UNIVERSIDADE FEDERAL DO

JONATHAN GOMES HENRIQUE

A UNIDADE POÉTICA DE

Rio de Janeiro 2014 JONATHAN GOMES HENRIQUE

A UNIDADE POÉTICA DE RADUAN NASSAR

Dissertação de Mestrado apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Ciência da Literatura (Poética), da Universidade Federal do Rio de Janeiro, como parte dos requisitos necessários à obtenção do titulo de Mestre em Ciência da Literatura (Poética).

Orientador: Eduardo Mattos Portella

Rio de Janeiro 2014 JONATHAN GOMES HENRIQUE

A UNIDADE POÉTICA DE RADUAN NASSAR

Dissertação de Mestrado apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Ciência da Literatura (Poética), da Universidade Federal do Rio de Janeiro, como parte dos requisitos necessários à obtenção do titulo de Mestre em Ciência da Literatura (Poética).

Aprovada em 27/02/2014

______Presidente, Prof. Doutor Eduardo Mattos Portella – PPG em Ciência da Literatura, UFRJ

______Prof. Doutor Ricardo Pinto de Souza – PPG em Ciência da Literatura, UFRJ

______Prof. Doutor Ricardo Roclaw Basbaum – Instituto de Artes, UERJ

Rio de Janeiro Fevereiro de 2014 HENRIQUE, Jonathan Gomes. A unidade poética de Raduan Nassar. / Jonathan Gomes Henrique. – Rio de Janeiro: UFRJ / Faculdade de Letras, 2014. 179f.: il; 2cm. Orientador: Eduardo Mattos Portella. Dissertação (Mestrado) – Universidade Federal do Rio de Janeiro / Faculdade de Letras / Programa de Pós-Graduação em Ciência da Literatura, 2014. Referências bibliográficas: 161 – 165. 1. Literatura brasileira contemporânea. 2. Raduan Nassar. 3. Ethos. 4. Incitação. 5. Poética. 6. Corpo. 7. Humores. I. PORTELLA, Eduardo Mattos. II. Universidade Federal do Rio de Janeiro, Faculdade de Letras, Programa de Pós-Graduação em Ciência da Literatura. III. Título.

Dedico a Ana Maria Vasconcelos Martins de Castro, cujo nome eu um dia sussurrei em cada canto da minha casa Agradecimentos

Ao Professor Eduardo Mattos Portella, pelos melhores presentes que uma orientação talvez pudesse me conceder: a mais tranquila confiança e senso de humor.

Ao Professor Ricardo Roclaw Basbaum e Professor Ricardo Pinto de Souza, pela coragem no escuro.

A meus pais Joaquim Henrique de Souza e Eliete Gomes Henrique, por suportarem o amor ingrato desse seu filho impiorável.

A meu irmão Janderson Gomes Henrique, cuja abundância e escassez são invertidas com as minhas, o que deixa nossas mãos livres de disputas. Mais mil vezes por Ana Clara.

A Eliandro Kienteca Penteado, por nada de bom que preste: do talhar de cacos pra furar qualquer assunto ao Bolo Yeung sempre pedindo.

A Leandro Mangia Rodrigues, pela revolta do ovo no bolso (que teve o que merecia). E mais mil vezes por Mirela.

A Cristiano Antunes, pelo lombo, pela bifa, pelo óleo e pelo belo desprezo pelo cabelo pego de mão cheia e arrancado fora.

A Leonardo Mangia Rodrigues, bodo miserável que jogou chorume no juruna e fez crer ter sido o Mi.

A Jorge Augusto Paschoal Pires, por cagar cuspe na cabeça de quem cospe caca nas nossas. E mais mil vezes por Mayara e uma só tá bom pelo Matheus, mentira, te amo.

A Fernando Abbade Dutra Mendes, o Deus vivo que disse: “depoimentos, assim, é muito importante sabe... legal pra cralho, assim vc coloca as coisas sabe... maneiro...”

A Amaro, por seu exemplo em segredo a ser ainda inventado. A Renan de Araújo Rodrigues e Rodrigo Carqueja de Menezes, por falarem e ouvirem do enjôo de uma gravidez de vida toda.

Ao Professor Luiz Júnior, o Lince, que reuniu e armou o maior bando de Bangu: seus crimes nunca prescreverão.

A Paulo Henrique, o Nagual, aquele que para sempre escarrou na cara de um pirralho e o fez se decompor em vômitos.

Ao Professor Dau Bastos, por ser tudo aqui efeito ainda daquele seu rolar de dados.

Ao Professor Ivair Coelho Lisboa, pelo tumulto festivo e cruel que causa na mata noturna dessa vida besta.

Ao Professor Antonio Jardim, que diante da militarização das bancas e demais torturas acadêmicas sempre abre janelas de ar fresco: “não é pra sofrer o curso, é pra fazer o curso”.

A Vladimir Pereira Seixas, pelo pique na Presidentes Vargas e por todos os Pinho Sóis que um dia vou negar no tribunal terem estado sempre naquela nossa mochila.

A Rodrigo Ségges Ferreira Barros e Mariana Marques de Oliveira, pelo ensolarado bonito na lua de minha vida, por onde seus raios a mim mais indiretos no entanto chegam.

Ao Jardim Bangu e suas antiguidades: do extinto horizonte de eucaliptos deixando o gericinó mais remoto; da desabalada corrida atrás do ônibus para a escola que minha mãe regia todas as manhãs; das tardes inteiras em fliperamas da Mary e da Baiana; do incessante futebol na quadra em times trocados entre os meninos cobradores das kombis; da sujeira em pés de jamelão; das aulas de meu pai no caminho dos ossos; das aventuras solitárias contra o medo na casa dos morcegos; do pique esconde noturno valendo até o cemitério dos caminhões; das rãs caçadas nos brejos atrás da quadra cinco; do céu de pipas, dos carnavais de clóvis e dos festivais de balões; do quintal infinito com meu irmão: os ossos quebrados na descida do muro, a grade de garrafas virada, a escalada ao terraço, a cesta de basquete roubada, a mesa de ping pong lotada; e, na varanda, a mais minha, a velha monark bmx sussurrando “Avenida 2”, “Piquirobi”, “Palazzo”, “Araquém”, “Catiri”, “Bangu”...

Ao Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq), pela bolsa de estudos que me foi concedida. Resumo

HENRIQUE, Jonathan Gomes. A unidade poética de Raduan Nassar. Rio de Janeiro, 2014. Dissertação (Mestrado em Ciência da Literatura)- Centro de Letras e Artes, Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2014.

Raduan Nassar nos intriga de vários modos: por já ter abandonado a escrita quando publicou seu primeiro livro; por comparar a criação literária a uma criação de galinha; por desenvolver suas narrativas no esteio de suas memórias e leituras; por produzir narradores protagonistas que comungam uma certa visão de mundo, a saber: afastando-se das noções de humanidade em progresso e de homem moderno; guardando-se atrás de silêncios e dissimulações; sendo dados a um princípio contemplativo da natureza e da vida; defendendo duramente suas reservas e sua postura; acusando o fracasso e a inutilidade da comunicação; invocando o corpo como base de experiências e de formação de valor. A presente dissertação propõe uma abordagem da produção de Raduan Nassar tentando dar a esses múltiplos traços a unidade de uma ação singular de onde se extrairiam e se produziriam ulteriormente: uma unidade poética.

Palavras-chave: Raduan Nassar; corpo; imaginação; poética; ethos; incitação.

Abstract

HENRIQUE, Jonathan Gomes. A unidade poética de Raduan Nassar. Rio de Janeiro, 2014. Dissertação (Mestrado em Ciência da Literatura)- Centro de Letras e Artes, Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2014.

Raduan Nassar intrigues us in various ways: he give up to write when he has published his first book; he makes a comparison between literary creation and hen farming; he developes your narratives among own memories and readings; he produces characters- narrators that share certain vision of world, namely: keeping himself away from the notions of humanity in progress and modern man; guarding himself behind silences and dissimulations; letting himself under contemplation’s principle of nature and life; defending severely their reserves and posture; accusing the failure and the inutility of communication; invoking the body as basis of experience and value formation. This thesis proposes an approach to the work of Raduan Nassar attempting to provide the unit of a unique action from where these multiple traces would be extracted and produced by inside: a poetic unit.

Keywords: Raduan Nassar; body; imagination; poetic; ethos; incitement. Ilustrações

Diagrama 1: Fronteiras dos protagonistas de Nassar ...... 29

Diagrama 2: A jornada da grande indiferença ...... 44

Sobre as abreviações

Para agilizar a referência às diferentes obras de Raduan Nassar, e também porque devo fazê-lo de modo intermitente, retomando e comparando passagens, personagens e operações de textos diversos, recorrerei, sempre que possível, às seguintes abreviações:

CC = Um copo de cólera (novela);1 LA = Lavoura arcaica (romance); MC = “Menina a caminho” (conto);2 HM = “Hoje de madrugada” (conto); VS = “O ventre seco” (conto); TT = “Aí pelas três da tarde” (conto); MS = “Mãozinhas de seda” (conto).

1 Utilizo a edição do Círculo do Livro, que compila num único volume as duas obras: NASSAR, Raduan. Um copo de cólera / Lavoura arcaica. São Paulo: Círculo do Livro, 1980. 2 Todos os contos serão citados pela edição: NASSAR, Raduan. Menina a caminho e outros textos. São Paulo: Companhia das Letras, 1997. Sumário

INTRODUÇÃO: A unidade sob suspeita ...... 1

1. Os fios da atmosfera ...... 11 1.1. A torre de marfim ...... 11 1.2. O fora dos livros ...... 13 1.3. A planta da infância ...... 17 1.4. A cerca viva ...... 23 1.5. O dizer as coisas ...... 36 1.6. A big four ...... 47 1.7. Os dentes do cavalo ...... 53 1.8. Um inimigo do povo ...... 56 1.9. Entre dissimulação e parresía ...... 58 1.10. Mapas da partida ...... 62

2. Uma caixa de ecos ...... 64 2.1. Notas sobre “O ventre seco” ...... 64 2.2. A verticalidade incontornável ...... 65 2.3. Resistência à hegemonia difusa ...... 68 2.4. Do contexto social ...... 69 2.5. As bestas do caminho ...... 70 2.6. Não gosto de gente ...... 73 2.7. Sobre um chão movediço ...... 73 2.8. Nos frêmitos roxos da tua carne ...... 77 2.9. Os grandes indiferentes ...... 78 2.10. Me ne frego ...... 79 2.11. O coração duro ...... 85 2.12. Frutos de ironia em árvore de cinismo ...... 87 2.13. Muito, mas muito, mas muito cansado ...... 89 2.14. Não conheço esse senhor ...... 91 3. Introdução ao método ...... 93 3.1. A vontade de explicar ...... 93 3.2. Decifrando a natureza das repercussões notáveis ...... 95 3.3. Indícios de uma teoria interna da interpretação ...... 98 3.4. Restrições ao caráter arbitrário na escrita ...... 103 3.5. Caracteres de uma segunda natureza ...... 107 3.6. O inalienável no valor poético ...... 111 3.7. A imagem mediadora ...... 121

4. O mutualismo dos traços ...... 127 4.1. A busca pelo ethos ...... 127 4.2. Da grande indiferença como sensibilidade exacerbada ...... 129 4.3. Do cansaço como cinismo ...... 130 4.4. Do cinismo como experimentalismo ...... 130 4.5. Do desprezo como devoção ...... 132 4.6. Do corpo como utopia ...... 137 4.7. Do delírio como realidade ...... 141 4.8. Do poético como verdade ...... 143

CONCLUSÃO: O remoinho da imaginação...... 145

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ...... 161

“Vós e mais um já vos bastareis neste teatro da vida, em vos servindo mutuamente de público; e se estais só, sede a um só tempo ator e espectador.” Montaigne 1

INTRODUÇÃO

A unidade sob suspeita

Inicialmente tratava-se apenas de levar a cabo a leitura de um pequeno conto de Raduan Nassar: “O ventre seco”. Não demorou para que eu percebesse que suas poucas páginas são atravessadas por ecos de repercussões várias, de ampla densidade, e que somente seguindo o fio de seu presumível comprometimento com eles é que se poderia então tê-lo, de fato, lido. Meus investimentos se transformaram, evoluindo para uma leitura mais aberta do terreno e das fontes da escrita de Nassar, levado que fui a notar que esses atravessamentos na verdade não poupam nenhum de seus outros textos, abrindo múltiplos dutos de contato entre eles, fazendo com que mesmo cada um de seus livros não possam ser adequadamente tomados na unidade confortável que inicialmente sugerem. Encontrava-me, assim, diante de confirmações vivas daquilo que Foucault já havia alertado: “Por mais que o livro se apresente como um objeto que se tem na mão; por mais que ele se reduza ao pequeno paralelepípedo que o encerra: sua unidade é variável e relativa.”3 Aceitei também que se seguisse entrevistando de perto esses atravessamentos, refazendo com eles as trilhas com que se repassam costurando pontos e elementos precisos da produção literária de Nassar, iria fatalmente ser arrastado não apenas para fora do texto inicial — fosse “O ventre seco” ou outro qualquer — como para além do conjunto de textos sob sua assinatura. É que esse conjunto também oscila conforme o vínculo fugidio e complexo que estabelece, por exemplo, com as declarações do próprio Raduan em entrevistas, quando este fala acerca de suas leituras e memórias, de certos acontecimentos vividos, de criteriosas afinidades de perspectiva que cortejou com outros autores e outros textos. Mais ainda, sua obra não cansa de dar passagem a um cortejo de vozes outras, algumas das quais ele mesmo vai assumindo já nas notas publicadas junto à primeira edição de Lavoura arcaica e de Um copo de cólera. Como tais notas são importantes para essa discussão inicial — e também porque foram suprimidas nas edições posteriores, tornando-se hoje menos acessíveis —, permito-me reproduzi-las na íntegra tais como constam nas suas respectivas versões originais. Primeiro a que acompanha o Lavoura arcaica:

3 FOUCAULT, Michel. A arqueologia do saber. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1997, p. 26.

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Na elaboração deste romance, o A. partiu da remota parábola do filho pródigo, invertendo-a. Quanto à parábola do faminto, trata-se de uma passagem (destorcida) de O Livro das Mil e Uma Noites. Recurso dispensável, o A. também enxertou no texto — na íntegra ou modificados — os versos que seguem: “especular sobre os serviços obscuros da fé, levantar suas partes devassas, o uso sacramental da carne e do sangue”, pág. 22, de Thomas Mann; “para onde estamos indo?” “sempre para casa”, pág. 31 e 32, de Novalis; “tenho dezessete anos e minha saúde é perfeita”, pág. 84 de Walt Whitman; “o instante que passa, passa definitivamente”, pág. 97, de André Gide; “que culpa temos nós dessa planta da infância, de sua sedução, de seu viço e constância?”, pág. 124, de ; “eram também coisas do direito divino, coisas santas, os muros e as portas da cidade”, pág. 138, de Almeida Faria. Embora cometendo omissões, o A. quer ainda registrar o seu reconhecimento ao criador de Marcoré, Antônio Olavo Pereira, pela atenção afetuosa que dedicou a este texto.4

A seguir, a nota publicada na primeira edição de Um copo de cólera:

“Um copo de cólera”, escrito em 70 e inédito até aqui, é agora publicado em sua segunda versão. Mais precisamente, foi ampliado o sexto quadro (O esporro), em relação à versão original. Além disso, o autor enxertou no texto versos de Jorge de Lima (“queima-me, língua de fogo”, “transforma-me em tuas brasas” e “fogo (espírito) violento e dulcíssimo”, todos de “Espírito Paráclito”); versos também de Fernando Pessoa (“caiam cidades, sofram povos, cesse a liberdade e a vida”, “quando o rei de marfim está em perigo, que importam a carne e o osso das irmãs e das mães e das crianças?” e “nada (pouco) pesa na alma que lá longe estejam morrendo filhos”, todos de “Ouvi contar que outrora, quando a Pérsia”); o autor parafraseou ainda uma pequena passagem de “O artista quando jovem”, de James Joyce (“sabe qual é a minha opinião a teu respeito, comparada comigo mesmo?” ...“essa é a única diferença, apenas essa”).5

Apesar da erudição que portam, tais passagens não guardam valor propriamente intelectual, não funcionam como recurso a alguma posição, argumento ou autoridade. Aqui já despertava a impressão que mais fui confirmando posteriormente: a de que sua seleção é acima de tudo fundada em um princípio humoral. Elas trazem sobretudo as cores de uma incitação, as cargas de um insulto, o contágio de temperaturas passionais, efeitos de cena sob orientação especialmente plástica e corpórea. Vejam como plasmam, cada uma delas, sempre falas quentes, golpes sobre os ânimos ou acender de forças, acumulando aí a porção maior de seu significado. Em meio a essas apropriações declaradas (e há outras não declaradas) de fragmentos presumidamente exteriores ao texto e que não são seus (e há também os que são seus: que falam do autor à margem), o que conseguiríamos destacar, reunir e delimitar para que enfim pudéssemos designar a unidade de sua obra? O que seria a obra de Nassar? A

4 NASSAR, Raduan. Lavoura arcaica. 1ª edição. José Olympo Editora, Rio de Janeiro: 1975, p. 193. Buscando preservar a nota tal como consta na edição original, achei por bem não converter no corpo da citação a remissão às páginas para aquelas relativas à edição de 1980, do Círculo do Livro, empregada aqui como base para as referências. Converter-se-iam assim: Thomas Mann, p. 98; Novalis, p. 107 e 108; Walt Whitman, p. 158; André Gide, p. 171; Jorge de Lima, p. 198; Almeida Faria, p. 211. 5 NASSAR, Raduan. Um copo de cólera. 1ª edição. São Paulo: Livraria Cultura, 1978, p. 83-84.

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pergunta então é se seu nome poderia denotar da mesma maneira um texto que ele próprio publicou; um outro texto em que certo evento de sua vida é narrado dentro do espaço ficcional; um outro em que o mesmo evento dessa vez é narrado em entrevista a um jornalista; um ainda em que vai reeditar certa história extraída de outro livro; um que não passa da “nota do autor” anexa ao próprio livro e suprimida posteriormente; trechos publicados na sua versão original, e os mesmos trechos alterados após sucessivas revisões feitas pelo próprio autor; um livro inteiro cuja primeira edição é já a segunda versão, e a versão original nunca publicada; uma singular afirmação que diz de sua boca, e a mesma afirmação quando é dita por um de seus personagens. Ora, via claro que quanto mais insistisse em delimitar esse conjunto ao qual precariamente chamaríamos de sua obra, mais me depararia com um complexo sistema de remissões a uma série de dimensões mutuamente exteriores que extrapolam e impedem tal demarcação. Portanto, como não apenas a unidade pretendida pela noção de conto, romance, novela e livro, mas também a própria noção de obra (como unidade entre textos diversos atribuídos a um mesmo autor) pairava ou estéril ou dramaticamente limitada, fui confirmar também nesse nível as restrições apontadas por Foucault: “A obra não pode ser considerada como unidade imediata, nem como unidade certa, nem como unidade homogênea.”6 Sabemos que Foucault falava da maneira desigual como as unidades tradicionais (livro, obra etc.) se comportam conforme variam o próprio objeto a que se referem e as condições em que surgem no campo discursivo a cada vez. Enquanto essa sua crítica diz respeito a individuações num terreno bem mais geral, a produção de Nassar seguia me impressionando pelo singular modo de elaboração que a faz transbordar fácil de cada fechar de mãos que tenta contê-la. Mais do que apenas flagrar a inoperância dessas unidades caducando em sua função habitual, Nassar parece encontrar aí mesmo um set de trabalho, exercitando-se nesses desníveis, conscientemente forçando e valendo-se de suas discrepâncias, ressaltando-as de sorte que, enquanto fracassam a olhos vistos, permitem-no ampliar seu jogo de composição poético, que passa a consistir numa transversal entre dimensões crescentes. Notava ainda que esse modus operandi de Nassar sugere fortemente — apesar da aparência contrária — um comportamento de work in progress. Pois cada elemento que nos dá não adquire o essencial de sua posição e sentido a partir das dimensões imediatas nas quais se inscreve, dimensão do texto, do autor, da pessoa etc., mas apenas conforme seu respectivo desempenho numa rede de articulações que a produção de Nassar expande justamente ao ir ligando cada elemento sobre seu plano perspectivado. Por isso, ela alcança também um rigor

6 FOUCAULT, 1997, p. 27.

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cada vez maior. Sentia assim como se Nassar escrevesse mais do que apenas com o texto: escrevesse entre um texto e uma declaração, entre um texto e uma ação, entre um texto e um outro de outro autor. Fazendo aparecer não bem uma escrita, mas um modo amplo de ação com tantos ramais no texto quanto fora do texto. Isso havia de acarretar ações sucessivas, por mais que se alcancem sempre na simultaneidade de um mesmo plano. Logo, um feito que se prolonga no tempo, que serve-se do tempo para atender certos chamados atuais de cenas todavia remanescentes. Reprocessa então a massa de suas próprias ações envelhecidas, desde aquelas nos porões da memória até os textos que outrora escreveu e publicou. É certo que o tempo abre e fecha janelas a paixões e humores irrecuperáveis, pondo-nos a desconhecer nossas próprias ações passadas na mesma medida em que, justo por isso, permite que delas façamos uma mais nova experiência, revigorada por um acesso novo, mais ativo e licencioso. Remexendo-as ali onde se rompem, Nassar talvez tenha encontrado o fio de uma continuidade especial. Nada do mero substrato pessoal que atravessaria constante sob as oscilações das paixões que o tempo devassa, mas a insistência de um certo exercício como métier produtivo: o ato de dobrar, com poder, umas às outras as partes descamadas de si mesmo, de lidar com os fatos uma vez desprendidos de si como motivos numa rede de faces exteriores, rebatendo, por exemplo, temperaturas diversas das mesmas memórias, leituras, ditos e escritos. Todo um feito que só se prolonga no tempo porque nunca desce do palco e da linguagem em que tais manobras são operadas, mesmo quando é a pessoa do autor quem fala a um jornalista. Tudo isso me vinha claro quando lia Nassar, décadas depois de seu abandono da literatura, dizendo: “A poética pretende ser revolucionária por desestruturar a linguagem convencional, só que seu autor, para explicá-la, acaba se socorrendo da mesma linguagem que usamos pra pedir um copo d’água, o que é o fim da picada.”7 Eis aqui a noção contundente de que o que se diz à paisana ainda acomete o que se escreveu em ofício e vice-versa; de que sua linguagem poética trabalha (e que deve trabalhar) também por fora do texto: em declarações e atos que lança em seu redor, mesmo que sob o auspício do abandono. Aliás, já não era nada estranho o seu famoso recolhimento, pois o contraste entre loquaz silêncio e lacônicas declarações parecia marcar justamente o traço sintomático de quem se compreende “em jogo”, sabendo que aquilo que diz à beira do texto concorre ainda para a sua produção, afeta-o e o prolonga. Marcel Duchamp é exemplar a esse respeito, não apenas por ter também operado entre largo silêncio produtivo e econômicas declarações públicas (breves textos, anotações, “frases” junto a obras etc.), mas porque dispunha de ambas as estratégias como

7 CADERNOS de Literatura Brasileira n.2: Raduan Nassar. São Paulo: Instituto Moreira Salles, 1996, p. 32-33.

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expressão criadora, alcançando suas obras ainda em processo de produção, ainda suscetíveis. Como em Nassar, essa ampliação do terreno poético nada tem a ver com a pretensão megalomaníaca de filtrar e controlar a recepção, adiantando-se a ela. Ao contrário, a noção de que ainda se está produzindo exige do autor que ele recue ante a dar explicações; ante a descer à “linguagem que usamos pra pedir um copo d’água”. Conforme Duchamp: “a história da arte tem identificado com coerência as virtudes de uma obra artística por meio de considerações completamente divorciadas das explicações racionalizadas do artista.”8 Isso significa que, assim como livro e obra, também a figura do autor não nos permite fundar em seus contornos uma unidade satisfatória de análise. Foucault chega a dizer que: “a marca do escritor não é mais do que a singularidade de sua ausência [...]. A palavra ‘obra’ e a unidade que ela designa são provavelmente tão problemáticas quanto a individualidade do autor.”9 Essa afirmação insere-se na polêmica lançada por Roland Barthes ao declarar que a pessoa do autor não pode mais pretender concentrar a explicação e o sentido de sua obra, dado que é a própria linguagem que falaria quando se escreve — e falaria através de uma impessoalidade prévia, bem como, seguindo Mallarmé, apenas na medida em que o próprio autor vai sendo suprimido em proveito da escrita. O texto ganha não apenas protagonismo para a análise, mas também todo um espaço de dimensões múltiplas, compreendido num procedimento perfeitamente sintonizado àquele peculiar à poética nassariana, sobretudo quando Barthes diz:

Sabemos agora que um texto não é feito de uma linha de palavras, libertando um sentido único, de certo modo teológico (que seria a “mensagem” do Autor-Deus), mas um espaço de dimensões múltiplas, onde se casam e se contestam escritas variadas, das quais nenhuma é original: o texto é um tecido de citações, saídas dos mil focos da cultura. À semelhança de Bouvard e Pécuchet, esses eternos copistas, a uma só vez sublimes e cômicos, e cujo profundo ridículo designa precisamente a verdade da escritura, o escritor só pode imitar um gesto sempre anterior, jamais original; seu único poder está em mesclar as escrituras, em fazê-las contrariar-se umas pelas outras, de modo a nunca se apoiar em apenas uma delas.10

Essa passagem de Barthes mostra-se ainda mais reveladora do caso específico de uma poética que parece praticar-se sob sua profunda compreensão. Admiti que havia na produção de Nassar uma multilateral linguagem poética cujo exercício não esmorecia e nem deixava de encontrar seus terrenos tanto interiores quanto exteriores ao texto. Convenci-me de haver ali

8 DUCHAMP, Marcel. “O ato criador”. In: TOMKINS, Calvin. Duchamp: uma biografia. Trad.: Maria Thereza de Rezende Costa. São Paulo: Cosac Naify, 2013, p.518. 9 FOUCAULT, Michel. Ditos e escritos III: Estética: literatura e pintura, música e cinema. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2006, p. 269-270. 10 BARTHES, Roland. O rumor da língua. São Paulo: Martins Fontes, 1988, pg. 68-69, grifo do autor.

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aquele movimento de retomar e remexer, experimentando os levantes que de repente iam se desprendendo nessas operações. Assim as suas recordações de infância assaltando a narrativa, as suas palavras sob as do narrador, outros textos intervindo sobre os seus; mas também as suas declarações posteriores, até mesmo o seu silêncio e seu ato de exílio, tudo parecendo atentamente disponível e incitado a vir refluir e mudar de figura e vulto na composição dessa peça, ainda em andamento, de múltiplas faces e etapas, mas de uma linguagem que, insisto, não se admite extraviar e nem esmorecer (o que seria “o fim da picada”). Assumindo já que planos de ação diversos teriam que ser então compreendidos no remate de uma articulação cuja unidade ainda estaria por ser determinada, fui levado a e ao que este dizia acerca da obra literária: “só a podemos entender fundindo texto e contexto numa interpretação dialeticamente íntegra.”11 De fato, talvez seja ele quem entre nós melhor disponibilizou e afiou ferramentas para isso, e o fez justamente tendo em vista a relação problemática na qual a obra deve ser capaz de organizar não só seus conteúdos como também sua forma e unidade estética com elementos outros: os aspectos sociais, psicológicos etc. Candido mira um horizonte decisivo quando diz: “No conjunto, como no pormenor de cada parte, os mesmos princípios estruturais enformam a matéria.”12 E era exatamente assim que eu tendia a recolher a unidade da produção de Nassar; pois a essa altura não podia deixar de vê-la como algo irredutível aos limites de cada texto e mesmo de seu conjunto, mas exprimindo-se por uma simplicidade que deveria envolver e articular cada um desses pretensos cercados — e ainda outros. De fato, o método de Candido exige que perguntemos a cada vez se algum elemento advindo do lado de fora possui um significado estrutural para a obra, e qual é ele. Em seus termos, só avançamos na análise do interno quando o externo “é visto funcionando para formar a estrutura do livro.”13 No começo, acreditei poder ignorar o quanto a concepção proposta por Candido é, ainda assim, bastante dependente daquelas unidades de livro e de obra, bem como de certas noções a estas ligadas — a saber: a oposição entre elementos interiores e exteriores, a relação entre todo e partes etc. Tentei ignorar tudo isso principalmente porque o seu método tem o crédito de fazer com que todas essas noções ressurjam transfiguradas, fundidas, renovadas e, enfim, sofisticadas pelo trabalho da análise crítica que ensejam. Todavia, mesmo para começar a andar em direção a essa esperável fusão, exigia-se, ao menos no ponto de partida,

11 CANDIDO, Antonio. Literatura e Sociedade. São Paulo: Companhia Editora Nacional, 1967, p. 4. 12 Ibidem, p. 6. 13 Ibidem, p. 6.

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que texto e contexto estivessem dispostos como termos mais ou menos formados e oponíveis. Afinal, é o próprio Candido quem diz, trata-se de uma dialética. Retornavam os empecilhos apontados por Foucault: “[É dito que a crítica] deve antes analisar a obra em sua estrutura, em sua arquitetura, em sua forma intrínseca e no jogo de suas relações internas. Ora, é preciso imediatamente colocar um problema: ‘O que é uma obra?’”14 De fato, se insistisse, o que eu encontraria na produção de Nassar seria um certo contexto que é, logo de saída, já texto ou obra: ocorrências exteriores que não viriam a ser interiorizadas conforme alcançassem obliquamente o texto do outro lado ou conforme fossem assumidas sob sua forma de organização, mas que deveriam ser consideradas no próprio lugar e no próprio plano de origem sob os mesmos privilégios que o texto escrito e publicado. Pois, na direção oposta, caberia indagar ao próprio texto até que ponto e de que maneira também ele “funciona para formar a estrutura”, já que a estrutura não se encontraria mais confortavelmente identificada com os limites do texto enquanto tal — vai daí que este não poderia sequer ser tomado como fronteira ou crivo decisivo do que, no caso de Nassar, há de ser considerado sua obra. Embora grave, essa afirmação é mais contundente em relação aos costumes do campo especializado da teoria e crítica literária do que quando encarada sob os do campo mais geral da teoria e crítica de arte recentes. Afinal, talvez não haja traço mais marcante acerca do panorama atual das artes do que a reiterada dissolução das suas unidades e fronteiras tradicionais, não apenas entre as diversas formas de expressão, enquanto vão compondo zonas híbridas, mas também entre o objeto artístico e os próprios meios de sua produção, circulação e recepção. Essa dissolução das fronteiras traz consequências dramáticas para todas as instâncias que até então se acreditava bem determinadas e oponíveis: autor, vida, obra, público, instituições, crítica etc. Todas vêm passando por novas relações de implosão, implicação recíproca e mesmo de identificação mútua que nos impedem, por vários lados, de isolar a atividade criadora em qualquer uma delas. Digo isso porque talvez seja mesmo o caso de se pensar a produção de Nassar com a generosidade que vem sendo dispensada à produção dos artistas contemporâneos; de se pensar o terreno de sua produção como um verdadeiro “campo ampliado”, no qual, conforme o conceito proposto por Rosalind Krauss: “a práxis não é definida em relação a um determinado meio de expressão [...] mas sim em relação a operações lógicas dentro de um conjunto de termos culturais para o qual vários meios [...] possam ser usados.”15 Esse salto de perspectiva parece-me fundamental. Por outro lado, o

14 FOUCAULT, 2006, p. 269. 15 KRAUSS, Rosalind. A escultura no campo ampliado. Rio de Janeiro: Gávea, 1984, p.136.

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risco passa a ser o de cairmos na armadilha infame de ir colecionando as operações entre os diversos meios apenas para em seguida forçar uma unidade artificial que acabaria por descrever tão somente o simples fato dessas operações mesmas, nada mais. Dessa maneira, acabaríamos quem sabe colocando a inter-referencialidade, por si, a valer como horizonte suficiente para a análise, confundindo o trabalho inegavelmente dispendioso de seguir catando indefinidamente seus feitos cruzados com aquele outro, mais elevado e mais econômico, de buscar apreender o sentido desse cruzamento: seu modo de produção, sua poética. Portanto, apesar de todos aqueles empecilhos anteriormente expostos, era necessário preservar algo essencial do método de Antonio Candido: a busca pela organização positiva do trabalho que vinha se desdobrar efetivamente nessas múltiplas frentes. Não via como satisfazer a análise da produção de Nassar nem com as unidades de livro, de obra, de autor e de texto; nem com a unidade do conjunto colecionado de operações dispersas entre diferentes meios de expressão — ao menos enquanto esta nos ofertar uma unidade apenas retrospectiva e sedimentar, envolvendo à força um mero acumulado arbitrário e já pouco ou nada significativo de uma poética propriamente dita. Do meu lado, constatava a cada passo que o esvaziamento dessas unidades dava, ele mesmo, testemunho de uma ação elaboradora mais elevada e que não se deixava mais minorar por elas. Portanto, encontrava também aí a promessa de uma muito especial unidade para tal ação. Tentei divisá-la em estruturas mais impessoais, cuja efetividade produtiva logo nos vem à vista assim que o pretenso protagonismo daquelas outras é quebrado: momentos em que deixamos de lado as ações e dramas específicos e aí nos ocorre falar do movimento da vida e da natureza que os precede e engendra a todos; ou em que também deixamos de lado as decisões e impasses do artista para ressaltar a grande estrutura da linguagem que igualmente os precede e engendra. Vida, natureza e linguagem candidatavam-se então como novas unidades, extremamente gerais, mas por isso mesmo supostamente capazes de obterem êxito onde aquelas outras falhavam. Cada qual, de sua base primordial e multifacetada, parecia ter o inequívoco direito de responder de modo insuspeito por tudo aquilo que é produzido sobre si. De fato, tanto “natureza” quanto “vida” costumam ser invocadas como unidades poéticas a pretexto da célebre tese de Nietzsche apresentada em O nascimento da tragédia: “O homem não é mais artista, tornou-se obra de arte [...] o apolíneo e o seu oposto, o dionisíaco, como poderes artísticos que, sem a mediação do artista humano, irrompem da própria natureza”.16 Já a linguagem talvez encontre um convite

16 NIETZSCHE, Friedrich. O nascimento da tragédia. São Paulo: Companhia das Letras, 2010, p. 28-44, grifos do autor.

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equivalente quando Barthes diz: “quisera ele exprimir-se, pelo menos deveria saber que a ‘coisa’ interior que tem a pretensão de traduzir não é senão um dicionário totalmente composto, cujas palavras só se podem explicar através de outras palavras, e isso indefinidamente.”17 Nesses casos, vê-se que a generalidade do objeto nos envia sem rodeios à envergadura do trabalho filosófico. Contudo, do ponto de vista da análise poética há sempre um sério risco nesse recurso à filosofia. Esta costumeiramente se dirige ao funcionamento de um dado campo considerado em sua radicalidade mais basilar, investigando coisas como a precedência simbólica e estrutural, as condições de possibilidade do fenômeno, as articulações do real, a natureza dos planos de composição etc. Sem dúvida que tais pesquisas trazem importantes consequências para todos os demais tipos de investigação, inclusive a poética. Mas apesar de revelarem camadas elementares da produção poética em geral, as unidades a que chegam costumam ser por isso mesmo indiferentes à singularidade das operações lógicas que constituem o essencial de uma poética em particular. Afinal, a poética e sua unidade respectiva não são sequer concebíveis se não recortam um conjunto bem mais enxuto do que aquele que diz respeito às condições de possibilidades em geral do plano ou suporte em que atuam. Dito de outro modo: a unidade poética deve ser aquela que só se permite configurar na medida em que seu objeto se faz presente e nos termos em que se deixa recolher em sua dinâmica característica. O próprio conceito de “campo ampliado” proposto por Rosalind Krauss não nos deixa outra alternativa: impele-nos a sair em busca da unidade poética, negando-se a autorizar acordos prévios entre a análise e aquilo a que ela se reporta. Desse ponto de vista, deve nos interessar tão pouco as unidades que selecionam, posicionam e restringem de antemão o seu objeto quanto essas unidades esgarçadas que não nos permitem retê-lo em sua singularidade poética. E foi o que fiz: voltei-me para a produção de Nassar e a sondei como se fosse polindo minha lente. Achei ter encontrado o fundamental de suas operações ao largo de todas essas unidades: um pouco mais abaixo da individualidade biográfica e suas realizações e um pouco mais acima da vida pulsando em sua impessoalidade; um pouco mais abaixo de cada palavra e ação assinalável e um pouco mais acima da linguagem em sua precedência atávica; um pouco mais abaixo do próprio campo da teoria literária e um pouco mais acima da radicalidade do pensamento filosófico. Havia um comportamento, um mais profundo do que aqueles à disposição de uma consciência pessoal, mas certamente menos profundo do que seria preciso para que perdesse sua fibra característica. Havia uma atitude, uma bem determinada e que era

17 BARTHES, 1988, pg. 69, grifo do autor.

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vasta o suficiente para englobar toda sua vida pessoal junto a seus escritos, porém não tão vasta que se permitisse perder o zeloso critério de sua membrana. Finalmente, quando a lente pareceu-me relativamente mais limpa, notei primeiro que sua unidade poética tinha a natureza de um ethos, já que não apenas respondia por determinado comportamento e atitude como também devotava-se a isso nos mais variados níveis de sua criação: um modo de vida que era também modo de produção, tanto se imiscuíam um modo no outro. Desde Aristóteles, mais do que discutir os “modos de agir” como problema central nas investigações éticas e políticas, o ethos não parou de ser apreendido, especialmente pela retórica, como essa especial mobilização de características extra-discursivas a fazer com que a própria imagem do orador se deixe manipular pelos mesmos princípios performáticos que dirigem o discurso, emprestando-se assim aos objetivos de uma atuação, liberando-se até para ser elaborada independentemente da verdade.18 Isso tudo me dizia muito acerca da poética de Nassar, na qual o discurso segue, em troca, também emancipado de seus compromissos supostamente mais elevados e razoados, indo operar diretamente no plano dos humores, dos efeitos morais, dos abatimentos e levantes que revolvem a disposição de espírito — melhor diríamos, disposição do corpo, pois em seus textos, mas também fora deles, o que é dito segue rente à carne viva dos ânimos e toda sua respectiva flutuação diante de palavras uma vez atiradas como golpes ou servidas como vinho. Da cólera ao delírio, um específico registro de possibilidades dramáticas ia me permitindo esboçar a unidade de um empenho amplo que exigia tanto a camada silenciosa dos textos quanto a presença extraviada de um autor. Que modo era esse que eu ia vendo? O que era esse ethos nassariano? É o que a presente dissertação pretendeu descrever. O roteiro adotado tem sua liturgia: primeiro segue fazendo algumas apresentações, trazendo à tona os traços diversos que constituem um tal caráter simultaneamente poético e existencial, para que no segundo capítulo se possa percebê- los interferindo e atravessando, exemplarmente, todo o conto “O ventre seco”. Só então, após ter percorrido o objeto em questão é que, no terceiro capítulo, serão buscadas ferramentas metodológicas e certas perspectivas que ele mesmo sugere demandar para sua análise. No quarto capítulo tento uma aproximação mais decisiva do relacionamento a princípio paradoxal entre determinados aspectos no interior do ethos nassariano, a fim de descrevê-los em sua inseparabilidade mútua. Finalmente, na conclusão, recupero um pouco da presente discussão inicial acerca da natureza desse modo de vida que é também modo de produção.

18 Sobre essa concepção retórica do ethos e sua inscrição na análise do discurso, Cf. AMOSSY, Ruth (org.). Imagens de si no discurso – a construção do ethos. São Paulo: Contexto, 2008.

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1. OS FIOS DA ATMOSFERA

1.1. A torre de marfim

Deixe-me pensar essa exposição inicial como um relatório de investigação e começar pela gaveta das primeiras anotações e rascunhos; dizer que a cada passo dado fui sendo levado, mais e mais, a textos e autores dedicados aos dilemas do indivíduo que ergue as mais severas barreiras contra o contato com seus pares sociais: Montaigne, Jorge de Lima, Bacon, Ibsen, Fernando Pessoa etc. Tudo parecia tender a se reunir em torno desse problema onipresente em Raduan Nassar, o do personagem que não só se encontra às voltas com os valores e hábitos da sociedade ao redor, como também acaba por radicalizar as suas distâncias até o limite extremo de um isolamento aparentemente irrecuperável. Esse tema, que ocupa seus protagonistas, narradores e até a própria biografia, descobri ocupar também, e muito, suas leituras e memórias. Por exemplo, se acompanharmos a constante alusão que ele faz, em entrevistas, à tirada de sarro de Montaigne,19 logo nos lembramos que este autor do século XVI, creditado como o primeiro a escrever na forma de ensaios, está percorrido por algumas curiosas e irrecusáveis disposições afetivas análogas às que iremos encontrar em Nassar:

Retirei-me há tempos para as minhas terras, resolvido, na medida do possível, a não me preocupar com nada, a não ser o repouso, e viver na solidão os dias que me restam. Parecia-me que não podia dar maior satisfação a meu espírito senão a ociosidade, para que se concentrasse em si mesmo, à vontade. (MONTAIGNE, p. 25)20

Lembremos que é fundamentalmente em torno de Montaigne que se foi desenhar a caricatura moderna do filósofo em seu emblemático retiro voluntário da vida pública, indo trancar-se em sua torre de marfim.21 Não apenas esse gesto objetivo comporta ressonâncias — se o compararmos ao exílio literário (e biográfico) do próprio Nassar —, mas também tal afirmação de um pensamento concentrado em si, rompendo com a miríade dos vínculos

19 Trata-se do ensaio “Sobre as vãs sutilezas”, com base no qual, ao ser questionado acerca de sua antipatia pelas vanguardas modernas, Nassar provoca: “Vai ver você está falando das vanguardas da Antiguidade, que faziam poemas em forma de ovo, de bola etc., propiciando ao Montaigne tirar o maior sarro delas.” (CADERNOS de Literatura Brasileira n.2: Raduan Nassar. São Paulo: Instituto Moreira Salles, 1996, p. 33). 20 MONTAIGNE, Michel de. “Ensaios”. In Coleção Os pensadores. São Paulo: Abril Cultural, 1972, p. 25. 21 De fato, Montaigne, aos 38 anos de idade, abandonou seu cargo no parlamento e isolou-se num antigo castelo no alto de uma encosta rodeada de vinhedos, para ali escrever os seus Essais.

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prévios e exteriores, e que no limite o tornará um importante nome para o moderno ceticismo filosófico. Embora tudo isso seja sugestivamente reencenado por Nassar, é preciso certo cuidado: o plano geral e analógico que compara à distância tais e tais semelhanças exteriores nunca é confiável por si mesmo, de modo que suas sugestões só escapam do estatuto de mero preconceito quando alcançam confirmações na equivalência interior das disposições que as preenchem a cada vez. Feito algum pode ser melhor apreendido pela sua mera ocorrência assinalável e razões correspondentes do que na própria qualidade expressiva que o motiva e promove por dentro. Portanto, não se trata de alardear a comum inclinação ao isolamento, pois há sempre muitas maneiras de se restar só. Essa coincidência genérica não pode ser decisiva per si. Antes, nossa excitação com essas semelhanças gerais só deve ganhar chamas maiores na medida em que vamos notando o quanto certos autores colocam diante de si um campo de exercício equivalente, animam suas partidas desde um mesmo vetor. Vejam o que Montaigne nos escreve num ensaio dedicado justamente ao tema da solidão:

Praticar o bem ou o mal é possível em toda parte, entretanto se o que diz Bias é certo, “que a maioria dos homens é também a pior”, [...] grande é o contágio do mal para quem vive em sociedade. [...] Não basta pois deslocar-se, evitar a multidão, é preciso ainda afastar de nós as ideias que nos são comuns, a ela e a nós. É preciso que nos sequestremos e tomemos posse de nós mesmos [...], longe de todos, façamos com que nossa satisfação só dependa de nós; destruamos tudo o que nos amarra aos outros, arranjemo-nos de maneira a viver efetivamente sós, e, nesta condição, sem mais preocupações. (Ibidem, p. 119-120)

Já não estamos mais falando de pessoas e suas características, mas de um ímpeto impessoal e suas germinações diversas — nesse ou naquele gesto, nessa ou naquela pessoa ou personagem, um ethos. Afinal, essas e muitas outras passagens de Montaigne poderiam de fato compor o prelúdio de quase qualquer obra de Raduan Nassar, organizando a ossatura fundamental no conturbado exílio do personagem André, de Lavoura arcaica, ou no do chacareiro, de Um copo de cólera, ou na inusitada e decidida recusa a todos os chamados da ordem do dia, que encontramos na incitação do narrador do conto “Aí pelas três da tarde”. Se tornarmos esse conceito de isolamento um pouco mais maleável, recolhendo a multiplicidade dos meios e maneiras com que Nassar o retoma, poderíamos nos permitir flagrá-lo sinuoso nos desertos de silêncio, indiferença e dissimulação que correm todavia sob os limites estreitos e paradoxais de convivências afetivas: obscuro exílio, esquivo, sincrético, escavando distâncias irreparáveis mesmo apesar da presumível intimidade de uma vida conjugal ou familiar. Tal é a matéria maior de que nos falam os contos “O ventre seco” e “Hoje de madrugada”. E a par desse ímpeto, descrevendo não apenas os ramais do isolamento que

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conduzem ao retiro afastado, mas também ao convívio dissimulado e repleto de segredos, já não seria demais lançar as sombras de Montaigne àquelas lições sacanas de diplomacia, em “Mãozinhas de seda”, feitas pelo bisavô, que em sua elegância impecável se resguarda das perturbações do espaço público não mediante o simples desligamento, mas por tomá-lo como um espaço impróprio para se plantar aquilo que se pensa — lembremos de sua lição: “o negócio é fazer média”.22 Dir-se-á que essa variação de grau e de qualidade com que os personagens produzem e acusam graves insulamentos é um inequívoco marcador de sua importância temática, de sorte que apenas a dedicação acirrada com que Raduan Nassar monta cerco a esse aspecto explica a peculiar economia de feições sob as quais transcorre em seus textos. Contudo, antes mesmo de ser estritamente literário, trata-se de um movimento de vida: algo ulterior. Considerem que o próprio Nassar, como um Montaigne de nossos dias, troca o barulho do mundo pela reclusão numa propriedade rural afastada, e, indo mais longe que o pensador francês, chega ao ponto onde abandona também a literatura. Isso não é pouco. Afinal, Montaigne se exilou para escrever. Os famosos Ensaios são frutos maturados desse resguardo. Mas o que dizer de Nassar, cuja rejeição não poupou o escritor?

