um ethos baseado em três pilares: a familiaridade, que supõe a ambivalência numa sociedade tão desigual, a sensualidade associada à naturalização de papéis e posturas e a religiosidade que costuma acontecer como mistificação numa sociedade tão tradicional ”.17

Então,Mourapropôsaquiostrêspilaresbásicosdabaianidade,a familiaridade , a sensualidade e a religiosidade . Nessas categorias podem caber ainda outras que parecem mais explícitas e vêm à cabeça de muitas pessoas logo quando pensam na

Bahiaanascaracterísticasdobaianotípico.Maisacertadonosparecea alegria queéa essência das festas de Salvador e do Recôncavo. Acrescentaríamos ainda a hospitalidade ea cordialidade ,masessastalvezcaibamnacategoriadafamiliaridade dosociólogoMiltonMoura.

17 Moura,Milton. Carnaval e Baianidade .TesededoutoradodaUFBA,Salvador,2001,p.63.

16 Asensualidadedosbaianospoderiaseràsvezestrocadaatépelasexualidade,eo sexonãopodeestarforadapautadabaianidade.Oassuntosempreesteveassociadoà

Bahia,eprincipalmenteàsmulheresbaianas,emuitasvezesfoiabordadonaliteratura, chegalembraraRitaBaiana,mulataassanhadadoromancedeAlúzioAzevedoouas numerosas personagens do escritor Jorge Amado. A imagem dos baianos como sexualmentedisponíveis,assecíveis,atélascivosémuitoespalhadaentreosbrasileiros do Sul e também entre os estrangeiros. Muitos deles escolhem a Bahia só por causa dessafamaevêmlácomoturistassexuais.

Faltaaindaumaspectodabaianidadequeémuitoimporante.Podemolochamar a primazia .Osbaianossesentemmuitoorgulhosdesuamaiorcidadequeécheiade antiguidadehistórica.SãobemconscientesdaimportânciadeSalvadorcomoaprimeira capitaldoBrasil,„aprimogênitadeCabral“ 18 .StefanZweig,comseuolhareuropeu,foi enfático: „ A Bahia é para o Novo Mundo o que para nós são as metrópoles milenárias “. 19 ABahiaapresentaumaidentidadeculturalespecífica,orgulhosadeseu passado,costumesetradições.Nenhumoutroestadobrasileiroapreciatantoastradições e a originalidade. Desse fato também provém a autoestima dos baianos e a certa sensação de diferença. Milton Moura disse o seguinte: „ Parece que um dos itens da baianidade é justamente sentirmo-nos diferentes. Claro, toda a identidade é contrástica, etc, etc. Mas a própria diferença, como módulo, é um valor para os baianos…não? “20

Osconceitosdabaianidadereferidos(aalegria,afamiliaridade,acordialidade,a hospitalidade,asensualidade/asexualidade,areligiosidade,aprimazia)sãoatribuídosa todos os baianos e passam a ser algo como a marca registrada da Bahia. Essas

18 Risério,António. Caymmi: uma utopia de lugar .SãoPaulo,Perspectiva,1993,p.113. 19 Apud:Risério,António(1993),op.cit.,p.113. 20 Moura,Miltonop.cit.,p.68.

17 construçõessãomuitasvezesutilizadas,porexemplo,pelaBahiatursa(principalórgão responsávelpelo turismo na Bahia), como atraçãopara turistas(eelesmesmovêma

SalvadorparaveraprimeiracapitaldoBrasil,curtirasfestas,admirarasbelasbaianas ouviverumaexperiênciareligiosaextraordinárianoterreirodocandomblé),ejásãotão enraizadasnopensamentodosbrasileiros,assimcomodosestrangeiros,queseafinal tornaramparamuitaspessoasaverdadeincontestável.

Todas as características atribuídas aos baianos nos parágrafos anteriores são positivas.Seráqueobaianoésemjaça?Claroquenão.AvisãobrasileiradaBahiae dosbaianosécarimbadaporumacertaambivalência.ABahiacomseushabitantesnão

é só a terra prometida, sedutora, idealizada. Há também a opinião oposta em que a expressão „baiano“ ganhou a conotação pejorativa. É associada às grandes massas migratóriasdosnordestinosparaSãoPaulo,queforamrecebidasnametrópolesulista commuitoreceio.Naquelaépoca,nadécadade40doséculopassado,chegavamsóos nordestinos sem qualificação, ameaçando assim as classes populares. Os paulistas reagiram desse jeito: começaram a inventar piadas sobre o baiano porque o representantemaisvisíveldosnordestinosfoiobaiano.Atésurgiuanovapalavracom sentido despreciativo, “baianada“. Significa, segundo o dicionário Aurélio, “ação desleal,suja;sujeira,patifaria“.EssavisãodobaianopermanecenosEstadosdoSulaté hojeeosbaianoslátêmqueenfrentarmuitospreconceitos.Obaianoéaumsótempo idealizado e depreciado, amado e hostilizado. Além de considerado “burro“, ele é também preguiçoso. O mito da preguiça baiana é um traço do preconceito contra os imigrantes, mas pode significar também o preconceito racial porque o baiano tem sangue negro na veia. E justamente o rótulo que mais irrita os baianos é a fama de preguisoso.Éverdadequeosprópriosmúsicosbaianosforneceramosingredientespara estaatribuição.Elesmuitasvezesmostraramascaracterísticasdiferenciadasemrelação

18 àquelas associadas normalmente às maiores cidades brasileiras, como por exemplo, diligência, empenho, indústria e celeridade com que tudo se faz. 21 Mas a visão idealizadatambémnãodesapareceu.

TudoquefoiditoacimaéaimagemdaBahiamaisaceitaentreosbrasileirosa tambémosestrangeiroseénecessáriodizerquesetratadeumaimagemcriada,falase até do mito da Bahia. Mesmo nesse sentido pronunciouse sobre a Bahia Caetano

Velosoedeixemossoaropensamentodele.Acitaçãoélonga,maspreciosa:

“Olha,voucomeçarfalandodaBahiaporqueéoquemaissei,eusoudelá...Temo seguinte:háumnúmeromuitograndedebonsartistas, na música ou nas outras áreas,quesãobaianos.Poroutrolado,aBahiafoiaprimeiracapitaletemainda hoje vários bairros onde a arquitetura é interessantíssima, e é uma cidade com maioriadosnegrosnoBrasil,éumacidadebasicamentenegra,agentepodedizer. Então, é uma cidade que desperta sempre...por exemplo, no tempo do teatro de revistatodoshowtinhaqueterminarcomumahomenagemàBahia.Asescolasde sambavoltaemeiadesfilamcomumenredosendoBahia,ehámilhõesdemúsicas feitassobreaBahia,ehátodoummistério,ummitoeumfolcloreemtornoda Bahia,porqueaBahiaficousendocomoumaraiz,comosendoumlugar...ondeo Brasil é mais profundo, essa coisa toda. Por causa desses elementos e da mitificaçãoqueesseselementosreceberam,nãoé?Então,numpaísbasicamente semraízes,sevocêforcompararqualquerpaísdaAméricacomospaíseseuropeus ou com países africanos, você vai notar que a América toda é uma cafonada de cima e baixo, ou seja, é um continente sem passado, né? O passado americano resumesenoaniquilamentodasnaçõesindígenas,né?Claroquetambémnoque veiodepoisdisso,ouseja,nacolonizaçãoeuropeia,inglesa,espanhola,francesa, holandesaouportuguesa,enaimportaçãodeescravoseestedetalheédamaior importâncianestenossocontinente.Então,você...eutôfalandocomosesoubesse, meioprofessoralmente,masnãoéisso...sãocoisasquepassamnaminhacabeçae euvoufalando...Vocêtempermanênciadeumalínguaeuropéia,umacontinuação, masjáemoutrascondiçõesqueasdeumaculturaeuropéia,entendeu?Entãoisso dá uma bagunça danada, você tem ao mesmo tempo fossas, o americano tem fossas, o americano todo ele, do Canadá a Patagônia, fossas por falta de raízes, 21 EspecialmenteDorivalCaymmi,alémdesuasmúsicas,querefletemumritmolentoemotivosdavida sossegadadaBahia,comsuafalalentaemuitosdepoimentossobresuapregiça,ajudouaconstruiresse mito.

19 fossas de importação, necessidade de afirmar o caráter nacional artificialmente, coisaquenãoacontecenaEuropa,táentendendo?Querdizer,issoéumavisãoque eutenho.Seipoucodehistória,maséoquesintonascoisasdeagora,talveznem sejaissohistoricamente,maséumamaneiradedizeroquevejoatualmente.Então, aBahia,noBrasil,temfeitoumpoucoessepapeldemitoderaiz,táentendendo? Eunãoquerodesmentirnão,achoqueaBahiatemforça,éumlugarincrível...o reconcavo baiano é um negócio maravilhoso, mas tenho uma distorção muito grandeprafalarporquesoudelá.Porumladotômaisaptoafalarporquevivitodo otempolá,masporoutroseiqueéumavisãodistorcida,profundamenteligadaao lugar. Mas tenho maturidade bastante pra saber que não interessa pra gente...ultimamente vem se falando muito aqui no Sul que a Bahia tem tudo concentrado,queaBahiaéquevaidizerascoisas,quedaBahiaquesaitudo,não seioquê.” 22 Muitos baianos dizem que a baianidade é uma identidade construída para satisfazer interesses como os da indústria do turismo, por exemplo. E é criada pela mídia que resolveu investir fundo nessa idéia de uma Bahia exótica e embarcou na supervalorização do que acha que é cultura afrobrasileira porque esta agrada muito e também vende por causa do exotismo. E a mídia encontrase nas mãos dos brancos, portanto podemos dizer que a identidade baiana não é criada pelos próprios baianos

(preponderamente negros), mas pela minoria branca que utiliza o mito do exotismo ligado ao negro. 23 Nesse aspecto podemos unir a baianidade com a identidade afro baiana.Masaquiénecessáriomaisumavezsalientarquenãoexisteumamarcaenão existeumaidentidade;sóexisteatendênciadegeneralizar,padronizarequerertipificar.

Exitemduasteoriasdeconstruçãodabaianidade.UmadizqueexisteumaBahia

“endógena”eabaianidadeemergedebaixoparacima.Existeoethosbaiano,umaalma dacidadequeseconstituiudepoisde400anosdesincretismo,damisturaafrolusotupi.

Nos últimos 20 anos vem se constituindo outra teoria, dizendo que isso é um mito constitutivodaidentidade,masnãopassadeummito.Segundoessateoria,aBahiafoi

22 Veloso,Caetano . Alegria, alegria. RiodeJaneiro,PedraQRonca,1977,p.124125. 23 Ver:http://www.sbpccultural.ufba.br/index.html

20 construídadeforaparadentroporque,emprimeirolugar,elaéumaimagemopositiva daquiloquefoioRiodeJaneironoséculoantepassado.ORiotornouseametrópole, capitaldoBrasil,eaBahiatentouseconstruirporoposição.Portanto,diferentemente doRiodeJaneiro,vairepresentaratradição,opassado,asraízesetambémanegritude.

NaprimeirametadedoséculoXXametrópoleculturaleindustrialbrasileiradeslocase paraSãoPauloenessemomentotambémSãoPaulovaiproduzirumaforteimagemda baianidade, colocando em oposição a crescente megalópole, que representa a civilização, o trabalho, a modernidade, a civilidade e a razão, e a Bahia com seu anacronismo,preguiça,passado,exuberânciaemística. 24

ÉclaroquenosencontramosaquicomumameraestereotipizaçãodaBahia.O antropólogo da UFBA Roberto Albergaria vê isso assim: “ O que o baiano é?

Predominante evangélico. O que o baiano quer? É comer McDonald´s, não acarajé. É botar sandalinha no pé? Não, é botar tênis Nike. Mas não interessa dizer isso, por que a imagem da Bahia que vigora é a imagem da Bahia negra, tradicional, da natureza, da mística .” 25 Parecequeobaianohojeemdia,segundoAlbergaria,nãoénemcatólico, nemsegueasreligiõesafrobrasileiras;nãogostadaculináriabaianaedeoutrascoisas tradicionais.Apesardisso,temosváriascamadassuperpostasdeimagenstradicionaisda

Bahia, que vão se acrescentando e se intensificando pela força da mídia e por isso o mitoda Bahiahojeétãoforte.Aquelabaianidadetradicional,aquelacidadepraieira, festeira,queCaymmicanta,queJorgeAmadodescreve,queVergéfotografaeetniciza, não existe mais. Encontramonos na época, quando por causa da globalização muita gente sente a crise da identidade. Provavelmente por causa disso, muitos baianos insistem em manter a baianidade viva. Acabamos este capítulo com uma certa desconstrução do termo da baianidade, mostrando que ele já não corresponde 24 Ver:http://www.sbpccultural.ufba.br/index.html 25 DaentrevistacomProf.Dr.RobertoAlbergaria.PublicadonaInternet:WWW http://www.sbpccultural.ufba.br/index.html

21 plenamente à sua característica ( maneiras, atitudes, sentimento, próprios de baiano ).

Notrabalhoaseguir,porém,vamoscontinuarausarotermoporqueestáestreitamente ligadoaoimagináriodascançõesanalisadas.

4. A Bahia na MPB AposiçãodaBahianahistóriadamúsicabrasileiraerasempreexcepcional.A

Bahia é às vezes considerada como o estado principal da musicalidade brasileira e, como diz uma canção famosíssima, é também o berço do gênero mais brasileiro: “o samba nasceu lá na Bahia“. É bem notável a importância creditada à música e aos músicosnaconstruçãododiscursodabaianidadeporquesãoestesaqueméatribuídoo papelderepresentantesoficiais,embaixadoresou,digamos,portavozesdaBahia.

Os vestígios da presença da Bahia na música popular brasileira podemos encontrarcommuitafacilidadedesdeaintroduçãodaindústriafonográficaaoBrasil. 26

Averdadeiraexplosãodostemasbaianosnamúsicabrasileiracheganosanos30como compositor mineiro Ary Barroso. Ele não visitou a Bahia até 1937, quando já tinha escrito várias canções com temas baianos, mas isso não lhe impediu imortalizar esta região em sua obra, cantando as belezas das mulheres e da cidade ou os sabores da culináriabaiana.FoielequemelevouocréditodaBahianoBrasilinteiro.Clássicasse tornaram as canções como “Bahia“, o samba “Na Baixa dos Sapateiros“ ou “No tabuleirodabaiana“.

