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O preto que você gosta ou a o negro que você quer? Um estudo sobre as representações da negritude na obra de Caetano Veloso.

Marcelo Gonçalves de Souza – UFU 1 Luiz Carlos Avelino da Silva – UFU 2

Resumo: Esse trabalho teve por objetivo analisar as representações sobre a negritude na obra de Caetano Veloso e em particular,o que o autoriza, sendo branco, a chamar um negro de preto. Para tanto se tomou na sua obra todas as canções que fazem referência a negritude, posteriormente analisadas como um discurso. Nesse processo emergiram temas e categorias que apontam Caetano Veloso como um sujeito informado, que por conta de sua experiência pessoa com os negros, não precisa recorrer a modalidades de tratamento preconceituosas ou politicamente corretas.

Introdução “Caetano venha ver o preto que você gosta”. A música de Neguinho do mostra o chamado de Dona Canô, mãe de Caetano Veloso, se referindo a , que se apresentava na televisão, na já longínqua mocidade dos dois. O primeiro é branco e o segundo negro e a parceria, e todos os ganhos culturais advindos dessa amizade não são suficientes para esconder ou desfazer o preconceito do termo empregado pela mãe de Caetano quando ele é subtraído do contexto em que acontece. É essa situação que originou esse trabalho. O seu objetivo foi investigar o que autoriza um homem branco a chamar um homem negro de preto, abandonando o uso do politicamente correto. De um modo mais geral, o que autoriza um branco a se referir a um negro como preto sem que isso seja um ato preconceituoso ou desqualificador. Questões que nos remetem diretamente as discussões sobre etnias e cotas raciais. Masiero (2002) localiza a origem do conceito de raça tal como chegou até nós no final do século XVII, O termo surgiu mais tarde, nos primeiros anos do século XIX, nos escritos de George Cuvier, e foi empregado da mesma forma que na botânica, zoologia e geologia: classificando. Marcon, Ferreira e Serrano (2008) mostram o quanto é recente o uso da genética na determinação do que é raça e que ela traz o consenso: os homens são todos iguais ou, como dizem, os homens são igualmente diferentes”(p.40), o que concorda com a Primeira Declaração Sobre Raça da UNESCO, em 1959, que afirma: “ raça é menos um fato biológico do que um mito social e, como mito, causou severas perdas de vidas humanas e muitos sofrimentos em anos recentes” (Schwarcz e Maio, 2005, apud Marcon, Ferreira E Serrano, 2008, p. 40).

1 [email protected]

2 [email protected] A ciência tende a descartar o conceito de raça e nesses termos ele não é nem levado em discussão. Se em termos científicos o conceito de raça não se sustenta, ele se impõe como um fato cultural. A cultura não descarta o problema, a sociedade gera e nutre preconceitos contra a cor de pele, a despeito das teorias que defendem a miscigenação e a tese do Brasil como uma democracia racial. A isso também vozes irão se levantar em oposição, propondo políticas de reafirmação da identidade negra. No cotidiano pode-se observar o uso de camisetas com inscrições do tipo “100 por cento negro” ou “Preto é cor, negro é raça”, que remetem a idéia de um pais bicolor, no qual são negros todos aqueles que não são brancos. Considerando o racismo uma das faces da discriminação, Oliveira, Junqueira e Fonseca (2005) indicam que o racismo é apenas uma parte delas. Marcon, Ferreira e Serrano (2008) localizam na história a discriminação dos negros no Brasil, chamando atenção para a necessidade da lei federal 10.639, de 09/01/2003 que introduziu o ensino da história afro-brasileira no ensino médio e fundamental como uma tentativa de resolver isso. Segundo elas, como são predominantemente parte das camadas mais pobres, os negros sofrem dois tipos de descriminação: a racial e a de classe. Ferreira e Matos (2007) mostram representações históricas associadas aos afro-descentes, tais como preguiçoso e intelectualmente inferior. Segundo os autores, essa visão é utilizada para justificar as condições socioeconômicas desfavoráveis para a população afro- brasileira, sendo a ela atribuída a responsabilidade por seu fracasso (p. 50). O fato é que em um país como o Brasil é difícil dizer quem é negro, a não ser que se recorra à tese de uma nação bicolor. Marcon, Ferreira e Serrano (2008) mostram que até pouco tempo preto e negro eram sinônimo no Brasil. Se considerarmos a tese do Brasil ser um país bicolor, caberia perguntar se os que não são brancos são pretos ou negros. Argumentos, baseados em releituras das estatísticas étnicas, defendem como pretos somente aqueles que conservam traços étnicos efetivamente puros, que corresponderia a aproximadamente seis por cento da população e os negros seriam os 42% que de denominam pardos. Outra palavra, de criação recente, também não ajuda a colocar as coisas no lugar de modo a satisfazer a todos: a expressão afro-descendente. Mendonça faz opção pelo termo negro, em detrimento do afro-descendente sob o argumento de que no primeiro há a idéia de conservação de traços étnicos e no segundo apenas uma demarcação de origem, independente de qualquer particularidade que o identifique como tal qualquer forma, seu argumento deságua em uma concepção bicolor do Brasil e negando a, democracia racial. Rodrigues (2007) mostra a origem do politicamente correto em uma sentença jurídica nos EUA em 1793. e a sua afirmação da expressão a partir das década de 80 quando passou a ser utilizada por movimentos de reafirmação de identidade e que denunciavam o uso de palavras de conotação discriminatória, Assim, as expressões que possuíam um sentido discriminatório histórico passaram a ser denunciadas, como é o caso de ‘preto’ no Brasil.