1.2. O fora dos livros

Admito, foi sob o impulso trivial que primeiro acomete quem encontra um caso tão singular como o de Nassar que me perguntei pelas razões da literatura não estar à altura do seu exílio. Quis sondar os termos em jogo nessa decisão — se é que se trata de uma decisão.23 A ideia era mesmo averiguar nela o peso e a função da literatura, e, para isso, não encontro muitos nem melhores indícios senão a sua própria poética. Já suspeitava que esta, mais do que o modo de produção de obras, caberia ser entendida como verdadeira produção de um modo de vida — nesse caso, capaz de exprimir tanto o seu laço quanto o seu divórcio com o fazer literário. Sua poética, assim compreendida, deveria responder também ao reprisado desdém acerca da produção cultural, conforme assume em suas entrevistas, quando objeta não só o estado de coisas presente ou definido, mas o próprio homem como condição de possibilidade

22 MS, p. 78. 23 Nietzsche já nos ensinava a desconfiar da presumida precedência e neutralidade do sujeito em relação às motivações que efetivamente concorrem em sua decisão: “[...] os embates psíquicos e as crises em que somos arrastados para lá e para cá por motivos diversos, até enfim nos decidirmos pelo mais forte — como se diz (na verdade até o mais forte decidir acerca de nós).” (NIETZSCHE, Friedrich. Humano, demasiado humano: um livro para espíritos livres. Tradução de Paulo César de Souza. São Paulo: Companhia das Letras, 2003, p. 82).

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fastidiosa e estagnada: “Eu não morro de amores pela espécie [...] eu acho que o homem é uma obra acabada.”24 Sempre que entrevistado, Nassar não se poupa de fazer afirmações duras e sem maiores esperanças acerca do homem, da razão, da modernidade, do mundo ou dos valores da vida em sociedade: “Seja quem eu for, que fique bem claro que me lixo para essa entidade que se identifica com o que está aí e que porta o elegante nome de ‘homem moderno’, que mais parece grife de moda.”25 Esse asco subindo em profunda aversão é um componente inequívoco do perfil psicológico de seus principais personagens. “Não gosto de gente, para abreviar minhas preferências”, essa exata frase é dita tanto pelo chacareiro de Um copo de cólera26 quanto pelo narrador de “O ventre seco”,27 este acrescentando: “se ponho o olho fora da janela, além do incontido arroto, ainda fico espantado com este mundo simulado que não perde essa mania de fingir que está de pé.”28 Tal repulsa, logo se vê, formula-se em algo extremo: afastar-se do homem e do mundo enquanto estes seguem com suas identidades presas na generalidade de comportamentos marcados por uma atrofia não apenas circunstancial (moderna), mas mesmo fundamental (da espécie). Ao repugnar nestes a repetitiva insipidez de suas reedições e a náusea diante de suas estéreis variantes, dá-nos a ver, como um critério oposto, de saúde, a imoderada vitalidade do corpo, embriagada pelo próprio horizonte poético que abre, no qual se consagra consigo mesmo, festeja e inflama a febre de seu desajuste — a saber, desajuste próprio do ethos nassariano antes de ser desse ou daquele personagem ou mesmo de Raduan em sua existência e verdade supostamente independentes de tal elaboração. Portanto, desajuste que nada pode ter a ver com algum rompante pontual e fortuito, sendo, ao contrário, justo. Nele a indiferença não surge como um efeito secundário ou negativo, e sim como uma atitude empenhada e precisa, uma cuja radicalidade é ensaiada e exercitada entre vida e obra. O desajuste torna a si mesmo em uma via positiva, atitude criadora, e é então que pode impedir-se de ser reduzido pelos marcos que invocam precedência sobre o sujeito a cada vez: a tradição familiar (LA), os valores modernos (CC e VS), o mundo do trabalho (TT), as formalidades sociais (MS), as demandas conjugais (HM). Sempre que o imperativo tácito de razoabilidade significar abrir mão dessa

24 [Entrevista a Folha de S.Paulo] BONASSA, Elvis Cesar. “Raduan crê na literatura só como questão pessoal”. Folha de S.Paulo. São Paulo. 30 maio 1995. Disponível em: . Acesso em 31 jan. 2014. 25 [Entrevista a Veja] SABINO, Mario. “Sou o Jararaca”. Veja. São Paulo: Abril, 30 jul. 1997, p.9-13. Disponível em: . Acesso em 31 jan. 2014. 26 Cf. CC, p. 56. 27 Cf. VS, p. 64. 28 VS, p. 64-65.

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atitude, sua resistência se desenvolverá em algo o mais inapropriado e excessivo — ainda que não deixe de requisitar e subentender uma ação mais própria e precisa: toda uma fibra moral. O desajustado devém o indiferente e vice-versa, de sorte que uma dessas faces não é de fato anterior à outra: ambas são de suposição mútua. Não há exatamente o que se queira modificar, e não apenas porque se considera o homem uma obra acabada, mas por entreouvimos que este seria ainda uma obra mal-acabada quando Nassar insiste, a despeito da grande variação dos costumes, que certos componentes, por isso mesmo degenerados, parecem não variar:

Sacanagem, inveja, generosidade, amor, violência, ódio, sensualidade, interesse, mesquinhez, bondade, egoísmo, fé, angústia, medo, ambição, ciúme, prepotência, humilhação, insegurança, mentira e por aí afora, mas sobretudo passionalidade, além do eterno espanto com a existência. É este o patrimônio da espécie. (CADERNOS, p. 34)

Será que nos surpreenderíamos se Montaigne já houvesse feito uma lista equivalente dessas constantes humanas? Pois fez:

Somos vítimas da inconstância, da irresolução, da incerteza, do luto, da superstição, da preocupação com o futuro, inclusive o de depois da morte, da ambição, da avareza, do ciúme, da inveja, dos apetites desregrados e insopitáveis, da guerra, da mentira, da deslealdade, da intriga, da curiosidade. (MONTAIGNE, p. 229)

Esse tipo de inventário não pretende ser exaustivo para erguer, a cada vez, a mesma acusação de que há um esgotamento categórico das possibilidades do humano: sempre quedam capturadas por um pequeno punhado de dramas recorrentes. Vai daí que seus pontos de expressão seriam também seus pontos de atrofia e, quando assim apreendidos, de fastio. Tal o ingrediente crucial na composição desse grande cansaço em relação à espécie como um todo. Talvez ninguém tenha sido tão insistente nesse ponto quanto o fora Nietzsche: “Nus, um dia, eu vira ambos, o maior e o menor dos homens: demasiado semelhantes um ao outro — demasiado humano, ainda, também o maior!”, e emenda, para que não tenhamos dúvidas: “Demasiado pequeno, o maior! — era este o fastio que eu sentia do homem.”29 Mas essa constatação da indigência do humano, quanto mais contundente se torna, tanto mais encontra em Nassar um rumo inverso ao trivial: em vez de desidratar a subjetividade sobre a qual vem se abater, ela inusitadamente tende mais e mais a abri-la, liberá-la e potencializá-la, arejando clandestinamente suas forças e experimentos afetivos. É que, sendo impossível fazer qualquer

29 NIETZSCHE, Friedrich. Assim falou Zaratustra: um livro para todos e para ninguém. Tradução de Mário Silva. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2010, p. 261.

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acordo com o mundo, tão logo os assuntos do dia deixam de ser questão e de valer o preço das preocupações que pretendem suscitar, pode-se investir na própria distância, tresmalhar em margens esquecidas: um pouco de delírio. Involução à simples vibração da vida fora de seu caimento demasiado humano. Deixar-se ir em fuga até que se veja longe e desbotado tudo o que se pretende sério e urgente. “Nunca senti muito apego pelos livros [...]. Valorizo livros que transmitam a vibração da vida.”30 É como Nassar nos indica que também a literatura teria um valor algo subsidiário. Sua própria vitalidade seria estrangeira, a precederia desde fora, de modo que ao escritor sensível, fragilizando as trancas da linguagem ordinária, caberia seduzi- la para o espaço propriamente literário que produz. Em suas palavras: “[...] a leitura que mais eu procurava fazer era a do livrão que todos temos diante dos olhos, quero dizer, a vida acontecendo fora dos livros [...] digamos que eu punha um olho nos livros e um Olhão fora dos livros.” 31 Eis a literatura, ao menos a nassariana, destinando-se a encontrar suas forças produtivas segundo certas janelas de que é capaz. Quanto mais exposta ou lançada estiver para o grande quintal de experiências vitais e irredutíveis, maior há de ser o vigor dos seus próprios meios ou o da articulação poética que ora os percorre e articula. Sente-se fortalecer uma mesma dedicação: permear cada meio, mantê-los expostos à nutritiva abertura por onde a vibração da vida, feito um sol ao mesmo tempo lá no horizonte e cá difuso em toda terra, responde por cada germinação, gozando de plena eminência também sobre o viço do literário. Pois é ao longo desse quintal infinito que a literatura encontra entre folhas a sua derradeira tábua de valores, a carne material e plástica de seu critério — o único que Nassar vai conferir um assentimento direto e explícito. E embora isso certamente não se limite ao campo literário, é coerentemente o que basta para explicar a natureza do pouco caso que parece fazer dele, por exemplo, quando alega que a literatura “do ponto de vista de uma função social mais ampla […] pode até ser uma grande inutilidade”.32 É de uma só vez que se deve seguir este traço de anti-intelectualismo e sua correlata devoção pela concretude de experiências todavia tão arrojada e ricamente elaboradas. Veremos que esse realismo nassariano impede tanto a proeminência vazia de construções meramente referenciais quanto o uso generalizante, e por isso mesmo insensível, da noção de Vida (ou de vibração da vida). Por isso, sua expressão singular não para de se especificar em territórios, atitudes e campos semânticos característicos de sua poética; não para de encontrar seus termos, a começar por uma tal planta da infância.

30 CADERNOS, p. 27. 31 Ibidem, p. 27. 32 [Entrevista a Veja] SABINO. 1997.

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1.3. A planta da infância

Quem melhor pode nos apresentar tal noção é, digamos assim, o seu formulador: o poeta alagoano Jorge de Lima, uma força inconteste na obra de Nassar. Digo isso não apenas porque é de sua autoria a epígrafe que abre Lavoura arcaica — e que é mais tarde citada por André no corpo do romance33 —, mas também porque o próprio título de seu outro livro, Um copo de cólera, deixa ver uma sugestiva referência à expressão um copo de mar, que consta de um dos mais célebres versos de Jorge de Lima:

A ilha ninguém achou porque todos a sabíamos Mesmo nos olhos havia uma clara geografia Mesmo nesse fim de mar qualquer ilha se encontrava, mesmo sem mar e sem fim, mesmo sem terra e sem mim. Mesmo sem naus e sem rumos, mesmo sem vagas e areias, há sempre um copo de mar para um homem navegar.34

Em entrevistas, Nassar se refere espontaneamente a esses dois últimos versos como sendo algo exemplar do potencial poético: “versos generosos para a imaginação.”35 Pode-se ouvir neles os ecos do exilado, dando-se por satisfeito com pouco ou quase nada, conquanto tenha o suficiente para navegar. Comemora-se uma imaginação sempre já começada, sabida e não achada; e sempre mais generosa, capaz de florescer suas dilatações nas mais estreitas — para não dizer nulas — condições (mesmo sem vagas e areias, há sempre um copo de mar). Esses versos se encontram na última obra de Jorge de Lima, Invenção de Orfeu, logo no primeiro Canto, quando a voz poética começa a nos apresentar a sua enigmática utopia: “A fundação da ilha”.36 No simples folhear Invenção de Orfeu encontramos traços marcantes sobretudo ao romance Lavoura arcaica: o forte teor mítico e religioso compondo imagens regidas pelo dilema entre a queda e a tentativa malfadada de redenção; a subjetividade intensa lançada aos anseios de formular uma cosmogonia própria; a aposta radical na evasão lírica e no rompimento ao menos possível com os constrangimentos de um mundo desumanizado; o

33 Cf. LA, p. 198. 34 LIMA, Jorge de. Invenção de Orfeu. São Paulo: Círculo do Livro, [s. d.], p. 22. 35 CADERNOS, p. 24. 36 Diz-se que é uma utopia uma vez que “é de aquém e de além-mar a ilha que busca” (Ibidem, p. 144).

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delirar da linguagem num pulso igualmente onírico e febril, que suspende as demandas do tempo (e do espaço); e, finalmente, o ponto que quero enfatizar: a infância, que aparece aqui como sendo a matéria viva e quente do poético, trazendo em sua carne todos os perfumes e memórias que não pararão de rescender nos devaneios e sonhos do poeta — seu viço sempre repleto de remissões à afetividade exacerbada com os outros e ao contato inaugural e aberto com as coisas do mundo — e do seu próprio corpo. O protagonista André desabrocha dessa mesma semente. E é a ela que Nassar retorna sempre que cita, ressoa e repercute um verso extraído de Invenção de Orfeu (“Que culpa temos nós dessa planta da infância, de sua sedução, de seu viço e constância?”).37 Não paramos de reencontrar com a fruição dessa infância ou dessa adolescência — uma e outra denotam igualmente a mesma utopia, e tanto em Jorge de Lima quanto em Nassar. Note-se os vislumbres descritos pelo narrador: “me rondando o sono quieto de planta”;38 ou ainda: “ali onde germina a planta mais improvável, certo cogumelo, certa flor venenosa, que brota com virulência rompendo o musgo dos textos dos mais velhos”.39 Em Lavoura arcaica, há uma passagem tão representativa dessa presença angular uma vez arrolada por Jorge de Lima que não resisto a reproduzi-la inteira aqui:

Na modorra das tardes vadias na fazenda, era num sítio lá do bosque que eu escapava aos olhos apreensivos da família; amainava a febre dos meus pés na terra úmida, cobria meu corpo de folhas e, deitado à sombra, eu dormia na postura quieta de uma planta enferma vergada ao peso de um botão vermelho; não eram duendes aqueles troncos todos ao meu redor, velando em silêncio e cheios de paciência meu sono adolescente? Que urnas tão antigas eram essas liberando as vozes protetoras que me chamavam da varanda? De que adiantavam aqueles gritos se mensageiros mais velozes, mais altivos, montavam melhor o vento, corrompendo os fios da atmosfera? (meu sono, quando maduro, seria colhido com a volúpia religiosa com que se colhe um pomo). (LA, p. 85-86)

A infância nos é oferecida como vida inaugural. Desfolhando afetos sobre si mesma e pulsando no seio de um registro vegetativo já que sem exigência de maiores movimentos. Entorpecida tão somente pelo fruir deliciado das singularidades em torno, entrega-se ao contato conforme a sugestão de suas inclinações afetivas: amainando a febre na terra úmida. Velado pelos troncos ao redor, tal sono é puro deleite autocontemplativo, já que não se fixa nessa ou naquela imagem, mas na afecção inebriada por suas trocas assimétricas e infiltrações várias. Mais do que a metáfora de um menino na postura quieta de uma planta, trata-se da planta da infância como modus vivendi. Ritmo espiralado a revolver imagens desiguais, umas

37 Como disse, o verso consta na epígrafe e também no corpo do texto. Cf. LA, p. 198. 38 LA, p. 159. 39 LA, p. 123.

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após e entre as outras, até que enfim nem reste mais imagem: ainda há de restar o ritmo; o volume de vibrações triscadas; o sono. O narrador não se atém aos contornos mais objetivos de suas memórias. Antes, revisita em cheio uma atmosfera afetiva: os escapes nas tardes vadias da fazenda. Daí sentirmos como se o próprio fruir dessa lembrança o contaminasse naquela sua antiga letargia, presumivelmente amadurecida. Sua fala passa a delirar, solta-se, não tem que achar a sua ilha: todos a sabem. Ergue sua expressão entre imagens e metáforas (duendes, urnas, mensageiros mais velozes, fios da atmosfera), mas não fala de nenhuma ideia que se explicasse, e sim de uma difusa impressão ulterior vergada ao peso de um botão vermelho, um viço e uma constância: insiste em falar a partir da vibração da vida. Esse tempo de menino vai se tornando algo ideal, uma ilha utópica, sempre mais aquém e mais além, a assombrar o narrador como um farol ao mesmo tempo sensível e ideal. Também o chacareiro em Um copo de cólera o percebe: “era pois na infância (na minha), eu não tinha dúvida, que se localizava o mundo das ideias, acabadas, perfeitas, incontestáveis, e que eu agora — na minha confusão — mal vislumbrava através da lembrança [...].”40 Michel Foucault chama de heterotopias a esses lugares utópicos ou momentos ucrônicos nos quais a infância reina:

As crianças conhecem perfeitamente esses contraespaços, essas utopias localizadas. É o fundo do jardim, com certeza, é com certeza o celeiro, ou é então — na quinta- feira à tarde — a grande cama dos pais. É nessa grande cama que se descobre o oceano, pois nela se pode nadar entre as cobertas; depois, essa grande cama é o também o céu, pois se pode saltar sobre as molas; é a floresta, pois pode-se nela esconder-se; é a noite, pois ali se pode virar fantasma entre os lençóis; é enfim, o prazer, pois no retorno dos pais, se será punido.41

André o sabe bem: “era num sítio lá do bosque que eu escapava aos olhos apreensivos da família” (LA, p. 85), era talvez ali onde viu pela primeira vez a cabra Sudanesa, “ali entre os arbustos floridos que circundavam seu quarto agreste de cortesã” (LA, p. 92); ou dos dias antigos na fazenda, quando era com certeza a casa velha: “ia enchendo os cômodos em abandono com minhas preces, iluminando com meu fogo e minha fé as sombras esotéricas que fizeram a fama assustada da casa velha” (LA, p. 162); ou melhor ainda, era lá onde fora outrora a capela: “era preciso ali também aliciar os barros santos, as pedras lúcidas, as partes iluminadas daquela câmara, fazer como tentei na casa velha, aliciar e trazer para o meu lado toda a capela” (LA, p. 187); ou talvez seja agora esse velho quarto de pensão, uma vez que “tanto maior uma certa liberdade, o quarto é um mundo, quarto catedral” (LA, p. 82). Eis

40 CC, p. 72. 41 FOUCAULT, Michel. O corpo utópico, as heterotopias. São Paulo: n-1 Edições, 2013, p. 20.

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porque a ilha em sua utopia (não-lugar) não cessa paradoxalmente de consagrar lugares muito bem determinados para essas “contestações míticas e reais do espaço em que vivemos”.42 Nassar não se dirige a essa planta da infância para aí descobrir uma marca pessoal cujo relevo em suas narrativas deva ser remetido a uma mera perspectiva ideológica com a qual se identifique. Seria uma suposição pobre essa: a de uma tal pobreza. Pois sua festa é ter encontrado um fio solto, um através do qual puir prazerosamente toda a trivialidade dos aspectos pessoais, uma espécie de retorno aos encantos de uma vida refeita na imanência atávica do corpo, este ponto maximamente concreto e ao mesmo tempo insondável, obscuro, vasto de sono e de vegetatividade magnética, dispensando o recurso a fontes abstratas e mirabolantes, propriamente espirituais. Basta no máximo um certo meio propício a partir do qual possam brotar per si, isto é, pelo simples fato de se ter um corpo. Conforme Foucault:

A utopia é um lugar fora de todos os lugares, mas um lugar onde eu teria um corpo sem corpo [...]. Mas, na verdade, meu corpo não se deixa reduzir tão facilmente. Afinal ele tem suas fontes próprias de fantástico; possui, também ele, lugares sem lugar e lugares mais profundos, mas obstinados ainda que a alma, que o túmulo, que o encantamento dos mágicos [...]. Não, verdadeiramente não há necessidade da mágica e do feérico, não há necessidade de uma alma nem de uma morte para que eu seja ao mesmo tempo opaco e transparente, visível e invisível, vida e coisa: para que eu seja utopia, basta que eu tenha um corpo. (FOUCAULT, 2013, p. 8-11)

Vislumbrados esses espaços outros, diferenciados, tudo se passa então de acordo com a possibilidade de penetrá-los ou de retomá-los contra toda sorte de interdições externas; tudo se passa de acordo com a natureza do território por meio do qual essa planta vem brotar. O protagonista nassariano, afundado na terra fértil do seu próprio corpo, tenta mantê-la a salvo das mil pequenas pragas em torno, saúvas ameaçando decompô-la; a salvo do chamado à ordinariedade dos demais espaços e momentos ameaçando dessacralizá-la. Vê-se que o que está em jogo não diz respeito apenas às linhas gerais do aspecto comportamental de certos personagens, de certos narradores ou de certo autor, mas sim a uma espécie de poço ao qual todos sempre retornam. Essa ideia que já se agitava em Jorge de Lima, em sua Invenção de Orfeu: “Ah! Rumor antigo e poço | tão bafio, tão espectro, | tão infância, tão bloqueado.”43 Isto para dizer que, antes de ser um traço de personalidade, essa planta da infância se mostra como um verdadeiro marco impessoal, porém, marco a partir do qual se produzem as próprias representações pessoais: à medida que o indivíduo a recusa e contorna ou, ao contrário, à medida que a assume e vivencia. Por isso, quando fala do avô e da força de sua

42 FOUCAULT, 2013, p. 20-21. 43 LIMA, [s. d], p. 226.

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figura como símbolo ancestral de caráter ordenador e repressivo (que primeiro se repassa ao pai e depois ao irmão Pedro), André (LA) não se furta de vê-lo, apesar da via antagônica que toma, fundar-se num mesmo jogo originário. Tendo ido extrair suas insígnias também em tensão com essa planta e seu lirismo, o avô o faz sob uma atitude contrária àquela de André. Daí, quando este vai falar das proveniências de seu avô, sobrevém as mesmas expressões, regirando e ecoando imagens e elementos flagrantemente espelhados aos de sua própria experiência dessa planta da infância, como se ainda rememorando-a, recobrando-a sobre si, sondasse a relação todavia diversa que seu avô um dia travou com ela:

[...] era esse velho asceta, esse lavrador fenado de longa estirpe que na modorra das tardes antigas guardava seu sono desidratado nas canastras e nas gavetas tão bem forradas das nossas cômodas, ele que não se permitia mais que o mistério suave e lírico, nas noites mais quentes, mais úmidas, de trazer, preso à lapela, um jasmim rememorado e onírico. (LA, p. 118, grifos meus)

Ao contrario do avô, André hidrata seu sono. Sabe que é somente por meio de um especial entorpecimento que ele pode navegar sua nau para a ilha de uma tal infância idílica. Manifesta sacralização do sono em diversas passagens de Lavoura arcaica, como estância processada desde as forças vegetativas e pacientes da natureza. Com ares de metalinguagem, o sono vem ser recolhido nesse instante preciso em que o narrador o toma já maduro, já elaborado poeticamente em sua antiguidade, em sua rumorejante espontaneidade que, apesar de ser antes inconsciente, avança a aliciar os empenhos ativos e conscientes, fazendo surgir certa configuração subjetiva — insistirei que se trata mesmo de um ethos. Voltaremos também a encontrá-lo (amadurecido) no grande cansaço que os protagonistas de Nassar não param de reclamar para si. Esse sono que se sobrepõe às vozes protetoras que o chamam da varanda é já o motor daquela sua grande indiferença, e, para ser mais exato, daquele seu profundo desprezo ao mundo e à gente. Todavia, há um inequívoco vitalismo que detém o seu ímpeto suspensivo numa margem última, quando já se devassou largamente o plano dos valores comuns, dos costumes e das esperanças sociais, ou simplesmente humanas. Pois antes de mais nada, Raduan Nassar aufere dessa planta da infância o aspecto afirmativo que é caro à própria composição da grande indiferença. O desapego com que a vida, sem maiores razões e sempre impiedosamente, ergue e varre, ora se embrenhando e ora se desvencilhando das formas e das experiências que segue abrindo e fechando no caminho, deixa supor que todo movimento assinalável, ao qual logo se pode arranjar alguma razão plausível, esconde os desígnios mais obscuros de paixões movediças. Toda uma textura que confunde-se com a da imaginação e mesmo com a do pensamento enquanto tal — onde, igualmente, as ideias bem

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podem surgir, interromper, apropriar, imiscuir, obliterar e trocar-se em outras segundo uma expressão insurgente que as percorre e orienta suas ligações, deixando para a razão apenas o trabalho supérfluo e tardio de arrumar toda a bagunça com explicações — estas bem mais dóceis, bem mais envolvidas pela trivialidade que, em entrevistas, Nassar não cessa de acusar:

Abandonei o curso científico e pulei para o clássico, abandonei um curso de Letras na universidade, o curso de Direito no último ano, a empresa familiar assim que meu pai faleceu. Abandonei ainda uma criação de coelhos, o jornalismo e outras coisas mais. Tudo somado, só levei a pecha de inconstante. Por que só quando abandonei a literatura eu teria me transformado em personagem fascinante? (SABINO, 1997)

Essa repreensão à primeira vista fortuita e distante da análise de sua obra é, porém, de muita valia para que se possa já descrever algo decisivo de sua curva poética. Ela faz notar um aspecto caro a praticamente todos os seus textos: a incomunicabilidade, isto é, a impossibilidade ou a inutilidade de oferecer a outrem ou a si mesmo qualquer linha de razão que possa demarcar aquele terreno último e arredio em que seus protagonistas operam: nenhuma teleologia das ações, ordem dos valores, prioridade dos interesses e nem metas programáticas. Tudo deve se dar sob a força dos desmandos passionais que, impondo sua carga, “dominando a todos com seu violento ímpeto de vida”,44 decide acerca de nossas ações. Deve-se intuir algo do delírio que não nos pode escapar: o que se passa quando as ações se pretendem tão equivalentes às ideias que a imaginação se torna o seu próprio plano de operação; quando realizar uma ação já não é mais concreto do que experimentar a sua performance hipotética? Dizendo melhor, deve-se intuir o que se passa quando a ideia e o fato, o ato imaginado e o ato realizado se tornam equivalentes do ponto de vista do seu valor — pois se os motores do delírio são o tédio e o desprezo, já não podemos recorrer a idiossincrasias subjetivas, equívocos, patologias ou quaisquer vícios da ilusão (a falsificação de fatos), restando-nos apenas os efeitos das oscilações subjetivas, modulações somáticas segundo as lacunas abertas pelo desprezo (a própria suspensão dos valores). Nessa via, é desnecessário pintar o mundo em outras cores, distorcê-lo. A falsificação dos fatos só faz sentido se, em algum grau, a subjetividade ainda lhes paga algum tributo, isto é, lhes dá algum valor. Como a suspensão radical operada no próprio plano dos valores está no coração do movimento poético de Nassar — um gesto que longe de atrofiar, promove sua vitalidade — todos os fatos ficam órfãos de quaisquer valores prévios. Pode-se inclusive jogar xadrez

44 Assim o narrador de Lavoura arcaica descreve a dança de Ana (LA, p. 256), personagem modelar para se falar dessa vibração da vida na obra de Nassar, pois ela, notadamente, vale mais pelo afeto que detona e põe em marcha do que por qualquer nota característica, traço de perfil ou complexidade psicológica que concentre maiores explicações.

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enquanto morrem a mãe e as irmãs, como veremos. É desnecessário falsificar os fatos quando tanto faz que o mundo ande para frente ou para trás — a exemplo de seus protagonistas, que resistem aos compromissos básicos do bom senso, das convenções morais e do simples cálculo das consequências. Daí um personagem ir romper escrúpulos éticos capitais. Afinal, sob essa perspectiva, o que deveria (ou sequer poderia) impedir o impulso incestuoso de André (LA) sobre o seu irmão Lula, quando este emite os traços característicos de sua também irmã Ana? Considere-se que tais pessoas-ideias se misturaram na sua imaginação, que os irmãos de repente se uniram: assim como uma ideia leva a outra, contagiaram-se, e Lula tornou-se em uma via até a irmã: “Seus olhos eram, sem a menor sombra de dúvida, os primitivos olhos de Ana!”45 Sua indiferença ao status quo segue, paradoxalmente, o veio de um ofício maior, pois, como disse, é de uma só vez que se deve apreender a via negativa de seus desprezos e a via positiva de suas devoções amorais. É assim que, em Nassar, apesar da oposição que pretenderia tornar excludentes esses dois termos, o indiferente devém o devotado, e vice-versa. Até porque essa planta da infância, esse sono, não é um estado garantido, mas, bem longe disso, algo como uma paz muito precária que, portanto, requisita um exercício rigoroso a ser sempre retomado ou reiterado — conquanto empenhado não de um agitar-se em ações retumbantes, mas de um avolumar-se em letargia:

[...] ah, meu irmão, não me deitei nesse chão de tangerinas incendiadas, nesse reino de drosófilas, não me entreguei feito menino na orgia de amoras assassinas? não era acaso uma paz precária essa paz que sobrevinha, ter meu corpo estirado num colchão de erva daninha? não era acaso um sono provisório esse outro sono, ter minhas unhas sujas, meus pés entorpecidos, piolhos me abrindo trilhas nos cabelos, minhas axilas visitadas por formigas? não era acaso um sono provisório esse segundo sono, ter minha cabeça coroada de borboletas, larvas gordas me saindo pelo umbigo, minha testa fria coberta de insetos, minha boca inerte beijando escaravelhos? quanta sonolência, quanto torpor, quanto pesadelo nessa adolescência! (LA, p. 141-142)

1.4. A cerca viva

Se o exílio é uma questão de devoção, o é justamente na medida em que não se pode, de uma vez por todas, dar por solucionado o elo partido entre o sujeito em fuga e o mundo por ele contornado. O exílio deve ser, portanto, cuidado obstinadamente, com observância e devoção: uma volúpia religiosa. Eis aí o enigmático afinco e zelo pelas fronteiras como traço de seus personagens (entre eles, o próprio Nassar). Mesmo o lugar sagrado de seu retiro

45 LA, p. 249.

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jamais consegue quebrar de todo as pontes que o ligam de volta ao mundo, estando sempre à mercê de revides e interrupções multilaterais. Poderíamos dizer que o exílio (enquanto tarefa ética) não se reduz ao refúgio (enquanto lugar sempre precário), em conformidade com aquela lembrança de Montaigne acerca das palavras de Bias: “Não basta pois deslocar-se, evitar a multidão, é preciso ainda afastar de nós as ideias que nos são comuns, a ela e a nós.”46 Não resta ao exilado senão montar guarda e impor seu ritmo, torná-lo expressivo, sua casa (estamos indo sempre para casa), erigir e conservar um território: distâncias e fronteiras. Daí o estopim de toda a contenda em Um copo de cólera girar justamente em torno de uma certa barreira com a qual o protagonista, subentende-se logo, compõe uma íntima identificação:

[...] e eu sentado ali no terraço via bem o que estava se passando, e percorria com os olhos as árvores e os arbustos do terreno, sem esquecer as coisas menores do meu jardim [...], mas meus olhos de repente foram conduzidos [...], eis o que vejo: um rombo na minha cerca-viva [...], e assim que cheguei perto não agüentei: “malditas saúvas filhas-da-puta” [...], é preciso ter sangue de chacareiro para saber o que é isso [...]. (CC, p. 27-28)

Eis o ethos do exilado, cuja ação há de ser pesada sob a perspectiva da montagem do território que elabora para si, sempre pouco razoada aos olhos alheios (é preciso ter sangue de chacareiro). Deleuze e Guattari afirmam mesmo que o ethos suposto pela territorialização se confunde com o próprio território, com o ato e a relação original que o fundam e o marcam:

O nomos como lei costumeira e não escrita é inseparável de uma distribuição de espaço, de uma distribuição no espaço, sendo assim um ethos, mas o ethos é também Morada. [...] A territorialização é o ato do ritmo tornado expressivo, ou dos componentes de meios tornados qualitativos. [...] Mesmo quando os impulsos e as circunstâncias estão dados, a relação é original relativamente àquilo que ela relaciona. [...] O que é meu é primeiramente minha distância, não possuo senão distâncias. Não quero que me toquem, vou grunhir se entrarem no meu território, coloco placas. (DELEUZE & GUATTARI, 2002, p. 118-127)47

Pode-se dizer que o ataque às barreiras guardadas pelo protagonista em Um copo de cólera não se limita a esse das malditas saúvas filhas-da-puta. Um movimento de assalto vai se prolongando em pequenas tentativas nos capítulos que antecipam “O esporro”, e concorrem igualmente para o seu estopim. Que pesem nisso as investidas da mulher em esclarecer as coisas, em saber o que ele tem. Por mais que sigam mitigadas ante a atmosfera de muda dominação amorosa — sempre mais imperativa — com a qual o protagonista resiste a tais assaltos, ainda assim, num trabalho constante, de formiga, ela não para de testar as suas

46 MONTAIGNE, p. 119-120. 47 DELEUZE, Gilles & GUATTARI, Félix. Mil platôs: capitalismo e esquizofrenia. Volume 4. Tradução: Suely Rolnik. São Paulo: Editora 34, 2002.

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brechas. A quase mudez do chacareiro funciona como blindagem, como tentativa de fazer as coisas correrem mais próximas às demandas do corpo (as heterotopias de que fala Foucault), pois “uma coisa é certa, o corpo humano é o ator principal de todas as utopias”.48 Daí o foco longínquo do chacareiro, que desde a chegada, quando encontra a mulher já à sua espera, vai preenchendo todas as ações com um silêncio medido, híbrido de contemplação, cálculo e indiferença. Mas ela o segue atrás, tentando desfazer esse clima dúbio que ele lança no ar, tentando tirá-lo de sua suspensão e trazê-lo ao solo, sempre com a pergunta insistente: “[...] ‘que que você tem?’, mas eu, muito disperso, continuei distante e quieto, o pensamento solto na vermelhidão lá do poente, e só foi mesmo pela insistência da pergunta que respondi [...].”49 Nassar nos revela certas fontes: “São Bernardo, do Graciliano, O Amanuense Belmiro, do Cyro dos Anjos, e Uma vida em segredo, do , são lembranças que fazem parte dos meus afetos.”50 Então recordamos de Paulo Honório grunhindo, escorraçando a todos (“uma cólera despropositada”)51 em defesa de seu território, desfrutando do valor que só ele sabe lhe dar (“se aquela mosca-morta prestasse e tivesse juízo, estaria aqui aproveitando esta catervagem de belezas”),52 e tresmalhando em evocações de Madalena (“mas ignoro se a visão que me dá é atual ou remota”).53 Tal como este narrador de S. Bernardo a escrever suas notas, Belmiro vai reeditando camadas de lembranças antigas, fundindo pessoa, personagem e mito (Arabela sobre Carmélia sobre Camila) no espaço tanto literário quanto expiatório que elabora para si, reserva memorialista em que se reúne confabulando consigo mesmo:

Tempo velho. Velho Belmiro. Hoje é o nosso dia. Enquanto a fogueira funcionar, nós ficaremos de braços dados, nem tristes, nem alegres, apenas nos namorando e nos lembrando daquela moça de cabelos de retrós, tão viva, tão palpitante em nossa memória, que cantava inefável modinha. Qualquer coisa a respeito de um viajor e de uma estrela. A estrela sempre estava em cima, sempre estava adiante do viajor. E ele viajava toda a vida, pensando que chegaria à estrela. Tempo velho. Moço Belmiro. Vamos perambular pela rua, espiando as fogueiras e cantando certa modinha que ninguém ouvirá. (ANJOS, p. 60)54

Assim também Biela, de Uma vida em segredo, tentando por suaves devaneios reaver e atualizar sobre os signos que encontra na cidade aqueles seus da velha Fazenda do Fundão:

48 FOUCAULT, 2013, p.12. 49 CC, p. 9-10. 50 CADERNOS, p. 30. 51 RAMOS, Graciliano. S. Bernardo. Rio de Janeiro: Record, 2012, p. 141. 52 Ibidem, p. 184. 53 Ibidem, p. 119. 54 ANJOS, Cyro dos. O Amanuense Belmiro. Belo Horizonte: Livraria Garnier, 2002.

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Dos hábitos de sua primeira versão alguns se entranharam, se ajeitaram tão bem na sua alma, que nunca pensou em alterá-los. Eram conquistas definitivas, incorporadas às suas lembranças mais quentes. Ao riachinho correndo manso nas noites do Fundão, ao monjolo pelando chocho o arroz, à cantiga do canapé, a de manhãzinha o pasto molhado de orvalho, ao cheirinho de capim, à fumaça azulada da caieira no fim da tarde, aos passarinhos piando triscado na cerca, à neblina gostosa de relembrar. (DOURADO, 2000, p. 82)55

Mas também Biela segue ameaçada por tantos tormentos eventuais quanto contumazes (“Alfeu, o seu fantasma. O fantasma que a perseguia na horta, nos corredores, nas portas mal- cerradas”).56 Em fuga, suas lembranças vão se fundir em Mazília (“Mazília – o seu piano, o seu harmonium, as suas belezas – era mais uma camada de terra no coração. Como o riachinho deslizando, o monjolo chorando, a mãe na sua neblina cantando a longínqua cantiga do canapé”);57 vão se fundir no cachorro Vismundo (“Por falar nisto, de onde é que ocê veio? Quem sabe não foi do Fundão?”);58 vão eleger seu lugar na casa (“Nas cozinhas encontrava um mundo familiar. Todas as cozinhas eram mais ou menos iguais à da casa de primo Conrado, à da Fazenda do Fundão, onde ela viveu a maior parte de sua infância”).59 Tudo se passando entre montar e guardar seu território lírico contra toda sorte de assaltos (“Como um corte no sonho, as coisas ruins de novo. Alfeu gritou mijando em pé feito mula”).60 Retornando à produção de Nassar, vemos que não é apenas em Um copo de cólera, em que o protagonista tem suas defesas atingidas pelas malditas saúvas e pela mulher, mas também em Lavoura arcaica o protagonista ensimesmado recebe os golpes invasivos que tentam resgatá-lo para fora, para os chamados externos que vêm removê-lo da primazia do corpo, isto é, de sua grande razão — conforme o especial conceito forjado por Nietzsche: “O corpo é uma grande razão [...]. Instrumento de teu corpo é, também, a tua pequena razão, à qual chamas ‘espírito’ [...]. Há mais razão no teu corpo do que na tua melhor sabedoria. E por que o teu corpo, então, precisaria logo da tua melhor sabedoria?”61. E eis já o corpo, tal como o encontramos em Nassar, numa volúpia flagrante de submeter e tornar todos os componentes do pensamento e das relações com o mundo em meios, instrumentos e etapas de seu exercício original, submergindo-os em suas águas. Recorde-se o começo de Lavoura arcaica:

55 DOURADO, Autran. Uma vida em segredo. Rio de Janeiro: Rocco, 2000. 56 Ibidem, p. 41. 57 Ibidem, p. 96. 58 Ibidem, p. 104. 59 Ibidem, p. 86. 60 Ibidem, p. 78. 61 NIETZSCHE, 2010b, p. 60.

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Os olhos no teto, a nudez dentro do quarto; róseo, azul ou violáceo, o quarto é inviolável; o quarto é individual; tanto maior uma certa liberdade, o quarto é um mundo, quarto catedral, onde nas intermitências da angústia descobre-se o rosto para colher de um áspero caule, na palma da mão, a rosa branca do desespero, pois entre os objetos que o quarto consagra estão primeiro os objetos do corpo [...]. (LA, p. 81)

De cara, nos é dado deparar com o personagem André tão embriagado pelas próprias suscitações de seu delírio que nos aparece já por demais desfeito de alguma feição social; por demais distante de estar sequer apresentável frente ao mais trivial encontro que mesmo a vida pública mais ordinária sempre requer. Em seu transe solitário, ele como que se masturba, convulsiona e delira, jogado ao chão, enquanto o mundo vem bater à sua porta. As batidas são de seu irmão Pedro, e, tal como as perguntas da mulher (CC), são toleráveis num primeiro momento (“o ruído se repetindo, sempre macio e manso, não me perturbava a doce embriaguez”),62 porém, logo alcançam a carga violenta capaz de arrancá-lo de sua inércia (“pancadas num momento que puseram em sobressalto e desespero as coisas letárgicas do meu quarto”),63 exigindo que ele se recomponha e se apresente — a exemplo do célebre Gregor Samsa. Pois, guardadas as devidas proporções, toda a situação inicial de A metamorfose se dá também nesses termos: em primeiro lugar, o protagonista se encontra recluso em seu quarto e terrivelmente desfeito de sua face social (“Certa manhã, ao despertar de sonos intranquilos, Gregor Samsa encontrou-se em sua cama metamorfoseado num inseto monstruoso”).64 Em segundo lugar, não param de bater à sua porta, este limite frágil onde os outros se acumulam e por onde o reclamam de volta ao terreno ordinário e diurno da vida e do trabalho. É exatamente assim que o protagonista de Lavoura arcaica, por sua vez, vai foragido dos ensinamentos e afazeres da fazenda, dos pudores e das normas morais com que a família, impregnada pela palavra do pai, o constrangia. Vai ser então encontrado num quarto distante, numa velha pensão interiorana, ao abandono de entorpecimentos que lhe adormecem as vozes da sua pequena razão. Se essa passagem é emblemática do ponto de vista conceitual, é porque ela trata exatamente de um pôr-se em isolamento, profundo e inviolável, mas que, em vez de se dar sob o esperável signo de uma atrofia dos horizontes a que se está aberto, ou seja, de uma redução daquilo que se pode experimentar, parece ocorrer o contrário: amplia-se e promove-se silente e deliciosamente um resplandecente campo de possibilidades, se é que a imaginação não o consagra já como um verdadeiro campo de efetuações, levado a termo sobre ela mesma, a começar sempre e sugestivamente pelos objetos do corpo. Desse modo, o

62 LA, p. 82. 63 Ibidem. 64 KAFKA, Franz. A metamorfose. Tradução de Marcelo Backes. Porto Alegre: L&PM, 2012, p. 13.

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estreito limite extensivo do quarto dá suporte a um irrestrito plano de experimentação intensiva do mundo (quarto-mundo). Vemos como isso transpira a ilha de que nos fala Jorge de Lima naqueles primeiros versos de Invenção de Orfeu; como visa ampliar o espaço dessa planta da infância, que também no Lavoura arcaica André chama de “sono de planta”, de “feno”; esse poço ao qual não se para de retornar e insistir. Se paira essa ilha como ideal de fundação em relação aos diversos personagens de Nassar, há do outro lado toda sorte de obstáculos e ações impeditivas, cuja forma é sempre a de assaltos vindos de fora. Na fronteira do corpo, tenta-se a cada vez e com o pouco que se tem à mão — digamos, com um copo de mar — tanto resistir a essas investidas quanto destinar-se a uma tal ilha. Não tardamos a ver que essa configuração atravessa todas as obras de Nassar, e que ela estrutura algo mais do que o simples conjunto de suas semelhanças, remetendo-nos a uma unidade que não possui qualquer especificação em si mesma e que, apesar disso e bem diferente da mera abstração, é estritamente constituinte. Ou seja, quanto mais a descrevemos, mais vamos nos aproximando do nível eminentemente concreto de sua atividade e produção, flagrando suas funções antes delas serem especificadas pelos meios e fins em que se elaboram a cada vez (brincar, dissimular, fazer cara de louco, delirar num canto, cuidar das cercas, esticar silêncios etc.) e flagrando suas substâncias antes delas serem formadas nos termos afetáveis (uma menina, um confitente, um jornalista, um filho foragido, um chacareiro, um esposo etc.). É Deleuze quem nos convida a seguir Foucault nesse método singular:

Foucault chamar-lhe-á então diagrama, função que se deve desligar de qualquer uso específico, tal como de qualquer substância especificada. [...] Poderemos assim definir o diagrama de vários modos que se encadeiam: é a apresentação das relações de forças próprias de uma formação; é a repartição dos poderes de afectar e dos poderes de ser afectado; é a mistura das puras funções não-formalizadas e das puras matérias não-formadas. (DELEUZE, 2005, p.100)65

Para alcançarmos um tal diagrama não é necessário formulá-lo por seu infográfico respectivo, até porque isso nem sempre é possível — ou, quando é, sua aparência à primeira vista tende a soar ainda hermética e obscura, demandando um volume de texto análogo ao que se pensava poder contornar. Contudo, sendo inegável sua persuasiva competência quando se trata de ressaltar certa configuração em meio à multiplicidade de casos pelos quais se especifica a cada vez, tento traçá-lo a seguir. Para isso, lanço mão de alguns impasses dos protagonistas nassarianos a fim de expor a dinâmica singular de suas repartições afetivas e formações dramáticas quando o assunto é “montar seu território” e “defender suas fronteiras”:

65 DELEUZE, Gilles. Foucault. Tradução: Pedro Elói Duarte. Lisboa: Edições 70, 2005.

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O ventre seco

Aí pelas três da tarde As investidas As espreitadas Um copo de cólera de Paula da mãe

Os olhares “Não conheço As malditas das pessoas esse senhor” em casa da puta Acúmulo kitchenettes A insistência de segredos separadas da mulher: A divisão Cara de “o que é que do bom louco não Cerca viva você tem?” senso do precipitado mundo Dúbio Largo “ciao” silêncio ao trabalho do dia Lavoura arcaica O quarto Pedro inviolável * * * batendo à 1. 2. 3. sua porta O sono de planta As vozes O brincar e a protetoras inocência em A casa chamando fuga por desvios velha da varanda imaginativos Dizer o que se pensa A mesa Os traumas Silêncio e recusas: comum e a reiterada “não tenho afeto sordidez para dar” “(saudades de mim!)” do mundo Os ensinamentos do “sexualizado” bisavô: “Às favas o dos adultos que a gente pensa”

Menina a caminho A mulher sondando acessos e Mãozinhas de seda contornando o silêncio através do bloco de anotações: “responda”

Hoje de madrugada

1.* Nível dos assaltos de fora 2.*Nível das fronteiras de si 3.* A ilha A diversidade de assédios dos A diversidade de barreiras dos Ponto ideal e horizonte outros sobre os protagonistas. protagonistas em sua defesa. comum a todas as defesas.

