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UNIVERSIDADE FEDERAL DO

VICTOR AUGUSTO CORRÊA AZEVEDO

NOS ESCOMBROS DA MEMÓRIA: reconstrução de identidades em Teoria geral do esquecimento, de Agualusa

RIO DE JANEIRO 2015

Victor Augusto Corrêa Azevedo

NOS ESCOMBROS DA MEMÓRIA: reconstrução de identidades em Teoria geral do esquecimento, de Agualusa

1 volume

Dissertação de Mestrado apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Letras Vernáculas da Universidade Federal do Rio de Janeiro como quesito para a obtenção do título de Mestre em Letras Vernáculas (Literaturas Portuguesa e Africanas)

Orientadora: Professora Doutora Carmen Lucia Tindó Ribeiro Secco

Rio de Janeiro 2015

CIP - Catalogação na Publicação

Azevedo, Victor Augusto Corrêa A994e Nos escombros da memória: reconstrução de identidades em Teoria geral do esquecimento, de Agualusa / Victor Augusto Corrêa Azevedo. -- Rio de Janeiro, 2015. 135 f.

Orientadora: Carmen Lucia Tindó Ribeiro Secco. Dissertação (mestrado) - Universidade Federal do Rio de Janeiro, Faculdade de Letras, Programa de Pós-Graduação em Letras Vernáculas, 2015.

1. Esquecimento. 2. Memorialismo. 3. Literatura angolana. 4. José Eduardo Agualusa. 5. Identidade. I. Secco, Carmen Lucia Tindó Ribeiro, orient. II. Título.

Elaborado pelo Sistema de Geração Automática da UFRJ com os dados fornecidos pelo(a) autor(a).

RESUMO

AZEVEDO, Victor Augusto Corrêa. Nos escombros da memória: reconstrução de identidades em Teoria geral do esquecimento, de Agualusa. Rio de Janeiro, 2015. Dissertação (Mestrado em Letras Vernáculas). Faculdade de Letras, Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2015.

No pós-independência, Angola viu algumas de suas utopias transformadas, em grande parte, em distopias, em razão do esvaziamento do projeto político e da incapacidade de articulação entre tradição e modernidade, num panorama de aporismo e de paroxismo descrente. Hannah Arendt (2013) afirmava que só podemos transformar em experiência o sofrimento vivido na própria existência se lhe dermos publicidade, o que é fundamental para garantir a preservação da tradição e da própria vida. A “escrita de si” e o “testemunho” adquiriram uma dimensão pública necessária para o restabelecimento das relações sociais. E é na literatura, instrumento de afirmação da nacionalidade, que a experiência servirá de aparato arqueológico do memorialismo para mergulhar num universo de histórias balizadas por um código que legitima tanto uma sociedade atomizada como a decorrente desintegração humana. Considerando as circunstâncias de um mundo que fez por implodir as balizas que davam plausibilidade e ressonância crítica à noção de Estado-nação, o presente trabalho busca identificar, por meio da análise do romance Teoria geral do esquecimento, do escritor angolano José Eduardo Agualusa, publicado no Brasil em 2012, os índices que auxiliarão no deciframento do que seriam os “escombros da memória”, expressão inspirada na noção de “escombro”, formulada por Homi K. Bhabha (2002). O que também se pretende é uma leitura das questões identitárias apresentadas no romance, contemporaneamente, e que parecem escapar do escopo memorialístico, em termos pelos quais a noção de angolanidade precisaria ser reformulada. Palavras-chave: Esquecimento. Memorialismo. Literatura angolana. José Eduardo Agualusa. Identidade.

ABSTRACT

AZEVEDO, Victor Augusto Corrêa. Nos escombros da memória: reconstrução de identidades em Teoria geral do esquecimento, de Agualusa. Rio de Janeiro, 2015. Dissertação (Mestrado em Letras Vernáculas). Faculdade de Letras, Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2015.

In the post-independence, Angola noticed some of their utopias turned largely into dystopias due to weakening the political project and the inability of articulation between tradition and modernity in a panorama of quandary and unbelieving paroxysm. Hannah Arendt (2013) claimed that we can only turn into experience suffering experienced in their own lives if we give him publicity, which is critical to ensure the preservation of tradition and live itself. The ‘writing itself’ and the ‘testimony’ acquired a public dimension required for the restoration of social relations. It's in Literature – the instrument of nationality affirmation – that the experience will provide archaeological apparatus of memorialism to dive into a universe of stories buoyed by a code that legitimizes an atomized society and the human disintegration. Considering the circumstances of a world that imploded landmarks which gave plausibility and critical resonance to the notion of nation-state, this paper seeks to identify indices that will help in deciphering what are the "debris of memory," an expression inspired by the notion of "debris", formulated by Homi K. Bhabha (2002), through analysis of the novel Teoria geral do esquecimento, written by the Angolan José Eduardo Agualusa and published in in 2012. It is also intended a reading of identity issues presented in the novel contemporaneously and they seem to escape the memorialistic scope, in terms by which the notion of Angolanity should be recast. Keywords: Oblivion. Memorialism. Angolan Literature. José Eduardo Agualusa. Identity.

A minha avó Naïr Clara (in memoriam).

AGRADECIMENTOS

Retornar aos estudos literários, após muito mais de uma década da conclusão da graduação, foi com dificuldades pessoais, porém com grande obstinação. Sem dúvida, foram necessários o esforço e a colaboração de muitos que apostaram no meu desejo de traçar nova trajetória de vida. E a conclusão da presente dissertação é a prova de que ainda há muito por percorrer. Passo a agradecer: À Professora Doutora Carmen Lucia Tindó Ribeiro Secco, querida orientadora dos caminhos que segui para conclusão da pesquisa, na qual busquei transformar em dissertação, por sua generosidade e atenção constantes; Aos também Professores Doutores do Programa de Pós-Graduação em Letras Vernáculas da Universidade Federal do Rio de Janeiro, Ângela Beatriz de Carvalho Faria, Dau Bastos, Maria Teresa Salgado Guimarães da Silva, Ronaldes de Melo e Souza e Teresa Cristina Cerdeira por me apresentarem um “mundo novo” nas Literaturas Brasileira, Portuguesa e Africanas de Língua Portuguesa; À Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES) pela concessão da bolsa de estudos de financiou a pesquisa realizada; À Secretaria do Programa de Pós-graduação em Letras Vernáculas, pela equipe sempre solícita; Aos colegas da Pós, cuja convivência foi muito enriquecedora; Aos amigos da “vida toda”, pela compreensão e pela firme amizade; À minha família, pelo incentivo e pela valorização dos estudos na minha formação intelectual; e Ao Maximiliano Torres, pelo companheirismo e pelas conversas que nunca acabam.

Os deuses do acaso dão, a quem nada lhes pediu, o que um dia levam embora; e se não foi pedida a coisa dada não cabe se queixar da perda agora. Mas não ter tido nunca nada, não seria melhor – ou menos mau? Mesmo sabendo que uma solidão completa era o capítulo final, a anestesia valeria o preço? (Rememorar o que não foi não dá em nada. É como enxergar um começo no que não pode ser senão o fim. Ontem foi ontem. Amanhã não há. Hoje é só hoje. Os deuses são assim.)

Paulo Henriques Britto, Sem título, 2013.

Uenda ni muzumbu kajimbirilê. Provérbio angolano. [Quem anda com intérprete não se perde.]

SUMÁRIO

1. Intentio Lectoris 10

2. Reconstrução de identidades 20 2.1. Estado-nação, nacionalismo e angolanidade: diálogos conceituais 28 2.2. Entre o cultural e o político: questões identitárias em obras de Agualusa 42

3. Nos escombros da memória 51 3.1. As escritas de si e o testemunho 62 3.2. O romance angolano contemporâneo e suas estratégias 76 3.3. Esquecimento: por uma possibilidade de reescritura 102

4. Considerações finais 119

5. Referências 125 10

1. Intentio Lectoris

Esta dissertação procura refletir sobre a literatura angolana, movida pelo desejo de saber se a atividade literária pôde colaborar para, até certo ponto, revelar a estrutura cultural de movimentos políticos que buscaram a criação e a consolidação do Estado-nação angolano. Para tal, centra-se a pesquisa em José Eduardo Agualusa, um dos mais representativos escritores contemporâneos de Angola, trazendo luz a um de seus romances, intitulado Teoria geral do esquecimento (2012a) e publicado em 2012. Procurou-se problematizar a construção da complexa e multifacetada identidade cultural angolana, examinando sinais dos efeitos dessa literatura no despertar das consciências cívicas e políticas, sem perder de vista o processo que culminou com a autonomia político-administrativa de Angola. Deve-se ressaltar que durante os anos de 1960 e 1970, emblemáticos no cenário de luta pela libertação de nações do continente africano, Angola, que era colônia de Portugal, ia, através da práxis revolucionária, construindo sua independência. O olhar sobre a literatura angolana deve sempre buscar as questões que estão por trás do adjetivo “angolano”, uma vez que, ao dar forma à “angolanidade”, termo tão caro aos “novos intelectuais” de 1948, e ao projeto político de independência, a literatura também procurava se afirmar como nacional. Desta forma, vários ficcionistas e poetas angolanos buscaram trazer para o domínio da letra, tanto em verso como em prosa, o repositório sociocultural de suas etnias, com suas histórias, seus cantos, seus relatos de guerra, suas memórias, enfim, seu lugar. Refletir, nesse sentido, é dar corpo ao passado não muito distante e reconhecer os elementos formadores da consciência de um aparato literário nacional, não mais em dependência direta da metrópole, mas, como assevera , ao tratar da literatura brasileira, ser capaz de “produzir obras de primeira ordem, influenciada, não por modelos estrangeiros imediatos, mas por exemplos nacionais anteriores” (CANDIDO, 1987, p. 153). Na tentativa de observar os primeiros indícios de uma literatura angolana no pós-independência, poder-se-ia indagar, como o fez Rita Chaves, que

tipo de palavra ganhará a atenção daqueles que já não se sentam à volta da fogueira, mas guardam do gesto uma funda saudade? Que elementos 11

substituíram a árvore, a comida, a música? Que sinais terá deixado nas “estórias” de hoje a tradição tão fortemente evocada? (CHAVES, 1999, p. 19).

Partindo dessas questões, chegar-se-ia a uma leitura mais coerente do fazer literário no pós-independência, elencando as principais características das produções artísticas desse momento até períodos mais recentes. Destaca-se, portanto, uma série de escritores essenciais para a compreensão da literatura angolana contemporânea e as relações desta com a construção de uma identidade nacional. Os aspectos oriundos da análise dessa produção específica integram o fazer literário de José Eduardo Agualusa. O entendimento se elucidará adiante, no item 3 deste estudo, quando da análise da obra Teoria geral do esquecimento (2012a). Nesse romance de Agualusa, vencedor do Prêmio Literário português Fernando Namora de 2013, a imaginação e o memorialismo compõem um amálgama de histórias. O livro é, nas palavras de seu autor, “uma ficção que aproveita a realidade, mesmo tendo consciência de que a realidade, aquela realidade angolana, era, e ainda é, infinitamente mais exuberante e mais criativa do que a mais louca ficção” (AGUALUSA, 2012c). Em uma nota prévia que abre o romance, o narrador explica aos leitores que a protagonista:

Ludovica Fernandes Mano faleceu em Luanda, na clínica Sagrada Esperança, às primeiras horas do dia 5 de outubro de 2010. Contava 85 anos. Sabalu Estevão Capitango ofereceu-me cópias de dez cadernos nos quais Ludo foi escrevendo o seu diário, durante os primeiros anos dos 28 em que se manteve enclausurada. Tive igualmente acesso aos diários posteriores ao seu resgate e ainda a uma vasta coleção de fotografias, da autoria do artista plástico Sacramento Neto (Sakro), sobre os textos e desenhos a carvão de Ludo nas paredes do apartamento. Os diários, poemas e reflexões de Ludo ajudaram-me a reconstruir o drama que viveu. Ajudaram-me, creio, a compreendê-la. Nas páginas seguintes aproveito muitos dos testemunhos dela. (AGUALUSA, 2012a, p. 9)

A história se desenvolve às vésperas da independência de Angola, no dia 11 de novembro de 1975, quando uma portuguesa de Aveiro vê-se em companhia apenas do pastor alemão albino Fantasma, em um apartamento duplex, de cobertura, no mais luxuoso edifício da capital Luanda. Assim, o narrador descreve a cena da independência:

12

Fizera-se noite. Balas tracejantes riscavam o céu. Explosões sacudiam as vidraças. Fantasma escondera-se atrás de um dos sofás. Gemia baixinho. Ludo sentiu uma tontura, uma agonia. Correu até a casa de banho e vomitou na retrete. Sentou-se no chão a tremer. [...] Finalmente estendeu-se num dos sofás da sala de visitas e adormeceu. [...] O silêncio ampliava a escuridão. (AGUALUSA, 2012a, p. 21-22)

Com a instabilidade decorrente dos acontecimentos desse dia, Ludo entra em desespero após balear e matar um homem que tentava invadir seu apartamento. Como estratégia de sobrevivência, ela ergue uma parede no corredor, em frente à porta, para se proteger das mudanças à sua volta.

Meses antes, [...] começara a construir no terraço uma pequena piscina. A guerra interrompera as obras. Os operários haviam deixado sacos de cimento, areia, tijolos, encostados aos muros. A mulher arrastou algum do material para baixo. Destrancou a porta de entrada. Saiu. Começou a erguer uma parede, no corredor, separando o apartamento do resto do prédio. Levou a manhã inteira nisso. Levou a tarde toda. Foi apenas quando a parede ficou pronta, após alisar o cimento, que sentiu fome e sede. (AGUALUSA, 2012a, p. 24)

Serão as reminiscências encontradas após o resgate de Ludo que ajudarão o narrador a reconstruir para o leitor a história dos personagens e a história de Angola. Essa reconstrução é fragmentária, colando os “cacos” da história, revolvida pela necessidade de “presentificação” do “impresentificável” (LYOTARD, 1987, p. 26), juntando os escombros da memória. Desse modo, a linha central que estrutura a tessitura memorial que se pretende analisar na obra de Agualusa perpassa a proposição de que se estabelece um diálogo profícuo entre a urdidura textual e o panorama sócio-histórico. Esse diálogo é edificado por meio da ação da memória que se tornaria “mais um” elemento a agir na estrutura do romance, tal qual um agente interno que se relaciona com o contexto múltiplo do qual a própria memória faz parte. Some-se, ainda, a necessidade de refletir sobre a dinâmica entre ficção e realidade, observando o fato de que, uma vez inserido em um movimento memorial, questiona-se o que é tido como verdade. Entretanto, sabe-se que o relato da memória nunca é exatamente fiel ao que se passou, uma vez que é condicionado pela subjetividade de quem conta. Nesse sentido, a leitura a ser empreendida será à luz de aspectos relacionados à recepção da obra pelo leitor, ou seja, à intentio lectoris (2012), de que trata a obra de Umberto Eco. 13

A par de um sistema operacional literário, pelo final de década de 1970, Eco se preocupou cada vez mais com a “estética da recepção e do efeito”, fazendo suas críticas ao estruturalismo, como em A estrutura ausente, de 1968. Ele passa a observar mais a dimensão polissêmica do texto, atentando especialmente para a interação do leitor no processo de interpretação. Isso resulta no postulado da semiótica ilimitada, em que o texto, enquanto obra aberta, está “aberto” a muitas ou infinitas leituras. Essa possível pluralidade de leituras tem a ver com a intentio lectoris, isto é, com o direito de os leitores atribuírem sentido à obra ou ao texto lidos. Segundo o pensamento do semiólogo, o papel ativo do leitor já vem estruturado com a própria obra, na medida em que nela há sempre espaços em branco que devem ser preenchidos pelo leitor. O texto quer deixar ao leitor a iniciativa interpretativa, embora seja interpretado com uma margem suficiente de univocidade. O texto é um produto, cujo destino interpretativo deve fazer parte do próprio mecanismo gerativo. Nesse processo, ocorrem atualizações contextuais do texto. O processo da escrita, que abriga o texto à destruição pelo tempo, opera uma dimensão mais profunda. Perdendo-se o elemento performático da comunicação discursiva primeira ou até mesmo oral, o texto, uma vez fixado por escrito, abre-se a muitas possibilidades de leitura. Na verdade, abre-se ao infinito das possibilidades. Esse campo foi aberto com a ênfase na subjetividade do intérprete, tão típica da intentio lectoris. Cada um lê com os olhos que tem, a partir de onde os pés pisam o chão, no cotidiano, na história. Mas Umberto Eco não quer concordar com a desbastagem completa do texto ao modo dos pragmatistas não fundacionais. Ele se nega a dar ao leitor o poder de só “usar” o texto, de deduzir do texto o que bem quiser, ainda que reconheça a morte do autor no momento da fixação do texto, especialmente por escrito. Nesse sentido, Eco desempenha um papel dúbio. Por um lado, insiste em que o autor morre com a escrita do texto; por outro, nega-se a morrer, justamente por ser autor consagrado de obras que ele mesmo vê sendo “usadas” e “interpretadas” das formas mais variadas, algumas delas provavelmente em sentido muito diverso do proposto por ele.

Se nos últimos tempos o privilégio conferido à iniciativa do leitor (como único critério de definição do texto) adquire excepcionais características de visibilidade, na verdade o debate clássico articulava-se, antes de mais nada, em torno da oposição entre estes dois programas: (a) deve-se buscar no 14

texto aquilo que o autor queria dizer; (b) deve-se buscar no texto aquilo que ele diz, independentemente das intenções do autor.

Só com aceitação da segunda ponta da oposição é que se poderia, em seguida, articular a oposição entre: (b1) é preciso buscar no texto aquilo que ele diz relativamente à sua própria coerência contextual e à situação dos sistemas de significação em que se respalda; (b2) é preciso buscar no texto aquilo que o destinatário aí encontra relativamente e seus próprios sistemas de significação e/ou relativamente a seus próprios desejos, pulsões, arbítrios. (ECO, 2012, p.6-7)

Ao aludir à “estética da recepção e do efeito”, Umberto Eco traz à baila o pensamento de Wolfgang Iser que, já em 1972, em seu O leitor implícito, destaca a importância do leitor enquanto receptor da produção de narrativas, principalmente para as produzidas a partir dos seiscentos até o século XX. Nessa obra, mostra que é ingênua a perspectiva de atribuir ao escritor o papel de “guia da leitura”, o que deve ser substituído pela concepção do texto literário-ficcional determinado por uma estrutura vincada de vazios a serem suplementados, e não complementados. A expectativa empreendida não visa a um leitor burocrático, de quem se espera o preenchimento de lacunas, e, sim, que recrie a obra. Quanto aos processos de produção literária, Iser concebe a construção em “atos de fingir”: seleção, combinação e autoindicação. O empenho de criar não dá ao escritor o controle absoluto sobre o resultado alcançado. Portanto, as escolhas de certas alternativas, em detrimento de outras, são as que dizem da intencionalidade do texto, o que é plenamente distinto da “intenção do texto”. Procurar esmiuçar as operações realizadas pelo escritor propicia a percepção do escrito ficcional no que tange às suas marcas distintivas. E são essas marcas que a literatura contemporânea procura embaralhar em finalidade clara de indistinção contundente. Em O fictício e o imaginário (2013), de 1991, Iser assinala que, diferentes em tudo, fictício e imaginário compõem entre si uma parceria profícua, baseada no jogo. Sendo de sua natureza, os atos de fingir propiciam a criação de clareiras específicas, nas quais diferentes instâncias são postas em jogo dentro do sistema operacional. A execução de tais operações se mostra, em geral, mais complexa em escritos ficcionais estruturados pela intertextualidade, que adiciona suas próprias transgressões àquelas que resultaram da produção de suas fontes predecessoras. Então, tendo em vista o jogo, o objetivo maior da narração histórica angolana, segundo a pesquisadora Laura Padilha, é transcriar “tudo aquilo que é percebido 15

pelo imaginário como representativo de um passado local onde se fincam as profundas raízes de uma identidade nacional que, como se sabe, está ainda em processo de formação” (PADILHA, 2002, p. 28). E foi a partir dessa transcriação que uma significativa parcela da produção ficcional fez uso das pesquisas históricas como base da criação literária. A capacidade de criar, para muitos escritores, está no poder da memória. A crítica literária Angélica Soares, sabendo que o que ficou para traz não pode ser resgatado na realidade tácita, assim como na memória, o que já se projeta no futuro, indica um caminho a que chama de “capacidade imaginativa da memória” (SOARES, 2009, p. 24) Partindo do verso magistral de Manuel de Barros, do poema “As lições de R. Q.”, Soares identifica em “O olho vê, a lembrança revê, e a imaginação transvê” (BARROS, 1997, p. 75), a reunião entre memória e criação, quando esta traduz a necessidade dos homens em “transver” o mundo. O ato de “transvisão” é a própria essência do memorável. E “a escrita é uma memória em sua mais brilhante materialização” (SANTOS, 2012, p. 501), segundo a historiadora Edna Maria dos Santos. Desse modo, no item 2 desta dissertação, numa tentativa de aproximar história e literatura, serão observados alguns aspectos acerca da distinção entre pós-colonialismo e pós-independência, buscando iniciar a discussão sobre questões relativas às identidades, presentes em obras da literatura angolana. Sabendo que a literatura é, acima de tudo, uma forma de diálogo entre o real, o imaginário e o fictício e, ao mesmo tempo, se institui como um espaço simbólico capaz de possibilitar movimentos problemáticos do passado, ou até mesmo, os desassossegos que o porvir provoca, é de salientar também que ela é uma forma de resistência face às atitudes que visem a silenciar o povo. Se em Angola o contexto sócio-histórico parece ser o da plena crise instaurada no momento inaugural de emergência do Estado-nação, isto é, no pós- independência, deve-se dizer que, de um lado, vivenciaram-se os estertores do sistema de dominação colonial e, de outro, a luta pela independência que contribuiu para o tão almejado fim da opressão. Por isso, a literatura como tal serve como fonte de reconstituição de fragmentos do contexto histórico, mas jamais pode ser vista como a construção da verdade histórica que está no meio do inatingível, porque condenada ao inapreensível em termos de origem. 16

Deve-se ter em conta que, além dos aspectos organizacionais levados a cabo por grandes forças de libertação nacional nas ex-colônias portuguesas em África, como a FRELIMO1 em Moçambique, o PAIGC2 na Guiné-Bissau e Cabo Verde, o MPLA3 em Angola, entre outras, estas se traduziram na montagem de uma estrutura e estratégia militar em termos regionais, com a participação, por exemplo, da União dos Povos de Angola, que também interferiu no campo cultural durante o processo de contestação, manifestada tentativa de afirmação da personalidade dos então colonizados. Apesar da preocupação e dos esforços, os problemas que se situam no plano da dependência cultural sobreviveram à conquista da independência. Os contornos do verdadeiro drama linguístico, comum a tantos países africanos, comprovam as dificuldades. A língua do colonizador, depois de simbolicamente dilacerada e, portanto, violentada, está inscrita no corpo do colonizado, segundo o entendimento de Maria Teresa Salgado, “tornando-se, metaforicamente, uma tatuagem, uma marca irremovível” (SALGADO, 2003, p. 111). Ao que parece, o fim da colonização pressupôs a desativação de três forças que decidem as suas formas, porém não o resultado do processo, tais como o poder colonial, a situação da colônia e o cenário internacional, à época. Impunha-se a necessidade de construir sobre as novas sociedades a serem fundadas uma nova visão que refletisse a condição periférica, tanto no nível estrutural quanto conjuntural, desenhando-se assim o quadro do pós-colonialismo, que procuraria constituir uma ruptura em relação à fase anterior. Sobre a análise dessa cena, entende Carmen Lucia Tindó Secco que os escritores desempenharam o papel de alertar as consciências para o fato de que as “feridas não cicatrizadas e os fantasmas da história poderiam ressurgir inesperadamente” (SECCO, 2006, p. 280), de modo a comprometer as novas nações que se soergueram dos pesados escombros do recente passado colonial africano. A obra de José Eduardo Agualusa, cumprindo o papel de poder despertar a consciência dos leitores, retrata criticamente a realidade do país e dos personagens, com uma – muitas vezes discutível – visão política. Ainda no segundo item desta

1 Frente de Libertação de Moçambique. 2 Partido Africano para a Independência da Guiné e Cabo Verde. 3 Movimento Popular de Libertação de Angola. 17

dissertação, apresentam-se resenhas e comentários sobre alguns dos romances do referido autor, que desempenham esse papel, tais como A conjura (2009b), de 1989, Estação das chuvas (2012b), de 1996, Nação crioula (2011b), de 1997, O vendedor de passados (2011a), de 2004, e Barroco tropical (2009a), de 2009. Todos parecem dialogar, sob algum aspecto, com o romance central escolhido para este estudo: Teoria geral do esquecimento. Com escopo mais extenso, e por isso subdividido, o item 3, que constitui o centro desta dissertação, debruça-se especificamente sobre o romance em questão. Nele procura-se discutir os chamados “escombros da memória”, expressão inspirada na noção de “escombro” proposta pelo pensador Homi K. Bhabha, em um ensaio intitulado “Democracia des-realizada”, publicado na revista Tempo Brasileiro, de 2002. Para ele, “o escombro é a criação de uma forma cuja ausência virtual levanta a questão do que quer dizer começar de novo, no mesmo lugar, como se fosse noutro lugar, sítio adjacente ao desastre histórico ou trauma pessoal” (BHABHA, 2002, p. 79 – grifo do Autor). Sobre as escritas de si e o testemunho, no subitem 3.1. da dissertação, há uma análise do livro Entre o passado e o futuro (2013), de Hannah Arendt. Neste, a filósofa afirma que só se pode transformar em experiência o sofrimento vivido na própria existência se lhe der publicidade, o que é fundamental para garantir a preservação da tradição e da própria vida. Desta forma, sob forte ameaça de esquecimento do passado, de esgarçamento da tradição e de empobrecimento da experiência, tanto a escrita de si como o testemunho assumem uma dimensão pública absolutamente necessária para reconstrução das relações sociais no mundo democrático. A narrativa contemporânea esforça-se em embaralhar as marcas e os sinais do passado e do presente, em refinar os efeitos de polifonia através de vários procedimentos de escrita, que vão do duplo à ventriloquia, passando pelo tratamento de diferentes vozes, “ao uso dos testemunhos e dos ‘relatos de vida’ na investigação social, e à narração autorreferente nas discussões teóricas e epistemológicas” (ARFUCH, 2010, p. 51), como entende Leonor Arfuch. Esses procedimentos e outros relativos às estratégias do romance contemporâneo estão desenvolvidos no subitem 3.2 deste estudo. Ao final do romance em análise, José Eduardo Agualusa acrescenta o que chama de “Agradecimentos e bibliografia” (AGUALUSA, 2012a, p. 173-174). Misto de relatório 18

dos procedimentos intersemióticos praticados pelo escritor na obra literária, esses “agradecimentos” vêm ao encontro do que propalam os estudos intermidiáticos e interartes, especificamente os de trânsito com a “picturalização”, em que a matéria narrada ou descrita é suscetível de ser “traduzida” em outra arte visual. O subitem 3.3. desta dissertação debruça-se sobre o estudo da memória e identidades, focalizando o pensamento do antropólogo Joël Candau, da Universidade de Nice Sophia Antipolis. Seu livro Memória e identidade (2011) tornou-se referência fundamental nas ciências sociais, principalmente para aqueles que trabalham com esses dois conceitos e as relações entre memórias individuais e coletivas. Nesse sentido, os romances angolanos atuais são, em grande parte, de deslegitimação, cujo fundamento tem um apelo universal ético. A escrita de Agualusa, assim como a de outros escritores, não está comprometida com a noção ocidental e europeia de nação, mas escolheu “a África – o continente e seu povo” (APPIAH, 1997, p. 213), no intuito de discutir suas identidades complexas e multifacetadas. É na literatura, também instrumento de afirmação de identidades, que a experiência de muitos desses autores servirá de aparato arqueológico do memorialismo, para mergulhar num universo de histórias balizadas por um código que legitima tanto uma sociedade atomizada quanto a desintegração humana. O reconhecimento de que o sujeito se constrói dentro de sistemas de significado e de representações culturais, os quais, por sua vez, encontram-se marcados por relações de poder, permite supor, na esteira do pensamento de Cláudia de Lima Costa, que a escrita pós-colonial, “por um lado, desconstruiu as categorias tradicionais do indivíduo”, com o apagamento das fronteiras identitárias “e, por outro, proporcionou uma maior sensibilidade para compreender os mecanismos diversificados constitutivos dos diferentes sujeitos” (LIMA, 2006, p. 57). A memória, o esquecimento e a construção de novas identidades estão entre os temas abordados em Teoria geral do esquecimento (AGUALUSA, 2012a), onde os personagens constroem-se, e reconstroem-se, trocando de raça e de nacionalidade, esquecendo-se, forçando-se ao esquecimento. Além disso, nesse subitem, reserva-se também o olhar ao esquecimento, apresentando as circunstâncias de um mundo que fez por implodir as balizas que davam plausibilidade e ressonância crítica à noção de identidade, em que as 19

guerras, colonialista e de pós-independência, podem ser entendidas, segundo o pensamento do filósofo alemão Harald Weinrich, como “orgias de esquecimentos, ao mesmo tempo que flutuam entre a arte de lembrar e do esquecer” (WEINRICH, 2000, p. 222). José Eduardo Agualusa afirma que “a guerra está presente em tudo. Os episódios mais importantes da minha vida têm a ver com a guerra” (AGUALUSA, 2011b, 03’ 38”). Memória e esquecimento são partes de um mesmo sistema, em que se é obrigado a viver em qualquer regime totalitário, como os que se impõem após as revoluções, extinguindo as liberdades individuais. No mesmo diapasão, Tzvetan Todorov denuncia que “os regimes totalitários do século XX têm revelado a existência de um perigo antes insuspeito: a supressão da memória.” (TODOROV, 2000, p. 11). E continua, “longe de seguir sendo prisioneiros do passado, haveremos de nos por a serviço do presente, como a memória – e o esquecimento – hão de se por a serviço da justiça.” (TODOROV, 2000, p. 59)4. Enfim, a partir do olhar empreendido por José Eduardo Agualusa, em Teoria geral do esquecimento (2012a), sobre os esquecimentos, pode-se detectar a inscrição de traços da função operatória que constitui a dinâmica memorialística, de que fala Henri Bergson:

Supõe-se [...] que a percepção presente vá sempre buscar, no fundo da memória, a lembrança da percepção anterior que se assemelha: o sentimento do déjà vu viria de uma justaposição ou de uma fusão entre a percepção e a lembrança. (BERGSON, 1999, p. 71 – grifos do Autor)

E é nessa tensão entre perceber e lembrar que o romance se firma e afirma como composição contemporânea, em que a estratégia discursiva da ambiguidade ontológica, narrativa, perceptiva e interpretativa impregna todo o universo do relato e torna mais ativa a participação do leitor. E nisso reside o encanto da literatura.

4 “Los regímenes totalitarios del siglo XX han revelado la existencia de un peligro antes insospechado: la supresión de la memoria. [...] Lejos de seguir siendo prisoneros del pasado, lo habremos puesto al servicio del presente, como la memoria – y el olvido – se han de poner al servicio de la justicia.” (TODOROV, 2000, p. 11). Nota do autor: Os textos, que não tiverem tradução em português ou por desconhecimento do autor da dissertação, terão seus originais disponibilizados em notas de rodapé, indicando a fonte das traduções feitas para este trabalho. 20

2. Reconstrução de identidades

Foi no período pós-colonial que Angola viu seu projeto utópico de modernização se tornar inviável diante do início da guerra civil, das imensas dificuldades internas, do esvaziamento das propostas políticas com o advento da independência e da incapacidade de articulação necessária entre a tradição e a modernidade. Nessa situação, sabe-se que a narrativa é, desde as origens, uma maneira peculiar, porém significativa, de os homens buscarem dar sentido a sua existência, relatando histórias, passando e repassando experiências de vida. No ensaio “Será o pós em pós-modernismo o pós em pós-colonial?”, o filósofo Kwame Anthony Appiah ressalta a cor distópica deixada como herança do colonialismo às ex-colônias, dizendo que:

A pós-colonialidade tornou-se [...] uma condição de pessimismo. Escrita pós-realista, política pós-nativista, uma solidariedade mais transnacional do que nacional – e pessimismo: um tipo de pós-otimismo para equilibrar o entusiasmo inicial (APPIAH, 2010, p. 18 – grifo do Autor).