1. Porque Caetano Veloso. Caetano Veloso é um artista brasileiro de relevante importância para a cultura nacional nos últimos 40 anos e como tal tem a opinião prezada por críticos e por considerável parcela da população brasileira Ele pensa a questão racial brasileira continuamente e sendo da , o estado brasileiro com a maior porcentagem de negros, teve desde a infância um contato direto com negros e a sua cultura. Caetano Veloso é também um homem que pensa a cultura brasileira – goste-se ou não de suas opiniões – e é desse lugar que defende que em um país como o Brasil as canções populares ocupam o lugar quem em outros, os países europeus por exemplo, cabe a outras artes. Sob essa perspectiva as canções populares são instrumentos de mediações, a despeito de sua qualidade ou gênero. Silva (2006) se deparou com as representações preconceituosas da década de 30 na famosa polêmica entre e Wilson Batista, constituintes do imaginário social carioca naquela época. Barcelos (2009), utilizando recurso semelhante, mostrou a discussão sobre o tempo na obra de . As investigações sociais a partir do estudo das às produções culturais é desenvolvida por historiadores, como mostram Costa e Machado (1999) na obra “Imaginário e História”. No que se refere às letras de músicas, destacam-se o capítulo escrito por Melo (1999), sobre as letras do compositor Xangai e o de Vargas (1999), que analisa a música como arte que mantém um diálogo reflexivo com a realidade social, a partir das canções da banda de rock Legião Urbana. Na discussão que promove sobre o método de trabalho para a captura do imaginário a partir do cancioneiro, Vargas defende um fracionamento do objeto que permita um ‘desvão’ por onde possamos espreitar a complexa totalidade imaginária de uma sociedade. Lisita (1999) discute a relação entre imaginário social e as representações sociais. Referindo-se a Moscovici, defende-as como “verdadeiras teorias do senso comum (p. 89)”, que cremos, propagam-se nas letras de músicas. 2. Método Inicialmente foram listadas todas as músicas de Caetano Veloso que utilizam as seguintes expressões: negro, preto, moreno, mulata, mestiço e outras similares, que fazem referências à negritude e sugeriam uma relação com o tema investigado. Foram selecionadas 35 canções que passaram por um primeiro crivo por meio da leitura das letras. Nesse processo foram descartadas 12. Os nomes das músicas que foram objetos de análise aparecem ao longo do texto. A análise, com recursos das práticas discursivas, implicou em novas leituras das letras acompanhas de audição, pois a forma do compositor construir as letras nem sempre permite uma captura do sentido pela mera leitura, já que a música popular, além da palavra, inclui elementos, como a melodia, o ritmo, interpretação e outros. Na seqüência foram levantados os temas e deles surgiram as categorias que se mostram na seqüência. O espaço não permite a descrição de cada uma dela, uma vez que se optou por mostrar parte do material analisado, mas foram construídas seis categorias. Adverte- se o leitor que todas as letras de Caetano Veloso são referenciadas à obra “Sobre as letras”, de Caetano Veloso (2003), ou ao site oficial do cantor: www.caetanoveloso.com.br