As investidas dos outros; os Duplo empenho: Objeto sacralizado e santuário modos diversos com que as a) prevalecer sobre os assaltos dos tresmalhos líricos; refúgio relações ordinárias do mundo de fora; b) encaminhar-se a um fruitivo da livre experimentação lançam sua rede a cada vez. núcleo positivo: a ilha. de si como “corpo ampliado”.

Diagrama 1: Fronteiras dos protagonistas de Nassar

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Tudo aqui depende da força com que esse panorama nos alcança. Fechando-se sobre si, ele comporta uma a uma todas as obras de Nassar, sugerindo hipnoticamente que nos deixemos atrair das margens específicas de cada conto ou romance para o núcleo germinal que os elabora, absorve e integra na continuidade de uma notável unidade poética. Mire-se principalmente nos contos, no geral tão breves e pontuais. Mesmo nesses casos, em que seria bastante compreensível esperarmos encontrar realizações menos definitivas, divertimentos de outra natureza, horas em que se dá vazão quem sabe a experimentos mais frívolos e que escapariam, portanto, do caráter decisivo a pairar sobre o conjunto como um todo; mesmo aí não é isso o que encontramos. Se fosse, falaríamos em “unidade” de modo assaz precário, esta se perderia confundida com a silhueta de uma falaciosa subjetividade deliberante cuja proeza não se poderia mais distinguir da mera coerência exterior entre as massas de elementos então “manipulados”. Tudo se reduziria à simples preferência autoral ou decisão arbitrária, voluntarismos de um espírito que, certa feita, colocou-se a considerar e separar sob a luz da escrivaninha textos que, apesar de efetivamente diversos, permitiriam todavia emular certa unidade. Mas já nada se veria. Para ir além da imagem de um tal arranjo artificial promovido pelo sujeito, temos de buscar sua unidade impessoal numa certa disposição unívoca. Daí o valor desses impasses listados no diagrama, obra a obra. Apesar de aparentarem ocupar um lugar acessório, eles nos permitem recuperar a variada comunidade de um mesmo empenho. Se os tomássemos como se fossem excessos dispensáveis, perderíamos do devoto o seu fechar de olhos, a sua inclinação no silêncio, toda a reunião compenetrada de suas forças como ação profunda — que começa a organizar suas palavras como prece. E quando são chamados ao primeiro plano da análise, vemos que esses impasses variados atualizam um exercício equivalente, ritualizado por silêncios e trancamentos em meio aos quais o protagonista invariavelmente vai tentando ampliar o bocado que cabe ao corpo, as ofertas que faz à sua própria vontade experimentadora. A este aspecto positivo corresponde um outro, negativo, ou de resistência: o de que assim o protagonista evita cair alienado por estratégias de captura as mais diversas e seus respectivos termos empecilhos. Vejamos o caso do breve “Aí pelas três da tarde”, que está longe de ser uma simples narrativa desenrolando uma história ou um acontecimento (real ou ficcional). Antes, é uma verdadeira incitação. Um texto para atingir humores. Sentimos como se o narrador estivesse tentando instigar o leitor a abandonar tudo e cair na rede, entregar-se ao afrouxamento das amarras ao redor, “libertando aí os pés das meias e dos sapatos, tirando a roupa do corpo

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como se retirasse a importância das coisas”.66 Essa oposição entre a importância das coisas e o corpo nu é uma constante de seus textos, merece que nos detenhamos um pouco nela, principalmente em sua imagem mais presente: a dos pés descalços. Em sua relação com as meias e os sapatos, os pés encenam uma metonímia do corpo em meio ao cerco que a sociedade lhe mantém. E isso deve ser tomado menos como um símbolo representacional e mais como um drama efetivo e exemplar em que tais disputas se tornam verdadeiramente manifestas, despertando uma consciência aguda acerca do jogo de poder disputado já em tão mínima concessão do espaço pessoal ao social. Tal é a reunião das significações que estabelece, por exemplo, nessa passagem de Um copo de cólera:

[...] lembrando de enfiada que ninguém, pisando, estava impedido de protestar contra quem pisava, mas que era preciso sempre começar por enxergar a própria pata, o corpo antes da roupa, uma sentida descoberta precedendo a comunhão, e, se quisesse, teria motivos de sobra pra pegar no seu pezinho, não que eu fosse ingênuo a ponto de lhe exigir coerência, não esperava isso dela, nem arrotava nunca isso de mim, tolos ou safados é que apregoam servir a um único senhor, afinal, bestas paridas de um mesmíssimo ventre imundo, éramos todos portadores das mais escrotas contradições, mas, fosse o caso de alguém se exibir só como pudico, admitisse nessa exibição, logo de partida, a sua falta de pudor, a verdade é que me enchiam o saco essas disputas todas entre filhos arrependidos da pequena burguesia, competindo ingenuamente em generosidade com a maciez de suas botas [...]. (CC, p. 36, grifos meus)

Aqui uma janela aberta para a contenda central da novela, a partir da qual já se premune — como que em promessa — muito do conjunto de signos envolvidos no efetivo uso sexual e dominador dos pés que será descrito — como que em cumprimento dessa promessa — ao final da discussão entre o chacareiro e a mulher:

[...] ‘estou descalço’ e vi então que um virulento desespero tomava conta dela, mas eu sem pressa fui dizendo ‘estou sem meias e sem sapatos, meus pés como sempre estão limpos e úmidos’ [...], e eu sacana ainda perguntei “que que você fez com o pé que eu te dei um dia?...’ e ela entrando em agonia disse suspirando ‘amor amor amor’ e eu vi então que eu tinha definitivamente a pata em cima dela [...], ela que me enchia tanto o saco com suas vindas, compondo a cada dia a trava dura dos meus passos [...]. (CC, p. 65-68, grifos meus)

De fato, pode-se acompanhar a narrativa pelo desenvolvimento dessa imagem dos pés, cujo protagonismo vai sendo desenhado desde as páginas iniciais: “[...] fui tirando calmamente meus sapatos e minhas meias [...], e me pus em seguida, com propósito certo, a andar pelo assoalho [...], sabendo que eles [os pés], descalços e muito brancos, incorporavam

66 TT, p. 72.

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poderosamente minha nudez antecipada.”67 Em Lavoura arcaica, igualmente, trata-se da insígnia febril de André, sempre buscando afundar seus pés adolescentes entre a terra e as folhas para compor o seu segundo sono; também no narrador protagonista a descrever Ana, sempre descalça em seu aceso ímpeto de vida, com o qual o submetia ardentemente: “minha irmã que tinha as plantas dos pés em fogo imprimindo marcas que queimavam dentro de mim”.68 Ainda mais incontornável é quando André enuncia os termos quase proféticos de sua vontade criadora e formula assim sua liberdade: “sobre esta pedra fundarei minha igreja particular, a igreja para o meu uso, a igreja que frequentarei de pés descalços e corpo desnudo.”69 Já no conto “Mãozinhas de seda”, o bisavô é imediatamente definido em sua adaptação diplomática e afinada com os protocolos sociais através do bom grado com que encerra o corpo num detalhadamente descrito conjunto de peças e acessórios, a começar pelas botinas de pelica. Em “Hoje de madrugada”, vemos a disputa desesperada dos pés da mulher contra os do protagonista, descalços, debaixo da mesa: “Mais seguro, próspero, devasso, seu pé logo se perdeu sob o pano do meu pijama, se esfregando na densidade dos meus pêlos, subindo afoito, queimando a perna com sua febre.”70 Estas ocorrências são suficientes para mostrar o quanto os pés descalços incorporam a metonímica antecipação do corpo nu, a temperatura subterrânea das paixões, além da liberdade de experimentação eventualmente castrada pelas requisições sociais as mais básicas. Podemos então voltar ao diagrama pelo caso de “Aí pelas três da tarde”, em que essa liberdade do corpo segue uma via de oposição direta ao mundo do trabalho, mundo “onde invejáveis escreventes dividiram entre si o bom senso do mundo”.71 Sua incitação é clara:

[...] largue tudo de repente sob os olhares à sua volta, componha uma cara de louco quieto e perigoso [...], dê um largo “ciao” ao trabalho do dia, assim como quem se despede da vida [...]. Convém não responder aos olhares interrogativos [...], e se aconchegue depois, com cuidado e ternura, junto à rede languidamente envergada entre as plantas lá do terraço. [...] com um impulso do pé (já não importa em que apoio), goze a fantasia de se sentir embalado pelo mundo. (TT, p. 72-73)

Suas linhas fazem falar, mais do que tudo, uma certa vontade ou disposição do sujeito que quer dali se evadir, uma incitação, já que não nos oferece um fato consumado, nem

67 CC, p. 11-12. 68 LA, p. 105. 69 LA, p. 158. 70 HM, p. 56. 71 TT, p. 71.

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mesmo um estritamente ficcional. Antes, por meio de provocações, a série dos acontecimentos se desenvolve como uma espécie de desejo que vai crescendo em dimensões, antecipando os atos de uma peça possível sob a excitação criadora daquele que a narra. As irradiações de tal desejo formam o eixo desse breve texto de Nassar. Todavia, é esse desejo o que primeiro nos escaparia caso reduzíssemos o conto a uma simples história, um feito em seus momentos sucessivos. Atentos a esse risco, perigamos num outro. É fácil supor que o narrador fala diretamente a nós, leitores. Contudo, descreve os detalhes da geografia e do funcionamento da casa desse seu suposto interlocutor, bem como os passos da ação que este há de ali efetuar, completamente indiferente ao fato do leitor não morar numa tal casa onde haja, por exemplo, “uma rede languidamente envergada entre plantas lá no terraço”.72 Temos o direito, portanto, de duvidar se toda essa paisagem é sequer destinada ao campo de ação de algum leitor efetivo. Somos logo forçados a nos removermos da posição presumida de alvo da incitação. Não é a nós ou a um outro que o narrador fala, mas a si mesmo. São palavras que se dirigem inusitadamente ao próprio emitente; efetuam-se, então, em seu próprio espírito. Encarnam uma ficção saboreada pelo narrador, e ainda como vontade, como um cascalho girando em sua mente, admirada na contextura de seus desdobramentos. Que no caso pessoal de Nassar tenha sido um desejo equivalente se realizando por meio do abandono à literatura, disso podemos duvidar. Mas que tal conteúdo já estivesse lá, agitando as águas de seu pensamento, o próprio conto o endossa. Tanto mais porque a incitação parece encontrar o jornalista Raduan Nassar ainda em sua escrivaninha, na época em que trabalhara no Jornal do Bairro, precisamente quando escreveu o conto. De todo modo, nele se traça um plano de fuga ao homem moderno, aos compromissos e demandas sociais, em prol da abertura de um horizonte de experiência particular: a liberdade e a nudez dos pés como retomada do corpo contra a racionalidade das ideias claras e distintas. Nele, a vertiginosa cadeia de pequenas concessões — legadas em nome de uma suposta maior liberdade e horizontalidade das relações — é recolhida por um momento em todo o seu peso intolerável pelo narrador. Não é de se estranhar que disponha sua resistência apostando em armas condenadas: o diapasão dominador, o recurso à farsa, ao choque e ao constrangimento, o estímulo à inatividade. Vícios confessos de caráter manipulados como meios e ferramentas inestimáveis nessas precárias tentativas de libertação. Instrumentos equivalentes estão em jogo no tenso desenrolar de “Hoje de Madrugada”, já que ali acompanhamos um narrador protagonista severamente dedicado à

72 TT, p. 73.

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mudez e à indiferença quase cruel em relação à presença aflita da esposa, a quem só consegue repelir para as margens de si à medida que a mantém sob seu meticuloso e teatral domínio de absoluto silêncio:

Cheguei a pensar que dessa vez ela fosse desabar, mas continuei sem dizer nada, mesmo sabendo que qualquer palavra desprezível poderia quem sabe tranquilizá-la. De olhos sempre baixos, passei a rabiscar no verso de uma folha usada, e continuamos os dois quietos: ela acuada ali no canto, os olhos em cima de mim; eu aqui na mesa, meus olhos em cima do papel que eu rabiscava. (HM, p. 54)

Basta acompanharmos os vetores desse jogo de olhos para sermos devolvidos ao jogo geral no diagrama apresentado. É justamente sondando o protagonista e o primeiro recurso de que ele dispõe (o rabiscar numa folha) para defender-se da presença dela, que a mulher tenta então descobrir aí mesmo um acesso: corresponder-se com ele por breves mensagens que vai escrevendo num bloco de notas que estava entre os papéis por perto. Mas, assim como o chacareiro (CC) só responde a pergunta da mulher quando ela adquire uma insistência incontornável, ou assim como André (LA) só desperta para atender às batidas na porta quando estas forçam as suas pancadas, assim também o protagonista de “Hoje de madrugada” só vai responder a anotação escrita pela mulher mediante uma insistência equivalente, e com um igual sentido de desperdício, de algo que se faz apenas porque não se teve outra saída:

Não disse nada, não fiz um movimento, continuei com os olhos pregados na mesa. Mas logo pude ver sua mão pegar de novo o bloco e quase em seguida me devolvê- lo aos olhos: “responda” [...] Interrompi o rabisco e escrevi sem pressa: “não tenho afeto para dar”, não cuidando sequer de lhe empurrar o bloco de volta, mas nem foi preciso, sua mão, com a avidez de um bico, se lançou sobre o grão amargo que eu, num desperdício, deixei escapar entre meus dedos. (HM, p. 55)

A esposa tenta uma desesperada manobra como último recurso para trespassar sua guarda, para, quem sabe, enfim atingi-lo e recuperá-lo de seu indecifrável isolamento. Poderíamos dizer que trata-se de motivações inequivocamente distintas em cada caso e que só comungam no aspecto superficial e negativo com que os personagens das diversas obras procuram o silêncio. Mas como não ver que tudo sempre se passa, e em todos os casos, pelo aspecto positivo de um estrito domínio exercido sobre outrem como, ademais, sobre o meio ao redor? Em todos os casos, essa retração em silêncios é tomada como recurso estratégico e plástico com o qual se quer ainda fazer recuar e refrear o outro (que avança sobre si), mas também fazer ampliar mais e mais o mergulho que faz em seu território, dilatar-se no gozo de

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uma distância a partir da qual pode-se inclusive desfrutar do outro, colocá-lo sob seu domínio imperioso e submetê-lo à atmosfera dúbia que ele, então, já não perturba. Em “O ventre seco” não é diferente. Para encerrar sua relação com Paula, o narrador revela diretamente uma série de segredos que, ao final, o faz aparecer como um completo estranho a ela. De modo equivalente, vamos sendo informados das reiteradas investidas de Paula contra suas restrições sociais. A fonte positiva de onde fala o narrador refaz rigorosamente o mesmo tipo de oposição ao homem e à vida moderna, a mesma grande indiferença, e começa igualmente por afirmar esse combate irredutível contra os assaltos de fora, revigorando a impressão de que sempre se está fundamentalmente sozinho quando o assunto é defender e vigiar as próprias fronteiras: “ser instrumento da vontade de terceiros é condição da existência, ninguém escapa a isso.”73 A essa altura, é dispensável sabermos os motivos que fazem com que ele e sua mãe vivam em kitchenettes separadas, ainda que ao lado uma da outra. Basta sabermos que o meticuloso jogo de indiferença dele conta com seu domínio sobre a atenção aflita do outro (“é provável que ela vivesse a espreitar minha porta das sombras da escadaria”)74, e que, nesse ínterim, tal domínio conquista ainda uma distância confortável para a sua indiferença também indecifrável — daí ele empurrar Paula ao mesmo limite em que sua mãe já se encontrava e de onde dizia: “não conheço esse senhor.” O espanto e o poder de convencimento resultantes desse conto são extraordinários justamente porque nos deixam sentir o longo trabalho pelo qual se escamoteou o convívio com Paula e com a mãe, tanto para contornar as investidas destas, quanto para exercitar seu domínio e insistir em sua própria perspectiva isolada. Já o conto “Menina a caminho” tem suas cenas ligadas como que por um remate declaradamente imaginário, cada qual se abrindo e se fechando em arcos precisos e consecutivos entre si. Seu fio contínuo e cadenciado, sem hiato entre as cenas, pulsa em um ritmo ideal e fabulador enquanto acompanhamos o percurso da protagonista pela cidade. Mas sua inocência se choca repetidamente com a sordidez75 do mundo sexualizado dos adultos, dando indícios explícitos de que o seu passear encantado e inocente, conservado nos termos dessa visão sobretudo lúdica, é demasiado precário diante da violência dos golpes que recebe. O fim do conto é exemplar dessa continuidade e primazia da flutuação imaginativa sobre o

73 VS, p. 61. 74 VS, p. 67-68. 75 “Sordidez”: é preciso agradecer a Thayse Leal Lima, que empregou essa tão precisa palavra que tão bem apreende e nos dá o sentido daquilo com que a menina vai topando pela cidade ao longo do conto. Cf. LIMA, Thayse Leal. O mundo desencantado: um estudo da obra de Raduan Nassar. Belo Horizonte, 2006. 131f. Dissertação (Mestrado em Literatura)-Estudos Literários, Faculdade de Letras da UFMG, 2006.

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fato duro, quando depois de percorrer toda a série de ataques deste sobre aquela, de assistir sua mãe ser surrada, ela “sai do banheiro, anda pela casa em silêncio, não se atreve a entrar no quarto da mãe. Deixa a casa e vai pra rua, brincar com as crianças da vizinha da frente”.76 Mas é em “Mãozinhas de seda” que esse impasse encontra um desfecho realmente fatal. O narrador protagonista não faz mais do que ir nos atualizando de seu fracasso diante das concessões que fez ao vulto do bisavô. Tudo gira em torno da perda da voz própria diante das demandas diplomáticas do convívio, a ponto de, ao fim, encontrar-se emblematicamente vestido com a mesma impecável indumentária do bisavô, com o corpo já completamente fechado de sua nudez. A exemplo daquela imagem constantemente referida por Nassar para indicar o primado do corpo, são os seus pés agora quem estão “pisando macio as botinas de pelica”. Então o angustiado desfecho: “(saudades de mim).”77 Aqui, as barreiras que o protegiam foram completamente vencidas.

1.5. O dizer as coisas

Um retiro voluntário (“foi conscientemente que escolhi o exílio”),78 um gesto radical de dissociação, um rompante sem meandros e nem anúncios preparadores não poderia mesmo pretender se organizar a partir de um acordo ou em meio a qualquer negociação social. Não é uma posição entre outras, mas nenhuma. Aponta o fracasso das forças que nos querem compartilhados no espaço público da vida em sociedade, já que esse retiro deve começar numa indiferença ao coletivo e às suas expectativas. Atingido esse limite, já não se tem por que falar, pois aquele que se desvia não espera mais pela compreensão dos que o cercam (ou cercavam), e, tomando por vedados todos os acessos, falar se aparenta a uma frivolidade inútil, algo de todo infrutífero. Assim, duas teses se costuram e se radicalizam mutuamente, uma na outra: 1) a comunicação é no mínimo uma inutilidade — sempre insuficiente, cujos resultados são “sempre frutos tardios, quando colhidos”;79 2) e/ou a comunicação é mesmo uma completa impossibilidade — sempre falsificada por distorções incontornáveis e entregue a um jogo submundo que apenas se dissimula atrás de uma capa de esclarecimento. Em vez

76 MC, p. 49. 77 MS, p. 83. 78 CC, p. 49. 79 LA, p. 230.

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de uma luz trazendo ordem ao clarear mais e mais o palco das trocas de ideias, a virtude da comunicação vai trocar-se em um trânsito de moedas contudo irreversíveis entre si: mesa de câmbio fabuladora, orçando valores segundo saldos afetivos dramaticamente circunstanciais; segundo desempenhos cênicos de forças e qualidades. Toda uma lógica de efetuações canhestras (sementes de desordem). Inutilidade e/ou impossibilidade no dizer as coisas. Protagonista algum de Nassar dá mostras de qualquer esperança em ter compartilhada a intimidade de suas experiências e pensamentos. A exemplo dessa impossibilidade (restrição ontológica) da comunicação, pode-se ler ora o chacareiro: “c’uma gana que só eu é que sei porque só eu é que sinto”,80 ora André: “não acredito na discussão dos meus problemas, não acredito mais em troca de pontos de vista, estou convencido, pai, de que uma planta nunca enxerga a outra.”81 Passagens assim nos chegam encharcadas do mesmo caldo daquelas severas exortações lançadas pelo Zaratustra de Nietzsche:

Toda alma tem o seu mundo, diferente dos outros; para toda alma, qualquer outra alma é um trasmundo. [...] Para mim — como haveria algo exterior a mim? Não existe o exterior! Mas esquecemos isto a cada palavra; como é agradável que o esqueçamos! [...] Falar é uma bela doidice: com ela o homem dança sobre todas as coisas. (NIETZSCHE, 2010b, p. 259)

Não superaremos essa radicalidade e suas consequências na poética de Nassar. Mas ainda que esses casos acima representem um limite o mais grave, absoluto!, são aqueles que insistem na simples inutilidade da comunicação (restrição estratégica) os que mais pulam aos nossos olhos, por toda parte do texto. Neles, sempre o mesmo cacoete reiterado: a intenção do protagonista que, se pensa em dizer, desiste a meio caminho. Sempre que tal impulso se apresenta é para logo em seguida ser recobrado já esvaziado de serventia. O protagonista André (LA) segue hesitando sob a completa indiferença entre falar e permanecer mudo:

E foi uma onda curta e quieta que me ameaçou de perto, me levando quase a incitá- lo num grito [...] mas me contive, achando que exortá-lo, além de inútil, seria uma tolice, [...] eu quis dizer “não se preocupe, meu irmão, não se preocupe que eu sei como retomar o meu acesso”, afinal, que importância tinha ainda dizer as coisas? [...] Claro que eu poderia dizer muitas coisas para a mãe, mas achei inútil dizer qualquer coisa [...] “que tormento, mas que tormento, mas que tormento!” fui confessando e recolhendo nas palavras o licor inútil que eu filtrava, mas que doce amargura dizer as coisas [...] mas acabei não dizendo nada, nem ele disse qualquer coisa, logo recolhendo o aceno vago do seu gesto [...]. (LA, p. 89-140)

80 CC, p. 28. 81 LA, p. 230.

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Obviamente, não se deve concluir que as palavras, por ser a comunicação inútil, restariam inofensivas, pois não é essa a natureza de sua restrição estratégica; nem, por ser a comunicação impossível, restariam inefetivas, pois tampouco é essa a natureza de sua restrição ontológica. É preciso sempre consultar primeiro a disposição que enforma as palavras nos justos termos que as fazem não reativas e reflexivas, mas ativas e criadoras: uma verdadeira dança sobre todas as coisas. As palavras, assim compreendidas, só são vias inúteis e/ou obstruídas da perspectiva de uma certa promessa subliminar que, embora bem específica, costuma ser tomada como uma marca extremamente geral e característica da própria comunicação enquanto tal, a saber: o esclarecimento e o compartilhamento dos pontos de vista. Conforme Deleuze: “A pesquisa sobre os ‘universais da comunicação’ tem razões de sobra para nos dar arrepios. [...] Talvez a fala, a comunicação, estejam apodrecidas. [...] Criar sempre foi algo distinto de comunicar.”82 É fatal que essa pretensa aporia apenas confirme a tese de Nietzsche: “falar é uma bela doidice”. Contudo, o próprio Zaratustra só aponta tal doidice do falar para ali mesmo converter essa marca negativa em uma exigência positiva: a de que a fala deve encontrar um outro sentido para seu exercício, e um tanto mais artificial e criador quanto mais estiver calcado em sua própria realidade formal, isto é, em sua feição, configuração e dinâmica respectivas e peculiares. Ele não hesita em dizer que é uma dança, um dançar sobre as coisas: “Quão grata é toda a fala e toda a mentira dos sons! Com sons dança o nosso amor em coloridos arco-íris!”83 Nessa perspectiva, a fala deve ser tomada no nível de suas efetuações concretas, em tal e tal momento, como que em vista da expressão que produz: mais como uma qualidade singular e sua correlata modificação das disposições corporais (as configurações que atinge, arrasta, forma ou deforma) do que como uma alegada ponte entre almas (a troca de pontos de vista, que então seria uma doidice). Confere-se isso com mais detalhe no texto. Poderia se dizer que há dois movimentos gerais que se alternam nas obras de Raduan Nassar, e que no conto “O ventre seco” somos apresentados a apenas um deles. De um lado, a exemplo das páginas iniciais de Um copo de cólera e da voz do narrador de Lavoura arcaica, tem-se um registro mais úmido, banhado no vinho do lirismo: o indivíduo, sob a suspensão de suas ações, entrega-se à atenção do corpo, às imagens poéticas e recheadas de sensibilidade; larga-se solto saboreando a experiência das coisas — a fumaça de cigarro nos pulmões; a conformação da sua anatomia; os prazeres do banho e da massagem nos cabelos quando sob as graças da amante; o enterrar dos pés entre as

82 DELEUZE, Gilles. Conversações. Tradução: Peter Pál Pelbart. Rio de Janeiro: Editora 34, 2004, p. 216-217. 83 Ibidem, p. 259.

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folhas e a terra; as imagens telúricas da fazenda e de suas germinações; o largo sono em passagens repletas de imagens marcantes. Todo esse movimento aparece sempre que o protagonista-narrador consegue impor seu silêncio e seu ritmo sobre as perturbações externas, sobre o mundo que o cerca e, mais especificamente, sobre os outros — a quem ou bem domina ou, se não, de quem se perde e continua a se perder a caminho de seu exílio. Dilatando líricas desatenções, o protagonista deixa o pensamento desgarrar-se para longe, para fora dos assuntos ordinários da espécie — mas que se pretendem de inquestionável precedência. Afinal, o que importa não é “dizer as coisas”, e sim “banhar as palavras nesse doce entorpecimento, sentindo com a língua profunda cada gota, cada bago esmagado pelos pés, deste vinho, deste espírito divino”.84 Percorrendo o conjunto dos textos de Nassar, pode-se dizer que esse discurso mais úmido tem uma curiosa afinidade com o próprio silêncio. Depende dele como de sua condição de possibilidade mesma. Porque o silêncio não aparece como uma mera ausência de palavras, mas como uma disposição interior para a qual tendem os personagens: uma quietude de espírito, uma ataraxia. Todavia, nem sempre se pode conservar-se nesse estado. Na verdade, o mundo não cessa de investir o seu assunto contra as barreiras e trancamentos que os personagens se propõem. Por vezes, estes são vencidos pelos assaltos de fora; são trazidos de volta à casa familiar do convívio com os seus pares sociais; e, o que quero chamar a atenção aqui, são então forçados ao chão pedregoso de uma linguagem mais ordinária. Digo isso porque tais eventos bem poderiam ser representativos de momentos triviais da narrativa, cuja importância se restringisse ao papel que desempenham no curso dramático. Todavia, acontece também de o teor do texto se modificar profundamente, perder inteiramente a sua umidade. Quando os personagens são tirados de sua clausura embriagada, chocados contra a luz crua do mundo lá fora, pode-se vê-los ceder em brechas que conduzem a um discurso mais prosaico, desapropriado. E se aquele discurso úmido se estabelecia em função do silêncio, este parece apresentar, por seu turno, uma estreita afinidade com a fala e o diálogo excessivos: com um ter que dizer as coisas; com um ter que considerar o outro. Note-se que o protagonista, dada a sua vocação para a quietude poética, quase sempre chega até ele a contragosto. A questão que não enuncia, mas que se insinua por todos os lados de Nassar, talvez seja: o que fazer quando, vez por outra, tem-se nas mãos algo que não se quer, mas que tampouco se pode atirar fora? Pois é exatamente assim, sem esperanças com a fala, que o protagonista fala. E se a mais básica esperança da fala é o esclarecimento, Nassar não para de nos trazer personagens

84 LA, p. 119.

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fartos das ideias claras e distintas,85 ou que surpreendem a clareza como sendo um agente catalisador da própria confusão nas relações (“Se eu depositasse um ramo de oliveira sobre esta mesa, o senhor poderia ver nele simplesmente um ramo de urtigas.[...] Se sou confuso, se evito ser mais claro, pai, é que não quero gerar mais confusão!”).86 Pois bem, nesses momentos de ausência de lirismo nos quais o protagonista é despertado de sua embriaguez e o seu precário império de silêncio é atingido em cheio e sucumbe rompido, nesses momentos é que se impõe outro clima, e então uma outra qualidade de texto aparece. Notável metamorfose da linguagem. Também ela confirma essa subordinação quase monista às circunstâncias e seus humores. Dessa vez, um registro árido, verborrágico, às voltas com algum interlocutor; exposto à luz pública das conversas e demandas de seus pares. Mas que não se conclua com isso que ele tenha menor potencial literário que aquele outro. Aliás, basta notar que é precisamente esse registro tumultuado que dá conta dos momentos centrais e memoráveis da narrativa de seus dois principais textos: a conversa final com o pai, em Lavoura arcaica e o esporro colérico com a mulher, em Um copo de cólera. Nesses dois casos, pode-se ver montar o quadro de que falei: assaltado, retirado de seu deleite fruitivo, sensorial, imaginativo e erótico, o protagonista é vencido pelas investidas dos outros, acumuladas desde aquelas que lhe batiam à porta (Pedro, em LA), ou que lhe destruíam as cercas (as malditas saúvas, em CC). O conteúdo da narrativa já não é mais a carne de uma experiência, mas as agruras de um debate. O texto desfaz-se de sua livre entrega à palavra, pois esta agora se encontra sob a vigilância alheia, de maneira que tudo o que se diz (e o modo de se dizer) deve ser agudo, explosivo e tangencial, como que apenas para tentar reaver o espaço sagrado que acaba de perder: “foi o senhor mesmo que disse agora há pouco que toda palavra é uma semente: traz vida, energia, pode trazer inclusive uma carga explosiva no seu bojo: corremos graves riscos quando falamos.”87 Isso nos encaminha ao conto “O ventre seco”, cujo texto, como parece sugerir o título, não retém nenhuma umidade lírica. A sua simplicidade coloquial, o seu tom direto e os seus temas cotidianos parecem conformar-se e polir-se fundados na consideração severa de que o narrador está ali falando a um interlocutor — essa relação miserável que nunca se efetiva e nem se deixa contornar. Esse interlocutor, que bem pode nem estar presente, ao ser todavia gravemente considerado diante de si, gera tão somente por isso um severo efeito restritivo:

85 Cf. VS, p. 64. 86 Cf. LA, p. 236. 87 LA, p. 235.

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mantém o protagonista-narrador preso a uma linguagem mais ordinária, como se esta fosse, ou devesse ser, o seu limite de contato possível. Firma-o, e ao texto, num registro marcado pela aridez verborrágica. Nesse traçado inicial, é possível crer num trânsito simétrico que faria passar do registro árido ao úmido por entrega voluntária, e do úmido ao árido por assaltos de fora. Mas, reduzindo a esses termos, não escutaríamos bem o que se passa em “O ventre seco”, que, sendo inteiramente árido, escapa todavia a essa divisão simplista, uma vez que começa e termina imune a qualquer imposição de fora — ao outro. Note-se que quem nos garante isso é o próprio narrador: “É bastante tranquilo este depoimento, é sossegado, ao fazê-lo, me acredite, Paula, não me doem os cotovelos.”88 No mais, outro agravante é que o seu perfil psicológico está em tudo comprometido com aquela visão de mundo nassariana que parece condicionar essa oscilação de linguagens. Ora, então por que raios ele dispõe voluntariamente de seu isolamento (já que Paula não está) para remoer meandros tão corriqueiros e mundanos, em vez de dar-se logo ao seu delírio redentor? Aqui se abre um campo de especulações. Minha aposta se segue daquela pergunta angular que mencionei como sendo auscultada na proximidade cardíaca dos problemas revirados pelos textos de Nassar: o que fazer quando, vez por outra, se tem nas mãos algo que não se quer, mas que tampouco se pode atirar fora? Em “O ventre seco”, de fato, pode-se encontrar, nas declarações do narrador, indícios de que é algo dessa espécie que o aprisiona: “Não me telefone, não estacione mais o carro na porta do meu prédio, não mande terceiros me revelarem que você ainda existe, e nem tudo o mais que você faz de costume, pois recorrendo a esses expedientes você só consegue me aporrinhar.”89 Paula encarna as investidas do mundo que não cessam de perturbar e atacar as barreiras do narrador, de testar a sua ataraxia. O que se faz então? Aos condenados a ter que lidar com — já metade prisioneiros — resta na estreita liberdade de suas maneiras um meio de apropriar-se da tarefa, e até de dominá-la. Percorrendo-a sem abrir mão de seu desprezo ulterior, o indivíduo descobre como compor a via cínica por meio da qual tal desprezo pode manifestar-se como uma verdade mais alta: um modo de vida que passa a responder eminentemente pelo significado do que se diz. Talvez apenas um sacrifício efetivo pudesse mesmo produzir uma redenção efetiva. De todo modo, é dado contra-efetuar aquelas investidas e todas as funestas pilhagens lançadas contra seu santuário: descobre-se que às travessias operadas em meio a esse mal necessário (ter que lidar

88 VS, p. 63. 89 VS, p. 66-67.

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com) pode-se contrapor uma inflexível e larga atividade clandestina que não cessa de escarnecê-lo e de resistir à diminuição que ele tenta operar sobre a atitude singular do protagonista-narrador. Mais do que resistir, trata-se de lograr uma reversão dos efeitos opressivos pela própria oportunidade luminosa de fazer emergir uma atitude ainda mais livre, ativa, criadora e indomável; um modo de vida para a verdade através do cinismo. E “cinismo” pode ser tomado em seu sentido clássico, ao menos tal como Foucault o apreende:

O cinismo vincula o modo de vida e a verdade a um modo muito mais estrito, muito mais preciso. [...] Ele faz enfim da forma da existência um modo de tornar visível, nos gestos, nos corpos, na maneira de se vestir, na maneira de se conduzir e de viver, a própria verdade. Em suma, o cínico faz da vida, da existência, do bíos o que poderíamos chamar de uma aleturgia, uma manifestação da verdade (FOUCAULT, 2011, p.150, grifo do autor). 90

A verdade é imediatamente tomada na sua qualidade irredutível a qualquer de suas múltiplas faces expressivas, no campo de suas composições de forças, na sua relação com os exercícios de poder e de resistência. Como diz André: “a vítima ruidosa que aprova seu opressor se faz duas vezes prisioneira, a menos que faça essa pantomima atirada por seu cinismo.”91 É somente assim que podemos entender que tipo de gesto poderia resistir, por um lado, a toda presença que se torna ao mesmo tempo hostil e incontornável (chamemos a esta de mal necessário), e, por outro lado, que tipo de motivação poderia explicar o caso-limite de “O ventre seco”, em que o narrador não é bem assaltado e levado a falar, mas o faz como que por conta própria. Eis a essência de tal gesto: atirar por cinismo, projetar suas ações desde um plano original de formações a operar entre os pulsos voláteis dos humores e a capa teatral das razões alegáveis, forjando nesse desnível um território e uma verdade para suas ações, uma que não se deixa reduzir nem às afirmações lançadas acima e nem às motivações supostas abaixo — já que, diante do “mal necessário”, ambas só poderiam atualizar uma necessária reação. Por isso, tal verdade não é mais assinalável nem pela coerência de posições expostas e nem pela revelação de possíveis segredos encobertos, daí o narrador do conto pairar tanto mais estranho e obscuro quanto mais esclarece suas posições e revela seus segredos. É que a virtude desse hiato criador é justamente a de ser uma verdadeira fonte de mal-entendidos, transfigurando sua resistência em uma atividade inaugural e expressiva: o sujeito vai por conta própria brincar com o fogo aceso que tanto o faz desviar e diferir de si quanto é por si atiçado e feito vultoso. Age-se por iniciativa, e, nisso, pode-se reter cada palavra e cada gesto

90 FOUCAULT, Michel. A Coragem da Verdade. São Paulo: Martins Fontes, 2011. 91 LA, p. 232.

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seu (e dos outros) num fluxo performativo, numa dança sobre todas as coisas, cujo sentido solta-se, libera-se da simples reação, deixando sua ação valer e significar como que por si mesma, verdadeiramente. Pode-se dizer que o indivíduo encurralado não reage, isto é, não age nos termos de seu encurralamento, mas que encontra em sua ação um princípio superior de liberdade: o de tomar sua expressão como positividade capaz de fazê-lo idealmente indiferente ao próprio destino individual e ao destino de todo e qualquer elemento caro a si (entes queridos, posses etc.), justamente para não ter de sê-lo com relação à singular qualidade plástica de sua ação então liberada e indomável. Conforme Foucault:

Neste ocidente que inventou tantas verdades diversas e moldou artes da existência tão múltiplas, o cinismo não para de lembrar o seguinte: que muito pouca verdade é indispensável para quem quer viver verdadeiramente e que muito pouca vida é necessária quando se é verdadeiramente apegado à verdade (FOUCAULT, 2011, p. 166).

É notável o quanto isso nos permite pensar o cinismo como uma verdadeira estratégia redentora no seio de uma sequência estritamente circular, considerando-se que uma certa tendência de base (a grande indiferença) permanece empenhada em seu retorno (estamos indo sempre para casa) enquanto vai sendo ameaçada de extravios e interrupções oriundas de agentes externos (especificados a cada vez). O cinismo aparece como o momento-chave no interior de uma série embrionária ao longo da qual essa singular tendência poética nassariana atravessa seus estágios decisivos. Momento em que tal tendência consegue finalmente reaver a si própria após perambular no limbo das consequências adversas disparadas por aqueles agentes perniciosos. Portanto, podemos estruturar o seguinte circuito:

Dá-se, assim, ao afrouxamento e desligamento com o mundo; 44 à recusa a agir entre as coisas exteriores

1. 2. 3. Tudo (re)começa na Dá-se, assim, um Até que essa grande indiferença, afrouxamento e tendência acaba um desligamento sendo chocada tendência plena que do mundo; uma contra algum limite suspende os valores incontornável, enquanto tempera entre as (demais) é interrompida: sonos e fruições de si coisas exteriores perde-se

tresmalho 2. Ainda à mercê da 1. 3. Arrastada a um ordinariedade, grande indiferença assaltos de fora terreno hostil, mas já sob certos não pode mais escudos, revém a recusar-lhe a tendência de fazer ação. Devém o a si e ao mundo dominação sujeito que age, 7. à sua vontade. 7. 4. mas que só o faz 4. Disputa silente a sob o signo do desperdício dominação do em desperdício e da redor enquanto inutilidade das se encaminha de cinismo e parresía próprias ações e volta ao refúgio 5. suas demandas 6.b dissimulação

6.a fazer média

Ou se exige orientar pelas Sendo imperiosa a suscitações no interior falsidade no agir da própria tendência. Ou se deixa orientar pelas e a dissimulação, Resgata sua “verdade”: demandas externas. Faz força-se uma avança por cinismo. Vive média: negocia. Esconde escolha entre duas a farsa. Regenera-se sua farsa. Degenera-se vias antagônicas: 6.b 6.a 5.

Diagrama 2: A jornada da grande indiferença

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Cientes de que não basta constatar o cinismo em sua face negativa, como um recurso de última hora percorrendo em falso os assuntos que se lhe impõem no caminho, é preciso completar a volta, atravessar o caso-limite de “O ventre seco”, para descobrir o cinismo em sua face afirmativa, sendo disposto como um recurso inaugural, propiciatório, criador de uma mais-valia dos humores e da ação. O cinismo então é um modo de ocupar-se de si e dos outros, num tal jogo de cena cuja experiência é tão mais verdadeira quanto mais concretamente atinge, arrasta e deforma a carne das paixões — essa a sua realidade irrecusável, os termos de sua ontologia —, ainda que sob a alegação (pretexto) de conteúdos e assuntos que ou são falsos logo de saída, ou são falsificados no uso oblíquo que deles é feito. Veja que isso não significa perda de rigor, mas sim troca de seu critério. Desligado da missão de clareza e objetividade, seu investimento é o dos efeitos sobre os ânimos em uma perspectiva de domínio, digamos físico, de si e do outro. E se uma simples situação conjugal parece um campo pouco para tamanha batalha, é porque quase nunca se necessita de grandes eventos dramáticos — afinal, nada é mais incontornável do que as miudezas indigestas com as quais se tem que conviver, a ponto de, aos olhares de fora, certas reações sempre terem de se afigurar desproporcionais e incompreensíveis, tomadas, por exemplo, como uma grosseria descabida diante de um afável oferecimento ou de um simples comentário solto. Assim como quando a mulher, meio que de passagem, diz ao chacareiro em Um copo de cólera: “não é pra tanto, mocinho que usa a razão”.92 E sabemos de imediato que essa aparente amenização faz ferver aquilo mesmo que finge pretender esfriar; que ela é uma poderosa provocação e estopim. É que bastam pequenos encontros, relações triviais, acontecimentos do dia a dia para que se tome posse desse grande desprezo; bastam para, caso se queira preservar a atividade em vez da simples reação, educar-se no atirar por cinismo. Essa lição nassariana coloca o debate político-social numa chave diversa: encontra o oprimido no cerco de uma hegemonia que já não o deixa mais deitar fora essa sua condição. Rodeado pela imbecilidade das gentes maravilhosas, sua resistência resta concentrada na fibra de uma atuação excessiva, essa que nega à tal opressão atender sua chamada caprichosa de ainda irmos ajudá-la nisso, nos mil falsos problemas generalizados e incentivados ao redor. Nas palavras de Deleuze:

E quanto à vergonha de ser um homem, acontece de a experimentarmos também em circunstâncias simplesmente derrisórias: diante de uma vulgaridade grande demais no pensar, frente a um programa de variedades, face ao discurso de um ministro, diante de conversas de “bons vivants”. (DELEUZE, 2004, p. 213)

92 CC, p. 30.

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A essa altura, o fastio e o infinito cansaço parecem fornecer o combustível suficiente para uma pantomima atirada por seu cinismo. E se ela é liberada em sua atividade, valendo por si, já não é necessário ter uma razão específica, basta mesmo não se encontrar nenhuma, chegar a esse ponto extremo em que pouco importa agir ou se guardar; falar ou se calar. Grande indiferença mesmo ante o destino e a tragédia comunicativa: faltar mensagem e não poder escapar aos ruídos. Mas como suas palavras encontram uma positividade per si, uma dança que perspectiva tudo o mais na lógica de seus movimentos, não se pode admitir que os assaltos que os protagonistas-narradores de Nassar sofrem — bem como todo o abatimento que recai sobre suas forças — conquistem o domínio do que em suas ações ainda é ativo e seu. Ao contrário, esses golpes são sempre revertidos e contra-efetuados por uma intensa sensibilidade narrativa criadora, que em vez de esmorecer, radicaliza-se. Então, basta um enfado qualquer (se negativo) ou uma disposição para atuar (se positivo) e o protagonista se projeta viva e deliberadamente ao embate com o outro; é sua indiferença e tédio, mas também seu vitalismo e experimentalismo redentores que o levam até mesmo a esse espaço de inevitável aridez — ainda que, a exemplo do verso de Fernando Pessoa,93 o ocupe fingindo sentir, por exemplo, uma cólera que deveras sente. Assim compreendido, o caso-limite de “O ventre seco” pode ser perfeitamente devolvido e integrado no ethos que percorre os demais protagonistas de suas obras, a começar pelo chacareiro (CC) que não para de precipitar-se sobre as labaredas ardentes do esporro até exaurir-se inteiro, mas que antes de toda a confusão com a mulher vai por conta própria e ainda às escondidas se envenenar com ácido no quarto de ferramentas — evento divisor: algo como um Dr. Jekyll bebendo a poção que o tornará em Mr. Hyde —, antecipando-se ao campo dos desgostos e liberando de saída suas palavras e ações para que possam desempenhar uma performance monstruosa, por assim dizer indomável e independente, centrada em si mesma, cujos termos transfiguradores nem por isso deixam de ser notados conscientemente pelo próprio chacareiro:

[eu] estava dentro de mim, precisava naquele instante é duma escora, precisava mais do que nunca — pra atuar — dos gritos secundários duma atriz, e fique bem claro que não queria balidos de plateia, longe disso, tinha a lúcida consciência então de que só queria meu berro tresmalhado, e ela nem tinha a ver com tudo isso (concordo que é confuso, mas era assim). (CC, p. 38)

93 Pois quando o chacareiro faz a transição para o estado de cólera, e nos deixa ver seu empenho simulado, diz: “De qualquer forma eu tinha sido atingido, ou então, ator, eu só fingia, a exemplo, a dor que realmente me doía” (CC, p. 35, grifo meu). Aqui, a exemplo, obviamente, dos célebres versos de Fernando Pessoa: “O poeta é um fingidor. | Finge tão completamente | Que chega a fingir que é dor | A dor que deveras sente.” (PESSOA, Fernando. “Autopsicografia” in: Obra poética. Biblioteca luso-brasileira. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1977, p. 164.)