Para Angola, ainda que com erros e limitações, a independência foi crucial para o debate do alcance do fato histórico, de sua natureza e seus limites. E como utopia a ser alcançada, também assegurou o rompimento dos grilhões portugueses. Entretanto, isso não garantiu as independências econômica e cultural tão caras ao projeto de rompimento completo e necessário para afirmação dos povos africanos, no pós-independência. Ressalta ainda o pensador anglo-ganês que:

Existe um sentido claro nalguma literatura pós-colonial de que o postular de uma África unitária contra um Ocidente monolítico – o binarismo Eu e o Outro – é o último dos xiboletes dos modernizadores, a que temos de aprender a renunciar. (APPIAH, 2010, p. 19)

Se o contexto sócio-histórico angolano parece ser o da plena crise instaurada desde o momento inaugural de emergência do Estado-nação, no pós- independência, foram vivenciados os problemas decorrentes do longo período de jugo sob o sistema de dominação colonial e de luta pela independência que contribuiu para o tão almejado fim da opressão. Por isso, a literatura, como tal, serve de fonte para a reconstituição de fragmentos do contexto histórico, sem que jamais possa ser vista como a construção da “verdade histórica” situada no meio do inatingível, porque condenada ao inapreensível em termos de origem. 21

Há que se considerar a interferência no campo cultural dos preceitos políticos radicais com o apagamento das crenças e tradições, consideradas “obscurantismo” pelo poder instalado após a independência. Com a instauração de uma nova dicção marxista-leninista, Angola obteve o apoio de Cuba e a legitimação de sua soberania por parte da extinta União Soviética. Manifestada a busca pela afirmação da personalidade dos ex-colonizados, a língua do colonizador, já modificada pela intersecção do outras línguas autóctones, é símbolo da falência do projeto colonial. A pressuposição da desativação das históricas forças de violência, tais como o poder colonial da metrópole, a situação precária de subsistência decorrente da exploração exacerbada das fontes primárias da colônia e o conturbado cenário internacional impuseram a necessidade de se construir uma nova visão que refletisse e avaliasse criticamente a condição periférica, tanto no nível estrutural quanto conjuntural, desenhando-se, assim, um olhar pós-colonial que se constituiria como ruptura em relação à fase anterior. O escritor argentino Ricardo Piglia, no ensaio “Uma proposta para o novo milênio” (2013)5, pensando sobre o lugar da e da América hispânica no mundo atual, propõe discutir as perspectivas transnacionais contemporâneas relativas à literatura, à cultura, às artes e à política, partindo das margens e do local, organizando o espaço da escrita e da reflexão, a fim de destacar a excentricidade histórica e geográfica, como metonímia da condição sociocultural periférica no atual processo de globalização da economia. A proposta central do autor visa ao que ele chama de “deslocamento, distância, mudança de lugar” (PIGLIA, 2013, p. 3)6, o que significa “sair do centro, deixar a linguagem falar também das bordas, no que se ouve, no que chega do outro” (PIGLIA, 2013, p. 3)7. Portanto, Piglia formula o seguinte questionamento:

Como poderíamos considerar esse problema a partir da América hispânica, da Argentina, de Buenos Aires, de um subúrbio do mundo? Como veríamos o problema do futuro da literatura e se sua função? Não como a vê alguém em um país central com uma grande tradição cultural. [...] Propomos em seguida esse problema a partir da margem, a partir da borda das tradições

5 “Una propuesta para el nuevo milenio” (PLIGLIA, 2013). 6 “desplazamiento, distancia, cambio de lugar” (PIGLIA, 2013, p.3). 7 “Salir del centro, dejar que el lenguaje hable también en el borde, en lo que se oye, en lo que llega de otro” (PIGLIA, 2013, p.3). 22

centrais, olhando de soslaio. E este olhar de soslaio nos dá uma visão, talvez, diferente, específica. (PIGLIA, 2000, p.1-2)8

Com isso, o escritor argentino tenta imaginar um valor suplementar – uma das vantagens de se estar num espaço periférico – que se fixaria na literatura do futuro, uma literatura potencial, que inferisse a realidade que a própria literatura postula, perspectivando um mundo alternativo. Assim, evoca a noção de começo, de abertura de caminho, na busca pela ancoragem noutro lugar – uma possível margem. Ao enfatizar o deslocamento, a distância, como pedra de toque para a literatura do século XXI, Ricardo Piglia quer pôr em pauta qual é o lugar do intelectual, do escritor, sua responsabilidade civil, bem como o futuro da literatura e as relações entre ela e a política: “existe uma verdade da história e essa verdade não é direta, não é algo dado, surge da luta, da confrontação e das relações de poder” (PIGLIA, 2000, p.11)9. É necessário o deslocamento da observação direta da realidade, a fim de reivindicar a visão indireta, mediada pelo outro e por outras imagens, contrapondo as ficções oficiais. O confronto propiciado pelas narrativas contra-hegemônicas permite trazer à cena o próprio conceito de literatura e seus limites, bem como o questionamento a respeito dos limites entre história e literatura. Assim como a razão, a imaginação deveria estar implícita em qualquer representação que se considere verdadeira e, para Hayden White (2001), em “As ficções da representação factual”, isto significa que as técnicas utilizadas para a produção de uma ficção eram necessárias para a composição de um discurso histórico, assim como era a erudição. White, utilizando-se de uma fina ironia, afirma que, com a separação entre ficção e história, nasce o sonho de um discurso histórico baseado apenas nas afirmações factualmente exatas sobre acontecimentos que foram observados. A escrita dos acontecimentos, transformados em fatos históricos, poderia determinar, claramente, o verdadeiro sentido ou significação do que outrora se sucedeu.

8 “Cómo podríamos nosotros considerar ese problema desde Hispanoamérica, desde la Argentina, desde Buenos Aires, desde un suburbio del mundo. Cómo veríamos nosotros el problema del futuro de la literatura y de su función. No cómo lo ve alguien en un país central con una gran tradición cultural. [...] Nos planteamos entonces ese problema desde el margen, desde el borde de las tradiciones centrales, mirando al sesgo. Y este mirar al sesgo nos da una percepción, quizás, diferente, específica” (PIGLIA, 2000, p.1-2). 9 “Existe una verdad de la historia y esa verdad no es directa, no es algo dado, surge de la lucha y de la confrontación y de las relaciones de poder” (PIGLIA, 2000, p.11). 23

Importante salientar a utilização do termo significação, cujo emprego implica algo que esteja em movimento, em construção e que seja passível de múltiplas interpretações, ressignificações, não sendo, desse modo, algo estático. Ainda segundo White, existem diferenças entre história e ficção, convencionadas desde Aristóteles, caracterizadas, principalmente, pelo fato de os historiadores se ocuparem de eventos que podem ser atribuídos a situações específicas de tempo e espaço, que são (ou foram), em princípio, observáveis ou perceptíveis. Já os poetas, romancistas, dramaturgos, etc, denominados pelo autor de escritores imaginativos, ocupam-se de acontecimentos imaginados, hipotéticos ou inventados, mas não deixam de se interessar, de acordo com o autor, por aqueles observados ou percebidos pelos historiadores. Ainda que historiadores e escritores de ficção pareçam interessar-se por tipos diferentes de fatos, as formas de seus discursos, os objetivos que circundam a escrita e as técnicas ou estratégias de que se valem na elaboração de seus discursos são quase sempre os mesmos. Apesar de diferenciar a natureza dos tipos de eventos com que se ocupam historiadores e escritores imaginativos, a preocupação de White gira em torno da discussão acerca da “literatura do fato” ou “ficções da representação factual”. O autor, ao se questionar em que grau o discurso do historiador e do escritor imaginativo se sobrepõem, se assemelham ou se correspondem mutuamente, tenta responder a tais indagações, principalmente abordando as aproximações e os distanciamentos entre a narrativa histórica e a narrativa de ficção. Luiz Costa Lima (1989) também se ocupa em analisar as relações existentes entre a narrativa na escrita da história e da ficção, e, ao empreender tal investigação, define narrativa como: “organização temporal, através de que o diverso, irregular e acidental entram em uma ordem; ordem que não é anterior ao ato da escrita mas coincide com ela; que é pois constitutiva de seu objeto” (LIMA, 1989, p. 17). Ele define ainda como narrativa fictícia “aquela que requer somente evidência conceitual [enquanto] a narrativa histórica combina argumentação conceitual e teste factual” (LIMA, 1989, p. 66). Porém o próprio autor afirma que esta definição é pouco esclarecedora para a caracterização desejada do que é o ficcional, afirmando que:

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a ficção é o que permite a passagem de chronos para kairos, isto é, da sensação de um fluxo irremediável para a de estações ou paradas, que assinalam marcas no tempo (da vida individual, de sua sociedade, e da história humana) [...] as ficções são respostas básicas à necessidade humana de descobrir um sentido para a sua história [...], a ficção abrange todo artefato mental que produz sentido [...] e precisa de um meio pelo qual se organize (LIMA, 1989, p. 72-73 – grifos do Autor).

Interessante observar que algumas semelhanças entre história e ficção são claramente perceptíveis. Mais interessante ainda é a afirmação que faz White de que “há muitas histórias que poderiam passar por romance, e muitos romances que poderiam passar por histórias, considerados em termos puramente formais (ou, diríamos formalistas)” (WHITE, 2001, p. 138). Acrescente-se, ainda, aos termos formais ou formalistas que poderiam fazer com que um romance se passasse por história e vice-versa, a questão referente ao conteúdo e à verossimilhança de determinado romance ou da história. De acordo com Hayden White, considerando a história e o romance apenas como artefatos verbais, é difícil distinguir um do outro, mas, tomando-os como pré- concepções específicas sobre os tipos de verdade com que cada um supostamente se ocupa, é possível identificar uma obra histórica e uma obra ficcional. O autor salienta, porém, que tanto o escritor imaginativo quanto o historiador possuem um escopo em comum: ambos desejam oferecer uma imagem verbal da “realidade”. O escritor imaginativo pode representar esta realidade através de técnicas literárias e de modo indireto, porém “a imagem da realidade assim construída pretende corresponder, em seu esquema geral, a algum domínio da experiência humana que não é menos “real” do que o referido pelo historiador” (WHITE, 2001, p. 138). A este respeito, Roland Barthes afirma que na história objetiva o “real nunca é mais do que um significado não formulado, abrigado atrás da onipotência aparente do referente”, situação a que dá o nome de “efeito do real” (BARTHES, 2004a, p. 178). Em obras ficcionais, considera-se, ainda, a questão da mímesis e da verossimilhança. Um evento pode ser ficcional, mas sua construção talvez se tenha dado com base na verossimilhança, regida pelas leis que governam a “realidade” na qual se está inserido. Importante observar que White distingue a verdade de correspondência e a verdade de coerência. Se a história quiser ser representação do modo como as coisas “realmente” aconteceram, ela precisa submeter-se tanto a padrões de correspondência como de coerência. Porém verifica-se que há na literatura certa liberdade com relação aos tipos de verdades apresentados pelo 25

estudioso, segundo quem, a ficção, se também desejar ser a representação ou imagem de determinado sistema simbólico, deverá passar por um teste de correspondência. Pode-se enfatizar o fato de haver um valor de correspondência e não de coerência, pois determinado sistema simbólico pode ser coerente para uma cultura e para outra não. É possível, também, que um evento aparentemente incoerente passe a ser aceitável devido a alguma explicação lógica. Ainda que historiadores lidem com eventos factuais e os romancistas com os imaginários ou ficcionais, o processo de fundir ficção com o factual, numa totalidade compreensível, “capaz de servir de objeto de uma representação [,] é um processo poético” (WHITE, 2001, p. 141) – ou seja, de criação. Hoje pode-se pensar a ficção diferentemente do que acontecia com os historiadores do período pós-romântico. A ficção não deve mais ser concebida como antítese do fato. White defende a ficção como essencial para que seja estabelecida uma relação, quando não há, entre os fatos históricos. Tais fatos estão dispostos no mundo, sem que haja uma coerência e uma coesão entre eles. O historiador organiza os fatos históricos a fim de formar uma totalidade de um tipo particular, assim como o escritor imaginativo faz com a ficção, ordenando a fantasia produzida por sua imaginação, não apenas com base nela, mas também através da própria fantasia produzida no discurso da comunidade – imaginários coletivos. Assim, historiador e ficcionista revelam novos mundos e transformam a desordem e o caos em cosmos. A linguagem exerce importante papel neste processo, pois não é apenas uma livre criação da consciência humana e, tampouco, um produto gerado pelo meio, mas sim um “instrumento de mediação entre a consciência e o mundo habitado pela consciência” (WHITE, 2001, p. 142). A linguagem – instrumento através do qual pode haver representações – possibilita não apenas uma descrição única e original sobre determinado evento que se tenha dado em um tempo e em um espaço, mas sim múltiplas descrições. Consequentemente, tal evento representado também não possuirá uma interpretação única. Desse modo, o autor dos fatos ou o autor imaginativo possui o importante papel de mediador, ficando a seu cargo elaborar os modos de urdidura do enredo com os fatos. A partir desta urdidura buscará construir narrativas em que estejam presentes as representações dos acontecimentos, assim como desejado, de acordo com o domínio em questão. No entanto, encontra-se aí uma aporia: a linguagem 26

nem sempre pode servir de “meio perfeitamente transparente de representação” (WHITE, 2001, p. 146). Talvez, devido ao fato de as palavras não poderem expressar o que se pretende ou apenas por uma falta de talento do mediador. Luiz Costa Lima (1989) defende que o discurso da história é sujeito ao protocolo da verdade, ou àquilo que Hayden White (2001) chama de valor de correspondência e de coerência. Costa Lima afirma, ainda, que o conhecimento produzido pelo discurso histórico é por certo lacunoso, sobretudo por se construir sobre restos e detritos do passado, mas, nem por isso, deixa de ser conhecimento. As lacunas podem ser preenchidas pela ficção, especialmente em obras metaficcionais em que a representação é subvertida. Já o discurso ficcional, ao mudar a forma da relação com o mundo, também muda sua relação com a verdade. Ele a fantasmagoriza, fazendo com que o verossímil perca seu caráter subalterno e passe a exercer o direito de constituir uma representação própria – o ficcional não afirma ou nega a verdade de algo senão que se põe à distância do que se tem por verdade. A ficção deve ser complexa, sendo um meio pelo qual se pode apreender uma representação da vida, em certa medida. Esta complexidade atribui à obra ficcional interpretações várias, o que faz com que esta não se esgote no tempo. Acredita-se ser esta uma diferença básica entre ficção e história, em que a história não pode abarcar inúmeras possibilidades de interpretação. É perceptível que os fatos podem ser interpretados de modos variados, segundo ideologias e subjetividades, mas, a partir do momento que a historiografia aplica a eles fatores interpretativos selecionados, a narrativa histórica pretende-se objetiva. Ao mostrar que a historiografia mais recente considerou as respostas dos africanos muito diferentes das escolhas que lhes foram impostas pela invasão europeia, Achille Mbembe, em seu ensaio “Formas africanas de escrita de si” (2010, p. 22), afirma que as grandes teorias subestimaram a profusa variedade de experiências africanas durante a “conquista colonial”. No período do tráfico negreiro, as divisões sociais formadas aprofundaram‐se sob a provação do colonialismo. As novas fontes de riqueza adquiridas das ordens sociais preexistentes foram derrubadas com o apogeu do tráfico negreiro e no período subsequente. Para o pesquisador, a colonização, em muitos sentidos, foi uma co‐invenção. Tanto resultou da violência ocidental, como foi obra de uma multidão de colaboradores africanos que visava ao lucro. Os poderes coloniais conseguiram, em geral, que os próprios africanos colonizados – negros, mulatos e até brancos já 27

nascidos em África – colonizassem os seus semelhantes em nome da nação metropolitana, uma vez que não era possível importar uma população inteira de colonos brancos para ocupar o território invadido. Com isso, há que se reconhecer no colonialismo um forte poder de sedução sobre os africanos que mexe tanto nos níveis psicológico e moral, quanto no material. Múltiplas possibilidades de ascensão social eram possíveis no sistema colonial. Não quer dizer, segundo Mbembe (2010, p. 23), que todos ascenderam socialmente. O colonialismo gerou utopias recíprocas – alucinações partilhadas por colonizadores e colonizados, enquanto partícipes do tecido ficcional refraturado e infinitamente reconstituído. É nesse sentido que o pensador ressalta o esgotamento temático do anti‐imperialismo, ainda que não signifique ab-rogar o pathos da vitimização. O debate anti‐imperialista, retomado durante os anos 1980 e 1990, à luz da crítica aos programas de ajustamento estrutural e sob as concepções neoliberais de relação do Estado com o mercado, deflagrou a crise de representação a que todos estão sujeitos.

Não existe identidade sem territorialidade – a consciência viva do lugar e do domínio sobre ele, seja através do nascimento, da conquista, ou da colonização. A territorialidade, na sua manifestação mais evidente, está patente no culto da localidade ou, por outras palavras, do lar, o pequeno espaço e a propriedade herdados (MBEMBE, 2010, p. 26 – grifo do Autor)

E é disso que a literatura de José Eduardo Agualusa trata. Ela busca mostrar que, a partir de inúmeras revisitações à memória coletiva primordial, o povo angolano chegará às representações da multifacetada gama de identidades que o compõe. A recorrência à relação entre história e ficção pode ser entendida como ênfase ao se pensar a historiografia elaborada, sob o ponto de vista das margens. Considerando as circunstâncias de um tempo que fez por implodir as balizas teóricas que davam plausibilidade e ressonância crítica à noção de identidade, os subitens 2.1. e 2.2. tratarão, adiante, respectivamente, dos diálogos conceituais entre as categorias Estado-nação, nacionalismo e angolanidade, e as questões identitárias, situadas entre o cultural e o político, em cinco obras de Agualusa que, de certa forma, se relacionam com o romance principal estudado nesta dissertação, Teoria geral do esquecimento (AGUALUSA, 2012a). 28

2.1. Estado-nação, nacionalismo e angolanidade: percursos conceituais

Como emblema da organização da moderna sociedade europeia, o conceito de Estado-nação foi criado, a fim de garantir os direitos, ao mesmo tempo em que foi outorgada a essa noção a tarefa de controle da violência, por meio da institucionalização e racionalização do poder soberano. O princípio do nacionalismo, derivado do conceito de Estado-nação, teve seu apogeu, segundo o historiador Eric Hobsbawm, no final da Primeira Guerra Mundial [1914-1918], empuxada pelo colapso dos grandes impérios multinacionais da Europa central e oriental e da Revolução Russa [1917] (HOBSBAWN, 1990, p. 159). No pós-guerra, novos Estados se formaram e estes eram tão multinacionais quanto os antigos impérios europeus. Tiveram seu território reduzido, em geral, e não deixaram de possuir oprimidas minorias dentro de seus limites. A aposta em criar um continente corretamente dividido entre Estados territoriais coerentes, cada qual com sua população homogênea, dividida linguisticamente e por etnias, configurou-se ou na expulsão maciça, ou na exterminação das minorias. Assevera o historiador britânico que “a extinção em massa e até mesmo o genocídio começaram a surgir nas margens meridionais da Europa durante e depois da Primeira Guerra Mundial, quando os turcos levaram a cabo a eliminação em massa de armênios em 1915” (HOBSBAWN, 1990, p. 161). Dando continuidade a essa perspectiva, Adolf Hitler procurou trasladar todos os alemães que não viviam em território pátrio para a Alemanha, além de arquitetar e pôr em prática um programa de extermínio sistemático de judeus, ciganos, negros, homossexuais, pessoas com deficiência, visando a “purificar” a raça e o solo da Alemanha. Nesse sentido, Hobsbawm entende que “a nação territorial homogênea podia agora ser vista como um programa que apenas seria realizado por bárbaros ou, pelo menos, por meios bárbaros” (HOBSBAWN, 1990, p. 162). Além disso, a “ideia de nação” de vários líderes, em muitos casos, não coincidia com a real autoidentificação desse povo. No plano da linguagem, apresentou-se um questionamento a propósito desse desencontro. O nacionalismo linguístico – ou seja, linguístico no sentido de haver o desenvolvimento de um idioma até que este ganhe vigor e seja reconhecido como a língua-padão e oficial –, pareceu se confrontar com a diversidade linguística presente na maioria dos Estados. Deve-se a isso o fato de os Estados agregarem 29

um número significativo de línguas e dialetos distintos, tanto por movimentos migratórios, como também pela recepção de significativo número de membros de Estados que foram antigas colônias das metrópoles. Dessa forma, percebeu-se, consequentemente, o aumento significativo da influência de línguas estrangeiras nas realidades dos cidadãos. A recepção das línguas nem sempre aconteceu por imposição imperialista como se poderia pensar, mas por meio de múltiplas línguas, como línguas oficiais do Estado e da cultura. Ocorreu também por meio do contato com dialetos e variações inumeráveis das línguas de origem e de destino. Eric Hobsbawm, no início dos anos 1990, já antevia uma significativa mudança na escrita da história. Esta passaria a ser “a história de um mundo que não pode mais ser contido dentro dos limites das ‘nações’ e ‘Estados-nações’, como estes costumavam ser definidos, tanto politicamente, ou economicamente, ou culturalmente, ou mesmo, linguisticamente” (HOBSBAWN, 1990, p. 214). Acreditava, com esse posicionamento, que os Estados-nações, nações, grupos étnico- linguísticos, passariam a ter novas relações com a reestruturação supranacional do planeta, ou seja, o fenômeno que veio a ser denominado globalização. As nações e o nacionalismo deixariam, para ele, de ter o mesmo valor simbólico como foi para a mobilização social do início do século XX. Não obstante, observa-se que a ideia de nação assumiu papéis subordinados, ainda que possuísse alguma importância histórica e cultural. Isso ocorreu, em consonância com a perspectiva do cientista político Benedict Anderson, que afirma que a “era do nacionalismo” não possui mais seu fim declarado no horizonte da geopolítica mundial, pois a “condição nacional [nation- ness] é o valor de maior legitimidade universal na vida política de nossos tempos” (ANDERSON, 2008, p. 28). Todavia, ao se refletir sobre a definição do conceito de nação, três paradoxos são levantados: a) a modernidade das nações, em oposição à construção de certa “antiguidade subjetiva” para os nacionalistas; b) a abrangência formal do universalismo que o conceito de nacionalidade busca esclarecer (afinal, todos devem possuir uma nacionalidade, pelo menos em tese), em oposição à particularidade das representações materiais das múltiplas nacionalidades; e c) o poder político intrínseco ao conceito de nacionalismo e às práticas em seu nome, em oposição à fragilidade dos fundamentos filosóficos (até mesmo por incoerência) na construção do conceito de nacionalismo (ANDERSON, 2008, p. 31). 30

A construção do conceito de nação para Anderson impõe uma necessária afirmação da nação como uma “comunidade política imaginada”, limitada em seu interior e soberana. O traço significativo do fator imaginativo da nação está vincado na questão de que os membros da comunidade, ainda que sejam nações muito pequenas, dificilmente darão a conhecer, a encontrar, ou a ter qualquer relação tácita com seus similares, “embora todos tenham em mente a imagem viva da comunhão entre eles” (ANDERSON, 2008, p. 32). São as fronteiras um dos principais traços que delimitam uma nação. Essas fronteiras não parecem ser alvo de qualquer tremor, fático ou conceitual, nos planos políticos de comunidades estendidas entre nações, como no caso da União Europeia. Mesmo que essas fronteiras possuam alguma elasticidade, nenhuma se projeta, de maneira coerente, sobre toda a humanidade, como foi feito por movimentos teológicos que almejavam a conversão de todo o globo para uma mesma crença. Em oposição à continuidade presumível dos limites e fronteiras, o pensamento de Homi K. Bhabha, no ensaio “DissemiNação” (1998), pensa a nação a partir de suas descontinuidades. O pensador indiano foi influenciado pela desconstrução derridiana, pela psicanálise lacaniana, pela arqueologia do saber de Michel Foucault e pelos escritos de Edward Saïd. Esse posicionamento deve-se a uma recusa da narrativa unitária da nação, construtora de sentido e ordenadora do caótico a partir de um discurso moralizante. Segundo Bhabha, o nacionalismo do século XIX revelou sua arbitrariedade ao construir discursos monolíticos, como se a nação tivesse uma única fonte. Os conflitos são deixados de lado, e até mesmo condenados, em detrimento de uma concepção unidimensional da cultura, percebida como um conjunto de legados imemoriais. “É de fato somente no tempo disjuntivo da modernidade [...] que questões da nação como narração vêm a ser colocadas” (BHABHA, 1998, p. 202). O discurso do nacionalismo articula um tipo de narrativa que privilegia a coesão social – “muitos como um” (BHABHA, 1998, p. 203). O ensaísta, ao contrário, procura pensar a nação a partir de suas margens: as vivências das minorias, os conflitos sociais, o arcaísmo chocando-se com o moderno. Trata-se, em suas palavras, do questionamento da “visão homogênea e horizontal associada com a comunidade imaginada da nação” (BHABHA, 1998, p. 204). 31

Conquanto a linearidade pedagógica, Homi K. Bhabha discute o caráter performativo da apropriação singular do nacionalismo. Só há nação porque há apropriação. Se toda apropriação é uma quebra de sentido, portanto é uma quebra da coerência narrativa. Para ele, “na produção da nação como narração ocorre uma cisão entre a temporalidade continuísta, cumulativa, do pedagógico e a estratégia repetitiva, do performativo” (BHABHA, 1998, p. 207). Ao considerar a escrita da nação tomando por base a ideia de cisão, o pensador indiano apresenta a própria recusa de narrá-la. Se pode ser escrita a partir de cada ato performativo – o qual atualiza o geral como singularidade, sem que esta subsuma-se a um sentido unitário anterior à experiência –, a nação como objeto de narrativa atém-se à pedagogia da sabedoria moralizante. A nação narrada possui a coerência de um télos evidente, naturalizado e que, dialogando com o pensamento de Walter Benjamin, o sentido carrega a própria sabedoria moral, que justifica a unidade como fim em si. Se, para o pensador alemão, a narrativa foi expulsa das dimensões singelas da vida, tendo sido substituída pelo romance e pelo jornal (BENJAMIN, 1987, p. 197-198), ela retorna plenipotenciária no discurso nacionalista, constituindo unidades e coerências jamais sonhadas. Já a escrita da nação de Homi K. Bhabha está ligada, inversamente, à dimensão performativa do nacionalismo, recusando o sentido unitário e a “sabedoria moral” da narrativa plenipotenciária. Pode-se dizer que “a dificuldade de escrever a história do povo como agonismo intransponível dos vivos” (BHABHA, 1998, p. 214) origina-se na recusa ética de narrar: a negação do sentido coeso e da sabedoria épica, mas também o desobrigar-se de escrever um texto fechado, cujos vazios retoricamente elididos domesticam as confluências diversas que atuam como fonte para qualquer relato da existência. Assim sendo, a escrita jamais pode dar conta das infinitas intervenções que transpassam a vivência. A teoria de Homi K. Bhabha é carregada de conceitos do pós-colonialismo e do pós-estruturalismo. Considerado um dos reconhecidos teóricos sobre a experiência diaspórica no mundo, seu pensamento esteve sempre suscetível a acusações de elitismo, eurocentrismo, privilégio acadêmico burguês, e de ser tributário dos princípios do pós-estruturalismo europeu, o que faz com que muitos de seus críticos mais severos enfatizassem isso como determinante de seu “desconhecimento” dos novos modos dominantes de discurso "neo-imperial" ou "neocolonial". 32

Pelo que compreende do nacionalismo enquanto ideologia de uma identidade-nacional, o filósofo Étienne Balibar (et al., 1991) assevera que esta é uma questão urgente do pensamento político nos dias atuais. Assim, a “forma nação”, como conceitua o pensador, seria um relato que atribui continuidade ao sujeito, longe de haver sempre existido. Ela é uma construção em múltiplas etapas que possuem o esquema idêntico da manifestação de uma personalidade nacional (BALIBAR & WALLERSTEIN, 1991, p. 86), a ilusão de uma identidade unívoca a partir de uma análise histórica retrospectiva: a ideia de uma substância nacional invariável ao longo das gerações, situadas em um território determinado, compartilhando um determinado legado histórico numa suposta continuidade de um projeto comunitário, de um mesmo destino. Este discurso ideológico se edifica no dia a dia, mediante um recorrente apego ao passado, numa imaginária singularidade em torno das formações nacionais que seriam supostamente lineares e estariam diretamente ligadas a instituições, que possuem temporalidade descontínua. Há, portanto, um mito por trás de toda formação nacional, que pressupõe a linearidade de acontecimentos qualitativamente diferentes, quase sempre sem pontos de convergência e sem implicações mútuas, e, sobretudo, eventos históricos que não pertencem apenas a uma só nação (BALIBAR & WALLERSTEIN, 1991, p. 87). Este conceito de nação se mostra débil na medida em que afirma uma suposta unidade política em torno de uma identidade étnica originária, formada ao longo de uma história com uma evolução mais ou menos assinalável, relegando o encadeamento das relações conjunturais de sua formação a um segundo plano. Balibar entende esta concepção de nação como uma “etnicidade-fictícia” (BALIBAR & WALLERSTEIN, 1991, p. 96). Ela seria composta por uma nacionalização tendencial da sociedade, da cultura, da língua e da genealogia. A homogeneidade de um povo, no que tange à ideia de uma “substância” dita nacional, para além das particularidades individuais e posições sociais, compartilharia uma origem e interesses comuns. É a ideia de uma comunidade imaginária de pertencimento a uma filiação cultural e biológica. A comunidade é entendida como representação de um sujeito coletivo, dotado de direitos e possuidor da capacidade de decisão. Noções como povo e raça, que se inserem na ideia de nação, além de possuir a ilusão de uma descendência e herança contínuas e controláveis, não possuem existência natural, tal como qualquer outra identidade. São construções de uma unidade imaginária que se contrapõem a outras possíveis. 33

A “forma nação” é um instrumento ideológico de dominação de múltiplas lutas de classe, o que propiciou o surgimento da burguesia no âmbito estatal, exercendo hegemonia cultural, política e econômica. O estabelecimento da instituição política do Estado-nação está estreitamente correlacionado com a consolidação da economia no mundo capitalista, que depende da polarização, do centro e periferia; da diferenciação ideológica entre indivíduos, entre classes, entre variações e gradações do homem como sua condição de possibilidade. Esta instituição política, à qual Étienne Balibar se referiu como “Estado nação- social” (BALIBAR & WALLERSTEIN, 1991, p. 92), intervém na economia, produz em seu caráter infinitesimal a formação dos indivíduos, a estrutura da família, a saúde pública, o âmbito da “vida privada” em consonância com a politização das identidades, tornando-se educação-nacional, família-nacional, saúde-nacional, literatura-nacional, etc. A nacionalização é um fenômeno massivo e individualizante em um só movimento. Edificado sobre a projeção da existência individual na trama de um relato coletivo, sobre o reconhecimento de um nome comum e de tradições que fazem parte de um legado histórico contínuo, o “Estado nação-social” produz um povo. Mas, como toda comunidade social reproduzida mediante o funcionamento de instituições, é imaginário. A identificação nacional está submetida a estruturas políticas e econômicas e a relações ideológicas, que criam um sentimento de pertencimento a unidades culturais, tornando possível uma representação de si. Dela advém um pressuposto para a comunicação dentro de uma sociedade e fora dela, hierarquizando, projetando-se e relativizando a diferença em detrimento da identidade. A relação com o outro, seja ele interno a uma sociedade, seja ele estrangeiro, possui uma distinção simbólica incontornável, um conflito de visões de mundo num grau mais elevado, um conflito de “naturezas”. Esta ideologia é denominada nacionalismo: a fabricação institucional e estatal de uma consciência coletiva, dita nacional. A noção de identidade, a que Étienne Balibar se refere, se mostra sempre de forma abstrata, inconsistente e fundamentalmente ambígua. Ela se torna mais concreta quando analisada a partir do prisma do pertencimento: a hipótese de saída do pensador francês é que a toda identidade corresponde um sentimento de pertencimento. Este é o meio de se reconhecer membro de uma comunidade, participando de uma comunicação. A representação do nós cruza a individualidade 34

do sujeito para entrar em comunicação com um outro. Ela constitui o ponto nevrálgico pelo qual se recebe e se constitui este outro. A “transindividualidade” que caracteriza a identidade se situa justamente na diferenciação com o outro, com o qual se possa contrapor a singularidade a que se reivindica. Desse modo, a identidade nunca é dada. Não é natural. Ela é uma construção em eterna transformação; uma identificação seja ela voluntária ou não. É uma ampla gama de grupos sociais. Ela se encontra amparada na noção de cultura, quando costumes e ritos compõem uma imaginária similitude entre os indivíduos dentro de uma comunidade, tal como se houvesse uma “natureza” ou “substância” comum, que se observaria no âmbito físico e espiritual em relação à regularidade dos gestos e comportamentos, da aparência de um equilíbrio simbólico (BALIBAR & WALLERSTEIN, 1991, p. 96-98). Observa-se, aqui, a necessidade de reflexão sobre alguns aspectos acerca da distinção pós-colonialismo e pós-independência, a fim de continuar a discussão sobre questões relativas às identidades, sobretudo, as relacionadas à literatura angolana. A expressão pós-colonial tinha, primeiramente, um sentido cronológico, quando utilizado pelos historiadores que buscavam definir os países de recente independência conquistada logo após a Segunda Guerra Mundial. Somente a partir dos anos 1960, o conceito passa a ser adotado pela crítica cultural, interseccionando saberes de áreas diversas como literatura, história, ciências sociais, geografia, entre outras, a fim de refletir sobre os efeitos do colonialismo. Desse ponto em diante, os estudos envolvendo o pós-colonialismo ganharam vigor e têm-se revelado, nos últimos tempos, como produtivo campo de representação e interpretação de complexidades históricas e culturais. Com a proliferação dos estudos pós-coloniais, que se tornaram bastante numerosos, o conceito ganhou amplitude semântica e pouca precisão. Desse modo, ao se falar em pós-colonialismo, faz-se necessário definir qual sentido se está atribuindo ao termo. Ana Mafalda Leite propõe o termo como episteme. Segundo ela, “o termo pós-colonialismo pode ser entendido como incluindo todas as estratégias discursivas e perfomativas (criativas, críticas, teóricas) que frustram a visão colonial” (LEITE, 2013, p.11). O pós-colonialismo, ainda segundo Ana Mafalda, pode ser entendido como a revisão crítica do colonialismo, do neocolonialismo e mesmo do anticolonialismo. 35