AryBarrosofaladopontodevistadequemvisitaaBahia,masomaisfamoso compositor dos temas baianos é um “verdadeiro baiano”, porque provém da cidade

26 Nesserespeito,nãoficaparanósseminteresseofatoqueapessoaquedivulgouoinventodeThomas AlvaEdisonnoBrasilfoiotchecodeorigemjudaica,nascidoemMilevskouTábora,FredericoFigner. Em1902,elegravouoprimeirodiscobrasileiro.Enestediscosaíuagravaçãodamúsicacomotítulo „Istoébom“,daautoriadeXistoBahia,interpretadapeloartistaconhecidopelaalcunhaBaiano.Sãoduas referênciasàBahiajácomaprimeiragravaçãobrasileira.Essas,porém,aindanãoseligamàtematica baiana

22 baianadeNazaré.Falamosdo“queridomoçoCaymmi”,comofoichamadopelogrande amigo, o escritor famoso Jorge Amado. Dorival Caymmi nasceu em 1914 e já seu primeirosucesso,aos25anos,édedicadoàtemáticabaiana.Éamúsica“Oqueéquea baianatem?”quefoigravadaporelejuntamentecomamaiorestrelabrasileiradaquela

época,CarmenMiranda. 27 DesdeessesucessoCaymmitomougostoemencantarsua terra e tornou se assim o maior promotor da Bahia. A prova deste fato pode ser a afirmaçãodosórgãosresponsáveispeloturismodaBahia,aBahiatursa,afirmandoque já nos anos 60 Caymmi era campeão em matéria de vender a Bahia para turistas potenciais. Fazia isso através das canções como “Você já foi à Bahia”, “Saudade da

Bahia”, “A lenda do Abaeté”, “Lá vem a baiana”, “Vatapá”, “Acontece que eu sou baiano”, músicas que falam da saudade do compositor, elogiam a beleza dos patrimôniosfísicoseculturaisdaBahia,comoasigrejaseagastronomiabaiana,com suapredileçãoemusodotípicoazeitededendê.AsletrasdeCaymmicantamaindaa sensualidade das baianas, com as elegantes rendas, colares e balangandãs que lhes vieram de suas ancestrais nagôse não esquecemde falar também de Itapuã, obairro soteropolitano,queCaymmioptouporsuamoradaparalongosanos.Ládeparoucoma cultura dos pescadores e essa se tornou um dos temas centrais de sua poesia. Sendo mulato, mantinha sempre a intimidade com os valores da “baianidade nagô” e isso também o levou ao terreiro da Mãe Menininhado Gantois, espelhandose nos versos que falam do mundo do candomblé. Mas qual é, afinal, a concepção da Bahia de

Dorival Caymmi? A Bahia dele encontrase ainda no estádio préindustrial, ancorada nastradições,atépodemosdizerqueésemiparalisada.Napoéticacaymmianahálugar sóparaacelebraçãodaBahia,aobradeleéplenadeumaBahiaideal,sedutora,cheia 27 „Oqueéqueabaianatem?“foiincluídanofilmedaproduçãoamericanadeWaltDisney,„Bananada Terra“.CarmenrecebeuasinstruçõesdeDorivalparadançaramúsicaedessamaneirasurgiuaimagem baianadegrandeartistabrasileira.ComessaimagemCarmenlevouseunomeàglorianosEstados Unidosedepoisconquistouorestodomundo.ParamaisinformaçõessobreCarmenMirandaeavidade DorivalCaymmiver:http//:www.dicionariompb.com.br

23 de alegria, com a gotinha de nostalgia amorosa, livre de atributos incômodos e indesejáveis.

OpesquisadornaáreadamúsicaLuízAméricoLisboaJúnior 28 juntouasletras de272músicasemquesefaladaBahia,entre1904e1964.Analisandoessascanções, chegamos à conclusão que a maioria se refere aos mesmos aspectos da Bahia como

Caymmi.Sãoosseguintes:

As ensualidade dosbaianos,mulheresouhomens.Ressaltaseotrajetípicodabaiana

(o exemplo insuperável deste tema ficará “O que é que a baiana tem?”) e as características como a faceirice , a brejeirice , o dengo . Às vezes se sublinha a malandragemdobaiano.

Asensualidadetransformadaemdança–o samba .Avidadobaianosignificacantare sambar.

A culinária quelevadendê,sobretudoacarajé,vatapáoucaruru.

A religiosidade ;omaiscitadoéoSenhordoBonfime,maistarde,comaaceitaçãodo candomblé,surgemmuitasreferênciasaosorixás,especialmenteaIemanjáeXangô.

O enigma loci deSalvador,comoslugaresdaarquiteturanobrecomoaPraçadaSé,o

Bonfim,ouoscantosmisteriososcomoItapuãouaBaixadosSapateiros.

Resumido,asletrasdamúsicadoperíodode19041964representamaquelelado ideal da baianidade (a sensualidade, a primazia e originalidade), da mesma maneira comofaziaDorivalCaymmi.Apareceramapenasrarasexceçõesdasletras,namaioria dos autores sulistas, que ressaltam a preguiça dos baianos (dizendo que estes não trabalham,vivemapenascantandoedançandoesãomalandros).

28 LisboaJúnior,LuizAmérico. A presença da Bahia na música popular brasileira .Brasília, MusiMed /LinhaGráficaEditora,1990.

24 5. As biografias

Nãoqueremosabrangermuitoamplamenteavidadestesmúsicosbaianos,mas algunsfatosbiográficosbásicosserãonecessáriosparaacompreensãodesuaobra.

5.1. A biografia de Caetano Veloso Caetano Emmanuel Vianna Telles Veloso 29 nasceu a 7 de agosto de 1942 em

Santo Amaro da Purificação, cidade pequena no Recôncavo baiano, conhecida pela tradicional produção de açúcar. É filho de Claudionor Veloso – “Dona Canô”, uma mulher muito admirada em Santo Amaro, e de José Veloso que trabalhou como funcionáriodosCorreioseTelégrafos.Tinhaseteirmãos,dosquaissedestacoutambém nocampodamúsicaairmãmaisnova,MariaBethânia.Aoscatorzeanos,mudasepara oRiodeJaneiro,ondepôdeusufruirdesdecedodeseusprogramasfavoritos,comoa músicaeocinema.

Após um anopassado no Rio regressa a SantoAmaro e, em 1959, conheceo trabalhodeJoãoGilbertoatravésdoLP“Chegadesaudade”.Esteseriaomúsicoque maisinfluênciasuatrajetóriaartística,comoCaetanoafirma:“ No João, parece que é tudo mais justo, necessário: melodia, as vogais, as consoantes, os sentimentos, o respeito por aquela forma, que ele reconheceu ali, o jeito daquelas coisas se expressarem esteticamente. João traduz a canção ”. 30 Em 1960 passa a morar em

Salvador, onde mais tarde ingressa na Faculdade de Letras da UFBA. Lá conhece e tornaseamigodoídoloquejáconheciapelaTV,GilbertoGil,e,em1964,juntamente comeleecomMariaBethânia,GalCostaeTomZé,fazemoshow“Nós,porexemplo” na ocasião da inauguração do teatro Vila Velha, em Salvador, que foi dirigida por

Caetano e que inaugura a carreira dos artistas. Esse show representa um marco 29 AbiografiacompletadeCaetano,do Dicionário Cravo Albin da MPB ,éacessívelnaInternet:WWW http://www.dicionariompb.com.br/detalhe.asp?nome=Caetano+Veloso. 30 Dicionário Albin Cravo da MPB .AcessívelnaInternet:WWWhttp://www.dicionariompb.com.br.

25 histórico, reunindo pela primeira vez o núcleo que futuramente será conhecido como

Doces Bárbaros. O mesmo grupo apresenta ainda o show “Novabossavelha e velha bossanova”.

Caetano e Gil mudam logo depois ao Sul do Brasil que oferece melhores oportunidadesparaosmúsicos,CaetanoaoRiodeJaneiro,abandonandoaFaculdadee acompanhandoMariaBethâniachamadaparasubstituirNaraLeãonoshow“Opinião”.

E segue o período dos festivais da música. Em 1966, Caetano recebe o prêmio pela melhorletrada“UmDia”noIIFestivaldeMPBdaTVRecord.Gravaseuprimeiro disco “Domingo”, em 1967, no qual inclui a canção “Alegria, alegria”, que é classificada no quarto lugar no III Festival da Record. Esse Festival foi o ponto de partida para o movimento tropicalista, movimento que reuniu Gilberto Gil, Torquato

Neto, José Carlos Capinam, Gal Costa ou Tom Zé, às vezes chamado grupo baiano.

Estemovimentovaiseranalisadomaisadiante.TambéménessefestivalondeCaetano chamaaatençãodospoetasconcretosAugustoeHaraldodeCamposeDécioPignatari, que o familiarizam com sua obra e crítica literária de Ezra Pound, James Joyce e

OswalddeAndrade,oqueterádegrandeimportâncianafasetropicalista.

Asituaçãopolíticavaiseagravandonaqueletempo.Ogovernomilitarprecisava de poderes excepcionais, que não constavam na Constituição. Assim, os Atos

Institucionais,queoprimiramaoposiçãoaogoverno,foramlançados.Issotemgrandes conseqüências para Caetano Veloso. Primeiro, seu samba “A voz do morto” foi censuradoeodiscocomamúsicafoirecolhidodaslojas.Masissoésócomeço.Dentre os Atos Institucionais editados, o AI nº5 é tido como mais repressivo e é visto pela maioriadosjovenscomoofechamentodosmeiosderesistênciapacíficaaoregime.AI nº5cerceoucompletamentealiberdadedeexpressão.Nodia27dedezembrode1968, aplicando este AI, Caetano foi preso juntamente com Gilberto Gil sob o pretexto de

26 desrespeitoaohinoeàbandeiradoBrasil.Foramlevadosparaoquarteldoexércitode

Marechal Deodoro, no Rio de Janeiro, permanecendo detidos por dois meses. A situação tornase insustentável e após o último show de despedida, realizada em

Salvadornosdias20e21dejulho,CaetanoVelosoeGilbertoGilembarcamjuntocom suasmulheres,asirmãsDedéeSandraGadelha,paraoexílionaInglaterra.Mesmono exílio,produçãodeCaetanonãopáraeelelançapeloseloinglêsdoisdiscos.

Emjaneirode1972,voltadefinitivamenteaoBrasilecontinuaemseutrabalho musical, colaborando com vários compositores e cantores, com Chico Buarque ou

MiltonNascimento,entreoutros.Nodia24dejunhode1974,10anosdepoisdoshow

“Nós,porexemplo”,CaetanoreencontraGalCosta,GilbertoGileMariaBethâniano elencodoespetáculo“DocesBárbaros”eamesmasituaçãoaconteceaindaem1994,no show“DocesBárbarosnaMangueira”.

Noiníciode1977,participa,aoladodeGilbertoGil,do2ºFestivalMundialde

ArteeCulturaNegra,emLagos(Nigéria)eoencontrocomaoriginalculturaafricana forneceváriosmotivosparaseutrabalho.Emabrildesseano,lançaseuprimeirolivro,

“Alegria,alegria”,umacompilaçãodeartigos,manifestosepoemas,alémdeentrevistas concedidasaoamigoepoetaWalySalomão.Atentativadeseexprimirnãosóatravés damúsicaedasletrascontinuaeCaetanoVelosotornaseoautordevárioslivros,dos quaismaisimportanteéolivro“Verdadetropical”,umrelatopessoalsobresuavisãodo mundo,lançadoem1997.

Após mais de 40 anos da carreira, Caetano Veloso continua a ser uma das pessoas mais respeitáveis no mundo da música brasileira e continua a compor novas músicas. Seu trabalho foi apreciado até no estrangeiro; em 2000, pelo CD “Livro”, recebeunacategoriaWorldMusicoPrêmioGrammyAwards.

27 5.2. A biografia de Gilberto Gil Os caminhos do destino de Gilberto Gil são muito parecidos com aqueles de

CaetanoVeloso,comojápudemosvernocapítuloanterior.

GilbertoPassosGilMoreira 31 nasceua26dejunhode1942emSalvador.Atéos nove anos de idade viveu com o pai, médico José Gil Moreira, e a mãe, professora primáriaClaudina,nacidadedeItuaçu,nointeriordaBahia,paraondefoicomvinte diasdenascido.Lácomeçaainteressarsepelamúsicadasbandasdacidadeepeloque ouvianorádio,comoOrlandoSilva,DorivalCaymmieLuizGonzaga,cujainfluênciaé notávelemváriosdiscosdeGilGilberto.DevoltaaSalvador,em1951,foimorarna casa da tia Margarida no bairro de Santo Antônio no centro histórico da cidade e lá começaaaprender,provavelmentesobaimpressãodamúsicadojámencionadoLuiz

Gonzaga, a tocar acordeom. Na juventude outro nordestino (baiano) famoso, João

Gilberto,comsuabossanovasetornaumainfluênciaimportanteparaeleeGilpassaa tocar violão: “ Quando o João Gilberto apareceu, eu disse: 'Taí o que eu queria'. E entrei na bossa nova com ele .” 32 Depoisdeterminarocolégio,inscrevesenocursode

AdministraçãodeEmpresasnaUFBA,ondeseformouem1964.Noiníciodacarreira artística, ainda em Salvador, apresentouse em programas de rádio e televisão. Foi atravésdessesprogramasqueganhouaadmiraçãodeCaetanoVeloso,quemaistardese tornou seu parceiro e grande amigo. No início da grande colaboração dos artistas há dois espetáculos “Nós, por exemplo” e “Nova bossa velha e velha bossa nova”, realizadosnoteatroVilaVelha,emSalvador.

Cedoapósaformatura,assimcomoCaetano,tambémGilbertoGilmudaaoSul dopaíseresideemSãoPaulo,ondetrabalhanamultinacionalGessyLever.Em1967,

31 AbiografiacompletadeGilbertoGil,do Dicionário Cravo Albin da MPB ,éacessívelnaInternet: WWWhttp://www.dicionariompb.com.br/detalhe.asp?nome=Gilberto+Gil. 32 Encartedodisco„GilbertoGil“,dasérie„ História da MPB - grandes compositores “.

28 abandonaseuempregoenosanosseguintesdedicaseapenasàmúsicaeparticipados festivaisdamúsicapopular,compondonovasenovascançõesetambémgrava,neste ano,seuprimeiroLP“Louvação”.OfestivalmaisimportanteparasuacarreiraéoIII

FestivaldaRecord,em1967,ondeGilbertotoca“Domingonoparque”,acompanhando pelosMutantes,umadasmúsicasmaisimpactantesdofestival,classificadaemsegundo lugar.“Alegria,alegria”,deCaetano,classificadaemquartolugar,formariajuntocom

“Domingonoparque”oembriãodomovimentotropicalista,emboaparteporcausada inserção deguitarras elétricas em uma música que não era rock.Em 1968, com uma propostadeantropofagiadevaloresculturaisestrangeirosbaseadaemidéiasdeOswald deAndrade,otropicalismoseconcretizoucom“Tropicáliaoupanisetcircensis”,disco conceitual que contou, além de Caetano e Gil, com os Mutantes, Torquato Neto,

Capinam,TomZé,NaraLeãoearranjosdomaestroRogérioDuprat.Afaixa“Geléia geral”,músicacompostaporGilbertoGilemparceriacomTorquatoNeto,teveespecial destaqueporrepresentar“ uma síntese dos cânones do próprio movimento tropicalista, além de ser um modelo de seu contorno poético ”. 33

Como já vimos na biografia de Caetano Veloso, em 1969, depois de serem presos pela ditadura, partem os dois músicos baianos com suas esposas para o exílio político na Inglaterra. Antes de partir, Gilberto Gil lança a irônica “Aquele abraço”, umadesuasmúsicasfamosas.DoexílioregressajuntamentecomCaetanoaoBrasilem

1972 e juntam se novamente com Gal e Bethânia, formando o grupo baiano Doces

Bárbaros. Os sentimentos depois da volta a terra natal descreve a canção “Back in

Bahia”.Voltaadescobriraculturanordestinasertaneja,quefazpartedesuainfância,e revitalizaanoLP“Espresso2222”.