3. As categorias 3. 1 Negritude e banzo

A história do negro/preto e todas as referências à negritude surgem na obra de Caetano Veloso após 1971 em um disco gravado em Londres, na música “Shoot me dead”, em cujo final ele clama diversas vezes por uma morena. A maioria das músicas do disco tratam da solidão experimentada no exílio voluntário durante a ditadura militar no Brasil. A presença da morena cantada em outra língua equipara Caetano aos escravos no sentimento de tristeza e saudade, se é que não podemos chamá-la mais apropriadamente de banzo. Se em “Shoot me dead”‘é da solidão do exílio que a morena consola em “A tua presença morena” há uma referência ao “Com a morte na alma” (Sartre, 1968). Na obra do filósofo a morte adentra pelos cinco buracos da cabeça do personagem Mathieu, sob a forma de tiros em meio a uma guerra estranha, que invade países e a subjetividade. Na de Caetano ela adentra os sete buracos da cabeça e se reveste das cores que a adjetivam, mas na conclusão ela é negra e é isso que é dito para uma morena, que o consola frente a presença da morte. A idéia da morte negra nós podemos entender como uma mera apropriação do costume do uso do preto como cor do luto, e como tal alusiva à noite ou a escuridão com o sentido de tristeza, malogro ou maldição. A presença também é morena e transborda por toda a casa, por todo trânsito, por todos os lugares, é uma presença do que se come, do que se reza, é a coisa mais bonita de toda a natureza, além do que a presença da morena é morena.

3. 2 O preconceito histórico

Oficialmente no Brasil a escravidão ‘terminou’ em 13 de Maio de 1888. Um dos poucos lugares que ainda celebram essa festa de ‘libertação’ é Santo Amaro da Purificação no estado da Bahia, cidade E terra natal de Caetano Veloso. No disco “Noites do Norte”, (Caetano Veloso, 2000) há uma música intitulada “13 de Maio i” que afirma: “Dia 13 de maio em Santo Amaro/Na Praça do Mercado/Os pretos celebravam/(Talvez hoje inda o façam)/O fim da escravidão/Da escravidão/O fim da escravidão...” No segundo, não tão sutilmente, o artista se utiliza do termo preto para se referir as pessoas que celebram o 13 de maio, o que remete aos que foram escravizados. A injustiça social que tem sua forma maior de denúncia em “”. É o próprio Caetano que atesta no livro “Sobre as letras” ter feito toda letra. Haiti é uma canção diferente das que Caetano normalmente produz. A história do Brasil se apresenta cíclica em “Haiti”. Trabalhando em condições precárias, para o senhor branco, os negros, em sua maioria trabalham assalariado para o mesmo senhor branco, moldado as novas faces do capitalismo. O canto de resistência do negro torna-se um objeto para deleite do branco, que somente assiste. Apesar de ser uma música de denúncia social e parecer um tanto negativista por afirmar que o Brasil seria um Haiti, Caetano desfaz o erro e afirma que o Haiti não é aqui, como também não era o Hawai por onde surfava o menino do Rio. O disco “Tropicália 2”, de Caetano e Gil abre com “Haiti” e fecha com “Desde que o samba é samba”. As duas com letras do primeiro. “Desde que o samba é samba” foi feita ao estilo de “Samba da Benção” (/Baden Powell, 1967) e não conta piada: ele fala da tristeza.

3.3 Diferença e negação da hierarquização

Caetano Veloso nos faz pensar sobre qual é a musica de preto em “Linha do Equador” Vejamos um trecho da letra: “Luz das estrelas /Laço do infinito /Gosto tanto dela assim /Rosa amarela /Voz de todo grito /Gosto tanto dela assim /Esse imenso desmedido amor /Vai além de seja o que for /Vai além de onde eu vou /Do que sou minha dor /Minha linha do Equador /Esse imenso desmedido amor /Vai além de seja o que for /Passa mais além do céu de Brasília /Traço do arquiteto /Gosto tanto dela assim /Gosto de filha /Música de preto /Gosto tanto dela assim(...)”. O verso “gosto de filha” e “música de preto”, são praticamente os únicos na canção que estão separados, em versos livres e sem relação com o resto da canção, entremeados pelo verso “Gosto tanto dela assim” Vale lembrar que o sentido da expressão a música de preto já foi o de é música de marginal, como se deu também com o samba. Mas é inegável a contribuição de compositores negros na música mundial e brasileira. Caetano Veloso trata o modo de falar do negro em “Língua”. .A globalização trouxe para a comunidade negra brasileira, particularmente a ligada à cultura, a assimilação do jeito de falar, vestuário, ritmos e outras formas de manifestações, a influência da cultura atualmente produzida pelos negros norte-americanos. A globalização de certa forma impele até mesmo os marginalizados brasileiros a se comparem com os negros dos guetos do Harlem. Em “Americanos”, Caetano Veloso é contundente em refletir sobre o pragmatismo norte – americano mostrando quanto o comportamento geral adotado perante fatos cotidianos são tratados com extrema objetividade, para quem “a mulata não é a tal”. O verso demonstra a apreciação de Caetano Veloso e dos brasileiros que a valorizam, revelando o que se supõe faltar aos americanos: uma brasilinidade que a cultura pragmática não valoriza. Símbolo por excelência da miscigenação brasileira e do samba ao redor do mundo a mulata é genuinamente brasileira. No mesmo disco há na seqüência um musica Michael Jackson, “Black ou White”. Jackson canta que não importa se é preto ou branco. O contraste mostra a questão da nação bicolor dos EUA, com Caetano a apontando e Jacson minimiza a sua importância no chamamento da fraternidade entre as raças.. Entretanto, é somente em “Reconvexo” (Caetano Veloso, 1989) que o negro americano adquire para Caetano uma identidade propriamente dita que a despeito da admiração que demonstra, não se sobrepõe a sua crença na mistura étnica que se dá abaixo do Equador.