Essa revisão independe de balizas cronológicas, tampouco geográficas, para considerar como pós-colonial um texto escrito no período da pré-independência das colônias, que denuncie os efeitos do sistema em que se encontra ou mesmo textos de países colonizadores que reflitam criticamente acerca de sua condição. O mesmo pode-se considerar a respeito do conceito de pós-independência, que, em princípio, referir-se-ia a tudo que estivesse situado cronologicamente após a libertação das colônias do jugo da metrópole. Entretanto, com o espraiamento de significados do termo nas análises contemporâneas sobre o neocolonialismo e as relações de dependência cultural e econômica das ex-colônias na cena globalizada, urge uma especificação tanto histórica quanto necessária na utilização do conceito, a fim de evitar críticas à equivocada aplicação displicente. Além do alargamento semântico, outro problema frequentemente encontrado nos estudos pós-coloniais é a transposição de conceitos e de teorias criados a partir de contextos bastante distintos. A ensaísta alerta para o perigo de “superficial adaptação terminológica de concepções teóricas” (LEITE, 2013, p. 13). Ela se refere, especificamente, aos estudos “anglófonos” e “francófonos” dos quais emerge a maioria dos conceitos teóricos utilizados nos estudos pós-coloniais. Intelectuais diaspóricos, como Stuart Hall, Homi K. Bhabha, Gayatri Spivak e Edward Saïd, produziram boa parte da bibliografia teórica utilizada nesses estudos, em que refletem sobre a condição pós-colonial a partir de contextos bastante distintos daqueles envolvendo Portugal e suas ex-colônias em África. Nesse sentido, cabe ressaltar que o caso do colonialismo português possui particularidades, que devem ser levadas em conta. De forma semelhante, Margarida Calafate Ribeiro propõe a ideia de flexão do plural do termo pós-colonialismo, ressaltando a diferença histórica e cultural de cada um dos casos envolvendo a história do colonialismo. Seria “uma série de conceitos operativos que funcionam como instrumentos de trabalho para pensar os vários fenômenos e movimentos a que o colonialismo deu origem e o pós-colonialismo interpreta valorizando” (RIBEIRO, 2004, p. 2). A par das particularidades do colonialismo português, Boaventura de Sousa Santos ressalta que, primeiramente, precisa-se de conhecer as particularidades de Portugal. No artigo intitulado “Estado e sociedade na semiperiferia do sistema mundial: o caso português” (1985), o sociólogo explica que, tradicionalmente, Portugal sempre ocupou uma posição intermediária no cenário global, como 36

semiperiferia. Tendo algumas características sociais típicas de países mais desenvolvidos e, simultaneamente, outras de países menos desenvolvidos, Portugal acabou por atuar como correia de transmissão entre esses dois polos. Assim, ao analisar a hierarquia do sistema colonial, não é difícil perceber a situação paradoxal de Portugal: por um lado, um país com identidade fundada em um mito expansionista e detentor de diversas colônias pelos quatro cantos do mundo; e por outro, um país com lento processo industrial e atraso na modernização que resultam na submissão à hegemonia da Inglaterra. O fato de ser detentor de um vasto império e ser um país periférico no cenário europeu tem consequências no sistema colonial português que o distingue dos demais sistemas coloniais. Boaventura explica, em “Entre Próspero e Caliban: colonialismo, pós-colonialismo e inter-identidade” (2001), que, diferentemente da bipolarização extrema entre colonizador (Próspero) e colonizado (Caliban) do colonialismo anglo-saxônico, o colonialismo português foi marcado pela ambivalência e pela hibridação entre essas duas figuras. Se a construção identitária a partir do século XV se caracterizou pela oposição binária, duas foram as configurações do “outro” nesse processo que refletiram duas distintas imagens do português: a do europeu, que representava o português de modo semelhante aos africanos e americanos, refletindo a imagem de Caliban; e a do africano colonizado pelo português, a partir do qual Portugal podia visualizar em si a imagem de Próspero. Das possibilidades de inter-identidades portuguesas destacadas por Boaventura a partir dessa colonização realizada por um colonizador que ora é Próspero ora é Caliban, podem-se destacar duas. A primeira é a atitude da negação identitária do africano, da sua animalização e da imposição cultural. Esse processo dá-se pela necessidade de afirmação identitária, uma vez que, não raro, o europeu atribuiu as mesmas imagens dos colonizados a Portugal. A consequência desse processo identitário é a ação violenta do imperialismo luso, seja de forma explícita ou de forma implícita, pela sobreposição cultural, para, a partir da negação do colonizado, afirmar a sua identidade como país de missão civilizatória. A segunda inter-identidade observada é a do Próspero calibanizado. Como o colonialismo português visava muito mais à simples extração de recursos e ao controle do comércio marítimo que à ocupação dos territórios, não houve, inicialmente, o desenvolvimento de um consistente Estado colonial nesses territórios. Sem o amparo de um Estado colonial ou da presença do Império, os portugueses que comercializaram na região tiveram de praticar uma autogestão 37

colonial. Assim, com os escassos recursos próprios, acabaram tendo que negociar a sua posição e inserir-se nas sociedades locais, numa espécie de vassalagem aos reinos ali presentes. A construção identitária consequente desse processo é, portanto, uma inusitada hibridação do sistema colonial: a assimilação da cultura do colonizado pelo colonizador, ou, ainda, a colonização cultural do próprio colonizador, nas palavras de Boaventura, o Próspero calibanizado. Nos relatos de viagem, é comum a referência pejorativa a portugueses “cafrealizados”, já que cafres é o adjetivo, que ao longo da história assume sentido bastante negativo, com o qual eram definidos os nativos dos territórios conquistados. Considerando o pós-colonial um dos conceitos mais importantes para se poder interpelar as manifestações culturais em África, a ensaísta Simone Pereira Schmidt, em “Onde está o sujeito pós-colonial?” (2009), enfatiza que o sujeito deve reivindicar um lugar concreto, o referencial histórico e político do termo, combatendo o arriscado alargamento do significado de sua experiência com a mera homogeneização. Isso seria empobrecedor e arriscado, donde conclui:

Não podemos falar de um sujeito pós-colonial, pois sua identidade resulta da interseção de diversas faces de sua história e de seu presente, que dizem respeito à classe social em que se situa, ao país e à região de onde vem e onde está, à sua posição de gênero, raça e etnia, etc., sendo que todos esses elementos só podem ser vistos em sua complexa rede, densa de historicidade e múltipla em suas localizações. (SCHMIDT, 2009, p. 139)

A multiplicidade de posições (subjetiva, histórica, geográfica, cultural) inerente ao conceito de pós-colonial, segundo a ensaísta, permite perguntar onde está o pós- colonial no contexto das literaturas africanas de língua portuguesa. Ao mesmo tempo, cabe se questionar qual é o lugar desse sujeito pós-colonial, onde está representado e localizado. Sabe-se quão arriscada e empobrecedora é a tentativa de homogeneização da experiência pós-colonial, já que ela é, em princípio, heterogênea. Portanto, busca-se um sujeito, cuja identidade é formada pela intersecção de variadas faces da história passada e presente. Ao procurar os contornos mais visíveis da questão, propõe-se aqui a construção de uma breve cartografia da experiência pós-colonial, atentando primeiramente para o cenário em que se situa. No caso em estudo nesta dissertação, a história de Angola e a 38

produção literária de um de seus autores, que trabalha questões caras à contemporaneidade, José Eduardo Agualusa. Do passado colonial aos dias de hoje, o que se marca e o que é silenciado como memória na formação das nações africanas colonizadas pelo império português é o desejo de liberdade. A literatura desses países, profundamente vincada pela história, busca no passado suas raízes, a fim de dar voz a esse desejo, com uma permanente construção-reconstrução de suas identidades. O contato com o mundo europeu configurado pelo choque, a ruptura violenta com o passado cultural das etnias que já habitavam esses territórios, a imposta reorganização das sociedades e a divisão arbitrária de nações autóctones criaram sérios problemas às colônias portuguesas em África, fazendo com que cada uma buscasse sua independência. No final do século XX, as últimas colônias portuguesas em África tornavam-se independentes politicamente, por meio da luta com armas. Conquistada a autonomia, o fim dos embates só se daria anos mais tarde, devido aos conflitos internos, fomentados por fatores externos, que insuflaram a guerra civil pós- independência. Em Angola, a guerra durou até o início do século XXI e parece vagar tal qual um fantasma a ameaçar o presente. Nascida no período de contestação política e convulsão social, a literatura angolana outorga-se representante das múltiplas identidades nacionais, pelo papel simbólico exercido nas lutas contra as injustiças e expropriações coloniais. O percurso inicial dessa literatura escrita data, para alguns estudiosos e críticos literários, do final do século XIX, quando o pensamento intelectual e artístico plantou as sementes da resistência anti-imperialista. Durante a primeira metade do século XX, anterior ao início da luta armada em 1961, propagandeava-se o grito de Viriato da Cruz “Vamos descobrir Angola”, uma das primeiras manifestações de angolanidade na resistência cultural à assimilação colonizadora. Mário Pinto de Andrade afirma que a consequência lógica decorrente desse grito

foi a dinâmica cultural incentivada pelo aparecimento do Movimento dos Novos Poetas de Angola, pela fundação da revista Mensagem e pela elaboração do plano de alfabetização das massas. Assim nasceu a literatura angolana moderna, distinguindo-se os primeiros poetas que começaram a decifrar o real quotidiano: Viriato da Cruz, António Jacinto, 39

Agostinho Neto. A geração de Mensagem entoou, com efeito, o novo canto da angolanidade. (ANDRADE, 2012, p. 189-190 – grifos do Autor).

No período pós-independência, muitas das utopias se viram transformadas em distopias, diante da sensação de estarrecimento frente ao projeto político esvaziado e à incapacidade de articulação entre tradição e modernidade, num panorama de aporias e de paroxismo descrente. Em consequência disso, no início do século XXI, os dilemas políticos e sociais não arrefeceram em Angola e marcaram lugar na produção literária de muitos escritores. E, nesse sentido, Inocência Mata assevera que:

Não é raro encontrar-se expressa a ideia de que a escrita angolana pós- colonial é uma escrita de ruptura. Um dos sinais dessa ruptura, adianta-se, é a viragem para a escrita da História, que assinalaria um novo locus de gestação textual, diferente dessoutro fundacional do sistema angolano (a natureza, a sociocultura e as realizações mundividenciais do quotidiano), em momento coincidente com a pulsão nacionalista que lhe deu feição peculiar e “consagrou” a substância da angolanidade literária (MATA, 2008, p. 75).

Neologismo forjado pelos nacionalistas angolanos no decurso da luta de libertação, o termo angolanidade, segundo Luís Kandjimbo (1997, p. 15), aparece pela primeira vez inserido num texto do crítico Alfredo Margarido (1980, p. 5), em 1961. O conceito não podia ser entendido apenas como um viés do movimento da negritude que ainda ressoava por volta dos anos 1950, mas como uma necessidade de caracterizar o angolano como o “homem novo”, citado por Jean-Paul Sartre (apud FANON, 1968, p. 15) em seu prefácio para Os condenados da terra, aludindo ao que Frantz Fanon (1968, p. 201 et seq.) menciona como sendo característica indispensável para um diálogo efetivo entre os homens de África e dos outros continentes. Sob a pressão dos acontecimentos político-militares, que se desenrolavam em Angola, essa definição não aparecia apta para descrever a realidade cultural. Ela não considerava a historicidade do fenômeno cultural. Com isso, não estão apenas na negritude as raízes da cultura angolana. Defender esse ponto de vista seria negar o efeito de aculturação que resultou da colonização. O fenômeno cultural é também social, e não um simples resultado de contato entre culturas. Agostinho Neto também se equivocou ao propor uma abordagem culturalista do fenômeno social. “A cultura do povo angolano, é hoje constituída por pedaços 40

que vão das áreas urbanas assimiladas às áreas rurais apenas levemente tocadas pela assimilação cultural europeia” (AGOSTINHO NETO, 1979 – cf. site). Essa postura reduz a aculturação à sua forma forçada, enquanto ela também pode ser espontânea, natural, livre ou mesmo controlada. É a definição de Alfredo Margarido a que mais se aproxima daquilo que pode ser considerado como proposição inaugural do termo angolanidade: “a substância nacional angolana” (MARGARIDO, 1980, p. 5). Dessa maneira conceituada, a definição permite realocar a pluralidade cultural existente em sua historicidade. A noção de angolanidade foi obscurecida com o tempo, sendo mudada conforme as necessidades de reformulação, principalmente, de cunho político. Instrumento necessário, senão indispensável, para a criação e a afirmação de uma multifacetada identidade nacional em construção, a angolanidade desempenhou um papel importante como fundamento político. Esse fundamento é a consequência lógica da reflexão e da influência que o pensamento de Frantz Fanon exerceu em relação às ideologias que orientaram a luta pela independência. “Pensamos que a luta organizada e consciente empreendida por um povo colonizado para restabelecer a soberania da nação constitui a manifestação mais plenamente cultural que se possa imaginar.” (FANON, 1968, p. 205), dizia ele, desde 1961. Pesquisas mais recentes a respeito do tema apontam para o fato de que a formação do território de Angola foi “resultado de uma luta consciente de uma elite diversificada e consciente dos seus objetivos que, em três fases (1961/1975; 1975/1992 e 1992/2002), criaram o Estado angolano” (BATSÎKAMA, 2013 – cf. site). Durante estes períodos, havia inúmeras identidades patrimoniais que participaram dinamicamente com novas identidades vindas de fora da construção do Estado- nação. Ao resgatar etimologicamente os sentidos do termo angolanidade, o historiador angolano Patrício Batsîkama aponta tanto para um fundamento ético como para outro moral nas seguintes definições, respectivamente: a primeira como valores de Angola ou dos angolanos, e a outra como qualidades dos angolanos. O estudo mostra que o termo, ao longo do tempo, foi utilizado de diversas formas, sendo, ainda hoje, motivo de releitura. Tendo em vista a “pouca história” de teorização sobre o assunto, salienta o pesquisador que a melhor definição a resumir o conceito é “a idealização ou tentativa de teorização sobre o Estado-nação angolano” (BATSÎKAMA, 2013 – cf. site). 41

O historiador considerou que houve várias angolanidades no decurso da história e destacou as principais que mostram a mescla de fundamentos culturais com políticos:

(1) Angolanidade apriorística. Esta teoria – amplamente sustentada pelo MPLA no seu projeto sobre Angola enquanto “Estado-nação” – quer que “todos angolanos constituam uma só nação; um só povo” partindo do pressuposto de que o povo angolano estaria acima das etnias (forma de congregar as partes) e abrindo espaço para africanos, europeus e angolanos “viverem em conjunto”, como um só povo (Staatnation). (2) Angolanidade rizomática e angolanitude. Esta teoria – energicamente sustentada pela FNLA e readaptada pela UNITA – afirma que a construção de Angola enquanto Estado-nação partirá das raízes culturais africanas, por um lado em busca do modelo africano (rompimento com a colonização) e, por outro, a independência total (independência cultural, talvez). O Angolano “de fora” (euro-angolano, sobretudo) é convidado, mas secundarizado (kulturnation). (3) Angolanidade aposteriorística. Com a americanização do mundo, ou melhor, a democratização consoante do modelo americano – surgem as novas ideias nos anos 90 (do século passado): uns reclamam da participação de todas forças sociopolíticas, outros (na maioria) expressam anti-mplaismo como forma de construir “o país que o MPLA terá destruído”. Aqui, mencionamos todos os outros partidos políticos que surgiram oficialmente nos anos 90 (confrontação de Staatnation e Kulturnation) (BATSÎKAMA, 2013 – cf. site – grifos do Autor).

Diante desta sistematização, conclui-se que as angolanidades devem construir-se a partir dos elementos concretos em que se manifestam, não como um esforço de negação de uma realidade cultural imposta, mas como um empenho de afirmação de uma realidade cultural nova, que nasceu do cruzamento entre culturas. O problema da angolanidade ultrapassa, pois, o quadro restrito de uma pesquisa conceitual, para atingir os múltiplos significados que assume na prática. A questão já não é tanto a de saber o que se deve rejeitar, mas a de reunir os elementos suscetíveis de participar na construção das diversas angolanidades em curso. 42

2.2. Entre o cultural e o político: questões identitárias em obras de Agualusa

A obra de José Eduardo Agualusa apresenta-se como um exemplo de construção de um itinerário de escrita inserido em um projeto literário, que, apesar de retratar a “realidade” de Angola e dos angolanos, se pretende mais transnacional. O escritor opta por centrar seus enredos na sociedade “crioula”10 de Luanda que protagonizou os primeiros movimentos contestatórios no século XIX [A conjura (AGUALUSA, 2009b); Nação crioula (AGUALUSA, 2011b)], ou naquela do final do século XX [Estação das chuvas (AGUALUSA, 2012b), O vendedor de passados (AGUALUSA, 2011a), Teoria geral do esquecimento (AGUALUSA, 2012a)], ou ainda elege projetar a sua atenção num tempo em devir [Barroco tropical (AGUALUSA, 2009a)], ao que parece querer relegar para segundo plano o período das lutas que conduziram à independência. Se no centro da concretização do projeto literário aludido encontra-se uma demanda identitária que se pretende semelhante à de diversas obras representativas da literatura angolana pós-independência, tal processo realiza-se por meio das experiências migrantes do escritor que concede à ficção vivências individuais, influências literárias, preocupações sociais e políticas específicas, o que o leva a convocar estratégias textuais diversas, configurando-as como variadas formas de expressar diferentes percepções da complexa e multifacetada identidade angolana. É de salientar que para compreender os modos específicos de apreensão do mundo agualusiano, os modelos conceituais que arquitetam e sustentam sua criação romanesca são baseados, principalmente, em procedimentos de descolonização cultural. Sobre esse traço que parece ser comum a alguns outros escritores contemporâneos de Agualusa assevera Jane Tutikian:

10 Quanto ao conceito de crioulidade, este está sendo utilizado entre aspas por carregar em si uma polêmica. O conceito, defendido primeiramente pelo poeta e sociólogo angolano Mário António Fernandes de Oliveira, em sua obra Luanda, “ilha” crioula [1968] e depois por outros intelectuais tais como Salvato Trigo, José Carlos Venâncio (2005), David Mestre, José Eduardo Agualusa (LARANJEIRA, [1997] – cf. site), é entendido pelo historiador brasileiro Marcelo Bittencourt (2000) como sinônimo de mestiçagem cultural. Em polo diametralmente oposto, a crítica firmada pelo sociólogo angolano Víctor Kajibanga (1999/2000/2001), sustentando-se em Aimé Césaire e em Mário Pinto de Andrade, refuta esta posição, que ignora a dimensão socioeconômica e política da colonização, com sua pilhagem e exploração desenfreada, bem como se baseia em argumentos teóricos, considerados por ele, infundados, representando apenas uma variante da sociologia do luso-tropicalismo de Gilberto Freyre. 43

o esforço cultural pela descolonização continua, por muito tempo, após o estabelecimento do Estado independente. E, aqui, quando se fala em projeto voltado para o nacionalismo, fala-se em restauração da comunidade, em afirmação da identidade, em resgate de práticas autênticas e surgimento de novas práticas culturais. (TUTIKIAN, 2006, p. 43)

Logo em seu primeiro romance, A conjura (AGUALUSA, 2009b), publicado em 1989, o cenário é a velha cidade de São Paulo da Assunção de Loanda, em 1880. Discutem-se questões relacionadas à colonização portuguesa e à independência de Angola, num contexto em que se planeja uma revolta, ou seja, uma conjura independentista, que é frustrada pelo barbeiro Jerónimo Caninguili. Com uma crítica ácida e sarcástica, o romance confere à linguagem um papel fundamental na composição da narrativa, trabalhando não apenas aspectos relacionados à inserção da oralidade no texto, mas também redes intertextuais que fazem do literário um largo cenário cultural. A respeito da inscrição da oralidade, Ana Mafalda Leite ressalta que:

através da literatura angolana, [...] as literaturas africanas de língua portuguesa trouxeram modernidade às literaturas africanas, fazendo coexistir na maleabilidade da língua, o novo com o antigo, a escrita com a oralidade, numa harmonia híbrida, mais ou menos imparável, que os textos literários nos deixam fruir. (LEITE, 1998, p. 34)

A língua do colonizador, matizada com o umbumdo ou o quimbundo – línguas nacionais angolanas –, imprime, no corpo cultural do colonizado, um relevo distinto que africaniza o idioma imposto pela colonização portuguesa.

Por fim conseguiram acalmar Afonso, que acabou por ir embora resmungando contra a ingratidão desses pretos. – Demos-lhe tudo – dizia, afivelando o chapéu colonial –, ensinamo-los a ler, a vestir, a calçar, para quê? E tendo subido em sua machila, ainda berrou para trás, como quem cospe, os seus sujos quimbundus de branco matoense. – Bu uadila, kunene-bu! (AGUALUSA, 2009b. p. 24)

Num primeiro momento – como nas primeiras obras de Agualusa –, a palavra “machila” e a frase “Bu uadila kunene-bu!”, em quimbundo, têm suas traduções para o português oferecidas ao leitor em notas de rodapé. No decorrer do percurso da produção literária agualusiana, a pressuposição do significado de cada vocábulo já faz parte do jogo de que fala Wolfgang Iser (2013), para quem o texto literário- ficcional é concebido como determinado por uma estrutura dotada de vazios a serem suplementados, e não complementados, pelos leitores. 44

Diferentes pistas e recursos ficcionais são empregados nas obras de Agualusa. É possível inferir que, por exemplo, o uso de epígrafes, tanto para a obra como um todo, quanto para cada capítulo, é formalizado esteticamente em A conjura (AGUALUSA, 2009b) e em Estação das chuvas (AGUALUSA, 2012b), segundo romance do escritor, publicado em 1996. Agualusa lança mão de partes de discursos proferidos, frações de artigos de jornais antigos, trechos de correspondências, estrofes de poemas, enfim, toda uma “documentação” minuciosamente selecionada para dialogar com a narrativa. É por meio da composição dessas passagens do documental para o simbólico que o texto não se prende às referencialidades dos fatos como um fim da criação literária, mas elabora- se a partir daí um indiciário que complementa com fragmentos o todo da narrativa. Resumidamente, como afirma Antonio Candido, “as sugestões e influências do meio se incorporam à estrutura da obra, de modo tão visceral que deixam de ser propriamente sociais, para se tornarem a substância do ato criador” (CANDIDO, 1987, p. 164). Com Estação das chuvas (2012b), José Eduardo Agualusa se aventura a narrar a independência de Angola. Recheia o romance com referências à sua própria história, buscando aproximar o leitor das vivências e intimidades do jovem idealista que foge de uma família acomodada no Huambo, cidade do interior de Angola – onde nasceu o escritor –, para se dedicar à libertação na capital Luanda, bem como revelar, de acordo com seu olhar, as misérias humanas nas distâncias abissais entre a “vanguarda revolucionária” e a população. Posicionando o foco narrativo entre sua experiência como autor implícito/autor-personagem e a da personagem Lídia do Carmo Ferreira, cujo sobrenome se refere a uma família tradicional – à do poeta Lourenço do Carmo Ferreira11 –, Agualusa desvela um amplo panorama da sociedade angolana sem jamais esquecer das marcas da guerra nem das misérias humanas. O romance não hesita em se embrenhar nas histórias do imaginário popular que não se transformou por completo com a independência. As histórias narradas não são a tradução da historiografia oficial, tampouco das utopias dos projetos do Movimento Popular de

11 O poeta Lourenço do Carmo Ferreira viveu entre o final do século XIX e início do XX, em Luanda, e é citado por Manuel Ferreira no livro 50 poetas africanos (Lisboa: Plátano, 1989), conforme informa Pires Laranjeira em seu Literaturas africanas de expressão portuguesa (1995, p. 59-60). 45

Libertação de Angola (MPLA). O personagem Lídia, metonimicamente, se transfigura na Angola sonhada para depois da revolução. O livro rapidamente ganhou repercussão devido às controversas posições atribuídas aos personagens Agostinho Neto e Mário Pinto de Andrade, espelhados nas figuras públicas, o primeiro, do poeta e primeiro presidente da república popular de Angola, e, o segundo, do renomado intelectual que, junto com Neto, fundou o MPLA. Ainda que prevaleça o cunho documental, inspirado na história de Angola, o romance mescla fatos reais e ficcionais; mas o caráter híbrido só se adensa com a utilização de expedientes aparentemente avessos à narrativa ficcional (como entrevista, notas de rodapé, etc.). Sem dúvida, um dos livros mais famosos de Agualusa seria publicado no ano seguinte, em 1997: o romance epistolar Nação crioula (2011b). O romancista leva ao paroxismo os artifícios intertextuais, bem como o seu tradicional empenho em embaralhar realidade e ficção. Dialogando direta ou indiretamente com algumas célebres obras da literatura em língua portuguesa, Nação Crioula (AGUALUSA, 2011b) afirma-se como produto de um longo percurso de construção de identidades marcadas pela miscigenação e pela consciência crítica das relações entre os continentes americano, europeu e africano. Poder-se-ia entendê-lo como um romance que atravessa o Atlântico negro, expressão que remete ao livro homônimo de Paul Gilroy. São importantes as reflexões e reivindicações teóricas desse pesquisador inglês ao defender uma perspectiva transnacional e intercultural, em oposição às abordagens nacionalistas ou etnicamente absolutas. A história do Atlântico negro, segundo ele, “propicia um meio para reexaminar os problemas de nacionalidade, posicionamento [location], identidade e memória histórica” (GILROY, 2001, p. 59). Nesse sentido, o enredo se desenvolve no período que vai de 1868, com a chegada de Carlos Fradique Mendes a Luanda, em Angola, até o ano de 1900. É uma obra instigante, cujas peculiaridades se fazem notar na organização geral do romance, em que, dos vinte e seis capítulos que compõem a obra, vinte e cinco são constituídos por missivas assinadas pelo personagem Fradique Mendes, e o último capítulo é composto por uma carta assinada por Ana Olímpia e remetida ao escritor português Eça de Queiroz. As cartas assinadas por Fradique são enviadas a diferentes destinatários – Madame de Jouarre, Ana Olímpia e Eça de Queiroz, cada um habitante de uma 46

localidade diferente por onde o missivista transita: Portugal, Angola e Brasil. Por meio desta correspondência é possível conhecer os fatos que se dão não apenas com o personagem-missivista, como também com a ex-escrava angolana Ana Olímpia, com quem Fradique se relaciona, e com todos os outros personagens com os quais mantém contato em sua aventura narrada na correspondência secreta. O fato de a última missiva ser assinada por Ana Olímpia faz com que, numa espécie de flashback, todas as cartas anteriores, assinadas por Fradique, sejam explicadas a partir da última. A razão de a correspondência secreta do missivista passar a ser do domínio público também é elucidada nesta última missiva. É como se ela fosse, na realidade, o princípio, senão de tudo, dos fatores que possibilitam a existência do romance. Entretanto, o protagonista da obra faz sua primeira aparição, na cena literária, já no século XIX. O personagem Carlos Fradique Mendes era um heterônimo coletivo criado pela tertúlia político-literária Cenáculo, da qual faziam parte os escritores portugueses Antero de Quental, Eça de Queiroz, Ramalho Ortigão, Manuel Arriaga, entre outros. O fictício Fradique Mendes foi concebido como um poeta satânico, a la Baudelaire, cujos poemas foram primeiramente publicados em um periódico da época. O personagem também aparece em O Mistério da Estrada de Sintra, de Eça de Queiroz e Ramalho Ortigão, publicado em 1870, além de figurar na obra de Eça de Queiroz intitulada Correspondência de Fradique Mendes, publicada postumamente em 1900. O personagem ainda reaparece no volume intitulado Cartas inéditas de Fradique Mendes e mais páginas esquecidas, publicado pelo filho do escritor português em 1928. Como o Fradique Mendes queiroziano é um personagem que não se fecha para o outro, Agualusa aproveitou-o como protagonista de seu romance epistolar, uma maneira de homenagear Eça de Queiroz. A homenagem não se restringiu apenas ao fato de ter retomado um personagem do escritor português, mas, em maior grau, se ampliou pela inserção do próprio Eça personagem, com quem Fradique também se corresponde, típico exemplo de diálogo entre criador e criatura. Ao se apropriar de Fradique Mendes, José Eduardo Agualusa retoma também toda a história que cerca a vida desse personagem português no contexto do século XIX. Com isso, sua história de vida passa a dialogar com as histórias angolana e brasileira ficcionalizadas em Nação Crioula (AGUALUSA, 2011b). Tal diálogo se dá, sobretudo, com relação ao colonialismo português em Angola, à escravidão no Brasil, ao tráfico negreiro entre 47

os dois países e aos desdobramentos desse comércio na vida daqueles que dele participaram, direta ou indiretamente. Na retomada do personagem Fradique Mendes, observa-se um trânsito intertextual relacionado ao contexto, ao tempo e ao espaço em que se dão os fatos narrados na obra de Agualusa com relação à obra de Eça. Para Silvio Renato Jorge, Nação crioula (AGUALUSA, 2011b) textualiza:

a tentativa de marcar espaço de trânsito entre os países de língua portuguesa, espaço esse que, todavia, não se restringe a eles, mas pressupõe o agenciamento de referências que ampliam o leque de diálogos culturais para outros horizontes (JORGE, 2007, p. 350).

O vendedor de passados (AGUALUSA, 2011a) foi publicado em 2004. Encenando uma sátira social, a narrativa parte da figura enigmática de um vendedor de passados narrado simbolicamente por uma osga [lagartixa] – apresentada no livro como imagem reencarnada de uma vida anterior, de uma memória anterior. Tal leitura procurará compreender como o passado, trazido ao presente e com ele dialogando intensamente nessa narrativa, reaviva os signos e/ou fragmentos de uma tradição, depreendendo-se inicialmente de que tradição se está falando, vista a inserção no contexto africano. Tecer considerações sobre tradição em África abre de imediato uma fenda entre o universo tradicional antes da presença do colonizador e o complexo de silêncios e reescritas que marca a presença da força colonial nesse ambiente. As imagens desse abismo são sentidas diante de uma burguesia angolana que deseja rever seus passados, realizando praticamente uma apologia ao arquétipo lusitano. A clientela do albino Félix Ventura – o vendedor de passados – é oriunda da elite angolana que almeja “um nome que ressoe a nobreza e a cultura” (AGUALUSA, 2004, p. 17). Félix articula, por meio de um projeto escrito, o apagamento da tradição africana e a invenção dos moldes europeus para essa parcela da população que resolveu reinscrever-se segundo o critério português. Ele proporciona uma progressiva reinvenção das memórias de seus clientes, inserindo uma tradição sobre outra, um discurso que revela outro, em que a noção de verdade se relativiza pelo paradoxo ali engendrado. Nesse sentido, Renata Flávia da Silva entende que:

Ao apresentar o passado como algo a ser produzido e consumido, Agualusa extrapola o espaço da ficção e lança a duvida sobre a memória celebrativa 48

da historia oficial, sobre até que ponto essas recordações não seriam organizadas a favor de determinados interesses ou ideologias, como mercadorias expostas intencionalmente na vitrine. Reorganizar memórias pode ser, também, uma forma de reorganizar o poder; refazer, ainda que por intermédio da ficção, a rememoração do outrora a partir da visão do presente (SILVA, 2008, p. 31)

A representatividade é uma das características principais da literatura e que a torna alvo de disputas ideológicas. Por seu intermédio, é possível conferir identidade a si e ao outro. Segundo Michel Foucault, não há linguagem neutra. Mais do que uma questão de elevação estética, a questão das relações de poder, de legitimação de discursos, pode ser inferida da literatura. Nesse sentido, lembra Foucault que “o discurso não é simplesmente aquilo que traduz as lutas ou os sistemas de dominação, mas aquilo por que, pelo que se luta, o poder do qual nos queremos apoderar” (FOUCAULT, 2010, p. 10). Fazendo uma projeção de Angola em um futuro próximo, no ano 2020, Barroco tropical (AGUALUSA, 2009a) foi duramente rechaçado pela crítica literária, em especial pelas palavras do crítico brasileiro Alcir Pécora. A crítica seguiu o diapasão internacional. Pécora termina sua análise dizendo que, ao fim, o romance “faz pensar que a ideia de “angolano” diz menos respeito a uma história vivida como dor e contradição num país conflagrado [por longas guerras] do que a uma senha exótica de acesso a postos globalizados, numa espécie de arrivismo pós-colonial” (PÉCORA, 2009 – cf. site). Estruturalmente, a obra é dividida em partes, nas quais os fatos são narrados ora por Bartolomeu Falcato – escritor e produtor – ora por sua amante, a cantora Kianda. Outro aspecto, além de diversos outros que se repetem das obras anteriores, é que, em vários momentos, pode-se perceber que se fala da própria construção romanesca. Assim, o romance em questão constitui uma metaficção, por meio da qual o narrador mostra a composição de sua narrativa, dialoga com o narratário e estabelece uma relação entre o autor real, ou seja, José Eduardo Agualusa, e o autor fictício, Bartolomeu Falcato, como fica claro em várias partes da obra, por exemplo, no título da quarta parte: “Voltando ao princípio. Esta é uma das vantagens da literatura em relação à vida: podemos sempre voltar ao princípio” (AGUALUSA, 2009, p. 91). Em linhas gerais, o enredo trata do que resenhou Alcir Pécora em sua crítica:

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A narrativa compila acontecimentos em torno à vida de um escritor angolano de sucesso, que perde a filha e passa a ser culpabilizado pela mulher. É salvo do desespero pela paixão por uma cantora pop, também de sucesso e também ela atormentada pelo próprio talento; pela doença; pelo passado do pai, antigo terrorista italiano, também internacionalmente conhecido, que participou da guerra de independência de Angola. (PÉCORA, 2009 – cf. site)

O que se pode perceber da comparação entre esses romances de Agualusa é que estão em diálogo com o romance Teoria geral do esquecimento (AGUALUSA, 2012a) a partir da utilização da estratégia do espelhamento. A pesquisadora Ana Mónica Henriques Lopes (2002) estudou parcialmente o corpus aqui apresentado, neste subitem 2.2. Da análise dessas obras de Agualusa, inferiu que os espelhamentos de fatos e temas são recorrentes em um romance ou em romances diferentes. Ela conclui que uma indagação pode ser suscitada pelo leitor sobre vários questionamentos apresentados nos textos romanescos, onde tudo é jogo, encenação.