33 Severiano,Jairo,HomendeMello,Zuza. Canção no tempo .SãoPaulo,Editora34,p.125.

29 Na década de 70, viaja Gilberto Gil várias vezes à África com a intenção de conhecer uma das raízes fundamentais da baianidade, a contribuição africana, e é naturalqueessaexperiênciaserefletedepoiscommaiorintensidadenaobradele,como porexemplonoálbum“Realce”,de1979,ouno“RaçaHumana”.

Em1993,vintecincoanosdepoisdodiscotropicalista“Tropicáliaoupaniset circensis”,CaetanoeGilretomamaidéiadoTropicalismoelançamjunto“Tropicália

2”.TambémaobradeGiléreconhecidainternacionalmente,quandoodisco“Quanta”, lançadoem1997,foipremiadocomoGrammynacategoriaWorldMusic.

MasCaetanoVelosoeGilbertoGilnãoserestringemapenasàmúsica.Osdois costumamexpressarasuaopiniãoatodososproblemasqueafligemoBrasil.Gilberto

GilfoioprimeironegroaintegraroConselhodeCulturadaBahiaeexerceuocargodo presidente da Fundação Gregório de Mattos. Seu interesse pela política sempre foi grande,tendosidoeleitovereadoremSalvadorem1988,anoemquelançouolivro“O poético e o político”, escrito em parceria com Antônio Risério. Como uma pessoa politicamente muita ativa, depois da queda da ditadura, no Partido Verde, recebeu o cargodeMinistrodaCulturanogovernodoatualPresidenteLuisInácioLuladaSilva.

30 6. O tropicalismo O movimento denominado tropicalismo ou tropicália é considerado o único movimentovanguardistaoriginalmentebrasileiro.Comoessemovimentosurgiuapartir das idéias de Caetano Veloso e Gilberto Gil, achamos indispensável caraterizar em breveasprincipaisfontesinspiradoras,asmanifestaçõeseasatividadesdotropicalismo.

Otropicalismoconectaseaotemadabaianidadeatravésdeseusprotagonistasporque grandepartedelessãodaBahia(àsvezesonúcleodostropicalistaséchamadogrupo baiano), apesar de não fazer da Bahia um de seus temas. Este fato é ilustrado pelas palavrasdeCaetanoVeloso:“... A existência da Bahia – o tropicalismo mal tratou de assunto ...” 34 .

Comojáinsinuamosnasbiografiasdosdoismúsicos,omovimentotropicalista surgiu em São Paulo após III Festival da Record, onde Caetano Veloso apresentou a música “Alegria, alegria” e Gilberto Gil “Domingo no parque”. Mas essas canções ainda não integraram um movimento e os cantores não se apresentaram como porta vozesdoqualquergrupo.Anteselestentaramexplicardeváriasformasanovidadedas composições,mostrandoasprincipaisinfluênciasquesofriam.Comovemosnatantas vezesrepetidaafirmaçãodoprópriolíderdotropicalismo,ainovaçãoteriaqueserfeita atravésda“ retomada da linha evolutiva da tradição da música brasileira na medida em que João Gilberto fez ". 35

Então,comoquiseramCaetanoeseuscompanheirosevoluiraMPB?Oprimeiro impulsofoiquebraroantagonismomúsicadeprotesto/jovemguarda,comofoi,segundo umprogramanaTVRecord,designadoosuaverockbrasileirocomercialcriadosoba influência de Elvis Presley e, posteriormente, dos Beatles. O primeiro passo foi a

34 Veloso,Caetano(1977),op.cit.,p97. 35 Apud:Tinhorão,JoséRamos. Pequena história da música popular: da modinha à lambada .SãoPaulo, ArtEdirora,1991,p.248.

31 inserçãodasguitarraselétricasnascançõesdeCaetanoeGil,oqueocorreujustamente no III Festival da Record. Esse fato não foi bem visto pela ala nacionalista da bossa nova.Portanto,oprimeiroimpulsotropicalistafoi,comainspiraçãodeartepop,abrir asportasparaoprodutoestrangeiro,combatendoaxenofobiaqueimpediaodiálogoda produçãonacionalcominternacional.Essaaberturasignificavatrabalharasquestõesdo universopopcomoainevitabilidadedoconsumo,oimediatismodapropaganda,avida urbana,usandomuitascitaçõesdomundoexterno,deumoutro,comfimdequestionar o problema. 36 Os futuros tropicalistas viam aquela retomada da linha evolutiva na adoçãodalinguagemuniversaldorockeessefatopodeserilustradomaisumavezpor próprio Caetano: “ Nego-me folclorizar meu subdesenvolvimento para compensar as dificuldades técnicas ”. 37 Malaceitaporumapartedopúblicoepelaalanacionalistado mundo musical, no entanto, desde o primeiro momento a atitude dos tropicalistas baianosrecebeuoapoiodecisivodosgruposmaisfechadosdamúsicae,oquetambém era muito importante, da poesia de vanguarda. Estes viam no novo movimento um reforço na luta contra o subdesenvolvimento do país, contra o tradicional, e a possibilidadedaaberturaparaointernacionaleouniversal. 38

Jáfoiditoqueospoetas,quecommaiorintensidademostraramointeressepela produçãodatropicália,eramosconcretistasdeSãoPaulo.Elesdescobriramdesdelogo asafinidadesentrealinguagemdogrupobaianoeoconcretismo,alémdeparantescode comportamento deles com as propostas antropofágicas de Oswald de Andrade.

Antropofagismo, a corrente literária liderada por Oswald de Andrade, que surgiu em

1928comoumaimportantetendênciadomodernismobrasileiro,ébaseadanaidéiada devoração cultural e teve algumas idéias incorporadas pelos tropicalistas. Celso

36 Favaretto,Celso. Tropicália – alegoria, alegria .SãoPaulo,AteliêEditorial,1996,p.2745. 37 Apud:Favaretto,Celso,op.cit.,p.27. 38 Paiano,Enor. Tropicalismo: Bananas ao vento no coração do Brasil.SãoPaulo,Scipione1996,p.44 48

32 Favaretto acha as seguintes afinidades: “ O que o tropicalismo retém do primitivismo antropofágico é mais a concepção cultural sincrética, o aspecto de pesquisa de técnicas de expressão, o humor corrosivo, a atitude anárquica com relação aos valores burgueses, do que a sua dimensão demográfica e a tendência em conciliar as culturas em conflito. Constrói um painel em que o universo sincrético se apresenta sob a forma de um presente contraditório, grotescamente monumentalizado, como uma hiperbóle distanciada de qualquer origem ”. 39 Comacontribuiçãodosconcretistas,principalmente de Augusto de Campos, as apresentações do grupo baiano passaram a configurar realmenteummovimento,apesarde,segundoGilbertoGil:“ Tropicalismo surgiu mais de uma preocupação entusiasmada pela discussão do novo do que propriamente como um movimento organizado ”. 40

Então,omovimentodotropicalismoassumiuasconstruçõesdabossanova,as idéiasdapoesiavanguardista,osconceitosdacontraculturaemqueseinscreviaaarte popedamúsicainternacionalàbasederock.Masaenumeraçãodasmanifestaçõesque subjazem o tropicalismo ainda não é completa. Quem teve em vista as atividades do movimento desde o início e acompanhou as entrevistas e os debates a respeito da cultura brasileira, dos quais participaram Caetano Veloso e Gilberto Gil, teve a oportunidade de ver ratificadas as influências que eles sofreram dos espetáculos realizadosparaocinema,paraoteatroeparaagaleria.

Ofilme,quecausoumaiorimpactonoambientedostropicalistas,foioexemplo daproduçãodoCinemaNovonoBrasil“Terraemtranse”,de1967,dirigidopeloamigo de Caetano e Gil, conhecido desde os tempos universitários em Salvador, Glauber

Rocha. Além da inovação formal e da busca radical de uma linguagem inovadora, o

39 Favaretto,Celso,op.cit.,p.49. 40 Apud:Cyntrão,SylviaHelena(org.),op.cit.,p.42.

33 filmetrouxeoquestionamentodapolíticaedaidentidadenacional,masnãodeforma didáticaemilitante,esimcomoumproblema.

Amanifestaçãodoteatroqueseaproximoudaspráticastropicalistasfoiapeça deOswalddeAndrade“Oreidavela”,encenadapelaprimeiravezem1967emSão

Paulo. Essa farsa também contém a questão política, mas com cinismo dedicase ao desenvolvimento mental e artístico do Brasil com o propósito de chocar a platéia. A respeito do filme “Terra em transe” e da peça “O rei da vela”, confirmando assim a importânciadessasmanifestaçãoesartísticas,CaetanoVelosoconfessou:“ Toda aquela coisa de Tropicália se formou diante de mim no dia em que vi “Terra em transe”...você sabe, eu compus Tropicália uma semana antes de ver “O rei da vela”, a primeira coisa que eu conheci de Oswald ”. 41

De todas as experiências que, em 19661967, se aproximavam melhor do procedimentotropicalista,quemoprimeiromelhorexpressouatendênciafoioartista pláticoHélioOiticica.Naexposição“Novaobjetividadebrasileira”,noMuseudeArte

Moderna em São Paulo, ele apresentou com seu trabalho intitulado “Tropicália” as principais tendências artísticas da época: vontade construtiva geral, tendência para o objeto,participaçãocorporal,tátil,visual,semântica,doespectador,tomadadeposição em relação a problemas políticos, sociais, éticos, tendência a uma arte coletiva e reformulaçãodoconceitoantiarte. 42 Doconceitoantiarteaproximaseatendência kitsch queéfrequentementeusadapelostropicalistas.Pelaretomadacríticadokitsch,definido como “ todo material arístico-literário considerado popularmente como de má qualidade, em geral de cunho sentimentalista ou sensacionista, mas produzido com o intuito de apelar para o gosto popular ”43 , os tropicalistas conseguiram abalar os padrões do bom gosto estabelecido na sociedade brasileira e, ao mesmo tempo, 41 Ibidem,p.41. 42 Ibidem,p.43. 43 Ibidem,p.61.

34 provocar e criar um sentido crítico. A permabilidade ao kitsch revelase também na participaçãonoprogramado,rejeitadopelamaioriadosmúsicossérios,onde osprotagonistasdotropicalismoapresentaramosverdadeiros happenings .44

Osmovimentosdavanguardalançaramseuideárioderupturaemmanifestos.O tropicalismotambémtemummanifesto,masesteédanaturezadiferentedaquelesda viradadoséculoXIXparaXX–éumdisco.ComaparticipaçãodosbaianosCaetano

Veloso,GilbertoGil,GalCosta,TomZé,RogérioDuprat,TorquatoNeto,Capiname deNaraLeão,musadabossanova,edogrupoOsMutantesfoilançado,emmaiode

1968,“Tropicáliaoupanisetcircensis”,queexprime,emformaqueexigeadecifração, as idéias do movimento. Música, letra, fotografia da capa e texto da contracapa combinamse num signo complexo, compreensível apenas para quém já está familiarizadocomopensamentodosprotagonistasdomovimento.Atéotítulododisco pedeumadecifração,concretamenteaparteemlatim.Essadeveremeteraotempodo pão e circo romano, mas a palavra circencis não existe em latim. 45 O título do disco mostraquetudocomeçacomhumor,noentanto,surgeumaquestão:éafunçãodaarte desviaropovodosseusproblemasreais,comoacontecianaépocaromana?

A cançaõ mais importante do disco “Tropicália ou panis et circensis”, ou até podemos dizer do movimento tropicalista, é “Tropicália”, composta em 1967 por

Caetano Veloso. Segundo ele, a canção não tinha nome, mas justificava para ele a existênciadodisco,domovimentoetambémdesuaprofissãodomúsico,queaindalhe pareciaprovisória.OnomefoipropostopelofotógrafoLuísCarlosBarretoquetinha

44 Maissobreoassuntoem:Paiano,Enor,op.cit.,p.4448. 45 Ibidem,p.40.

35 encontrado as afinidades entre a música de Caetano e a obra “Tropicália” de Hélio

Oiticica. 46

“Tropicália”surpeendejáemseuiníciocomacitaçãoparódicadeumtrechoda cartadePeroVazCaminha,acompanhadapelossonseruídos,queimitamoscantosde pássaroseorumordaselva. 47 Estaintroduçãoantecipatodaacançãoqueéconstruída atravésdejustaposiçãoesuperimposiçãodefrases,citaçõesefragmentossonoros,dos quais deveser erguidaaimagem do Brasil contemporâneo. O textoéestruturadoem torno da oposição dos elementos nacionais, dos fragmentos arcaicos e modernos.

Caetanousanacançãomuitascitações,que,comojávimos,éumadascaracterísticas do movimento tropicalista, e essas frases ditas por um outro sujeito coloca em contradição. Então, a imagem do país é construída e ao mesmo tempo desmontada, oscilando entre ojocosoe o sério. Algunspesquisadoresdenominam estaalternância carnavalização e descarnavalização .48

Aletradamúsicaécompostadecincoestrofes,intercaladasporrefrõesquedão

“vivas” a elementos nacionais, que também são destacados pela contradição. Nos refrõestemosentãoasoposiçõescomo“bossa”e“palhoça”,ondebossaapontaparao moderno, o que agrada a juventude urbana de classe média, enquanto as classes populareseoarcaicorepresentaapalhoça.Nooutrorefrãosãodadasemoposiçãoo bairrocariocadaclassemédiaeocentrodaBossaNova“Ipanema”com“Iracema”,a

índia de José de Alencar, um dos mais importantes símbolos da brasilidade, mas também algo, que se encontra no estado puro, intato pela civilização. Como a 46 MorãesdaSilva,Márcia. A polifonia nas letras das canções de Caetano Veloso .Acessícel: WWW 47 Aliás,essacitaçãosurgiuesponâneamenteduranteagravação,quandoobateristaDirceu,ouvindoa introduçãodacanção,lembrousedoparaísotropicaldescritoporVazdeCaminha.PauBrasildeOswald deAndradecomeçatambémcomumamontagemdostextosdeCaminhaeumadasrazãoparaincluira citaçãonamúsicapodeservistaemsuarelevância. 48 Estadenominaçãoéusada,porexemplo,porGirleneLima. Da Tropicália à Marginália: O intertexto („a que será que se destina“) na produção de Caetano Veloso .FeiradeSantana,Universidade EstadualdeFeiradeSantana,1999,p.78.

36 contradiçãoparaa“Bahia”,serviuaCaetano“Maria”,fazendoassimaluçãoaofilmede

LouisMallecomomesmotítulo,quefazareferênciaàsmulheresnaAméricaLatina.

Segundo a observação de Márcia Morães de Silva, na palavra Bahia, com a pronunciaçãodasúltimasduassílabasdestacadada,háqueseressaltaravozdosnegros baianos,osquaischamamapatroa,asenhoraaquemservemde“iáiá”. 49

Na primeira estrofe Caetano situa a si memo como narrador em Brasília, no centrodasdecisõesdopaís,ondesepassadaaçãosériaetransformadora(euorganizoo movimento)àaçãolúdica(euorientoocarnaval)e,afinal,àaçãooficialeconservadora

(eu inauguro o monumento). Mas apesar de verbos terem os sentidos bastante diferentes, Caetano tenta sugerir a sensação de que os elementos são equivalentes e intercambiáveisporusarexatamenteamesmaquantidadedesílabas,comoacentoforte colocado na mesma posição, e entoados com a mesma melodia. 50 A segunda estrofe descreve aquele monumento, inaugurado na estrofe anterior, e ele ganha aqui significadosdiferentes–tornaseantesumabrincadeiracarnavalesca.Maslogodepois o monumento revela o lado repugnante e, neste momento, Caetano Veloso ousa usar umacontradiçãomesmochocante:“ e no joelho uma criança sorridente feia e morta / estende a mão ”.Naterceiraestrofe,novamentedeparamonoscomacontraposiçãode felicidadeburguesa,modernidadeeelementosdebelezanatural:“ No pátio interno há uma piscina / com água azul da Amaralina / Coqueiro, brisa e fala nordestina e faróis ”.