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Não bastasse ser uma cena, é para ele mesmo. Por isso, antes, é extremamente litúrgico que o protagonista vá beber o galão de ácido, que vá tomar por sua própria conta o “copo de cólera” que o monstrificará, que se jogue no abismo passional a partir do qual, dali em diante, já não poderá mais ter a si mesmo sob controle. Sim, há a provocação inicial da mulher, mas ele serve-se dela com folga suficiente para — como que a invocar o personagem no reservado de um camarim — antecipar-se ao quarto de ferramentas e, num acréscimo avassalador, provocar-se de modo decisivo. Chocante preparo de bastidor: assumir de largada um prejuízo extremo para então devolver-se à cena sob um “nada mais a perder”, disparando o ímpeto vigoroso de uma liberação aberrante das próprias palavras, da qual a farsa e a teatralidade dependem tanto quanto a própria verdade e a força para dizê-la nua e inteira.

1.6. A big four

O protagonista André, em Lavoura arcaica, dá mostras de maior consciência a respeito dessa ambiguidade: estar a um só tempo sob o signo da aderência e do descolamento com relação a um dado objeto (sua própria fala espasmódica). Ele nos diz: “Misturo coisas quando falo, não desconheço esses desvios, são as palavras que me empurram, mas estou lúcido [...]. Mesmo confundindo, nunca me perco, distingo pro meu uso os fios do que estou dizendo.”94 A fala, quanto mais a fala excessiva, impedida de ser um meio para o esclarecimento, adquire um valor por si mesma, torna-se uma singular experiência do falante: a de se ver empurrado pelas palavras. A suposta cadeia imaginária que vai do ser ao saber e do saber ao dizer não encontra terreno aqui, pois o que se diz não é o que se sabia, mas o que se vai ainda distinguir para um uso possível — ou seja, recolher a própria fala atirada de seu cinismo é também o seu modo de aderir a ela e à sua verdade nua. Contudo, há algo mais: o que se diz também não pode, a rigor, revelar quem diz, uma vez que este sobrevoa, cínico e lúcido, a comoção que o anima — ou seja, o poeta como fingidor (Pessoa) é o seu modo de descolar-se da situação: “[...] eu não era um bloco monolítico, como ninguém de resto, sem esquecer que certos traços que ela pudesse me atribuir à personalidade seriam antes características da situação [...].”95

94 LA, p. 233. 95 CC, p. 35.

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Trata-se então de uma verdade que é posta em dependência a dada situação disparadora: sua dicção se limita a ela, ainda que acabe tornando tais limites ambíguos. Isso basta para que seja algo oposto à noção de verdade sub specie aeternitatis. Em Um copo de cólera, por exemplo, esse sobrevoo não se deixa confundir com aquela distância característica que o narrador costuma ter em relação ao narrado. Pode-se vê-lo funcionando por vezes com ares de comentarista esportivo, avaliando a todo instante o saldo retórico do debate, orçando cada golpe. Deixa ver, por um lado, que as suas razões mais interiores são de natureza cênica, porém, mantém a atenção insistentemente focada na modificação dos ânimos, na configuração afetiva — como se só se interessasse pelo impacto físico de suas palavras explosivas. Mais uma vez, vemos que o jogo das razões é estimado com base em seu correlato movimento passional, e que aqui o narrador se mantém sempre mais descolado daquele e aderido a este. Observemos o narrador e o protagonista como planos distintos. No caso do narrador, é preciso certa dose de cautela para não se confundir esse estranho descolamento com aquele que geralmente está dado pela sua própria função habitual, já que é quase uma instituição inerente ao narrador que ele possa contar com um correlato espaço em separado e com uma decorrente distância ao narrado — ora, vimos que, ao contrário, o descolamento do narrador aqui não se reduz àquele de sua função. Já no caso do protagonista, o risco é confundirmos a sua aderência cênica com o efeito presumível de sua posição também habitual, já que parece igualmente inerente a ele o estar afetado, jogado em meio ao curso dramático que o arrasta, no seio do qual se projetam as suas ações — ora, vimos que tampouco a aderência afetiva ao que se passa se deixa reduzir àquela oriunda apenas de sua posição. Por tudo isso, deve-se notar melhor o seu caso. O protagonista se prepara para falar verdades contundentes, como que provocando em si mesmo o empurrar das palavras. Sabemos que “verdade” aqui já não pode significar algo como um dado conhecimento que se permitisse comparar a um referente e conferir a adequação do que se diz — costumeiramente a fim de verificar a sua correção. Antes, a verdade é da ordem de algo que só pode ser enunciado à força, rompendo com mil camadas de polimentos que, não fosse isso, a fariam chegar inofensiva do outro lado da boca. Veremos como a cólera é um recurso precioso nesse sentido, pois é ela quem vai tirá-lo de si, remover os pudores e afiar a sua língua para que enfim possa dizer alto e sem freios uma tal verdade, e que ela precisa de muito pouco para começar: uma fagulha, um copo. A tempestade que se segue é certamente desproporcional, não apenas na intensidade de seu esporro, mas fundamentalmente na amplitude de seu assunto, que, com igual despropósito, vem em bando, inteiriço e acumulado. Fica-se com a impressão de se ter chegado no meio do percurso, perdido de seus capítulos anteriores, que

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talvez acomodassem melhor a entrada massiva e repentina de temas que parecem, eles mesmos, tão descabidos numa contenda conjugal: o andamento da sociedade, os direitos do cidadão, a relação entre povo e poder e coisas do tipo. É o que vai nos atingindo em “O ventre seco”, enquanto o narrador não para de arrolar termos tais como: liberdade, governo, fé na ordem, ideias claras e distintas, propalado arranjo universal etc. Essa invasão desmesurada de assuntos indiretamente acumulados parecem circular sem maiores alternâncias entre as chamadas esferas da vida e da obra. Daí a irrupção indisfarçada das memórias da cidade de Pindorama, onde viveu (MC e MS), do trabalho na redação de Jornal, onde trabalhava (TT), da vida na fazenda e da cultura familiar de ascendência libanesa (LA), dos estudos filosóficos de sua juventude (VS e MS) etc. Não paramos de topar com esse estreitamento notável entre os elementos biográficos e aqueles que correm nos textos. Longe de marcarem e comprovarem as suas origens distintas, vida e obra se evadem, cada qual, na outra, a partir dessa fonte de mal-entendidos que constitui a poética nassariana: surgem tropeçadas pelo empurrar das palavras, modificadas simplesmente por funcionarem nesse espaço diverso. Mas parece que nunca é o suficiente dizermos que tratar de ficção é fundamentalmente tratar de realidade, e em um nível muito especial. Como essa é uma noção importante aqui, será preciso fazer mais por ela, tentar estabelecê-la ao amparo de algumas formulações que julgo extremamente descritivas do caso de Nassar. Começo pelas palavras de Helder Macedo, crítico e escritor amplamente envolvido por esse entrelaçamento entre vida e obra na dinâmica ficcional, compreendendo-a de modo paradigmático:

Eu faço muito isso. Nunca sou eu, na verdade. Sou e não sou. Isso é parte do gozo que a escrita me dá e, por outro lado, é uma estratégia narrativa. No Pedro e Paula, no Vícios e Virtudes, neste último livro, aparece um escritor que é claramente identificável comigo. Mora no sítio onde eu moro, conhece pessoas que eu conheço, há referências ao sítio onde eu ensino, enfim, esse tipo de coisa. E depois o que é que acontece? Há uma situação fictícia, aparece uma personagem que não existe. A partir desse momento, duas coisas podem acontecer: uma é dar uma falsa, portanto fictícia, verosimilhança à personagem que aparece e que não existe. É uma estratégia de credibilidade, se quiser. Mas a outra, mais profunda, é que torna esse eu autoral uma personagem. Porque se não aconteceu e está a contracenar com alguém que não existe, passa a não existir em termos biográficos, factuais, mas passa a existir ainda mais em termos ficcionais.96

Essa fuga do eu autoral ao fazer-se personagem dentro de um movimento que por outro lado gera um aumento substancial da realidade ficcional exige que não possamos

96 Essa passagem consta em uma entrevista concedida à jornalista Ana Souza Dias, originalmente publicada na edição de março de 2013 da revista portuguesa Ler: livros e leitores, nº 122. Posteriormente foi fotocopiada e publicada online. Cf. DIAS, Ana Sousa. Helder Macedo: o gentleman marginal. 01/03/2013. Disponível em: . Acesso em 31 jan. 2014, grifos meus.

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separar mais realidade e ficção em conjuntos de objetos distintos. Devemos então reter em cada caso a evasão e a intromissão mútua desses planos segundo o grau de realidade com que são experimentados na transversal comum em que se baralham. Pode-se dizer que, mais do que o procedimento ambíguo dos personagens, essa trepidação (o estar descolado e aderido à própria experiência) confunde-se com o singular procedimento do autor em sua escrita. O perigo é o simplismo de se relacionarem os traços e gestos de sua personalidade com aqueles de seus personagens ainda por meio de uma oposição entre ficção e verdade, literatura e vida. Pois, em vez de se restringir, a realidade do acontecimento sempre se amplia na direção do ficcional. Em vez de se reforçar na fixidez de um estado de coisa e de se prestar a meras relações de adequação, ela reclama uma atividade existencial por meio da qual vai se constituir: “Ela surpreende o real e o imaginário se manifestando e formando em ficção”, 97 conforme nos diz Manuel Antônio de Castro, que vai ao núcleo desse problema em seu O acontecer poético, desmontando para nós boa parte dessa armadilha:

Inquestionavelmente aceito por todos: o literário é ficção. Esse consenso conduz, no entanto, a muitos equívocos e opiniões desencontradas desde que se parta para sua delimitação. O que é ficção? Embora todo literário seja ficcional, nem toda ficção é literária. Para melhor compreender esse truísmo é que se faz necessário tematizar o âmbito da ficção. O literário é uma realidade ficcional. (CASTRO, p. 64, grifos meus)

Assim, não faz mais sentido começarmos falsificando distinções para em seguida forçarmos associações que pressupõem uma exterioridade entre os termos, tratando a realidade ainda como algo essencialmente oposto à ficção. Ao contrário, deve-se justamente perguntar em que ponto preciso de uma obra literária ocorre se tornarem indiscerníveis a realidade e a ficção — já que, por outro lado, “nem toda ficção é literária”.98 Podemos ver que no empurrar das palavras de Nassar toda a trepidação que percorre as memórias e pensamentos, a despeito de suas respectivas pertenças biográficas, faz com que entrem sempre embebidos, sincopados, dando mostras de algo como um descolamento irredutível em sua elaboração na escrita. Algo assim como o que na música rap se chama de flow — tanto mais se notarmos que essa síncope poética é uma incitação humorística, propiciatória e encorajadora (o que não é pouco), em vez de ser uma matriz formal, condicionante e reguladora (o que não é muito). A metáfora musical parece ser de muita valia para que alcancemos alguma imagem mais viva desse aspecto arriscado de Nassar — repleto de

97 CASTRO, Manuel Antonio de. O acontecer poético: a história literária. Rio de Janeiro: Antares, 1982, p. 65. 98 Ibidem, p. 65.

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armadilhas —, pois não é só o flow no rap que nos lança diretamente ao sentido dessa articulação, fazendo ver de maneira decisiva a natureza desse seu poder de impor o desvio e a individualidade da uma voz, mas fundamentalmente o jazz é que é, por excelência, esse tipo especial de música que se tornou conhecida por sua vocação para ensejar o improviso sobre temas que geralmente já se conhece de saída, de levar para passear tudo aquilo que se pensava bem fixado e conhecido. Tentemos aprofundar essa imagem. Lembro-me do caso de uma batida seminal supostamente criada pelo lendário Buddy Bolden e que, dada a sua singularidade, foi decisiva para a formação do jazz como espaço do improviso: trata-se da big four.99 Não tanto a batida em si mesma (sua forma), mas o que se operou com ela é o que me interessa nessa relação com a poética de Nassar. Na virada do século XIX para o XX, os músicos americanos se encontravam, no geral, limitados a tocar em bandas marciais, comprometidas com dado repertório e com determinada batida regular da música. Com a introdução da big four e sua síncope característica, o repertório curiosamente não precisou ser alterado de imediato. Esse é o ponto que quero enfatizar: a própria big four dava conta de escavar naquelas conhecidas composições toda sorte de desvios, a ponto de fazer com que se pudesse ouvir a voz de cada músico. Ou seja, podia-se reconhecer as composições (eram as mesmas) e suas origens já incrustadas na memória (anteriores à formulação da big four), mas não se podia mais impedir que essas velhas e conhecidas músicas delirassem a cada vez que os jazzistas nascentes delas fizessem a sua experiência. Ora, algo da mesma ordem se passa em Nassar. Seus componentes biográficos, memórias, leituras e pensamentos encontram no seu ato de escrita uma dilatação característica de quem aderiu de modo mais radical à experiência ativa de seu contato. Ainda que inequivocamente assinaláveis, esses componentes fogem, cedem ao seu gesto ficcional. E tal como aquela síncope quebrava a regularidade da batida e precipitava os músicos em soluções inusitadas, o empurrar das palavras parece vir forçar o autor-narrador-protagonista na conquista de sua voz singular. “Por decisão mesmo, sempre me mantive à distância de toda especulação teorizante ou programática, sobretudo por uma questão de assepsia, quero dizer, para preservar alguma individualidade da minha voz.”100 É o que nos diz o próprio Nassar, garantindo à sua ficção não apenas uma forte voz própria, como também elementos muito aproximados de sua biografia: apresenta as posições de seus personagens muito perto das suas

99 Para conferir o tipo de batida de que falo aqui, disponibilizo um link em que pode-se assistir ao trompetista Wynton Marsalis explicando e demonstrando a big four. JAZZ. Direção: Ken Burns. 2001. [Trecho] Disponível em: . Acesso em 31 jan. 2014. 100 CADERNOS, p. 33.

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próprias; não nos deixa saber realmente como divisar seus pensamentos dos de seus narradores e protagonistas; dá entrevistas com ares de prosseguimento ou repetição de seus textos. Mas, se há uma inquestionável carne viva de experiências e angústias do autor, nem por isso ele tenta camuflá-la, tamanho o seu desembaraço. Podemos dizer que opera por meio de uma big four, isto é, sem fazer restrições de repertório encontra no fôlego de sua prosa poética um meio para provocar as dilatações características do espaço ficcional, fazendo assim com que essas memórias também delirem, dancem, alcancem aquela suspensão, mesmo que levíssima, para a qual elas tendem a confluir num termo poético, isto é, crivado pelos afetos da escrita. Mais uma vez remanescem os versos de Jorge de Lima:

Entre a memória térrea e o sonho existe Esse triângulo de sombra liberada Com três íris fechadas entre muros. Cai a sombra dos muros sobre a estepe, cobre a estepe de sombra essas estradas: reminiscência, fábula, loucura. (LIMA, [s. d.], p. 264)

É por essa suspensão ficcional que os fatos desviam do ímpeto que esperaria asseverá- los. Pois nada aparece, nada deve aparecer como um dado informativo, mas como um movimento de notável liberdade cujo termo não é a imagem factual dos acontecimentos, mesmo os biográficos, e sim a corrente de fantasia e imaginação que não reconhece qualquer privilégio antecipado a essa ou aquela maneira de conectar as ideias e os corpos, isto é, de dispor de uma experiência. Síncope delirante: duplicações moduladas, matizadas, refeitas, mas também repetidas, revividas, idênticas. Pouco importa o caráter ora fiel, ora distorcido desses repasses entre vida e obra (a essa altura poderia dizer: entre vida e vida); o que conta é a brincadeira que joga ali (to play). Por isso, Nassar traz e despeja as experiências que poderiam compor a sua biografia, porém, já devidamente extraviadas por esse vinho da disposição ficcional em que suavemente as mergulha, repassando-as aos remates e desdobramentos sugestivos de uma big four, evitando-se que sejam tragadas pelo terreno áspero do mero reconhecível. Negando-se a convir com o retorno a um ritmo ordinário da linguagem (4/4), a big four nassariana fomenta esse trabalho jazzístico no qual os diversos componentes e suas variadas vocações (biográficas, heréticas, narcísicas, machistas, incestuosas, hedonistas, niilistas etc.) sempre desviam, nem que num último momento; deliram soerguidos pela linha comum que os impede, a todos, de serem reconduzidos ao plano achatado da linguagem convencional, na qual fatalmente cessariam de ficcionar — como disse anteriormente, o próprio Raduan Nassar assume esse empenho quando declara: “A

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poética pretende ser revolucionária por desestruturar a linguagem convencional, só que seu autor, para explicá-la, acaba se socorrendo da mesma linguagem que usamos pra pedir um copo d’água, o que é o fim da picada.”101

1.7. Os dentes do cavalo

Pelo que se vê, Nassar age sob o entendimento de que a linguagem que pede um copo d’água não pode navegar um copo de mar. A linguagem que se quer objetiva porque assim estaria presumidamente mais comprometida com o dizer a verdade é sempre menos que isso: ela acaba reduzindo a verdade à sua experiência ordinária e servil, o jogo de adequação. Sobretudo, também devemos nos defender da sugestão simplista de que o poeta confunde e troca a verdade do mundo com aquela de sua imaginação. Ora, quando se diz algo como um “copo de mar”, é a própria verdade (aqui enquanto sentido já efetivado independente de qualquer correspondência extrínseca) que recolhe exatamente isso: “um copo de mar” — sem que se precise traduzi-lo, descê-lo de sua metáfora, minorar sua polissemia, confirmá-lo entre fatos. E dizê-lo é inclusive mais verdadeiro, pois diz mais: diz uma experiência concreta, que se faz realmente, e que se não fosse o fato de podermos dizê-la assim, poeticamente, estaríamos então sob uma precariedade a mais extrema, não apenas do ponto de vista da linguagem, mas, fundamentalmente, da própria verdade. Se esse aspecto não ganhar lugar em nosso horizonte, não se poderá ouvir como soa a musicalidade do elemento religioso nos textos de Nassar, a exemplo da volúpia de André em renovar o sagrado sob uma cadência simultaneamente sacrílega. E digo que não se poderá ouvir porque esse sonido de fantasia, atravessando e torcendo a realidade, justamente por correr tão entranhado e atento às efetuações subjetivas, enseja a sensação equivocada de que os personagens erram a verdade, que se debatem resistindo tolamente a seu chamado firme e objetivo, como se trocassem deliberadamente a serena solidez do mundo pelo disparate frívolo de palavras vazias. Grave risco de surdez: uma vez que nos deixássemos sob essa tentação, não resistiríamos a aplaudir as posições do pai (Iohána) ante as de André. Também em Um copo de cólera, saudaríamos a mulher, que em tudo nos convence que é dela a razão (poderíamos crer que inclusive é ela quem incorpora melhor as paixões nesta).102 Mas que

101 CADERNOS, p. 32-33. 102 É curioso notar que Aluízio Abranches, diretor da adaptação para o cinema do romance Um copo de cólera, quando perguntado sobre quem usa a razão na novela, não esboça dúvidas. Responde prontamente: “Ela. ‘Só usa

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importa quem tem a razão? Já se viu que os protagonistas de Nassar é que não a têm mesmo, que é sempre o outro que goza de maior razoabilidade. Portanto, é preciso apurar os ouvidos para aquela distinção que nos apresenta o tipo de verdade de que falam seus protagonistas, e que diz mais, diz sua experiência ativa entre as coisas, e não menos, dado que não se deixa reduzir à linguagem cotidiana; nem cede sua potencialidade produtiva a troco do imperativo barato de uma linguagem de bom senso, como se a experiência fosse o caso de frias constatações e não de vivas elaborações, no limite, poéticas. Esse ponto controverso, lastreado de espinhos e mal-entendidos à nossa espera, é ainda onde vejo Raduan Nassar fazer contato com a figura de Francis Bacon (1561-1626), a quem sempre retorna em suas entrevistas, deixando mesmo ver que tem esse pensador e ensaísta inglês na sua mais alta conta. Note-se que também o texto de Bacon é perpassado de termos e noções religiosos (bíblicos), tais como os de ídolo, de reino do homem etc. Contudo, por mais que seja um pensador da experiência, ele é, entre os empiristas, justamente aquele que formulou as bases do método científico moderno, que tanto se empenhou em lutar contra os ídolos, em desfazer todas as superstições que se ocupam de nossas opiniões e consensos, em insistir que conhecimento é poder. Enfim, a verdade a que Bacon parece nos conduzir reclama uma linguagem ordinária e balizada, sendo, portanto, oposta àquela do poeta, que não se deixa vergar ao consenso ou à maioria. Não é por menos que o pensamento de Bacon é considerado por Adorno e Horkheimer como um marco importante no desenrolar do chamado processo de desencantamento do mundo.103 Contudo, para Bacon, o consenso como disposição humana, embora favorável a toda espécie de acordo, justamente por isso não é nem um pouco confiável quando o assunto é a verdade:

O intelecto humano, quando assente em uma convicção (ou por já bem aceita e acreditada ou porque o agrada), tudo arrasta para seu apoio e acordo. E ainda que em maior número, não observa a força das instâncias contrárias, despreza-as, ou, recorrendo a distinções, põe-nas de parte e rejeita, não sem grande e pernicioso prejuízo. Graças a isso, a autoridade daquelas primeiras afirmações permanece inviolada. (BACON, p. 42)104

a razão quem nela incorpora suas paixões.’ Ela incorpora tudo isso melhor.” (Cf. VIDIGAL, Assis Benevenuto. “Entrevista com Aluízio Abranches, diretor do filme Um copo de cólera” In SELDLMAYER, Sabrina (org.). Viva Voz: A produção literária de Raduan Nassar, da Faculdade de Letras/UFMG, 2008. Disponível em: . Acesso em 31 jan. 2014.) 103 Cf. ADORNO, Theodor W.; HORKHEIMER, Max. Dialética do esclarecimento: fragmentos filosóficos. Tradução de Guido Antonio de Almeida. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1985. 104 BACON, Francis. “Novum Organum”. In Coleção Os pensadores. São Paulo: Nova Cultural, 1999.

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Este parece ser o elemento fundamental da afinidade que Raduan Nassar estabelece com Francis Bacon: a forte sensação de que a verdade não está com a maioria. Podemos então ouvir os ecos políticos que já querem, daqui, pronunciar-se. Pois talvez nada defina melhor a autoridade do que ser aquilo que se antecipa a toda experiência e, nisso, a dispensa. O que Bacon propõe é que a ciência supere os juízos de autoridade e torne a própria experiência em algo imprescindível ao método científico nascente: trocar as antecipações da natureza pelo que chama de “interpretação da natureza”. Não é outra a razão de encontrarmos, em Um copo de cólera, uma passagem que reitera essa sua concordância íntima com Nassar: “cheguei até a lembrar o episódio daquele remoto peripatético [...] que na sua história natural atribuiu incorretamente ao cavalo certo número de dentes, fazendo, com o andar lento mas autoritário, seu erro atravessar séculos com força de verdade.” 105 Sabe-se que a chamada Escola Peripatética remonta a Aristóteles, autor multiplamente atacado pelo pensamento de Bacon. Esse episódio de que fala o narrador é assemelhado a um causo contado por este filósofo inglês, no qual narra que certa vez um grupo medieval debatia acerca da quantidade de dentes que há na boca de um cavalo. Sem conseguir encontrar qualquer resposta nas obras de Aristóteles, um entre eles teria sugerido que se fosse ao estábulo contá-los na boca do próprio cavalo, o que o fez ser expulso da tal reunião.106 É, portanto, evidente a referência a ela em Um copo de cólera. E parece ser ainda com ela em mente que, em entrevista, Nassar toma novamente partido de Bacon, explicando, de maneira equivalente ao chacareiro na novela, que: “Aristóteles poderia ter dito uma besteira na sua história natural, mas essa besteira atravessava séculos como verdade só porque tinha sido dita por Aristóteles.”107 Toda a sua ênfase, portanto, destina-se ao ponto em que a verdade deve ser removida de sua antecipação (consensual) e, logo de início, entregue à sua experiência (individual), longe dos acordos e da maioria que bem podem estar presos a uma magnética aparência de bom senso ou alienados pela equivalente autoridade do razoável. Afinal, como escreve Bacon em seu Novum Organum: “As antecipações são fundamento satisfatório para o consenso, pois se todos os homens se tornassem da mesma forma insanos, poderiam razoavelmente entender-se entre si.” 108

105 CC, p. 41-42. 106 Cf. FEARN, Nicholas. Aprendendo a filosofar em 25 lições: do poço de Tales à desconstrução de Derrida. Tradução de Maria Luiza Borges. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2004, p. 51. 107 CADERNOS, p. 38-39. 108 BACON, p. 37.

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1.8. Um inimigo do povo

É precisamente a experiência dessa insanidade coletiva chamada bom senso que Nassar parece encontrar na peça Um inimigo do povo,109 de Henrik Ibsen (1828-1906). Ele faz uma clara referência a ela em Um copo de cólera, quando, em meio à discussão do casal, o chacareiro berra: “eu, o extraviado, sim, eu, o individualista exacerbado, eu, o inimigo do povo.”110 Ainda em entrevista, Raduan relembra a frase final dessa mesma peça: O homem mais forte é aquele que está mais só. Vê-se assim que raízes afetivas mais profundas o ligam a esse texto de Ibsen. A voz do povo aparece nele em todas as suas vilanias, sendo confrontada por um protagonista destemido, que segue fazendo descobertas graves: “O inimigo mais perigoso da verdade e da liberdade, entre nós, é a enorme e silenciosa maioria dos meus concidadãos. Esta massa amorfa, é ela! Sim, agora já o sabem.”111 A peça trata fundamentalmente das tensões em jogo na relação entre sociedade e indivíduo, na qual este se encontra numa condição cada vez mais precária quanto mais resiste com sua verdade. Por mais que o exílio voluntário seja nela apresentado como um privilégio frente ao acirramento dos enfrentamentos sociais (“pelo menos lá o indivíduo tem o direito de optar pela solidão”),112 uma série de componentes, estritamente análogos aos empregados por Nassar, encontra, contudo, um destino singular em Um inimigo do povo: a coragem de restar só, a indiferença ao que possa suceder com os seus, a luta contra a autoridade suposta pela unanimidade. São justamente esses empenhos, tão nassarianos, que fazem o protagonista de Ibsen negar, porém, a sugestão do exílio e da dissimulação. Mesmo sendo bastante questionável, concedamos que na peça de Ibsen “verdade” tenha um sentido ordinário (o de um saber comunicável que corresponde aos fatos), e não um sentido cínico nassariano (o de uma forma de existência que se manifesta multiplamente). O protagonista de Ibsen (Dr. Stockmann) tenta aquilo que os de Nassar já renunciaram: uma revolução pela verdade. Portanto, ainda que os mesmos termos e jogo de tensões operem num e noutro, a resposta do indivíduo acuado pelo peso da sociedade encontra direções opostas. Considero elucidativa a esse respeito a trajetória descrita no conto “Mãozinhas de seda”, no qual o narrador começa afirmando: “Cultivei por muito tempo uma convicção: a maior aventura humana é dizer o que

109 IBSEN, Henrik. Um inimigo do povo. Tradução de Pedro Mantiqueira. Porto Alegre: L&PM, 2011. 110 CC, p. 58. 111 IBSEN, p. 119. 112 Ibidem, p. 138.

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se pensa.”113 É essa a aventura central do Dr. Stockmann, para quem: “Aqueles que obedecem e pensam somente pela cabeça dos outros sempre serão plebeus morais.”114 Mas no desenvolvimento do conto de Nassar, o narrador no seu empenho em “dizer o que se pensa” é dobrado pelos ensinamentos do bisavô, para quem “a diplomacia é a ciência dos sábios”:115

O bisavô é que sabia das coisas, [...] punha milênios em cada palavra, “interesses é que contam, nada mais”. [...] Talvez o negócio seja fazer média, o negócio mesmo é fazer média, o verbo passado na régua, o tom no diapasão, num mundanismo com linha ou no silêncio da página. [...] Custou mas cheguei lá, sou finalmente um diplomata. (MS, p. 83)

Note-se que, na peça de Ibsen, esta oposição entre consenso e voz da maioria, de um lado, e isolamento e voz própria, de outro, condiciona o surpreendente deslocamento operado no sentido daquilo que entendemos por poder. Vemos isso bem quando em dado momento Dr. Stockmann se torna, ele próprio, a maior autoridade da cidade, superando a do Prefeito. Mas esse poder é oriundo do consenso e da orientação da maioria. Trocando de mãos ao sabor das conveniências, logo em seguida ocorre que esse poder o abandona, e, mais do que isso, se volta contra ele: é justamente quando passam a considerá-lo um inimigo do povo; torna-se um pária, apedrejam a sua casa etc. Ao fim, restando completamente ilhado, justamente quando tudo parece perdido e quando ele mesmo já se acha reduzido a não partilhar nada na mesa comum de seus concidadãos, é então que algo especial se dá: assim como se reencontrasse o seu copo de mar, é tomado pela epifânica constatação de outro poder, um que quase se basta por simplesmente florescer do outro lado da maioria. É esta a sua experiência maior:

Me sinto, agora, um dos homens mais poderosos do mundo! [...] Psiu! Mas não digam por enquanto nada a ninguém, porque fiz uma grande descoberta. [...] Ouçam com atenção o que vou lhes dizer: o homem mais poderoso que há no mundo é o que está mais só. (IBSEN, p. 165-166)

Há um claro combate à autoridade e à forte relação desta com o consenso que lhe deve servir de suporte, à posição de uma maioria, à força de uma tradição, à hegemonia do bom senso ou simplesmente do chamado à razão. É assim que este ataque à autoridade enquanto tal não deixa de ser, por isso mesmo, um ataque a ela em todas as suas muitas modalidades. Conforme vai se apresentando a nós, podemos ver que esse traço não se satisfaz pela simples

113 MS, p. 77. 114 IBSEN, p. 126. 115 MS, p. 77.

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acusação de alguma circunstancial falsidade nos discursos de ordem, mas pretende ainda negá-los em si, isto é, na própria marca indigesta que porta tão apenas porque sufoca aquilo que Nassar chama abertamente de “voz própria”. Daí sua postura de resistência ser cultivada em boa parte por uma metódica aproximação com autores que na “voz própria” defendem-se contra as múltiplas forças de autoridade, principalmente contra aquelas extremamente sutis e dotadas de presumível direito, isto é, aquelas que se pretendem inquestionáveis e que portanto não medem meios para se fazerem valer. Raduan Nassar nos diz sem meias palavras:

Pessoalmente, prefiro me adestrar numa postura diante do mundo. A simples descoberta, por exemplo, de que se pode pensar com a própria cabeça, independente dos juízes de autoridade, vale por todas as universidades e por todas as bibliotecas. Daí que leio hoje quase que só autores que reforçam minha formação, que me auxiliam naquele adestramento, autores da minha tribo. (STEEN, 2008, p. 104)116

1.9. Entre dissimulação e parresía

Cabe perguntar, nesse momento, de que modo se pode falar de uma verdade que não se deixa apartar de certa experiência, se o próprio empirismo, como método científico, só se dirige à experiência para em seguida evadir-se dela rumo ao espaço reservado em que compõe suas generalizações, ainda que sobre ela — e sendo já irrelevante que o faça a partir dela. Afinal, a relação entre experiência e verdade em Nassar é mesmo inegociável: fora da experiência elaboradora suficientemente ativa e disposta a percorrer o jogo das qualidades expressivas de sua própria enunciação, a verdade não chega sequer a ser tocada. Eis assim a urgência em se estabelecer certos modos não razoáveis para dar carga e via ao empurrar das palavras. É o que o personagem André, de Lavoura arcaica, descobre de maneira angular, tomando posse desse recurso e o consolidando como um notável procedimento:

[...] dizer tudo isso num acesso verbal, espasmódico, obsessivo, virando a mesa dos sermões num revertério, destruindo travas, ferrolhos e amarras, tirando não obstante o nível, atento ao prumo, erguendo um outro equilíbrio, e pondo força, subindo sempre em altura [...]. (LA, p. 179)

Esse, o seu ponto: que sua dissimulação, cálculo e projeto deliberado estejam paradoxalmente empenhados não em atingir determinada forma objetiva, mas, sim, certo descontrole subjetivo — ter seus humores extrapolados, ver-se embriagado, delirante, colérico

116 STEEN, Elda van. “Raduan Nassar”. In Viver e escrever: volume 2. Porto Alegre: L&PM, 2008.

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etc. E, portanto, padecer de razão, clareza ou quaisquer esteios mais promissores para dar ordem e entendimento a seus enunciados: nenhum bom senso. Por isso a acusação do pai sobre André: “– Mas sonegas clareza para o teu pai.”;117 e da mulher sobre o chacareiro: “desce aí dessas alturas, [...] ô estratosférico.”118 É como se, ao provocar deliberadamente o próprio tumulto de seus gritos e remeximentos, ele se aquecesse o suficiente para poder liberar a sua dura verdade; como se, para dizê-la, tão nua e inteira, fosse preciso estar um tanto desequilibrado, a ponto de restar, no fim, “um ator em carne viva”.119 Basta ver que Nassar, quando questionado sobre as razões de ter, certa vez, dito que não há criação artística que se compare a uma criação de galinhas, responde: “Se eu fosse um sujeito equilibrado, eu não teria a liberdade de fazer aquela afirmação. Só desequilibrados é que descobrem que este mundo não tem importância. O bom senso seria uma prisão.”120 É, no mínimo, curioso ver o próprio autor retornar à aposta de seus personagens: de que determinadas verdades só são tocadas sob certo desequilíbrio. Tal convicção se liga a uma atitude respectiva, uma espécie de compromisso ético com suas derivas. Por isso, mesmo estando realmente colérico, há sempre um descolamento ulterior, um reduto de extrema liberdade e autonomia, forjando no protagonista esses seus arroubos: uma dissimulação que se deixa intumescer, ganhando o sangue da situação e aproveitando os seus excessos. Isso poderia nos fazer pensar em uma divisão polarizada, a saber: que seus protagonistas tendem a representar as paixões enquanto a razão seria monopolizada pelos seus respectivos antagonistas. Contudo, seus próprios narradores não permitem essa simplificação. Em Um copo de cólera, por exemplo, é dito: “só usa a razão quem nela incorpora suas paixões.”121 Essa mescla entre paixão e razão deve ser tal que nos permita abordar a tendência excessiva, violenta e verborrágica cuja legitimidade é diretamente reclamada por seus protagonistas. André, por exemplo, decreta: “a impaciência também tem os seus direitos.”122 De minha parte, sinto que a escuta mais fina acerca desse aspecto ouvirá sempre algo precioso na formulação proposta por Hume:

117 LA, p. 233. 118 CC, p. 52. 119 CC, p. 70. 120 CADERNOS, p. 27. 121 CC, p.67. 122 LA, p. 159.

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Aquilo que comumente entendemos por paixão é uma emoção violenta e sensível da mente[...]. Com a palavra razão referimo-nos a afetos exatamente da mesma espécie que os anteriores, mas que operam mais calmamente, sem causar desordem no temperamento; essa tranqüilidade faz com que nos enganemos a seu respeito, vendo-os exclusivamente como conclusões de nossas faculdades intelectuais. [...] (HUME, 473, grifos do autor)123

Isso nos põe novamente diante dos discursos de combate ao consenso e à maioria. Ibsen e Bacon, como acabamos de ver, colocam-se em luta contra os poderes dessa hegemonia difusa cujos imperativos tentam se passar por simples razão, isto é, por meras “conclusões de nossas faculdades intelectuais”. O que Hume está dizendo é que há apenas uma diferença de intensidade entre as paixões e que a própria razão não é mais do que uma paixão calma. Mas é por isso mesmo que ela tende a nos confundir em sua trama, passando por um discurso neutro, produzindo um forte constrangimento que nos impede de contestar algo: de dizer a verdade. Veja-se que a paixão calma (razão) é todavia extremamente forte, já que segundo Hume: “uma vez que uma paixão se estabelece como princípio de ação e se torna a inclinação predominante da alma, ela comumente não produz mais nenhuma agitação sensível.”124 De outro lado, não se poderá mais alegar que uma explosão momentânea e despudorada tenha menos conteúdo do que os ditos discursos da razão, mas apenas uma diferença de grau. Afinal:

[...] uma paixão calma pode facilmente se tornar violenta, seja por uma mudança no humor da pessoa ou na situação e nas circunstâncias que envolvem o objeto, seja por extrair força de uma paixão concomitante, pelo costume, ou por excitar a imaginação. (HUME, 473)

Com isso em mente, veja-se o seguinte quadro: colocar-se fora de si diante do outro; falar tudo, com força e coragem, sem pudores, porém sem ter a menor esperança de ser entendido, sem acreditar nos frutos de uma conversa, sequer na troca de pontos de vista. Em “O ventre seco”, o narrador vem confessar aquilo cuja consequência mais patente é que ele se revele um completo canalha, que se torne repentinamente em um monstro desconhecido que travestiu e sonegou a própria intimidade, e vem fazer isso sem que nada lhe seja oferecido em troca: grave prejuízo sem a menor compensação — ainda sob expressa inutilidade, uma vez que a relação com Paula parece já encerrada. Completemos o quadro: falar a verdade dura e constrangedora, com arroubo de força e coragem, sem rodeios, mas com declarada

123 HUME, David. Tratado da natureza humana. Tradução de Déborah Danowski. São Paulo: Editora UNESP: Imprensa Oficial do Estado, 2001, p. 473. 124 Ibidem, p. 454. O próprio Hume chama nossa atenção quanto a essa possível confusão: “Temos, pois, de diferenciar paixões calmas de paixões fracas, e paixões violentas de paixões fortes.” Ibidem, p. 454.

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indiferença ao próprio prejuízo, e, ainda, contra um interlocutor completamente anulado. A essa altura, pode-se identificá-lo com o exato mecanismo de um procedimento filosófico antigo, a parresía, resgatado para as discussões éticas contemporâneas por Michel Foucault, em seus cursos no Collège de France125. Trata-se de uma prática singular:

A parresía, do ponto de vista de Quintiliano, é uma figura de pensamento, mas como o grau zero da retórica, em que a figura de pensamento consiste em não utilizar figura alguma. [...] Há, de um lado, um dos interlocutores que diz a verdade, e que se preocupa, no fundo, com dizer a verdade o mais depressa, o mais alto, o mais claro possível; e depois, em face, o outro que não responde, ou que responde por outra coisa que não são discursos. (FOUCAULT, p. 53-54, grifo do autor)

Tem-se aqui uma forte imagem de “O ventre seco”. O narrador que veio atirar a sua mensagem na cara do interlocutor, deixar ali o seu recado definitivo. A verdade aparece na condição em que dizê-la não é um ato simples, mas um ato de despojamento, já que a maior aventura humana é dizer o que se pensa. O narrador de “O ventre seco” não veio passear suas sensações ou a apreensão singular que delas tem. Nenhuma umidade. Veio dizer algo que, dito assim, fará surgir de si um completo estranho, um vilão confesso. Expressões do tipo “Nunca te disse, te digo agora” se repetem insistentemente no decorrer do conto, marcando que muito do que espantosamente ali se despeja vem encontrar com Paula na mesma vez que conosco. E, para completar, o silêncio absoluto de Paula atende, de maneira decisiva, àquele requisito último da parresía, a saber: o outro que não responde. Já quanto ao teor do que se diz em “O ventre seco”, a qualidade de seu assunto nos deixa com a sensação de que nos foi dado assistir, por um breve e insuficiente momento, a um curto episódio, extremamente parcial, que, caso não desdobrasse ou consolidasse um movimento mais amplo, caso não chegasse até ali no pé de uma tentativa mais profunda e problemática (work in progress), então facilmente nos forçaria a impressão de estarmos diante de uma famigerada cena banal, de uma simples lavação de roupa suja, empenhada por um narrador determinado a fazer aparecer todo um submundo de pequenos segredos, que vinha ocultando. Pois não se trata apenas de que o caso narrado seja corriqueiro, mas também que a prosa não vem compensá-lo com quaisquer adornos poéticos. Insisto: nenhuma umidade. Antes, ela é limpa, coloquial e direta, exclusivamente devotada à exposição inequívoca de seu conteúdo, como vimos ser uma exigência da parresía. Tudo isso nos convence de que as possíveis camadas de motivações e suas sinuosas complexidades (o conjunto das razões), que

125 FOUCAULT, Michel. O governo de si e dos outros: cursos no Collège de France (1982-1983). São Paulo: WMF Martins Fontes, 2010.

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teriam concorrido para produzir essa fala, deveriam ter se achatado no ímpeto simples e sem mais subterfúgios a partir do qual as longas sonegações do narrador são finalmente confessadas a Paula: revelações imperdoáveis, acusações inusitadas, críticas mordazes, mas, sobretudo, distâncias desleais, todas acumuladas e guardadas. Entretanto, como também se viu, o assunto, o conteúdo de todo esse conjunto está longe de se encerrar nos limites do perfil psicológico desse narrador em específico. Antes, remete a outros narradores, das outras obras do autor, e, no limite, endereça ao próprio autor — e este à sua própria fuga.

1.10. Mapas da partida

A ilha é divisada no horizonte mesmo quando se é assaltado em seus trancamentos, precipitado por qualquer agitação externa ou por alguma incitação auto-imposta. Sem o debate — seja com a mulher (CC), ou com o pai (LA), ou com as pessoas em casa (TT), ou com a esposa (HM) etc. —, a atenção escorregaria contemplativa noutras direções. É, aliás, o que ocorre quando a conversa com o irmão Pedro ainda permite manter certas lacunas de fruição (LA), ou quando o império de silêncio que resiste à mulher ainda permite manter certas folgas de espírito (CC). Nesses momentos, quando o concurso dos outros cessa e os grilhões do convívio se permitem contornar, é que o protagonista pode dispor dos atos mais livres e característicos de sua performance poética. Não é por outro motivo que, então, surgem imagens realmente bem poderosas, toda uma altiva musicalidade de percorrer a própria prática em sua face mais desenvolta e portentosa. Parece-me que boa parte da concertada convocação de textos e autores outros serve ao modo de Nassar produzir uma marca singular que não apenas recusa para si o status da originalidade, mas também lhe opõe algo radical, já que é uma marca que se satisfaz na forma dessa convocação mesma, desse encontro com os de sua tribo. Daí porque a série dessas ligações pode ser estritamente imaginária e ficcional: ela é sempre efetiva. Os convocados servem à fixação reverberada de um farol no horizonte, que pode ser um ponto talvez ideal de tão inapontável, mas é certamente sensível de tão imediato ao corpo (uma ilha, um poço, um sono, uma doce embriaguez). De toda maneira, trata-se de algo a acumular e expandir em ondas em vez de variar e interromper em cortes. Confluindo em sua hipnótica espiral, cada convocado vai se somando aos outros num mesmo borrão inveterado (“risco tosco”),126 de

126 VS, p. 56.

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onde resistem, como que em bloco, às variações tediosas do patrimônio da espécie. Dessa perspectiva, os convocados parecem servir de incentivo clandestino ao próprio ritual poético de suas expiações, transfigurados por meio do seu gesto literário (big four). Já não se deve falar de traços particulares de uma personalidade, e sim de uma ação que a desenvolve e a elabora; uma manipulação de elementos vivos, que tanto extrapolam o autor como o arrastam além. Conforme o notara Deleuze: “Escrever é também tornar-se outra coisa que não escritor. Aos que lhe perguntam em que consiste a escrita, Virginia Woolf responde: Quem fala de escrever? O escritor não fala disso, está preocupado com outra coisa.”127 Nassar escreve à beira de não ter escrito. Diz-nos ainda que se fosse um pouco mais tarde ele não teria sequer começado a escrever. E tudo nele parece falar dessa tentativa de furtar-se, como se um movimento de reclusão estivesse sempre em curso e nós pudéssemos vislumbrá-lo num átimo: enquanto nos bate com a porta na cara, de saída. Podemos crer que tal gesto, se tivesse sido perfeito, não nos deixaria nada. Mas Raduan nos deixa algumas poucas obras, alguns retratos desse seu movimento, anotações de seu divã. Suas obras, salvas a tempo, permitem-nos acompanhar certo período desse seu desvencilhar. Podemos estimar até que escrever era um entre outros modos possíveis com que o não-escritor Raduan Nassar abria incitações a si, redimensionando suas experiências. Mas nunca sendo de fato igualmente possíveis ações que nunca são igualmente atraentes a cada vez, só podemos falar de possibilidades disponíveis, e entre estas a própria literatura, se as compreendemos todas subordinadas à distribuição das paixões em dado momento, hierarquizadas segundo seus graus respectivos. Assim, o que se sugere é que era ainda o abandono da literatura que se praticava mesmo enquanto escrevia. A ponto de, ao cessar de escrever, entregar tanto nesse gesto decisivo (e outros) como em seus próprios livros os códigos e mapas rasurados com os quais vinha, desde sempre, impulsionando a sua já nem tão enigmática partida.