O espelhamento pode aparecer sob a forma de “mise-en-abyme” que coloca num mesmo movimento relacional todas as obras. Personagens e episódios ecoam em outros, duplicam-se, retornam à cena textual travestidos. [...] O espelhamento também coloca em evidência questões como a busca da identidade, a relação história/literatura, o absurdo que permeia o imaginário social angolano e o resgate de eventos e personagens históricos. Estas questões [...] determinantes para que se considerem suas obras como narrativas fundacionais, ainda que distanciadas do imaginário de nação harmónica e coesa que silencia as diferenças e cala os conflitos. (LOPES, 2002, p. 193)

Se uma das questões recorrentes nas obras de Agualusa é claramente a busca de uma identidade cultural que se encontra em constante trânsito, cabe citar o sociólogo Boaventura de Sousa Santos, em seu livro Pela mão de Alice: o social e o político na pós-modernidade, onde afirma que, além de plurais, as identidades são mutáveis e questionáveis, dominadas pela obsessão da diferença e pela hierarquia das distinções. Portanto, são:

resultados sempre transitórios e fugazes de processos de identificação. Mesmo as identidades aparentemente mais sólidas, como a de mulher, homem, país africano, país latino-americano ou país europeu, escondem negociações de sentidos, jogos de polissemia, choque de temporalidades em constante processo de transformação [...] Identidades são, pois, identificações em curso. (SANTOS, 1999, p. 135)

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Em meio a tantos vazios trazidos pela história, Agualusa, através de sua narrativa, é uma voz que, ficcionalmente, problematiza a complexa construção da multifacetada identidade nacional e cultural angolana. Isso faz supor que as relações entre a história recente de Angola e a ficção que se produziu desde a luta de libertação são, evidentemente, procedimentos táticos de discussão crítica em relação a construções identitárias nacionais que partem da reinvenção da memória, da imprensa, da literatura e também da história oficial. Dessa forma, é lapidar o pensamento de Hannah Arendt sobre a “ficionalização do real”:

[...] se as mentiras políticas modernas são tão grandes que requerem um completo rearranjo de toda a textura factual – o fabrico de uma outra realidade, por assim dizer na qual se encaixam sem costuras, fendas nem fissuras, exactamente como os fatos se encaixavam no seu contexto original – o que é que impede estas histórias, imagens e não factos novos de se tornarem um substituto adequado da realidade e da factualidade? (ARENDT, 1995, p. 46)

Ao se apropriar, ficcionalmente, em suas obras, de diferenças culturais do país, José Eduardo Agualusa privilegia o jogo promovido entre história e ficção, apresentando estratégias de produção textual, a fim de, com elas, provocar um diálogo crítico a partir de seus textos, que chamam atenção para recorrências e ausências, desconstroem mitos, lendas, heróis, e salientam alguns episódios da história de Angola que foram alijados e relegados ao esquecimento pela historiografia oficial. 51

3. Os escombros da memória

A par dos acontecimentos decorrentes da Segunda Grande Guerra Mundial, no ensaio “Sobre o conceito de história” (2012), de 1940, o filósofo Walter Benjamin atribui ao historiador a função “messiânica” de resgatar das ruínas e dos escombros do passado o potencial esquecido, cuja realização foi frustrada. Sua proposta representa uma força contrária às formas de uma historiografia voltada às causas do que aconteceu depois, ou mais precisamente, a contar a história dos vencedores. Benjamin diferencia o materialismo histórico do historicismo, definindo este como o discurso dos vencedores, ou seja, como aquele que segue uma concepção de história, cujos fatos históricos são tomados como verdades absolutas e o método de organização dos fatos é cumulativo e linear. O materialismo histórico benjaminiano, pelo contrário, se caracteriza por tentar revolver do passado a história dos vencidos, para ressemantizá-la no presente. O esforço de olhar para trás e revisitar e repensar o passado se caracteriza pela rememoração que se realiza por meio da linguagem, pela narração. Na esteira do pensamento de Jeanne Marie Gagnebin, o conceito de rememoração em Benjamim implicaria uma

certa ascese da atividade historiadora que, em vez de repetir aquilo de que se lembra, abre-se aos brancos, aos buracos, ao esquecido e ao recalcado, para dizer, com hesitações, solavancos, incompletude, aquilo que ainda não teve direito à lembrança nem às palavras. A rememoração também significa uma atenção precisa ao presente, em particular a estas estranhas ressurgências do passado no presente, pois não se trata somente de não se esquecer do passado, mas também de agir sobre o presente. A fidelidade ao passado, não sendo um fim em si, visa à transformação do presente (GAGNEBIN, 2006, p. 55)

Esse esforço de recontar a história, de certa forma, justifica o texto benjaminiano estar eivado de alegorias, metáforas, figuras de linguagem, como se o filósofo trouxesse performaticamente para esse texto um novo olhar sobre a história. Se esta é recontada e reelaborada por meio da linguagem, ela não está à deriva da narração, da linguagem e da retórica. Assim, o desenho do artista plástico Paul Klee, denominado Angelus Novus [1920], ganha novo significado a partir da interpretação de Benjamin sobre a história, através da alegoria da tese IX:

Há um quadro de Klee intitulado Angelus Novus. Representa um anjo que parece preparar-se para se afastar de qualquer coisa que olha fixamente. Tem os olhos esbugalhados, a boca escancarada e as asas abertas. O anjo 52

da história deve ter esse aspecto. Voltou o rosto para o passado. A cadeia de fatos que aparece diante de nossos olhos é para ele uma catástrofe sem fim, que incessantemente acumula ruínas sobre ruínas e lhas lança aos pés. Ele gostaria de parar para acordar os mortos e reconstruir, a partir de seus fragmentos, aquilo que foi destruído. Mas do paraíso sopra um vendaval que se enrodilha nas suas asas, e que é tão forte que o anjo já não as consegue fechar. Esse vendaval arrasta-o imparavelmente para o futuro, a que ele volta as costas, enquanto o monte de ruínas à sua frente cresce até o céu. Aquilo a que chamamos o progresso é este vendaval. (BENJAMIN, 2012, p. 14 – grifos do Autor)

A descrição da imagem evoca o choque quando do cotejamento com o desenho em si. Percebe-se que o fragmento não se limita em fazer uma mera descrição da obra. Desse modo, Benjamin elabora uma tradução interpretativa e alegórica, na qual propõe a revisão do passado como ruína, fragmento, e do progresso como vendaval. Ao comparar a descrição com o desenho a nanquim, identificam-se traços imprecisos e rudes como representação dos escombros que reúnem o anjo e o espectador do desenho. O anjo está mirando com o olhar o espectador. E isso ocorre precisamente na tese em que Benjamin constrói a principal alegoria de todo o ensaio, em que ele concentra sua visão de história como ruína, como escombro que precisa ser resgatado, e de progresso como vendaval que impede que o anjo pare para resgatar mortos e feridos do passado. Hannah Arendt, em seu livro Entre o passado e o futuro (2013a), analisa o conceito de história através de seu método comparativo, confrontando as versões antiga e moderna. O conceito antigo faz uma distinção entre a cosmovisão antiga e o lugar da imortalidade. Essa distinção se relaciona com a necessidade de memória e, consequentemente, de história.

O que para nós é difícil perceber é que os grandes feitos e obras de que são capazes os mortais, e que constituem o tema da narrativa histórica, não são vistos como parte, quer de uma totalidade ou de um processo abrangente; ao contrário, a ênfase recai sempre em situações únicas e rasgos isolados. Essas situações únicas, feitos ou eventos, interrompem o movimento circular da vida biológica. O tema da Historia são essas interrupções – o extraordinário, em outras palavras (ARENDT, 2013a, p. 72).

Com isso “o movimento histórico começou a ser construído à imagem da vida biológica” (ARENDT, 2013a, p. 72). Esse movimento era circular e acompanhava a orientação da natureza. O homem era parte do todo infinito do universo numa cosmologia mais ampla, necessitando de recordação e de Mnemosyne (memória), divindade do panteão grego, porque 53

todas as coisas que devem sua existência aos homens, tais como obras, feitos e palavras, são perecíveis, como que contaminadas com a mortalidade de seus atores. Contudo, se os mortais conseguissem dotar suas obras, feitos e palavras de alguma permanência, e impedir sua perecibilidade, então essas coisas ao menos em certa medida entrariam no mundo da eternidade e aí entrariam num mundo de eternidade (ARENDT, 2013a, p. 72).

De acordo com o pensamento de Heródoto, pai da história, as palavras, os feitos e os eventos, como fatos da existência das ações dos homens, vieram a constituir o cerne da História (ARENDT, 2013a, p. 73-74). Desse modo, “a História acolhe em sua memória aqueles mortais que, através dos feitos e palavras, se provaram dignos da natureza, e sua fama eterna significa que eles, em que pese sua mortalidade, podem permanecer na companhia das coisas que duram para sempre” (ARENDT, 2013a, p. 78). O moderno conceito de história surge da cisão, no século XIX, entre as ciências naturais e as ciências históricas. Ressalta-se, na análise de Arendt, a distinção de duas importantes características: a objetividade e a imparcialidade. O problema da objetividade e da imparcialidade assume importância para a filósofa alemã porque elas determinam os rumos e a identidade do saber a partir dessa separação. Assim, a “objetividade, em outras palavras, significava não-interferência, assim como não-discriminação” (ARENDT, 2013a, p. 80). Foi “pela dúvida da época moderna acerca da realidade de um mundo exterior à ‘objetividade’, à percepção humana como um objeto imutado e imutável” (ARENDT, 2013a, p. 83), que o moderno conceito de história se sedimentou. Arendt não observa o passado de modo cíclico ou como um processo. Ela se interessa mais pela ruptura com que os acontecimentos podem ser encarados, como eventos únicos na esfera das ações humanas, na esfera da política, na esfera pública. Assim, Hannah Arendt considera a dialética entre antigo e moderno, como fundamental na especificação da ruptura entre o pensamento antigo centrado no trinômio natureza-história-imortalidade, e a moderna, centrada na relação natureza- história-processo. A mudança está inserida na nova constituição dos três elementos. Se no conceito antigo a relação de uma cosmovisão com o lugar do homem, que é finito, se dá num universo que é infinito, no conceito moderno se observa o passado como processo.

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Seria, pois, de certa importância observar que o apelo ao pensamento surgiu no estranho momento período intermediário que por vezes se insere no tempo histórico, quando não somente os historiadores futuros, mas também os atores e testemunhas, os vivos mesmos, tornam-se conscientes de um intervalo de tempo totalmente determinado por coisas que não são mais e por coisas que não são ainda. Na História, esses intervalos mais de que uma vez mostraram poder conter o momento da verdade (ARENDT, 2013a, p. 35-36).

Esse é o lugar do sujeito nesse movimento de consciência sobre os fatos. É de se salientar a importância que a filósofa atribui à ruptura e à singularidade do acontecimento suscitado pela ruptura. “Desde o século XVII”, destaca Arendt, “a preocupação dominante da investigação cientifica, tanto natural como histórica, têm sido os processos” (ARENDT, 2013a, p. 88-89). Essa visão processual impõe-se na contemporaneidade na prática historiográfica e se configurou divergente, a partir dos anos 1970, com a crise dos grandes paradigmas, como o estruturalismo e o marxismo, principalmente. O sujeito e o acontecimento, nesse esquema macro-analítico, deixam a cena para darem lugar ao grande movimento da humanidade, às estruturas internas, muitas ininteligíveis e que se organizam e regulam a vida das sociedades e dos grupos sociais. Cabe ressaltar que a filósofa não recorre a uma visão estrutural na análise de um fenômeno de massa sobre o qual pensou: o totalitarismo. Ao contrário, ela arrosta o antissemitismo, o imperialismo e o totalitarismo, pela perspectiva do novo, como ruptura. Parece evidente que neles há muitos elementos do passado. Entretanto, o que lhe interessa é aquilo de novo que o totalitarismo reserva à humanidade. O século XIX é o século do trânsito história-saber. A respeito disso, Arendt novamente dá o valor do novo. “Na época moderna a História emergiu como algo que jamais fora antes” (ARENDT, 2013a, p. 89). Fazer a história, como entende Karl Marx, é uma possibilidade de ação do homem, porque

a ação humana, como todos os fenômenos estritamente políticos, está estritamente ligada à pluralidade humana, uma das condições fundamentais de vida humana, na medida em que repousa no fato da natalidade, por meio do qual o mundo humano é constantemente invadido por estrangeiros, recém-chegados cujas ações e reações não podem ser previstas por aqueles que nele já se encontram e que dentro de breve irão deixá-lo (ARENDT, 2013a, p. 92).

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Por conseguinte, a questão da relação entre história e natureza tem a ver com a finitude decorrente do progresso das ciências naturais, ou seja, com os feitos dos homens, no sentido do progresso e do desenvolvimento, bem como sua relação com o universo. Na modernidade, a experiência humana nasce do “dado ao homem” e não no “feito pelo homem”. Desta forma, a noção de processo é fundamental para o pensamento moderno. Segundo a filósofa, esta noção “não denota uma qualidade objetiva, quer da história, quer da natureza; ela é o resultado inevitável da ação humana. O primeiro resultado do agir dos homens na história foi a história tornar-se um processo ”(ARENDT, 2013a, p. 94). A cisão entre o conceito antigo e o moderno de história é possível pela concepção do conceito de processo, que modifica a gradação interpretativa do passado. Hannah Arendt afirma ainda que só pode transformar em experiência o sofrimento vivido na própria existência se lhe for dado publicidade, o que é fundamental para garantir a preservação da tradição e da própria vida. Dessa maneira, a “escrita de si” e o “testemunho” assumem uma dimensão pública absolutamente necessária para reconstrução das relações sociais no mundo democrático, sob forte ameaça de esquecimento do passado, de esgarçamento da tradição e de empobrecimento da experiência. O que se evidencia também, na obra da filósofa alemã, é a análise da introdução, no corpo institucional-político ocidental, de certa racionalização da violência, absorvida por parte das democracias e não apenas dos regimes totalitários. Não há como obnubilar o fato de a violência ser cada vez mais uma constante na contemporaneidade. Uma série de estudos das ciências humanas centra-se no crime e na criminalidade com seu caráter de elemento social preponderante nas relações entre os homens. Para a filósofa

Ninguém que se tenha dedicado a pensar a história e a política pode permanecer alheio ao enorme papel que a violência sempre desempenhou nos negócios humanos, e, à primeira vista, é surpreendente que a violência tenha sido raramente escolhida como objeto de consideração especial (ARENDT, 2001, p. 16).

“Isso indica”, diz Hannah Arendt, “o quanto a violência e sua arbitrariedade foram consideradas corriqueiras e, portanto, desconsideradas” (ARENDT, 2001, p. 56

16). Como consequência, “quem quer que tenha procurado alguma forma de sentido nos registros do passado viu-se quase que obrigado a enxergar a violência como um fenômeno marginal” (ARENDT, 2001, p. 16). Essa crítica é válida por toda uma tradição de pensamento que se encerrou na legitimação da violência. Aspectos desse raciocínio ecoam nas questões decorrentes desse tema sobre as quais o filósofo italiano Giorgio Agamben vai pensar, situando-as no contexto histórico do final dos anos 1960 e também do século XX, de modo geral. Hannah Arendt não aceita e repudia a violência. Jean-Paul Sartre, embora também a conteste, a considera um meio para o homem repensar a sociedade, a si mesmo e se recriar. As confusões e as apologias acerca de atos violentos, mesmo que em defesa de algum ideal, são despropositadas e suas consequências terrificantes. A própria legitimação da violência, seja na forma do “olho por olho, dente por dente” – a Lei de Talião para a emergência dos atos de vingança e justiçamentos –, seja na defesa do endurecimento dos instrumentos estatais de repressão, apenas dificulta a superação da “banalidade do mal” no presente. Basta lembrar de Eichmann em Jerusalém (2013b), em que Arendt desloca a questão do mal e da ação humana para um outro nível. Destacando as relações das forças subterrâneas cambiantes entre os poderes exercidos pelos sujeitos sociais e a violência exercida pelos homens, Arendt reafirma a definição de política, não apenas na visada da relação Estado e sociedade, mas como uma das relações mais elementares e cotidianas existentes entre os homens. Justifica-se assim que o poder, ao contrário da violência, não precise ser justificado, mas sim legitimado. Sempre que as pessoas se unem e agem em conformidade, esse poder emerge. Sua legitimidade decorre da motivação inicial. Hannah Arendt, com essa interpretação, aniquila o que se denomina como “equação ordinária”. Ela entende que a relação entre “violência e poder assenta-se na compreensão do governo como a dominação do homem pelo homem através da violência” (ARENDT, 2001, p. 41). Esta só tem completude quando é “re-ação” na medida, como por exemplo os casos de legítima defesa. A violência torna-se despropositada quando se transforma em estratégia, ou seja, ao ser racionalizada, instrumentalizada, e se converte em princípio e não em fim de uma ação, como ocorreu nos sistemas totalitários e em vários regimes ditatoriais pelo mundo no século XX, como em África, por exemplo. 57

Hannah Arendt assevera que a violência não é bestial nem irracional. É força incontrolável e inerente a todos os homens, mesmo quando motivada por sentimentos tidos como irracionais. Estimulante às ações violentas, “o ódio não é [...] uma reação automática à miséria e ao sofrimento, ninguém reage com ódio a uma doença incurável ou a um terremoto” (ARENDT, 2001, p. 47). Assim, a violência e os sentimentos imanentes a ela só se tornam irracionais quando se dirigem a substitutos, elementos de direcionamento racional de sua vazão, quando a injustiça é substituída pela hipocrisia. A análise arendtiana da violência e do poder pode ser entendida como uma crítica em torno das contradições do poder no século XX. No seu entendimento, o mesmo homem que viaja à Lua é incapaz de resolver as misérias da humanidade, como a guerra e a fome. “É como se tivesse caído no encantamento de uma terra de fadas que permite realizar façanhas fantasticamente extraordinárias, sob a condição de realizar o impossível, mas não o possível, de não resolver as questões cotidianas” (ARENDT, 2013a, p. 122). Diante disso, cabe ressaltar o que Arendt pensa a respeito do totalitarismo:

Em meus estudos sobre o totalitarismo tentei mostrar que o fenômeno totalitário, com seus berrantes traços antiutilitários e seu estranho menosprezo pela frustração pela fatualidade, se baseia, em ultima análise, na convicção de que tudo é possível, e não apenas permitido, moralmente ou de outra forma, como o niilismo primitivo (ARENDT, 2001, p. 123).

Para compreender um fenômeno sem par na história humana, Hannah Arendt utilizou-se do niilismo primitivo, que guarda em si a terrível constatação do esvaziamento completo do sentido da vida entre os homens, para explicar o totalitarismo, “pois uma sociedade de massas nada mais é que aquele tipo de vida organizada que automaticamente se estabelece entre seres humanos que se relacionam ainda uns aos outros mas que perderam o mundo outrora comum a todos eles” (ARENDT, 2001, p. 126). Como valorizar a construção de relações interpessoais, comunitárias, nacionais entre grupos pautados no diálogo e na reflexão? Essa questão versa sobre uma postura ética. Entretanto, os horrores dos séculos XX e XXI – as duas Guerras Mundiais, a descolonização, o conflito árabe-israelense, a Guerra do Iraque e do Afeganistão, os atentados terroristas locais, como ETA, IRA, e ao World Trade Center, em 11 de setembro de 2001 – pontuam, mas não constituem o retorno às 58

práticas de violência que a sociedade contemporânea tenta sinalizar como eliminadas do espaço público desde a Revolução Francesa. Surpreendido pelos acontecimentos em Nova Iorque, em setembro de 2001, Homi K. Bhabha, então professor da Universidade de Harvard, ficou impossibilitado de sair dos Estados Unidos e comparecer a um congresso em Berlim. Sua fala realizou-se, graças às novas tecnologias, por meio de videoconferência. Ele destaca em seu texto “Democracia des-realizada”, especialmente escrito para o congresso, o que as imagens, recebidas em tempo real, do atentado terrorista legaram à globalização. Enfatiza também que o que era apenas mise-en-scène hollywoodiana passou a expressar o que viriam a ser os atos de guerra.

A história limitada e sitiada por um choque de civilizações é sempre convocada para justificar a destruição indiscriminada de civis que são suspeitos, em razão de sua cultura (considerada uma segunda natureza), imediatamente culpada por causa de suas tradições e temperamento. (BHABHA, 2002, p. 68, grifos do Autor)

No caso dos enfrentamentos, o argumento civilizacional é menos visível, mas bastante insidioso em tempos de paz. Mas como lidar com o fracasso da democracia? De que tipo de entendimento e de crítica cultural se fará uso numa hora como essa? Propõe, então, o pensador indiano que se considere a democracia como algo “des-realizado” [des-realized], partindo do conceito de distanciamento proposto por Bertold Brecht: “uma distância crítica ou alienação desvelada no início da nomeação da construção da experiência democrática e suas expressões de igualdade” (BHABHA, 2002, p. 70, grifo do Autor). Outro sentido proposto é o de “des-realização”, na acepção surrealista, quando o significado empregado não é o próprio da coisa dada, com a finalidade de desfamiliarizar para frustrar a expectativa. Em ambos os sentidos, Bhabha repensa uma fase anterior à globalização, responsável pelo esgarçamento e pela fragilidade das transformações do século XX: os impérios coloniais. E assevera: “no centro mesmo da democracia, testemunhamos este esgarçamento, a des-realização dialética entre o epistemológico e o ético, entre a descrição cultural e o julgamento político” (BHABHA, 2002, p. 71). Bhabha discorda de Hannah Arendt quanto ao “novo” proposto pelas mudanças globais. Para ele, “é apenas um destino histórico que está no meio de nós como o fantasma do futuro” (BHABHA, 2002, p. 72). Por isso, repensar, na pós- 59

colonialidade, valores, tais como nacionalidade efetiva versus nacionalidade formal, Estado-nação, soberania, cidadania, demanda reconhecer “as contingências e contiguidades de uma nova cartografia do globalismo” (BHABHA, 2002, p. 72) que sofreram mutações e metamorfosearam-se na “relação privilegiada Local-Global que prevalece no Sul (trata-se de uma nomenclatura pós-colonial)” (BHABHA, 2002, p. 72, destaques do Autor). Mas existe uma área intermediária em que se pode avaliar os limites jurisdicionais entendidos como “nacionais, desnacionais, transnacionais, pós- nacionais” do regime global. Este é um lugar existencial e ético das culturas, um “terceiro espaço, uma relação de contiguidade entre as forças sociais e psíquicas, mais velhas e mais novas” (BHABHA, 2002, p. 76, grifos do Autor). A prática cultural “pode tanto dar sentido, e sobreviver, às guinadas da história e seus sujeitos e objetos transacionais” (BHABHA, 2002, p. 76), como retomar, o que para o pensador está ecoando em todo seu texto, a expressão “NADA É TÃO VELHO QUE NÃO POSSA SER INVENTADO” (BHABHA, 2002, p. 77, grifos do Autor). Isso reverbera nas jurisdições imprecisas das vidas política e cultural por entre as fraturas e deslocamentos do Império – e aqui Bhabha se refere explicitamente ao imperialismo norte-americano. Este é o ponto fulcral de seu pensamento: a exigência translacional em realizar o direito ético e político de narrar. A expressão direito de narrar significa “um ato de comunicação por meio do qual a narrativa de temas, histórias e memórias é parte de um processo que revela a transformação do agenciamento humano” (BHABHA, 2002, p. 78).

O que quero dizer com narração é muito próximo da avaliação de Hannah Arendt sobre a capacidade de ação e de discurso dos agentes emancipados nos grupos sociais. Ação e discurso estão no meio dos homens, na medida em que estão direcionados para eles e revelam a capacidade de seus agentes emancipados mesmo se o conteúdo é exclusivamente objetivo, concernente a assuntos do mundo das coisas. (BHABHA, 2002, p. 78, grifos do Autor).

Retomando o início do ensaio com a imagem das torres do World Trade Center destruídas e o valor simbólico do crepúsculo dos ídolos, Homi K. Bhabha encerra seu texto dizendo: “tais dias que fantasmagoricamente assombram nosso tempo e nossas pátrias confrontam nosso senso de progresso com o desafio do 60

escombro12 (BHABHA, 2002, p. 78, grifo do Autor). A noção de escombro, partindo do pensamento de Wittgenstein, “não é um lugar [...] aonde se pode chegar com uma escada; o que se necessita é uma visão percuciente que revele um espaço, um caminho no mundo, que é normalmente ofuscado pelas idas e vindas do progresso” (BHABHA, 2002, p. 78).

Nem construção [built], nem desconstrução [des-realized], o escombro [unbuilt] é a criação de uma forma cuja ausência virtual levanta a questão do que quer dizer começar de novo, no mesmo lugar, como se fosse noutro lugar, sítio adjacente ao desastre histórico ou trauma pessoal. O resto da ruína que acaso sobrevive carrega a memória das torres caídas: Babel, por exemplo, e as lições de infinitas escadas que subitamente desabam sob nossos pés (BHABHA, 2002, p. 79).

Ao cotejar a tradução com o original do texto em inglês escrito por Bhabha, percebe-se a sutileza empregada pelo pensador ao sugerir o desafio do escombro. Veja-se que o pensador não empregou os vocábulos ingleses debris ou rubble, cuja tradução seria escombro em português, tampouco a sinonímia ruins, que pode ser traduzida por ruína; todas essas significações que expressam algo imanente, em repouso invariável. Para ele, é o desafio do não-construído, ou, ressemantizando, o desafio do que não pode ser construído. A partir daí, pensar os escombros da memória, utilizando a definição de escombro [unbuilt] proposta por Bhabha, a partir do pensamento de Wittgenstein, é o próprio desafio. Se os restos da ruína que carregam a memória e a necessidade de haver um lugar que escape às idas e vindas do progresso são as condições para o desafio, então ele só pode ocorrer na memória. Somente na memória pode haver o não-constuído, a “forma cuja ausência virtual levanta a questão”. E o processo de reconstrução se dá por meio da rememoração. Se, como Walter Benjamin preconizou, os acontecimentos são uma cadeia de fatos que, acumulados como ruínas sobre ruínas, são lançadas aos pés do anjo da história, urge pensar, primeiramente, o direito de narrar, como propõe Homi K. Bhabha. Podem ser retomados, então, dois ensaios benjaminianos contemporâneos intitulados “Experiência e pobreza” (1987), de 1933, e “O narrador” (1987), escrito

12 Motivada por essa expressão proposta por Homi K. Bhabha, a pesquisadora Moema Parente Augel a utilizou como título de sua tese de doutoramento, defendida na UFRJ em 2005, que resultou no livro O desafio do escombro: nação, identidades e pós-colonialismo na literatura da Guiné-Bissau, publicado pela Garamond e pela Fundação Biblioteca Nacional, em 2007. 61

entre 1928 e 1935. Ambos começam de forma bastante semelhante. Fundam-se naquilo que o filósofo alemão chama de perda ou de declínio da experiência (Verfall der Erfahrung). O termo experiência, à maneira da filosofia clássica, adquire força e substancialidade, nele repousando a possibilidade de tradição compartilhada por uma comunidade humana. Dota-se a experiência de um “sentido concreto de transmissão e de transmissibilidade”, segundo a reflexão de Jeanne Marie Gagnebin (2006, p. 50). O que mais importa é a transmissão da história de geração para geração, em detrimento da transmissão de experiências individuais. Entretanto, Benjamin preocupa-se com a perda da experiência e, em sua consequência, com o desaparecimento das formas tradicionais de narrativa. A recuperação da transmissibilidade das narrativas pode ser feita por meio da rememoração dos escombros da memória. E as formas a que se vincula são também as escritas de si e o testemunho, como se verá a seguir. 62

3.1. As escritas de si e o testemunho

Ao se pensar a respeito da representatividade das escritas de si para a África e seus sujeitos, procura-se analisar o que propõe o pesquisador camaronense Achille Mbembe no ensaio intitulado “Formas africanas da escrita de si” (2010). Provocado por uma epígrafe de Gilles Deleuze que diz que “a única subjetividade é o tempo” (DELEUZE apud MBEMBE, 2010, p. 1), o texto centra-se no corpo para fins de cálculo do subjugo político a que estiveram atrelados, durante o transcorrer do século XIX, os africanos – no texto, entendidos como uma unidade, apesar de sua reconhecida subjetividade múltipla –, a fim de tentar explicar a importância dada a teorias como da degeneração física, moral e política dos negros, e, posteriormente, dos judeus. Uma das justificativas seria a utilização de ideias canônicas. Cindidos em si, os africanos foram transformados em objetos, movimento decorrente da colonialidade13 do princípio da posse, resultando na perda da familiaridade do eu consigo mesmo, a ponto de o sujeito, alienado de si, ser relegado a uma forma de identidade sem vida (condição primária do estado-objeto). Desse modo, não só o eu já não é reconhecido pelo outro, como também já não se reconhece a si mesmo. De acordo com as narrativas dominantes, o resultado da ação das ideias canônicas levaria o sujeito africano à desapropriação, processo em que os procedimentos jurídicos e econômicos conduzem à expropriação material. A isso, seguiu-se uma experiência singular de subjugação caracterizada pela falsificação da história pelo outro. A violência da falsificação e a expropriação material são consideradas os principais elementos da singularidade da história africana e da tragédia que lhe subjaz. Achille Mbembe considera que a escravatura, a colonização e o apartheid não só mergulharam o sujeito africano numa humilhação, num aviltamento e num sofrimento inomináveis, como também o segregaram em uma zona de não- existência e de morte social, caracterizada pela negação da dignidade, por pesados danos psíquicos e pelo tormento do exílio.

13 O conceito de colonialidade já era utilizado, na América Latina, por José Martí, e José Carlos Mariátegui, do movimento teórico de raízes andinas, antes de nomes projetados em nível mundial, como Arturo Escobar, Aníbal Quijano, Fernando Coronil, Walter Mignolo, dentre outros, apontados por Edgardo Lander (2000) como representantes de uma efervescente produção intelectual dedicada ao esforço de desconstrução do edifício moderno pela, nas palavras de Quijano (2002), descolonização do saber, do poder e do ser. 63

Diversos fatores impediram o desenvolvimento completo das concepções que poderiam ter contribuído para explicar o sentido do passado e do presente africano por meio de uma referência ao futuro. O mais importante desses fatores pode ser designado de historicismo. O esforço por determinar as condições em que o sujeito africano poderia tornar-se consciente de si levou em pouco tempo ao confronto de duas formas de historicismo que acabaram conduzindo a um beco sem saída. “A primeira delas, carregada de instrumentalismo e oportunismo político, poderia ser designada de afro-radicalismo. A segunda consiste no peso da metafísica da diferença (nativismo)” (MBEMBE, 2010, p. 2, grifos do Autor). O afro-radicalismo apresenta-se como democrático, radical e progressista, e serviu-se de categorias marxistas e nacionalistas para desenvolver um imaginário cultural e político em que a manipulação da retórica de autonomia da resistência e da emancipação constitui o único critério para determinar a legitimidade de um discurso africano autêntico. Já o nativismo desenvolveu-se a partir de uma ênfase na "condição nativa" que promoveu a ideia de identidade africana única assente na pertença da raça negra. O fundamento de ambas as correntes de pensamento é constituído por três acontecimentos históricos: escravatura, colonização e apartheid. Estes três elementos fundamentais funcionaram como centro unificador do desejo africano de se conhecer a si próprio, de recuperar o seu destino (soberania) e de ser dono de si mesmo no mundo (autonomia). O que se evoca desse texto é que Achille Mbembe, numa visão ampliada do que seriam as formas africanas de escrita de si, aponta para o caminho da história (tempo) enquanto lugar das subjetividades. É na literatura que se poderá haver uma possibilidade de escrita de si e a decorrente constituição das subjetividades multifacetadas. Ainda que a escrita de si seja uma prática historicamente comum entre sujeitos, é discreta a importância que se tem dado a esse tipo de registro. Contudo, deixa de lado a chamada escrita autorreferencial tão cara aos que se debruçam sobre os estudos da constituição do indivíduo da contemporaneidade. Trata-se de uma escrita que integra um conjunto de modalidades do que se convencionou chamar produção de si no mundo contemporâneo. 64

Concebendo a escrita de si como uma possível hermenêutica do sujeito contemporâneo ocidental, Michel Foucault (2006a) recorre à vida ascética, segundo a qual escrever era uma forma de disciplina através de que seria plausível abster-se de pensamentos impuros, ponto fulcral das ações vergonhosas. Para os ascéticos, observa Foucault, escrever era uma forma de tornar públicos os pensamentos e, assim, evitava-se o erro. Retomando um trecho de Vita Antonii de Atanásio, o próprio postula:

Eis uma coisa a observar para ter a certeza de não pecar. Que cada um de nós note e escreva as ações e os movimentos da nossa alma, como que para no-los dar mutuamente a conhecer e que estejamos certos que, por vergonha de sermos conhecidos, deixaremos de pecar e de trazer no coração o que quer que seja perverso. [...] escrevendo os nossos pensamentos como se os tivéssemos de comunicar mutuamente, melhor nos defendemos dos pensamentos impuros por vergonha de os termos conhecido. Que a escrita tome o lugar dos companheiros de ascese: de tanto enrubescermos por escrever como por sermos vistos, abstenhamo- nos de todo mau pensamento (ATANÁSIO apud FOUCAULT, 2006b, p.144- 145).

Escrever, dessa forma, consiste em uma atitude que supõe dar-se em companhia, uma atitude que atenua os perigos da solidão na medida em que permite o olhar do outro sobre o que antes se tinha apenas em mente, seja através de simples criações mentais, seja através de experiências. A partir do momento em que se dispõe a transformar sua trajetória de vida em um texto, a protagonista de Teoria geral do esquecimento (AGUALUSA, 2012a) traz, ficcionalmente, para junto de si não apenas pessoas com quem partilhou experiências, mas também a visão dos lugares que de alguma forma foram palco de momentos marcantes em sua trajetória. O momento da escrita constitui um “passar a limpo”, um momento de observar o sujeito que foi e que resultou no sujeito que é no presente. Talvez esse momento de pôr-se na escritura represente a possibilidade de unir esses dois entes – o do passado e o do presente – como condição para alcançar uma totalidade que jamais experimentou. Uma operação transforma a vida de Ludovica Fernandes Mano e parece ser determinante enquanto constituição identitária dela como sujeito. Toda sua trajetória, relatada no romance, transparece ao leitor como a de um sujeito que custou a entender e aceitar a vida. Todas as arbitrariedades que o tempo a fez ver e viver transformaram-na num ser descrente e espectral que passaria o resto de sua vida enclausurada. Já no início do romance, o leitor toma conhecimento de que a 65

protagonista sofria de agorafobia e bullying desde criança (AGUALUSA, 2012a, p. 11). Além disso, acontecera-lhe aquilo que chamava de acidente, que o leitor só decifrará, ainda que suspeite, no antepenúltimo capítulo do livro (AGUALUSA, 2012a, p.165-167). Eventos tão traumáticos foram responsáveis, em parte, pelo seu enclausuramento em si.

Sinto medo do que está para além das janelas, do ar que entra às golfadas, e dos ruídos que traz. Receio os mosquitos, a miríade de insetos aos quais não sei dar nome. Sou estrangeira a tudo, como uma ave caída na correnteza de um rio. Não compreendo as línguas que me chegam lá de fora, que o rádio traz para dentro de casa, não compreendo o que dizem, nem sequer quando parecem falar português, porque esse português que falam já não é o meu. (AGUALUSA, 2012, p. 31 – grifos do Autor).

Põe-se em questão, aqui, a atitude de narrar-se e seus desdobramentos. Narrar-se constitui, assim, uma forma de o narrador compreender sua própria história de vida; constitui, por sua vez, um comportamento frequente na contemporaneidade, que tem sido tomado como uma maneira possível de compreensão de si.

Escrevo tateando letras. Experiência curiosa, pois não posso ler o que escrevi. Portanto, não escrevo para mim. Para quem escrevo? Escrevo para quem fui. Talvez aquela que deixei um dia persista ainda, em pé e parada e fúnebre, num desvão do tempo – numa curva, numa encruzilhada – e de alguma forma misteriosa consiga ler as linhas que aqui vou traçando, sem as ver (AGUALUSA, 2012a, p. 169 – grifos do Autor).

Para entender o comportamento do sujeito contemporâneo ocidental, Foucault propôs-se a recuar da noção tradicional de gnôthi seautón (conhece-te a ti mesmo) para a noção de epiméleia heautoû (cuidado de si). Esta, representada por:

um corpus definindo uma maneira de ser, uma atitude, formas de reflexão, práticas que constituem uma espécie de fenômeno extremamente importante, não somente na história das representações, [...] mas na própria história da subjetividade (FOUCAULT, 2006a, p.15).