Amaralina, coqueiro, brisa, fala nordestina e faróis, além de remontar à origem de

Caetano, são elementos típicos da paisagem da Bahia, mas também signos do subdesenvolvimentodentrododesenvolvimento.Napenúltimaestrofeoautorapresenta comoaimagemdaesquerdaévistanoBrasil.Háumaalusãoàguerrilha,naqualestava empenhada uma parte da esquerda estudantil, mas também é referido um símbolo

49 MorãesdaSilva,Márcia,op.cit. 50 Paiano,Enor,op.cit.,p.34.

37 brasileiro,aquirepresentandoonacionalismo,umsamba. 51 Acançãoterminacomum comentáriosobreocenáriomusicalbrasileiro:encontramonosaquicomduasalusões aos programas da televisão dedicadas à MPB (O Fino da Bossa, comandado pelos grandes cantores Elis Regina e Jair Rodrigues e O Fino da Fossa), e com a citação explícitadeumacançãodeRobertoCarlos,umdosprotagonistasdainternacionalização da música brasileira e representante da Jovem Guarda: “ que tudo mais vá pro inferno ”. 52

Vimos que Caetano mistura na canção “Tropicália” muitos dos ingredientes típicosparaotropicalismo.Eleusasedaironia,dasmetáforasedapolissemiacomo formasdaheterogeneidade,alémde“ justapor vozes para construir a imagem do Brasil e, ao mesmo tempo, desmontar mitos do nacionalismo ufanista e do Brasil como país onde tudo acaba em carnaval ”. 53 Seria possível dedicar ainda muito mais espaço às manifestaçãoesdotropicalismodeCaetanoVeloso,masissonãoéfundamentalparaa nossaquestão.Vamosproseguirparaaanálisedosváriosaspectosdabaianidadenão somentenaobradeCaetano,mastambémdeGilbertoGil.

51 Franchetti,PauloElias,Pecora,AlcyrBernardes.Caetano Veloso. Literatura comentada .SãoPaulo, AbrilEducação,1981. 52 Paiano,Enor,op.cit.,p38. 53 MorãesdaSilva,Márcia,op.cit.

38 7. A baianidade de Caetano Veloso e Gilberto Gil Paraonúcleodestetrabalhojuntamosomáximopossível,aproxidamentenove centenas das letras de Caetano Veloso e Gilberto Gil, sendo a fonte principal a

Internet. 54 HámuitascançõesnasquaisosdoismencionamexplicitamenteseuEstado natal,emoutrasasreferênciasàBahiasãomaisimplícitas. 55 Naanálisedabaianidade nasletrasdoscompositoresbaianosutilizamoscomocritériodaseleçãoointeressepor umabrangentedomodocomootemaBahiaéretratadoenãoapreocupaçãocomos detalhes. Assim, aos invés de dedicar uma atenção minuciosa a cada fragmento do enunciado, vamos tentar identificar alguns dos principais assuntos e idéias propostos pelospoetas,privilegiandoosentidocaptadonaletradacançãoemsuatotalidadeeno conjuntodasletras.Escolhemos,noentanto,sessentaeoitocanções,dasquaiscitamos notextoeque,inteiras,fazempartedestetrabalhonoanexo.

Identificamosdoisaspectoscentraisnessediscurso–deumlado,ostemasque sãomaisvisíveis,“aquilosobreoquesefala”e,deoutrolado,osconceitossubjacentes, ospressupostosquesãodefendidos,ouseja,“oquesefala”sobreessestemasbaianose

“como se fala”. O objectivo é perceber, além dos temas pautados, quais são as características com que eles são definidos e que traços positivos entram na argumentação para valorizálos. Alguns temas relacionados ao modo baiano de viver vão merecer uma exploração mais cuidadosa, pela recorrência e atenção com que aparecemnasletrasdascanções.

É possível identificar rapidamente a importância dos ritos coletivos na construção desse discurso, como as formas típicas de expressar religiosidade, de divertirse, de celebrar. Essa referência especial aos rituais deriva possivelmente da

54 WWWhttp://www.lyricssongs.com 55 ÉinteressantequeabaianidadedeCaetanoéumtraçotãosignificativodesuaobraqueumarevista, entrevistandoCaetanoVeloso,atéutilizouaparafrâsedacançãocaymmianaparaamanchete,destacando aorigemdeVeloso: Acontece que ele é baiano .

39 forçaqueamanifestaçãodaadesão,aexpressãopalpávelemuitasvezespúblicadessa adessão possui para solidificar a cumplicidade grupal – ao mesmo tempo em que se demonstra a adesão, o fazer parte, subentendese também o respeito, a confiança e a obediênciaaessatradição,jáqueseguirouentregarseaumatradiçãoéumaformade manifestação de fé. 56 Encontramos também abundantes referências a elementos mais idiossincráticos, que comporiam uma espécie de personalidade tipicamente baiana, comoestadosdeespírito,formasdeagir,sentimentos,desenvolturafísica.

7.1. Alegria

Ser alegre, ou seja, sentirse bem, satisfeito, expressar esse prazer de viver e tambémsercapazdecontagiarosoutroscomumestadodoespíritoanimado,otimistaé, possivelmente, reivindicado como a principal característica do “jeito baiano” nas composiçõesdasegundametadedoséculoXX.Tambémumtemabastantefrequentena poesia de Gil e Veloso é a alegria – um pilar da baianidade, por este trabalho considerado o mais importante. A alegria é mencionada, em várias formas, em numerosasmúsicas.Amaissignificantedastodasquefalamdealegriaebomespírito baianonospareceamúsica“Odara”,deCaetano,semqueessanemumavezmencione apalavra“alegre”ou“feliz”:“ Deixe eu dançar / Pro meu corpo ficar odara / Minha cara minha cuca ficar odara / Deixe eu cantar / Que é pro mundo ficar odara / Pra ficar tudo jóia rara / que se sonhara / Canto e danço que dará ”.Todaa letra,aindamaisnajunçãocomapartemusical,exprimeasensaçãodebemestar,mas achaveparainterpretaressacançãoseencontranapalavra“odara”.Otermo“odara” nãotemqualquersentidodefinidoporumempregousualemportuguês.Oquesignifica então?SegundoopróprioCaetano,eledeparoucomessetermodurantesuaestadiaem

56 Mariano,AgnesFrancinedeCarvalho,op.cit.,p.15.

40 Nigéria, no II Festival Mundial das Artes e Culturas Negras em Lagos, em 1977.

“Odara” é uma expressão iorubana, formada pelo pronome pessoal “ó” no qual vem embutido o verbo “ser” (ele é), mais o adjetivo “dára” que significa “lindo”. 57 É empregada, originariamente, com o sentido de estar bem ou sentirse feliz e assim tambémfuncionanacançãodeCaetano.Oresgatedoconceitode“odara”porCaetano

Veloso teve grande repercussão nos meios artísticos baianos e tornouse quase uma moda.OutragíriaqueCaetanoganhoudurantesuavisitaaNigériaé“TwoNairafifty

Kobo”,referenteaopreçoinvariáveldacorridadetáxiemquesedeslocavamcomGil nametrópoledeLagos.Essaexpressãomaistardeviraráotítulodeumacomposição homônima, em que é também sublinhada, da mesma maneira como já reparamos na canção “Odara”, a alegria exprimida através da música: “ O certo é ser gente linda e cantar, cantar, cantar / O certo é fazendo música ”.

Com a rapidez e a ambigüidade própria da poesia, em que se passa de um assunto a outro, Gilberto Gil começa tratando da importância da fé para se conviver comapobrezaesegueesboçandoumtratadodafilosofiadavidabaianaondeaalegria ocupaopontocentral:“ Onde a gente não tem pra comer / Mas de fome não morre /

Porque na Bahia tem mãe Iemanjá / De outro lado o Senhor do Bonfim / Que ajuda o baiano a viver / Pra cantar, pra sambar, pra valer pra morrer de alegria / Na festa de rua, no samba de roda / Na noite de lua, no canto do mar ”(“EuvimdaBahia”).Mais outroexemplodaonipresentealegrianavidadosbaianosdacanetadeGiléacanção

“Tradição”ondeoautordescreveaCidadedeSalvador no tempo que Lessa era goleiro do Bahia e encerra com seguintes versos: “ Sempre lindo e sempre sempre / Sempre rindo e sempre cantando ”. Aqui e no exemplo anterior, Gil associa, assim como

Caetano,aalegriacomadançaeocanto.

57 OconceitoOdaraéamplamenteanalisadopelonigerianoFelixAyoh’omidire,op.cit.,p.187190

41 7.2. Festas

Otemadaalegriaedançaéintimamenteligadocomasfestas.Festaéumaforte expressão do espírito baiano, mas a maioria das festas, tendo a origem religiosa, é também ligada com outro pilar da baianidade, com a religiosidade. 58 Essa ligação podemosobservarjánaletraanteriordeGilondeelemencionaaIemanjá,adivindade afrobrasileira,eSenhordoBonfimdoscatólicos.

Commaiorfreqüência,CaetanoeGilbertoencantamamaioreamaiscaóticade todasasfestas:ocarnaval.OcarnavaldeSalvadoréumdosmaioresnoBrasilepor muitoséconsideradoocarnavalmaistradicionaleomaisdemocráticoondecelebram pessoasdetodasasclassessemrestrições.UmespecíficodeSalvadoréaprocissãodos trios elétricos pela cidade. Cada trio tem seu grupo de músicos ou um cantor de destaqueeconsiderasegrandeprestígiocantarparaamultidãodemilhõesdepessoas.

CaetanoVelosoeGilbertoGilparticipavamdoeventodesdeosanos60eemsuaobra dedicaram muitas músicas ao carnaval de Salvador; Caetano Veloso até gravou um discointeirocomasmúsicascarnavalescas.Sobreelaselediz:“ Eu ainda não fiz um

56 Achoqueestaligaçãomerecepoucomaisespaço.UmfenômenomuitointeressanteemSalvadoreno Recôncavosãoasfestasdelargo–umaconjunçãodosagrado(missa,procissão)eprofano(festa popular),doscamposopostos,emboracomplementares.Aexpressão“festadelargo“jádirigenossa atençãoparaoespaçoondetudodeveocorrer:ofronteiroàigreja,apraça,olargo;massemotemploeo quesepassadentro–aquelapartesagrada,afestadolargonãoseriacompleta.Éverdadeque,nosdiasde hoje,onúmerocadavezmaiordepessoasparticipasódasegundapartedafestadolargo,quesegueao ritodafestapopularcomasoportunidadesdedançarebeberemabundânciaempúblicocoma consagraçãodasociedade.Ociclodasfestasdelargotemoinícionoúltimodiadenovembroquando começaafestadeNossaSenhoradaConceiçãodaPraia(duraatéoitodedezembro–odiadaSanta),em Cachoeiratemnodia4dedezembrofestadeSantaBárbara,quenoseusincretismomisturaocristanismo eocandombléeonde,alémdamissaàSanta,podemosassistiràcerimôniadedicadaàIansã.Ociclo continuanoprimeirodiadoanocomafestadeNossoSenhordosNavegantes,vemafamosíssima LavagemdoBonfimetudodesembocanafestamaiordoano,noCarnaval.OCarnavaltemocaráter diferentedasfestasdolargo.Asigrejasficamnesseperíodofechadaseosfoliõesocupamasruasepraças parasedivertir,sempensarnoconteúdoreligiosodesseacontecimento–aúltimaocasiãodesedivertire comerbemantesdojejumedacontemplaçãonos40diasdaquaresma.Ocarnavalsetornouumafesta secular,jánempodemosatribuirlheascaracterísticasdumafestaprofanaem sensu estrito .Asgrandes festividadespúblicasvoltamaocorrernaSemanaSanta,masessassãobastantediferentes.Passamsesó nocamposagrado(aigrejaouaprocissão)enãocontêmoladoprofano.Podemosentãodividirasfestas baianasemtrêscategorias:1.festascujotranstornosedátantodentroquantoforadasigrejas(Lavagem doBonfim,festasjuninas);2.asigrejasficamfechadaseafestividadecingeseàfoliadarua;3.oevento temlugarapenasnointeriordotemplo.

42 samba que fosse muito legal pra carnaval, porque as marchas-frevo são mais constantes e importantes no carnaval da Bahia do que o samba. Eu faço mais é no estilo do trio elétrico. Fiz “Atrás de Trio Elétrico”, “Deixa sangrar”, “Chuva, suor e cerveja”, “La barca”, com Moacir, e “Qual é a baiana?”. “Você não entende nada” também fiz para o carnaval .” 59 Por exemplo, numa letra dele chamada “Muitos carnavais”, o carnaval deixa de ser um simples substantivo, para tornarse uma expressãocomumsentidomaisamplo,assumindoasfunçõesdeadjetivo,advérbioe verbo,anunciandoummododesereagir:“ Somos / Nossos clarins /

Sempre a soar / Na noite, no dia / Bahia / Vamos viver / Vamos ver / Vamos ter / Vamos ser / Vamos desentender / Do que não / Carnavalizar a vida coração ”.

Paraosbaianosafestaprecisateraqualidade,masofoliãotambéméavaliado emsuacapacidadedeentregaaestacelebraçãocoletivaoutalvezemsuacoragemde deixarsecontagiar.Assim,comonaargumentaçãodoscompositoresmaisantigos,onde os críticos do samba eram taxados de “ruim da cabeça ou doente do pé”, quem não participadocarnavalhojeemdiarecebequalificativostambémpoucoelogiosos,como os de Veloso: “ Atrás do trio elétrico / Só não vai quem já morreu ” (“Atrás do trio elétrico”).

OtrioelétricodaBahiaémesmotãoauténticoquesetornouotemaprincipalde muitasmúsicas.Noinício,apenasafontedesom,depoistambémgeradordeluz,otrio chegaaserdefinidocomosol,elementocentraldafesta,aoredordoqualtudoorbita:

“Nem quero saber se o diabo nasceu / Foi na Bahia, foi na Bahia / O trio eletro-sol rompeu no meio-dia / No meio-dia “(Veloso).Omesmoautorcontinuacelebrandootrio elétrico e, usando as repetições dos finais das palavras, faz os jogos da palavra que aindaaumentamasensaçãodariquezaedaalegriadafestabaiana:“ No trio elétrico

59 Veloso,Caetano,op.cit,p.96.

43 rico / Rico, rico, rico, rico, rico deseendoidecer / De alegria, ria, ria, ria, ria / Que a luz se irradia dia, dia, dia, dia / Dia de sol na Bahia ” (“Cara a cara”). Como num cortejoouprocissão,osfoliõesdefinemsuaparticipaçãonafestividadefreqüentemente emfunçãodomododerelacionarsecomotrio.Seguir,correroudançaratrásdeleéa opçãopreferidapelosseusfiéisadoradores.Assimfaz,comojávimos,CaetanoVeloso efaztambémGilbertoGil:“ Tou atrás do trio / Tou atrás do fio pra ligar ”(“Atrásdo trio”). Em outra canção intitulada “Iniciática” ele referese a um enorme sucesso da autoriadeCaetano,damúsica“Chuva,suorecerveja”:“ Quando toda aquela gente /

Reparou que de repente chovia / Trio elétrico tocando Chuva, suor e cerveja / Bahia ”.