127 DELEUZE, Gilles. Crítica e clínica. São Paulo: Editora 34, 1997, p. 16.

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2. UMA CAIXA DE ECOS

2.1. Notas sobre “O ventre seco”

Cumprindo a destinação inicial, nesta segunda parte seguirei “O ventre seco”, parágrafo a parágrafo, religando seus fios ao tecido geral da produção de Nassar, cuja trama creio costurar com igual vigor todos os seus textos, como se fossem momentos de um mesmo esforço (work in progress). Não se trata de tomar o conjunto minguado128 das obras como totalidade, pois suas partes sequer somam qualquer completude. Ao contrário, a unidade forte que elas certamente detêm é menos o efeito de um projeto literário, posto como limite prévio, e mais a insistência com que torna a investir num mesmo métier produtivo a partir de dimensões tão múltiplas e ocasiões tão oportunas quanto podem ser aquelas que uma dada vida de repente encontra ao seu dispor. Talvez pareça incoerente tomar por uma obra em andamento justo aquela cujo autor deu o seu ponto final — ainda que, insisto, nem por esse gesto favoreceu qualquer totalização diante de nós. Esse acúmulo de aparentes contradições só nos embaraça se tomamos as etapas de um movimento singular e as comparamos entre si como se fossem estranhas umas às outras, articuladas por fora. Mas a imagem que proponho, ao contrário, é como a de um corpo que se prepara para saltar. Acompanhe seu gesto em detalhe, quadro a quadro, e ver-se-á que tentando atingir um ponto mais acima é que o corpo primeiro recua e se comprime mais abaixo — e tanto mais quanto mais impulso pretende tomar. Ora, não podemos considerar esse recuo como algo oposto ao avanço que dele se segue. De fato, remontam igualmente a uma mesmíssima unidade: a ação simples em relação à qual são simultaneamente paridos — e não cronologicamente oponíveis. Analogamente, o abandono da literatura de Nassar deve confirmar ainda com mais força essa condição em andamento de sua obra, tanto mais se com isso entendermos que o gesto que andava nela, enquanto Nassar a escrevia, avança em vez de cessar, quando sua escrita, essa sim, cessa. Esses momentos se afirmariam mutuamente, e ainda por meio de sua flagrante divergência aparente. Afinal, nem tudo o que se põe a andar destina-se a um fim. No caso específico de Nassar já se vê que, ao contrário, todo percurso parece clamar por seu próprio retorno sobre si, refluindo suas ações e memórias como algo a ser redimensionado a cada retomada: a constatação do ato literário como simplicidade ulterior de gesto que de fato nunca se pôde

128 Conforme o próprio Nassar se refere à sua obra: “Nunca pensei em expor qualquer teoria a respeito do meu minguado trabalho, nem vejo sentido nisso.” (CADERNOS, p. 31)

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romper ou abandonar, mas que muito se buscou a cada vez ter ampliados o seu espaço e exercício, e tanto que não se reteve, antes transbordou para além do fazer literatura. Assim, mesmo tão grave ruptura é ainda um sintoma inusitado de que uma unidade radical mais do que sobrevive intacta abaixo: ela determina e explica simetricamente suas contradições acima. Sintoma talvez da planta da infância, do feno ou do sono que nos expulsa e absorve em seu bojo. Daí, por exemplo, não haver contradição em André (LA) fugir, simultaneamente, tanto de casa quanto para casa:

Desde minha fuga [...], não importava que eu, caminhando, me conduzisse para regiões afastadas, pois haveria de ouvir claramente de meus anseios um juízo rígido, era um cascalho, um osso rigoroso, desprovido de qualquer ubiquidade: “estamos indo sempre para casa”. (LA, p. 107-108)

Em parte, assim também é essa minha presente investigação, pois ocorre que agora não apenas retorno, eu mesmo, ao conto “O ventre seco”, mas que venho retornando a ele desde que o abandonei em busca de sua fonte comum às demais obras. Fui descobrindo, porém, que é a uma fonte e não exatamente ao conto que esse percurso faz retornar. E isso muda tudo. Aliás, é isso o que se premunia já desde a tocante percepção de que uma unidade mais poderosa ultrapassa a sua mera unidade objetual de limites bem definidos. Por enquanto, não me resta senão, para não me repetir em explanações já tentadas, assumir essa restrição fundamental antes de “ler” inteiramente esse pequeno texto e ir fazendo, a cada vez, algumas notas, assinalando certos ecos e insistências, percorrendo melhor aquilo que porventura não tenha sido oportuno tratar anteriormente — já que até aqui fiz apenas apresentar alguns dos traços que agora, espero, se verá confluir no pequeno conto “O ventre seco”.

2.2. A verticalidade incontornável

O primeiro parágrafo (vide nota)129 se ocupa de instaurar uma perspectiva vertical, de domínio, de jogo de forças, de aproveitamento do outro segundo seu próprio fluxo de

129 A fim de que se possa acompanhar mais de perto as referências ao conto, cuidarei de reproduzir por meio de notas de rodapé todos os parágrafos, um a um, permitindo tanto o necessário acesso direto a eles, a cada vez, quanto evitando um desnecessário tumulto de intercalações no corpo do texto. Cito, portanto, o primeiro: “1. Começo te dizendo que não tenho nada contra manipular, assim como não tenho nada contra ser manipulado; ser instrumento da vontade de terceiros é condição da existência, ninguém escapa a isso, e acho que as coisas, quando se passam desse jeito, se passam como não poderiam deixar de passar (a falta de recato não é minha, é da vida). Mas te advirto, Paula: a partir de agora, não conte mais comigo como tua ferramenta.”

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interesse. Trata-se de algo intrínseco à própria fiação do tecido no qual se estendem os protagonistas nassarianos: sua marcante falta de esperanças acerca de qualquer relação dita simétrica, horizontal, de entendimento mútuo, de progresso democrático, de status quo social, de fé na ordem. Tudo isso vai se explicitando ao longo do conto. Não se dispõe de nenhuma espécie de relação desinteressada, pois, como ensinava o bisavô em “Mãozinhas de seda”, “[pondo] milênios em cada palavra, ‘interesses é que contam, nada mais’”.130 A convicção dessa verticalidade como algo irremediável, inerente à própria vida, desenvolve-se em “O ventre seco” sobre a relação amorosa, estabelecida também nos termos de uma dominação explícita. E insiste-se nessa ideia em Um copo de cólera, quando se lê:

[...] foi na mira dos olhos dela que comecei a comer o tomate [...] sabendo que seus olhos não desgrudavam da minha boca, e sabendo que por baixo do seu silêncio ela se contorcia de impaciência, e sabendo acima de tudo que mais eu lhe apetecia quanto mais indiferente eu lhe parecesse [...]. (CC, p. 10).

Ao longo das páginas seguintes, esse jogo amoroso marcado por uma dominação inicialmente silenciosa se desenrola não apenas na visão de mundo mais especulativa do narrador, como também no bate-boca dos personagens. Mas sobretudo com extrema contundência ao fim da novela, quando o esporro verbal cede à violência física aberta, que por sua vez cede à atmosfera sexual. Como o império sexual não é erguido pelo protagonista sem ser igualmente recolhido pela mulher, sua tese afirma-se para além da perspectiva do protagonista e mesmo da do narrador, dado que o depoimento da mulher em primeira pessoa também a corrobora. A insistência com que se repassa camada após camada (do personagem ao narrador ao autor) flagra o âmago de um movimento narcísico enquanto funciona como ponto de vista ostensivamente autocorroborador (e daí, desdobrando o “eu”, reporta-se cada vez a uma camada sempre mais anterior, aproximando-as todas). Se as coisas passam como não poderiam deixar de passar, ligando-se por uma lógica de dominação, o abandono da crença em qualquer ordem transcendente ou teleológica surge como consequência direta dessa imanência selvagem, inviabilizando qualquer apelo tanto a um plano prévio quanto a uma planificação final. É verdade que tudo isso se escancara no §7, porém, prefiro adiantar parte dessa discussão já em torno do que aparece aqui no §1 por um bom motivo: neste vemos não a face negativa, mas a propositiva, acerca do modo como as relações da vida se dão. Há como que uma tese ética bem definida nos termos do constante subjugar e ser subjugado: que a isso ninguém escapa. Esta se soma à negação consequente de todo aspecto finalista e nos leva, do

130 Ibidem, p. 83.

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ponto de vista ontológico e historiográfico, à precisa perspectiva nietzscheana conhecida como genealógica, segundo a qual “todo acontecimento no mundo orgânico é um subjugar e um assenhorar-se, e todo subjugar e assenhorar-se é uma nova interpretação”.131 Aqui se desenham consequências muito importantes para a crítica literária em seu gesto interpretativo, dado que esta não poderia mais constar como um mero lançar de luzes, mas teria de se ver como algo da ordem de um apropriar-se. Essa concepção de mundo genealógica tem ainda uma afinidade com certo pensamento muito presente das narrativas de Nassar: a hostilidade à tese iluminista de uma humanidade em progresso, tal como veremos a pretexto do §7 do conto. Para já vermos do que se trata, adianto as linhas gerais da tal tese genealógica:

Mas todos os fins, todas as utilidades são apenas indícios de que uma vontade de poder se assenhoreou de algo menos poderoso e lhe imprimiu o sentido de uma função; e toda a história de uma “coisa”, um órgão, um uso, pode desse modo ser uma ininterrupta cadeia de signos de sempre novas interpretações e ajustes, cujas causas nem precisam estar relacionadas entre si, antes podendo se suceder e substituir de maneira meramente casual. Logo, o “desenvolvimento” de uma coisa, um uso, um órgão, é tudo menos o seu progressus em direção a uma meta, menos ainda um progressus lógico e rápido, obtido com um dispêndio mínimo de forças mas sim a sucessão de processos de subjugamento que nela ocorrem.132

Portanto, em vez de um conteúdo que se expressa e se complementa mais e mais, como se portasse uma interioridade fixada que se vai apenas prolongando, trata-se, isso sim, da apropriação de traços então abertos a um novo meio, aos desmandos da exterioridade que mantém a tudo vulnerável, passível de ser capturado sem o menor recato por um movimento mais vigoroso e desperto. Vimos que esse movimento (vital e ontológico) é assumido como verdadeiro procedimento poético: o marcante expediente nassariano de ir remexendo e desprendendo camadas diversas e partes presumidamente assentadas (experiências, escritos, memórias, vínculos, caráter etc.) para ofertá-las, sem reservas, à avidez desembaraçada de ímpetos nascentes que começam ali mesmo a montar uma nova expressão para elas (ficção). Ao desdobrá-las nesse horizonte dilatado, faz com que ressurjam transfiguradas — mesmo quando se pretende preservar bastante de sua feição anterior (pulsadas sobre uma big four).

131 NIETZSCHE, Friedrich. Genealogia da moral: uma polêmica. Tradução de Paulo César de Souza. São Paulo: Companhia das Letras, 2001, p. 66, grifo do autor. Esse texto de Nietzsche não nos deixa dúvida ao traçar do mesmo modo que o narrador de “O ventre seco” essa ideia de que a injustiça é inerente à vida. Cito: “Falar de justo e injusto em si carece de qualquer sentido; em si, ofender, violentar, explorar, destruir não pode naturalmente ser algo ‘injusto’, na medida em que essencialmente, isto é, em suas funções básicas, a vida atua ofendendo, violentando, explorando, destruindo, não podendo sequer ser concebida sem esse caráter. NIETZSCHE, 2001, p. 64-65, grifos do autor. 132 Ibidem, p. 66, grifos do autor.

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2.3. Resistência à hegemonia difusa

No segundo parágrafo (citado em nota)133 reencontramos a relação partida com o mundo posta talvez em seus estágios mais radicais, quando já se torna insuportável lidar com os mais corriqueiros e razoáveis de seus assuntos e distribuições de direitos e deveres. Portanto, manter resistência a esses singelos (forçosos) oferecimentos acaba por exigir uma radicalidade anacrônica — o que nos permite compartir um pouco da acusação que a mulher faz ao chacareiro, chamando-o de “louquinho da aldeia”.134 Vimos o quanto os protagonistas de Nassar recusam uma maior proximidade com o barulho do mundo, mantendo-se à margem. Essa aversão os amolda demasiado sensíveis à sutileza com que certos valores hauridos de prévia autoridade são exercidos, seja os das pautas modernas (CC) ou mesmo os da tradição familiar (LA). Pois também em Lavoura arcaica os signos a encurralarem André se deixam reunir numa linha hegemônica (então hereditária) que os preserva e transmite (“é na memória do avô que dormem nossas raízes”;135 “O avô, enquanto viveu, ocupou a outra cabeceira; [...] seria exagero dizer que sua cadeira ficou vazia”),136 a exemplo do pai, infiltrando-se em tudo (“fique atento, fique atento, você verá então que esses lençóis, até eles, como tudo em nossa casa, até esses panos tão bem lavados, alvos e dobrados, tudo, Pedro, em nossa casa é morbidamente impregnado da palavra do pai”),137 e, finalmente, destinando a seu irmão Pedro a perpetuação desses códigos pastorais: “a voz do meu irmão, calma e serena como convinha, era uma oração que ele dizia quando começou a falar (era o pai).”138 Veremos mesmo que é o confronto com tal comportamento epidêmico e seu suporte privilegiado, discursivo e racional, mais do que com as pessoas ou com os próprios valores que inocula a cada vez, o que vem tornar suas restrições de contato quase paranoicas. Como diz o próprio Nassar: “Tem mais isso, no que fui radical: não permitir que transformassem minha cabeça numa lata de lixo.”139

133 Cito: “2. Você me deu muitas coisas, me cumulou de atenções (excedendo-se, por sinal), me ofereceu presentes, me entregou perdulariamente o teu corpo, tentou me arrastar pra lugares a que acabei não indo, e, não fosse minha feroz resistência, até pessoas das tuas relações você teria dividido comigo. Não quero discutir os motivos da tua generosidade, me limito a um formal agradecimento, recusando contudo, a todo risco, te fazer a credora que pode ainda chegar e me cobrar: ‘você não tem o direito de fazer isso’. Fazer isso ou aquilo é problema meu, e não te devo explicações.” 134 CC, p. 54. 135 LA, p. 130. 136 LA, p. 225. 137 LA, p. 115. 138 LA, p. 90. 139 CADERNOS, p. 31.

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2.4. Do contexto social

No terceiro parágrafo (citado em nota),140 temos a série de votos (pobreza, ignorância e castidade) sugerindo a série de passos que aprofundam sua reclusão. O voto de castidade que ora faz vem generalizar o caso particular do fim de seu relacionamento com Paula. É como se não bastando arrancar as mudas, devesse salgar a terra para nada mais nela nascer. Antes epicurista do que estóico, por perceber-se mais suscetível aos fluxos exteriores do que confiante de passar indiferente a eles, previne-se pela recusa da função sexual em si mesma. O voto de ignorância, como acabou de se ver, reitera a indiferença acerca dos assuntos do dia, nos quais, assim como o chacareiro (CC) e André (LA), ele (VS) não encontra qualquer interesse. Mas é em torno desse voto de pobreza, o qual o narrador diz que não teve de fazer, que cabe destacar algo. Tresmalhados, exilados da ordem do mundo, do trabalho, é de se supor que os protagonistas de Nassar caíssem entregues a humilhações de uma condição marcada pela pobreza, mas geralmente alcançam algum amparo, não abrindo maiores brechas ao drama dos conflitos e desigualdades sociais — como dirá mais adiante: “certos espíritos só podiam mesmo se dar muito mal na vida; mas encontrei, Paula, esquivo, o meu abrigo.”141 A protagonista de “Menina a caminho” sugere figurar como uma exceção, mas acaba por confirmar a regra. É que ali a pobreza é somada a outras tantas formas de exclusão e estas em conjunto pairam tão distribuídas sobre todos que tal questão fica adormecida. Veja-se o caso da menina limpa que espelha a protagonista, estando todavia notadamente mais bem provida e cuidada. Também ela não escapa às opressões na escola. A sensação ao fim é a de que não existe lugar a salvo da sordidez. Embora não seja pela luta corpo a corpo com a pobreza que o contexto social entre nos textos de Nassar, as relações entre poder político e exclusão social não param de ser atacadas em seus correlatos discursos de legitimação. Vide a parábola do faminto ou a meritocracia arrolados pelo pai, em Lavoura arcaica (“É para satisfazer nosso apetite que a natureza é generosa, pondo seus frutos ao nosso alcance, desde que trabalhemos por merecê-los”),142 sempre rebatidos por André (“acontece que muitos trabalham, gemem o tempo todo, esgotam suas forças, fazem tudo que é possível, mas não

140 Cito: “3. Nem foi preciso fazer um voto de pobreza, mas fiz há muito o voto de ignorância, e hoje, beirando os quarenta, estou fazendo também o meu voto de castidade. Você tem razão, Paula: não chego sequer a conservador, sou simplesmente um obscurantista. Mas deixe este obscurantista em paz, afinal, ele nunca se preocupou em fazer proselitismo.” 141 VS, p. 66. 142 LA, p. 227.

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conseguem apaziguar a fome. [...] não há nada mais espúrio do que o mérito”).143 Se esses discursos de legitimação formam um espaço decisivo, apesar de encontrarmos os personagens relativamente a salvo da face mais explícita dessas exclusões (a mendicância, a fome etc.), é porque revelam todavia uma face outra, mais sorrateira e fundamental, suporte das demais e da qual nunca se está a salvo; contra a qual o chacareiro, em Um copo de cólera, não cessa de enaltecer uma “força bruta sem rodeios, sem lei que legitime [...] mas que não finge a pudicícia, não deixa lugar pro farisaísmo, e nem arrola indevidamente uma razão asséptica, como suporte.”144 Dos valores tradicionais e conservadores (LA) aos valores modernos e progressistas (CC), a razão asséptica em sua hegemonia é tomada como a face ou camada mais radical e autoritária, já que esta encontra justamente no espaço discursivo uma via de legitimação incontornável e em si mesma ideológica (“o povo fala e pensa em geral segundo a anuência de quem o domina; fala, sim, por ele mesmo, quando fala (como falo) com o corpo”),145 restando aos protagonistas percorrer os debates sempre como eventos corpóreos, portanto, de maneira irrazoável e selvagem, tomando sua distância a eles antes de qualquer posição neles — ou ambas simultaneamente (“fica também mais pobre o pobre que aplaude o rico”).146 Ora, de que outro modo o protagonista nassariano poderia constar neles senão como um “obscurantista”? De que valeria abrigar-se sob qualquer razoabilidade quando mesmo esta acha-se cooptada? Por outro lado, como fugir a esse requisito tão indispensável para habitar os debates e a vida em sociedade? A produção de Nassar problematiza o valor não de uma ou outra posição, mas o do próprio assunto enquanto tal e sua pretensa neutralidade.

2.5. As bestas do caminho

No quarto parágrafo (citado em nota),147 a alegada falta de proselitismo do narrador atualizando sua indiferença. Ele só poderia procurar adeptos se, antes, tivesse alguma posição

143 LA, p. 227-232. 144 CC, p. 57. 145 CC, p. 54. 146 LA, p. 232. 147 Cito: “4. E já que falo em proselitismo, devo te dizer também que não tenho nada contra esse feixe de reivindicações que você carrega, a tua questão feminista, essa outra do divórcio, e mais aquela do aborto, essas questões todas que ‘estão varrendo as bestas do caminho’. E quando digo que não tenho nada contra, entenda bem, Paula, quero dizer simplesmente que não tenho nada a ver com tudo isso. Quer saber mais? Acho graça no ruído de jovens como você. Que tanto falam em liberdade? É preciso saber ouvir os gemidos da juventude: em geral, vocês reclamam é pela ausência de uma autoridade forte, mas eu, que nada tenho a impor, entenda isso, Paula, decididamente não quero te governar.”

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consolidada a divulgar. Mas, como ataca a mulher em Um copo de cólera: “você é incapaz, absolutamente incapaz de ter opinião.”148 Endossa o chacareiro: “são outras agora minhas preocupações, é hoje outro o meu universo de problemas.”149 Vamos vendo cada vez mais que não se despreza apenas os meios, mas também os fins em voga no debate político corrente, a saber, crer na razão como naturalmente emancipadora, numa sociedade em progresso na qual deveríamos nos encontrar continuamente comprometidos na reparação e discussão de seus problemas. Fazer proselitismo demandaria se importar e investir a atenção num horizonte do qual se quer simplesmente à margem. Daí tanto o silêncio contundente quanto o empenho dissimulado, excessivo e obscuro quando se põe a falar. O protagonista se defronta com o povo emulado por Paula e seu conjunto de reivindicações, em “O ventre seco”, assim como com a mulher em Um copo de cólera (“privilegiados como você, fantasiados de povo, me parecem em geral como travesti de carnaval”).150 E, a exemplo do que se diz nesse §4 do conto, no qual veste a pecha de “bestas do caminho”, o chacareiro (CC) reforça mais essa convergência: “já que eu pra ela não passava de uma ‘besta vagamente interessante’.”151 Vejam a oposição sacana que o narrador estabelece entre a postura engajada de Paula, seu feixe de reivindicações e luta por liberdades, de um lado, e o clamor por “uma autoridade forte”, ressoando um segundo sentido, sexual, que mais adiante vai se confirmar. As relações afetivas e sexuais não escapam daquela premissa de um incontornável jogo de dominação, atingindo-se um momento mesmo de máxima ostensividade quando, mantendo a continuidade entre o conto e a novela, o protagonista encerra a discussão em Um copo de cólera passando do esporro para a porrada (“e eu me queimando disse ‘puta’ que foi uma explosão na boca e minha mão voando outra explosão na cara dela, [...] eu a conhecia bem, pouco importava a qualidade da surra, ela nunca tinha o bastante, só o suficiente”);152 e passando da porrada para o sexo (“naquele instante eu tinha o pêndulo e o controle do seu movimento, [...] logo depois eu era o canalha da cama, [...] e não demorou ela mexeu os lábios dum jeito mole e disse um ‘sacana’ bem dúbio”).153 O que se revela nos protagonistas de Nassar não são apenas os fluxos de opressão (os privilégios do patriarcado, o predomínio sexual, a autoridade patrimonial etc.) que vão compondo certa subjetividade (homem, de idade, branco, narcisista,

148 CC, p. 59. 149 CC, p. 49. 150 CC, p. 45. 151 CC, p. 42. 152 CC, p. 62. 153 CC, p. 62-63.

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autoritário, machista, sinhozinho, rural etc.). Sobrevindo a estes, revela-se um fluxo ainda mais geral e decisivo a vir disputar sua composição: a teleologia do esclarecimento pela razão, ceifando quaisquer formações divergentes ao torná-las, aí mesmo e por isso mesmo, não razoáveis, não racionais: bestas no caminho. Não que não sejam, já que essa subjetividade não pode ser redimida sob alegação de ser indigesta apenas na superfície, como se guardasse alguma boa razão em profundidade. Não, ela não é mal compreendida nisso. Quando o protagonista encarna o machista, tal aparência não trai nem distorce sua essência, que tampouco é mais virtuosa; nem vem revelar certos tipos reais, reproduzindo-os tão só para melhor acusá-los. Antes, nessa aproximação, deixa-se apreender tanto pelo proveito depravado que tira daqueles fluxos de opressão quanto pela resistência canhota que esses mesmos fluxos permitem traçar contra este outro, teleológico, que segue planificando a todos nos passos de uma “marcha da razão”, cuja autonomia em relação aos próprios sujeitos sobre os quais se exerce a posiciona, portanto, com absoluta autoridade. Cito Adorno e Horkheimer: “Quaisquer que sejam os mitos de que possa se valer a resistência, o simples fato de que eles se tornam argumentos por uma tal oposição significa que eles adotam o princípio da racionalidade corrosiva da qual acusam o esclarecimento. O esclarecimento é totalitário.”154 Daí o sujeito nassariano flagrado recorrendo a autoritarismos condenados para resistir ao autoritarismo legítimo da razão, acusando-o ao rebatê-lo sobre sua personalidade em fuga: essa que então bestializa-se, reforça máculas e nutre sua peste (“traz o demônio no corpo”),155 carregando consigo, arrastadas e não depuradas, todas as brotoejas indóceis que nela foram um dia plantadas por mãos familiares, e que uma outra, ao vir agora sobrepujá-las, pretende condenar (diga-se de passagem, com toda razão) como brotoejas indóceis que são: vícios de toda ordem (políticos, morais, familiares, conjugais, sexuais etc.). Tendo sido armado com armas agora condenáveis, o sujeito acha-se nesse meio de caminho em que é constrangido a melhorar seus modos e visão de mundo, a baixar tais armas, estas contudo tão pródigas em abrir gozos de domínio, mas, principalmente, em dilatar folgas por onde escapar de todo esse jogo ordinário com a razão. Seu impasse então é que depurar-se nos termos desta — e que outros há? — o faria cúmplice dos cerceamentos oriundos da própria marcha que ironicamente promete o mundo como um lugar melhor. (“Por que empurrar o mundo para frente? Se já tenho as mãos atadas, não vou por minha iniciativa atar meus pés também”).156

154 ADORNO, Theodor W.; HORKHEIMER, 1985, p. 19. 155 LA, p. 114. 156 LA, p. 231.

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2.6. Não gosto de gente

No quinto parágrafo (citado em nota)157 somos levados a reforçar ainda mais a semelhança, quiçá a continuidade, que há entre o casal desse conto e aquele de Um copo de cólera: o tipo de relação, seus termos, assuntos e acusações são detalhadamente retomados. Lá (em CC), ela empenha isso que o narrador aqui chama de “precária superioridade”, quando fala do “susto que te provoco como mulher que atua”.158 Lá, o narrador e protagonista também atenta com desprezo para o fato de que a mulher estava “ungida no espírito do tempo, se entregando lascivamente aos mitos do momento”.159 Lá também essa diferença de idade como acusação: “a jovenzinha nunca tinha o bastante deste ‘grisalho’.”160 Mais contundente ainda é encontrarmos lá praticamente repetido: “não amo o próximo, nem sei o que é isso, não gosto de gente, para abreviar minhas preferências.”161 No mais, como a disposição de base nessa misantropia remonta o coração do ethos nassariano tal como o apresentei anteriormente — e o retomarei ainda à frente —, é desnecessário e até ostensivo se demorar nesse §5 a fim de fazer reverberar aqui também a sua, creio, já suficientemente sensível e obstinada emissão.

2.7. Sobre um chão movediço

Começa então uma sequência de três parágrafos (§6, §7 e §8) de intenso diálogo com ideias filosóficas e, de modo mais enfático, com o racionalismo de Descartes. Talvez não seja demais notar que a simples disposição formal de “O ventre seco” em parágrafos numerados encontra em Descartes um curioso antecedente estilístico. Suas “Meditações”, por exemplo, seguem com parágrafos numerados marcando o andamento expositivo rumo à prova, que depende desse percurso por meio do qual se avança, degrau a degrau, desdobrando e extraindo em um nível posterior os resultados acumulados nos níveis anteriores. É essa a

157 Cito: “5. Sem suspeitar da tua precária superioridade, mais de uma vez você me atirou um desdenhoso ‘velho’ na cara. Nunca te disse, te digo porém agora: me causa enjoo a juventude, me causa muito enjoo a tua juventude, será que preciso fazer um trejeito com a boca pra te dar a ideia clara do que estou dizendo? É bastante tranquilo este depoimento, é sossegado, ao fazê-lo, me acredite, Paula, não me doem os cotovelos. Está muito certa aquela tua amiga frenética quando te diz que sou ‘incapaz de curtir gentes maravilhosas’. Sou incapaz mesmo, não gosto de ‘gentes maravilhosas’, não gosto de gente, para abreviar minhas preferências.” 158 CC, p. 57. 159 CC, p. 41. 160 CC, p. 48. 161 CC, p. 56.

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forma do chamado método analítico. Pode-se já pressentir que não há apenas um empréstimo fortuito de estilo, mas um emprego justo como marcador de uma operação rigorosamente correlata: aqui, o narrador segue, parágrafo a parágrafo, arrancando sua máscara para Paula (desfazendo-a dessas falsas certezas) para, num crescendo, avançar rumo à prova final que, ainda coerentemente, só aparece no último momento. Nassar de fato se infiltra no tal método analítico cartesiano e sua eficácia contra as certezas previamente assumidas, contras todas as ilusões diárias, mas desprende-o de sua famigerada vocação puramente racional para levá-lo a funcionar formalmente como o que deveras é: um poderoso mecanismo narrativo, filosófico e dramático da decepção. Sem diminuí-la nem contorná-la pela aquisição de novas certezas ao final, sem satisfazer qualquer dogmatismo escondido. Cada passo, um golpe de demolição. No sexto parágrafo (citado em nota),162 logo no trecho inicial, já se pode encontrar uma primeira referência a Descartes, que no seu famoso “Discurso do método” começa justamente por essa frase: “O bom senso é a coisa do mundo melhor partilhada.”163 Descartes introduz essa ideia para compor uma espécie de equivalência média entre os homens: “Quanto a mim, jamais presumi que meu espírito fosse mais perfeito que os do comum.”164 Trata-se de afirmar que todos temos um igual bom senso, mas que grosso modo nos faltaria aplicá-lo bem, e por isso a necessidade de um método. Quando, em “O ventre seco”, isso se transplanta ao tema do amor, o que parece estar no centro da acusação do narrador é justamente esse conjunto de compromissos que filtram o amor e o tornam um elemento inofensivo, trivial e comum a todos, ou seja, já festejado e nisso dispensado de qualquer boa aplicação. O que está em jogo, para não perdermos a oportunidade infame de montar um plano cartesiano, é também a oposição entre o amor em seu anacrônico eixo vertical de dominação sexual (ordenadas); e o amor em seu hegemônico eixo horizontal de distribuição democrática (abscissas). Acerca desses “frívolos elogios do amor”, note-se o momento final de Um copo de cólera, quando ao se encontrar caído, logo após toda a discussão, o protagonista recorda a frase que em tom de máxima barata ela (a mãe) repetia: “o amor é a única razão da vida.”165

162 Cito: “6. Você me levava a supor às vezes que o amor em nossos dias, a exemplo do bom senso em outros tempos, é a coisa mais bem dividida deste mundo. Aliás, só mesmo uma perfeita distribuição de afeto poderia explicar o arroubo corriqueiro a que todos se entregam com a simples menção deste sentimento. Um tanto constrangido por turvar a transparência dessa água, há muito que queria te dizer: vá que seja inquestionável, mas tenho todas as medidas cheias dos teus frívolos elogios do amor.” 163 DESCARTES, René. “Discurso do método”. In: Coleção Os pensadores — Descartes. São Paulo: Abril Cultural, 1996, p. 65. 164 Ibidem. 165 CC, p. 71.

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Mais adiante no conto, no parágrafo 7 (citado em nota),166 encontramos maior concentração de referências filosóficas: “ideias claras e distintas” é uma expressão corrente entre os chamados filósofos racionalistas, especialmente em Descartes, a quem ela parece se dirigir mais sugestivamente, não apenas pelo que vimos da sua referência ao “Discurso do método”, mas porque no §8 surgirá a imagem cartesiana do “edifício do conhecimento”. De todo modo, basta ver Descartes a dizer frases como: “as coisas que concebemos mui claras e mui distintamente são todas verdadeiras.”167 Uma vez mais, o narrador se posiciona em franca oposição a essa perspectiva. Pois não só aqui como em toda parte vai se ver que quanto mais essas ideias aparecem em Nassar, mais encontrará os narradores com todas as medidas cheias delas. Já a falta de fé na ordem nos faz retornar ao que diz o protagonista de Um copo de cólera: “‘ordem’, palavra por sinal sagaz que incorpora, a um só tempo, a insuportável voz de comando e o presumível lugar das coisas.”168 André (LA) acrescenta: “toda ordem traz uma semente de desordem.”169 É que a “ordem” é frequentadora assídua da noção de arranjo universal como fim interior à História, uma inequívoca referência à tese teleológica de um futuro em progresso, fundamentalmente formulada em Kant, para quem a razão seria um elemento plantado no homem com a finalidade de levá-lo a superar vícios e impertinências sociais rumo a uma sociedade da paz perpétua.170 Para esse alemão do século XVIII, a autonomia do sujeito (sob a noção de dever e de boa vontade) é ao mesmo tempo afirmada e conciliada com um aspecto teleológico global em vias de erguer uma sociedade na qual o ser humano, enquanto ser racional, é – e deve ser – encarado não como meio, mas como telos. Tal concepção se desdobrará na de “História Universal”, de Hegel, segundo a qual as mudanças que ocorrem na História são caracterizadas igualmente como um progresso para o

166 Cito: “7. Farto também estou das tuas idéias claras e distintas a respeito de muitas outras coisas, e é só pra contrabalançar tua lucidez que confesso aqui minha confusão, mas não conclua daí qualquer sugestão de equilíbrio, menos ainda que eu esteja traindo uma suposta fé na ‘ordem’, afinal, vai longe o tempo em que eu mesmo acreditava no propalado arranjo universal (que uns colocam no começo da história, e outros, como você, colocam no fim dela), e hoje, se ponho o olho fora da janela, além do incontido arroto, ainda fico espantado com este mundo simulado que não perde essa mania de fingir que está de pé.” 167 DESCARTES, p. 92-93. 168 CC, p. 54. 169 LA, p. 228. 170 Conforme Kant: “Quem proporciona esta garantia é ninguém menos que a grande artista da natureza (natura daedala rerum), em cujo curso mecânico brilha visivelmente uma finalidade: que através do antagonismo dos homens surja a harmonia, inclusive contra a sua vontade. Por esta razão se chama indistintamente destino, como causa necessária dos efeitos produzidos segundo suas leis, desconhecidas para nós, ou providência, por referência à sua finalidade no transcurso do mundo, como a sabedoria profunda de uma causa mais elevada que se guia pelo fim último, objetivo do gênero humano e que predetermina o devir do mundo.” (KANT, I. “À paz perpétua”. In À paz perpétua e outros opúsculos. Trad. Artur Morão. Lisboa: Edições 70, 1993, p. 119-171).

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melhor, o mais perfeito, havendo um princípio de evolução, uma determinação interior que luta por se realizar.171 Mas, pergunta André (LA): “Por que empurrar o mundo pra frente?”172 No último parágrafo da sequência filosófica, o oitavo (citado em nota),173 o narrador (VS) passa a metade inicial combatendo a razão em seu caráter opressivo. Mais uma vez comparável a uma passagem de Um copo de cólera, na qual também o narrador reclama da mulher: “levando firme a mão na pedreira, me atirando de novo a razão na cara”.174 A razão vai sendo acusada em seu (supostamente legítimo) monopólio da violência. Vimos que em sua alegada luz plácida e esclarecedora, ela adquire um direito político inquestionável (portanto, extremamente autoritário) de fazer valer seus imperativos, de varrer as bestas do caminho. Essa reclamação íntima nos textos de Nassar encontra uma confirmação definitiva quando, em entrevista a Cadernos de Literatura Brasileira, plagiando seu próprio narrador, Nassar declara que: “A razão não é seletiva, ela traça tudo. Acho mesmo que a razão é uma belíssima putana, mas vem daí o seu grande charme, se bem que esse charme venha mais da sua humildade, passando longe da arrogância de certos racionalistas.”175 Aqui, esse plágio entre obra e vida pode estender o seu flagrante também para Lavoura arcaica, quando, acerca dessa razão não seletiva, que traça tudo, André diz, como um sofista176: “a razão é pródiga, querida irmã, corta em qualquer direção, consente qualquer atalho, bastando que sejamos 177 hábeis no manejo desta lâmina.” A metade final do §8 remete à imagem cartesiana do “edifício do conhecimento”. Essa é uma metáfora emblemática de Descartes, ampliando-se em diversas passagens e em variadas obras desse autor. Trata-se, grosso modo, de primeiramente afastarmos de nós todas as nossas ideias e opiniões, sob a suposição de que elas bem podem ser falsas, para em seguida passarmos à busca de ideias que não nos permitam duvidar de sua veracidade. Estas ofereceriam o critério de seleção das demais ideias e, assim, a base sólida sobre a qual

171 Cf. HEGEL, G. W. F. Filosofia da história / Tradução de Maria Rodrigues e Hans Harden. Brasília: Editora Universidade de Brasília, 1995. Ver especialmente o trecho que vai da p. 53 a p. 60. 172 LA, p. 231. 173 Cito: “8. Você pode continuar falando em nome da razão, Paula, embora até o obscurantista, que arranja (ironia!) essas idéias, saiba que a razão é muito mais humilde que certos racionalistas; você pode continuar carreando areia, pedra e tantas barras de ferro, Paula, embora qualquer criança também saiba que é sobre um chão movediço que você há de erguer teu edifício.” 174 CC, p. 58. 175 CADERNOS, p. 38. 176 Nassar aponta os sofistas como autores de sua tribo: “Pra começo de conversa, gosto muito dos sofistas, aqueles trapaceiros da Antigüidade. Apesar de achincalhados, foram penetrantes na sua reflexão, dos mais lúcidos da história do pensamento, na minha opinião.” STEEN, 2008, p. 104. 177 LA, p. 201.

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poderíamos erguer um tal edifício do conhecimento. O narrador de “O ventre seco” vai novamente troçar o racionalismo de Descartes por meio da atitude de Paula, que continua “falando em nome da razão”. Mas a crueldade da exposição se torna aguda quando notamos seu efeito alegórico sobre a relação do casal. Afinal, um relacionamento conjugal é também um inequívoco depositário de confiança e de expectativas mútuas, em que mesmo o adultério costuma produzir falsificações apenas superficiais, não atingindo o alicerce básico que é a própria identidade dos indivíduos ali envolvidos. No mais das vezes, a própria ideia de se perdoar uma traição significa poder superar algo que se considera de caráter acidental a fim de preservar algo que se considera de caráter substancial, em última instância, a pessoa com quem se divide a relação. Pode-se perdoar uma traição, mas como perdoar alguém por não ser, substancialmente, quem se pensava que ele fosse? É para deflagrar em algo dessa envergadura que esse conto caminha, e, como confirmaria Descartes: “a ruína dos alicerces carrega necessariamente consigo todo o resto do edifício.”178

2.8. Nos frêmitos roxos da tua carne

No nono parágrafo (citado em nota),179 essa oposição entre as prateleiras e o corpo vem encenar o contraste entre a razão e as paixões. Os diversos protagonistas insistem que tal oposição é falsa, que “a razão jamais é fria e sem paixão, só pensando o contrário quem não alcança na reflexão o miolo propulsor”.180 A crítica ao racionalismo então especializa-se numa crítica à racionalidade exacerbada, que não se permite contaminar pela carne dos afetos, não percebendo que “só usa a razão quem nela incorpora suas paixões”.181 Essa ideia de uma razão tecida por paixões é tipicamente associada ao empirismo, principalmente à celebre tese de Hume: “A razão é, e deve ser, apenas a escrava das paixões, e não pode aspirar a outra função além de servir e obedecer a elas.”182 Faz com que nos voltemos também à ligação entre Nassar e Montaigne, a partir de uma passagem igualmente enfática: “Pagamos pois bem caro a tão decantada razão de que nos jactamos, e a faculdade de julgar e conhecer, se a

178 DESCARTES. “Meditações”, 1996, p. 258. 179 Cito: “9. Pense uma vez sequer, Paula, na tua estranha atração por este ‘velho obscurantista’, nos frêmitos roxos da tua carne, nessa tua obsessão pelo meu corpo, e, depois, nas prateleiras onde você arrumou com criterioso zelo todos os teus conceitos, encontre um lugar também para esta tua paixão, rejeitada na vida.” 180 CC, p. 31. 181 CC, p. 67. 182 HUME, p. 451.

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alcançamos, é a custa do número infinito de paixões que nos assaltam sem cessar.”183 A imagem do “velho obscurantista”, que a todo momento aparece aqui, retorna em Um copo de cólera, conforme explica a mulher: “sem acesso à razão, [...] você não passa, isto sim, é de um subproduto de paixões obscuras.”184 E o protagonista a assume: “fique aí, no círculo da tua luz, e me deixe aqui, na minha intensa escuridão.”185 Na novela, em tom mais descarado, ele também vai de um desprezo em relação ao intelectualismo a uma valorização de seu poder passional sobre ela, por exemplo, quando diz: “[...] nunca te passou pela cabeça, hem intelecta de merda? nunca te passou pela cabeça que tudo que você vomita, é tudo coisa que você ouviu de orelhada [...] que você só trepava como donzela, que sem minha alavanca você não é porra nenhuma [...].”186 No mais, essa discussão já foi adiantada em 2.5.

2.9. Os grandes indiferentes

No décimo parágrafo (citado em nota),187 topamos com esse trecho em que o narrador fala da “cicatriz sempre presente no rosto dos grandes indiferentes”.188 Referência que aparece em outros momentos de sua produção e que sabemos tratar-se da citação de um certo poema de Ricardo Reis (heterônimo de Fernando Pessoa) no qual se pode não apenas encontrar essa mesma expressão (“grandes indiferentes”), como também recolher mais de seu sentido e relevância no contexto da poética nassariana. Eis alguns trechos especiais:

Ouvi contar que outrora, quando a Pérsia Tinha não sei qual guerra, Quando a invasão ardia na Cidade E as mulheres gritavam, Dois jogadores de xadrez jogavam O seu jogo contínuo.

183 MONTAIGNE, p. 229. 184 CC, p. 56. 185 Ibidem. 186 CC, p. 43. 187 Cito: “10. Sabe, Paula, ainda que sempre atenta à dobra mínima da minha língua, assim como ao movimento mais ínfimo do meu polegar, fazendo deste meu canto o ateliê do desenhista que ia no dia-a-dia emendando traço com traço, compondo, sem ser solicitada, o meu contorno, me mostrando no final o perfil de um moralista (que eu nunca soube se era agravo ou elogio), você deixou escapar a linha mestra que daria caráter ao teu rabisco. Estou falando de um risco tosco feito uma corda e que, embora invisível, é facilmente apreensível pelo lápis de alguns raros retratistas; estou falando da cicatriz sempre presente como estigma no rosto dos grandes indiferentes.” 188 VS, p. 56.

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[...] Quando o rei de marfim está em perigo, Que importa a carne e o osso Das irmãs e das mães e das crianças? [...] É ainda entregue ao jogo predilecto Dos grandes indif’rentes [...] Caiam cidades, sofram povos, cesse A liberdade e a vida [...] Meus irmãos em amarmos Epicuro E em o entendermos mais De acordo com nós-próprios que com ele, Aprendamos na história Dos calmos jogadores de xadrez Como passar a vida.189

Na novela Um copo de cólera, a referência torna a aparecer quando o protagonista diz: “não tenho medo de ficar sozinho, foi conscientemente que escolhi o meu exílio, me bastando hoje o cinismo dos grandes indiferentes.”190 Um pouco mais adiante, vemos o protagonista citar passagens claramente extraídas desse poema: “caiam as cidades, sofram os povos, cesse a liberdade e a vida, quando o rei de marfim está em perigo, que importa a carne e o osso das irmãs e das mães e das crianças?”191 Nassar soma voz a Ricardo Reis para erguer essa grande indiferença, esse ideal de serenidade imperturbável mesmo em frente ao que de mais terrível possa suceder aos entes mais próximos. Essa imagem intrigante nos leva novamente a Montaigne, que endossa o coro com seu ensaio sobre a solidão:

Estílpon escapara do incêndio de sua cidade natal, mas perdera a mulher, os filhos e tudo o que possuía. Vendo-o sereno em tão sombria situação, perguntou-lhe Demétrio Poliorcetes se não tivera prejuízos. “Ao que respondeu que, mercê de Deus, nada perdera de seu.” (MONTAIGNE, p. 120)

2.10. Me ne frego

No breve parágrafo 11 (citado em nota),192 o “silêncio” que circula toda a produção de Nassar aparece explícito, como um programa ético consciente, um acordo com o mundo.