E é do cuidado de si que aparece o sujeito que observa a si mesmo, que se preocupa consigo mesmo. É chegado o momento em que o sujeito é interpelado a cuidar de si mesmo. E isso acontece, segundo Foucault, desde Sócrates e se estende por toda a cultura grega, helenística e romana; em Platão, entre os Cínicos, os Estoicos, em Epíteto. 66

Tomando o cuidado de si como uma atitude que resulta em outras, por meio das quais o sujeito tende a olhar para dentro de si num ato reflexivo, encara-se a escrita de si como um desses atos em que o agente se desdobra em uma entidade a ser revista. O sujeito da escrita de si revê seu passado com um intuito que, muitas vezes, se localiza no limiar entre a reorganização de sua vida e a remissão por alguns de seus atos. Foucault adverte que entre os Pitagóricos, Socráticos e Cínicos “não se pode aprender a arte de viver, a technê tou biou, sem uma askêsis, que é preciso entender como um adestramento de si mesmo” (FOUCAULT, 2006b, p.146 – grifos do Autor). A escrita de si estaria, entre essas formas de adestramento de si aconselhadas já então por Epíteto e Sêneca, como forma de meditação do pensamento em preparação para o real. Ao mesmo tempo, o autor toma emprestado de Plutarco a noção de “função etopoiéitica” da escrita que a coloca como “uma operadora de transformação da verdade em êthos” (FOUCAULT, 2006b, p.147 – grifos do Autor). Uma escrita que se materializa em duas formas distintas: através dos hupomnêmata – livros/manuais destinados a servir de guias de conduta, compostos geralmente de fragmentos de outras obras, citações, debates, etc. – e através das correspondências – textos que constituem uma prática de exercício pessoal que atua sobre quem lê e sobre quem escreve, num exercício recíproco entre um eu e um tu que interagem através do texto escrito. A escrita de si, nesse caso exemplificada pela correspondência, proporciona ao sujeito empreender dois movimentos imprescindíveis para aquele que se diz: sentir-se preparado para o real em face da reorganização de sua vida no plano narrativo e entregar-se aos seus interlocutores, transformando o destinatário dessa escrita numa segunda pessoa com quem partilha o que escreve. A escrita dos hupomnêmata está voltada para a constituição de si e, portanto, para o cuidado de si. Para Sêneca, defende Foucault, é uma escrita que fixa elementos adquiridos e que permite reconstituir o passado. É uma prática comum entre Estoicos e Epicuristas e que consiste em uma recusa em relação ao futuro e, ao mesmo tempo, em um “valor positivo atribuído à posse de um passado, do qual as pode gozar soberanamente e sem perturbação” (FOUCAULT, 2006b, p.150). A discussão foucaultiana encaminha-se para a defesa de que não se pode fazer a história da cultura de si sem que se recorra à correspondência como modelo de escrita de si. Nessa escrita, o narrador apresenta-se como sujeito de ação a 67

expor-se em corpo e alma para o outro. Logo, é uma escrita que expõe o homem comum, em seu cotidiano, a ocupar-se consigo mesmo. Quando a narrativa de si retrata um dia vulgar, ela se “abeira” de uma prática à qual Séneca faz alusão na carta 83: “fazer a revisão do seu dia’: é o exame de consciência” (SÉNECA apud FOUCAULT, 2006b, p.159-160). Portanto, a escrita de si consiste em rever um passado com o intuito de avaliar os erros cometidos para, assim, tornar-se melhor. A protagonista do romance de Agualusa demonstra essa postura em seu diário como demonstra o trecho a seguir:

Nunca mais consegui sair à rua sem experimentar uma vergonha profunda. Agora passou. Saio à rua e já não sinto vergonha. Não sinto medo. Saio à rua e as quitandeiras cumprimentam-me. Riem-se para mim, como parentes próximas. As crianças brincam comigo, dão-me a mão. Não sei se por eu ser muito velha, se por eu ser tão criança quanto elas (AGUALUSA, 2012a, p. 167 – grifos do Autor).

Contemporaneamente, Diana Klinger circunscreve as escritas de si em um campo mais amplo, que “compreende não somente os discursos assinalados por Foucault, mas também outras formas modernas que compõem uma certa “constelação autobiográfica”: memórias, diários, autobiografias, e ficções sobre o eu” (KLINGER, 2013, p. 34). Deste modo, tem-se uma visão do volume de textos denominados escritas de si e também do quanto escrever sobre si tornou-se uma prática comum entre os homens. No auge do movimento estruturalista, havia a percepção de que não interessava à crítica literária a vida do autor que existiria fora do texto. Com isso, a questão da escrita autobiográfica, sob o enfoque da “morte do autor”, seria uma aporia. Dois artigos emblemáticos dessa postura estão em sintonia com a produção crítica que se enlaçou com a psicanálise lacaniana e com a filosofia de Jacques Derrida, que desconstruía a metafísica ocidental: “A morte do autor” (2004b), de Roland Barthes, de 1968, e “O que é um autor?” (2009), de Michel Foucault, de 1969. Data do mesmo período o livro O pacto autobiográfico (2008), de Philippe Lejeune, que já havia publicado outros livros sobre a autobiografia, no início dos anos 1970. Lejeune considera que Roland Barthes por Roland Barthes (2003), autobiografia escrita em linguagem de ensaio, “propõe um jogo vertiginoso que 68

acaba por criar no leitor a ilusão de que não está fazendo o que entretanto está” (LEJEUNE, 2008, p. 65). Para Lejeune, inicialmente, autobiografia é definida como “narrativa retrospectiva, em prosa, que uma pessoa real faz de sua própria existência, quando focaliza sua história individual, em particular a história de sua personalidade” (LEJEUNE, 2008, p. 14). Posteriormente, o próprio Lejeune reformula tal conceito, apresentando duas possibilidades de se compreender autobiografia. Uma delas refere-se ao conceito cunhado por Vapereau, em que autobiografia é definida como uma “obra literária, romance, poema, tratado filosófico etc., cujo autor teve a intenção, secreta ou confessa, de contar sua vida, de expor seus pensamentos ou de expressar seus sentimentos” (LEJEUNE, 2008, p. 53). A segunda possibilidade diz respeito ao conceito adotado por Larousse, em que autobiografia é definida como “vida de um indivíduo escrita por ele próprio” (LEJEUNE, 2008, p. 53). Lejeune afirma que a autobiografia é uma espécie de confissão, e se concebermos o diário como um tipo particular de confissão, assim como acontece com as autobiografias, é possível aproximarmos estes dois gêneros da “escrita memorialista”. A questão do sujeito continua central nos debates atuais sobre as escritas biográficas e autobiográficas, apesar da preocupação em distinguir o sujeito empírico daquele que fala de si nos relatos autobiográficos, na perspectiva da narratologia. No senso comum perdura certa confusão entre narrador e autor, sobretudo nas narrativas em primeira pessoa. Paralelamente a essas discussões acerca do sujeito, a categoria de “autor implícito” refere-se ao que define o ensaísta francês Michel Butor, em artigo sobre o uso dos pronomes pessoais no romance. Ele afirma que:

O narrador [...] não é uma primeira pessoa pura. Nunca é o autor em termos literais [...]. Ele próprio é uma ficção, mas entre essa multidão de personagens fictícios, todos naturalmente na terceira pessoa, ele é o representante do autor, sua persona (BUTOR, 1974, p. 49 – grifo do Autor).

O controverso termo autoficção ainda hoje precisa ser circunscrito. Por isso, é necessário inseri-lo em um campo mais amplo. Nesta dissertação, considera-se o campo das escritas de si que abarca não somente os discursos tradicionais, mas também as ficções sobre o eu, apontadas por Diana Klinger ( 2013, p. 34). 69

Esquematicamente, o termo autoficção foi criado por Serge Doubrovsky. Ele se sentiu desafiado por Philippe Lejeune, que, no livro O pacto autobiográfico, indagava se seria possível haver um romance com o nome próprio do autor, já que nenhum lhe vinha à mente (LEJEUNE, 2008, p. 31). Doubrovsky decidiu então escrever um romance em que o protagonista-narrador tinha seu próprio nome. Assim, criou o neologismo autoficção para qualificar seu livro Fils, de 1977. A autoficção, tal como concebida por Doubrovsky, seria uma variante “pós- moderna” da autobiografia, na medida em que ela não acredita mais numa verdade literal, numa referência indubitável, num discurso histórico coerente e que se sabe em reconstrução arbitrária e literária de fragmentos esparsos de memória. Posteriormente, de forma mais extensiva, Vincent Colonna (1989) considera o conceito como o conjunto de procedimentos de ficcionalização de si em qualquer tempo, sem se limitar à contemporaneidade. Sem dúvida, o que reforça a aparente oposição é o sentido que ambos atribuem ao conceito de ficção. Para Colonna, a autoficção é uma “obra literária na qual um escritor inventa para si uma personalidade e uma existência, conservando sua identidade real (seu verdadeiro nome)14” (COLONNA apud LAOUYEN, 2000, p. 12) Se para Doubrovsky a escrita autoficcional é identificável pela condição da homonímia entre autor-narrador-personagem, para Colonna tal condição não se faz necessária para a identificação da escrita. A autoficção é ficção. O sujeito narrado é um sujeito fictício justamente porque é narrado, ou seja, é um ser de linguagem. E, dessa forma, não pode haver adequação entre o autor, o narrador e o personagem, entre o sujeito do enunciado e o sujeito da enunciação, entre o sujeito em princípio pleno (o escritor) e o sujeito dividido, disperso, disseminado, da escrita. A narrativa contemporânea esforça-se em embaralhar as marcas e os sinais, em refinar os efeitos de polifonia através de vários procedimentos de escrita, que vão do duplo à ventriloquia, passando pelo tratamento de diferentes vozes, “ao uso dos testemunhos e dos “relatos de vida” na investigação social, e à narração autorreferente nas discussões teóricas e epistemológicas”, como entende o espaço biográfico a crítica literária Leonor Arfuch (2010, p. 51).

14 “œuvre littéraire par laquelle un écrivain s'invente une personnalité et une existence, tout en conservant son identité réelle (son véritable nom)” (COLONNA apud LAOUYEN, 2000, p. 12). 70

O que permite ultrapassar o chamado “umbral da “autenticidade””, com maior frequência na atualidade, afirma Arfuch, “é a consciência do caráter paradoxal da autobiografia, a admissão da divergência constitutiva entre vida e escrita, entre o eu e o “o outro”, a renúncia ao desdobramento canônico de acontecimentos, temporalidades e vivências, bem como a dessacralização da própria figura do autor” (ARFUCH, 2010, p. 137). Os personagens estão inseridos num contexto discursivo em que todos representam o autor implícito. É graças à possibilidade de criar um duplo de si que Agualusa pode expor-se, desvelando uma “literatura de testemunho” que tem de transcender a mera verossimilhança, exigindo uma reformulação artística, a fim de alcançar seu objetivo de transmissão da experiência vivida (SELIGMANN-SILVA, 2013, p. 380). Nesse sentido, a crítica literária argentina ressalta que:

O discurso da memória, transformado em testemunho, tem a ambição da autodefesa; quer persuadir o interlocutor presente e assegurar-se uma posição no futuro; justamente por isso também é atribuído a ele um efeito reparador da subjetividade. (SARLO, 2007, p. 51).

José Eduardo Agualusa, ao criar os personagens que se desdobram no autor, encontrou uma estratégia narrativa para se colocar em cena de maneira especular, já que se vê como um outro que escreve, como um outro duplo de si. A particularidade da imaginação autobiográfica reside em sua capacidade de desdobramento narcísico, o que permite ao sujeito inventar um duplo para si e tornar possível uma forma de autoficcionalização, reparando, assim, a subjetividade. Na medida em que o eu só se forma na relação com o outro, como salienta Jacques Lacan, o pesquisador Evando Nascimento enfatiza a correlação que se deve estabelecer entre autoficção e alterficção. Se é verdade que, como se diz, “minha vida daria um romance”, a autoficção é “um dispositivo que nos libera a reinventar a mediocridade de nossas vidas, segundo a modulação que eventual e momentaneamente interessa”. Se cada um de nós tem várias facetas, várias identidades, “essa heteronomia criativa” faz com que, debaixo de um nome / rosto único, cada pessoa possa ser múltipla (NASCIMENTO, 2010, p. 201). O testemunho é aquele que se constitui enquanto se narra. E ele se narra no entrelugar entre a verdade e o engano. O que ele testemunha ganha significado 71

como narrativa, literatura ou fonte documental, que tenta que se equilibrar na difícil relação entre “veracidade” da história e “fidelidade” da memória, reflexões importantes assinaladas por Paul Ricoeur em sua obra A memória, a história, o esquecimento (2010). A escrita do testemunho é a territorialização dos fatos. Isto quer dizer que, longe da ideia de “veracidade”, “realidade” ou “compromisso com o real”, com aquilo que “realmente” aconteceu, a escrita materializa sentidos que foram sendo dados e “autorizados” por aquele que narra. A escrita existe em função de um eu que procura oferecer ao mundo princípios de realidade. Existe certa vontade de humanização da realidade, que cria espaços de referencialidade e se torna suporte de materialização do autor, esse mesmo uma construção nem sempre fácil entre o que narra e como é lido, recepcionado pela dimensão do outro. Em Teoria geral do esquecimento (2012a), os testemunhos presentes no texto são todos ficcionalizados. Alguns parecem se referir a vivências do próprio autor, como no caso do relato do oficial do exército do MPLA, Magno Moreira Monte, mais conhecido como Comandante Monte. Ao cantarolar uma velha canção de , instigado pela memória, Monte recorda-se de quando aprendeu a música e relata a experiência decorrente do estímulo que a letra provocou em si. Muitos dos dados ali relatados são oriundos das experiências de Agualusa (2012a, p. 118-119). Interessante ressaltar o entrecho a seguir, relativo ao diário de Ludovica curiosamente intitulado “últimas palavras”, em que a protagonista se trata em segunda pessoa em relação à terceira como se vê:

Ludo, querida: sou feliz agora. Cega, vejo melhor do que tu. Choro pela tua cegueira, pela tua infinita estupidez. Teria sido tão fácil abrires a porta, tão fácil saíres para a rua e abraçares a vida. Vejo-te a espreitar pelas janelas, aterrorizada, como uma criança que se debruça sobre a cama, na expectativa de monstros. Monstros, mostra-me os monstros: essas pessoas nas ruas. Minha gente. Lamento tanto o tanto que perdeste. Lamento tanto. Mas não é idêntica a ti a infeliz humanidade? (AGUALUSA, 2012a, p. 170 – grifos do Autor)

A iniciar pelo título, este proporciona pelo menos duas interpretações. A primeira, no sentido de que foram as últimas palavras em vida da protagonista ou as registradas em seu diário. Num outro enfoque, anuncia-se o fim do romance neste 72

capítulo, ou seja, o título se refere ao ofício do escritor. Entretanto, o conteúdo apresentado mostra-se uma encenação entre o duplo e a ventriloquia. Logo na primeira frase, insinua-se o início de uma escrita à maneira das missivas de despedida. Mas, a continuação apresenta-se intransitiva com o enunciado: “sou feliz agora”. Adiante, Ludo dirige-se a si mesma, denunciando que a figura receptora da mensagem é em segunda pessoa. A narração passa então a ser feita por um narrador que, presente no texto, vê seu duplo do alto, efeito resultante de um distanciamento. Contudo, a oposição entre “monstros” e “minha gente” deflagra uma ruptura do eu enunciador, pois quem considera as pessoas da rua como “monstros” é a Ludo do início do romance e quem está a relatar nesse ponto é o seu duplo que as qualifica como “minha gente”. Ora, se a posição distanciada serve para marcar a diferença do eu cindido em seu duplo, o deslocamento produzido configura uma marcada perspectiva teatral, no sentido de que o olhar estranho sobre o duplo de si não se dá no mesmo plano, contrapondo um ponto de vista determinado a outro que se lhe opõe. Desse modo, o ato de narrar passa a ser de um relato sobre si e sobre o outro. Passa, então, a vetor do testemunho do descolamento do eu. É, a partir da Segunda Guerra Mundial, que a literatura de testemunho ganha destaque ao retratar as experiências limítrofes de indivíduos que foram vítimas dos horrores perpetuados nos campos de concentração nazistas. O escritor Primo Levi, judeu italiano, sobrevivente de Auschwitz, é sem dúvida um dos maiores expoentes deste estilo literário, sendo referência nos estudos sobre a matéria. Na perspectiva de Eric Hobsbawn (1995), Primo Levi conseguiu analisar com habilidade alguns elementos fundamentais da “era das catástrofes”. A partir das representações adotadas na obra de Levi, a rememoração e o testemunho anunciam a manutenção de uma experiência individual e, ao mesmo tempo, a constituição da própria história como lembrança, através de uma memória coletiva. Entender os fenômenos acontecidos exige uma reflexão a respeito da própria representação dos fenômenos, e significa uma impossibilidade de representação da catástrofe, por exemplo. Como elucida Márcio Seligmann-Silva:

na medida em que tratamos da literatura de testemunho escrita a partir de Auschwitz, a questão do trauma assume uma dimensão e uma intensidade inauditas. Ao pensar nesta literatura, redimensionamos a relação entre linguagem e o real: não podemos mais aceitar o vale-tudo dito pós-moderno que acreditou ter resolvido essa complexa questão ao firmar simplesmente 73

que “tudo é literatura/ficção”. Ao pensarmos Auschwitz, fica claro que mais do que nunca a questão não está na existência ou não da “realidade”, mas da nossa capacidade de percebê-la e simbolizá-la (SELIGMANN-SILVA, 2003, p. 49-50).

A literatura de Shoah – termo utilizado desde a diferenciação feita do termo holocausto, que estaria carregado de sentido de sacrifício metafísico, e não uma catástrofe como significa a palavra alemã do dialeto judeu – está inserida nesta dificuldade de representação, justamente por ser uma literatura caracterizada principalmente por seu “excesso”, pelo testemunho das barbáries acontecidas dentro dos campos de extermínio. A Shoah é considerada um evento limite, a própria catástrofe por excelência.

Outra característica importante a respeito da literatura do Shoah é a falta de todo um aparato conceitual que descreva este evento, justamente pela sua dificuldade de representação, desta forma alguns autores usam o conceito Kantiano de “sublime”, entendido não no seu significado estético, sinônimo de “esplêndido”, “magnífico”, mas sinônimo de irrepresentável, sem limites de representação. (SELIGMANN-SILVA, 2003, p. 52-53)

Esta literatura de testemunho, mesmo encontrando problemas referenciais em torno da sua irrepresentabilidade, foi o caminho percorrido, por exemplo, por Primo Levi, após sua libertação do campo de Auschwitz. Nessa literatura vê-se a necessidade de falar, de escrever, de passar adiante a terrível experiência dos campos de concentração. Um ponto comum entre os sobreviventes, que decidirão não se calar, é a angustia de falar, testemunhar e não ser ouvido, não ser creditado, ser ignorado. Isso pode ser percebido nos sonhos em que Primo Levi tem no campo de concentração, sonho esse que é comum à maioria dos prisioneiros; esse sonho relata a angústia, sonho no qual a volta para casa, à felicidade de encontrar seus parentes e amigos, narrar sua experiência, contar o horror vivido e, de repente, com a consciência desesperada de que ninguém o escuta, de que os ouvintes levantam e vão embora, indiferentes. O espelhamento desse tipo de literatura pode se dar em relatos de experiências traumáticas que tenham ocorrido com quem narra. Desse modo, a preocupação que emana é uma determinada estetização da catástrofe. Seligmann- Silva assevera ainda que:

A metáfora fica bloqueada diante da manifestação do mal absoluto e da morte em um grau até então desconhecido; em vez da comparação a 74

linguagem tende para uma literalidade paradoxal, para uma manifestação, muitas vezes crua, do “real” como que “não simbolizado” (SELIGMANN- SILVA, 2003, p. 82 – grifo do Autor).

O testemunho é encarado como um ato autobiográfico, seja por meio da autobiografia, dos diários, das memórias ou das confissões. É um ato suscetível de modificar diretamente a vida do sujeito, justificando que o escrever sobre si é uma intervenção na história, que é reescrita pela maneira como o indivíduo gostaria de que a história tivesse acontecido, com novos diálogos, sentimentos e resolução do episódio. No romance Teoria geral do esquecimento (AGUALUSA, 2012a) as manifestações do testemunho se dão nas formas do diário de Ludo, dos seus escritos a carvão nas paredes do apartamento, dos poemas haikais (sob a forma mínima e essencial da palavra poética), além da escrita do próprio romance, visto que, denunciado pelo uso de recursos paratextuais, como a “nota prévia” (AGUALUSA, 2012a, p. 9) em forma de epitáfio, o autor-narrador torna-se um narrador obsignador – aquele que testemunha (biógrafo de Ludo) e que é indicado a assinar o testamento (a própria obra), apondo-lhe seu selo (a sua autoria). Assim, torna-se mais evidente essa necessidade que o sujeito moderno tem de dizer-se. Abrir mão de uma moral coletiva e voltar-se para o seu mundo interior significa, ao sujeito da escrita de si, dar conta de um passado sobre o qual não teve nenhum controle e, em certa medida, conceder-lhe uma reorganização que em tempo não lhe seria possível dar. O elemento imaginativo, portanto, garante-lhe a possibilidade de “editar” a vida e, talvez, transformá-la na vida que gostaria de ter tido. Há um regime de realidade responsável por colocar a obra, de forma muito particular, num limiar situado entre o ficcional e o factual. A autobiografia, mesmo a ficcional, assim como qualquer forma de autonarração, constitui um meio consistente através do qual o sujeito narrativo tem acesso a si mesmo, a sua história e a uma compreensão de si, justificando-se, dessa forma, a necessidade do sujeito em dizer-se. Seja um diário íntimo ou sejam os escritos a carvão, o produto final da escrita de si, a vida autonarrada, não pode eliminar a intenção de criar-se uma imagem também para o outro. Todavia, parece, cada vez mais notável, que esse retorno ao eu tenha resultado numa autocompreensão ou autoaceitação narcisista do indivíduo por si mesmo. 75

É interessante perceber como o sujeito da escrita de si agualusiana passa a se relacionar com o mundo ao seu redor, à medida em que se dispõe a narrar sua própria vida. Assim, escrever sobre si traz consigo, também, a tarefa de atualizar o passado e conservar a memória daquele que se narra, mesmo que, contraditoriamente, essa narrativa seja ficcional. 76

3.2. O romance angolano contemporâneo e suas estratégias

Partindo da premissa de que a literatura angolana contemporânea está intrinsecamente marcada por duas grandes tradições, herdadas da literatura ocidental e do patrimônio oral africano, numa relação de complementaridade e de mútua interação, ela assume um caráter eminentemente híbrido, caracterizado por uma miscigenação de gêneros e heranças culturais diversas que constroem, de certa forma, a busca da complexa e multifacetada identidade nacional angolana. Se, na cena atual, há um consenso sobre a produção literária ocidental, ela se relaciona à pluralidade de inovadoras estratégias empregadas no romance. Mas a pluralidade não é fator eloquente o suficiente para caracterizar o presente literário. Não somente pela obviedade, mas por conta do caráter generalizante. A tarefa de procurar os indícios que singularizem a prosa de ficção feita nos últimos anos é árdua. Há quem se disponha a confrontar diretamente no presente, em qualquer área do conhecimento, vendo-se instigado a levar a cabo a tarefa de coletar perguntas que emergem e arriscar respostas duvidosas. Sujeitar-se às efemérides, como perspectiva crítica, é embrenhar-se pelo bosque das incertezas. Não apenas dispondo-se ao provisório da análise incipiente, mas também acatando a possível transitoriedade do objeto de estudo. A perspectiva crítica que almeje arrostar o desafio de mapear a cena literária contemporânea, precisa do distanciamento reflexivo para dissecar o corpus de novos autores, bem como suas publicações. As ferramentas de trabalho da crítica são forjadas simultaneamente ao objeto de análise. Garimpar novos valores nas próprias narrativas e estabelecer critérios de qualidade são condições primárias para falar dos sintomas provocados pela configuração do sistema literário, expondo às circunstâncias o ordenamento de inúmeras descentralizações que as múltiplas dicções trazem ao centro do debate. Tomando como um primeiro indício acerca da crise da narrativa contemporânea, Vera Follain de Figueiredo identifica que “é pelo jogo de espelhamento entre as posições do autor, do personagem e do leitor que a fantasia volta para desregular a boa relação da ordem do discurso, recusando-se a divisão que organiza a ficção dentro da realidade, quebrando-se a convenção do relato partilhado” (FIGUEIREDO, 2002 – cf. site). Ao que parece, destaca a pesquisadora, uma vertente da literatura contemporânea se instaura como jogo de espelhos, que 77

expõe sua impotência de fazer com que as palavras representem a realidade. Evidencia-se, assim, um caráter de certo ceticismo da literatura diante da pretensão ocidental de retratar artisticamente a realidade tácita a fim de transformá-la. Resguardada a discussão benjaminiana de que “a arte de narrar está em vias de extinção” pela ausência de bons narradores, tome-se a defesa do autor para quem “a experiência que passa de pessoa a pessoa é a fonte a que recorreram todos os narradores” (BENJAMIN, 1987, p. 197). Ou seja, para Walter Benjamin narrar é “intercambiar experiências” (BENJAMIN, 1987, p. 198), é trazer para o plano narrativo aquilo que se viveu. Ainda que sua discussão tenha como foco as narrativas orais, o filósofo alemão ressalta o valor das narrativas escritas: tanto melhores quanto mais próximas das histórias orais. O elemento que propiciaria essa aproximação é o responsável pela trasladação de experiências vividas pelo narrador que incidem no espaço narrativo, ideia apresentada pelo próprio Benjamin ao utilizar a obra de Leskov, que apresenta em suas narrativas vários traços dos conhecimentos que adquiriu em diversas viagens. Para Benjamin, dois grupos se apresentam juntos e podem tornar “plenamente tangível” a figura do narrador oral. Esses podem ser representados pelas figuras arcaicas do “camponês sedentário” e do “marinheiro comerciante” (BENJAMIN, 1987, p. 198-199). Dessa forma, o narrador se configura entre aquele que vem de longe, carregado de experiências para contar, e aquele que jamais saiu do seu lugar. Portanto, é o espaço para a troca de experiências. Cabe ressaltar que, para Benjamin, o narrador – aquele da tradição oral, o único “verdadeiro” – não está mais presente porque hoje “as ações da experiência estão em baixa” (BENJAMIN, 1987, p. 198) e “estamos privados da faculdade de intercambiar experiências” (BENJAMIN, 1987, p. 198). No período moderno, o surgimento do romance é o primeiro indício da evolução que acaba na “morte da narrativa” (BENJAMIN, 1987, p. 201) porque o romance tem uma natureza fundamentalmente diferente da tradição oral. O narrador do romance é um indivíduo isolado que “já não pode falar de maneira exemplar sobre as suas preocupações mais importantes e que não recebe conselhos nem sabe dá-los” (BENJAMIN, 1987, p. 201). A matéria narrativa do narrador do romance provém não do saber proporcionado pela distância espacial ou temporal (saber transmitido de pessoa para pessoa), mas da introspecção. 78

A chave da diferença entre a experiência do narrador tradicional de Benjamin e a dos narradores dos romances contemporâneos está no fato de o primeiro ser regido pelo signo de Mnemosyne (a memória) e os outros pela recordação. É de se destacar ainda que, em alemão, há uma sutil distinção que se perde na tradução para o português. Erfahrung significa “experiência” no sentido de “sabedoria” (como “experiência de vida” – Lebenserfahrung – ou “conhecimento do mundo” – Welterfahrung), enquanto que Erlebnis significa “experiência” no sentido de “vivência” (afinal, Erlebnis é um substantivo abstrato formado a partir do verbo leben, “viver”). Nos escritos de Benjamin, Erfahrung, o primeiro conceito, é o próprio narrador clássico. Porém, a experiência que transmitem os narradores contemporâneos está mais ligada ao segundo conceito, o de “vivência”, do qual não se extrai nenhuma sabedoria. Giorgio Agamben (2008, p. 45-46) assevera que é como vivência que entendem a experiência os filósofos Henry Bergson, como “duração pura”, e Wilhelm Dilthey, como Erlebnis. Para o filósofo italiano, “a experiência [Erfahrung] tem o seu necessário correlato não no conhecimento, mas na autoridade[...]” (AGAMBEN, 2008, p. 23). Agamben (2008) mostra que hoje a destruição da experiência não precisa de nenhuma catástrofe, como diagnosticou Benjamin sobre a pobreza da experiência (Erfahrung), e que para isso basta a existência cotidiana em qualquer grande cidade. O retorno das pessoas, cansadas, à noite, a suas casas, por uma quantidade de acontecimentos sem que nenhum deles tenha se tornado uma experiência. Outro ponto abordado por Benjamin, e que é perceptível na narrativa de José Eduardo Agualusa, é o caráter utilitário imanente à narrativa. “O narrador” das histórias da tradição oral “é um homem que sabe dar conselhos” (BENJAMIN, 1987, p. 200). Mais que isso, esse narrador sugere, orienta, ensina. Se o criador na narrativa escrita, ou seja, o romancista segrega-se em sua atividade, como defende Benjamin, o caráter utilitário da narrativa desempenha o papel de atenuar a solidão do narrador-escritor e também do leitor, aproximando-os. Paul Ricoeur, ao discutir a mediação entre indivíduo e acontecimento como sendo “dois corolários obrigatórios da preeminência da história política” (RICOEUR, 1994, p. 148), questiona as implicações da defesa de Braudel de que “A história mais superficial é a história na dimensão do indivíduo” (RICOEUR, 1994, p. 149). A história é pensada, por essa perspectiva, como um “fenômeno humano total” que envolve aspectos imanentes aos acontecimentos, sejam eles econômicos, políticos 79

ou sociais. Em razão dessa abrangência humana da história, ao se avaliar o trabalho do narrador-escritor, ainda que solitário, encontra-se, em seu discurso, alguma substância advinda do passado da coletividade. As memórias se provêm de vivências coletivas a fim de constituirem “a verdade” da narrativa. Esta, diferentemente do que ocorre na historiografia, mostra-se desvinculada da verdade factual, e, talvez por isso mesmo, apresente maior verossimilhança. José Eduardo Agualusa utiliza-se do efeito da verossimilhança para creditar a seus escritos o que poderia ser considerada a verdade da narrativa. Em experiência anterior à Ludovica Fernandes Mano, personagem principal de Teoria geral do esquecimento (AGUALUSA, 2012a), o escritor oferece ao leitor a figura da poetisa Lídia do Carmo Ferreira, em Estação das chuvas (AGUALUSA, 2012b), cujas raízes remontam à família do poeta Lourenço do Carmo Ferreira e toda uma genealogia luandense de boa cepa. Sua construção foi tão vincada em índices reconhecíveis na memória dos que vivenciaram os acontecimentos aludidos no romance, que muitos leitores disseram ter conhecido a poetisa (MARQUES, 2012 – cf. site). Para Agualusa, Teoria geral do esquecimento (2012a) é “uma ficção que aproveita a realidade, mesmo tendo consciência de que a realidade, aquela realidade angolana, era, e ainda é, infinitamente mais exuberante e mais criativa do que a mais louca ficção” (AGUALUSA, 2012c). Entretanto, o escritor disponibiliza no texto uma gama de pontos de referência da realidade, a fim de reforçar a verossimilhança pretendida. Utiliza-se de nomes de instituições como a Diamang (antiga Companhia de Diamantes de Angola, situada no Dundo, no norte do país, que, fundada em 1917 pelo capital misto estrangeiro, após a independência, foi estatizada pelo governo do MPLA, tornando-se a Empresa Nacional de Diamantes (Endiama)) (AGUALUSA, 2012a, p. 73) e o extinto mercado Roque Santeiro (alcunha atribuída pelos frequentadores, em homenagem à telenovela brasileira de muito sucesso nos anos 1980, ao maior mercado a céu aberto de Angola, fundado em 1991, sob o nome de Mercado Popular da Boavista) (AGUALUSA, 2012a, p. 72), bem como nomes de produtos e lugares históricos de Luanda como a cerveja Cuca com o símbolo de seu rótulo (AGUALUSA, 2012a, p.59, 73), a Cervejaria Biker (que lá está até hoje) (AGUALUSA, 2012a, p. 157), e o Liceu Salvador Correia (renomeado como Escola Mutu Ya Kevela) (AGUALUSA, 2012a, p. 20), além de descrever, por meio do testemunho de seus personagens, fatos ocorridos e que estão na memória coletiva do povo angolano, como o movimento designado 80

Fracionismo, liderado por Nito Alves, em 27 de maio de 1977 (AGUALUSA, 2012a, p. 51-52)15. Poder acessar os acontecimentos por meio da memória dá ao sujeito da escrita de si liberdade de expressar sua subjetividade, partindo de percepções, trazendo à camada mais superficial da escrita “sua verdade”, visto que é fruto de sua apreensão perceptiva do mundo ao redor. A narrativa memorialista agualusiana invoca acontecimentos pessoais, porém traz também acontecimentos histórico-sociais que propiciam o reconhecimento destes por parte de leitores angolanos e de leitores conhecedores de episódios da história de Angola. Cabe ressaltar o necessário conhecimento de mundo para inferir sentido aos índices factuais que marcam o decorrer do tempo histórico e aos que auxiliam o leitor no construto imagético de algumas passagens. Para exemplificar o primeiro caso, tome-se o seguinte trecho:

[...] rolaram anos. Caíram muros [a, b]. Veio da paz [c], realizaram-se eleições [d], a guerra regressou [e]. O sistema socialista foi desmantelado, pelas mesmas pessoas que o haviam erguido, e o capitalismo ressurgiu das cinzas, mais feroz do que nunca [f]. (AGUALUSA, 2012a, p. 71)

Há nesta citação do romance referência [a] à queda do muro de Berlim, em 1989, [b] ao fim da União Soviética, em 1991, [c] aos acordos de Bicesse, assinados entre o MPLA e a UNITA, em 1990, [d] à realização das eleições de 1992 em Angola, [e] ao retorno da guerra civil em 1993, tendo em vista a insatisfação por parte da UNITA com os resultados das eleições, e [f] ao afastamento dos ideais originários do MPLA, cuja fundamentação socialista-marxista deu lugar ao capitalismo, a partir de 2003, com o fim da guerra civil em 2002. Para o segundo caso, observe-se o duplo sentido da expressão “pequena morte” – no título do segundo capítulo “Acalanto para uma pequena morte” –, que tanto pode se remeter à expressão francesa la petite mort, explorada por Georges Bataille em seu O erotismo [1957] – afinal, “para nós que somos seres descontínuos, a morte tem o sentido da continuidade do ser” (BATAILLE, 1988, p. 12) –, como ao sentido de uma morte diminuta, breve, que teve o personagem Minguito ao tentar invadir o apartamento de Ludo (AGUALUSA, 2012a, p. 22-24).