Otrioelétricoémesmoumfenômenodocarnavalbaianoeseupoderémaisumavez afirmadonosversosseguintes:“ Toda a eletricidade / Trio elétrico é o seu gerador /

Toda energia que magnetiza a cidade ”(Veloso–“Obaterdotambor”).

Oscompositoresbaianoscostumamdefinircomopioneiro,inventivoedeuma relevânciapereneotrabalhodeDodôeOsmar,indissociavelmenteligadoaocarnaval daBahia.DodôeOsmarsãoconsideradosospaisouinventoresdotrioelétricoeatéos dias de hoje um dos trios traz o nome deles. Caetano presta sua homenagem a esses músicos, nomeandoos entre outras personagens da cultura baiana na canção “Bahia, minha preta”: “ Te chamo Menininha do Gantois / Candolina, Marta, Didi, Dodô e

Osmar ”.

Todasascaracterísticasdocarnaval–aalegria,aeuforia,ocaosestãopresentes naslembrançasdeGilbertoGil:“ A primeira vez que pai me trouxe / Pra que eu fosse batizado / Na religião pagã do carnaval... Eu tive uma febre aquele dia / De alegria, de euforia, de prazer de viver...Nunca mais perdi o bloco que desce do Candeal / Fui batizado com doce / Doce no lugar do sal / Papapai cedo me trouxe / Pra brincar o carnaval ”. Estas lembranças musicadas são com propriedade intituladas “Doce

44 carnaval”eGilcitanelasacidadedointeriorondepassoualgunsanosdesuainfância,o

Candeal.

NumerosassãonaobradeVelosoeGilasreferênciasa“FilhosdeGandhi”o queéonomedeumdosmaisfamososgruposdeafoxédocarnavalbaiano.Oafoxéé um cortejo que sai pelas ruas de Salvador, celebrando os orixás, sendo por isso conhecidocomocandombléderua.Aquitemosmaisumexemplodeligaçãodasfestas comareligiosidadebaiana.Gilchegaatéaosincretismo,chamandonãosóosorixás, maistambémSenhordoBonfim:“ Filhos de Obá / Manda descer / Pra ver Filhos de

Gandhi / Senhor do Bonfim / Faz um favor pra mi / Chama o pessoal / Manda descer /

Pra ver Filhos de Gandhi / Oh! Meu Deus do céu / Na terra é carnaval ”.

O Senhor do Bonfim e a festa em sua louvação – Lavagem, organizada em

Salvador cada ano em meados de janeiro, é uma referência frequente na obra de

GilbertoGil.Eleatédedicouumamúsicaaesseeventoimportanteenaletrafazquase umareportagemjornalísticadaLavagem,descrevendoocaminhodocortejo,acomida servida durante a festa ou a típica roupa branca num dia quente do verão baiano:

“Lavagem do Bonfim, quinta-feira / Sai da Conceição da Praia a primeira / Talagada de batida na Praça Cairu / Levanta a pista ao alto o Lacerda ”.

Dia2defevereiro,todososanos,milharesdebaianoseturistaslotamaspraias do bairro soteropolitano Rio Vermelho para reverenciar Iemanjá, a Mãe D´Água.

Também esta festa não passou sem que ficasse adaptada nas letras dos compositores baianos.GilbertoGilcanta:“ Aqui estamos reunidos / À beira-mar / Nesta noite de ano- novo / Nesta festa de Iemanjá / Pra prestar nossa homenagem / De coração ”(“Deouro emarfim”).Nacanção“OndeoRioémaisbaiano”Caetanofazcertacomparaçãoda

Bahia e do Rio de Janeiro (isso podemos ver já no trocadilho no título da canção) e lembra a festa famosa do bairro do Rio Vermelho, da qual não pode estar presente:

45 ”Pensando em Jamelão no Rio Vermelho / Todo ano, todo ano / Na festa de Iemanjá /

Presente no dois de fevereiro / Nós aqui e ele lá / Isso é a confirmação de que a

Mangueira / É onde o Rio é mais baiano ”.

7.3. Religiosidade

A religiosidade continua sendo um tema pautado na música baiana da segunda metade do século XX. Mas, ao contrário da situação no período anterior, já não nos encontramoscomtantaimportânciadossantoscristãos.Nasceumnovopanteãocomvigor nasletrasdosdoispoetas.Sãoosorixásdatradiçãoafrobaiana.Comojámencionamos,na primeira metade do século o candomblé ainda era mal visto, mas, mais tarde, a familiaridadecomosrituaisecomosfundamentosdareligiãotornaseumsignodebom gosto e erudição. A significativa substituição da referência aos deuses católicos pelas divindadesnagôiorubásretrataalentaeprogressivaconquistadeespaçoerespeitopelas expressõesculturaisnegrasnaBahia,queatéasprimeirasdécadasdoséculoaelitelocal tentava insistentemente banir. Agora, os orixás transformamse em uma presença constante, com a qual os baianos parecem manter um intercâmbio permanente. Um exemplodograudeatençãoqueosintelectuaiseosartistaspassamadedicaràreligião afrobaiana é dado pela expressiva remissão nas canções aos nomes de casas religiosas, terreiros,seussacerdotes,palavraslitúrgicas,etniasafricanasearriscaseatédefiniçõesde princípiosbásicosdareligião.Alínguaiorubávaiganhandooespaçoalémdosmurosdos terreirosempalavrascomoaxé,orixá,Afonjá,Olorum.

Especialmente na obra de Gilberto Gil, a religiosidade é muito ligada com a etnicidade. 60 Gil,conscientedesuaorigemdavertentenagô,abordaosdiferentesaspectos da cultura afrobrasileira. Ora retrata as citações vividas pelo homem negro na grande

60 Giltrabalhaatemáticanegratantoaníveldelinguagem,quantoaníveldeconstruçãomelódica,ou seja,hácasosondealetranãorevelaexplicitamenteapresençadoselementosculturaisnegros.

46 cidade,orabuscainspiraçãonosancestraisafricanos,nosdeusesmitológicos.Portantonas cançõescomatemáticareligiosa,quesãonocasodeGilmuitíssimas 61 ,encontramonos nomeadamente no mundo do candomblé cheio de expressões iorubanas. São as músicas com os nomes estranhos como “Axé, Babá”, “Sarará Miolo”, “Emoriô”, “Iansã”,

“Iemanjá”, “Logunedé”, “Opachorô” etc.. Conforme o autor, algumas destas músicas surgiam numa espécie de transe: “...como se a santo fosse rodopiar. E quando ela vem assim “ô, ô, ô, Axé, Babá”, é como se já estivéssemos num terreiro e estivéssemos todos incorporados.. .” 62 Namúsica“BabáAlapá”,queéopaidesantoancestralafricano,ele trata da perda de suas referências ancestrais, chamando Egum, o espírito dos ancestrais mortos:“ O filho perguntou pro pai / Onde é que tá o meu avô? / O meu avô / Onde é que tá?...Pai Xangô, Aganju / Viva Egum / Babá Alapá ”.Vamosaindaesclarecerosentidodas outraspalavrasdacanção:Xangôéumgrandeepoderosoorixá,deusdotrovão,retratado sempre com o machado alado, e Aganju é outronomepara Xangô. GilbertoGiladmite diretamente a sua inspiração no léxico da origem nagô quando canta: “Emoriô deve ser uma palavra nagô / uma palavra de amor, um paladar / Emoriô deve ser alguma coisa de lá / o Sol, a Lua, o céu pra Oxalá ”. “Emoriô” é uma palavra que funciona como um mantra, uma espécie de evocação sonora, de inspiração nagô, para saudar a natureza atravésdeOxalá,odeusquegovernaaTerra. 63

EntreassacerdotisaseascasasreligiosasdaBahiaodestaqueespecialmereciam

Mãe Senhora do Ilê Axé Opô Afonjá, no São Gonçalo do Retiro, e Mãe Menininha do

Gantois,doterreironaFederação.Aprimeira,consideradapormuitosamãedesantomais influentequeaBahiajáteve,eraprocuradaporchefesdoestado,brasileiroseafricanos, 61 GilbertoGiléumapessoaextramamenteligadaàfé.Foicriadonareligiãocatólica.Duranteoperíodo desuaprisãoeestadiaemLondrescomeçouainteressarsepelasfilosofiasorientaise,afinal,aderiuao candomblé.Umgrandenúmerodascançõestemumdenominarcomum:asinquietaçõesexistenciasdo autor.EmGil,oestarnomundo,arazãodoviver,amorteomomentopresenteeoporvirsãoconstantes fontesdeinspiraçãoequestionamentoeelebuscaasrespostascomaajudadasdiferentesreligiões. 62 Fonteles,Bené. Giluminoso: a po.ética do Ser .Brasília,EditoraUniversidadedeBrasília,1999,p.206. 63 FreddeGoés,op.cit.,p.59.

47 artistas e intelectuais os quais ela sabiamente buscou aproximar de sua casa religiosa, conferindolhes cargos e títulos religiosos. Se muito foi escrito sobre o Opô Afonjá, é provável que ainda mais se tenha cantado o Gantois e sua Mãe Menininha, retratada semprecomoumamulhermuitodoceepossivelmenteamãedesantomaisqueridapelo povo. As duas são cantadas por Caetano em “Bahia, minha preta” e aparecem como elementosdeexaltaçãodaBahia:“ Ê ô Bahia, fonte mítica encantada / Ê ô expande teu axé, não esconde nada...Te chamo de Senhora Opô Afonjá / Eros, Dona Lina, Agostinho e

Edgar / Te chamo Menininha do Gantois ”.SobocomandodaMãeMenininha,oGantois foioterreiroespecialmentepróximodosartistas.Aprovadissopodeseracançãooração feita exclusivamente para ela por Dorival Caymmi e, o que nos interessa ainda mais, a canção“RéquiempraMãeMenininhadoGantois”compostaporGilbertoGilapósamorte damãedesantoondeoautorrevelaasuarelaçãoíntimaàfinada:“ Minha mãe se foi / Sem deixar de ser - ora, iêiê, ô / Dói / Minha alma ainda dói.... Minha mãe se foi / Sem deixar de ser a Rainha do Trono Dourado de Oxum / Sem deixar de ser / Mãe de cada um / Dos filhos pra quem eternamente sempre haverá / Mãe Menininha ”.

Acanção“Logunedé”,queétambémonomedeumdosorixás,émuitoapreciada por Gilberto Gil. Como ele afirma: “ Eu acho a canção mais especial daquele disco, o

“Realce”. Por tudo, pela canção em si, pelo arranjo, pelo modo como ela foi tratada musicalmente ”. Uma das razões desta importância da “Logunedé” para o próprio autor podeservistanoseguintedepoimento,queaomesmotempopodetambémsubstituirpara nósaanálisedaletraerevelaroprocessodacriaçãoartísticadeGil.Tomamosaliberdade defazeraquiumacitaçãolonga,porquesóestapodenosmostraropensamentodoautore aproximarnosdomundodocandomblédele :

“ Mãe Menininha do Gantois descobriu e identificou Logunedé na minha linhagem, entre meus santos, quando ela jogou os búzios. Porque chegei lá e disse: “Olha, Mãe, eu sei que sou de Xangô – contei para ela a história do

48 terrreiro de Egum, que tinha ido lá – e ela disse: “Tá! Mas eu vou jogar pra você, pra ver...” Aí jogou...... e disse: ”Ah! Pois é, eu tô vendo aqui, tem uma Logunedé aí”. Me explicou quem era Logunedé. Depois, fiz uma música baseada exatamente na narrativa dela, com as qualidades de Logunedé. Ela dizia: “Logunedé é você! Logunedé é aquele menino esperto que gosta de estar sempre no colo da mãe Oxum. Oxum é louca por ele, faz tudo quanto é mimo, tudo quanto é dengo, tudo quanto é vontade. Ele é cheio de vontade. E ele é uma moça também, ele vira uma moça”. Aí contou vários mitos, as lendas sobre o orixá. E eu que me identificava com Xangô...Caetano, por exemplo, achava muitas características de Xangô em mim: nos modos da personalidade, nos vários casamentos, em tudo. Mas eu achava que tinha um lado assim muito doce, muito semelhante ao que ela dizia de Logunedé. Então, eu fiquei muito contente quando soube que era de Logunedé. Ficou como meu santo preferido durante muito tempo...Logunedé, um dos donos da minha cabeça. Queria tributar isso, fazer uma canção para Ele e pensava: “Tenho que dizer que é charmoso, que é jovem; ele é esperto e é um rapaz vivaz. Ao mesmo tempo ele é o filho de Oxum e Oxóssi”. Fui organizando essas idéias todas e imaginando por onde é que devia começar, escolhendo um jeito de falar tudo isso por um caminho qualquer. Fui juntando a beleza com a riqueza, imaginei que essas duas coisas rimam...Ele é bonito e, ao mesmo tempo, é rico, é todo ouro de Oxum. Ele gosta dessas coisas; então, já tem o mimo, porque isso era uma coisa em que Mãe Menininha insistia muito. Ela usava essa palavra o tempo todo: “Ele é o mimo d´Oxum! Ele é o mimo d´Oxum!” E eu perguntava: “Mas o que é mimo d´Oxum, Mãe? “ Ela dizia: “É o mimo , é mimado, é figura mimada, é o filho predileto dela”. Eu achava que tinha de ter essa frase, tinha que ter “mimo d´Oxum”. E aí me lembrava de Moreno 64 , pois estava passando uns dias na casa do Caetano, quando comecei a pensar na música. Sabia que Moreno era de Logunedé também e me lembrava muito dele. Ele era muito presente para mim como imagem, quase como se ele fosse o símbolo da entidade. Ele era ainda menino, travessozinho e, ao mesmo tempo, muito calmo e muito suave. Então, a música é feita para ele. E ele veio trazando as idéias, porque Moreno também é filho de Logunedé. Caetano é de Oxóssi. Tudo isso vinha na minha cabeça. E Caetano é muito meu irmão. A Dedé, que era mulher de Caetano e mãe de Moreno, também está presente na música. “....Logunedé é dé, é dé, é dé...” É um pouco Dedé também ali. Tinha várias coisas nessa música. As músicas nascem assim: com uma vontade de revelar, de vestir, encontrar uma indumentária

64 MorenoéfilhomaisvelhodeCaetanoVelosocomDedé.

49 correta, as vestes certas para aquela emanação do mistério. Seja em forma de uma emoção muito grande ou de uma comoção, um sentimento compassivo, de uma compaixão, um alumbramento, de um enlevo muito grande provocado por alguma coisa ou mesmo de uma tristeza, de um pesar...Sejam quais forem esses elementos que motivem a chegada da poesia, a gente fica dando voltas, cercando as palavras, as referências, pra poder achar um modo, uma fresta, uma brecha por onde se começar a dizer...As palavras começam a vir à luz. Para poder, então, as palavras começarem a caber na fôrma, terem formato. Porque aí tem a fôrma da música, a fôrma do ritmo. Tem essas coisas todas que vão comprometendo, que são como aquele buraco que você cava na areia da praia, para dali fazer um rego e construir a ponte. Aquelas artes que a gente faz na areia da praia. Fazer música é a mesma coisa. Você vai conformando, vai-se trazendo, vão aí aparecer surpresas...aquelas palavras surpeendentes que, de repente, já no meio do processo, batem e determinam tudo. Às vezes, reconduzem, refazem o caminho, fazem você voltar, dar uma volta completa e começat a trilhar a canção por um outro caminho. Enfim, é muito misterioso o processo de criação .” 65 GilbertoGilexpressadeformamuitoclaraarelaçãoqueareligiãoafrobaiana estabelece entre seus deuses e os elementos naturais, de onde vem a sua alcunha de

“religiãodanatureza”:“ Pra cada canto uma conta / Pra cada Santo uma mata / Uma estrela, um rio, um mar ” (“Bahia de todas as contas”). Em outro trecho da mesma canção,apareceaproximidadesincréticaquefoiestabelecidaentreareligiãodosorixás eocristianismo:“ É assim porque Deus quis / Olorum se mexeu / Rompeu-se a guia ”,já queoOlorumdosafricanosparamuitosequivaleaoDeusdoscristãos.