189 PESSOA, Fernando. Odes de Ricardo Reis: Obra poética III. Porto Alegre: L&PM, 2011, p. 71-74. 190 CC, p. 49. 191 CC, p. 53. 192 Cito: “11. Não tente mais me contaminar com a tua febre, me inserir no teu contexto, me pregar tuas certezas, tuas convicções e outros remoinhos virulentos que te agitam a cabeça. Pouco se me dá, Paula, se

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Lembra-nos do que se passa em “Hoje de madrugada”, em que o casal se debate negando sistematicamente o falar; lembra-nos de André (LA) afirmando de maneira quase apologética: “tinha contundência o meu silêncio!”193 etc. Assistimos aqui, em “O ventre seco”, o narrador reclamar da pregação intelectual da mulher, remexendo o mesmo caldo de fermentações do chacareiro de Um copo de cólera: “ela que a propósito de tudo vivia me remetendo lá pros seus guias.”194 Contudo, espero que esses temas não ofusquem um mais sério e pouquíssimas vezes encarado de frente. Nesse §11 o narrador faz eco ao personagem André quando este retruca à pregação feita pelo pai: “pouco me importa os rumos que os ventos tomem, eu já não vejo diferença, tanto faz que as coisas andem pra frente ou que elas andem pra trás.”195 O próprio Nassar acumula expressões desse tipo: “pouco se me dá”; “pouco me importa”; “tanto faz”. Mais do que uma munição básica nas mãos de um grande indiferente, elas possuem uma ressonância com a expressão ideologicamente carregada me ne frego, que permaneceria inaudita se não fosse o fato de o próprio Raduan Nassar tê-la empregado de passagem na entrevista aos Cadernos.196 Digo ser uma expressão ideologicamente carregada uma vez que me ne frego (que se poderia traduzir pela expressão de uso corrente em nossa língua: “pouco me importa”) se tornou um conhecido lema fascista, incitativo de uma atitude sempre avante de seus adeptos a despeito das mais terríveis adversidades. A expressão remonta à imagem de um soldado ferido que a gravou com seu próprio sangue sobre os curativos e que foi posteriormente apropriada e convertida em um símbolo por meio das palavras de Benito Mussolini ao escrever, em coautoria com Giovanni Gentile, o famoso verbete “Fascismo”, publicado na Enciclopédia Italiana de 1932, onde se lê: “O orgulhoso lema dos esquadrões de combate ‘pouco me importa’ [me ne frego], escrito sobre as ataduras de uma ferida, é não apenas um ato de filosofia estoica; é o resumo de uma doutrina que não é apenas política: é a educação para o combate, a aceitação dos riscos que acarreta.”197

mudam a mão de trânsito, as pedras do calçamento ou o nome da minha rua, afinal, já cheguei a um acordo perfeito com o mundo: em troca do seu barulho, dou-lhe o meu silêncio.” 193 LA, p. 107. 194 CC, p. 41. 195 LA, p. 231. 196 Cf. CADERNOS, p. 25. 197 Tradução minha do original transcrito a seguir: L'orgoglioso motto squadrista “me ne frego”, scritto sulle bende di una ferita, è un atto di filosofia non soltanto stoica, è il sunto di una dottrina non soltanto politica: è l'educazione al combattimento, l'accettazione dei rischi che esso comporta. (verbete "FASCISMO”. In: ENCICLOPEDIA Italiana (1932). Roma: Instituto dell’Enciclopedia Italiana, 1932. Disponível em: http://www.treccani.it/enciclopedia/fascismo_(Enciclopedia-Italiana)/ . Acesso em 10 jan. 2013.

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É possível ouvir ecoar aqui os desdobramentos da condição antidemocrática que a verticalidade inerente à vida nos colocaria, tal como o que é dito já no primeiro parágrafo de “O ventre seco”, e que vai progressivamente se confirmando a cada vez que vemos que os ataques desferidos pelo narrador encontram na figura de Paula a reunião dos atributos triviais da modernidade democrática: as pautas feministas, do divórcio, do aborto, da emancipação das liberdades e do amor etc. Sabemos que essa oposição entre os personagens é análoga àquela que se passa em Um copo de cólera, em que além de a mulher encarnar os valores do mundo moderno, ela é alvejada precisamente neles quando o chacareiro a descreve, por exemplo, “tagarelando tão democraticamente com gente do povo, que era por sinal uma de suas ornamentações prediletas.”198 A exemplo da cabra Schuda (LA), a quem André conduz “com cuidados de amante extremoso”,199 pode-se forçar a suspeita de que o cosmo e os personagens elaborados por Nassar reiteram algo daquele diagnóstico deixado na nota de Adorno e Horkheimer: “Um pressuposto da devoção dos fascistas pelos animais, pela natureza e pelas crianças é a vontade de perseguir. A carícia negligente da mão que roça os cabelos de uma criança ou o pelo de um animal significa: esta mão pode destruir.”200 Ainda mais quando notamos que nessa novela (CC), em meio às alegações disparadas no capítulo “O esporro”, encontramos explícita a acusação de “fascistão” desferida pela mulher contra o protagonista, que, por sua vez, em lugar de repeli-la, imediatamente a acata:

confesso que em certos momentos viro um fascista, viro e sei que virei, mas você também vira fascista, exatamente como eu, só que você vira e não sabe que virou; e você só não sabe que virou porque — sem ser propriamente uma novidade — não há nada mais em moda hoje em dia do que ser fascista em nome da razão. (CC, p. 60)

O que se está depondo é sobretudo a pretensa exclusão entre democracia e estado de exceção. Postura que nos deve fazer retornar a suas ligações, já vistas, com Ibsen e Bacon, no sentido de defender-se da autoridade mesmo quando esta se sofistica e se esconde sob a capa presumivelmente legítima de uma “voz da maioria” ou de um “consenso público”, mesmo quando então a autoridade pode dispensar (ou justificar) o uso da força ao amparo de uma arma ainda mais sutil e indefensável: o simples chamado à “razão”, ao “esclarecimento” — aqui sim, seguindo o diagnóstico de Adorno e Horkheimer de que a marcha da razão, por um

198 CC, p. 29. 199 LA, p. 92. 200 ADORNO, Theodor W.; HORKHEIMER, 1985, p. 207.

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lado emancipadora, guarda todavia uma dominação mais grave e inescapável.201 Os personagens de Nassar estão resistindo à própria autonomia das estruturas sociais em relação aos sujeitos; à servidão mais difusa; à toda instância que pretenda dissolver sua “voz própria”. É sobretudo o autoritarismo que se está combatendo nas raias de suas manifestações mais sutis e já imperceptíveis — não apenas aquelas diretamente estabelecidas pela adesão a um partido, para quem me ne frego significaria obediência cega; mas também aquelas que se impõem travestidas de maioria, de consenso ou simplesmente de razão, nos marcos de instituições democráticas. Portanto, todo o vínculo que os discursos nassarianos poderiam se permitir com o lema me ne frego não é o de uma positiva subordinação a determinada autoridade, mas, muito pelo contrário, o de uma firme negação do autoritarismo em si. Basta repararmos que isso é, inclusive, um componente essencial do próprio lema, faz parte de seu significado primeiro: a profunda indiferença a tudo o que poderia ameaçar e constranger a liberdade individual — como é o próprio gesto do soldado que o escreve com seu sangue. Trata-se novamente da grande indiferença, que bem vimos nos encontros de Nassar com aquele poema de Ricardo Reis, onde lê-se ainda algo extremamente comparável a tal gesto:

Mesmo que, de repente, sobre o muro Surja a sanhuda face Dum guerreiro invasor, e breve deva Em sangue ali cair O jogador solene de xadrez, O momento antes desse (É ainda dado ao cálculo dum lance Pra a efeito horas depois) É ainda entregue ao jogo predilecto Dos grandes indif’rentes 202

Como disse, essa postura é ainda aquela que se resgata diretamente da afinidade que Nassar estabelece com os textos de Ibsen, de Bacon e de Pessoa. E é essa a postura que marca seus protagonistas, não apenas no conto “O ventre seco” e na novela Um copo de cólera, mas também nas demais obras e declarações “pessoais”. Essa consistente unidade não nos deixa dúvidas de que o significado de me ne frego no contexto da poética de Nassar não deve ser pacificado com objetivos atrapalhadamente apologéticos, talvez a fim de pretensamente tornar sua visão de mundo mais palatável a nós, como se quiséssemos mascarar algo que, em plena luz, haveria de ser considerado monstruoso. Ao contrário, parece que seu sentido só é bem compreendido se for tomado de frente, em sua carga mais explosiva e violenta, mas por isso

201 Cf. Ibidem. Essa é mesmo umas das teses mais fortes do livro. 202 PESSOA, 2011, p. 71-74.

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mesmo flagrantemente libertária. Logo que o fazemos, vemos por um lado a acusação de que o jogo de dominação, sendo algo inerente à própria vida, jamais poderia ser curado, apenas mascarado por uma espécie de teatro de relações horizontalizadas: a democracia moderna. Contudo, vemos por outro lado que pouco importa a forma política, nenhuma delas poderia mesmo dar coerência ou honestidade a esse jogo — nem sequer se está pedindo isso —, nem um estado de exceção ou regime de autoridade qualquer. Esse é o ponto. Ademais, o me ne frego traz como significado íntimo uma entrega que não se destina ao razoável, mas sim a uma fibra indomável que não se veria satisfeita sob qualquer espécie de ordem — quer se mascare ou quer se explicite a autoridade, ainda é contra esta que tal postura reúne suas defesas. Daí porque o protagonista de Um copo de cólera, ao forjar sua identidade como a de um fascista, está na verdade é buscando liberar suas forças e, por meio da ameaça dessa liberação, tomar a dominância na disputa com a mulher, pouco se importando com tudo o mais. Daí também porque diz a ela em seguida: “se por um lado redime, a confissão por outro também pode liberar: mais do que nunca posso agir como fascista.”203 Eis sua confusa trapaça: encontrar na confissão de uma forma emblemática de autoritarismo a defesa contra um outro — ou o mesmo, mas mascarado — falsificando pistas de uma adesão a certas pautas quando tanto o significado exteriormente representado quanto todo o gesto interiormente vivido dão mostras de que está apenas insistindo e ampliando o exercício oposto: o de uma profunda insubordinação. Portanto, a relação ideológica entre Nassar e seus narradores e protagonistas não pode ser resolvida de nenhum modo abrupto: nem pela recusa da identidade entre esses níveis, digamos, entre o biográfico e o ficcional, e nem, por outro lado, pela fixação de determinadas pautas teoricamente compartilhadas entre eles. Como então? Num primeiro momento, deve-se observar que a dificuldade em se forçar uma aproximação entre esses níveis numa perspectiva ideológica resulta em um fracasso ainda maior: não apenas não se identificam entre si, um em relação ao outro, mas tampouco cada qual consigo mesmo: não se deixam fixar, trapaceiam, atiram por cinismo, mexem com as palavras na medida de seus respectivos potenciais de uso e de desempenho relativos sobretudo ao gesto e às circunstâncias que os demandam — limite simultaneamente pragmático e poético, e nunca efetivamente ideológico. Veja-se que o chacareiro, por exemplo, monta e ocupa a discussão com a mulher à maneira de uma farsa, avaliando cada golpe em sua qualidade quase táctil de abatimento sobre os humores. Por isso, é completamente irrelevante entendermos as posições políticas ali arroladas como um fato sobre a personalidade, quando o fundamental é o gesto

203 CC, p. 60.

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que as suscita e que, este sim, tem total primazia sobre o jogo das posições e da própria identidade individual ali arrolada — até porque não cessamos de ver que esta última se encontra mais dada em seus tresmalhos e arroubos do que em suas fixações; mais em suas descontinuidades experimentais do que em seus alegados comprometimentos ideológicos. Para nossa surpresa, é justamente quando radicalizamos a impossibilidade de analogias entre termos que oscilam já em si mesmos que inusitadamente podemos reencontrar o fio de uma identificação ainda maior entre os níveis autoral e ficcional, percebendo inclusive que trata-se de um mesmo jogo, a essa altura metaficcional, a saber: a ação como experiência atual imperando acima tanto dos laços sociais quanto dos limites supostamente pessoais e, também, acima da preservação de si. Basta ver que a natureza da ação, tomada na qualidade e na circunstância em que se produz, supera e subordina a preocupação acerca: 1) da estrutura das relações com os outros em uma ordem atual ou ideal (ideologia); 2) da estrutura das relações presumivelmente características de si enquanto personalidade estável, cuja coerência deveria ser de algum modo conservada (identidade); 3) da estrutura das relações físicas necessárias e à preservação da própria vida individual (sobrevivência). Essa grande indiferença à ideologia e seus compromissos, à identidade e sua coerência, à sobrevivência e seus acautelamentos abre espaço a uma liberdade a mais radical, onde se pode dizer me ne frego com todas as letras, mas exatamente como no caso daquele jogador de xadrez que um momento antes de morrer ainda calcula um lance no tabuleiro para dali a horas: ideal de ação imperturbável e insubordinável. Tal o sentido mais preciso que vincula Nassar e seus protagonistas a esse ponto conturbado e difícil; sentido já bem diverso daquele atribuído por Mussolini ao lema escrito sobre as bandagens do soldado, uma vez que o “pouco me importa”, ao resgatar sua radicalidade, não está mais a serviço de ordem ou líder de espécie alguma. Assim, se os ataques do chacareiro de Um copo de cólera trapaceiam é porque gozam dessa liberdade fundamental em relação às alegações, conforme suas palavras já citadas aqui: “[...] eu não era um bloco monolítico, como ninguém de resto, sem esquecer que certos traços que ela pudesse me atribuir à personalidade seriam antes características da situação [...]”.204 Do mesmo modo, o gesto literário muitas vezes se encontra constrangido (diretamente forçado ou sutilmente convidado de vários lados) a fixar-se e a esclarecer suas destinações, a também encerrar sua força em certos limites então razoáveis. Ao dar a seus protagonistas, pela trapaça e cinismo, um princípio de ampla liberdade, Nassar dá a si mesmo e à sua escrita uma arma contra essas instâncias opressoras, esvaziando toda interpretação que

204 CC, p. 35.

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lê nos discursos arrolados a fixidez de uma posição de fato. Como já visto, a ficção nunca é uma medida de distância entre as camadas biográfica e narrativa, mas é interior ao narrado (onde os próprios personagens ficcionam suas posições) tanto quanto é interior ao biográfico (onde o próprio autor se vale de uma ficção equivalente). Isso também repercute na constante recusa de Nassar à pertença a essa ou aquela escola literária, sempre reafirmando uma indiferença às vanguardas, suas ideologias e manifestos diversos: “Se tivesse de me pautar pela leitura de manifestos literários, eu jamais teria escrito uma linha.”205 Essa busca por manter sua voz própria contra todo autoritarismo avança do ponto especulativo-ontológico ao ético-político e alcança aqui o nível estético-formal de sua escrita, em que a prosa poética atua também como uma trapaça contra o fascismo da palavra institucionalizada. Isso quem nos diz é Rosicley Andrade Coimbra, que, com alguma inspiração de Barthes, descreve o modo de mexer com as palavras de Nassar:

É brigar com a ideologia da palavra institucionalizada, buscando driblar o autoritarismo. [...] Assim, o projeto de Raduan Nassar consistiria então em trapacear a língua, ouvindo-a fora de seu poder fascista, percebendo aí sua virtualidade e possibilidades, trabalhando com o signo: mexendo com sua “casca” (significante) e com sua “gema” (significado).206 (COIMBRA, p. 45-46)

2.11. O coração duro

Sobre o §12 (citado em nota),207 lembremos antes das considerações feitas aqui acerca do §3, em que rapidamente mencionei esse curioso abrigo financeiro que protege os personagens tresmalhados de Nassar de um presumível destino miserável, tendo como efeito estratégico a blindagem do texto contra o achatamento de sua complexidade política em interpretações que arriscariam confundir e explicar seu teor pelo tema das desigualdades sociais. Considerando isso, foquemos na parte inicial do §12; na visão trágica do mundo. Ela nos remete a um trecho de Lavoura arcaica que bem vale para o espírito desse conto como um todo, na verdade algo realmente paradigmático da escritura de Nassar. Trata-se de André projetando o tipo de relacionamento amoroso a ter com Ana:

205 CADERNOS, p. 33. 206 COIMBRA, Rosicley Andrade. Do arcaico ao moderno: tradição e (dês)continuidade em Lavoura arcaica, de Raduan Nassar. Dourados, 2011. 129f. (Mestrado em letras) - Faculdade de Comunicação, Artes e Letras da Universidade Federal da Grande Dourados, 2011. 207 Cito: “12. No pardieiro que é este mundo, onde a sensibilidade, como de resto a consciência, não passa de uma insuspeitada degenerescência, certos espíritos só podiam mesmo se dar muito mal na vida; mas encontrei, Paula, esquivo, o meu abrigo: coração duro, homem maduro.”

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[...] neste mundo de imperfeições, tão precário, onde a melhor verdade não consegue transpor os limites da confusão, contentemo-nos com as ferramentas espontâneas que podem ser usadas para forjar nossa união: o segredo contumaz, mesclado pela mentira sorrateira e pelos laivos de um sutil cinismo [...]. (LA, p. 200)

Esse trecho acima é crucial. Talvez não haja nenhum outro que descreva melhor a configuração geral dos relacionamentos amorosos nos textos de Nassar, em seus termos mais consistentes, em suas causas mais profundas. Pode-se até tomá-lo de empréstimo para compreender as origens remotas e não mencionadas que teriam concorrido para gerar a situação inusitada a que somos apresentados em “O ventre seco”: um casal cujo edifício de sua união foi forjado, carreando-se segredos, mentiras e boa dose de cinismo. Quando li “coração duro, homem maduro”, tão rematado e inteiriço, fiquei com uma dupla sugestão: 1) pode se tratar de um verso de algum poema conhecido; 2) e/ou de uma expressão condicional (do tipo se x então y: se coração duro, então homem maduro). A força de síntese e a rima entre duro e maduro me incitava na primeira, e a falta de conectivos mais explícitos não me detinha na segunda. Embora não tenha encontrado nem em verso nem em qualquer outra forma algum antecedente mais preciso para a expressão, parece-me que ao menos o significado e o conteúdo desse pequeno voo poemático de Nassar remonta mais uma vez a Nietzsche, para quem o “coração duro” é de fato uma marca decisiva daquele tipo de homem que esse filósofo chama de nobre — ainda seguindo a oposição, comum a ambos os autores, em relação ao famigerado homem moderno. Eis o que nos diz Nietzsche:

“Foi um coração duro que Wotan me pôs no peito”, diz uma antiga saga escandinava: esse é o poema que brota da alma de um orgulhoso viking. Um homem de tal espécie se orgulha, justamente, de não ser feito para a compaixão: por isso o herói da saga acrescenta a advertência: “Quem em jovem já não tem um coração duro, seu coração nunca se tornará duro” 208

Vê-se bem claro que esse “coração duro” é proposto pelo filósofo no preciso sentido estipulado pelo narrador do conto (“coração duro, homem maduro”), ou seja, não aparece como um efeito ordinário da velhice (pois então deveria dizer, de modo mais corriqueiro, “homem maduro, coração duro”), mas aparece, isso sim, no papel de uma causa especial que produz uma maturidade em si mesma distinta daquela que trivialmente se pretenderia conquistada pelo simples passar dos anos e da juventude — o que fica bem evidente quando Nietzsche radicaliza essa ideia a ponto de fazer com que tal maturidade nem sequer possa se

208 NIETZSCHE, Friedrich. “Além do bem e do mal”. In Obras incompletas. São Paulo: Nova Cultural, 1999 (Coleção Os pensadores), §260, p. 334.

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dar ao luxo de tal espera. Poderosa síntese a dessa sentença “coração duro, homem maduro”, essa forma demasiado seca envolvendo-nos repentinamente num jogo de premissa e conclusão, porém, deixado sugestões de teor psicológico: parece remeter menos a um esforço presente de resolução ou de insight do que a uma espécie de manifestação rememorada de um firme pensamento — um que tanto rolou sobre as paredes de seu espírito que foi depurando e refinando suas arestas até atingir esse mínimo com o qual, tal como numa nota que deixamos a nós mesmos, permite-se apreender inteiro e em tão mais breves termos quanto maior é a intimidade que com ele temos. Contudo, essa já não chegaria a ser uma hipótese para a origem da sentença enquanto tal — cujo sentido tentei supor ao amparo do trecho citado de Nietzsche —, mas apenas para o tipo de animação subjetiva, de relação interior ou de disposição de espírito que o narrador tem com o seu conteúdo, e que se apresenta sob o contraste repentino e enxuto de sua forma: um poderoso pequeno verso; um poema nuclear.

2.12. Frutos de ironia em árvore de cinismo

No parágrafo 13 (citado em nota),209 pode-se retomar mais uma vez a já longa lista de ressonâncias entre “O ventre seco” e Um copo de cólera, através desse teatro de dispensas malfadadas: a mulher sequiosa, de um lado, e o protagonista a despachando, do outro. Na novela, mesmo depois de todo o “esporro”, de ser estapeada, xingada, manipulada e seduzida em falso até finalmente ser expulsa sob gritos de “suma! Suma de vez da minha vida!”;210 mesmo depois de tudo isso, a mulher retorna no capítulo final, exposta em primeira pessoa como que apenas para melhor confirmar que “eu, mesmo atrasada, sempre viria, incapaz de dispensar as recompensas da visita”.211 Mas nesse trecho do conto há também algo mais singular e localizado que dá pretexto a uma importante discussão. Ocorre que o narrador ironiza a famigerada versatilidade da mulher moderna, pedindo a Paula para desdobrar-se, a pretexto, em “mulher resignada que sai de vez do meu caminho”. Sim, podemos novamente estabelecer a ligação e ver que a emancipação feminina sofre um equivalente escárnio em Um copo de cólera, quando se lê: “a femeazinha que ela era, a mesma igual à maioria, que me

209 Cito: “13. Não me telefone, não estacione mais o carro na porta do meu prédio, não mande terceiros me revelarem que você ainda existe, e nem tudo o mais que você faz de costume, pois recorrendo a esses expedientes você só consegue me aporrinhar. Versátil como você é, desempenhe mais este papel: o de mulher resignada que sai de vez do meu caminho.” 210 CC, p. 68. 211 CC, p. 75.

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queria como filho, mas (emancipada) me queria muito mais como seu macho.”212 Entretanto, quero chamar a atenção menos ao conteúdo e mais à maneira de expressá-lo e o estado de ânimo que lhe dá suporte em ambos os episódios: veja que essas passagens formulam-se de uma maneira francamente irônica. E essa não é uma disposição propriamente constituinte do essencial na produção de Nassar, bastando-nos observar o próprio lugar de onde este costuma lançar sua fala (quando fala há): lugar passional, de atingimentos, de nervos inflamados, de vísceras reviradas, de desequilíbrio e precipitação. A própria natureza singular e positiva da grande indiferença de seus personagens nos obriga a distinguir seus gestos daqueles oriundos de uma indiferença de outro tipo, mais cerebral, fria, diletante ou absolutamente inatingida; uma que pretendesse lançar suas palavras por um movimento de pura negatividade. A rigor, a ironia é esse movimento, esse modo paradoxal de guerrilha: o indivíduo ausenta-se em presença, sonega-se atuando — e não por via de escapes clandestinos da atenção, magnetizada quem sabe por móbiles fora do tempo ou espaço presentes, mas sim mediante uma atitude em si mesma negativa, que se furta ao próprio lugar em que está e à própria ação que efetua. Sendo assim, a ironia considerada como modo existencial redunda em uma negatividade infinita absoluta, bem como notara Kierkegaard:

Ela é negatividade, pois apenas nega; ela é infinita, pois não nega este ou aquele fenômeno; ela é absoluta, pois aquilo, por força de que ela nega, é um mais alto, que contudo não é. A ironia não estabelece nada [...]. A ironia é uma determinação da subjetividade. Na ironia o sujeito está negativamente livre; pois a realidade que lhe deve dar conteúdo não está aí, ele é livre da vinculação na qual a realidade dada mantém o sujeito, mas ele é negativamente livre e como tal flutuante, suspenso, pois não há nada que o segure. (KIERKEGAARD, p. 226-227, grifos do autor)213

Vê-se que o peso da negatividade na ironia fatalmente arrasta a fala a um ponto já distante daquele no qual a lançam os protagonistas de Nassar, estes cujas vozes só se encontram permeáveis à ironia de modo bem mais restrito: em função de uma certa ênfase cênica e como um recurso vivamente tático ou retórico a fim de dar determinada carga ou qualidade aos golpes que as palavras eventualmente requerem — especialmente quando se encontram marcadas pelo outro tanto como horizonte de produção quanto alvo circunstancial de uma disputa moral de ânimos. Em vez de uma exceção, o aparecimento da ironia nesses dois casos é mais uma confirmação dessa regra, pois se focarmos no lugar de onde parte a voz irônica, veremos que ela se encontra resguardada da atualidade viva do acontecimento. Em

212 CC, p. 69. 213 KIERKEGAARD, Søren. O conceito de ironia: constantemente referido a Sócrates. Tradução: Álvaro Luiz Montenegro Valls. Petrópolis: Vozes, 1991.

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Um copo de cólera, trata-se do narrador contando o ocorrido como que a partir de sua memória, portanto, já presumidamente esfriado pela distância. Em “O ventre seco”, ainda que a fala do narrador seja indistinguível de uma ação dramática em tempo presente, a disputa fica em suspenso uma vez que a presença de Paula diante de si apaga-se tanto que já não consta mais senão como uma simples hipótese, a ponto dele mesmo garantir que é “bastante tranquilo este depoimento, é sossegado”.214 Vemos que há um vínculo entre temperatura de ânimos e modalidade expressiva que não pode ser ignorado, e que de olho nisso a ironia nassariana surge em condições muito específicas, como um aparato de uso plástico e intimamente vinculado ao cinismo e àquela sua exigência, eminentemente positiva, de tornar a própria vida em uma irredutível manifestação da verdade.215 O cinismo, justamente por ter com a ironia uma afinidade inegável, nos obriga a distinguir em cada caso os fios de sua articulação mútua e a prioridade relativa com que ambos reclamam o ethos de base de uma certa fala, bem como a própria determinação da subjetividade em questão. Ademais, já vimos suficientemente que em Nassar a vibração da vida se ocupa desse terreno último, fertilizando-o com uma inequívoca positividade que só poderia permitir à negatividade irônica momentos esquivos e menores. Pois sua escrita certamente não é a de alguma inaudita translucidez espectral, desintoxicada dos elementos que percorre, mas, ao contrário, é a de um encarnado buquê: visgo mediterrâneo, trânsito de especiarias, sensações untuosas, memórias bafientas e pensamentos farfalhados que, baralhando-se na voragem de sua prosa vigorosa, despojam os protagonistas do julgo mais cerrado das coisas ordinárias ao redor — nem que em prol de suas próprias repercussões na experiência poética que então se elabora.

2.13. Muito, mas muito, mas muito cansado

Passemos ao parágrafo 14 (citado em nota).216 Como falei anteriormente, para além desse registro verborrágico, existe um outro que não comparece nesse conto, mas a partir do qual se pode ver melhor aquilo que nele comparece. É que tal comportamento, letárgico, entorpecido, apanhando os personagens em meio ao delírio, é uma espécie de exercício ou

214 VS, p. 63. 215 Cf. FOUCAULT, 2011, p. 150. 216 Cito: “14. Entenda, Paula: estou cansado, estou muito cansado, Paula, estou muito, mas muito, mas muito cansado, Paula. (Teu baby-doll, teus chinelos, tua escova de dentes, e outros apetrechos da tua toalete, deixei tudo numa sacola lá embaixo, é só mandar alguém pegar na portaria com o zelador.)”

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mesmo de ritual (com ares de sagrado) da suspensão de valores. Da perspectiva dessa fuga tresmalhada, os elementos ordinários, duros, intocados pelas águas de seu devaneio, esses elementos mundanos e que reclamam o retorno do protagonista ao mundo cansam e enfadam. Não apenas nesse conto, mas também quando André (LA) diz: “enfrentando o desdém dos que me olham, não revelando jamais a natureza da minha vadiagem, mas estou cansado [...] Ana, me escute, já disse uma vez, mas torno a repetir: estou cansado”.217 É como se o cansaço nunca conseguisse dar a ver a sua real dimensão e comunicar o seu pervasivo significado. Eis por que não basta dizê-lo: é preciso grifá-lo, repeti-lo. E nunca será o bastante, só o suficiente. Tamanho cansaço tem duplo endereço: encarna tanto o fastio ante a ordinariedade das coisas como o sugestivo prenúncio de gozo e deleite capazes de transcendê-la. Como o próprio Nassar, emblematicamente, diz-nos em uma de suas entrevistas: “É um momento de magia quando você, só cansaço, cansaço da pesada, deita seu corpo e a sua cabeça numa cama e num travesseiro.”218 O espírito dessa declaração parece exercitar-se a si mesmo em diversos momentos de seu texto. Por exemplo, lembramo-nos imediatamente do conto “Aí pelas três da tarde”, quando o cansaço aparece como elemento central e fermento de base: “[...] o homem moderno (espécie da qual você, milenarmente cansado, talvez se sinta um tanto excluído) [...].” Recordemos que o narrador vem incitar o leitor (ou a si mesmo) a uma intempestiva ruptura com o mundo do trabalho: “[...] dê um largo ‘ciao’ ao trabalho do dia, assim como quem se despede da vida.”219 Esse vigoroso cansaço confirma sua dupla vocação: tanto é uma atitude ético-intelectual como uma requisição corpóreo-fruitiva: desprezo e deleite. Daí esse conto começar pela constatação desdenhosa de uma sala “atulhada de mesas, máquinas e papéis, onde invejáveis escreventes dividiram entre si o bom senso do mundo”,220 para concluir na sugestão voluptuosa do narrador: “[...] e se achegue depois, com cuidado e ternura, junto à rede [...] e vá fundo nesse mergulho [...] com um impulso do pé (já não importa em que apoio), goze a fantasia de se sentir embalado pelo mundo.”221

217 LA, p. 193-194. 218 NASSAR, 1997, p. 71-72. Encontramos essa incitação também numa passagem de Montaigne: “Com antecedência digamos adeus a todos; libertemo-nos desses compromissos que nos amarram a outrem e nos distraem de nós mesmos.” (MONTAIGNE, p. 121) 219 [Entrevista a Veja] SABINO. 1997. 220 Ibidem, p. 71. 221 Ibid., p. 73.

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2.14. Não conheço esse senhor

No parágrafo 15 (citado em nota),222 um fim de conto, no mínimo, impressionante! A última frase que o narrador oferece a Paula é de fato irrecusável, uma espécie de grau zero da retórica, uma espécie de performativo (John Austin)223, pois falar não apenas fornece o conteúdo do que se diz, mas realiza o ato concreto que ampara tal conteúdo. O narrador se torna um completo desconhecido para Paula no momento preciso em que a faz entender o significado das palavras da velha: “não conheço esse senhor.” Ali mesmo, essas palavras se tornam inevitavelmente dela. E se ela não pode recusá-las é porque entender seu significado, a essa altura de um relacionamento, implica perder-se da identidade do próprio narrador e, como efeito cascata, sofrer a ruína subsequente de todos os andares erguidos a partir daí. O edifício conjugal, a exemplo da metáfora cartesiana, descobre seu derradeiro chão movediço. Paula convivera com um desconhecido, alguém que contornou, momento a momento e calculadamente, a intimidade que a relação presumia (quiçá outrora com a mãe, certamente agora com ela), vindo a descobrir, nesse impacto, que quando ela zombava da velha que margeava seu relacionamento, também ela, Paula, já estava desde sempre posta igualmente à margem do protagonista. Como leitores, nosso susto é sermos informados ao mesmo tempo que ela, o que tem um efeito ambíguo: 1) somos empurrados a uma cumplicidade empática com Paula, ao sentirmos com ela o golpe na face; 2) mas somos tornados em cúmplices primeiros do narrador, já que, como Paula não aparece, fica em suspenso a possibilidade de que nós lemos em primeira mão uma espécie de carta (o próprio conto “O ventre seco”), e que só mais remotamente se destinaria a ela. Digo “carta” para insistir nessa completa mudez de Paula, que pode nem estar diante do narrador e tudo ali pode não passar de uma incitação

222 Cito: “15. Ainda: ‘a velha aí do lado’, a quem você se referia também como ‘a carcaça ressabiada’, ‘o pacote de ossos’, ‘a semente senil’ e outras expressões exuberantes que o teu talento verbal sempre é capaz de forjar mesmo para falar das coisas mirradas da vida, nunca te revelei, Paula, te revelo agora: ‘aquele ventre seco’ é minha mãe, faz anos que vivemos em kitchenettes separadas, ainda que ao lado uma da outra. Não seja tola, Paula, não estou te recriminando nada, sempre assisti com indiferença aos arremedos que você fazia da ‘bruxa velha, preparando a poção pra envenenar nossas relações’. Te digo mais: você talvez tivesse razão, é provável que ela vivesse a espreitar minha porta das sombras da escadaria, é provável que ela do fundo dos corredores te olhasse ‘de um jeito maligno’, é provável ainda que ela, matreira dentro do seu cubículo, te alcançasse todas as vezes que você saía através do olho mágico da sua porta. Mas contenha, Paula, a tua gula: você que, além de liberada e praticada, é também versada nas ciências ocultas dos tempos modernos, não vá lambuzar apressadamente o dedo na consciência das coisas; não fiz a revelação como quem te serve à mesa, não é um convite fecundo a interpretações que te faço, nem minha vida está pedindo esse desperdício. Quero antes lembrar o que minha mãe te dizia quando você, ao cruzar com ela, e ‘só pra tirar um sarro’, perguntava maliciosamente por mim, te sugerindo eu agora a mesma prudência, se acaso amanhã teus amigos quiserem saber a meu respeito. Você pode dispensar ‘a ridícula solenidade da velha’, mas não dispense o seu irrepreensível comedimento, responda como ela invariavelmente te respondia: ‘não conheço esse senhor.’” 223 Cf. AUSTIN, John. L. Quando Dizer é Fazer. Tradução de Danilo Marcondes de Souza Filho. Porto Alegre: Artes Médicas, 1990.

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antecipada em seus pensamentos, se muito, palavras escritas em isolamento absoluto e nunca enviadas. Já vimos o quanto a incitação é uma hipótese forte para a leitura de Nassar — a exemplo de “Aí pelas três da tarde”. Talvez aqui também a voz que narra, narra segundo um fluxo deveniente sobre o qual o desejo vai moldando cenas e acontecimentos imaginários, dando corda, animando-os como vias de sua expansão e de sua satisfação possível, mas não menos atual por isso. Talvez aqui também a voz que narra, narra para si, simula uma realização sem limites, plena e plasticamente. Independente de serem tão só ficcionados, esses acontecimentos levam a cabo cada um dos afetos e humores que elaboram e envolvem, vivenciados e infiltrados que se fazem nas suas disposições íntimas tanto quanto no fio exposto de sua escrita. Eles encenam as configurações que uma vontade de repente desenha e monta para si, sobre si. Diante disso, a mudez de Paula e a generalização da “perda da voz feminina” não nos devem parecer algo de todo despropositado. Mas não basta nos lembrarmos, por exemplo, que a personagem da mãe em Lavoura arcaica passa sem nos dizer seu nome, assim como a mulher em Um copo de cólera. Isso ainda não é decisivo, pois neste último também não sabemos o nome do protagonista, e, mais ainda, mesmo no conto “O ventre seco” tampouco o sabemos. O pilar mais firme dessa mudez parece ser o de Ana, a personagem de Lavoura arcaica que durante o romance não diz uma única palavra e que mesmo assim torna-se o elemento deflagrador de todo o drama vivido por André — como bem diz Nassar: “De qualquer forma, mesmo sem abrir a boca, Ana chegaria quase à loquacidade.”224 Longe do aspecto passivo de objeto amado, trata-se de seu aspecto ativo, sua natureza desconhecida e, nisso, toda a sua carga decepcionante: “Ana (que todos julgavam sempre na capela) surgiu impaciente numa só lufada.”225 Carga que também André se via preparando quando indo ter com sua mãe antes da partida, apreende ali essa distância que a intimidade não reduz, revelando de modo equivalente: “quando fui procurar por ela, eu quis dizer a senhora se despede de mim agora sem me conhecer”.226 Momento insuperável, em que a própria imagem que dá nome ao conto “O ventre seco” aparece reverberando no romance Lavoura arcaica. Palavras de André: “[...] mas tudo que pude ouvir, sem que ela dissesse nada, foram as trincas na louça antiga do seu ventre, ouvi dos seus olhos um dilacerado grito de mãe no parto, senti seu fruto secando com meu hálito quente.” 227

224 STEEN, 2008, p. 103. 225 LA, p. 256. 226 LA, p. 136. 227 LA, p. 138, grifos meus.

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3. INTRODUÇÃO AO MÉTODO

3.1. A vontade de explicar

O percurso feito até aqui seguiu o modesto itinerário de uma apresentação. Ainda assim, percebe-se que não deixa de trazer em seu bojo certa perspectiva subjacente, algo que poderíamos chamar de minha leitura, e que apesar de sempre aí tende todavia a permanecer mais recuada e a passar mais despercebida enquanto as luzes estiverem voltadas para o palco de Nassar e para a atuação de seus elementos — supostamente independentes da carga e do jogo dessas luzes ora lançadas sobre eles. Não fosse esse detalhe nada ingênuo, poderíamos crer que até aqui não se fez mais do que um desinteressado passeio por tais objetos. Se é chegada a hora de confrontar a postiça neutralidade dessas luzes, desse observador até então remoto, é porque sabemos que nos primeiros momentos de uma pesquisa qualquer sempre acumulamos uma miríade intratável de impressões mal rascunhadas, sendo preciso tempo para que essas nuvens acima se troquem em chuva e fertilidade abaixo. Oportuno é sempre o segundo ou terceiro momento, quando certas hipóteses iniciais já gozam de maior maturidade, tanto se testaram, regrediram, avançaram e se refinaram; vieram por fim a alcançar um grau que — por mais distante de pontuações definitivas — não nos permite mais disfarçar o vigor de sua atinência: o fato de que é delas o grosso das fichas que trazemos para apostar. Afinal, que outro maior valor, ou mais honesto, poderia haver em uma aposta senão o de ser essa intuição peculiar que tende a se radicalizar apenas na medida em que se afasta tanto do dogma luminoso de alguma certeza prévia quanto da veleidade cega de uma probabilística capaz apenas de projetar resultados que, mesmo se recolhidos, persistiriam ainda como reles acaso? Portanto, a partir daqui é preciso revirar os bolsos, não tanto os de Nassar, mas sim os meus: dizer o que descobri, ou melhor, o que inventei — pois como incitava Nietzsche: “Muitas almas há que nunca serão descobertas, a não ser que, primeiro, as inventemos.”228 Devo dizer não apenas que o que faço aqui é uma leitura, como também que leitura é. Devo desdobrá-la clamando que minha possível contundência em relação a alguns pontos não venha despertar a impertinência de cismas despropositadas, pois sim, sei e sabemos que um objeto dado e percebido é ali mesmo um objeto atribuído e produzido; que ele nunca é um fato puro, que é sempre uma aparição entre outras possíveis. Contudo, nada disso faz com que seja

228 NIETZSCHE, 2010b, p. 68.

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menos falso — e realmente hipócrita — agirmos como se a cada vez não estivéssemos manifestamente diante desta e não de qualquer outra elaboração sua. E que mais concreta elaboração de um objeto podemos ter diante de nós que não seja ali mesmo a nossa própria versão dele? É evidente que o mesmo deve valer para a leitura que se tem ou que se faz de uma determinada produção ou de dados aspectos do mundo. Uma leitura é algo que está presente a nós, e que conquistou essa presença. Algo que reclama certa independência em relação a nós e à nossa mesquinha capacidade de constrangê-la e de reduzi-la. Não há ganhos e muito menos honestidade em se tratar a vigorosa fibra sob a qual vemos o que vemos e do preciso modo que vemos como se essa visão não tivesse a justa força que deveras tem. E em nome do que a deformaríamos? De uma alegada relatividade dos modos de ver que pretende dissolvê-la, de saída, numa equivalência absurda com quaisquer possíveis concorrentes suas? Fujamos do torpe preconceito a nos dizer que toda contundência é estreiteza. Sim, saibamos que todo modo de ver é um entre outros, mas que isso em nada deve nos esmorecer a fibra com que uma visão exige sua dignidade: ser desenvolvida e alçada na justa proporção em que se apresenta a nós, a fim de que possa tanto se aprofundar em si mesma quanto se tornar profundamente irredutível às demais — pois ela ainda supõe as demais, também as elabora em vista de si. A força de uma singular perspectiva, leitura ou pensamento não é um feito meramente declaratório, mas algo como uma ambição impessoal, não podendo ser ela mesma arbitrariamente decidida por nós via alguma suposta neutralidade subjetiva. Há um segundo ponto a esse respeito: se tal vontade já em sua origem como que nos precede e nos guia, extrapolando-nos, como poderíamos ainda pretender que seus passos subsequentes devessem estar reduzidos a nossas capacidades triviais? Como uma tal vontade de explicar poderia se confundir com aquele tipo corriqueiro de gesto explicativo que mais tangencia e margeia seus objetos e tanto mais atesta a sua própria impotência quanto mais pretende se identificar com as nossas capacidades? Fujamos também desse preconceito ainda mais corrosivo a nos dizer que toda explicação confirma nossa estreiteza. É por isso que é preciso, e ainda por sua dignidade, afirmar uma leitura tal qual ela se nos dá: como algo para além de nós, maior do que nós e que nossa simples vaidade — vaidade, ao contrário, seria antes submetê-la à sua própria falsificação, e em nome da nossa! A julgar pelo que vejo, essa discussão é muito mais importante do que é praticada, mas do meu lado encontro por assim dizer um amparo irretocável na provocadora indagação que Paul Valéry nos lança:

Como consentir em sermos seduzidos misteriosamente por certos aspectos do mundo ou por tais obras do homem e não nos explicar de modo nenhum esse deleite, ou fortuito ou elaborado, e que parece, de um lado, independente da inteligência —

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da qual todavia é talvez o princípio e o guia oculto —, assim como parece, de outro lado, bem distinto de nossas afeições comuns — cuja variedade e profundeza ele, no entanto, resume e diviniza? (VALÉRY, 1998, p. 183, grifos do autor)229

Pois quero crer, agora que impressões e sentimentos antes mais confusos tentam se coagular em vislumbres mais firmes, que a minha vontade de explicar seja ainda fruto dessa experiência distinta da minha inteligência e afeições comuns. Já se fez bastante claro que, de modo estrito, não me interesso por “literatura” — aliás, o que interessa a literatura? — mas pelas formações e performances na configuração, por assim dizer, real de uma poética. Portanto, irredutível a algum suposto campo geral, como o da literatura ou o da linguagem. Semelhante é também a relação do próprio Raduan com a literatura e seu valor, tal como vimos anteriormente e precisaremos ainda ver melhor mais adiante, de modo que esse meu interesse igualmente enviesado pelo campo literário no fim das contas nada tem de desprezo, mas sim de sincera vontade de reencontrar com a literatura em seu valor talvez mais decisivo: o das efetuações poéticas cujas composições começam desde fora e avançam para além de si mesma. Dadas as conhecidas posições de Nassar a esse respeito, penso ainda que tudo isso tende a fazer dessa minha leitura, ao menos nisso, um tanto companheira de seu objeto.

3.2. Decifrando a natureza das repercussões notáveis

Colocamo-nos logo diante de um importante impasse. Vimos quantos mil atravessamentos, repetições, insistências e remissões constantes de citações e referências cruzadas a partir de obras diversas (suas e de outros autores) há em Nassar — o que podemos chamar, abreviadamente, de repercussões notáveis —, e que nos levam a fazer uma escolha metodológica entre dois caminhos mais gerais: 1) ou bem consideramos que tais repercussões notáveis devem indicar um valor oriundo dos próprios elementos que se repercutem, e que, portanto, a investigação deve estar voltada para seus respectivos campos semânticos, conteúdos ou pontos irradiadores e originários — perfilando assim uma pesquisa mais objetiva ou acerca dos dados; 2) ou bem consideramos que tais repercussões notáveis indicam antes um certo ethos: um exercício em relação ao qual todos esses elementos arrastados e ressoados, apesar de toda a sua sugestiva repetição e frequência, não devem contar com o maior dos pesos, nem com qualquer precedência originária; que suas aparições não são mais

229 VALÉRY, Paul. Introdução ao método de Leonardo Da Vinci. Trad.: Geraldo Gerson de Souza. São Paulo: Editora 34, 1998.