15 O Fracionismo, liderado por Nito Alves (Alves Bernardo Baptista), ex-dirigente do Movimento Popular de Libertação de Angola, foi o nome dado ao fracassado movimento político dissidente do MPLA, que, em 27 de maio de 1977, tentou derrubar o governo do MPLA e o então presidente da república Agostinho Neto. 81

O romance traz ainda a recriação de fatos resgatados da memória coletiva e baseadas na historiografia oficial, como no entrecho:

Através da rádio, Jeremias foi seguindo a difícil progressão das tropas governamentais, apoiadas por cubanos, contra a improvisada e volátil aliança entre a Unita, a FNLA, o exército sul-africano e mercenários portugueses, ingleses e norte-americanos. (AGUALUSA, 2012a, p.47)

Roger Chartier, ao tratar de história e memória, aponta algumas diferenças básicas que “opõe[m] reconhecimento do passado e representação do passado”. A “forma literária”, com diversos gêneros, destacando-se a narrativa, “opõe uma resistência ao que ele designa como ‘a pulsão referencial do relato histórico’” (CHARTIER, 2009, p. 22-23). O fato de a história representar o passado é posto em questão pelo fosso existente entre o passado representado e as “formas discursivas necessárias para sua representação”, o que também permite questionar a certificação da “representação histórica do passado” (CHARTIER, 2009, p. 23). Assim, essa memória condutora de um passado representa uma história. O discurso histórico se solidifica na memória. Pensar a escrita de si como constitutiva das memórias de quem narra significa dizer que a autoconstrução narrativa propiciará em si aspectos da história vivida pelo autor. O objeto de reflexão em Teoria geral do esquecimento (AGUALUSA, 2012a) é a reconstituição da história angolana a partir da vida da protagonista e dos acontecimentos decorrentes da história. Logo, parte da história de vida de Ludo é também parte da história de vida de um povo situado num determinado lugar e num determinado momento histórico. De certa forma, algumas das experiências de vida do autor, natural do Huambo, e fatos da história de Angola servem de matéria-prima para a obra. Na passagem a seguir, possíveis dados biográficos do escritor, como o gosto por uma música do cantor e compositor Chico Buarque de Holanda e por um poema de João Cabral de Melo Neto, além do fato de ter cursado o ensino superior em Lisboa, compõem as memórias do personagem Monte, militar angolano pertencente à DISA (Divisão de Informação e Segurança de Angola), órgão violentíssimo, responsável por muitos “excessos” cometidos nos anos 1977 e 1978, período da depuração no MPLA, após o fracionismo.

No sétimo ano do liceu, na cidade do Huambo, integrara um grupo de teatro amador que encenara Morte e vida severina, peça com texto de João 82

Cabral de Melo Neto e música de Chico Buarque. A experiência mudou a forma como olhava o mundo. Compreendeu, representando um camponês pobre do nordeste brasileiro, as contradições e as injustiças do sistema colonial. Em abril de 1974 estava em Lisboa, a estudar Direito, quando as ruas se encheram de cravos vermelhos. Comprou uma passagem e regressou a Luanda para fazer a revolução. Tantos anos decorridos, e ali estava, a cantarolar o “Funeral de um lavrador”, enquanto sepultava, em terra incógnita, um escritor sem sorte. (AGUALUSA, 2012a, p. 119)

A ênfase, na ficção ou na historiografia, é dada pelo narrador sobre aquilo que ele pretende destacar. Logo, na tarefa de escrever, o sujeito dificilmente deixará de dar destaque maior àquilo que mais o afetou em suas experiências. José Eduardo Agualusa afirma que “a guerra está presente em tudo. Os episódios mais importantes da minha vida têm a ver com a guerra.” (AGUALUSA, 2011c, 03’ 38”). Não raro é encontrar similitudes entre as trajetórias do autor e do narrador. Com isso, é pertinente pensar a atuação de ambos na narrativa agualusiana em si. Qual é o desempenho do autor de uma narrativa limítrofe a uma realidade, cuja estrutura está eivada de ficcionalização? Quais os limites do narrador de uma escrita de si, ficcionalizada por meio das memórias do sujeito-autor? Agualusa, ao responder questões semelhantes a essas propostas por pesquisadoras lideradas por Ana Mafalda Leite (2012, p. 90-91), afirma que tenta compreender o mundo em que está, o que, no caso de seus livros, parece óbvio. Diz ainda que a literatura de países novos, como Angola, tem que ter também um olhar crítico para o passado histórico. Entretanto, por ser um país em que a maioria esmagadora da população não tem acesso ao livro, a literatura atinge somente uma fração da elite mais responsável e crítica. Segundo ele, mesmo uma parte dos governantes angolanos que têm capacidade para tomar decisões não deve ler muito. Por isso, a literatura tem um papel parcial para compreensão do passado histórico. No caso da história de Angola, movimentos nacionalistas, numa vertente mais urbana, contaram com a participação de escritores e a reflexão decorrente de suas obras na constituição dos alicerces de um movimento cultural e literário que antecipou e ajudou a criar um movimento político propiciador da independência do país. O autor usa o narrador para, na verdade, resguardar-se, assumindo uma posição, de certo modo, implícita. Não que o autor desapareça completamente, mas se mascara constantemente, por trás de personagens ou de uma voz narrativa que o 83

representa. Através do narrador, o autor situa-se na retaguarda narrativa. Ele arma o jogo de máscaras a fim de isentar-se da responsabilidade pelos fatos narrados. O recurso do disfarce fica patente com a identificação na obra literária do narrador parabático. A parábase, fenômeno em que o coro na tragédia grega afasta- se da ação teatral e dirige-se diretamente ao público para sublinhar algo da cena que importa ser salientado, converte-se no texto literário em pequenas inserções feitas pelo autor-narrador na ficção, criando um efeito de distanciamento crítico. Importante salientar que toda a narrativa é em terceira pessoa – imprimindo um caráter impessoal ao texto –, excetuando a primeira pessoa empregada nos relatos pessoais, principalmente, no diário e nos escritos a carvão de Ludo. Seguem alguns exemplos:

Ludo assistiu o ressuscitar da lagoa. Assistiu, inclusive, ao regresso dos hipopótamos (sejamos objetivos: de um hipopótamo). Isso sucedeu muitos anos depois. Lá chegaremos. (AGUALUSA, 2012a, p. 36 – grifos nossos)

Todos podemos, ao longo de uma vida, conhecer várias existências. Eventualmente, desistências. Aliás, o mais habitual. Poucos, contudo, têm a possibilidade de vestir outra pele. (AGUALUSA, 2012a, p. 45 – grifos nossos)

Pequeno Soba conseguiu fugir da cadeia, escondendo-se dentro de um caixão, episódio burlesco, a merecer, adiante, narrativa mais dilatada. (AGUALUSA, 2012a, p. 54 – grifos nossos)

Nuvens cercavam a cidade, como alforrecas [águas-vivas]. A Ludo lembravam alforrecas. As pessoas não veem nas nuvens o desenho que elas têm, que não é nenhum, ou que são todos, pois a cada momento se altera. Veem aquilo que o seu coração anseia. Não vos agrada a palavra coração? Escolham outra: alma, inconsciente, fantasia, a que acharem melhor. Nenhuma será a palavra adequada. (AGUALUSA, 2012a, p. 61 – grifos nossos)

Aqui se volta à categoria de autor implícito de que trata Michel Butor. Ele seria o “representante do autor, sua persona” (BUTOR, 1974, p. 49). O autor implícito, tal qual um operador de marionetes, comandaria os movimentos do narrador, das personagens, dos acontecimentos narrados, do tempo cronológico e psicológico, do espaço e da linguagem empregada. Conclui-se daí que, em posições convergentes, autor e narrador estão na narrativa desempenhando papéis análogos, operados pelo autor implícito. Na escrita em primeira pessoa, quando da identificação mais clara dos papéis desempenhados, tanto o autor quanto o narrador, surgem imbricados, na 84

conversão da estrutura da narrativa, cada qual fazendo uso da máscara do outro, reconstruindo um passado comum a ambos. É o caso da escrita no diário de Ludovica que, ao se questionar sobre a experiência de escrever, revela-se uma duplicação do autor-narrador, transfigurado no personagem, perguntando-se: “Para quem escrevo?” (AGUALUSA, 2012a, p. 169). Adiante nas páginas do diário, o personagem se reduplica, tratando-se em segunda pessoa em relação a uma terceira, no caso o autor. Seguindo nessa discussão acerca das relações entre autor e narrador, Mikhail Bakhtin (2010) os coloca como “elementos correlativos do todo artístico da obra”, dirigidos por uma “relação de reciprocidade”. O autor, nessa relação, é o “agente” responsável pela criação do personagem que, aprioristicamente, não teria a capacidade de se autocriar. Ou seja, o todo da personagem surge “da consciência criadora do autor”. Por isso, “a consciência da personagem [...] é abrangida, de todos os lados, [...] pela consciência concludente do autor a respeito dele e do seu mundo”. Nas narrativas autobiográficas haveria, dessa forma, certa expansão do nível de “consciência criadora do autor” (BAKHTIN, 2010, p. 10-11), uma vez que o personagem surge da consciência não somente, porém emerge de suas experiências pessoais, grande parte pela consciência criadora. Ainda mais, ao pensar a narrativa autobiográfica pela via da escrita autorreferencial, ou da escrita de si, dá-se consciência ao autor e à capacidade do personagem, desempenhando um mútuo trabalho de restabelecimento e de reconstrução de experiências. José Eduardo Agualusa diz em entrevista à Ana Mafalda Leite e outras (2012, p. 92-93) que quando começou a escrever estava engajado num grupo de jovens escritores, em Portugal, e criaram uma revista cultural Caminho longe. A escrita era, para ele, uma reação, de certo cunho combativo, mesmo à distância, a uma literatura muito dirigida, muito ufanista, que era produzida até a independência. Nesse sentido, em Teoria geral do esquecimento (2012a), o personagem Pequeno Soba teria a ver com a juventude engajada na independência, com a atuação, na época, do recém-escritor Agualusa. Tal recurso já havia sido utilizado pelo autor em Estação das chuvas (2012b) ao se fazer personagem com a idade semelhante à que tinha Agualusa à época da independência. A força do personagem é tão significativa, que é o personagem que faz um relato, de caráter testemunhal, da 85

experiência vivida na cadeia de São Paulo. Há, assim, a ilusão de uma narrativa de testemunho, mas esta é ficionalizada.

Não era coragem, confessa: Eu sofria de muita revolta. A minha alma se revoltava contra as injustiças. Medo, sim, o medo chegava a doer mais do que as pancadas, mas a revolta crescia sobre o medo e então eu enfrentava os polícias. Nunca me calava. Quando gritavam comigo, eu gritava mais alto. A partir de certa altura percebi que os gajos tinham mais medo de mim do que eu deles. (AGUALUSA, 2012a, p. 143)

Diana Klinger ressalta a polêmica que envolve a questão dos gêneros, uma vez que, até certo ponto, “toda obra literária é autobiográfica” e, como tal, “a autobiografia “pura” não existe” (KLINGER, 2013, p. 34). Ou seja, a autobiografia seria mais “uma figura de leitura ou do entendimento que se dá, de alguma maneira, em todo texto” (KLINGER, 2013, p. 35 – grifos da Autora). Ela salienta para o fato de o “pacto de leitura” – proposto por Philippe Lejeune, segundo o qual o leitor acredita que “as identidades do autor, do narrador e do protagonista da história que está sendo contada” (LEJEUNE, 2008, p. 145) são a mesma, o que caracterizaria a obra como autobiográfica – encerrar o reforço do que se defende antes, a respeito da tarefa mútua de autor e narrador, nas diversas formas de narrativas do eu. Esse pacto é estabelecido logo na abertura do romance de Agualusa, quando o autor-narrador apresenta ao leitor uma “Nota prévia”. Nela, ao modo de um epitáfio, o leitor toma conhecimento de que Ludovica já está morta e todas as informações são oriundas de cadernos que serviram de diário e de “uma vasta coleção de fotografias, de autoria do artista plástico Sacramento Neto (Sakro), sobre os textos e desenhos a carvão” nas paredes do apartamento (AGUALUSA, 2012a, p. 9). Fica claro, por meio das explicações ofertadas que, desse ponto em diante, prevalece o testemunho de vida da protagonista, ainda que seja de maneira fingida, ficcional. A bem dizer, mais do que ser invocado pelo narrador, o leitor, que por meio do pacto se identifica com a ficção, colabora num duplo trânsito, tanto para a “modelagem” do autor-pessoa, como para a configuração do autor-criador, numa referência aos termos bakhtinianos. As vozes dos personagens, nas quais o leitor se reconhece, são a representação da voz da coletividade inscrita no discurso autorreferente. Esse discurso parte de um sujeito, mas um sujeito em comunhão com outros, que o influencia. Um sujeito que busca no presente a ordenação de um 86

passado sobre o qual não teve o controle de que agora dispõe, por meio da experiência de narrar. Autor e narrador, dessa maneira, constituem-se mutuamente, tendo seus papéis e limites constituídos de acordo com o próprio desenrolar da narrativa em si. Se o primeiro dispõe de certo poder sobre o segundo, este se reveste de sua autonomia para demarcar território. De qualquer forma, uma espécie de parceria entre ambos se torna algo imprescindível na criação do todo, da narrativa em si. Um personagem representante da voz da coletividade presente nas narrativas concernentes ao tema é Horácio Capitão, pai de Maria Clara, mulher de Monte, exemplo do angolano branco, de uma família da pequena burguesia mestiça de Luanda, assimilado pelo colonialismo. É uma figura, eivada de preconceitos. Sentia- se “um português de sete costados” que não aceitava a Revolução dos Cravos, tampouco a independência de Angola, e vociferava contra os traidores comunistas que pretendiam vender o país aos soviéticos. “Acha que assim como o comunismo acabou, um dia a Independência também acabará” (AGUALUSA, 2012a, p. 160). No ensaio intitulado “O “Discurso de Outrem”” (1988), Mikhail Bakhtin entende que a língua não pode ser dissociada de seu caráter social e dialógico. O linguista russo estrutura suas primeiras considerações acerca da noção de intertextualidade, partindo de seu ensaio sobre o discurso citado. Para ele, “o discurso citado é o discurso no discurso, a enunciação na enunciação, mas é, ao mesmo tempo, um discurso sobre o discurso, uma enunciação sobre a enunciação” (BAKHTIN,1988, p. 144 – grifos do Autor). Desse modo, o trabalho sobre o discurso de outrem e das estratégias de citação é um estudo metaenunciativo, uma vez que a citação não é apenas um processo de “colagem” discursiva – a chamada “bricolagem” –, mas também dá conta da própria estruturação do “discurso de outrem”. “O discurso citado é visto pelo falante como a enunciação de uma outra pessoa, completamente independente na origem, dotada de uma construção completa, e situada fora do contexto narrativo” (BAKHTIN, 1988, p. 144 – grifo do Autor). A fim de que se possa compreender o funcionamento da citação, é preciso manter em mente a formulação do discurso que cita e do discurso citado simultaneamente. O fragmento produzido em um outro lugar pode ou não ressemantizar o elemento citado, sem apagar sua origem. Observada a dinâmica pautada na noção de dialogismo, o “discurso de outrem” pode imbricar-se no 87

discurso e em sua construção sintática, como unidade integral de construção. Isto posto, o discurso citado mantém sua autonomia estrutural e semântica sem mudar a trama linguística do contexto (BAKHTIN, 1988, p. 144). No romance Teoria geral do esquecimento (2012a), encontram-se vozes outras incorporadas ao texto como um todo. Os poemas de Christiana Nóvoa “Haikai” (AGUALUSA, 2012a, p. 67) e “Exorcismo” (AGUALUSA, 2012a, p. 93) são atribuídos à Ludo. Estes foram solicitados pelo autor especificamente à poetisa brasileira que os escreveu consciente da finalidade atribuída. Além disso, os capítulos dedicados aos kuvale16 têm sua origem a partir de poemas de Ruy Duarte de Carvalho e de seu ensaio intitulado Aviso à navegação: olhar sucinto e preliminar sobre os pastores kuvale da província de Namibe com relance sobre as outras sociedades agropastoris de Angola (CARVALHO, 1997, p. 6), cujo excerto compõe parte do capítulo intitulado “Mutiati blues” (AGUALUSA, 2012a, p. 107). Essas informações não são omitidas do leitor, pois elas constam dos “Agradecimentos” (AGUALUSA, 2012a, p. 173-174) ao fim do romance. Tanto a palavra do mesmo – o discurso do narrador – como a palavra do outro – as outras vozes presentes no texto – não se misturam de forma homogênea no processo de enunciação narrativa. Ambas perdem suas características próprias e formam um terceiro elemento. A contrapelo, ambas mantêm determinadas particularidades. Uma relação ativa é estabelecida partindo das diferentes particularidades discursivas em embate e dispostas em uma mesma enunciação narrativa. Cabe ressaltar que para Bakhtin “a língua não é o reflexo das hesitações subjetivo-psicológicas, mas das relações sociais estáveis dos falantes” (BAKHTIN, 1988, p. 147). Com isso, fica claro que a apropriação do discurso de outrem demarca o posicionamento social do mesmo e dispõe alternativas de realocação no momento da enunciação. Percebe-se, então, nesta última, que a apropriação do discurso de outrem na edificação narrativa é de suma importância. O narrador, partindo da construção narrativa, pode vislumbrar um panorama de diferentes perspectivas para os eventos narrados. Dessa diferenciação na enunciação narrativa, Bakhtin identifica na produção romanesca dois grandes grupos: os

16 Os kuvale, também conhecidos como mucubais, são pastores praticantes da transumância, que é o deslocamento sazonal de rebanhos para locais que oferecem melhores condições durante parte do ano, e vivem na província de Namibe, ao sul de Angola. 88

romances monológicos, em que há a manipulação da enunciação pelo narrador, ou seja, coloca a perspectiva do narrador partindo de um lugar hierarquicamente superior ao do ocupado pelos sujeitos de outros discursos; e os romances dialógicos, que possuem em sua constituição o(s) discurso(s) de outrem e não apresentam nenhuma hierarquização das vozes constitutivas do mesmo. O narrador, considerado como instância que organiza enunciados citados, pode eleger uma terceira pessoa que não o próprio enunciador do discurso citado, tampouco o enunciador que ele cita. Ele é o receptor do enunciado no qual foi incluso o fragmento citado.

Naturalmente, há diferenças essenciais entre a recepção ativa da enunciação de outrem e sua transmissão no interior de um contexto. [...] Além disso, a transmissão leva em conta uma terceira pessoa - a pessoa a quem estão sendo transmitidas as enunciações citadas. Essa orientação para uma terceira pessoa é de primordial importância: ela reforça a influência das forças sociais organizadas sobre o modo de apreensão do discurso (BAKTHIN, 1988, p. 146).

Ao descrever o princípio básico de funcionamento do discurso citado, Bakthin demarca as “fronteiras” entre o discurso do mesmo e o discurso de outrem, distinguindo-os por marcas linguísticas. Os sinais utilizados em português como os procedimentos mais comuns para delimitar tais fronteiras são: a) o uso de aspas, que sinalizam que o enunciado por elas destacado teve sua origem (formulação) em outro lugar que não a instância de enunciação; b) a utilização do travessão, especialmente no discurso romanesco, para indicar os limites entre o que é próprio do narrador e o que é próprio dos personagens; ou ainda c) a aplicação de recursos gráficos, como itálico ou negrito, para assinalar por meio da distinção a outra origem do enunciado. Em Teoria (AGUALUSA, 2012a) as falas dos personagens não são marcadas com aspas, travessões ou o emprego de itálico ou negrito. Os discursos são incorporados à narração de maneira a confundir as vozes enunciadoras. No máximo, há o emprego de verbos de elocução para realçar a fala dos personagens.

Macho. Pastor-alemão, esclareceu Orlando: Crescem depressa. Esse é albino, um tanto raro. Não deve apanhar muito sol. Como vai chamá-lo? Ludo não hesitou: Fantasma! Fantasma? Sim, parece um fantasma assim, todo branquinho. Orlando encolheu os ombros ossudos: 89

Muito bem. Será Fantasma. (AGUALUSA, 2012a, p. 13 – grifos nossos)

As relações estabelecidas entre o discurso citado e o universo narrativo de sua própria enunciação são de responsabilidade do narrador. Bakhtin esquematiza três vertentes a partir das quais se estruturam as relações entre o discurso do mesmo e o discurso de outrem dentro de uma narrativa: o dogmatismo narrativo ou estilo linear, o individualismo realista e crítico ou estilo pictórico, e o individualismo relativista, que não privilegia o contexto narrativo/discurso do mesmo, mas sim no discurso de outrem. O estilo linear, entendido como modalidade de apreensão do discurso de outrem, tem em seu fim a preservação da integridade e da autenticidade do discurso do mesmo no tocante ao discurso citado. Levando-se em conta que, em um texto científico, por exemplo, tal modalidade se compõe do reflexo de honestidade intelectual, do qual a menção às fontes é o exemplo mais importante, no nível do texto literário tal atitude carrega intrinsecamente o autoritarismo do narrador, que impõe seu posicionamento como uma verdade transcendente e, ao citar o discurso de outrem, o faz considerando-o como mero objeto, sem dar importância à perspectiva do outro. Por esta razão, justifica-se o cuidado em estipular fronteiras entre o discurso do mesmo e o discurso de outrem. Resumindo, não existe no estilo linear a condição da alteridade no discurso do outro. A representação do outro só é considerada como repetição do mesmo ou enquanto discurso a ser negado, o que não ameaça a autoridade discursiva do narrador. O estilo pictórico, oposto ao estilo linear, define-se por certa sutileza dos limites entre a matriz da enunciação e o discurso citado. Em lugar de fronteiras explícitas de onde inicia e de onde acaba o discurso citado, necessárias para a autopreservação da identidade do narrador, “a língua elabora meios mais sutis e mais versáteis para permitir ao autor infiltrar suas réplicas e seus comentários no discurso de outrem” (BAKHTIN, 1988, p. 150). O contexto discursivo dissocia-se da inflexibilidade do discurso citado dogmático, pois o narrador busca incorporar a fala do outro em sua própria fala, transmitindo ao outro a adequação para “falar diferente” e expandindo os limites subjetivos ″o narrador pode deliberadamente apagar as fronteiras do discurso citado, a fim de colori-lo com as suas entoações, o 90

seu humor, a sua ironia, com o seu encantamento ou o seu desprezo″ (BAKHTIN, 1997, p. 150). Sistematizando, o estilo pictórico concede ao narrador o reconhecimento do outro como constitutivo de si mesmo, sem prejuízo da preservação das identidades e da centração de sua subjetividade. À vista disso, são as particularidades linguístico-discursivas de realização do mesmo que caracterizam o narrador. A estratégia discursiva adotada pelo narrador é a utilização do discurso direto. Contudo, sói demarcar os limites entre o discurso do narrador e o discurso de outrem por meio do uso de aspas, sinalização de diálogos com travessões, itálicos, etc. As inflexões não sintáticas são mais utilizadas pelo narrador pictórico. O que se destaca, no individualismo relativista, é o próprio discurso citado, elemento mais forte e mais ativo no embate entre o discurso do narrador e o discurso de outrem. “Dessa maneira, o discurso citado é que começa a dissolver, por assim dizer, o contexto narrativo” (BAKHTIN, 1988, p. 151). Ao se referir sobre o contexto narrativo, Bakhtin ressalta a inserção do discurso de outrem. O discurso do mesmo, o do narrador, passa a figurar como contexto, se for levado em consideração o fragmento citado. Portanto, a decomposição do contexto narrativo implica a relativização da autoridade outorgada ao próprio narrador. Antes o narrador era o “centro de consciência” dos textos. No individualismo relativista, sua perspectiva é posta em iguais condições com a visada dos personagens:

a decomposição do contexto narrativo testemunha uma posição de individualismo relativista na apreensão do discurso. Neste último, à enunciação citada subjetiva opõe-se um contexto narrativo que comenta e replica e que se reconhece como igualmente subjetivo (BAKHTIN, 1988, p. 152).

A estratégia estilística típica do individualismo relativista é o uso do discurso indireto livre, “que é a forma última de enfraquecimento das fronteiras do discurso citado” (BAKHTIN, 1988, p. 152). A forma analítica do discurso indireto livre está imanentemente vincada na necessidade de exprimir idiossincrasias, que diferenciam o discurso do mesmo e o discurso do outro. Muitas vezes, o discurso indireto livre é utilizado quando não é mais possível distinguir narrador, autor e personagens. Essa profusão de impressões subjetivas e o desaparecimento das fronteiras entre o 91

discurso do mesmo e o discurso de outrem selam o reconhecimento da terceira vertente. Sem qualquer aviso, José Eduardo Agualusa incorpora a letra de uma música francesa traduzida para o português à narração. O leitor é informado, pelo editor do livro, por meio de uma nota de rodapé, da letra original e da seguinte ressalva: “o autor faz aqui referência aos versos da canção “La Ville s’endormait”, de Jacques Brel.” (AGUALUSA, 2012a, p.35) Nesse sentido, para Bakhtin, o que marca o romance polifônico como um tipo particular de narrativa é a profusão de vozes e consciências plenivalentes (quer dizer: plenas de valor, que mantêm com as outras vozes do discurso uma relação de absoluta igualdade como participantes do grande diálogo) e equipolentes (ou seja, participam do diálogo com as outras vozes em pé de absoluta igualdade; não se objetificam, isto é, não perdem a sua identidade enquanto vozes e consciências autônomas). Isso permite definir a polifonia enquanto um concerto de vozes sociais que se cruzam no discurso literário, sem que haja hierarquização entre estas. “[A voz do herói] possui independência excepcional na estrutura da obra, é como se soasse ao lado da palavra do autor, coadunando-se de modo especial com ela e com as vozes plenivalentes de outros heróis” (BAKHTIN, 1981, p. 3). Assim, o romance polifônico dá conta da diversidade de perspectivas, organizando-as em torno de uma narrativa e de uma consciência (a do narrador ou, nas palavras de Bakhtin, a do autor) que não se sobrepõe sobre elas como lugar privilegiado:

A essência da polifonia consiste justamente no fato de que as vozes, aqui, permanecem independentes e, como tais, combinam-se numa unidade de ordem superior à da homofonia. E se falarmos de vontade individual, então é precisamente na polifonia que ocorre a combinação de várias vontades individuais, realiza-se a saída de princípio para além dos limites de uma vontade. Poder-se-ia dizer assim: a vontade artística da polifonia é a vontade de combinação de muitas vontades, a vontade do acontecimento (BAKHTIN, 1981, p. 16).

Desta forma, a representação de diferentes subjetividades não está subordinada, no romance polifônico, ao filtro da perspectiva do narrador, como no romance monológico: “o dominante da representação artística do herói é o complexo de ideias-forças que o dominam” (BAKHTIN, 1981, p. 18). Da mesma maneira, a realidade que circunda esse herói tem sua representação construída a partir do ponto de vista que tem ele da realidade (diegética) exterior: “a cada herói o mundo 92

se apresenta num aspecto particular segundo o qual constrói-se a sua representação” (BAKHTIN, 1981, p. 18). Exemplo demonstrado anteriormente, o efeito alcançado no capítulo “Últimas palavras” (AGUALUSA, 2012a, p. 169-170), já esmiuçado, tem, sob o enfoque bakhtiniano, nova leitura. Cabe ainda mencionar o último capítulo do romance, “É nos sonhos que tudo começa” (AGUALUSA, 2012a, p. 171), cujo título provoca a indagação de quem seria o sonho a que se refere: da protagonista, do narrador ou do autor? Ou de todos ao mesmo tempo? E que “tudo” é esse que começa nos sonhos? O pequeno relato que se segue trata de uma imagem plácida de Ludo menina, sentada numa praia juntamente com Sabalu, o menino que a salva do enclausuramento. Há risos que sacodem o ar, “como o fulgor de aves na manhã dormente”. Ambos avançam “em direção à luz, rindo e conversando com quem entra num barco”. A imagem alegórica de encaminhamento dos personagens para a luz pode ser aproximada da cena final do conto “Estória da galinha e do ovo”, de Luandino Vieira, em seu Luuanda [1963] (2009), quando a galinha Cabíri, que pôs o ovo mote da discórdia entre vizinhas no musseque, foge em direção ao sol, numa grande alegoria do projeto utópico a ser alcançado com a independência angolana:

E, então sucedeu: Cabíri espetou com força as unhas dela no braço do sargento, arranhou fundo, fez toda a força nas asas e as pessoas, batendo palmas, uatobando e rindo, fazendo pouco, viram a gorda galinha sair voando por cima do quintal, direita e leve, com depressa, parecia era ainda pássaro de voar todas as horas. E como cinco e meia já eram e o céu azul não tinha nem uma nuvem daquele lado sobre o mar, também o voo dela na direção do sol só viram, de repente, o bicho ficar um corpo preto no meio, vermelho dos lados e, depois, desaparecer na fogueira dos raios do sol... (VIEIRA, 2009, p. 131).

De certa maneira, José Eduardo Agualusa se apropria da imagem de Luandino, parodiando-a, e a subverte indicando ao leitor que as utopias só são possíveis nos sonhos. O título do capítulo é uma pista para a interpretação do que seria o começo de “tudo”. Esse “tudo” é a literatura, único espaço possível para a realização de tudo. Um dos recursos intertextuais, frequentemente, utilizados na literatura contemporânea, a paródia é apresentada como uma derivação da rapsódia e tem como características fundamentais: ser a representação de uma derivação de modelo já existente, e conservar elementos formais, nos quais novos e incongruentes conteúdos passam a ser inseridos (AGAMBEN, 2007, p. 38-40). 93

Entretanto, Giorgio Agamben assevera que é possível obter outra acepção de paródia a partir da Antiguidade clássica. Esse sentido seria oriundo da esfera musical, da cisão entre melos e logos. Originalmente, a melodia correspondia ao ritmo das palavras. Durante o recitativo dos poemas homéricos, certos elementos discordantes no ritmo eram percebidos. Dizia-se, então, que os rapsodos estavam fazendo algo para ten oden, ou seja, algo ao lado do canto (AGAMBEN, 2007, p. 38-39 – grifos da Autor). O nexo entre música e linguagem era rompido, tornando a palavra, ao lado do canto, livre. Desse modo, implicaria a prosa literária. “A paródia tece relações especiais com a ficção, que constitui desde sempre a contra-senha da literatura” (AGAMBEN, 2007, p. 40). Estar ao lado é o modo operativo numa composição paródica. A esse respeito – diz Agamben – Franco Fortini estendeu o conceito de “paródia séria”. Ao que parece, Fortini também diz ser tal modo operativo a forma mais econômica para esconder-se dos outros e de si mesmo. Entretanto, a paródia não coloca em dúvida o que está sendo parodiado. O esconderijo do artista é a própria exposição. O esconder-se de si mesmo a que se refere Fortini, portanto, pode ser lido como o estar ao lado de si, o mover-se livremente para além de uma posição unívoca de uma suposta substância do eu. Aos homens, irremediavelmente perdidos na cisão da língua, não resta propriedade, mas o ser qualquer, ser substituível e, ao mesmo tempo – paradoxalmente –, irrepresentável. De fato, o ser do homem é somente a paródia de si mesmo. Em certo sentido, o eu como um outro – na clássica expressão “Je est un autre”, de Rimbaud – é parte da abertura dos sentidos para além do único (o um) sentido à humanidade, isto é, do um ao múltiplo. Agualusa faz isso ao longo de sua obra, parodiando personagens e situações trabalhadas em livros distintos. É de se observar o caso dos personagens Jeremias Carrasco ou velho kuvale, de Teoria geral do esquecimento (2012a), e Ángel Martínez ou Pablo Vivo, de Estação das chuvas (2012b). Ambos são personagens violentos com o propósito de executarem as tarefas para que foram contratados, a fim de receberem o pagamento em diamantes. Eles também são forçados a mudar de identidade ao longo da história. Jeremias torna-se um mucubal, ou seja, integra- se a essa etnia que ele, enquanto membro do regimento português de Comandos, ajudou a aniquilar. Vale destacar que os Comandos, divisão de elite do exército português, tinha (e ainda tem, pois esta divisão está em atividade em Portugal) 94

como lema a frase retirada do verso 284, do Livro X, da Eneida, de Vergílio, “Audaces fortuna iuvat”, que quer dizer “a fortuna ajuda os audazes”, que estava tatuada no pulso de Jeremias (AGUALUSA, 2012a, p. 28). O mais curioso é que essa tropa tinha (e ainda tem) por grito de guerra a expressão “Mana Sumaé” que vem da língua de uma tribo bantu do sul de Angola, que em português quer dizer “aqui estamos, prontos para o sacrifício”. Já Ángel Martínez, cubano refugiado nos Estados Unidos após a revolução cubana, foi para Angola como um mercenário, treinado no front do Vietnã (AGUALUSA, 2012b, p.109). Posteriormente, juntou-se à guerrilha de Holden Roberto, criador da Frente Nacional de Libertação de Angola (FNLA). Para se salvar após um ferimento na perna, resolve adotar a identidade de um cubano falecido que fez parte das tropas enviadas por Fidel Castro em auxílio às lutas do MPLA pela libertação de Angola. Passa, então, a se chamar Pablo Vivo, nome que estava na identificação do morto. (AGUALUSA, 2102b, p. 113). Há outros casos de apropriação parodística de personagens como o Xico Bitaca ou Borja Neves, de Estação (AGUALUSA, 2012b, p. 102), em relação ao Pequeno Soba ou Arnaldo Cruz, de Teoria (AGUALUSA, 2012a, p. 53). Os dois têm suas origens na pequena burguesia angolana e engajaram-se na luta pela libertação de Angola. Ou ainda uma relação mais direta entre Severino Saturnino de Souza, de A conjura (AGUALUSA, 2009b, p. 122) e o alemão Uli Pollak, de Teoria (AGUALUSA, 2012a, p. 115), ambos colecionadores de serpentes. O personagem de Teoria geral do esquecimento [2012] (AGUALUSA, 2012a) que é retomado do romance Estação das chuvas [1996] (AGUALUSA, 2012b), ao que parece devido à homonímia, é Monte, membro da DISA, responsável por chefiar as investigações especiais do exército do MPLA e pelas torturas na Cadeia de São Paulo. A violência do personagem está descrita no romance de 1996 e sua história relatada no de 2012. A todo momento atribui-se significação a determinado sistema de representação, sendo esta necessidade inerente ao ser humano. Já dizia Homi K. Bhabha, em sua famosa conferência “Narrando a Nação” (1997), que a narração é um mecanismo não apenas de construção, mas também através da qual é possível imprimir significação a algo. Tal afirmativa pode ser corroborada por Linda Hutcheon, em Poética do pós-modernismo (1991), quando afirma que tanto a história, quanto a ficção, sendo formas narrativas, podem ser tomadas como sistemas de significação na cultura ocidental. 95

A metaficção historiográfica incorpora todos esses três domínios [literatura, história, teoria], ou seja, sua autoconsciência teórica sobre a história e a ficção como criações humanas passa a ser a base para seu repensar e sua reelaboração das formas e dos conteúdos do passado. [...] A metaficção historiográfica parece disposta a recorrer a quaisquer práticas de significado que possa julgar como atuantes numa sociedade. Ela quer desafiar esses discursos e mesmo assim utilizá-los, e até aproveitar deles tudo o que vale a pena. (HUTCHEON, 1991, p. 22, 173).