Osincretismoreligiosoémesmomuitocomumentreosbaianose,assim,não pôdeficarsemmaiorreflexão.Ahabilidadebaianaparafundir,misturar,sincretizarnão

éumtemanovo,jáfoicantadonaprimeirametádedoséculoXX.Oqueocorre,porém, nas canções Gilberto Gil e Caetano Veloso é, possivelmente, um enriquecimento na formaderetratála.Umexemplopodeseraassociaçãoatécomareligiosidadeoriental, nunca arriscado na época enterior: “ Buda sorrindo calado / Admirando o machado / 65 Fonteles,Bené,op.cit.,p.126129.

50 Empunhado por Xangô (Gil – “Um carro de boi dourado“) ou, do mesmo autor:

„Dorival é um Buda nagô / Filho da casa re-al da inspiração / Como príncipe, principiou / A nova idade de ouro da canção / Mas um dia Xan-gô / Deu-lhe a i-lumina-

ção “ (“Buda nagô“). Apesar desses exemplos, na maioria das canções comentase o convívioentresantoseliturgiascatólicasenegras.PrincipalmenteGilbertoGilsentea necessidade de se exprimir a esse tema e defende o sincretismo baiano: „ Quando os povos d'África chegaram aqui / Não tinham liberdade de religião / Adotaram Senhor do

Bonfim: / Tanto resistência, quanto rendição / Quando, hoje, alguns preferem condenar

/ O sincretismo e a miscigenação ” (“De Bob Dylan a Bob Marley um samba provocaçăo”).Ou,emoutracançãocomonome“Extra”,sublinhaaimportânciadafé paraobaiano,nãoimportandoqualfor:“ Cristo ou Oxalá / Baixa / Santo ou orixá ”.

Dossantoscatólicosomaiscitadoé,comojávimos,oSenhordoBonfim.Eleé considerado o protetor dos pobres e fracos. Isso podemos ver nos versos seguintes:

“Pobre não tem valor / Pobre é sofredor / E quem ajuda / É Senhor do Bonfim”(Gil).

Senhor do Bonfim é convocado por Gilberto Gil na letra recente “Balé de Berlim”, surgidanaocasiãodaCopamundialemfutebolnaAlemanha,em2006:“Nossa seleção chega a Berlim / Traz um protetor / Senhor do Bonfim ”.Afirmaassimaimportância delenãosomenteparaosbaianos,mastambémparatodososbrasileiros.

Conscientedaforteinfluênciadanaçãoiorubanaparacriaçãodaculturabaiana, seja na área do léxico (“fala tupí, fala iorubá”) ou na religiosidade, também Caetano

Velosoafirma:“ Mamãe eu quero amar / A ilha de Xangô e de Yemanjá / Yorubá igual a Bahia ”.Osincretismoépresenteemoutrosversosdele,quandoconvocaumorixáe mencionaumdossantosmaisrespeitadosdoscatólicos:“ Quero ser sempre o menino,

Xangô / Da foguiera de Saõ João ”. Caetano Veloso, apesar de não ter descendentes africanos,cantaemtodasuaobraomundodocandombléporqueesseofereceumamplo

51 repertóriodossímbolos,tãopreciososnapoesia:“ Com a espada de Ogum / E a benção de Olorum / Como um raio de Iansã / Rasgamos a manhã vermelha ”(“Osmaisdoces bárbaros”).Ogum,que éoorixádoferroedaguerra,éassociadocomaespada.Na música com o título “Iansã” descreve o orixá feminino, deusa dos ventos, raios, relâmpagosetempestadeeatravéselamostraseuestadoemocionalinterno:“ Senhora das nuvens de chumbo / Senhora do mundo dentro de mim...Deusa pagã dos relâmpagos / Das chuvas de todo ano / Dentro de mim, dentro de mim ”.

UmgrandepanteãodosorixáséapresentadoporCaetanonacanção“Milagres dopovo”.AlémdeXangô,IansãeIemanjá,elefaladeOxum,deusadoamoreouro,de

Obatalá,queéoutonomeparaOxaláedeOjuobá.Acançaõdevefuncionarcomoa defesa da fé afrobrasileira e dos próprios negros no Brasil e, de forma um pouco escondida,insinuaaimportânciadaBahiacomoocentrodareligiosidadedosnegrosdo

Brasil: “ Xangô manda chamar Obatalá guia / Mamãe Oxum chora lagrimalegria /

Pétalas de Iemanjá Iansã-Oiá ia /.../ Quem descobriu o Brasil? / Foi o negro que viu a crueldade bem de frente / E ainda produziu milagres de fé no extremo ocidente /

Ojuobá ia lá e via / Ojuobahia ”.

Muitointeressantessãoasletrassurgidassobainfluênciadapoesiaconcreta. 66

A poesia concreta, representada no Brasil principalmente pelos irmãos Augusto e

HaroldodeCampos,temgrandereflexoespecialmentenaobradeCaetanoVeloso.Nela tambémpodemosacharaexpressãodabaianidade.DeparceriadeGileCaetanosurgiu umacançãonão–usualquefoilançadanodisco“Tropicália”.Representaumafusãoda poesia concreta e a deglutinação artística segundo Oswald de Andrade e chamase

66 Maissobrearelaçãodapoesiaconcretaeaobradosdoiscompositoresem:Santaella,Lúcia. Convergências: Poesia concreta e tropicalismo .SãoPaulo,Nobel,1986;Perrone,Charles. Poesia Concreta e Tropicalismo .Acessível:WWW

52 “Batmacumba”.Comasuatemáticainserimolanestecapítulodedicadoàreligiosidade, aocandomblé.Achamosnecessáriotranscreveropoemainteiro: batmacumbaiéiébatmacumbaobá batmacumbaiéiébatmacumbao batmacumbaiéiébatmacumba batmacumbaiéiébatmacum batmacumbaiéiébatman batmacumbaiéiébat batmacumbaiéiéba batmacumbaié batmacumba batmacum batman bat bá bat batman batmacum batmacumba batmacumbaié batmacumbaiéié batmacumbaiéiéba batmacumbaiéiébat batmacumbaiéiébatman batmacumbaiéiébatmacum batmacumbaiéiébatmacumbao batmacumbaiéiébatmacumbaobá

Jáaprimeiraolhadaconseguedistinguirabasedaletraqueconsisteemcombinações estranhas dos fonemas. Referências aos valores da cultura de massa americana

(“batman”) se misturam com o vocabulário das religiões afrobrasileiras, típicas da

Bahia.Apalavra“macumba”ébastanteconhecida,masopoemaestácheiodeoutras alusões: bem no centro se encontra “bá” que significa “pai de santo”. No final da primeiraedaúltimalinhavemos”obá”queéumdosministrosdoorixáXangô. 67 Mais, o “baobá” é uma árvore sagrada para os candomblistas. A evocação dos rituais da macumbaéaprofundadapelapartemusicalporqueapalavra“bat”éacompanhadapela batida dos tambores. Além de “batman” – homemmorcego, a figura famosa dos desenhosamericanos,temosaindaumaalusãoaoselementosestrangeiros.Étermo“ié ié” que designa a música pop internacional dos anos 60. 68 Interessante é também a

67 GilbertoGiléumdosobás,comnomeAréOnikoyi,noterreiroIlêAiéOpôAfonjá. 68 Perrone,CharlesA.(1988),op.cit.,p.77.

53 utilizaçãodalinhamelódicarepetitivaqueédiminuídaouaumentadadeacordocomo formatovisualdotextoquepodeserconcebidotambémcomoacapadobatmanvoante.

Acabamosdeabordaromundodocandombléeomodocomoesteserefletiuna obradeVelosoeGil.Masos“velhos”deusescatólicosnãodesaparecemecontinuamaser areferênciafrequentenasmúsicasdosdoisautores,damesmamaneiracomocontinuam sendopresentesnavidareligiosadosbaianos.

7.4. Sensualidade

Quaseonipresentenaobradosnossosautoreséotemadoamoreadescriçãoda beleza feminina, mas não sempre podemos os objetos do amor, as mulheres cantadas, identificar com as baianas. Apesar disso, a sensualidade das mulheres da Bahia é para

Gilberto Gil e Caetano Veloso um fato indiscutível, como podemos ver em algumas músicas.GilbertoGilfazumageneralizaçãodabelezadasbaianas:“ Toda menina baiana tem um santo / Que Deus dá / Toda menina baiana tem encanto / Que Deus dá / Toda menina baiana tem um jeito / Que Deus dá ” (“Toda menina baiana”). Uma atitude semelhantepodemosvernacanção“Belezapura”deCaetanoquandocitaváriosbairrosde

Salvador e as belas moças que lá residem: “ Moça preta do Curuzu / Beleza pura /

Federação / Beleza pura / Boca do Rio / Beleza pura ”.

Aconversacomumalindamenina,quedeverepresentaratípicahabitantepretado centro de Salvador, do Pelourinho, chamado familiarmente Pelô, é o tema da canção

“Pretinha”:“ Eu queria te encontrar em Salvador, ô, ô / Eu queria te falar desse calor, ô, ô

/ Minha preta gostosinha do Pelô / Me diga que você é meu amor ”(Gil).Arefênciaao sexomuitasvezeséfeitaatravésdagíria,expressõescomunsnolinguajarpopulardarua, comooadjetivogostosa,usadoparadesignarumamulhermuitoatraenteesensual.

54 Àprimeiravistanãoficamuitoclaro,masacanção“Tradição“podeserpercebida tambémcomooelogioàbelezadamulherbaiana.Vejase:“ Conheci uma garota que era do Barbalho / Uma garota do barulho ”(Gil). Barbalho é um bairro de Salvador.

Observamos, no entanto, que além de funcionar como adjunto adverbial de lugar,

“barbalho”podetambémsertomadocomoumadjuntoadverbialdeintensidade. 69 Nessa letra podemonos deparar com o grande número de referências a Salvador: clube desportivoesocialdosmaistradicionais–Baiano,goleiroLessadoEsporteClubeBahia, lotaçãodaLiberdade,LargodoTerreiro,AntônioBalbino–governadorde1955a1955.

SabendoquedesdeseusoitoanosatéentrarnaUFBAGilbertoGilviveunacasadesuatia em Salvador (então, foi no tempo do governador Balbino), podemos ver nessa letra os traçosautobiográficos:“ Pro Largo do Terreiro / Pra onde todo mundo ia / Todo dia, todo dia / Todo santo dia / Eu, minha irmã e minha tia ”.

Nacanção“Averdadeirabaiana”CaetanoVelosomencionaváriasqualidadesdela:

ématriarca,supralusitanaoutransafricana.Alémdamestiçagemdobrancoportuguêscom onegrodaÁfrica,muitotípicanasociedadebaiana,oautornestaletralembraaposição importantedamulher,quepodeserprovada,porexemplo,pelahierarquiadocandomblé onde a mulher ocupa o lugar de destaque. Mas, o que nos importa mais, no capítulo dedicadoàsensualidadedamulherbaiana,éoseguintetrecho:“ A verdadeira baiana sabe ser falsa / Salsa, valsa e samba quando quer... A verdadeira é baiana, a verdadeira é baiana, é / A verdadeira é baiana, a verdadeira é baiana, é ”. Mais um exemplo da sensualidadedasbaianasencontramosnacanção“Qualé,baiana”:“Essa menina é só de brincadeira / Só dá bandeira, só dá bandeira / Seja na Amaralina ou na Ribeira...Ela sempre agrada ao gosto e ao olhar ”(Veloso).

69 FreddeGoés,op.cit.,p.83.

55 7.5. Saudade da Bahia

Umcapítuloprópriodasmúsicasconectadasàbaianidadeécriadoporaquelas queexprimemasaudadedaBahia.MuitasdelassurgiramduranteoexílionaInglaterra.

Énaturalqueessasexprimemcommaiorveemênciadoqueasoutrasasaudadedaterra natal.Tãosimples,masbelos,sãoessesversosescritosporGilbertoGilnoexílio:“ Um pouco da minha grana / Gasto em saudade baiana / Ponho sempre por semana / Cinco cartas no correio ”(“Fechadoprabalanço“).Nacanção“BackinBahia”,escrita,como dizoprópriotítulo,devoltaàBahia,fazareminiscênciaàfamosa“CançãodeExílio”, do poeta romântico Gonçalves Dias, justapondo “cá“ e “lá“ 70 : “ Mar da Bahia, cujo verde vez em quando me fazia bem relembrar / Tão diferente do verde também tão lindo dos gramados campos de lá / Ilha do Norte, onde não sei se por sorte ou por castigo dei de parar / Por algum tempo que afinal passou depressa como tudo tem de passar / Hoje eu me sinto como se ter ido fosse necessário para voltar / Tanto mais vivo de vida mais vivida, divida pra lá e pra cá ”.HáaquiumasemelhançadeatitudedeCaetanoeGilem relação ao exílio nos seguintes versos da canção „Um Dia“: „ Eu não estou indo-me embora / Estou só preparando a hora de voltar “.Caetanoaindacantanestacanção:„ No

Raso da Catarina / Nas águas de Amaralina / Na calma da calmaria / Longe do mar da

Bahia / Limite da minha vida / Vou voltando pra você ”.

MasnãosóemLondresforamcompostasascançõesdesaudade.GilbertoGile

CaetanodeixaramaBahiajáem1966eportantonãohásurpresaquealgumasmúsicas surgidas no Rio de Janeiro em São Paulo contenham algumas gotas de saudade. Na canção “Quem me dera” de Caetano, a saudade tornase a substância principal: “ Ai, quem me dera o dia / Voltar, quem me dera o dia / De ter de novo a Bahia / Todinha no

70 EssaobservaçãoédeFreddeGoés,op.cit.,p.40.

56 coração / Ai, água clara que não tem fim / Não há outra canção em mim / Que saudade! ”.