3.4 História e resistência

Além de referências a condição social do negro/preto e afins, Caetano Veloso também se mostra preocupado com a questão histórica. Em “Sugar Cane Fields Forever”, composta em seu exílio londrino durante o regime militar a consciência político – cultural se modifica Ele canta: “Sou um mulato nato/No sentido lato/Mulato democrático do litoral”. O titulo da musica faz uma referência a canções dos Beatles, alusiva a campos de morangos. Se esses são frutos de ato familiar que exige delicadeza das mãos, a colheita da cana é feita por facões e golpes rudes, aplicados pelos escravos. Na comparação com a Inglaterra o Brasil perde: a democracia é a da pobreza, da opressão e da injustiça. Outra referência histórica que Caetano evoca é Zumbi dos Palmares. Em “Milagres do Povo” a religião, expressões africanas e o grito emitido pelos negros de dentro dos barcos que os traziam da África foram tomados por gritos de deuses pelos índios que os ouviam. No entanto, foram os negros do barco que submeteram se ao senhor branco: “E o povo negro entendeu/Que o grande vencedor/Se ergue além da dor/Tudo chegou sobrevivente num navio/Quem descobriu o Brasil/Foi o negro que viu/A crueldade bem de frente e ainda produziu milagres/De fé no extremo Ocidente”. 3.5 A mulher e a beleza negra e Em 1977, no disco Bicho Caetano apresenta “Two Naira Fifty Kobo”. O nome remete ao valor que o motorista responsável pelo transporte da delegação brasileira em um festival africano de musica, o FESTAC, cobrava pelos serviços que lhe pediam. Nos momentos de folga ele punha música pra dançar, o que fazia Caetano Veloso se recordar dos pierrôs bêbados da Bahia e sentir admiração, expressando: “Sua dança, no entanto, tinha essa graciosidade africana e transmitia doçura e melancolia. A beleza dos negros também é um tema recorrente em Caetano. Sobre isso destacamos duas mulheres principais em “Beleza Pura”, e “Neide Candolina”. Em Beleza pura ele canta: Moça preta do Curuzu..../Quando essa preta começa a tratar do cabelo/É de se olhar/Toda a trama da trança/A transa do cabelo/Conchas do mar/Ela manda buscar pra botar no cabelo/Toda minúcia/Toda delícia.../Moço lindo do Badauê.../Do Ilê Aiyê.../Dentro daquele turbante dos Filhos de Ghandi.../” O cuidado com o tratamento das tranças mostra uma vaidade com a beleza, que o encanta. Em “Beleza Pura” a condição social não é tratada, Em “Neide Candolina” diferentemente, o que está em jogo é a beleza da mulher negra em um sentido mais amplo, tanto a física como a do cidadão. É fácil comparar que a beleza pura que Caetano Veloso considera é a beleza de Neide Candolina, que agrega as duas coisas. Mais do que isso, o encontro em Sampa, mencionado na segunda, reflete a apreciação de uma resistência, no mais novo quilombo.