De acordo com a autora, tanto ficção como história são discursos através dos quais atribuímos significação a fatos passados. O sentido e a forma não estão nos acontecimentos, mas nos sistemas que transformam esses acontecimentos pretéritos em fatos históricos, que só se caracterizarão como tais a partir do momento em que a historiografia aplicar a eles fatores explicativos e /ou narrativos. A autora afirma que, tomando a história como registro da realidade do passado, ela pode ser considerada como “radicalmente incompatível com a literatura” (HUTCHEON, 1991, p. 129), sendo esta a visão que institucionalizou a separação entre literatura e história, no campo acadêmico. No entanto, pode-se indagar se é possível pensar um evento histórico a partir da construção de uma obra de ficção. A resposta pode ser afirmativa caso as obras ficcionais sejam tomadas não como registros históricos, mas como discursos construídos a partir destes registros, em que ficção e história caminham juntas para que a obra literária seja composta. A fim de tipificar obras literárias construídas a partir do diálogo entre ficção e história, Hutcheon cria a rubrica “metaficção historiográfica” – em que a obra ficcional se volta para o passado não para recontá-lo, assim como aconteceu, mas para reconstruí-lo com base no que poderia ter acontecido. Na metaficção historiográfica, ao aliar história e ficção, há a possibilidade de jogar com a ideia de “verdade” e de “realidade” juntamente com uma possível subversão destas. Tais narrativas ficcionais, permeadas por fatos históricos, não refletem e nem reproduzem a realidade tal qual ela se apresenta diante de nós. Segundo Hutcheon, “na metaficção historiográfica não há nenhuma pretensão de mímese simplista. Em vez disso, a ficção é apresentada como mais um entre os discursos pelos quais elaboramos nossas versões da realidade” (HUTCHEON, 1991, p. 64). De acordo com Hutcheon, tanto a historiografia quanto a literatura buscam suas forças mais na verossimilhança do que em verdades objetivas. Ambas são construções linguísticas e parecem ser intertextuais, em que desenvolvem os textos 96

acerca do passado com suas textualidades complexas. Assim, muitas questões estarão envolvidas em torno de obras metaficcionais, como a natureza da identidade e da subjetividade dos sujeitos, a questão da referência e da representação, a natureza intertextual do passado, as implicações ideológicas do ato de escrever sobre a história e as consequências do ato de tornar problemático aquilo que antes era aceito pela historiografia e pela literatura como uma certeza. A autora afirma que, segundo alguns teóricos, tais questões suscitadas pelas metaficções historiográficas só poderiam ser englobadas, ao mesmo tempo, pela narrativa. É o caso de Homi K. Bhabha (1997) e sua famosa conferência, em que fica evidente que a narração possui o poder de atribuir significação, bem como de construção. Na metaficção há uma volta ao passado, pois se pretende questioná-lo, problematizá-lo e, muitas vezes, subvertê-lo, e tudo isso só pode ser realizado de dentro, ou seja, deve-se retomar este passado, “inserir-se” nele para que a problematização e a subversão sejam realizadas. Essa volta não possui traços nostálgicos e/ou saudosistas, pelo contrário, acontece, sobretudo, para que os questionamentos e subversões sejam postos em prática. Pode parecer contraditório atuar dentro dos próprios sistemas que se tenta subverter, assim como afirma Hutcheon, mas o pós- modernismo é um movimento contraditório e, se é preciso estar dentro, por que não voltar àquilo que se pretende trazer à tona de um novo modo? Não cabe aqui aprofundar a questão do pós-modernismo, mas vale a pena defini-lo, segundo Hutcheon, como um movimento contraditório, histórico e inevitavelmente político, em que o passado se faz presente, sobretudo na literatura, sob a forma de obras metaficcionais. Cabe salientar que não se deve tomar o termo pós-modernismo como sinônimo de contemporâneo, pois na verdade pode não haver tal equivalência – uma obra pode ser contemporânea e, simultaneamente, não ser pós-moderna. Contudo, é incontestável o fato de se poder ler grande parte da obra de José Eduardo Agualusa como uma metaficção historiográfica. Mas a discussão é ainda mais profunda no que diz respeito ao fato de ter havido, ou não, o movimento pós-moderno na África, principalmente por ele ser denominado por Hutcheon como um evento basicamente europeu e americano. Ao comentar as ideias de Iser contidas no artigo “Os atos de fingir ou o que é fictício no texto ficcional” (1983), Luiz Costa Lima afirma que “a ficção tem como primeiro traço o realizar-se por um ato de fingir [em que] o mundo é transgredido porque [tal ato] não repete a realidade senão para convertê-la em signo” (LIMA, 97

1989, p. 96). Desse modo, percebe-se o mundo transgredido e convertido em signo no interior da ficção como um mundo representado – como uma representação que remete ao mundo factual, mas que nem por isso é este mundo factual. O ato de fingir, responsável por certa representação do mundo no plano ficcional, liga-se, diretamente, ao imaginário, pois é este que possibilita certa transgressão do fato. O passado, ao ser retomado como referente para a construção da metaficção historiográfica, não é apagado, mas incorporado e ressignificado. Importante destacar dos dizeres de Linda Hutcheon (1991) que tais obras não tentam escapar dos contextos histórico, social e ideológico, o que não seria possível, mas, ao contrário, chegam até mesmo a colocá-los em destaque. Na metaficção historiográfica não há a tentativa de preservar e transmitir um cânone ou uma tradição de pensamento, mas sim questionamentos acerca da história e desta tradição. Foi a partir de movimentos questionadores, sobretudo na década de 1960, que passou a ser difundido o pensamento de que a história não pode ser escrita sem análise ideológica e institucional, inclusive a análise do próprio ato de escrever, em que o teórico e o crítico estão inevitavelmente envolvidos com as ideologias e com as instituições. Com base em Linda Hutcheon (1991), acrescenta-se que não apenas os textos históricos estão carregados por ideologias, mas também as obras literárias, pois não há neutralidade na urdidura do enredo, explicação ou até mesmo descrição de qualquer campo. O próprio uso da linguagem implica ou acarreta uma postura específica perante o mundo, seja ética, ideológica ou política, e, assim como há na urdidura do enredo a assimilação de uma postura diante do mundo, haverá, também, posturas “interpretativas” variadas. Para a autora, o que as pessoas têm em comum é o passado, seja ele recente ou remoto, o que justificaria um grande número de obras de ficção e de não-ficção que se constroem a partir de uma visita à história, como se houvesse o desejo em relação ao “ato de comunidade”, expressão criada por Doctorow, citado pela autora. Ao citar R. Martin, a estudiosa salienta que o fato de se remontar à história não se liga à pretensão de a ficção descriá-la. O que pode acontecer é a ficção problematizá-la, pois a metaficção depende da história para existir. Para que uma metaficção historiográfica seja produzida, antes de partir para a narrativa propriamente dita, é preciso que haja uma seleção dos acontecimentos a serem recontextualizados, como ocorre com os acontecimentos históricos constituídos como fatos a partir do tratamento dado pela historiografia. De acordo 98

ainda com Hutcheon, pode-se ter acesso aos acontecimentos pretéritos principalmente por intermédio de seus vestígios no presente. Tais vestígios podem ser textualizados, como documentos, provas de arquivo ou ainda como testemunhos. No entanto, paradoxalmente, em momento anterior, ao definir o pós- modernismo a autora afirma que este

não sugere nenhuma busca para encontrar um sentido atemporal transcendente, mas sim uma reavaliação e um diálogo em relação ao passado à luz do presente [...], o pós-modernismo não nega a existência do passado, mas de fato questiona se jamais poderemos conhecer o passado a não ser por meio de seus restos textualizados (HUTCHEON, 1991, p. 39 - grifo da Autora).

Com relação à parte final da citação, é possível notar a presença de um questionamento muito incômodo para os estudiosos. Pode-se ter acesso ao passado através das narrativas orais, porém o acesso a estes acontecimentos pretéritos pode ser prejudicado devido ao fato de as memórias individuais serem influenciadas de acordo com o posicionamento do indivíduo com relação ao fato e/ou objeto a ser rememorado. José Eduardo Agualusa mostra bem esse exercício de reinterpretação dos fatos históricos com mudança dos pontos de vista em suas obras. É o caso da descrição do dia 27 de maio de 1977, de dentro da Cadeia de São Paulo, tanto em Estação das chuvas (AGUALUSA, 2012b, 171), como em Teoria geral do esquecimento (AGUALUSA, 2012a, p. 57). Os fatos decorrentes tomam outras proporções e têm desfechos próprios, conforme o desenrolar das narrativas. Exemplos, entre outras obras anteriores à Teoria, podem ser encontrados no ensaio, da pesquisadora Ana Mónica Henriques Lopes, “Investigando as estratégias de construção textual de José Eduardo Agualusa” (2002). Dentre as estratégias empregadas no romance contemporâneo, a mise en abyme se define, segundo a proposta de André Gide, como o fenômeno de repetição, no nível dos personagens, do tema da obra. Dällenbach expande a aplicação do termo e o define como um processo de reflexividade em que se vê “um enunciado que reenvia ao enunciado, à enunciação ou ao código do discurso” (DÄLLENBACH, 1977, p. 62) ou como:

uma citação de conteúdo ou um resumo intratextual. Enquanto condensa ou cita a matéria duma narrativa, ela [a mise en abyme] constitui um enunciado 99

que se refere a outro enunciado – e, portanto, uma marca do código metalinguístico; enquanto parte integrante da ficção que resume, torna-se o instrumento dum regresso e dá origem, por consequência, a uma repetição interna. (DÄLLENBACH, 1979, p.54).

A comprovação deste fenômeno está coligida nas notas finais do romance (AGUALUSA, 2012a, p. 173-174), nas quais José Eduardo Agualusa assevera ter sido, em janeiro de 2005, desafiado a escrever um roteiro de longa-metragem de ficção, a ser filmado em Angola pelo cineasta português Jorge António. Foi então que surgiu a história de uma mulher portuguesa, que havia se emparedado em 1975, a alguns dias da independência eclodir, com a onda de violentos acontecimentos que se sucederam. Não se deu continuidade ao filme, mas o argumento para a elaboração do romance tinha nascido. Teoria geral do esquecimento (AGUALUSA, 2012a) se inscreve na crise dos gêneros literários, preconizada pela contemporaneidade. Agualusa parodia o próprio texto, num exercício de metaficção em que a obra se apresenta intempestiva, uma vez que o romance possui um título que parece ser de um ensaio; a obra literária nasce de um argumento fílmico; um personagem da história muda de etnia; o autor se apropria do trabalho da poetisa brasileira Christiana Nóvoa, além de fazer citações da obra de Ruy Duarte de Carvalho, que são incorporadas ao texto, e assim por diante, numa escrita em mise en abyme, buscando novos caminhos para a ficção angolana. Há também uma possível intertextualidade com o romance de A paixão segundo G. H. (1998). Assim como Ludo, a personagem clariceana mora em um apartamento de cobertura, afastada do mundo, porém, encerrada em seu próprio mundo. Ao tentar limpar desenhos a carvão da parede do quarto de serviço, depois de despedir a empregada que os fez, a mulher, nomeada apenas pelas iniciais G. H., relata a perda da individualidade após esmagar uma barata na porta do guarda-roupas. Com a consciência em crise, a introspecção é o destino de Ludo, como o foi também para G. H., espécie de necessidade inelutável. Quanto mais o personagem observa os acontecimentos exteriores, mais se distancia de seu próprio ser. A reflexão contínua a que se entrega corta-lhe a espontaneidade dos sentimentos e a incompatibiliza com a fruição pura e simples da vida. Somente com a experiência do amor pelo cão Fantasma se regozija com sua existência. 100

Ludo acordou e o cão estava morto. A mulher sentou-se no colchão, frente à janela aberta. Abraçou os joelhos magros. Ergueu os olhos para o céu, onde, pouco a pouco, se iam desenhando leves nuvens cor-de-rosa. [...] Ludo sentiu o peito esvaziar-se. Alguma coisa – uma substância escura – escapava de dentro dela, como água de um recipiente estalado, e deslizava depois pelo cimento frio. Perdera o único ser no mundo que a amava, o único que ela amava, e não tinha lágrimas para chorar. (AGUALUSA, 2012a, p. 87)

O obscuro desejo e a força intuitiva represada, bem como a sede de liberdade e de expressão geram a inquietação que domina o personagem. Daí sua vocação para o excesso e a desmedida, representados por meio dos escritos e desenhos a carvão nas paredes do apartamento.

A fraqueza, a vista que se esvai, isso faz com que tropece nas letras, enquanto leio. Leio páginas tantas vezes lidas, mas elas são outras. Erro, ao ler, e no erro, por vezes,encontro incríveis acertos. No erro me encontro muito. [...] Se ainda tivesse espaço, carvão, e paredes disponíveis, poderia escrever uma Teoria Geral do Esquecimento. Dou-me conta de que transformei o apartamento inteiro num imenso livro. Depois de queimar a biblioteca, depois de eu morrer, ficará só a minha voz. Nesta casa todas as paredes têm a minha boca. (AGUALUSA, 2012a, p. 77- 78 – grifos do Autor)

A transformação do apartamento de Ludovica em um “imenso livro” proporciona uma ruptura com o seu meio doméstico, com a ambiência cotidiana, o que, afinal, no plano da realidade, acaba por deixar a protagonista desamparada e solitária.

Monstros, mostra-me monstros: essas pessoas nas ruas. A minha gente. Lamento tanto o que perdeste. Lamento tanto. Mas não é idêntica a ti a infeliz humanidade? (AGUALUSA, 2012a, p. 170 – grifos do Autor)

Para Ludo, há pontos de referência numa situação social definida e num ambiente determinado. Sob o primeiro aspecto, o apartamento onde ela mora – de cobertura, e no último andar de um prédio – a situa na última e superior camada de uma sociedade. Dessa posição elevada, com altitude em dois sentidos homônimos, o métrico do andar e o social de camada, pôde Ludo descortinar de seu terraço o meio urbano, que se transformou durante o tempo em que se emparedou no 101

apartamento. Tal como está descrita, sua visão, de cima para baixo e abrangente, é imagem abstratificada do meio urbano. A cidade, que toma a forma de uma realidade, adquire a aparência de gigantesca e ancestral ruína, ainda viva, da Luanda de outrora.

Muitas vezes, olhando para as multidões que se encarniçavam de encontro ao prédio, aquele vasto clamor de buzinas e apitos, gritos e pragas, experimentava um terror profundo, um sentimento de cerco e ameaça. Sempre que queria sair procurava um título na biblioteca. (AGUALUSA, 2012a, p. 102)

Os escritores interferem na trama social ao expressarem seus pensamentos e ideias por meio da criação ficcional. Essa intervenção se dá pela interação leitor- texto. É na leitura do mundo, criado e sedimentado no enredo, que sobressai a crítica subjacente ao espaço, ao tempo e às ações dos personagens, que são em tudo ficcionais, mas em nada inverossímeis. Afinal, é na coesão do romance, na invariabilidade do texto fixado, que se encontra a lógica do personagem (CANDIDO, 1972, p. 58-59). A representação de dados da realidade na trama literária implica reconhecer o personagem como o elemento mais atuante na criação de um “sentimento de verdade” ou verossimilhança, conforme ensina Antonio Candido, que argumenta haver “afinidades e diferenças essenciais entre o ser vivo e os entes de ficção...” e que o romance “se baseia, antes de mais nada, num certo tipo de relação entre o ser vivo e o ser fictício, manifestada através da personagem, que é a concretização deste” (CANDIDO, 1972, p. 55). Essa concretização de um ser fictício – por mais paradoxal que seja a expressão – constitui uma imagem produtiva para análise da representação, a despeito da “crise pós-moderna” que cerca o conceito, no romance angolano, de personagens facilmente reconhecíveis no “mundo real”. 102

3.3. Esquecimento: por uma possibilidade de reescritura

Refletir sobre a memória, considerando-a como elemento possibilitador de presentificação de um passado, no tocante a uma narrativa memorialista, permite dispor lembrança e esquecimento como fluxos intrínsecos ao sujeito que se narra. Portanto, a proposição, que neste subitem se apresenta, pretende evidenciar essa dupla constituição da memória: a capacidade de lembrar e de esquecer. Os recorrentes questionamentos sobre se tudo pode ser lembrado indicam que a rememoração só é possível depois do esquecimento, uma vez que, como afirma o filósofo Friedrich Nietzsche, “é inteiramente impossível, sem esquecimento, simplesmente viver” (NIETZSCHE, 1983, p. 58). Na segunda dissertação de sua Genealogia da moral (2012), Nietzsche assegura que:

Esquecer não é uma simples vis inertiae [força inercial], como creem os superficiais, mas uma força inibidora ativa, positiva no mais rigoroso sentido, graças à qual o que é por nós experimentado, vivenciado, em nós acolhido, não penetra mais em nossa consciência, no estado de digestão [...], do que todo o multiforme processo da nossa nutrição corporal ou “assimilação física”. Fechar temporariamente as portas e janelas da consciência; permanecer imperturbado pelo barulho e a luta do nosso submundo de órgãos serviçais a cooperar e divergir; um pouco de sossego, um pouco de tabula rasa da consciência, para que novamente haja lugar para o novo, sobretudo para as funções e os funcionários mais nobres, para o reger, prever, predeterminar (pois nosso organismo é disposto hierarquicamente) – eis a utilidade do esquecimento, ativo, como disse, espécie de guardião da porta, zelador da ordem psíquica, da paz, da etiqueta: com o que logo se vê que não poderia haver felicidade, jovialidade, esperança, orgulho, presente, sem o esquecimento. (NIETZSCHE, 2012, p. 43, grifos do Autor)

Assim, os eventos passados não poderiam ser reconstituídos senão por meio de pequenas recuperações, flashbacks – recuos no tempo que recuperam o passado –, rememorações, haja vista a impossibilidade de a memória encadear os acontecimentos cronológica e linearmente e em uma “exata” integralidade de como sucederam. Nesse sentido, o sujeito da narrativa memorialista é sempre uma criação de si mesmo. Nas “Últimas palavras” (AGUALUSA, 2012a, p. 169-170) do diário de Ludovica, protagonista de Teoria geral do esquecimento, o personagem escreve para si, como uma outra pessoa. Suas reflexões caracterizam um distanciamento do narrador em relação ao texto. Ao retratar-se diante do leitor, o narrador em primeira pessoa assume uma perspectiva crítica que revela certa desilusão, não apenas 103

perante a vida, mas em relação ao seu longo período de clausura no apartamento, célula em suspensão durante o tempo de esquecimento. O sujeito da narrativa não se poderia constituir na totalidade do outrora, devido às limitações da memória. De outra feita, talvez a constituição do binômio memória-imaginação, ou seja, “a natureza imaginativa da memória” pudesse garantir uma imagem mais desejável daquela que seria mais “real”. Por isso, o personagem se questiona: “Mas não é idêntica a ti a infeliz humanidade?” (AGUALUSA, 2012a, p. 170). Na rememoração, a imaginação pode desempenhar um papel essencial na intenção de harmonizar os relatos de vida, por exemplo. Afinal, se, por um lado, os “escombros da memória” podem reduzir a vida dos indivíduos a uma série de momentos que não fazem sentido, por outro, a rememoração pode encontrar maneiras de recuperar entre os fragmentos de lembranças elementos outros que os tornem coerentemente suficientes para proporcionar um sentido à vida do indivíduo. A narrativa ficcional traduz esses dois movimentos. Aproveita a necessidade de criação de expectativa do leitor para apresentar o texto cheio de lacunas que, à maneira proposta por Wolfgang Iser (2013), deverão ser suplementadas. Em Teoria geral do esquecimento (AGUALUSA, 2012a), o leitor encontra um mesmo fato narrado de maneiras distintas. Por exemplo: o relato, em primeira pessoa, de Ludovica a respeito dos estranhos acontecimentos ocorridos no dia 27 de maio de 1977 (AGUALUSA, 2012a, p. 51-52) parece não fazer sentido algum. Ele é formado por diversas imagens que são despojadas de significado para o personagem. Entretanto, a partir do capítulo seguinte, tudo se mostra amalgamado ao enredo apresentado pelo narrador em terceira pessoa. Maurice Halbwachs, em Memória coletiva (1990), defende que há na memória, inevitavelmente, um evocar de vozes que garante maior validade, na medida em que os discursos evocados se reforçam entre si. Mesmo assim, não se pode ignorar a existência de certa fragilidade nesse evocar a voz do outro. Assim, torna-se palpável reforçar a ideia de que a memória é, além de fragmentária, seletiva (SELIGMANN-SILVA, 2003) e por isso incapaz de dar conta do passado por si só, embora isso não tire seu papel e seu valor indiscutíveis nos diversos campos do saber. A representação dessa fragilidade se revela na narrativa no encontro de Pequeno Soba com Papy Bolingô e o dono do estabelecimento em que Papy 104

apresentava seu show, um antigo guerrilheiro chamado Pedro Afonso. Enquanto bebiam cervejas, vem à tona a história dos diamantes encontrados por Pequeno Soba dentro de uma pomba. Ainda que desconhecesse a origem das pedras, Pequeno Soba “contou a história, demorando-se nos pormenores, nas voltas e reviravoltas, inventando com talento e gosto o muito que desconhecia”. (AGUALUSA, 2012a, p. 150 – grifos nosso). A realidade cede lugar à invenção diante das falhas da memória e os espaços do apagamento e desconhecimento são preenchidos pela criação. Assim, a narrativa se transforma num misto de realidade e fantasia, a partir da qual revê o passado. Falando das linguagens por meio das quais a memória pode se tornar material, Márcio Seligmann-Silva (2003) defende que o cinema memorialista “trabalha no registro ambíguo do hieróglifo e não da imagem pura” (SELIGMANN-SILVA, 2003, p. 82). Da mesma forma, a narrativa ficcional memorialista trabalha, também, no campo do simbólico, embora, por vezes, seja possível identificar um parâmetro mimético- verossímil entre a ficção e a realidade. Nesse processo de lembrar o que foi esquecido, de rememorar um acontecimento passado, torna-se inevitável pensar o tempo e suas relações com a memória. Esta se dá a partir do intervalo vazio do esquecimento e que se apoia no que Halbwachs (1990) chama de “pontos de referência”, compreendidos aqui como o momento do acontecimento em si e o momento da rememoração, um fornecendo consistência ao outro, na medida em que se entrecruzam, dando corpo a uma representação maior. A esse respeito, a necessidade de esquecimento e a alegoria do rio se destacam no capítulo “O estranho destino do Rio Kubango” (AGUALUSA, 2012a, p. 113-142), em que muitas das histórias narradas no romance se entrecruzam. O clímax da cena ocorre no encontro de Monte com Jeremias Carrasco, Pequeno Soba, Daniel Benchimol e Nasser Evangelista, todos no corredor em frente à porta do apartamento de Ludo que já havia se descerrado ao mundo após vinte e oito anos de enclausuramento. Vendo-se cercado pelas vítimas de sua violência e temeroso por sua vida, Monte consegue escapar. Dessa experiência limítrofe se recorda:

Veio-lhe à memória, sem razão aparente, a imagem de uma canoa flutuando no Delta do Okavango. O Kubango passa a chamar-se Okavango ao cruzar a fronteira com a Namíbia. Sendo um grande rio não cumpre o destino comum aos seus pares: não deságua no mar. Abre os fortes braços e morre em pleno 105

deserto. É a morte sublime, generosa, que enche de verde e de vida as areias do Kalahari17. Monte passara o trigésimo aniversário do seu casamento no Delta do Okavango, numa pousada ecológica – um presente dos filhos. Haviam sido dias afortunados, ele e Maria Clara, caçando coleópteros e borboletas, lendo, passeando de canoa. Certas pessoas padecem do medo de ser esquecidas. A essa patologia chama-se atazagorafobia. Com ele sucedia o oposto: vivia o terror de que nunca o esquecessem. Lá, no Delta do Okavango, sentira-se esquecido. Fora feliz. (AGUALUSA, 2012a, p. 141-142)

Na tentativa de explicar as relações que se estabelecem entre as várias dimensões da memória na construção das identidades, o pensamento do antropólogo Joël Candau, tornou-se referência fundamental nas ciências sociais, principalmente para aqueles que trabalham com os conceitos de memórias individuais e coletivas. Em Memória e identidade (2011), Candau diferencia o que chama de memórias fortes e fracas e distingue a memória a partir de três qualidades: a protomemória, a memória de evocação e a metamemória. Em uma primeira análise, a protomemória poderia ser confundida com o conceito de “habitus”, desenvolvido por Pierre Bourdieu em sua obra A dominação masculina [2003], impressão que nasce da aproximação que Candau estabelece ao afirmar que o “habitus” depende da protomemória (CANDAU, 2011, p. 22). Ela é a memória social incorporada, tal como se expressa, por exemplo, nos gestos, nas práticas e na linguagem, cujo exercício é realizado quase automaticamente, sem um julgamento prévio, “quase sem tomada de consciência” (CANDAU, 2011, p. 23). O segundo tipo é a memória propriamente dita. Trata-se da evocação ou recordação voluntária. Ela possui extensões, como os saberes enciclopédicos, as crenças, as sensações e os sentimentos, que se beneficiam da cultura da memória que promove sua expansão em extensões artificiais. Finalmente, a terceira memória, chamada de metamemória, constitui-se naquela forma de memória reivindicada a partir de uma filiação ostensiva. Esta última diz respeito à construção identitária. É a representação que se faz das próprias lembranças, o conhecimento que se tem delas. Dessa forma, Candau elimina qualquer possibilidade de compreensão simplista da memória coletiva de

17 Kalahari é o deserto situado ao sul da África, cuja extensão abrange partes de Botswana, Namíbia e África do Sul. 106

Halbwachs (1990), conceito às vezes atacado como abstração vazia, sem referência a qualquer realidade concreta. Além disso, o antropólogo sai em defesa de Halbwachs em sua polêmica com o sociólogo e o historiador Marc Bloch, que, ainda em 1925, época do lançamento de Les cadres sociaux de la mémoire, escreve uma resenha apontando algumas fragilidades do conceito de memória coletiva e criticando a distinção que Halbwachs fazia entre memória e história. Candau desenvolve a relação entre essas duas operações narrativas que obedecem a princípios particulares, como entendidos por Paul Ricoeur nas obras Tempo e narrativa (1994, 1997) e A memória, a história, o esquecimento (2010). Para Joël Candau, a história é filha da memória (VEYNE apud: CANDAU, 2011, p. 133) e pode ou não legitimar o que a memória funda. Todo historiador participa da construção da memória e nela se encontra enredado, embora deva, por princípio de ofício, permanecer vigilante em relação a ela. De certa maneira, Candau aperfeiçoa o conceito de memória coletiva ao reduzir a possibilidade de confusão entre memórias individuais e coletivas. Ele soluciona o problema propondo que as duas primeiras memórias, a protomemória e a memória propriamente dita, constituem faculdades individuais, logo, não podem ser compartilhadas. Só a terceira memória, a metamemória, aquela que se refere à memória coletiva, pode ser compartilhada, pois é um conjunto de representações da memória. Outra importante contribuição do pensamento de Candau é a distinção entre memória forte e fraca. Em alguns momentos, o autor parece buscar uma suposta coerência nela própria, quando define a memória forte como uma “memória massiva, coerente, compacta e profunda” (CANDAU, 2011, p. 44), que organiza o sentido. Esse tipo de memória seria mais facilmente encontrado em grupos pequenos. Essa busca parte de sua necessidade de criar um parâmetro que lhe permita classificá-la como forte ou fraca, mas, de certa forma, ela reduz o relevo das disputas internas. Já a memória fraca não possuiria contornos bem definidos, seria difusa e superficial, e, por isso, dificilmente compartilhada pelos indivíduos. Segundo o autor, esse tipo de memória corre o risco de ser desorganizadora de sentido e contribuir para a desnaturalização de um grupo. Entretanto, é possível questionar se as memórias fortes também não poderiam desorganizar sentidos, na medida em que limitam a pluralidade de lembranças. 107

Em resumo, a distinção entre uma e outra reside no fato de que a memória forte se caracteriza pela capacidade de estruturar os grupos humanos. De modo mais exato, a memória forte seria estruturante de identidades, capaz de organizar sentido naquilo que o autor denomina retórica holística, o que pode ser interpretado como o que se chama comumente de “grandes narrativas”. Já a debilidade da memória se originaria da gradativa transformação dos grupos, conforme seus quadros sociais de memória, que sustentam as memórias fortes. Do lado da identidade, Candau explica que o conceito se refere a um estado e que, a rigor, não poderia ser aplicado nem ao indivíduo, nem muito menos a um corpo social (CANDAU, 2011, p. 25). Segundo ele, os estados mentais são incomunicáveis e não podem ser observados pelos sujeitos simultaneamente (CANDAU, 2011, p. 36). Por isso, a transmissão de lembranças não promove necessariamente os mesmos sentidos, isto é, a correta comunicação da memória não garante que ela seja compartilhada. Assim, afirma o antropólogo que nem sempre a memória social chega a tornar-se efetivamente coletiva. Duas ancoragens em torno das quais se fundam identidades são a origem e o acontecimento, às quais Candau se refere como “pedras numerárias” (CANDAU, 2011, p. 95). A lealdade ao passado, marcado por essas âncoras, naturaliza a comunidade pelo lado positivo e dificulta sua transformação. Por outro lado, elas funcionam como instrumentos que ratificam a filiação a certas identidades a partir da escolha dos fundamentos históricos para essas identidades. Há uma espécie de pedagogia acerca das origens (CANDAU, 2011, p. 98) que deverá compor a identidade narrativa dos sujeitos e que assegure a estrutura identitária do grupo (CANDAU, 2011, p. 99). Portanto, o antropólogo reconhece na origem e nos acontecimentos as principais balizas temporais segundo as quais os processos identitários são possíveis. Contudo, a “existência de atos de memória coletiva não é suficiente para atestar a realidade de uma memória coletiva. Um grupo pode ter os mesmos marcos memoriais sem que por isso compartilhe as mesmas representações do passado” (CANDAU, 2011, p. 35). De outra forma, os ancoradouros de memória são importantes para “delimitar uma área de circulação das lembranças” (CANDAU, 2011, p. 35). Por esse motivo, o autor se preocupa com os processos de sociabilização de memória ou, como diz, com a memória em expansão. 108

Joël Candau chama a atenção para o fato de que a memória artificial não produz laços sociais (CANDAU, 2011, p. 115): “Nas sociedades modernas, a transmissão de uma boa parte da memória é mediatizada” (CADAU, 2011, p. 110). E critica o que chama de “verborreia” dos nossos sistemas de comunicação (CANDAU, 2011, p. 113), que, segundo ele, produzem uma “iconorreia”. A profusão de informação oferecida e a velocidade com que as sociedades produzem traços têm como consequência uma “onda memorial” (CANDAU, 2011, p. 112): a tendência à patrimonialização de tudo e o arquivamento obsessivo. Para ele, no fundo, a cultura do armazenamento reflete o “medo mórbido de escolher” (CANDAU, 2011, p. 113), o que produziria uma paralisia. Para se desenvolver, é necessário ser capaz de descartar o passado. A essa memória artificial derivada da “iconorreia” midiática corresponderia um certo tipo de esquecimento. Candau entende o papel dos esquecimentos na construção da memória de diferentes modos. O que ele chama de “esquecimentos tradicionais” seriam aqueles capazes de vincular os indivíduos ao presente e funcionarem como fator fundamental na criação de identidades culturais. Já os esquecimentos contemporâneos, motivados pela “iconorreia”, ou pela desmemória, causariam uma desconexão social e consequente perda identitária (CANDAU, 2011, p. 131). Já quanto aos projetos de memória, o antropólogo admite que, embora não existam grupos fechados, o que significa que os enunciados estão sempre submetidos a um julgamento e correm o risco de germinar a dúvida, esses projetos ameaçam desnaturalizar os acontecimentos (CANDAU, 2011, p. 42). O verbo “desnaturalizar” parece ter sido empregado no sentido de esvaziar o acontecimento de sentidos fortes que funcionem para o vínculo identitário de um grupo. Esses projetos são reivindicações de autoridade sobre as lembranças. Porém, a autoridade das lembranças e a autoridade de quem lembra só poderão ser medidas por sua capacidade de conferir real sentimento de compartilhamento. A memória é, em parte, herdada, não se refere apenas à vida física da pessoa. A memória também sofre flutuações que são função do momento em que ela é articulada, em que ela está sendo expressa. As preocupações do momento constituem um elemento de estruturação da memória. Isso é verdade também em relação à memória coletiva, ainda que esta seja bem mais organizada. Sabe-se que até as datas oficiais são fortemente estruturadas do ponto de vista político. Quando se procura enquadrar a memória nacional por meio de datas 109

oficialmente selecionadas para as festas nacionais, há muitas vezes problemas de luta política. A memória organizadíssima, que é a memória nacional, constitui um objeto de disputa importante, e são comuns os conflitos para determinar que datas e acontecimentos serão gravados na memória de um povo. Esse último elemento da memória – a sua organização em função das preocupações pessoais e políticas do momento – mostra que a memória é um fenômeno construído. Ao falar em construção, em nível individual, refere-se aos modos de construção que podem tanto ser conscientes como inconscientes. O que a memória individual grava, recalca, exclui, relembra é, evidentemente, o resultado de um verdadeiro trabalho de organização. Pode-se dizer que, em todos os níveis, a memória é um fenômeno construído social e individualmente. Quando se trata da memória herdada, pode-se também dizer que há uma ligação fenomenológica muito estreita entre a memória e o sentimento de identidade. Aqui o sentimento de identidade está sendo tomado no seu sentido mais superficial, mas que basta para essas reflexões: é o sentido da imagem de si, para si e para os outros. Isto é, a imagem que uma pessoa adquire ao longo da vida referente a ela própria, a imagem que ela constrói e apresenta aos outros e a si própria, para acreditar na sua própria representação, mas também para ser vista da maneira como quer ser percebida pelos outros. Nessa construção da identidade há três elementos essenciais. Há a unidade física, ou seja, o sentimento de ter fronteiras físicas, no caso do corpo da pessoa, ou fronteiras de pertencimento ao grupo, no caso de um coletivo; há a continuidade dentro do tempo, no sentido físico da palavra, mas também no sentido moral e psicológico; e finalmente, há o sentimento de coerência, ou seja, de que os diferentes elementos que formam um indivíduo são efetivamente unificados. De tal modo isso é relevante que, se houver forte ruptura desse sentimento de unidade ou de continuidade, podem observar-se fenômenos patológicos. É possível, portanto, dizer que a memória é um elemento constituinte do sentimento de identidade, tanto individual como coletiva, na medida em que ela é também um fator extremamente importante do sentimento de continuidade e de coerência de uma pessoa ou de um grupo na reconstrução de si. Assimilando aqui a identidade social à imagem de si, para si e para os outros, evidencia-se um elemento dessas definições que necessariamente escapa ao 110

indivíduo e, por extensão, ao grupo. Este elemento, obviamente, é o outro. Ninguém pode construir uma autoimagem isenta de mudança, de negociação, de transformação em função dos outros. A construção da identidade é um fenômeno que se produz em referência aos outros; aos critérios de aceitabilidade, admissibilidade, credibilidade; e que se faz por meio da negociação direta com os outros. Nesse sentido, o reconhecimento da identidade coletiva de Angola, enquanto Estado-nação, após as lutas de libertação contra o colonizador, como destacado anteriormente, significou a adoção, por parte do poder político vigente, dos preceitos marxistas-leninistas, comuns a um eixo de países contrários às práticas capitalistas, tais como Cuba, União Soviética e China. Em Teoria geral do esquecimento (2012a), Agualusa utiliza-se da lenda da lagoa que ressurge atrás do Prédio dos Invejosos para sinalizar a potência de resistência que, mesmo com a condenação, por parte da ideologia dominante, às práticas das crenças e tradições, a identidade do povo se manifesta continuamente no culto da kianda (AGUALUSA, 2012a, p. 40). Com isso, vale dizer que memória e identidade podem ser negociadas, sem, contudo, serem entendidas como fenômenos que devam ser considerados como essências de uma pessoa ou de um grupo. A significativa produção de reflexões sobre a complexidade e diversidade das questões pertinentes à memória mostram que esta é uma temática recorrente numa sociedade marcada pela aceleração do instantâneo, pelo efêmero e pela crescente e notável diminuição de densidade temporal entre os acontecimentos e a sua percepção. Assim, discute-se sobre os usos da memória e do esquecimento, dentro da perspectiva da desmemória (cujo sentido talvez seja o de apagamento), ou da ideia de “memória confiscada”, na pontual referência à realidade do pós-guerra de independência. O intuito é pensar o confronto memória-esquecimento colocado por diversos atores sociais e políticos de Angola, representados na narrativa ficcional de Agualusa, que, no passado recente, sofreram com a instauração do Estado totalitário pós-independente. O esquecimento, a princípio, constitui um fosso entre o acontecimento e a atividade de rememoração. Porém, esse espaço é algo necessário à própria vida. A declaração de Nietzsche de que “[é totalmente impossível viver sem o esquecimento]” e o “elogio ao esquecimento”, de Walter Benjamin, fazem Márcio 111

Seligmann-Silva afirmar que “a verdade [...] parece não encontrar-se mais na aletheia (verdade, em grego), mas sim na Letes, no esquecimento” (SELIGMANN- SILVA, 2003, p. 60-61). Parece paradoxal, mas o mito grego fornece alguns esclarecimentos que podem justificar esse imbricamento necessário entre o lembrar e o esquecer. Lete é parceira de Mnemosyne, deusa da memória. É também, de acordo com as oscilações do mito, o nome do rio do esquecimento cujas águas, se bebidas, permitem que as almas esqueçam sua existência anterior e possam “renascer em um novo corpo” (WEINRICH, 2001, p. 24). Esquecer, dessa forma, significa livrar-se de todo mal e alcançar a pureza necessária para se viver uma nova vida. Lembrar, por sua vez, seria não um reviver, mas um viver de novo, possibilitado graças à memória, mesmo em sua condição de instância “fragmentária e seletiva”. Nesse sentido, novamente se faz pertinente a defesa de Halbwachs, para quem “o tempo [...] não passa de uma criação artificial” (HALBWACHS, 1990, p. 119). Assim, convém analisar o trecho a seguir que pensa o tempo enquanto duração interior:

O velho, que guardou a lembrança de sua vida de criança, acha que os dias são hoje ao mesmo tempo cada vez mais lentos e mais curtos, o que quer dizer que, tanto acredita que o tempo corre mais lentamente, porque os momentos, tais como tem o sentimento de vivê-los, são mais longos, como crê que corre mais rápido, porque os momentos tais como se enumeram em torno dele , tais como a medida dos ponteiros do relógio sucedem-se com tal rapidez que eles o ultrapassam: não há tempo para preencher um dia com tudo aquilo que nele uma criança consegue encaixar facilmente; é porque sua duração interior é lenta que o espaço de um dia lhe parece mais curto (HALBWACHS, 1990, p. 93-94).