DesaudadeenostalgiaestãocheiastambémasmúsicasdeCaetanoondesefala dacidadeondeelenasceuepassouainfância,SantoAmarodaPurificação.Naletra

“Acrílico” ele chamaa, fusionando as expressções de “adolescência“ e “cidade“, de

“adolescidade”. Também faz vários trocadilhos que nos devem aproximar de seu pensamento nostálgico, como, por exemplo: “ Acre e lírico sorvete / Acrílico Santo

Amargo da PUTRIFICAÇÃO ”.Emváriasmúsicaselenomeiaaexplicitamente,como em“Trilhosurbanos”ou“Adeus,meuSantoAmaro”:“ Adeus, meu Santo Amaro / Que eu dessa terra vou me ausentar / Eu vou pra Bahia....Adeus, minha cidade / Adeus, felicidade / Adeus, tristeza de ter paz / Adeus, não volto nunca mais ”. Vemos que

CaetanocomalicençapoéticarebatizasuacidadeemSantoAmargoeestaproximidade daspalavras“Amaro“e“amargo“éutilizadamuitasvezes.Outrabrincadeirafrequente de Caeatano é justapor a amargura contida no nome da cidade e a canadeaçúcar, o produto típico do Recôncavo e de Santo Amaro especialmente: “ Cana doce Santo

Amaro, gosto muito raro / Trago em mim por ti, e uma estrela sempre a luzir ”. A mesmacoisaelefazem“Sugarcanefieldsforever”,cujotítuloéumaclaraalusãoà músicadosBeatles“Strawberryfieldsforever” 71 eondesóareferênciaaSantoAmaro nofinaldaletrajustificaotítulo.

7.6. Primazia

A Bahia é retratada muitas vezes como lugar onde as coisas aconteceram e acontecem primeiro, onde começam, nascem, surgem. Evidentemente, este discurso

71 GilbertoGiltambémfazumaparódiade“Strawberryfieldsforever“comamúsica“ChuckBerryfields forever“,umahomenagemaomúsicoamericanoChuckBerry,umdosmaisexpressivosprecursoresdo rocknosanos50.

57 tenta retomar a história do Brasil – a Bahia é mencionada como local onde os descobridores portugueses aportaram pela primeira vez e Salvador como a primeira capitaldopaís.DessecomeçodoBrasil,passaseaváriasderivações–localondese aprendeafazercertascoisas,ondecertossentimentosehábitosnascem.Comopassar do tempo, o tema da Bahia como a fonte do tudo não perde sua força – muito pelo contrário. Na virada do século XX, com as comemorações dos quinhentos anos do

Brasil,ogovernodaBahiarelembraissoatravésdeumsloganpublicitáriodecirculação nacional“Bahia–oBrasilnasceuaqui”. 72 Aidéiadaprimaziasignificaparamuitosao mesmotempoprioridade,superioridadeerespeito,oquepodeserentendidocomouma conseqüencia, um resultado do pioneirismo. No discurso da baianidade, então, o pioneirismonãoéreivindicadoaleatoriamenteporqueelefrequentementeservecomo umdosimportantesargumentosparajustificarasuperioridadebaiana.

GilbertoGileCaetanoVelosoreferemsecommuitoprazeraestaprimaziada

Bahia, usando as palavras “primeiro“, “nascer“ ou mesmo “primazia“. A canção

“Iniciática”deGilbertosugerejácomseutítuloquealgoseinicia,nasce:“ O que veio e ser você / Nasceu aqui / Neste lugar do Plano / Inclinado a dar início / A um movimento regular / De descida e subida / Dos homens da cidade / Adormecida / Do Salvador ”.

Temos aqui um curiosojogo daspalavraspara referirse aoplano inclinado do Pilar, queestásituadonolugarondeacidadecomeçouaseredificada,naáreaaoredorda

PraçadaSé.

Em outra canção, Gil enumera vários pioneirismos baianos. A Bahia tem algumas primazias, mas não todas são de bem. Foi primeira na colonização, no desbravamentoetambémnacrueldade,poisaformaçãodasociedadebrasileirasedeu atravésdotrabalhoforçado:“ Que Deus entendeu de dar a primazia / Pro bem, pro mal

72 Mariano,AgnesFrancinedeCarvalho,op.cit.,p.124.

58 / Primeira mão na Bahia / Primeira missa / Primeiro índio abatido / Também que Deus deu / Que Deus entendeu de dar toda magia / Pro bem, pro mal / Primeiro chão da

Bahia / Primeiro carnaval / Primeiro pelourinho / Também que Deus deu ”. Caetano

Veloso continua no mesmo estilo: “Viva a princesa menina, uma estrela / Riqueza primeira de Salvador “. Também aprecia a tradição que ainda influencia a vida dos baianos em Salvador: “ Nas sacadas dos sobrados / Da velha São Salvador / Há lembranças de donzelas / Do tempo do imperador / Tudo, tudo na Bahia / Faz a gente querer bem / A Bahia tem um jeito ”.

Outropioneirismobaiano,queémuitasvezeslembradojáemváriascançõesda primeira metade do século XX, diz respeito ao lugar onde surgiu o mais conhecido estilo musical brasileiro, o samba. Há uma velha disputa sobre essa questão: para alguns, por exemplo Vinícius de Moraes, “o samba nasceu lá na Bahia”, enquanto outrosjuramquefoinoRiodeJaneiro.Commuitaelegância,CaetanoVelosoentrana disputa, creditando, é claro, o papel de pioneira à Bahia, sem deixar de render homenagemaoRio,queéocontinuadordatradição.Umadasmaisconhecidasescolas cariocasdesambaétambémchamadaEstaçãoPrimeiradaMangueiraeparaCaetanoa

Bahia é então a “Estação primeira do Brasil”. A Bahia e o Rio aparecem como semelhantes,porexemplonosamba,naarte,inclusiveporqueerambaianasasprimeiras mulheresquepromoveramemsuascasasbatuques,dosquaissedesenvolveuosamba:

“A Bahia / Estação primeira do Brasil / Ao ver a Mangueira nela inteira se viu / Exibiu- se sua face verdadeira / Que alegria / Não ter sido em vão que ela expediu / As Ciatas pra trazerem o samba pra o Rio / (Pois o mito surgiu dessa maneira) ”.

Quando se fala tanto em pioneirosmo, primazia, tradição, é difícil escapar de noções como autenticidade, pureza, forma, verdadeira, certa: “ Rompeu-se a guia de todos os santos / Foi Bahia pra todos os cantos / Foi Bahia / Pra cada canto, uma

59 conta...Daquela terra provinha / Tudo que esse povo tinha / De mais puro e de mais seu ”(Gil).

Nodiscursodabaianidadehávozesquedefendemaproveniênciabaianacomo uma característica melhor e portanto também Caetano Veloso e Gilberto Gil revelam emsuaobraaaltivez,oorgulhodeserbaiano,commaiortradiçãoetc.:“ É moda dizer que o baiano está por cima “ (Gil– “Ninguém segura este país”). Em várias músicas podemos observar o orgulho com que eles confessam sua origem baiana: „ Barra-

Barris-Barroquinha / Ó, Maria / Faz tempo que você sabe / Que eu também sou da

Bahia ”(Gil–“O,Maria”)ou“ Eu sou da Bahia / Marinheiro só / De São Salvador /

Marinheiro só ”(Veloso–“Marinheirosó”).

Nãosempreaafirmaçãodaproveniênciaéfeitacomaltivez,mas,apesardisso, nãoficaveladaeéexprimidacommuitaclareza,comoalgosemqueapersonalidadedo autornãofiquecompleta.AssimfazCaetanoemoutracançãointitulada“Branquinha”:

“Eu sou apenas um velho baiano / Um fulano, um caetano, um mano qualquer ”.Temos aqui ainda um depoimento de Ceatano Veloso que nos pode esclarecer sua atitude à

Bahia,comoeporqueelaespalhaseemseutrabalho.Quandofoiindagadose“entende as suas coisas sem a Bahia, sem a sua existência, a sua formação baiana”, ele respondeu:“ Não, de jeito nenhum. Mas isso é muito complicado, porque tenho nenhum interesse em regionalismo, tá entendendo? Eu tô ligado com a Bahia concretamente e só sai no meu trabalho essa ligação na medida em que ela é efetiva...não como um compromisso de representar uma região...Era preciso que fosse uma descentralização conjugada com uma desprovincianização. Agora, você tá querendo que eu fale mais da imporância de eu ter nascido na Bahia no negócio do meu trabalho, né? Só é difícil falar porque não há outra experiência pra comparar, o que aconteceu comigo, tá entendendo? Há coisas que são assim necessariamente porque eu sou baiano, mas você

60 pode transar altíssimo a partir de qualquer coisa, eu acho. Por isso eu tava falando que me sinto um pouco mal quando se fala em ser baiano como privilégio, isso colocaria uma nova centralização desagradável, entendeu? A idéia de privilégio é uma coisa que não me interessa. Privilégio de ter nascido na Bahia, ter vivido tais e tais coisas. Eu não vejo muito isso ”. 73

Até quando Gil defende sua independência, como faz na música “Aquele abraço”, ele reserva um verso para homenagear sua herança cultural, como início de tudo, influência constante e a fonte de conhecimento: “ Meu caminho pelo mundo eu mesmo traço / A Bahia só me deu régua e compasso / Quem sabe de mim sou eu – aquele abraço! ”.

7.7. Os lugares da Bahia e de Salvador

NasegundametádedoséculoXXaprópriaCidadedaBahiacontinuaumgrande temanomundomusical.Diferentementedaépocaanterior,quandoforammencionados especialmenteoslugarescomoPraçadaSéouBaixadosSapateiros,oscompositores cantam muito mais seus bairros e locais de encontro, caracterizandoos como emblemáticos. No caso de Caetano Veloso mais referido é o bairro de Amaralina. A palavra „amaralina“ tem um som muito poético, escondindo em si o verbo amar e o nome mar e oferecendo assim um amplo repertório dosjogos depalavra. Vimos que

Caetano citou esse bairro na „Tropicália“, na „Qual é, baiana“ e as referências a

Amaralinanãoparamaqui.Nopoemasurgidosobainfluênciadapoesiaconcreta“De palavraempalavra”elebrincacomaspalavras,comosomnascombinaçõesincomuns.

Usa a descrição de paisagem, diretamente através da palavra “mar”, e pouco

73 Veloso,Caetano,op.cit.,p.128.

61 escondidamente na fusão do “amarelo” (representa o sol) com “anil” (o céu). 74 Com certeza descreve um de seus lugares preferidos de Salvador porque numa conglomeração lexical central podemos descobrir o nome da praia e do bairro

Amaralina, onde Caetano morou com sua primeira mulher. Com a enumeração dos outros bairros soteropolitanos deparamonos em várias músicas de Caetano, por exemplona„Belezapura“.

Poeticamentemuitosonoraéajustaposiçãodostrêsbairrosquecomeçamcom

“barr”feitaporGilbertoGil:“ Barra-Barris-Barroquinha / Ó, Maria / Faz tempo que você sabe / Que eu também sou da Bahia ”.Aténamúsica“Domingonoparque”,que com a “Alegria, alegria” são consideradas canções de estréia do movimento tropicalista 75 , podemos encontrar os elementos baianos. Estes são mais explícitos quandoGillocalizaaaçãoparaSalvador,nomeandoosbairrosdeRibeiraeBocado

Rio.Outroelementobaianoéareferênciaàcapoeira,mastemostambémapartesonora da canção que com o acompanhamento de berimbau remete à roda da capoeira, tão frequentenasruasdeSalvador.CommuitoamorcantaGiloslugarestradicionaisda cidade, como a feira popular Água de Meninos, que foi destruída por um incêndio proposital.Iniciacomaconfissãodainfluênciapoéticadacidade:“ Na minha terra, a

Bahia / Entre o mar e a poesia / Tem o porto Salvador ”.

Umlugar,tantocantadoporDorivalCaymmi,Itapuã,tornasetambémocentro daatençãodeCaetanoVelosoquecompôsacançãocomomesmotítulo,confiandonos oqueItapuãsignificavaparaelenajuventude:“ Tudo esteve em Itapuã / Itapuã, tuas

74 Perrone,CharlesA.(1988),op.cit.,p.109 . 75 Otextodacançãocaraterizaseporsuaconstruçãocinematográfica,típicaparaosfuturostropicalistas, emque,apóssituaraspersonagensedescreverocenárioondeaaçãosedesenrolará,ocompositorpassaa narrarosfatos,empregandoatécnicademontagemempequenos flashes .Alémdeletraemelodia, Gilbertojuntaosruídos,palavrasegritossincronizadosàscenasdescritas,evocandorealisticamenteum parquedediversões.

62 luas cheias, tuas casas feias / Viram tudo, tudo, o inteiro de nós / Itapuã, tuas lamas, algas, almas que amalgamas / Guardam todo, todo, o cheiro de nós ”.

ACidadedeSalvadorcomoumtudoéotemadacanção“CidadedoSalvador” deGil.Elebrincanelacomaoposiçãodadoreafelicidade,acrescentandoaindaoutra caraterísticatípicadacidade,afé:“ A fé / A felicidade / Cidade do Salvador / dor / dor ”.

A partir dos anos 60, quando mais e mais pessoas começam a reconhecer a beleza natural da cidade e do estado como algo importante e singular, é possível também encontrar uma canção como essa: “ E a Bahia só tem uma / Costa clara, litoral… É por isso que é o azul / Cor de minha devoção / Não qualquer azul, azul…É o azul que a gente fita / No azul do mar da Bahia / É a cor que lá principia / E que habita em meu coração “(GileVeloso–“Beiramar“).MaisumaletradeGil,generalizandoas belezas da Bahia: “ Eu vim da Bahia cantar / Eu vim da Bahia contar / Tanta coisa bonita que tem / Na Bahia, que é meu lugar “.

7.8. As personalidades baianas

Muitas são referências às personalidades baianas, principalmente aos artistas.

Encontramonosjácomduassacerdotisas,MãeMeninihadeGantoiseMãeSenhorado

Opô Afonjá. Também mencionamos os pais do tio elétrico, Dodô e Osmar. Mas a enumeraçãonãoselimitaaessaspessoas.

Como músicos, Caetano e Gilberto prestam homenagem a outros músicos baianos, a aqueles que influenciaram sua obra. Os destaques são Dorival Caymmi e

João Gilberto. O último, pelos dois compositores considerado o agente decisivo para elesentraremno mundoda música,éareferênciafreqüentenaobradeCaetano.Por exemplo,mencionaonacanção“Gente”,ondeeleenumeraváriaspessoasdoambiente musicaloudaprópriafamília:“ Quer durar, quer crescer / Gente quer luzir / Rodrigo,

63 Roberto, Caetano / Moreno, Francisco / Gilberto, João ”.Ouem“Saudodismo”,citaas músicasmaisconhecidasdoreidabossanovaeconfirmaassimaimportâncianoensino musicaldele:“ Mas chega de saudade / A realidade / É que aprendemos com João / Pra sempre ser desafinados ”. Dorival é cantado por Gilberto na “Buda Nagô”, Caetano mencionaonacançãodedicadaaobairrodeItapuã:“ Itapuã, quando tu me faltas, tuas palmas altas / Mandam um vento a mim, assim: Caymmi ”ounacançãojuanina:“ Viva

São João / Gal canta Caymmi ”.

Entre os cantores homenageados não faltam os mais próximos amigos

(observamos já a referência a Gal Costa, que gravou o disco “Gal canta Caymmi”), frequentes são também as confissões de Caetano rumo a sua irmã Maria Bethânia.