3.6 A identidade e nuances Em “Eu sou neguinha?” é revelada a preocupação de que o negro não se resume em uma única cor de pele. Vejamos um trecho da letra: “Eu tava com graça/Tava por acaso ali, não era nada/Bunda de mulata, muque de peão/Tava em Madureira, tava na Bahia/No Beaubourg, no Bronx, no Brás/E eu e eu e eu e eu e eu/A me perguntar:/Eu sou neguinha?”. A presença de lugares com maioria negra leva a perguntar se a pessoa que se encontra em lugar de negros também é negra. Na Bahia, por exemplo, existem várias expressões para indicar as diferentes nuances da cor da pele. Em “Ele me deu um beijo na boca”, retrata uma conversa entre um branco e um negro, em que o segundo afirma sua identidade e sua negritude ao declarar que é preto. Afirma que é esperto e que não é uma “dama” qualquer que o deixará cabisbaixo, como segue: “/Mas eu sou preto, meu nego/Eu sei que isso não nega e até ativa o velho ritmo mulato/E o leão ruge”. Caetano é o leão e se faz ouvir quando chama si mesmo de preto para adjetivar positivamente o grupo e utilizando o adjetivo de forma positiva nega o preconceito histórico. O negro que foi chamado de preguiçoso pelo senhor não é o pessoa que pode como o branco, o amarelo ou outro ser preguiçoso, mas um povo. Alguns brancos chamam negros de pretos e o que permite que alguns o façam e outros não parece ser somente a questão de identificação. A experiência determinante na situação é a convivência. Em “O ” Caetano se depara com a história se apresentando como cíclica: “Reconhecer o valor necessário do ato hipócrita/Riscar os índios, nada esperar dos pretos". O ato hipócrita é a escravidão e a destruição de tribos indígenas. Restos do imaginário coletivo, a idéia de que o negro somente trabalharia se fosse castigado ainda permanece e é retomada sob nova forma em “Haiti”, que conta que negros batem em negros. Haiti pode ser lida diferente porque o negro é quem bate, e para quem está sendo agredido, não é preto, mas algo/alguém que ocupa o lugar do senhor/dominador. O primeiro negro sofreu um ‘branqueamento’, e pelo branco é tratado como moreno, para indicar uma aproximação de afeto. Já o preto se configura como o que não é conhecido para o branco e, portanto, sujeito as representações históricas que sobre ele recaem.

Conclusão

As representações de Caetano Veloso sobre a negritude perpassam importantes discussões sobre o tema, desde o reconhecimento dos preconceitos e injustiças históricos até a proximidade, que ao lhe oferecer uma experiência própria, e, portanto alheia às representações estigmatizantes, lhe permitem ver a beleza natural, dos corpos formados na lida, do sujeito que almeja a ascensão social e que luta pela própria valorização. A cultura negra é reconhecida no amalgamento com outras culturas, o que leva a compreensão que sua obra nega a idéia de pais bicolor, mas miscigenado, não a ponto de apontar para uma democracia racial, mas no sentido de construção de alguma coisa nova. A admiração pela concepção de nação bicolor, como ele obseva nos EUA, soa neste contexto como um elogio ao pragmatismo e objetividade norte-americana, sendo de certa forma, um denúncia das palavras amenizadas, típicas de um pais como o Brasil. Esse é o ponto emblemático da questão na obra de Caetano Veloso: ele reconhece a diferença, mas não a hierarquiza. Não porque a negue, mas porque algo se coloca acima dela. Podemos dizer, ainda que ele próprio não o faça, que para Caetano Veloso a humanidade, condenada as mesmas misérias e ao mesmo destino, se sobrepõe em importância as questões étnicos/raciais. Resta responder nossa questão inicial. O que autoriza Caetano Veloso a chamar Gilberto Gil de Preto, ou generalizando, o que autoriza um homem branco a chamar um, homem negro de preto sem com isso incorrer na discriminação e agressão? Lembramos que a negritude historicamente se configura como estigma, uma marca que se refere a um grupo determinado e os diferenciam do restante da sociedade. De acordo com Goffman (1988), o grupo estigmatizado tem apoio somente no igual, ou seja, no individuo que pertence ao grupo, ou no “informado”, que é alguém sem o estigma que foi aceito pelo grupo estigmatizado devido ao compartilhamento de um mesmo ponto de vista. Entretanto: São as experiências de vida e não a ‘boa vontade’ perante o grupo que determinam se o indivíduo é ou não informado. As formas de aceite do grupo podem ainda, segundo Goffman, se diferenciar, mas a experiência de identificação é que caracteriza a pessoa informada. .Pelo relato de Goffman, se torna relevante considerar que tanto dona Canô como Caetano Veloso em algum momento passaram por uma experiência pessoal de reconhecimento da negritude. E se há a dúvida de Caetano de que na Bahia é considerado branco e em São Paulo preto, ela se desvanece pelo fato de que ele transita indistintamente entre negros e brancos.

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