O tempo do esquecimento – o intervalo vazio – é também o tempo que faz lembrar os acontecimentos. Esse tempo, porém, toma para si a contribuição do que Halbwachs nomeia “contexto de dados temporais”. Estes, por sua vez, atuam fornecendo elementos que permitam ao sujeito elencar situações que tornem sua lembrança mais concreta. Pensar, por exemplo, como, com quem ou onde se deu um acontecimento, são reflexões através das quais, “[...] com muita frequência uma lembrança toma corpo e se completa” (HALBWACHS, 1990, p. 101). Entretanto, em termos concretos, a memória relaciona-se com a dimensão do tempo passado, estabelecendo uma necessária interação entre o esquecimento (apagamento) e a preservação integral do passado (TODOROV, 2000, p 18-19) – na 112

verdade, preservação impossível. Imaginar que exista alguém como “Funes, o memorioso”, de Jorge Luís Borges (1970), personagem que retém a totalidade do que viveu, é tão inconcebível quanto qualquer outro que possua tão má memória que um dia se esqueça de que tinha má memória e se lembre de tudo. Sem dúvida, ambas as experiências são tão improváveis quanto apavorantes. A rememoração é uma façanha da memória, considerada uma arte capaz de vencer até mesmo o esquecimento. E é preciso entender a expressão latina ars memoriae, ou mnemotécnica (do grego Mnemosyne – memória, lembrança + techne – arte), em seu sentido originário, que:

Significa um objeto de saber sujeito a regras e por isso mesmo bom de aprender, de uma certa complexidade, que pede considerável esforço e paciência para ser aprendido, pois a ‘arte é longa, a vida breve’ (ars longa, vita brevis). (WEINRICH, 2001 p. 30 – grifos do Autor).

A “natureza imaginativa da memória”, intrínseca ao rememorar, dá ao escritor contemporâneo a possibilidade de dialogar entre a ars memoriae (arte da memória) e a ars oblivionis (arte do esquecimento), numa postura revisitante do passado que não pode ser resgatado e do futuro que se projeta. Paul Ricoeur, em sua obra A memória, a história, o esquecimento (2010), dá pistas de como esse diálogo pode contribuir para a ficção contemporânea, quando diz que “as extraordinárias façanhas da ars memoriae destinavam-se a conjurar a infelicidade do esquecimento por uma espécie de supervalorização da memorização que vinha acudir a rememoração.” (RICOEUR, 2010, p. 435 – grifos do Autor). Dessa forma, o esquecimento não será a negação da memória, mas o que dá completude ao memorialismo.

[...] o esquecimento está associado à memória [...]: suas estratégias e, em certas condições, sua cultura digna de uma verdadeira ars oblivionis fazem com que não seja possível classificar, simplesmente, o esquecimento por apagamento de rastros entre as disfunções ao lado da amnésia, nem entre as distorções da memória que afetam sua confiabilidade. (RICOEUR, 2010, p. 435 – grifos do Autor).

O esquecimento pode ser confundido com a memória, de tão intrinsecamente ligado a ela. Ele “pode ser considerado como uma de suas condições.” (RICOEUR, 2010, p. 435) 113

Lembrar e esquecer são ações que implicam seleção de informações, o que significa dizer que, assim como não há possibilidades de um Funes (BORGES, 1970), também não há memória sem esquecimento. A análise da temática da memória implica reconhecer que há, como contrapartida, o esquecimento, os silêncios e os não-ditos. O esquecimento pode ser uma opção de restringir ao essencial certos fatos ou informações a respeito deles. Mas também pode ser o resultado de uma ação deliberada de ocultamento. Note-se a decisão de Ludo de se enclausurar no apartamento para que o mundo a esquecesse. Na disputa pelo quê lembrar, é possível pensar em memórias subterrâneas, que surgem e se mantêm nos interstícios dos espaços compreendidos entre o esquecimento e a memória social. Elas expressam as memórias dos excluídos, dos esquecidos da memória oficial. Nesse sentido, é de se observar a seleção de tipos de excluídos da história que são representados pelos personagens de Teoria (AGUALUSA, 2012a), como Sabalu, o menino cuja orfandade se deve à violência da população cooptada pelo sistema político-ideológico no início do período subsequente à independência de Angola (AGUALUSA, 2012a, p. 122), ou do sapeur18 comprador dos diamantes de Pequeno Soba, representante de um grupo social angolano exilado durante os anos 1960, em Bacongo, bairro da capital do Congo, Brazzaville, em decorrência da perseguição política na Angola colonial (AGUALUSA, 2012a, p.72). Evidentemente que, se há usos da memória, há também usos do esquecimento. Isto aponta para a possibilidade de até instrumentalizar os esquecimentos: há esquecimentos que são usados ou que são usáveis para certos fins. Esquecer pode ser uma opção, uma conveniência, que resulta de uma ação consciente. É diferente de desconhecer ou de sofrer um esquecimento induzido por um outro sujeito. E, na história, tais situações são recorrentes. Tzvetan Todorov (2000) afirma que os regimes totalitários do século XX deram à memória um estatuto inédito na medida em que perseguiram com afinco a sua supressão. Entretanto, políticas diversas de censura ocorreram muito antes; nunca é demais lembrar o exemplo da Inquisição. Mas no século XX, o domínio

18 O termo sapeur é derivado da sigla de Société des Ambiances et de Personnes Elegantes (SAPE), que quer dizer, em português, sociedade de ambientadores e de pessoas elegantes. 114

sobre a informação e a comunicação redimensionou a apropriação da memória num nível quase absoluto. Com sucesso diverso, há inúmeros rastros da eliminação de vestígios do passado, de manipulação, de tergiversamento ou de maquiadura do que existiu. São distorções e mentiras que ocupam o lugar da realidade simultaneamente à proibição da procura e difusão da verdade (TODOROV, 2000, p. 12). E isto ocorre independentemente do matiz ideológico. Seja sob ditaduras de direita ou de esquerda, seja sob a ditadura do capital, a memória e a história são vítimas constantes dessa dominação. A ênfase recente na reconstrução de um pensamento único vinculado aos interesses da globalização neoliberal mostra a vigência desta discussão e a permanente luta pelo controle das formas autônomas e científicas do pensamento. O relato das mudanças ocorridas tanto no cenário de Luanda, como no vetor econômico adotado pelo governo angolano após 2003, estão retratadas no romance (AGUALUSA, 2012a), como, por exemplo, pela ascensão econômica do outrora ativista político Pequeno Soba que se torna empresário ou pelo movimento inverso de obsolescência de ex-militares – fossem estes do exército português colonial ou do exército do MPLA – representados pelas figuras de Monte e do pai de sua mulher Maria Clara, Horácio Capitão. Em outra ordem de coisas, a expressão confisco da memória é utilizada por Bronislaw Baczko (1991) ao analisar a Polônia no período do denominado socialismo real. É uma ideia-síntese que caracteriza a tentativa de expropriação do passado e a imposição de um novo corpo de valores e ideias que se colocam, conflitivamente, contra a memória e a interpretação do passado anteriormente existente, no sentido de purgá-los e manipulá-los em benefício do novo poder estabelecido. No caso polonês, a tentativa de controle mostra-se, retrospectivamente, insuficiente, apesar de ser uma política de Estado que não escamoteou esforços e meios de controle e manipulação. Para Baczko, a memória coletiva mostrou-se muito mais coesa do que se poderia imaginar, o que se evidenciou na fase final de desestruturação do domínio do Partido Comunista desde o início dos anos 1980. Dois motivos, segundo ele, explicam a derrota do projeto de confisco: primeiro, a crença de que as representações coletivas são indefinidamente maleáveis e, se eficientemente afrontadas pela pressão político-estatal, se prestam a qualquer tipo de manipulação; segundo, o menosprezo geral de sua dinâmica social pela população e pelo senso comum: “Pode-se lhes dizer qualquer coisa que 115

acabarão por acreditar” sempre e quando o sistema “conserve o monopólio da palavra, o controle total da informação, e disponha de modernos meios de comunicação de massas e dos meios totalitários de pressão” (BAZCKO, 1991, p. 168)19. A tentativa de apagamento das tradições frente à imposição do chamado “homem novo” angolano, nascido juntamente com a nova nação e o discurso marxista extremista, demonstra a intenção totalitária do poder político num projeto de confiscar a memória coletiva do povo. É uma atitude tão arbitrária quanto a impetrada pelo colonialismo que também silenciou a memória das tradições. O silêncio, o não esclarecimento dessas questões, o desconhecimento desse passado colocam uma outra problemática, a de servir de fermento para as argumentações que negam os acontecimentos, além da perda do potencial pedagógico que implicitamente possui o ato de lembrar. É evidente que a sonegação da informação, da experiência e a imposição do esquecimento são mecanismos utilizados para consolidar o anestesiamento geral e a “desresponsabilização” histórica. Tais mecanismos contribuem para a implantação de uma memória “reciclada” que interessa ao poder dominante e que, evidentemente, se afasta ainda mais do passado histórico “real”. A memória é seletiva; não há memória sem esquecimento. Mas não se pode esquecer o que se desconhece. Para que a memória tenha significado para o sujeito, este deve esquecer a maior parte do que viu. É condição básica do fato de lembrar, classificar, combinar e destacar lembranças para exercer, assim, o direito de poder esquecer parte delas. Entretanto, para esquecer deve-se conhecer. Pode-se exercer o direito da opção de esquecer. Este é o problema dos familiares dos desaparecidos. Não se trata do que fazer para lembrar, mas de como agir, se os fatos não são conhecidos até hoje. Como a reiterada tentativa de reconstrução dos acontecimentos atrelados ao dia 27 de maio de 1977. José Eduardo Agualusa traça um paralelo entre os romances Estação das chuvas (2012b) e Teoria geral do esquecimento (2012a), apresentando múltiplas visões acerca desse capítulo da história angolana que se encontra enevoado.

19 “Se les puede decir cualquier cosa y terminarán por creerlo [...] conservar el monopolio de la palabra, el control total de la información, de disponer de modernos médios de comunicación de masas y de lós medios totalitarios de presión (BAZCKO, 1991, p. 168). 116

O historiador Jacques Le Goff apelou aos cientistas da memória a engajarem- se na democratização da memória social como eixo prioritário das suas análises científicas. Isto implica também apurar, cada vez mais, a importância do papel da memória na dinâmica temporal, na qual o passado é sempre objeto e motivo de reflexão para o presente e até para o futuro (LE GOFF, 1996, p. 477). Da mesma forma, a afirmação do papel que a memória desempenha como matéria-prima, sobre a qual o historiador, com seus métodos de trabalho, pode produzir o conhecimento histórico. Por outro lado, há também o direito ao esquecimento. “Seria de ilimitada crueldade lembrar, continuamente a alguém, os fatos mais dolorosos da sua vida; também existe o direito ao esquecimento. [...] Cada qual tem direito a decidir.” (TODOROV, 2000, p. 25)20 Quando há uma possibilidade de amadurecimento reflexivo sobre os fatos armazenados na memória, é possível realizar um reordenamento, uma readequação das lembranças, o que pode permitir, inclusive, o esquecimento daquelas mais dolorosas. O esquecimento pode ser uma decorrência natural de uma série de fatores, mas, sobretudo, deve ser uma opção e um direito. E é claro que a opção de lembrar também deve ser uma opção e um direito. Perpassando tudo isto está a questão do livre-arbítrio individual ou do consenso coletivo. Ludo quis esquecer-se do “acidente” (AGUALUSA, 2012a, p. 11) devido ao trauma sofrido (AGUALUSA, 2012a, p. 165-167). Mas a inevitabilidade do encontro com o passado se dá quando Maria da Piedade Lourenço, filha de Ludo, a conhece pessoalmente (AGUALUSA, 2012a, p. 153). O primeiro momento é de estranhamento entre elas: “Ludo não conseguia distinguir-lhe os pormenores do rosto. Todavia, deu pela crista. Parece uma galinha, pensou, e logo se arrependeu por ter pensado aquilo.” (AGUALUSA, 2102a, p. 153). Depois, há a tentativa de fuga de Ludo para evitar o reconhecimento dos fatos: “Apontou para a mulemba: Tenho visto crescer aquela árvore. Ela viu-me envelhecer a mim. Conversamos muito.” (AGUALUSA, 2102a, p. 154). E, por fim, a aceitação de que, sem o reconhecimento de lembranças, só há esquecimento: “Minha família é esse menino [Sabalu], a mulemba, o fantasma de um cão” (AGUALUSA, 2102a, p. 154).

20 “Sería de una ilimitada crueldad recordar continuamente a alguien los sucesos más dolorosos de su vida; también existe el derecho al olvido. [...] Cada cual tiene derecho a decidir” (TODOROV, 2000, p.25). 117

A memória exige o conhecimento do passado e de todas as suas consequências por parte da sociedade. Enquanto isso estiver encoberto e continuar a se pressionar por um perdão sem justiça, a reconciliação, de fato tão necessária, é inviável. O repensar a história e reconstruir memórias subterrâneas, silenciadas, ocultadas pode contribuir para pensar outros futuros. A narrativa ficcional reconstrói o discurso desconhecido da morte de Orlando e Odete, cunhado e irmã de Ludovica, por meio do relato escrito de Jeremias Carrasco que diz:

O responsável fui eu. Matei-os. Conheci o Velho Pico, no Uípe, no início da guerra. Foi ele quem me procurou. Alguém lhe falou de mim. Precisava da minha ajuda para dar uma golpada na Diamang. Uma coisa limpa, bem feita, sem sangue nem confusões. Combinamos que eu ficaria com metade das pedras. Fiz o que tinha a fazer, deu tudo certo, mas, no fim, o Pico fugiu. Deixou-se de mãos vazias. Nunca acreditou que o viesse procurar a Luanda. Não me conhecia. Entrei na cidade, cercada pelas tropas do Mobuto e pela nossa gente, uma aventura louca, e procurando aqui e ali, durante dois dias, acabei por o encontrar, numa festa, na Ilha. Fugiu ao ver- me. Persegui-o, de carro, como nos filmes. Então ele despistou-se e embateu contra uma árvore. A sua irmã teve morte imediata. O Pico viveu o suficiente para me dizer onde escondera os diamantes. Lamento muito. (AGUALUSA, 2012a, p.162-163)

Com isso, o escritor tem de recorrer à reminiscência, pois é, a partir da experiência enquanto extensão da memória, que parece criar possibilidades de ultrapassar os limites da percepção do esquecimento e de enveredar-se pela narração. “A arte de narrar é uma arte da duplicação; é a arte de pressentir o inesperado; de saber esperar o que vem, nítido, invisível”, revela o crítico literário Ricardo Piglia (2004, p. 114). A partir das estratégias empreendidas por Agualusa, em Teoria geral do esquecimento (2012a), pode-se detectar a inscrição de traços da função operatória que constitui a dinâmica memorialística, de que fala Henri Bergson (1999). Para esse pensador francês, há uma incompatibilidade entre lembrar e perceber. Enquanto perceber implica estar voltado para o presente, tendo em vista as necessidades de ação, lembrar pressupõe seu afastamento, ainda que temporário do presente, da “ação a que nossa percepção nos inclina” (BERGSON, 1999, p. 103). A tensão existente entre essas duas operações do pensamento é fundamental para a constituição da memória. O desejo aparece como a escolha ou a intenção de manter e compartilhar acontecimentos. Sabe-se, no entanto, que os acontecimentos são da ordem da criação e que precisam de “espaço livre” para se 118

manifestarem. Esse espaço livre é construído pela operação do esquecimento. Parece, então, que o esquecimento é a operação necessária para a constituição da memória. Positivar o esquecimento é a operação necessária e fundamental para a recriação. Agualusa recria a realidade angolana em seu romance, utilizando-se da imagem metonímica de um período histórico do país através do emparedamento de Ludovica. A guerra civil traduziu-se na suspensão do tempo, motivando-o a contar a história e a não-história, a escrever um romance com um título que mais parece ser de um ensaio: Teoria geral do esquecimento (AGUALUSA, 2012a). E suma, o romance se firma como composição contemporânea, ao apresentar o duplo trânsito do lembrar e do perceber, só possível “nos escombros da memória”. 119

4. Considerações finais

Pensar a escrita de si, o testemunho, a memória e o esquecimento, tomando a obra de José Eduardo Agualusa Teoria geral do esquecimento (2012a) como ponto de partida do percurso, torna necessário retomar alguns pontos abordados ao longo desta dissertação. Procurou-se refletir se a literatura angolana colaborou para, até certo ponto, revelar a estrutura cultural de movimentos políticos que buscaram a criação e a consolidação do Estado-nação, concluindo que essa expressão, firmada em preceitos eurocêntricos, teve seu conceito questionado, uma vez não satisfazer os emblemas identitários que fariam de Angola uma única nação. Isso se deve ao caráter discutível da construção da complexa e multifacetada identidade cultural angolana, visto que a categoria identidade nunca é dada a priori. Ela é uma construção em eterna transformação, que atende uma ampla gama de grupos sociais. Ela se encontra amparada na noção de cultura, quando costumes e ritos compõem uma imaginária similitude entre os indivíduos dentro de uma comunidade (BALIBAR & WALLERSTEIN, 1991). E isso se pôde examinar por meio do reconhecimento da existência de identidades, levando em consideração o que Margarida Calafate Ribeiro (2004) propõe como ideia de flexão do plural do termo pós-colonialismo, ressaltando a diferença histórica e cultural de cada um dos termos. Para Ana Mafalda Leite (2013), a transposição de conceitos e de teorias criados a partir de contextos bastante distintos daqueles envolvendo Portugal e suas ex-colônias em África trazem perigo para uma superficial adaptação de conceitos teóricos, principalmente, quanto aos estudos “anglófonos” e “francófonos”. O conceito de pós-colonialismo, como entendido por Ana Mafalda, é a revisão crítica do colonialismo, do neocolonialismo e mesmo do anticolonialismo. A revisão conceitual não depende de critérios cronológicos ou geográficos na atribuição do conceito a um texto escrito no período da pré-independência das colônias, que denuncie as arbitrariedades do sistema, ou a textos de países colonizadores que reflitam criticamente acerca de sua condição. Da mesma forma, pode-se pensar o conceito de pós-independência. Fundamentado cronologicamente, este sofreu o alargamento de seu significado nas análises contemporâneas, principalmente, sobre o neocolonialismo e as relações de dependência cultural e econômica das ex-colônias na cena globalizada. 120

Além dos conceitos citados, outros três, considerados básicos para compreender o que seriam as identidades coletivas, foram abordados: Estado- nação, nacionalismo e angolanidade. Eric Hobsbawn (1990), em 1990, anteviu a mudança da escrita da história com a formação de blocos transnacionais em decorrência da globalização, fazendo com que a ideia de Estado-nação assumisse papéis subordinados. O conceito de nação de Benedict Anderson (2008) prevê o reconhecimento de uma “comunidade política imaginada”. Para o cientista político, são fronteiras que, mesmo dotadas de alguma elasticidade, não se projetam sobre toda a humanidade. Em oposição à continuidade presumível dos limites e fronteiras, Homi K. Bhabha (2003) recusa uma narrativa unitária de nação. O nacionalismo do século XIX, para o pensador indiano, apresentou-se arbitrário ao definir seus discursos como monólitos, em oposição ao sentido unitário e à “sabedoria moral” da narrativa plenipotenciária. É no pensamento de Étienne Balibar (et al., 1991) que o termo “forma-nação” é conceituado como um relato que atribui continuidade ao sujeito, traduzindo a ilusão de uma identidade unívoca a partir de uma análise histórica retrospectiva. A “forma- nação” é um instrumento ideológico de dominação de múltiplas lutas de classe, o que propiciou o surgimento da burguesia no âmbito estatal, exercendo hegemonia cultural, política e econômica. Para o pensador francês, a toda identidade corresponde um sentimento de pertencimento. A “transindividualidade”, que caracteriza a identidade, se situa justamente na diferenciação em relação ao outro, com o qual se possa contrapor a singularidade a que se reivindica. Para Boaventura de Sousa Santos (2001), a concepção identitária é uma inusitada hibridação do sistema colonial: a assimilação da cultura do colonizado pelo colonizador, ou, ainda, a colonização cultural do próprio colonizador. Arriscada e empobrecedora é a tentativa de homogeneização da experiência pós-colonial, segundo a pesquisadora Simone Schmidt (2009), já que ela é, em princípio, heterogênea. Então, procura-se um sujeito, cuja identidade é formada pela intersecção de variadas faces da história passada e presente. No mesmo diapasão, buscou-se problematizar o que seria uma literatura angolana e o conceito de angolanidade, considerando este o vetor definidor dessa expressão. Em primeiro lugar, recorreu-se ao encaminhamento teórico de Antonio Candido (1987) que, ao procurar definir uma literatura brasileira genuinamente nacional, entende essa literatura como dotada de uma capacidade de produção de 121

obras de primeira ordem, que não tomam como referência modelos estrangeiros, mas exemplos de uma produção nacional imediatamente anterior. Em seguida, esmiuçaram-se as diversas acepções de angolanidade, percebendo-se que não há uma definição que satisfaça uma ou outra singularidade. Fica patente no entendimento de Patrício Batsîkama (2013) que houve, na história de Angola, diversas angolanidades, que se destacam por um viés cultural e/ou por seu uso político. Houve, ainda, a necessidade de se refletir sobre a dinâmica entre ficção e realidade, observando o fato de que, uma vez inserido em um movimento memorial, questiona-se o que é tido como verdade. Buscou-se, com isso, entender as proximidades existentes entre domínios tão distintos como literatura e história, sobretudo em relação à metaficção historiográfica, em que ficção e discurso histórico caminham juntos, bem como os distanciamentos existentes entre ambos. Tomaram- se por base os pensamentos de Hayden White (2001), de Luiz Costa Lima (1989) e principalmente os de Linda Hutcheon (1991), com sua teoria da metaficção historiográfica. É importante ressaltar que, mesmo que Costa Lima retome White, considerando alguns de seus pensamentos, para o teórico brasileiro, as alegações de White não substancializam seu pressuposto de que há alguma proximidade entre literatura e história. Contudo, assevera que os argumentos de White são importantes para os estudos das inter-relações da história e da ficção. Costa Lima afirma que, mesmo aproximando literatura e história para debater a questão da narrativa, essa comparação não resulta em identidade entre as disciplinas, e que, apesar de traços comuns, são especificidades. Adverte ainda o teórico brasileiro sobre o risco que o historiador corre de cometer anacronismo se sua interpretação, forçosa e arbitrária, se basear em seus valores e se fundar em imagens de tempos que não os das fontes. Assim, Maria Teresa Salgado (2000) chama a atenção para o fato de José Eduardo Agualusa ser um ficcionista que trabalha a narrativa a partir da história, perspectivando ampliar o leque de indagações no diálogo entre ficção e história. Agualusa não faz uma mera reconstituição dos acontecimentos do passado, mas os subverte, mantendo uma correlação verossímil, a fim de preservar os preenchimentos suplementares dos leitores. Nesse sentido, o fenômeno da leitura empreendida nesta dissertação foi à luz de aspectos relacionados à recepção da obra pelo leitor, ou seja, à intentio lectoris, 122

de Umberto Eco (2012), que tem a ver com o direito de os leitores atribuírem sentido à obra ou ao texto lidos. Eco ainda leva em conta alguns aspectos da “estética da recepção e do efeito” que tem em Wolfgang Iser (2013) um de seus principais teóricos. Para Iser, as obras devem ser dotadas de vazios a serem suplementados por leitores criativos, que recriem a obra. Essa capacidade de recriação está no poder da memória, como assim pensa a crítica literária Angélica Soares (2009), para quem esse recurso é motivado pela “capacidade imaginativa da memória” que reúne memória e criação, tendo a transvisão como a própria essência do memorável. E para exemplificar o exercício da transvisão, analisou-se a construção do itinerário de escrita de José Eduardo Agualusa, inserido em um projeto literário que, apesar de retratar a “realidade” de Angola e dos angolanos, se pretende mais transnacional. Destacou-se a opção do escritor por basear alguns de seus enredos na sociedade “crioula” de Luanda que protagonizou os primeiros movimentos contestatórios no século XIX. Para tanto, foram selecionadas as obras A conjura (AGUALUSA, 2009b) e Nação crioula (AGUALUSA, 2011b). Outro enfoque enreda- se na sociedade do final do século XX, destacando-se os romances O vendedor de passados (AGUALUSA, 2011a) e Estação das chuvas (AGUALUSA, 2012b). Ou ainda projeta a sociedade de 2020, como em Barroco tropical (AGUALUSA, 2009a). A análise dessas obras selecionadas mostrou-se pertinente no tocante a uma demanda identitária subjacente que se pretende semelhante à de diversas obras representativas da literatura angolana no período do pós-independência. O processo realizou-se por meio do levantamento das experiências migrantes do escritor que concede à ficção vivências individuais, influências literárias, preocupações sociais e políticas específicas, convocando estratégias textuais diversas e as configurando de diversas formas, a fim de expressar diferentes percepções da complexa e multifacetada identidade angolana. As pesquisas de Jane Tutikian (2006), Ana Mafalda Leite (1998), Sílvio Renato Jorge (2007), Renata Flávia da Silva (2008), Ana Mónica Henriques Lopes (2002) e Maria Teresa Salgado (2000) demonstram a formação de uma pequena revisão bibliográfica cuja temática crítica refere-se à obra de Agualusa. 123

Para entender o que são os “escombros da memória”, partiu-se da expressão inspirada na noção de “escombro” proposta pelo pensador indiano Homi K. Bhabha (2002) que a considera como abertura à possibilidade do dizer de novo. A afirmação do discurso identitário se dá por meio das escritas de si e do testemunho, no qual o autor-narrador agualusiano torna-se um narrador obsignador – aquele que testemunha (biógrafo de Ludo) e que é indicado a assinar o testamento (a própria obra), apondo-lhe seu selo (a sua autoria). Analisou-se parte do pensamento de Hannah Arendt (2013a, 2013b, 2001), para quem só se pode transformar em experiência o sofrimento vivido na própria existência se houver publicidade, questão fundamental para a garantia e a preservação da tradição e da própria vida. Assim, não se pode deixar de ressaltar a discussão sobre o caráter fictício dos relatos de vida, dos diários e memórias ficcionalizadas no romance. Com um sujeito que se constrói a partir de seu discurso, torna-se pertinente enfatizar as relações entre linguagem e memória. Analisaram-se detidamente os procedimentos relativos a algumas estratégias narrativas empregadas no romance Teoria geral do esquecimento (AGUALUSA, 2012a). Aspectos intra e intertextuais foram destacados do texto e se puseram em diálogo com um repositório formado pela teoria da literatura, pelo comparativismo e pelos estudos interartes. A partir de então, debruçou-se sobre o estudo da memória e identidades, o que se fez à luz do pensamento do antropólogo Joël Candau, (2011), referência fundamental nas ciências sociais. Nesse caso, os romances angolanos atuais são, em grande parte, de deslegitimação, cujo fundamento tem um apelo universal ético. A escrita de Agualusa, assim como a de outros escritores, não está comprometida com a noção ocidental e europeia de nação, mas escolheu o seu povo, no intuito de afirmar suas identidades complexas e multifacetadas. A literatura, também instrumento de afirmação de identidades, retém as experiências que servirão de aparato arqueológico do memorialismo. E foi o esquecimento que mereceu maior atenção, a fim de apresentar as circunstâncias de um mundo que fez por implodir as balizas que davam plausibilidade e ressonância crítica à noção de identidade. 124

As guerras colonialista e de pós-independência foram entendidas, segundo o pensamento do filósofo alemão Harald Weinrich (2000), como “orgias de esquecimentos”, que flutuam entre a arte de lembrar e de esquecer. Daí Agualusa (2011b) afirmar que a guerra está presente em tudo. Afinal, segundo ele, a guerra é o pano de fundo dos episódios mais importantes de sua vida. Memória e esquecimento são partes de um mesmo sistema, em que se é obrigado a viver em qualquer regime totalitário, como os que se impõem após as revoluções, extinguindo as liberdades individuais. Conforme Tzvetan Todorov (2000), os regimes totalitários do século XX deram à memória um estatuto inédito na medida em que perseguiram com afinco a sua supressão. A ênfase recente na reconstrução de um pensamento único vinculado aos interesses da globalização neoliberal mostra a virulência desta discussão e a permanente luta pelo controle das formas autônomas e científicas do pensamento. Enfim, a partir do olhar empreendido por José Eduardo Agualusa, em Teoria geral do esquecimento (2012a), os esquecimentos se impõem como condição para a rememoração. Vale ressaltar, numa dimensão simbólica, que o mito de Mnemosyne, deusa da memória, revela que é preciso esquecer uma existência para poder renascer em outra. É a partir dessa ideia que Agualusa recria a realidade angolana em seu romance. Utiliza-se, principalmente, da imagem metonímica do período da guerra civil através do emparedamento de Ludovica para revelar ao leitor uma perspectiva crítica que carrega certa desilusão, não apenas perante a vida, mas em relação ao longo período de clausura de Angola, célula em suspensão durante o tempo de esquecimento. As guerras motivaram o escritor a contar a história e a não-história, a escrever um romance, no qual as ambiguidades ontológica, narrativa, perceptiva e interpretativa impõem-se como estratégia discursiva. Dessa forma, a escrita de si, o testemunho, a memória e o esquecimento são aspectos inerentes à escrita agualusiana. E o romance se afirma como composição contemporânea ao recuperar a transmissibilidade das narrativas possíveis e ao reconstruir identidades com os “escombros da memória”. 125

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