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do que a de arautos anunciando, mesmo nas camadas mais diversas de representação, a presença de um ato fundamentalmente distinto e interior a elas, extrapolado, ato que goza, este sim, de uma relativa primazia — perfilando aqui uma pesquisa mais subjetiva ou acerca da atitude. Enfim, ou confiamos nos significados que se repetem e buscamos encontrá-los em sua concentração maior, ou supomos que estes não são mais do que móbiles e que são tão relevantes ao movimento que os jorra (o empurrar das palavras) quanto são os detalhes da forma de um castelo de areia em relação ao ímpeto, presente em qualquer criança, que se anima em destruí-lo com um só golpe. Ainda que seja preciso ver até que ponto ambas as direções assim postas são caricatas e excessivas, penso que de modo preliminar podemos começar por tomá-las nessas linhas gerais sem grandes prejuízos. Para que se possa fazer tal opção com cuidado, proponho que isolemos um caso; que façamos uma experiência. Considere-se de início, como amostra, aquele elemento já visto aqui e que poderíamos chamar de “a palavra do pai”, seguindo os apontamentos de André em Lavoura arcaica. Trata-se, sem dúvida, de um exemplar irrepreensível desse aspecto remissivo e difuso, que se reitera conforme segue avançando e atravessando diversos personagens e discursos. Pois lembremos que não se trata de um traço que se isola no personagem do pai, mas que de fato se transmite ao filho Pedro — e que na verdade se quer transmitir ainda para além deste; assim como remonta à figura do avô — e que na verdade se quer remontar ainda a antes deste. Essa repercussão notável não se isola sequer na forma ou no conteúdo de um determinado discurso, antes se difunde, orienta e amolda desde lances miúdos de certos gestos até a evidência inteiriça de certa atitude:

[...] e embora caído numa sanha de possesso vi que meu irmão, assombrado pelo impacto do meu vento, cobria o rosto com as mãos, [...] eu podia até escutar seus gemidos gritando por socorro, mas vendo-lhe a postura profundamente súbita e quieta (era o meu pai) me ocorreu também que era talvez num exercício de paciência que ele se recolhia, consultando no escuro os textos dos mais velhos [...] (LA, p. 178-179, grifos meus)

Vemos que aqui, mesmo diante da mais direta e manifesta recordação do pai, despertada na semelhança dos trejeitos do irmão, não é a uma essência pessoal (o personagem ou a figura do pai em si mesma) que tal recordação em última instância remonta, mas sim a um acidente impessoal (um traço assumido, exercitado e tornado protuberante — pelo avô, pelo pai, pelo irmão). O que digo é que esse traço, a princípio, não deve ser assumido por nós como se pertencesse ao pai mais do que a Pedro, por exemplo, já que diz respeito a um

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elemento que se atualiza em um como se atualizava em outro: esse gesto de ir consultando no escuro o texto dos mais velhos. O que talvez obscureça a apreensão desse caráter impessoal é a sua acirrada negociação com as idiossincrasias pessoais. Afinal, esse hábito estimulado — e imitado a cada geração — de sempre se espelhar na letra dos antigos não poderia se dar sem que necessariamente cada elo transmitisse ao elo seguinte dessa corrente também um pouco do seu ruído, de sua imagem, de seus modos específicos e singulares. De fato, diante da marcante generalidade com que uma atitude se reproduz ao longo de uma série de indivíduos, é inevitável que esses indivíduos em suas respectivas singularidades se tornem eles mesmos verdadeiras fontes de desvios, rasuras e emendas, de modo que, ao fim, não se saiba mais até que ponto o irmão imita características do pai ou, através desse, do avô ou, no limite, a nenhum deles mais do que ao próprio gesto em sua singularidade impessoal. Há aqui algo decisivo para a indagação inicial, pois temos de nos permitir pensar que mesmo tendo sido talvez uma simples semelhança formal (relativa apenas à figura do pai) o que primeiro faz despertar em André tal percepção reveladora, nem assim poderíamos nos livrar do fato de que é para uma potência de reprodução que sua atenção sempre se dirige e convida a nossa. Potência que não poderia ser privilégio dos agentes mais do que daquilo que se atualiza por meio destes (uma atitude), já que vimos o quanto ela deve inclusive sobreviver aos ruídos das idiossincrasias dos agentes em meio a seus transportes. Vamos descobrindo assim que é completamente irrelevante buscar qualquer termo ancestral último nessa cadeia de reproduções, uma vez que é justamente ela enquanto tal o fato que nos assombra: o assombroso é que o termo reproduzido não tem — ou não tem mais — qualquer natureza particular ou pessoal, de modo que a qualidade dessas repercussões notáveis é tal que só pode ser apreendida como um traço em si mesmo impessoal. Aqui uma nova bifurcação nos força a escolher entre direções diversas, já que há em linhas gerais como que duas maneiras de um tal traço (então impessoal) superar os estágios (ou indivíduos) em que se faz manifesto: 1) ou bem ele é apreendido como uma forma distinta em sua silhueta, uma coreografia cuja a exterioridade de seus movimentos está à disposição dos mais diversos imitadores — reproduzindo-se no mais trivial sentido do mimético; 2) ou bem é ele uma atitude vivida em seu exercício, uma maneira interior de ser afetado, uma certa disposição que se estimula mais e mais, até tornar-se parte do próprio caráter pessoal do indivíduo, um pouco à maneira da formação ética aristotélica — reproduzindo-se no mais eminente mimetismo, objetivando a tonicidade do próprio empenho como modo de torná-lo espontâneo, e cada vez mais. E de fato me parece compulsório decidir-se pela segunda via. Basta nos atentarmos para a natureza mesma das suscitações e pensamentos que ocorrem —

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não só a André, mas a qualquer outro protagonista ou narrador de Nassar; ao ethos nassariano. Pois acaso não seria ridículo, depois de tanto percorrer a natureza dos dramas e rituais de seus sugestivos trancamentos, exílios e silêncios se agora pretendêssemos conciliá-los com um tipo de espírito de algum modo explicável pela mera vocação para a minúcia e para a decodificação intelectual das formas ao redor? Ora, certamente que não é dessa maneira que André alcança a surpreendente visão do pai na vez do irmão; não é pelo diletantismo daquele tipo de percepção famigeradamente aguda e vivaz que com frequência topamos nos romances policiais. Não, é preciso notar que seus golpes perceptivos estão inteiramente ocupados pela carne da própria afetividade de si, de tal sorte que se André pode colher suas percepções em ricos cachos e macerar até o sumo acurado de um vislumbre peculiar é porque elas são, de saída, já de outra natureza: poéticas. Ele só se dá conta da repentina identidade entre o pai e o irmão porque num momento lhe ocorre uma inequívoca ideia, e uma que só lhe ocorre ao se deparar com um inequívoco afeto: esse de ser aparado pelo irmão assim como pelo pai; de padecer ante ambos de uma mesma alteridade; de estar então diante de um mesmo exercício ancestral, de uma mesma mão a turvar suas águas. Sim, pois André apenas o percebe bem porque as letárgicas maneiras de seu distinto exercício, inaugural e contrário, encontram no irmão um limite caprichosamente equivalente àquele do pai — não apenas comparável em sua semelhança formal (o ato assinalável do irmão ser tal qual o ato do pai, na medida apenas em que se remeteriam um ao outro), mas fundamentalmente comparável em sua pregnância opressora (a atitude projetada do irmão ser tal qual a atitude do pai, na medida em que convergem na disposição peculiar pela qual cerceiam os ímpetos do próprio André em sua atitude oposta). Mesmo a mais descritiva percepção (atenção ao outro ou às coisas) pode ser apreendida surgindo ainda de uma não menos laboriosa afecção (atenção a si), isto é, a partir das marcas produzidas pelo choque mútuo de disposições contrárias no plano talvez menos explícito, mas seguramente mais tangível e real, dos humores e da vontade.

3.3. Indícios de uma teoria interna da interpretação

Eis o que já sabemos: que nunca são seus olhos errantes caçando detalhes, e sim seu corpo pressentindo e acolhendo uma maior liberdade quem primeiro escreve as notas que vão assinadas pela sua atenção ou pela sua perspectiva do mundo. Dos tais traços repercutindo de ponto a ponto, observamos ainda que eles são em si mesmos múltiplos, ou melhor, que não apenas não se deixam reduzir a esse ou aquele agente, mas que tampouco se identificam eles

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próprios com alguma forma individual, na qual pudéssemos encontrar uma matriz isolável. Além de impessoais, uma vez que não se reconstituem nessa ou naquela pessoa, e, no limite, pessoa ou pessoalidade alguma, tais repercussões notáveis devem ser tratadas como não- arquetípicas, uma vez que não remetem a qualquer formalização abstrata nos termos virtuais de uma imagem fixa, que aqui e ali seria dado se realizar. Isso nos permite dizer que se há alguma identidade naquilo que repercute, a ponto de podermos debulhá-la em meio às suas dessemelhantes reaparições, ela se deve ao fato de que a cada vez o temperamento do sujeito é afetado de modo substancialmente análogo, segundo uma estratégia comum ou um hábito ancestral equivalente, por exemplo. De todo modo, tal percepção não aponta para qualquer referência exterior mais do que para uma dinâmica afetiva sobre um “si mesmo”. Lembremos por exemplo de quando primeiramente o irmão Pedro (era o pai), mal tendo acabado de despertar André de seu delírio, diz-lhe ainda num rompante: “abotoe a camisa, André.”230 Seria até ridículo supor que se trata de um gesto de esclarecimento com o qual se compartilha uma informação — ainda que escrita nos livros dos antigos. Pois trata-se antes de um gesto segundo o qual se vai retomar e assumir a aura de uma autoridade cujo valor último está em amparar o verdadeiro feito dessas palavras: impingir um golpe sobre a disposição de André; uma reprimenda que intenta mesmo diminuir seus graus, empurrar para a sombra o próprio plano dos humores e sua lógica, ou seja, o corpo enquanto tal. Sem que o texto nos informe, imediatamente sabemos que André padece dessas palavras ainda mais rápido do que as acata — ele, que há pouco se espalhava esfacelado pelo quarto, experimentando um corpo ampliado,231 identificado com todo o quarto por meio de seu rictus (“o quarto é individual; tanto maior uma certa liberdade, o quarto é um mundo, quarto catedral”).232 Não espanta que mais adiante o irmão, após lhe fazer fechar e recuar o corpo indefinidamente sob suas vestes, passe então a lhe exigir abrir e entregar esse mesmo quarto às luzes ordinárias lá de fora, perseguindo e espicaçando o altar sagrado de suas forças. E vamos confirmar aqui mais uma vez que era sempre sobre sua carne que André ia absorvendo

230 LA, p. 84. 231 Sempre que aqui me referir ao corpo, estarei falando mesmo de um corpo ampliado. Pois relembro que a noção de corpo vem sendo tratada sob o signo do que Nietzsche chamou de “grande razão”, e que, como visto mais atrás no texto, visa não nos permitir reduzi-lo àquela oposição costumeira entre a sua materialidade e a presumível imaterialidade da alma, da consciência ou da razão. Ora, num jogo absolutamente concreto, em que as forças estão lançadas e abertas diretamente sobre si mesmas, onde mais senão entre estas se poderia fundar uma razão? Onde mais a consciência poderia habitar senão no mesmo plano do corpo, tendo de ser inclusive uma parte dele? Por fim, considerando o pouco que ela o compreende, explica-se ainda que só poderia ser uma parte pequena dele, uma “pequena razão”, como diz Nietzsche. 232 LA, p. 81.

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cada golpe: “[...] não conseguia sair da carne dos meus sentimentos, e ali junto da mesa eu só estava certo era de ter os olhos exasperados em cima do vinho rosado que eu entornava nos copos; ‘as venezianas’ ele disse ‘por que as venezianas estão fechadas?’” 233 Trata-se de uma configuração afetiva que vai sendo vívida e escrupulosamente percorrida — com o maior rigor de sua prosa poética — sob todas as representações e seus repasses. Se essa configuração compete para a promoção de uma possível organicidade interna, ao nos deixar vislumbrar algo de natureza metaficcional nesse ponto imóvel girando toda a sua circunferência, talvez seja porque o caráter enviesado e indireto que há nesses golpes de ânimos é ainda mais radical. Alcança também a experiência que deles é feita sobre as disposições do próprio Raduan Nassar, no momento mesmo em que vai sendo atualizado e rememorado e transfigurado pelo seu ato de escrita e entre seus próprios afetos. Expiações. Veja-se os largos sermões do pai de André, o elogio reiterado que este fazia ao trabalho, a lição de paciência, a restrição às paixões; tudo isso é demasiado presente em Lavoura arcaica para que possamos nos impedir de retomá-lo imediatamente quando ouvimos Nassar comentando em entrevista alguns detalhes de sua relação com o pai:

Bem, a propósito de meu pai, a gente o chamava de pai e tratava-o de senhor. [...] Era parcimonioso no elogio dos filhos, em compensação, não nos poupava críticas, daí saímos tímidos. Falou tanto de trabalho, trabalho, trabalho, que não aprendemos a nos divertir. Um traço forte dele: apesar de lavrador de origem e comerciante no Brasil, era o usted por excelência, palavra árabe que quer dizer professor [...]. Suas explicações eram pacientíssimas e nós, muitas vezes, impacientíssimos. (STEEN, 2008, p. 99)

Não paramos de escavar camadas, mas também de remetê-las a uma mesma comunidade de configurações afetivas. Vemos que nos textos de Nassar a capa declaratória das alegações discursivas que percorrem a superfície (dos sermões do pai, do bom senso das diplomacias, do valor ético do trabalho ou do homem moderno etc.) esconde abaixo um jogo submundo, este sim absolutamente real e incontornável, em atenção ao qual aquelas alegações superficiais vão simultaneamente regulando e dissimulando suas investidas. Mais uma vez voltamos a uma acusação pressentida em muitas curvas de Nassar, a de que quase sempre há uma contenda sórdida sendo concretamente efetuada na carne dos humores enquanto é todavia metodicamente teatralizada e pintada com as cores eventuais de um mero debate de posições ou simples troca de pontos de vista — ou qualquer disfarce que a apresente como algo pretensamente circunscrito às luzes da ordenação racional do discurso e seus

233 LA, p. 98.

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pressupostos ético-racionais implícitos.234 Dada essa farsa, vê-se: 1) que a exigência de um trabalho de interpretação é tanto interna quanto constitutiva no máximo grau do próprio sentido de sua produção; 2) e que tal exigência não poderia limitar-se apenas a considerações de tipo expressivas e referenciais, a exemplo de algo ou alguém na vez de algo ou alguém, mas teria de avançar a esse nível impessoal e composicional em que elementos diversos se equivalem mútua e simultaneamente, a exemplo de palavras como ações (e vice-versa) — enquanto são efetuações físicas lançadas sobre as disposições dos personagens em disputa. Já vimos que essa discrepância, essa farsa e seus intercâmbios constituem realmente um tema de grande insistência na produção de Raduan Nassar, de sorte que é até natural e esperável que a discussão metodológica acerca de critérios para a sua leitura viesse a esbarrar naquilo que ela mesma enseja e até certo ponto problematiza nos termos quase explícitos de uma teoria da interpretação. Não se precisa forçar nada para que esta já esteja como que pronta para se praticar a partir, por exemplo, da definição de signo a que chega Umberto Eco:

Segundo Peirce, um signo é qualquer coisa que está para alguém no lugar de algo sob determinados aspectos ou capacidades. [...] Propomos, destarte, definir como signo tudo quanto, à base de uma convenção social previamente aceita, possa ser entendido como ALGO QUE ESTÁ NO LUGAR DE OUTRA COISA. (ECO, p. 10-11, grifos do autor)235

Mas insisto que se o irmão está no lugar do pai, que está no lugar do avô e assim por diante, é porque cada um aqui está no lugar de um singular atingimento sobre o próprio corpo, que os recolhe e os interpreta a todos a partir do modo como é por eles afetado — no caso de André, significando uma diminuição severa e global das liberdades do corpo. Por outro lado, se, por exemplo, o seu irmão Lula de repente está no lugar de Ana, que — sem nenhum recurso especial a Freud — poderíamos posicionar no lugar da forte carga amorosa da mãe, é também porque estão no lugar de um não menos singular atingimento,236 tão radical

234 Cabe perguntar se essa mais valia nassariana de algo tão básico — como é a presumível pretensão de ser compreendido ao se dizer algo — furta-se àquela tese de Habermas segundo a qual haveria certos pressupostos inerentes aos próprios processos de comunicação intersubjetivos dotando-os de uma incontornável exigência de racionalidade, esta recrudescendo então já na argumentação enquanto tal. Cf. HABERMAS, Jürgen. Consciência moral e agir comunicativo. Tradução de Guido Antônio de Almeida. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 2003. 235 ECO, Humberto. Tratado geral de semiótica. São Paulo: Perspectiva, 2003. 236 Hugo Abati, em seu estudo, levanta uma série de discursos relativos aos mais diversos temas constantes em Lavoura arcaica, dedicando um capítulo no qual podemos acompanhar de muitos lados a inequívoca ligação entre a mãe e os signos dispersos de uma afetividade plena: a primeira formação da sexualidade; o empréstimo de fulgor à própria potência da fascinação; a natureza não moldada amparada no fato de não ser nomeada. Cf. ABATI, Hugo Marcelo Fuzeti. Da lavoura arcaica — Fortuna critica, análise e interpretação da obra de Raduan Nassar. Curitiba, 1999. 186f. Dissertação (Mestrado em Estudos Literários) Universidade Federal do Paraná, 1999.

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quanto aquele outro, mas oposto, pois este significa por sua vez uma ampliação das liberdades do corpo: do próprio poder de afetar e de ser afetado, para usar os termos de Spinoza. Esse aspecto direto ampara e explica todos aqueles indiretos, ao ponto do chacareiro (CC) dizer: “ela nem tinha a ver com tudo isso (concordo que é confuso, mas era assim)”.237 As disposições estão sob a pele aparente dos pontos de vista, sendo portanto seu fundamento interno. É em direção a elas que se deve então partir em busca do significado daquilo que se diz. Observe-se por exemplo a parábola do faminto, no capítulo 13 de Lavoura arcaica. Nela, conta-se a história de um faminto sendo recebido por um rei dos povos que o introduz num jogo de dissimulação, no qual fingem comer e beber fartamente de uma mesa contudo vazia. Essa parábola surge em meio à narrativa com uma estranheza notadamente comparável à célebre diante da Lei, no nono capítulo de O processo, de Kafka. E é ainda mais curioso que, em ambos os casos, imediatamente após a narração da parábola se abra um momento voltado para sua interpretação, não sendo excessivo dizer que nos dois casos tal momento hermenêutico parece ser ainda interno e crucial à parábola mesma, à disputa de forças que cada qual encena. Mais do que uma simples interpretação, revelam os impasses das disposições envolvidas. A parábola do faminto, entretanto, possui uma origem exterior ao texto de Nassar. Ela consta em sua versão original no Livro das mil e uma noites.238 Ao compararmos com a versão narrada pelo pai em Lavoura arcaica, podemos encontrar distorções muito significativas. A mais especial talvez seja o fato de que na versão original ela não se apresenta como um elogio à paciência, mas como um elogio à imaginação. Isso porque a correção que André faz da parábola procede: de fato, em meio ao fingimento, o faminto simula estar embriagado pelo vinho e desfere vários golpes em seu anfitrião. Todavia, é essa atitude que ao final será por ele recompensada: “Faz muito tempo, fulano, que eu me divirto assim às custas das pessoas, mas nunca vi ninguém que tivesse inteligência e jogasse o jogo comigo senão você.”239 Esse desfecho tampouco é explicitado na versão de André, a qual se contenta com o revide do faminto, que “com a força descomunal de sua fome desfechara um murro violento contra o ancião”.240 Assim, vemos que tanto a versão do pai quanto a de André distorcem o sentido original da parábola, interpretando-a segundo suas próprias disposições e interesses. Em seu estudo sobre Lavoura arcaica, André Luis Rodrigues dedica um pequeno

237 CC, p.38. 238 “O sexto irmão do barbeiro”, In Livro das mil e uma noites — volume 1: ramo sírio. São Paulo: Globo, 2006, p. 358-362. 239 Ibidem, p. 360. 240 LA, p. 155.

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mas belíssimo capítulo ao caso da parábola do faminto, nos fazendo ver que os personagens em disputa nesse jogo de interpretação não se contentam em distorcer o elogio à imaginação (versão original) num elogio à paciência (versão do pai) ou à impaciência (versão de André). Antes, a dissimulação entre o rei dos povos e o faminto se estende sorrateira a um elogio à dissimulação na vez do elogio à paciência, na versão narrada pelo pai. Cito:

Contudo, a maior de todas as falsidades na utilização dessa história é que, ao fazer o elogio da paciência, o que se está efetivamente fazendo é o elogio da dissimulação, da fraude, do engodo, não voltados contra a família, obviamente, mas à manutenção do status quo familiar. O que o pai pede aos filhos, por intermédio dessa história, é que finjam também receber o alimento de que necessitam. [...] É a recusa em representar esse papel, por parte do filho, e a impossibilidade, por parte do pai, de reconhecer que oferece o que não tem e que dá aquilo de que o filho não precisa que tornarão o diálogo entre ambos impraticável. (RODRIGUES, p. 49)241

Nos discursos sobre o tempo, em Lavoura arcaica,242 também vemos esse movimento interpretativo de apropriação sob uma disputa equivalente. Neles, o pai tende a pensar o tempo sacralizando-o na imagem de uma “corrente da vida”, um rio largo, em si mesmo onipresente e contínuo, a transmitir seu sentido de geração em geração, devendo ser por nós preservado em paciente equilíbrio enquanto se prolonga generosamente. Já André apresenta o tempo como um campo de investidas adventícias e interceptações; de lances que exigem tanto esticadas esperas quanto súbitas deflagrações: “o tempo é versátil [...], porque existe o tempo de aguardar e o tempo de ser ágil”.243 Daí por que, quando vai capturar a pomba ou seduzir a irmã, um mesmo pragmatismo (“era uma ciência de menino, mas uma ciência complicada”)244 vem percorrer a vida e o tempo em função do jogo de forças e de domínio que comportam.

3.4. Restrições ao caráter arbitrário na escrita

Se toda teoria interpretativa em Nassar deve nos conduzir, pelo seu próprio jogo interno, em direção às efetuações concretas sobre o corpo, não temos mais o direito de cometer o equívoco, a essa altura grosseiro, de pensar que sua amplamente divulgada inter-

241 RODRIGUES, André Luis. Ritos da Paixão em Lavoura arcaica. São Paulo: EDUSP, 2006. 242 Especialmente concentrados nos capítulos 9, 17, 29 e 30. A atribuição dos discursos ora ao pai e ora a André encontra no filme 243 LA, p. 164-165. 244 LA, p. 169.

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referencialidade e seus repasses analógicos — para não dizer seus transplantes anedóticos — encerram um campo de pesquisas realmente satisfatório. Nada estará feito enquanto não remetermos todo o conjunto dessas referências a uma genuína fonte imanente a todas, e de modo unívoco. Pois a essa altura não podemos mais assumir tais referências como se estivessem orientadas por uma manobra puramente intelectual e diletante, assim como se houvessem sido colecionadas propositadamente em função de se remeterem a um dado sentido arbitrário e planejado de modo mais ou menos neutro pelo autor; tampouco podemos ainda supor, de maneira inversa e pretensamente mais visceral e intensa, que tal sentido, qualquer que fosse, tivesse orientado a recolha dessas referências tão apenas por ter se tornado ele mesmo um mísero objeto de vício que tanto teria aprofundado quanto atrofiado as decisões do autor sob os infames limites de uma estreiteza maníaca. Enquanto mantivermos essa polarização, teremos por um lado a hipótese demasiado fria de um voluntarismo consciencioso e por outro a hipótese demasiado inflamada de um vitimismo passional. Mas reparem que ambas partem do pressuposto pueril de que não haveria uma necessidade interna, vivida como algo eminentemente problemático e sobre a superfície concreta do corpo e dos humores, nos quais essa multiplicidade de referências pudesse enfim encontrar um sentido. É que ambas as hipóteses insistem na tese de que a unidade poética, seus elementos e articulação são em última instância frutos de uma simples arbitrariedade. E isso é completamente inadmissível. Nem uma nem outra sobrevive à mais leve passada de olhos sobre o mais superficial em Nassar: sua biografia. De fato, tudo ali se interrompe, nada se acumula no sentido de gerar qualquer arco que se pretenda caracterizar por algum esforço globalmente submetido, por exemplo, a um dado tema de coleção. É nessas rupturas, mais do que suas continuidades, que fundamos uma leitura mais corajosa e efetiva. Veja-se o caso da ligação de Nassar com a própria literatura, a qual abandonou logo após publicar seu primeiro livro. Tudo o que mais tarde Nassar nos diz acerca de seus motivos insiste em atestar declaradamente a completa impossibilidade de sua literatura fazer-se por meio de um gesto mais leviano e de alguma maneira arbitrário. Em entrevista à Veja nos diz:

Literatura para mim é coisa do passado. Não acredito que se possa recuperar aquele impulso vital que leva alguém a mergulhar de cabeça numa atividade. Depois que se perde isso, a gente tem mais é que cair fora. Não se faz literatura para valer com paixão requentada. Mesmo a literatura mais pessimista, aquela que afirma que o nosso mundo é o pior dos mundos, acaba até se desmentindo pelo entusiasmo com que se expressa. Já disseram que a voz sem entusiasmo jamais será ouvida. (SABINO, 1997)

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Essa sensação convicta de não poder retomar tal impulso vital por uma decisão arbitrária esvazia a hipótese voluntarista. Por outro lado, o simples fato de ter um dia abandonado a literatura esvazia a hipótese vitimista — pois que vício, enquanto é sempre obstinação, poderia permitir ao viciado tamanha folga e observância às flutuações passionais sem trair-se? E a todo tempo vemos que Nassar tem suas atenções voltadas para as demandas dessas flutuações, de modo que também sua posição como leitor não encontra maiores dificuldades em variar independente de qualquer opinião mais razoável e “motivacional”, bastando simplesmente o fato patente e interiormente vivido de que certa obra por exemplo não suscita mais o mesmo afeto de antes. É exatamente assim que diz em entrevista à Folha de S.Paulo: “Como eu li Jorge de Lima... Hoje eu pego Jorge de Lima e (dá de ombros).”245 Do ponto de vista do que Nassar chama ora de “impulso vital” ora de “vibração da vida”, portanto, parece haver um trabalho mais insondável no nível explícito da consciência, mas em cujo concurso profundo e ainda confuso de maturação e de repasses efetivos encontra todavia um modo de produção. Toda uma necessidade interna que segue tanto dispensando as decisões levianas que se possa traçar na superfície de um projeto, em seu nível formal de elaboração, como também se protegendo da entrega exagerada e não menos inconsistente a alguma sedução fundamentalmente exterior ao impulso, que tanto apelaria quanto conduziria ao enfraquecimento deste — quer seja de natureza esporádica (frivolidades, procrastinações e demais desmandos passionais corriqueiros); quer seja mais perene (vícios ou compulsões sedimentadas no caráter). Somente por uma necessidade interna, que sempre tem a ver com uma dinâmica autônoma (todo um jogo de cena), é que tal impulso poderia exorcizar os riscos que ameaçam degenerá-lo. Razão pela qual Nassar vai negar repetidamente as alegações de que os resultados formais a que chega venham de alhures ou devam demonstrar que sua criação tenha estado de algum modo submetida a certos projetos ou preocupações mais explícitas, como que recortando e atraindo o texto a uma forma então previamente estabelecida. Raduan nega essas hipóteses insistindo em apresentar sua poética como uma gestação mais inconsciente. É assim que ele se refere mesmo a seus dois textos mais extensos: 1) na entrevista aos Cadernos, quanto à novela Um copo de cólera:

É que a novela [Um copo de cólera] deveria estar em estado de latência na cabeça, e sabe-se lá por quanto tempo levou se carregando, ou se nutrindo — de coisas amenas, está claro — e se organizando em certos níveis, até que aflorasse à consciência. (CADERNOS, p. 29)

245 [Entrevista a Folha de S.Paulo] BONASSA, 1995.

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2) na entrevista à Folha de S.Paulo, quanto ao romance Lavoura arcaica:

Realmente você fica o tempo todo trabalhando, quando você está de fato envolvido num projeto. Você não sabe bem para onde você está caminhando, mas em algum nível da consciência você sabe. Porque de repente as coisas começam a se encaixar. [...] Aquilo [Lavoura arcaica] não é bolação de momento, é uma coisa que foi muito trabalhada na cabeça, sem eu ter mentalizado a coisa. (BONASSA, 1995)

Está no núcleo da sua atitude poética, portanto, esse convívio com o indecidível ponto por meio do qual se vai reunindo e costurando os ecos menos conscientes e mais múltiplos que rolam memórias, leituras, posições e pensamentos até atingirem o remate irretocável de uma criação. A força literária de Nassar coloca problemas para aqueles acostumados a ver na obra o termo de um conjunto de decisões tomadas. Afinal, se não uma necessidade interna, de que outro modo poderíamos compreender que se tivesse como resultado algo de tão elevada qualidade, e que, por outro lado, esse resultado tivesse sido elaborado por um processo tão inconsciente e até certo ponto independente da persona do autor? Tudo isso constituiria de fato um problema insolúvel não fosse a restrição ao caráter arbitrário na escritura de Nassar, atenta sobretudo a esse processamento especial, de colar os ouvidos na relação entretecida com o movimento vital, ativo e arrojado — daí as incessantes rupturas. Novamente o gesto de voltar-se sobre si mesmo: não como espírito reflexivo ou consciente, mas como corpo que experimenta, em níveis diversos de inconsciência, a própria obra que produz e enquanto a produz. Não seria dessa mesma espécie a produção feita pelos protagonistas de Nassar? Não são a própria obra de André, por exemplo, aquelas suas palavras colhidas como um pomo após larga e insondável gestação? Não é também para a natureza e especialidade desse modo de experimentação que suas palavras estão sempre nos levando? A severidade de sua restrição em relação aos feitos descarnados de qualquer espécie de arbitrariedade entre os variados níveis (de autor, de narrador, de personagem, de tema, de organização formal etc.) faz com que todos eles se deem a partir de um só plano contraído. Tal parece ser a fonte de uma superior necessidade interna: a miraculosa identidade entre o modo com que o autor se lança em sua escrita, o modo com que o protagonista narrador se lança em seu delírio e o conteúdo próprio dessa escrita e desse delírio indistinguíveis do corpo do texto. Note-se que não são apenas semelhantes, e, como vimos, tampouco poderiam ser arbitrariamente assemelhados: são o mesmo. Ou seja, toda a sua multiplicação em camadas diversas não surge por acréscimos sucessivos ou coordenados, mas por essa miraculosa identidade fundamental. Tente-se por exemplo distinguir tais níveis em passagens como esta:

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Onde eu tinha a cabeça? [...] que frutos tão conclusos assim moles resistentes quando mordidos e repuxados no sono dos meus dentes? [...] que semente mais escondida, mais paciente! que hibernação mais demorada! que sol mais esquecido, que rês mais adolescente, que sono mais abandonado entre mourões, entre mugidos! onde eu tinha a cabeça? (LA, p. 121-122)

3.5. Caracteres de uma segunda natureza

Não poderíamos chegar a essa fonte onde se contraem as múltiplas camadas de sua linguagem (necessidade interior); a esse ponto onde se conectam os variados traços e elementos aos quais o texto de Nassar sempre retorna e insiste (repercussões notáveis); e, por fim, a esse núcleo transfigurador no qual tais traços resgatam-se na vez de afetos singulares sobre as disposições do corpo (teoria da interpretação); não poderíamos sequer nos dirigir a tal fonte sem que tudo isso acarretasse condições metodológicas muito específicas quanto ao critério. É preciso buscar uma perspectiva de leitura que se posicione para além dos termos, das coisas, das formas e mesmo do apurado trabalho de linguagem que se contentasse à superfície do texto; uma perspectiva que tenha a generosidade de nos permitir tomar a criação literária não por seus produtos — nem bem por seus planos de produção —, mas sim por suas fontes, pela imersão num singular acontecimento, vivido como experiência criadora. Fico com o conselho de em seu Fundamento da investigação literária, quando, numa busca equivalente, nos aponta aquilo que se deve ter como objeto superior da investigação literária: “Não é uma coisa que se diga, é a fonte do que se diz”.246 Aqui já se começa em perigo, pois “fonte” não apenas é uma palavra demasiado vaga como tem de sê-lo, tanto mais se recusamos reduzir a análise a simples “algo que se diga”. Mas, talvez seja justamente essa nossa severidade, essa necessidade austera de sermos vagos, ou até mesmo de nos calarmos, o que enseja a outros falarem de modo tão generalista, e tão prolixamente. É que, quando recuamos, liberamos o campo da crítica e da teoria literárias para um pernóstico tipo de exercício que então passa a arrogar não só a legitimidade, mas a prioridade de habitá-lo. Sei que não recuamos sem motivo. Sentimos que trairíamos essa fonte esquiva com palavras que, quanto mais competentes, começariam a substituí-la e a desviar nossos olhos dela mesma. O máximo que poderíamos alcançar com tais tentativas estaria, presumimos, fadado a degenerar seu sentido, sempre mais vigoroso em suas nascentes do que escoado em nossas palavras. Eis o corriqueiro preconceito de artistas e escritores em relação

246 PORTELLA, Eduardo. Fundamento da investigação literária. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1974, p. 74.

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aos críticos — do qual o próprio Nassar, aliás, é tributário. preconceito que não parece ser de todo equivocado, pois há de fato muitos meios de se falar e falar de uma obra sem que nem mesmo se tenha tocado ou sequer pressentido suas fontes: levanta-se uma dada biografia, entrevista-se as idiossincrasias de seu modo de trabalhar, recorre-se ao contexto social desde o familiar até o planetário, impõe-se associações aos pensadores mais díspares, arrasta-se termos a desdobramentos etimológicos, mapeia-se o progresso da sua inserção nos diversos meios (acadêmico, literário, editorial, cultural, histórico etc.), estuda-se sua forma, mede-se ligações com correntes e estilos, festeja-se novidades, decide-se por um recorte. É espantoso como pode-se realizar tudo isso como meras etapas de um trabalho burocrático — apesar de essas abordagens no geral estimularem inclusive bastante engenho. Nada disso, porém, é capaz de garantir acesso ao valor propriamente poético de uma obra. Torna-se indispensável então se retomar uma discussão básica não apenas para a literatura, mas para a arte de modo geral: afinal, pode-se dizer que algo é efetivamente poético ou literário a partir do quê? Essa questão é ainda mais encaracolada no caso de um escritor que abandona a literatura, e que, como se não bastasse, dá declarações nas quais parece estabelecer uma equivalência radical entre o valor de uma criação literária e o de uma tarefa ordinária — como a da criação de galinhas —, achatando-as portanto a um mesmo nível. Há aqui mil armadilhas. Se formos apressados na compreensão de sua posição, correremos o risco de supor que ela de fato descarta totalmente algo como uma qualidade ou um valor propriamente artístico, poético ou literário, e que considera nada mais haver que nos permita legitimamente avançar para além daquele tipo de valor, que se estabelece nos termos ordinários da cultura segundo o trabalho exterior de um conjunto de convenções correntes. Daí só nos restaria passar a apontar o mercado, o meio acadêmico ou os círculos de letrados e afins no lugar dessa fonte. Pensaríamos que o que Nassar estaria nos legando com tal declaração seria da ordem de uma acusação de contingência ou de relatividade generalizada que não dá brechas a nenhuma exceção especial ao poético, talvez para com isso nos lembrar que um valor nunca é um fato, mas sempre uma produção social. Dessa perspectiva, não haveria mesmo nada de essencial no valor de uma criação literária que, em última instância, devesse impedir a comparação com o valor de uma criação de galinhas — haveria apenas um efeito determinado por um processo cultural que faria tanto uma quanto outra aparecer sob este ou aquele valor. Enfim, isso que aparece a nós não poderia passar de um valor entre outros de espécie estritamente cultural, sendo toda diferença entre eles sempre de grau, nunca de natureza. Mas pode-se admitir isso? Pois, se o admitirmos, acataríamos a ideia de que não existe acontecimento artístico ou poético enquanto tal, mas apenas acontecimentos culturais em

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geral, entre os quais aqueles que apenas assentimos por artísticos graças a um efeito de atribuição social determinado. Não é difícil ver o quanto essa consequência, apesar de aparentemente partir da declaração de Nassar, vai na direção oposta a tudo o que até aqui nos foi dado apreender de sua própria poética e de seu ethos. Como dissolver esse aparente paradoxo? Como poderíamos permanecer naquela pressuposição de uma tão rigorosa e rica insistência no pensamento de Nassar, de cuja fonte tudo o mais vem brotar como que por uma necessidade interna, se começamos convenientemente a dispensar declarações que a ela se furtam? Para que se possa manter tal pressuposição, temos que fazer o movimento inverso: enquanto houver uma rês perdida, é a imagem que fazemos dessa necessidade interna quem deve ainda estar suspensa. Tenhamos calma, “que o gado sempre vai ao poço”.247 Já sinto aqui o peso daquelas duas constatações feitas anteriormente: 1) do preconceito acerca da vontade de explicar — pois parece-me que ela terá de ficar mais acirrada e aguda para que se possa avançar aqui; 2) e também do preconceito quanto à vagueza dos termos e conceitos que vêm nos socorrer em tais tentativas. É como se no primeiro caso se acusasse um ímpeto colegial e caduco, e, no segundo, se extraísse a prova de seu fracasso por uma insistente remissão de suas falas a um registro emotivo e solipsista. E é em meio a esses preconceitos que corre aquele outro acerca da natureza do valor poético, já que afirmam, cada qual como uma etapa específica, que ele é primeiro inefável, em seguida incomunicável, até que, como resultado, inexistente — nunca teria passado de um mero efeito de produção social ou uma ilusória e propalada impressão particular. Tudo isso só poderia gerar uma ampla insatisfação por parte dos criadores, como notara Lisette Lagnado:

É conhecida a insatisfação do artista diante das teorias sobre a criação. Quando uma obra propõe um problema de percepção, todas as tentativas para cercá-la parecem deslizar sobre uma totalidade silenciosa. Mesmo ávidas em agarrar seu objeto, palavras sofrem danos e gastos, submetidas a uma força entrópica. (LAGNADO, p. 371) 248

Vimos que para Nassar todo valor se funda no que chama de “vibração da vida”, sugerindo-nos que a insígnia a distinguir a arte também há de ser algo vivido como uma experiência e um acontecimento singular, em inevitável contraste com seu polo explicativo ordinário, porém, oposto e desprovido: o de valor cultural. Por isso, Nassar coloca algo

247 LA, p. 264. 248 LAGNADO, Lisette. “A instauração: um conceito entre instalação e performance”. In BASBAUM, Ricardo (org.). Arte contemporânea brasileira: texturas, direções, ficções, estratégias. Rio de Janeiro: Rios Ambiciosos, 2001, p. 371-376.

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decisivo para a formação do próprio leitor. É pedagógico que seus protagonistas venham fruir os efeitos e desdobramentos de suas imersões criadoras apenas na medida em que estes seguem imanentes a uma modificação íntima e, por assim dizer, global, isto é, a uma re- constituição de si numa segunda natureza. É que no limite não se trata de mero ganho quantitativo ou de grau, mas qualitativo ou de natureza, montando-nos o programa circular de uma elaboração ativa de si e daquilo que experimenta em si (e ainda como modificação de si, de seus humores). Se a necessidade de se atingir essa segunda natureza é algo básico para o artista — por assim dizer, a sua porta de entrada — a exigência não parece, por outro lado, poder ser menor em relação ao público. Veja-se o quanto André (LA) insiste em ser ainda expectador do que nele se dá: uma percepção criadora. Veja-se o quanto o chacareiro (CC) segue o mesmo elã: é um trabalho de saboreada devoção este ao qual se entrega sob os tratos da mulher durante o banho, ou depois, contornando-a para afundar ainda mais na distância de seus pensamentos. Em tais momentos, o texto nos entrega o amor pela afetividade muda entre as coisas — é isso que fala a nós; é também o conteúdo de sua fala; e, ao contrário daquele preconceito, é isso que ao invés de recomendar o recuo da fala, exige uma fala superior: poética. A criação sempre começa no interpretar. E seu objeto extraordinário exige uma atenção extraordinária tão só para nascer. As palavras inebriadas de André não são algo vagas por força de qualquer imprecisão degenerativa, mas, ao contrário, o são justamente por conta de um rigor ainda mais elevado: evidência. Não é difícil ver que esse programa é um ritual inteiramente voltado a converter o sujeito num plano de experimentação, onde as palavras têm o peso de verdadeiros conceitos. Quando se diz e se repete em Lavoura arcaica a expressão “sono de planta”, por exemplo, somos logo assaltados por uma evidência, configurada de imediato, invocando em nós essa muito específica experiência na qual certo estado de desatenção se confunde com certa atividade, a dos seus próprios movimentos de pensamento, que se confundem em troca com aquela atenção capaz de se antecipar e filtrar cada percepção que recolhe, confundindo-se, em recuo, com a inatividade de um corpo que se deixa afetar e que se quer assim fruir. Ali, a ação poética criadora torna-se indistinguível de uma vivência poética do acontecimento (uma especial percepção, performadora, de algo ou de si). Isso para dizer que noções tão contrárias (atenção e desatenção; atividade e inatividade) não poderiam compor simultaneamente a unidade de uma ideia tão outra sem que esta portasse necessariamente uma qualidade ainda mais alta e precisa, capaz de fazê-las funcionar num nível superior ao das suas mútuas divergências, transfiguradas por meio de uma especial formulação cuja carga poética há de ser sempre proporcional ao seu rigor conceitual, e cuja vagueza sempre proporcional à sua força de evidência.

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3.6. O inalienável no valor poético

Tudo isso pode sugerir uma metodologia muito heterodoxa, portar um aspecto inicialmente nebuloso. É preciso invocar alguns marcadores a esse tipo de abordagem antes de se prosseguir, pois não pretendo sequer apresentar algo propriamente novo e inconfessado, mas algo que se monta e se transmite ao largo, ainda que à boca pequena: na boca de artistas e poetas. Temos de reencontrar tais vozes consoantes nos mais diversos cantos da criação. Comecemos por notar que não são poucas as análises que alienam a diferença de natureza entre um gesto desprovido e um gesto poético. E o fazem em parte porque o poético é de fato uma atribuição embaraçosa, dadas as controvérsias de sua comunicabilidade249 — como também não nos deixa esquecer toda a discussão acerca do chamado “fim da arte”. Entretanto, a interioridade do gesto que percorre uma expressão poética, a apreensão genética de seu próprio elã (enquanto dele participamos), não me parece ser algo que se permita assim extraviar tão facilmente, já que por seu intermédio recolhemos cada gesto no seio de um plano inequívoca e imediatamente sensível a eles — tal como não ocorre e não poderia ocorrer em atividades culturais stricto sensu. Ademais, não pretendo considerar aqui como um dever de pesquisa suspender do alcance certas noções que já nos são íntimas sob a torpe alegação de que tais só teriam validade se as reencontrássemos por outra via — a da análise demonstrada por argumentos. Se o dançarino pode se ver repentinamente desligado de sua dança, lançando gestos a esmo, é porque nem mesmo então lhe escapa o critério que o expõe e que acusa sua eventual precariedade. Nem mesmo então deixa de participar do próprio senso ativo do qual se vê ora mais perto, ora mais longe; ora apartado, ora nele. Dada a relação proporcional entre força poética e rigor conceitual, vista anteriormente, ocorre-me buscar alguns relatos também muito sintomáticos dessa aproximação dos criadores com o núcleo criativo de suas atividades. No geral, a pesquisa feita nos termos das relações culturais nos acostuma aos aspectos objetivos e/ou do contexto. E mesmo quando estamos por vencê-los caímos seduzidos pelos indícios de uma intencionalidade que, por mais recôndita, é por nós retida apenas nessa beira rasa das marcas que deixa sobre uma obra: ali onde se possa ler as escolhas voluntárias e reconstituir uma autoria. Não é por menos que o “traço da autoria”, ou seja, tudo o que nos permita ler (reconstituir e acompanhar) as decisões que o artista tomou para produzir sua criação é uma conhecida reivindicação de Greenberg para que a obra legítima comunique sua

249 Sobre a questão de uma comunicação não conceptual, cf. “Algo como: ‘comunicação... sem comunicação’”. In: LYOTARD, Jean-François. O inumano: considerações sobre o tempo. Lisboa: Estampa, 1990.