Interessantes são os versos com os quais ambos se elogiam. Gilberto Gil fica nesse quadromaisíntimoesituaCaetanonoambientefamiliar:“ Cacau (=Caetano) já deve estar voando para o Rio / Moreno está tão bonitinho ”, enquanto Veloso em suas cançõesmencionaseuamigocomoumcantorexcelente,comparaocomorouxinole aprecia também, junto com outros músicos – João Gilberto e Jorge Benhor, seus capacidades do poeta: “ Quase João, Gil, Ben, muito bem mas barroco como eu /

Cérebro, máquina, palavras, sentidos, corações ” ou faz um jogo das palavras, construindoassimabandaDocesBárbaros:“ Se alguém pudesse erguer o seu Gilgal em

Bethania... ”.Essesversospodemospercebertambémcomoumacertaautopromoção.

Nacanção“Bahia,minhapreta”,Caetanomencionoumuitaspersonalidadesdo ambiente cultural baiano. Entre elas não podiam faltar os promotores da vanguarda baiana, dos quais já falamos: “ Te chamo de Senhora Opô Afonjá / Eros, Dona Lina,

Agostinho e Edgar / Te chamo Menininha do Gantois ”.Estes,segundoamencionada citação do próprio autor, tinham um grande papel na formação artística de Caetano

VelosoeGilbertoGil.

64 7.9. Os lados negativos dos baianos

Assim como muitos compositores da primeira metade do século XX, também

Caetano Veloso e Gilberto Gil admitem uma das qualidades negativas, tão freqüentementeatribuídaaosbainos–apreguiça.Apesardeapreguiçanãopoderser considerada algum elogio, eles, porém conseguem transformála àz vezes em primor, emalgonecessárioparaqueoresultadodotrabalho,doempenhorendaosfrutos:“ Sem correr, bem devagar / A felicidade voltou pra mim ”(Gil–“Bemdevagar”)ou“ Agora deve estar chegando a hora de ir descansar / Um velho sábio na Baha recomendou:

Devagar ”(“Cadatempoemseulugar”).TambémdaautoriadeGilbertoGiléacanção

“LadeiradaPreguiça”emque,cantandosobreumadasruelasdeSalvador,confessasua preguiça:“ Essa ladeira / Que ladeira é essa? / Essa é a ladeira da preguiça / Preguiça que eu tive sempre “. Claro que ninguém suspeita que Gil ou Caetano sofressem da preguiça,porqueaobratãoamplanãopodiasurgirsemgrandeempenhodosautores, mas a declaração da preguiça nas canções pode servir, então, como a recepção, feita comexagero,dopreconceitoaosbaianos.

EntrecompositoresdaprimeirametadedoséculoXXotemadapobrezabaiana nãoémuitofreqüente.Quandoapobrezaéreferida,emgeral,ésuavizadapelaalegria, féouotimismo.AssimfeztambémGilbertoGil:“ Onde a gente não tem pra comer /

Mas de fome não morre ”ou:“ Pobre não tem valor / Pobre é sofredor / E quem ajuda é

Senhor do Bonfim ”(“Madalena“).MasGilbertonãofoisóeufemístico.Nosanos80, comCaetanoVelosoforamvozesumpoucodestoanteseabordaramalgunsdosmais ardentes problemas baianos. Gil novamente falou da pobreza, descrevendo a personagemprincipaldolivrodeJorgeAmadoporexcelênciabaianonomeadoJubiabá,

AntônioBalduino:“ Trava com o destino uma batalha cega / Pega da navalha e retalha a barriga / Fofa, tão inchada e cheia de lombriga / Da mostra miséria da Bahia ”.A

65 cidade Salvador tem muitos problemas. Um deles é o fato, que desde o fim da escravidão,amaiorpartedapopulaçãodescendentedosescravosaindanãoencontrou osefetivosmeiosdasustentação.Tambémpermanecelimitadoedeficienteoacessoà educação,aomercadoformaldetrabalhoouàassistênciadesaúde.

Exemplos de abordagem desse quadro podem ser encontrados em várias canções,comonasletrasdeCaetanoVeloso,quealémdecitarosproblemasreferidos, fezprotestocontraasujeiradeSalvador,quedurantemuitotempofoiconsideradauma marca da cidade: “ Estou de pé em cima do monte de imundo lixo baiano “ (“Neide

Candolina”).Ou,aindacommaiorveemênciasequeixadeSalvador:” Salvador, isso é só Salvador / Sua suja Salvador../..A cidade, a baía da cidade / A porcaria da cidade ”.

Veloso, consciente do desequilíbrio na distribuição de renda na sociedade baiana, se aproximou muito da poesia do poeta barroco Gregório de Mattos, que também falou desse tema, e até musicou os versos do chamado Boca do inferno 76 :

“Triste Bahia, oh, quão dessemelhante estás / E estou do nosso antigo estado / Pobre te vejo a ti, tu a mim empenhado / Rico te vejo eu já, tu a mim abundante / Triste Bahia, oh, quão dessemelhante ”. A canção foi gravada em 1972 no disco “Transa”, após o músico deixar definitivamente o exílio. Caetano Veloso aproveitou dois quartetos do soneto do Boca do inferno e acrescentoulhes versos da própria lavra. Na primeira estrofeda“TristeBahia”,quartoverso,Caetanotrocaoverbo“ver”nopretéritoperfeito doindicativo( vi )deGregóriopeloverbonopresentedoindicativo( vejo )efazainda

76 Em1968,naediçãodaobragregoriana,oeditornoprefácioescreveu:“ O Boca do Inferno está em São Paulo…Está muito jovem e permanece poeta popular. Pouco mudou no vestido: a cabeleira postiça quando desembarcou na Bahia…Em vez da viola de cabaça ele empunha uma guitarra elétrica…Seu verso é quase o mesmo e ele repete em voz desentoada que ainda e sempre é proibido proibir a vida…Do alto do seu roko, a sagrada gameleira em Opô Afonjá, Gregório de Mattos, pequeno orixá baiano, observa, sorridente, suas próprias travessuras de Exu cavalgando o menino Caetano Veloso “.Apud: Risério,António(1995),op.cit.,p.151.Desdeaqueletempo,acomparaçãodeVelosoeGregóriode Mattosjásetornouatérotineiranoambienteintelectualbrasileiroeoferecesemuitofacilmente:osdois poetassãobaianos,ambosfalamamesmalinguagemtropicaledesmistificadora.CaetanoVelosoaté encarnouoBocadeInfernonofilmeSermões,deJulioBrassane.

66 outras mudanças, principalmente do tempo verbal. 77 Essas, além de trazerem o enunciadoparaopresentedaenunciação,sugeremqueadegradaçãopolíticoexistencial afetaoautor,exiladopeladitaduramilitar,comoarealidadebrasileira,ambostocados pelasordensextremamenteimpositivasdosatosinstitucionaisedofechamentopolítico do país. 78 As alterarações dos versos acentuam a contradição, porque tanto Caetano

VelosocomoaBahiaestãoemestadopobre.

Outro aspecto típico para o contexto baiano, que é bastante abordado por

GilbertoGileCaetanoVeloso,éoabusodopoderpolítico.Quandosefaladopoder,é quasesempreemsuasformasnegativas,ouseja,autoritarismo,nepotismo,clientelismo, demagogiaoupopulismo.Comojádissemos,aBahiaéancoradaemtradiçõeseacerta percepçãotradicional,aristocráticadoexercíciodepoderinfluenciaaBahia.

Após a queda da ditadura, Caetano e Gil comentam essas “manchas” com muita freqüência: “ Ninguém / Ninguém é cidadão “. Que ninguém é cidadão fica comprovadonosmétodostruculentosusadospelopoderpúblicoparaamanutençãoda ordem:“ Quando você for convidado pra subir no adro / Da Fundação Casa de Jorge

Amado / Pra ver do alto a fila de soldados, quase todos pretos / Dando porrada na nuca de malandros pretos / De ladrões mulatos / E outros quase brancos / Tratados como pretos “(VelosoeGil–“”).Caetanoexprimeumcertootimismo:chegaa escolhernaseleiçõesapessoacerta:“A mim me bastava que um prefeito desse um jeito

/ Na cidade da Bahia / Esse feito afetaria toda a gente da terra / E nós veríamos nascer uma paz quente ”(”Vamoscomer”).

A pessoa certa podia ser Gilberto Gil que até queria candidatar em fins da década de 80 para o cargo de prefeito da cidade de Salvador. Mas o governador da

77 Rodrigues,NelsonAntónioDutra. Os estilhos literários e letras da música popular brasileira .São Paulo,Arte&Ciência,2003,p.58.Alémdoselementosbarrocosnacanção“TristeBahia”,nolivroestá analisadaaindaaletra“Foradaordem”deCaetanoVeloso. 78 Ibidem,p.59.

67 Bahiadeépoca,WaldirPiresnãoaprovouacandidaturadeGilbertoparaoprefeitoeele podia candidatar só para vereador. O poeta fez uma canção que pode servir como a polêmicacomseurivalgovernador,mastambémcomoacríticadoseleitoresquese interessam mais em títulos, riqueza dos candidatos e relações tradicionais do poder, antes de preferir o próprio programa político: “ Pra prefeito, não / E pra vereador: /

Pode, Waldir? Pode, Waldir? Pode, Waldir? / Prefeito ainda não pode porque é cargo de chefia / E na cidade da Bahia / Chefe!, chefe tem que ser dos tais / Senhores professores, magistrados / Abastados, ilustrados, delegados / Ou apenas senhores feudais / Para um poeta ainda é cedo, ele tem medo / Que o poeta venha pôr mais lenha

/ Na fogueira de São João / Se é poeta, veta! / Se é poeta, corta! / Se é poeta, fora! / Se

é poeta, nunca! / Se é poeta, não! ”Dessaprimeiraexperiênciapolítica,nãoplenamente bemsucedidaparaGilbertoGil,surgiuumlivroescritoemparceriacomoantropólogo eamigoAntonioRisério,intituladoOpoéticoeopolíticoeoutrosescritos.

68 8. Considerações finais Nestetrabalhotentamosidentificarcomoaorigembaianaseespelhanasletras de Caetano Veloso e Gilberto Gil, compositores considerados umas das maiores autoridades do mundo da MPB, não somente por suas habilidades musicais, mas tambémporcausadaextraordináriaqualidadedapoesiadeles.

Apresentamosalgunstraçosbásicosdaculturabaiana,explicamososconceitos básicos da baianidade e mencionamos brevemente a posição da Bahia na MPB. Sem tudoissoseriadifícildesdobrarodiscursosobreabaianidadenaobradosdoismúsicos.

Também os acontecimentos principais na vida de Caetano Veloso e Gilberto Gil mereceramanossaatenção.Porcausadesuaoriginalidadeeumagranderepercurssão nãosomentenomundomusical,mastambémentreospoetasbrasileiros,nãoomitimos falarsobreomovimentotropicalista,doqualosdoiscompositorseramrepresentantes dedestaque.

Nocentrodotrabalhoanalisamosasprópriasletras.Seriapossívelabordarainda mais aspectos da baianidade na obra de Caetano Veloso e Gilberto e os temas trabalhados poderíamos analisar ainda com maior profundidade. Os assuntos questionados, porém, são suficientes para sabermos como o fato, de eles serem da

Bahia, se reflete em sua poesia. Com certa generalização, podemos dizer que a baianidadetranspareceemtodaobraeéumdosladosfortesdosdoisautores.

Elescontinuamatratarastemáticastípicasparaaprimeira metadedoséculo

XX,comoaalegria,expressãoexemplardasfestasbaianas,especialmentedocarnaval, ou a familiaridade do povo baiano. Não se esquecem de cantar a sensualidade das mulheresbaianas,comofaziacommuitosucessojáDorivalCaymmi.Oterceiropilar dabaianidade,areligiosidade,seconcentraprincipalmentenadescriçãodosrituaisdos cultosafrobaianos,oquenãofoimuitocomumnaépocaanterior,porcausadacerta

69 marginalidade dessas religiões. Nas letras de Caetano e Gil, vemos também a celebraçãodacidadedeSalvadoredaoriginalidadedaBahiaemgeral.

Gilberto Gil às vezes diz que “ a Bahia faz brotar nele um lado frágil, de menino ”. 79 Istonãosignifica,porém,queele,damesmamaneiracomoCaetano,feche osolhosemfrentedemuitosproblemasbaianos.ABahianãoésóSalvadorcheiode primazias, não é só a mística do carnaval ou a terra do candomblé. Os dois poetas acrescentamaotemasbaianosalgunsnovosquejánãofalamdaBahiaemsuperlativos e apresentamnos aquele lado escuro desse estado. Este novo tema é, por exemplo, a críticasocial,principalmentedapobreza.VelosoeGilnãotememexplicitartambémos problemas relacionados ao poder como o populismo, clientelismo e autoritarismo.

Tendocontribuindoparaodiscursodabaianidadecomessatemática,CaetanoVelosoe

GilbertoGilajudaramacomplementaraimagemdaBahiaquenãopermaneceintactae sedutora,mastornasemaisverdadeira.

79 FreddeGoés,op.cit.,p.82.

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AentrevistacomProf.Alberguaria.Disponívelem:

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AsbiografiasdeCaetanoVelosoeGilbertoGilDisponívelem:WWW

73 Anexo Letras de Caetano Veloso Letras de Gilberto Gil 1. AVerdadeiraBaiana 1. Atrásdotrio 2. Acrilírico 2. Axé,Babá 3. Adeus,MeuSantoAmaro 3. BabáAlapalá 4. Atrásdotrioelétrico 4. BackinBahia 5. Bahia,MinhaPreta 5. Bahiadetodasascontas 6. BalédeBerlim 6. BeiraMar 7. BemDevagar 7. Belezapura 8. BudaNagô 8. Branquinha 9. CadaTempoEmSeuLugar 9. CaraaCara 10. CantigadeNinarMoreno 10. DePalavraemPalavra 11. CidadedoSalvador 11. EsteAmor 12. DeBobDylanaBobMarley 12. Itapuã 13. Docecarnaval(Candyall) 13. MarinheiroSó 14. DomingonoParque 14. Milagresdopovo 15. Emoriô 15. Muitoscarnavais 16. EuVimdaBahia 16. NeideCandolina 17. Extra 17. Obaterdotambor 18. Fechadoprabalanço 18. Odara 19. FilhosdeGandhi 19. OndeORioÉMaisBaiano 20. Iniciática 20. OsMaisDocesBárbaros 21. Jubiabá 21. OutrasPalavras 22. LadeiradaPreguiça 22. Qualé,baiana? 23. LavagemdoBonfim 23. Quemmedera 24. Logunedé 24. QueroiràCuba 25. Madalena 25. SãoJoão,XangôMenino 26. NingémSeguraEstePaís 26. Sim/Não 27. Ó,Maria 28. Pode,Waldir? 27. SugarCaneFieldsForever 29. Pretinha 28. TerraTrilhosUrbanos 30. RéquiempraMăeMenininhado 29. TristeBahiacomGregóriodeMattos Gantois 30. Tropicália 31. TodaMeninaBaiana 31. TwoNairafiftyKobo 32. Tradição 32. UmDia 33. Umcarrodeboidourado 33. "Vamo"comer 34. HaiticomCateanoVeloso

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