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250 qualidade. Ora, aqui não pretendo buscar a superação dos elementos objetivos da obra em troca das manobras de uma autoria mais difusa. A qualidade poética deve estar em ato enquanto se produz; deve ser o critério ativo da produção, ainda que não seja comunicável e nem analisável enquanto tal. Como efeito dessa comunicabilidade retraída — para dizer o mínimo —, vemos se fortalecer contemporaneamente a noção de criação despojada: toda uma ética da entrega, do afrouxamento dos controles, da importação dos desvios (sistemática ou não), da permissividade e do gesto aleatório.251 Note-se que tal simplismo impede-nos de ligar essa noção com aquela de Nassar, que vimos ser muito mais rica e comportar maior ambiguidade sob ideias inicialmente díspares — como “atenção”, “desatenção”, “atividade” e “inatividade” no sono de planta. Logo se vê que não alcançam a força desta letargia que o personagem André sobretudo nos apresenta. Antes, a irradiação pelo senso-comum dessa criação despojada e dessa ideia de esvaziamento do crivo poético se amplia na medida em que se coloca em suspenso aquela qualidade afirmativa que deve nos orientar e nortear aqui, e sem a qual a prática poética, o objeto de sua atenção e seu tônus singular perigam ser reduzidos a uma extravagância do espírito, a uma paixão ensandecida por algum tema, métrica, cor, forma, ação, imagem ou, mais frequentemente, a uma renúncia ou superação ideológica ou de métier — o que sempre duplica a negligência. Enfim, a imagem do fazer poético como algo vulgar e sua consequente vocação depreciativa, quanto mais em vista da atestável onipresença dessa imagem nos diferentes níveis da cultura contemporânea, denota uma relevância considerável a todo e qualquer interesse franco que visa contrariá-la. William Wilson III propõe em suas investigações, nas quais invoca sistematicamente certa tensão especial do gesto artístico, algumas restrições com as quais tenta também contornar o avanço desse despojamento: “Como é que o leigo deve fazer para conhecer o que é boa arte? [...] arte não é entretenimento, é trabalho; não é um lazer ou um prazer passivo, é um processo de pensamento ativo; não é uma questão de gosto, é uma questão de provar o que é real.”252 Podemos considerar vagos os termos positivos de sua proposição (trabalho,

250 Cf. GREENBERG, Clement. “Seminário seis”. In FERREIRA; MELLO (org.). Clement Greenberg e o debate crítico. Rio de Janeiro: Funarte Jorge Zahar, 1997. 251 desenha essa linha de artistas que encontrariam na figura de Mallarmé seu ponto irradiador. (CAMPOS, Haroldo de. Arte no horizonte do provável. São Paulo: Perspectiva, 1977). Contudo, conforme Deleuze, “Mallarmé é o lance de dados, mas revisto pelo niilismo, interpretado em perspectivas da má consciência e do ressentimento. Ora, desligado de seu contexto afirmativo e apreciativo [...] o lance de dados não é mais nada. O lance de dados não é mais nada se nele o acaso é oposto à necessidade.” (DELEUZE, Gilles. Nietzsche e a filosofia. Rio de Janeiro: Editora Rio, 1976, p. 18, grifo do autor). 252 WILSON III, Willian. “Arte: energia e atenção”. In BATTCOCK, Gregory. (org.). A Nova Arte. São Paulo: Perspectiva, 1973, p. 286.

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pensamento ativo, real), porém, vê-se que os termos que nega (entretenimento, lazer, prazer passivo, questão de gosto) dá mostras de sua vocação em contrariar tal caráter de descompressão que ronda o fazer poético. Mas talvez fique ainda formulada de modo muito polarizado, ensejando posições equivocadas que, caudatárias de um exagerado estoicismo ou marxismo, vêem nela a sugestão de que só o suor do trabalho se poderia converter em obra poética. Esse modo de condensação da vida em arte não pode nos convencer, tanto mais porque insistiria numa separação entre o artista (como aquele que faz) e o público (como aquele que não faz). Vimos que em Nassar o ponto de produção e o ponto de experiência do poético coincidem, no que sugeri chamar de percepção criadora. Pode-se depurar o sentido de “trabalho” e de “pensamento ativo” de maneira que por meio desses termos se alcance uma ação mais imperceptível e esquiva, mas que seja contudo positividade. De outro modo não chegaremos a ouvir bem o jogo paradoxal entre atenção e entrega tal como o apreendemos no sono de planta de André (LA). O que deve nos interessar no percurso que ora se realiza é a singularidade do fazer poético e suas estratégias, buscando nesse fazer os testemunhos acerca de um preciso jacto de produção ao qual o artista vincula suas disposições; do qual, é verdade, não tem senão uma posse bastante instável e uma motivação bastante confusa; mas sem o qual ele se extravia, perde o fio, lançado que é de volta ao chão rasteiro da vida ordinária e dos signos da simples cultura. Sem tal jacto ele de fato ainda pode (até pode) produzir uma dita obra, mas apenas como que às cegas, vazia de qualquer transfiguração de sua experiência. Nosso modelo ideal aqui tende ao caso de Gauguin, que nas palavras de Argan: “explora a si mesmo para descobrir as origens, os motivos remotos de suas sensações”.253 Por não se tratar de um tema compilável, pretendo recorrer a bases afirmativas mais dispersas e laterais, mas com a vantagem de assim podermos medir quaisquer eventuais distâncias dessa instauração conforme se dá na escrita, na música, na fotografia etc. Roland Barthes, por exemplo, forjou um conceito para esse sentido de presença ao tratar da fotografia e sua veracidade; chamou-o de “ar” e com ele pôde nos convencer com aquela sensível facilidade de quem fala de uma evidência: “O ar (chamo assim, por falta de melhor, à expressão de verdade) é como que o suplemento irretratável da identidade.”254 Como ele poderia nos explicar tal conceito se não contasse com a nossa apreensão daquilo mesmo que faz aparecer justamente quando vem adquirir seu significado? Tais conceitos, quando se dirigem a uma apreensão interna ou a uma evidência, fazem sempre um apelo dêitico. Com Barthes, esse

253 ARGAN, Giulio Carlo. Arte moderna: do iluminismo aos movimentos contemporâneos. São Paulo: Companhia das Letras, 1999, p. 130. 254 BARTHES, Roland. A câmara clara: nota sobre a fotografia. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1984, p. 160.

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conceito de “ar” da fotografia, conforme se estabelece, apresenta um duplo aspecto: 1) o “ar” não é uma garantia da prática fotográfica: não basta ser fotografia; 2) mas também não se deixa preceder por instâncias exteriores que o afirmariam ou o negariam segundo toda sorte de convenções: não se trata de gosto ou “produção social”. Trata-se de uma evidência. “Nessa foto de verdade o ser que amo, que amei, não está separado dele mesmo: enfim ele coincide. E, mistério, essa coincidência é como que uma metamorfose.”255 O que está então em jogo é precisamente a sobrelevação dessa presença, é olhar com propriedade. Apanhar essa insólita expressão de verdade é o que poderíamos chamar de gesto poético da fotografia, ao menos em contraste com tudo aquilo que não passaria de meros retratos de ausências. Sobre tais ausências, o saxofonista Lester Young dizia (em gíria) que também a música fica machucada, que também o músico se machuca quando entram notas de repente vazias e desligadas; e perder-se do fio em que os músicos se perseguem mutuamente era já uma questão de saúde. Lester Young alertava que se isso acontece, se alguém se machuca, muitas vezes não se consegue mais retornar à música. Tal era o sentido das famosas disputas entre Big bands norte-americanas: “manter-se” como sendo o equivalente de “variar” — e nem sequer se vivia esses termos como opostos. O mesmo vale para o teatro, como o afirmado nas palavras preciosas de Stanislavski, dizendo-nos que em cena, “quando a linha contínua se interrompe, o ator deixa de sentir o que está fazendo”.256 Essa fragilidade da linha contínua a torna tanto um objeto ideal quanto um horizonte concreto para as pesquisas cênicas — uma vez que é tanto o ponto abstrato de fixação (enquanto formalizamos metodologias) como o feixe concreto de modulações (enquanto o absorvemos em ato). A linha contínua estipula uma espécie de meta para o ator que, se a apreende, então “vive o papel, independente de sua própria vontade, sem notar como se sente, sem se dar conta do que faz e tudo se encaminha por conta própria”.257 Repare-se como “entrega” e “atenção”, esse par de ideias inicialmente opostas, concilia-se na apreensão de uma tal linha contínua. E podemos antever suas consequências para nós: se a entrega aqui é tal que deve varrer a consciência voluntariosa para longe do conceito de atenção, também esta atenção é tal que deve espantar todo o niilismo que reclama pelo monopólio da noção de entrega. Pois alcançar esse fio de presença que nos liga a nossos gestos não basta para nos sustentar nele próprio. Sempre corremos o risco de nos machucar em novas interrupções. Ainda no teatro, alerta-nos

255 BARTHES, 1984, p. 160. 256 STANISLAVSKI, C. A preparação do ator. 10 ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1991, p. 269. 257 STANISLAVSKI, 1991, p. 42.

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Roubine: “não basta impor de saída a presença de um personagem. É preciso fazê-la durar”.258 Vê-se que o grande objeto problemático na pesquisa e nos investimentos desses artistas é algo tão esquivo quanto vivo, isto é, algo cujos apontamentos teóricos começam no ponto em que já o assumem dado em sua evidência, axiomaticamente. Começam no ponto em que toda questão é posterior, estratégica: como alcançar, lidar, manter-se nele. A indicação de Barthes, a gíria de Young, as alusões de Stanislavski e Roubine não fariam o menor sentido se não soubéssemos de imediato a que se referem — ou nenhuma explicação poderia nos socorrer. Mas de que maneira podemos investigar o que constitui a natureza periclitante de uma tal duração? Certamente comparando-a com a de um gesto oposto, chamemos de gesto impróprio, isto é, aquele cuja realização desprende-se do próprio devir, falsificando-o. Esse gesto torna-se então mais que um simples ponto cego sobre o qual se poderia atravessar para retomar o fio dessa duração no momento seguinte. Ele se converte efetivamente num obstáculo, atrita e desanima o movimento de criação. nota isso acerca da pintura, acompanhando uma diversidade de encruzilhadas traumáticas e suas respectivas precipitações e arrebatamentos sobre o fazer artístico: desviando-o, interrompendo-o ou estabelecendo seu andamento de fora – intempestivamente.259 Ainda a respeito da pintura, Henry Geldzahler tenta estabelecer essa noção do artista que deve criar não apenas seu trabalho, mas também as suas primícias: “Os grandes homens permanecem em contato com as fontes de sua própria criatividade, e estão constantemente recriando o impulso e a energia que devem animar o seu trabalho.”260 O efeito venenoso que um passo vazio pode acarretar para a engrenagem e fonte através da qual extraímos aqueles verdadeiramente poéticos sempre alarma os artistas enquanto estes se veem às voltas com sua inspiração. Ainda conforme Geldzahler: “O problema da fecundidade e da excitação criadoras e um nível mantido de inspiração e execução é muito mais agudo nas imagens repetidas e despojadas de hoje. [...] Tal é a força da arte e daí decorre o seu vazio quando não é boa. Tudo está ali, exposto, para quem quiser ver.” 261 É mesmo apenas em torno dessa tal fecundidade e excitação, bem como de seus dilemas concretos, que podem surgir discursos e conceitos cujo aspecto vago e cuja presença

258 ROUBINE, Jean-Jacques. A arte do ator. Tradução: Yan Michalski e Rosyane Trotta. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1987, p. 81. 259 Cf. OSTROWER, Fayga. Acasos e criação artística. Rio de Janeiro: Campus, 1995. 260 GELDZAHLER, Henry. “O público de arte e o crítico”. In BATTCOCK, Gregory (org.). A nova arte. São Paulo: Perspectiva, 1973, p. 80. 261 GELDZAHLER, p. 80-81.

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de pontos axiomáticos (evidências) não sejam pretextos obscurantistas, e sim consequências estritamente pragmáticas. Consideremos o ponto de vista do criador (na fotografia, no teatro, na música, na pintura etc.). E sempre se fala de “inspiração”. Mas tememos nos perder em meio a um conceito tão elástico que se furta antecipadamente a qualquer exigência de precisão. Contudo, é ainda por tal razão que podemos encontrar, junto à dinâmica que esse termo envolve, algo que não nos deve escapar. Por exemplo, já voltando ao plano da literatura, deve-se destacar certas notas do pensamento de : sua insistente desconfiança de que uma expressão vazia pode mais do que nascer degenerada de sua fonte, ela pode mesmo ser-lhe degenerante. Nas suas insubstituíveis palavras: “sobretudo tenho medo de dizer, porque no momento em que tento falar não só não exprimo o que sinto como o que sinto se transforma lentamente no que digo.”262 Podemos segui-la em sua procura; conforme faz seus personagens viverem no interior de gestos repentinamente assaltados por um brusco esvaziamento (como em “Evolução de uma miopia”), ou de súbito mergulhados em um preenchimento não designável (como em “A mensagem”).263 Dir-se-á que tais experiências não são qualificadamente artísticas; que falam de algo que pode nos acontecer em qualquer lugar e a qualquer momento em vez de nos espaços reservados à arte. Ora, mas não é justamente a dissolução de quaisquer espaços e objetos previamente considerados como artísticos aquilo que os mais diversos artistas tanto vêm reclamando para a própria arte há mais de um século? Pois, tampouco eu busco aqui o sentido do poético pela via das engrenagens institucionais ou de objetos e espaços pretensamente privilegiados, e sim pelo que de efetivamente poético nos liga ou pode nos ligar mesmo a um acontecimento avulso, contanto que transfigurado pela experiência que dele fazemos. Contento-me em responder simplesmente que o óbvio deve ser mais forte que a prova. Ainda nisso, sigo Clarice: “É que 264 o erro das pessoas inteligentes é tão mais grave: elas têm os argumentos que provam.” E não faltam mesmo relatos dessa ampliação no campo da arte e da literatura. André Breton era assíduo fomentador de práticas e métodos voltados ao automatismo psíquico e aos estados oníricos e desarmados, como vias não apenas de produção poética junto a objetos pressupostamente artísticos, mas também de simples estar no mundo, entre objetos quaisquer.265 E essa abertura radical, esse mergulho em regiões aquém da consciência prática,

262 LISPECTOR, Clarice. Perto do coração selvagem. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1980, p. 20-21. 263 Idem. A legião estrangeira. Rio de Janeiro: Editora do Autor, 1964. Tanto “A mensagem” quanto a “Evolução de uma miopia” são contos publicados nesta edição. 264 Ibidem, p.139. 265 Cf. BRETON, André. Manifestos do surrealismo. Rio de Janeiro: Nova Editora, 1984.

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tinha por mote e espanto não o aparente esvaziamento e exaustão do espírito, mas aquele tipo de experiência em que esse abandono e ausência são redimidos nos brancos de uma positividade insuspeita, onde inusitadamente adquire uma dimensão aberrante, coincidindo com a amplitude do próprio acontecimento — Breton o chamava (em citação a Hegel) de “acaso objetivo”. Segundo nos explica Rosalind Krauss:

A noção de acaso “objetivo” tem origem no fato de as energias do inconsciente funcionarem com propósito oposto à realidade. Ela prevê que a libido, agindo do interior do indivíduo, dará forma à realidade de acordo com suas próprias

necessidades, encontrando na realidade o objeto de seu desejo. (KRAUSS, p.132) 266

A suposta impropriedade dessa ação automática seria apenas meramente superficial, mascarando uma adequação profunda que permaneceria obscura para a consciência enquanto tal. Todavia, essa entrega não configuraria um afrouxamento da ação, mas, ao contrário, uma escuta quase mística de disposições nascentes, de modo a cooperar com suas direções (ainda que sem conhecimento de seus fins) até que o acontecimento (a princípio ordinário) se componha; até que o próprio acaso seja absorvido de sentido e todo o processo seja finalmente vislumbrado em sua marca epifânica (então poética). Castañeda chama de “augúrio” uma tal experiência, situações tais como quando Dom Juan lhe diz: “Portanto, temos de ficar aqui e verificar que tipo de augúrio o seu poder está compondo.”267 Trata-se de quando o feiticeiro Dom Juan sente que deve esperar por algo, sem saber o quê e nem por quê. Algo unívoco àquilo que Breton designa “acaso objetivo” e que implica a estranha conciliação entre entrega e atenção, tal como o vimos a partir de Stanislavski, e, pairando em nosso horizonte, do sono de planta de André em Lavoura arcaica. Nas palavras de Fayga Ostrower: “Constituem sempre eventos imprevistos e surpreendentes. No entanto parecem ocorrer num momento exato da vida, momento por vezes decisivo na realização de certos objetivos.”268 Fayga sugestivamente o nomeia de “acaso significativo”, pois, conforme nos diz: “sabemos imediatamente que eles não aconteceram ‘por acaso’. São acasos significativos [...] e pode ser um evento em si insignificante — ele é reconhecido de imediato.”269 Assim, tudo gira em torno dos riscos de ausência que ameaçam a tarefa do artista; ausência que nos faz recair no ordinário de nossos gestos, que nos faz perdermo-nos do

266 KRAUSS, Rosalind. Caminhos da escultura moderna. São Paulo: Martins Fontes, 2001. 267 CASTAÑEDA, Carlos. Portas para o infinito, Rio de Janeiro: Record, 1974, p.99. 268 OSTROWER, 1995, p. 2. 269 Ibidem, p. 3.

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alcance dessa positividade vaga, que nos faz interromper de súbito a linha contínua da nossa atuação e nos deixa assim repentinamente despertos diante da plateia, farsantes nus. E apesar dessa instabilidade com que nos vemos ou de repente instaurados, ou subitamente obstruídos de participar do próprio sentido que nos ativa (ou deveria nos ativar) enquanto nos prolongamos numa ação, notamos que essa ação de todo modo se realiza. E digo “de todo modo” porque, ainda que desplugado, o ator consegue concluir sua cena, o saxofonista ainda soa suas notas, o corpo do bailarino ainda desenha formas no espaço — enfim, o ponto divisor dessa discussão é que a realização do gesto pode até mesmo dispensar esse ingrediente periclitante que é sua verdade mesma. Falsifica-se, muitas vezes sem que isso sequer se faça notar: o que é uma outra maneira de dizer que o artista pode mentir seu gesto. E aqui não se trata de mentir para um outro, mas daquele tipo especial de mentira para si, que Sartre chama de “má-fé”.270 Essa distinção é muito cara à presente pesquisa: há de se dizer, por exemplo, que um ator pode hesitar em sua interpretação, descer do papel sem que, no entanto, o público o perceba. O ator então mente (lhes dá algo no lugar de outro), contudo, ele próprio não poderia deixar de notá-lo, a não ser segundo um tal mecanismo de má-fé:

A má-fé tem na aparência, portanto, a estrutura da mentira. Só que — e isso muda tudo — na má-fé eu mesmo escondo a verdade de mim mesmo. [...] O verdadeiro problema da má-fé decorre, evidentemente, do fato de que a má-fé é fé. Não pode ser mentira cínica nem evidência, sendo a evidência possessão intuitiva do objeto. [...] A má-fé apreende evidências, mas está de antemão resignada a não ser preenchida por elas [...]. Fazemo-nos de má-fé como quem adormece e somos de má-fé como quem sonha. (SARTRE, p. 94-118)

É pela má-fé que um artista — ou um público — medíocre age como se não soubesse; que não se move na direção de um cuidado para com suas disposições a fim de ativá-las; ou que nem mesmo se incomoda com suas ausências (pois talvez nem se possa dizer que as perceba271). Antes, busca os meios de se manter enquanto tal sob as capas de seu ofício; busca quem sabe o amparo da técnica; busca talvez convencer; busca de todo jeito e decadentemente os valores exteriores ao seu trabalho, ou, na falta disso, a simples empáfia vazia de um alegado valor interno que convenientemente nos escapa. Mas nada disso deve nublar o fato de que, por outro lado, os mais variados criadores verdadeiramente ocupam seus gestos ou participam do próprio acontecimento conforme adentram e perseveram na fonte viva que

270 Cf. “A má-fé”. In: SARTRE, Jean Paul. O ser e o nada: ensaio de ontologia fenomenológica. Petrópolis: Vozes, 1997. 271 Seguindo um jargão tradicional da filosofia, diríamos que ele tem a “percepção”, mas que não tem a “apercepção” (ou consciência da percepção), mas Sartre insiste que tudo se passa na consciência, que trata-se mesmo de uma consciência de má-fé.

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nutre sua dinâmica produtiva. Há o risco real que sempre os ameaça de se perderem no caminho, de não chegarem a tempo naquilo que realizam. Aqui fica claro, ao menos, que apesar dessa diferença de natureza que se dá por sua evidência, de fato não podemos sequer dizer, por exemplo, que a dança autêntica seja inconfundível. É o que Valéry notava em uma belíssima passagem de seu conhecido diálogo A alma e a dança, quando Erixímaco, diante da dançarina Athiktê, assim como quem aponta algo tão vago e improvável quanto evidente, diz:

– Olha! Olha!... Ela começa, estás vendo? Com um andar quase divino: é um simples andar quase em círculo... Começa com o supremo de sua arte; anda com naturalidade sobre o cimo que atingiu. Essa segunda natureza é o que há de mais distante da primeira, mas é preciso que se assemelhe a esta, e tanto, que nos confunda. (VALÉRY, 1996, p. 32)272

Se um simples andar poderá se confundir com a mais elevada dança, já não podemos dizer que seus movimentos se distinguem objetiva e formalmente dos movimentos ordinários, sendo aqueles presumivelmente mais complexos que estes. Ao contrário, Erixímaco diz com todas as letras que não se trata de uma reserva de signos da mesma ordem, não se trata de diferença de grau, mas de natureza: uma segunda natureza. Eis o que um gesto criador atinge, algo que pode reunir certa experiência entre acontecimentos do mundo ordinário em uma transfiguração poética. Nas palavras de Foucault: “Afinal, o corpo do dançarino não é justamente um corpo dilatado segundo um espaço que lhe é ao mesmo tempo interior e exterior?”273 Daí termos que recorrer sobretudo a conceitos que apelam à força da evidência. Daí a necessidade de seguir o fio de um preenchimento interno e ativo do gesto que apreende tal traço em ato, uma linha contínua (Stanislavski), e os riscos concretos que tendem a solapar tal participação ativa, machucá-la (Young). Desse modo, a diferença de grau com que participamos de nossos gestos e ações dá relevo a uma diferença de natureza que nos habilita na distinção entre atividade poética (no sentido amplo de artísticas: não apenas a literária, mas a música, a dança, a pintura, o teatro etc.) e as atividades ordinárias. Esse salto de realidade nos permite chegar a tempo de assistir a conciliação de termos aparentemente opostos, tais como entrega e atenção. Nessa segunda natureza, entregar-se ao que acontece significa o mesmo que ter atenção ao que acontece. Bem conforme a escuta que fizemos de conceitos basicamente heterônimos: “acaso objetivo” (Breton), “acaso significativo” (Ostrower) e “augúrio” (Castañeda). Contudo, ao se reivindicar a evidência — ou seja, a intuitiva

272 VALÉRY, Paul. A alma e a dança: e outros diálogos. Rio de Janeiro: Imago, 1996. 273 FOUCAULT, 2013, p. 14.

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possessão de tal objeto (Sartre) —, vemos todavia que não a encontramos de nenhum modo garantida, redutível a uma prova. Enfim, poderemos sempre nos enganar diante de um caso particular, ainda que este seja o nosso próprio caso, via má-fé (Sartre). Repare-se que a linha contínua do teatro de Stanislavski é relativamente independente do palco teatral; a apreensão do ar de Barthes é relativamente independente de termos sido nós com a máquina fotográfica nas mãos; a atenção ao machucar das notas no improviso jazzístico de Young é relativamente independente de sermos nós a tocarmos o instrumento; a segunda natureza da dança em Valéry é relativamente independente do movimento em sua generalidade. Quando nos voltamos a essa apreensão interna do gesto artístico e poético em seus relatos mais íntimos, tendemos mais e mais a encontrar aquela inusitada identidade do ato criador com o ato receptivo, de modo que a especialidade que há nesse fazer-se artista não se distingue daquela de um correlato fazer-se público. Pois, de todo modo, é um trabalho sempre realizado sobre nossas disposições: uma experimentação simultânea aos dois níveis, ou, como já disse, uma percepção criadora. Desse ponto de vista, é sempre sobre nós mesmos e nossos humores que se podem construir caminhos para o poético, de forma que a obra não se confundirá mais com um objeto ou gesto exteriormente descrito no espaço e no tempo e nem com a enxurrada de significados culturais que reclamam seu posicionamento social, mas se identificará com a vida (do artista ou do público — a essa altura indistintos) ainda que apenas enquanto esta puder se desdobrar numa segunda natureza. Já podemos começar a devolver nossos olhos sobre Nassar: não é algo da mesma espécie isso que o narrador de Lavoura arcaica nos fala quando descreve um segundo sono? Relembro: “não era acaso um sono provisório esse segundo sono, ter minha cabeça coroada de borboletas, larvas gordas me saindo pelo umbigo, minha testa fria coberta de insetos, minha boca inerte beijando escaravelhos?”274 A postura letárgica que reencontramos nas palavras de Nassar pode aqui ser entrevista numa relação decisiva com o poético. Em segundo lugar, o delírio poético que encontra no corpo um suporte ideal não se deixará confundir com uma percepção ordinária em si mesma. Pois sempre se está nesse nível ordinário também apenas porque se tem um corpo, e porque é mesmo sobre ele que se recolhe toda experiência possível. Mas o empenho nos protagonistas de Nassar está em tomar o corpo — e, a partir dele, a própria experiência — nessa segunda natureza, uma que se agita em meio a certa ritualização e da qual ele também está ora nela, ora fora dela. Afinal, o corpo ordinário não é, por exemplo, o corpo-quarto-catedral das páginas inicias de Lavoura arcaica, e se nós o

274 LA, p. 142.

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sabemos é ainda pela via interna pela qual ele é vivido e conhecido por nós mesmos, não por provas ou demonstrações externas. Bastam imagens precisas desfilando seu cortejo uníssono e então sabemos logo que tipo de remoinho se agita no pensamento e espalha pedaços dos sentidos e do corpo entre coisas próximas e memórias distantes, como quando lemos versos assim: “que lousa branca, que pó anêmico, que campo calado, que copos-de-leite, que ciprestes mais altos, que lamentos mais longos, que elegias mais múltiplas plangendo meu corpo adolescente!”275 É esse suporte esquivo que todavia nos atinge diretamente em sua leitura, tal como o fruir irrepresentável de uma musicalidade que também nos alcança primeiro. Um pouco como uma oração, palavras de um devoto e portador de uma fé insolente que não podem ser tomadas como palavras, mas como pistas, indícios e tentativas de se adentrar outra coisa, outra natureza. Essa imersão transfiguradora nos sugere, finalmente, uma apreensão melhor do valor poético como algo não redutível ao ordinário naquela comparação que Raduan Nassar faz entre uma criação literária e uma criação de galinhas. Ora, o que está dito é que ambos os tipos de criação se equivalem tanto em seu sentido cultural ordinário quanto no potencial que a princípio portam de abocanhar a vibração da vida e promover de fato uma experiência de outra ordem: extraordinária. Portanto, não é a realidade do valor poético que está sendo atacada nessa comparação feita por Nassar, e sim o suposto privilégio que esse ou aquele ente ou atividade possui quanto a atingir tal valor. Dito isso, não tenho dúvidas de que bastará ouvirmos a polemizada declaração de Nassar, na estrita dubiedade com que ele a pronunciou, para que toda a querela seja por isso mesmo inteiramente desfeita:

[...] quando me perguntavam o que ia ser eu não hesitava: criador. Sim, criador, e está claro que não no sentido exclusivo, e portanto tolo, de produtor de arte ou literatura, que eu aliás nem sabia o que eram, mas criador de animais. E convenhamos que eu devia estar certo, me passa às vezes pela cabeça que não há criação artística ou literária que valha uma criação de galinhas...276

3.7. A imagem mediadora

A impressão de que pontas inicialmente díspares devam estar reunidas numa amêndoa interior, numa simplicidade fundamental, ocorre-nos sempre que estamos diante de um grande criador (autor, artista, poeta etc.), para quem nada em sua criação é supérfluo ou arbitrário.

275 LA, p. 142. 276 STEEN, 2008, p. 93-94.

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Essa mesma impressão assaltava Paul Valéry quando, em seu Introdução ao método de Leonardo Da Vinci, pôs-se diante do gênio de Leonardo. Ali também sua busca era por uma certa “atitude central” capaz naquele caso de reunir o sentido das mais diversas obras e produções de Leonardo, recusando-se a ver nelas acúmulos sucessivos e exteriores ou engenhosamente arranjados. Mirava uma continuidade interior da qual a complexidade e diversidade externa decorrem. Eis o que nos diz Valéry: “O segredo, o de Leonardo como o de Bonaparte, assim como aquele que a mais alta inteligência possui nela um dia, está e não pode deixar de estar senão nas relações que eles encontram — que foram forçadas a encontrar — entre as coisas cuja lei de continuidade nos escapa.”277 Não demoramos a ver por que Nassar teria de ser apreendido na figura de um grande pensador, de que também nele seus gestos não poderiam ser tomados como séries de ajuntados acidentais, mas sim como expressões generosas e múltiplas de uma necessidade e de um rigor especiais. A leitura de Kierkegaard em relação a Sócrates compartilha a mesma via: encontrar esse filósofo pela apreensão de um único ponto que se desdobra e explica as múltiplas facetas do exterior, mesmo no caso radical de um exterior que se opõe ao interior e, mais grave ainda, de um interior que é ele próprio negativo, além do fato de sabermos dele de modo indireto, já que Sócrates sequer deixou algo escrito. Nada disso impede Kierkegaard de dispensar toda sorte de imprecisão e partir em busca daquilo que julga substancial na existência de Sócrates: a ironia. É assim que procede em seu O conceito de ironia:

Se dizemos que o que constituía o substancial em sua existência era a ironia (é claro que há aí uma contradição, mas também tem de haver), e ainda por cima postulamos que a ironia é um conceito negativo, vê-se facilmente quão difícil se torna fixar uma imagem dele; sim, até impossível, ou então pelo menos tão trabalhoso como pintar um duende com um barrete que o torna invisível. (KIERKEGAARD, p. 26)278

No caso de Kierkegaard em relação a Sócrates, tanto quanto no de Valéry em relação a Da Vinci, nem mesmo a multiplicidade de um e a contradição imposta pelo outro são suficientes para constranger a tentativa de se alcançar uma imagem, a mais significativa, do ethos de suas respectivas existências. Mas o que quer dizer essa imagem? Não seria ainda a tentativa de esgotar ou reduzir tais existências? De modo algum, ou apenas na medida de seu fracasso. Pois seria absurdo supor que se retorna à fonte para dispensá-la, quando o que se quer é vê-la jorrar suas águas inesgotáveis, e se é necessário apontá-la com a mais firme

277 VALÉRY, 1998. p. 23-25. 278 KIERKEGAARD, Søren. O conceito de ironia: constantemente referido a Sócrates. Tradução: Álvaro Luiz Montenegro Valls. Petrópolis: Vozes, 1991.

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precisão é apenas porque inesgotáveis também são as tolices que, estas sim, ameaçam reduzir e esvaziar o sentido de uma obra e de uma existência. Qualquer imagem que pudéssemos formar aqui não seria, por assim dizer, a fonte mesma, mas apenas uma espécie de mediação nos prevenindo de equívocos e recomendando melhores pontos da sua arquibancada. É assim que podemos chegar ao autor que formulou os termos metodológicos desse tipo de investigação a que se lançaram Valéry e Kierkegaard. Falo de Henry Bergson, que em uma conferência pronunciada no Congresso Filosófico de Bolonha em 10 de abril de 1911,279 chamou atenção ao modo de lidar com os textos de um grande pensador. Suas palavras, presumidamente dirigidas ao terreno da filosofia, construíram contudo uma impressionante via de análise, de crítica e de teoria literárias, fundadas na unidade existencial por meio da qual um mesmo gesto simples comporta sobre si, envolvendo e desenvolvendo, implicando e explicando, todo um volume de aspectos heterogêneos então articulados. Como esse é um momento decisivo da presente investigação, será preciso abrir aqui um generoso espaço para a reprodução e acompanhamento mais detido da exposição de Bergson. A começar pela apresentação de seus termos mais gerais:

Mas, à medida que procuramos nos instalar no pensamento do filósofo ao invés de dar-lhe a volta, vemos sua doutrina transfigurar-se. Primeiro, a complicação diminui. Depois, as partes entram umas nas outras. Por fim, tudo se contrai num único ponto, do qual sentimos que nos poderíamos aproximar cada vez mais, ainda que devamos perder as esperanças de atingi-lo. Nesse ponto encontra-se algo simples, infinitamente simples, tão extraordinariamente simples que o filósofo nunca conseguiu dizê-lo. E é por isso que falou por toda a sua vida. (BERGSON, 2006, p. 125)

Como negá-lo em relação a Nassar, se não percorremos seus textos sem acabarmos atraídos a esse ponto em que tudo ali é igualmente sorvido? A contundente impressão de que nenhum detalhe pode ser perdido, porque nenhum detalhe foi desperdiçado em seu gesto. Mas é esse gesto que temos de recuperar. Notar que aquilo que se escreveu não se resolverá bem pela simples contextualização de opiniões e pensamentos, nem pela depuração da semelhança entre perfis psicológicos dos personagens; nem se deixará pensar bem como esquema voluntário ou involuntário do próprio autor a ser de algum modo decodificado. Antes, é um pensamento único, um mesmo osso rigoroso, travestido de todas essas outras coisas. Se por um lado não podemos atingi-lo em cheio, Bergson nos convida à tarefa de ao menos formularmos uma imagem intermediária, que inicialmente será incapaz de escapar à própria

279 BERGSON, Henri. O pensamento e o movente: ensaios e conferências. Tradução: Bento Prado Neto. São Paulo: Martins Fontes, 2006.

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vagueza, mas como apreende seu objeto por uma necessidade superior, portará uma intensa capacidade de recusar os equívocos de leituras mais superficiais. Como nos diz:

O que caracteriza primeiro essa imagem é a potência de negação que traz em si. Vocês se lembram como procedia o demônio de Sócrates: antes bloqueava a vontade do filósofo em um dado momento e o impedia de agir do que prescrevia o que lhe cabia fazer. [...] Diante de ideias correntemente aceitas, de teses que parecem evidentes, de afirmações que haviam passado até então por científicas, assopra no ouvido do filósofo a palavra: Impossível. Impossível, ainda mesmo que os fatos e as razões pareçam te convidar a crer que isso seja possível e real e certo. Impossível, porque uma certa experiência, confusa, talvez, mas decisiva, fala contigo através da minha voz [...]. Força singular, essa potência intuitiva da negação! (BERGSON, 2006, p. 126, grifo do autor)

É curioso que essa potência de negação se reencontra com aquela em que Kierkegaard se embrenhava, e justamente quando se dirigia a Sócrates. Aqui trata-se da virtude de uma experiência “confusa, talvez, mas decisiva”. Ou seja, uma que em si mesma não atinge aquela negatividade da ironia socrática. Poderíamos dizer que ela é apenas vaga, porém capaz ainda de uma força de evidência, com a qual prevalece sobre a série de mal-entendidos que ainda não pôde substituir por uma apreensão ou imagem verdadeiramente positiva. É o exato ponto em que estamos na investigação dessa substância existencial própria de Nassar. Sabemos que trata-se de um gesto, um modo de agir, algo da ordem do comportamento ou do caráter das ações, um traço atualizado sobre uma multiplicidade vasta. Não algo estritamente dado como uma forma literária, mas no máximo uma forma existencial, ainda que relativa a personagens e eventos de certa literatura; e ainda que atravessando a existência de narradores, personagens e autor. É um modo de ver, uma perspectiva, uma fonte desde a qual tudo se vai desdobrando. Mas em tempos de morte do autor, o que interessa, do ângulo cerrado da análise literária e poética, a vida ou o modo de vida que se agita na beira das páginas em que se escreve? Ora, absolutamente tudo, ou ao menos tudo o que disser respeito à força com que este devassa os próprios limites entre vida e obra, não permitindo sequer que a organicidade interna devenha da obra mais do que da vida. Aliás, não se vai muito longe na compreensão do tema da morte do autor pela exclusão ou mesmo pela simples subordinação de um desses aspectos pelo outro, já que isso bem poderia converter-se num totalitarismo da obra ou num totalitarismo do autor. A obra precisa ser recolhida num campo ampliado, mas a vida também demanda a mesma generosidade. Afinal, a remoção de suas fronteiras também não procede de uma exclusão daquilo que está para além dela, mas tão apenas do fato dessas fronteiras se mostrarem mais do que precárias: impraticáveis.

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É preciso que esse ponto fique bem marcado para que não se pense que aqui se está recuando de uma análise propriamente literária em prol de outra de menor alcance e relevância. Kierkegaard, mais do que todos, já nos ensinava que perguntar pelo modo existencial que fundamenta uma multiplicidade de ações, sejam estas poéticas ou ordinárias, não é fazer algo como um biografismo factual — daí por que, dispensando o registro mais objetivo de Xenofonte, rejeita a imagem de Sócrates que ele nos legou: “Xenofonte se prendeu justamente à imediatez de Sócrates e, por isso, certamente em muitos aspectos o compreendeu mal.”280 Mas Kierkegaard nos dá uma segunda lição ao mostrar que perguntar pelo modo existencial tampouco é fazer uma livre criação poética ocupando e rejuntando as lacunas de seu objeto ao bel prazer — daí por que, bem visto, seria necessário rejeitar ainda aquela imagem de Sócrates que nos chega via Platão, conforme nos diz exemplarmente:

Cada um destes dois procurou, naturalmente, completar o que faltava em Sócrates, Xenofonte puxando-o para baixo até as pastagens rasteiras do utilitário, Platão elevando-o até as regiões supraterrestres da ideia. Mas o ponto que se situa no meio, imperceptível e extremamente difícil de se fixar, é a ironia. (KIERKEGAARD, p. 108, grifos do autor)

É seguindo a potência de negação de uma intuição mais atilada e decisiva, tal como prescrita por Bergson, que Kierkegaard nega ambas as imagens de Sócrates. Mas onde encontraria uma imagem na qual pudesse finalmente depositar a sua afirmação? Para nossa surpresa, na caricata formulação que nos é dada na comédia de Aristófanes.281 Essa, que em tudo nos sugeriria acusações de excessos e de faltas, enfim, de presumível imprecisão. Pois Kierkegaard diz ser justamente ela a mais precisa e determinante, aquela que atinge e nos dá Sócrates em seu movimento existencial o mais fundamental. Não desculpa a sua vagueza, antes agradece a sua evidência. A partir dela sente reunir na fonte as frações dispersas de uma atitude, uma personalidade, uma tendência poética. A partir dela considera dispensável debulhar os temas da filosofia socrática — tal como se procedesse a uma análise de obra — e, por outro lado, rejeita igualmente fechar-se nos dados colecionados de sua vida — tal como se procedesse a uma análise biográfica. O que não pode dispensar é o cômico, e não como um amparo de segunda mão que ameaçasse maiores distorções, mas sim como um ganho de esmero, como um momento propriamente retificador:

280 KIERKEGAARD, p. 27. 281 A imagem de Sócrates que Kierkegaard toma via Aristófanes é fundamentalmente aquela que este nos deixou por meio de sua peça intitulada “As nuvens”. Cf. ARISTÓFANES, “As Nuvens”. In Sócrates: Os pensadores. São Paulo, Ed. Nova Cultural, 1987.

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Sim, seria mesmo uma grande lacuna se nos faltasse sua [de Aristófanes] avaliação de Sócrates; pois assim como todo desenvolvimento em geral acaba por parodiar a si mesmo, e uma tal paródia é a certeza de que este desenvolvimento sobreviveu a si mesmo, assim também a concepção cômica é um momento, de muitas maneiras um momento retificador dentro da total visualização de uma personalidade ou de uma tendência. (KIERKEGAARD, p. 109)

Eis assim que em Kierkegaard, como em Valéry e em Bergson, encontro antecessores importantes nesse tipo de abordagem que, a princípio, sugere-se algo insólita tanto quanto aos meios que dispõe quanto aos fins que visa atingir. Nesse momento, penso que posso devolver nossos olhos ao caso de Nassar e tentar, ao menos uma vez, cortejar uma tal imagem mediadora, pois até aqui, de fato, não se fez mais do que recusar progressivamente tudo aquilo que Nassar recusou imediatamente. Contando apenas com tal potência de negação, só nos resta o trabalho de buscarmos mais atilamento quando diante da obra e do ethos entrevisto em Nassar se disser palavras tais como “cinismo”, “devoção”, “corpo”, “indiferença”, “delírio”, “desprezo” e “experimentalismo”. Ao se tentar melhorá-las, acabar-se-á percebendo que elas esbarram umas nas outras, que as giramos num mesmo remoinho, e que é desse remoinho que a cada vez voltamos a falar, já contaminados pela simplicidade de um ponto ainda confuso, mas decisivo, que cada vez mais se deixar premunir e buscar. Contudo, se é esse o limite a que a presente pesquisa há de chegar, que se possa ao menos revisitar uma última vez tais termos (“cinismo”, “devoção”, “corpo” etc.) e vê-los na relação imanente que, se ainda não nos dá em definitivo, ao menos continua a nos prometer decisivamente a unidade de um ethos. É o que encaminho para a parte seguinte desta dissertação. Antes, porém, devo insistir uma vez mais no fato de que o recurso ao conteúdo da notável conferência de Bolonha realizada por Bergson e sua conversão aqui como base teórica de uma pesquisa literária não são de todo estranhos aos termos de sua formulação original. De fato, isso está quase que abertamente sugerido nela, e, por assim dizer, surpreende-me em vista dos motivos íntimos que agitam o ponto de vista de minha leitura de Nassar:

O romancista poderá multiplicar os traços de caráter, fazer seu herói falar e agir tanto quanto lhe aprouver: nada disso irá valer o sentimento simples e indivisível que eu experimentaria caso coincidisse por um instante com o próprio personagem. Então, parecer-me-iam fluir naturalmente, como que da fonte, as ações, os gestos e as palavras. Já não se tratariam mais de acidentes que se acrescentam à ideia que eu me fazia do personagem, enriquecendo cada vez mais essa ideia sem nunca chegar a completá-la. O personagem ser-me-ia dado de um só golpe em sua integralidade, e os mil incidentes que o manifestam, ao invés de se acrescentarem à ideia e de enriquecê-la, parecer-me-iam pelo contrário desprender-se dela [...]. (BERGSON, 2006, p. 185)

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4. O MUTUALISMO DOS TRAÇOS

4.1. A busca pelo ethos

Se, em Nassar, é um certo ethos que encontra-se no ponto nuclear a partir do qual tudo o mais em sua poética se desprende, então, em primeiro lugar, não faz sentido dar aqui maior privilégio a análises formais ou de ordem estritamente estética. Afinal, parece-me bastante claro que as obras encontram em suas unidades respectivas, e mesmo em seu conjunto, um limite muitíssimo precário diante do volume de determinados atravessamentos que não se deixam anular sob as dimensões operadas vez a vez. Em segundo lugar, também não faria sentido dar maior privilégio a repasses biográficos e de influências, pois além de fazer com que a análise fique negligenciada pela tentativa de apenas trasladar certos traços, isso invariavelmente supõe uma infame subordinação da ação poética a simples idiossincrasias e a fraquezas do autor: ali onde ele foi vencido por algum trauma; ali onde ele foi convencido por algum outro autor. Ora, é sobretudo por haver em Nassar tantos ecos de traumas, remissões afetivas a recordações e fragmentos discursivos vários se atualizando na rede que fia suas ações, declarações e textos, que não podemos deixar a aparência “passional” desses itens nos fazer perder de vista a performatização de seu ethos, precedendo e servindo-se de tais itens assim como de si mesmo em um movimento estritamente poético. Sua mão sequer se acanha, ao invés, afunda em seu cesto familiar tanto mais porque sabe de sua força a apanhar tais itens num exercício mais tonificado, num movimento mais veloz e inaugural. Vemos nos traços nassarianos, em seus variados níveis, que esse ethos é um empenho produtivo, um modo de vida, uma atividade zelosa e uma atitude tenaz. Enfim, trata-se de uma invenção e uma construção precisas: ele resiste a fazer concessões ao caráter arbitrário de um gesto impróprio, mesmo em meio às tarefas mais ordinárias — pois as quer também poéticas, se não, ao menos dominadas, e, se nem isso é possível, empurradas finalmente para uma margem esquecida e tratável. Esse ethos apresenta-se como um campo de criação e critério (poético); de realidade e concretude (ontológico); de percepção e verdade (epistemológico-hermenêutico); de saúde e força (médico-terapêutico); e, finalmente, de ação e virtude (ético-moral) — sim, pois uma virtude, ainda que a mais abominável para certos padrões, não pode jamais ser barateada em simples fraqueza, falsidade ou abstração enquanto operar positivamente no nível poético da criação. Portanto, a pergunta pelo caráter intrínseco por meio do qual um tal ethos surge e ganha corpo na produção de Nassar não há de ser

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respondida pela influência de seus pares ou por demais elementos exteriores que, presume-se maliciosamente, explicariam por si mesmos suas causas profundas. Esses esclarecimentos são ainda mais relevantes no caso específico de um autor marcado pela inter-referencialidade — isto é, quando não faltam a oferta de tais influências e a consequente tentação de atribuí-las um peso demasiado e pretensamente elucidativo. Mas, diante da inter-referencialidade, não basta rastrear e revelar a coleção de apropriações feita por dado autor, deve-se avançar rumo ao sentido da ação e à natureza do procedimento que a elabora. Eis enfim a crucial importância em encararmos tal ethos de frente; de remexê-lo a fim de fazer surgir dele os traços e principalmente a maneira necessária — aí sim, orgânica — com que os reúne. Caso fôssemos tomados por um acesso repentino de evidência, desses tantos que temos diante de grandes páginas, a explicação poderia descansar de sua sanha burocrática, e tudo o que aqui se poderia dizer restaria obsoleto e, mais do que isso, completamente exposto e acusável em sua inutilidade. Mas como produzir tal evidência se a obra, primeira, não a produziu por si só? Contudo, como produzi-la de qualquer modo que fosse sem que seja ainda a obra mesma a fazê-lo por meio desse nosso esforço, segundo? Podem-se correr muitos argumentos em vão para num só passo despretensioso toparmos com a valiosa perspectiva na qual tudo começa a fazer sentido e a depreender-se como que naturalmente, necessariamente. Do ponto de vista metodológico mais rígido, é uma restrição compreensível que eu não possa contar aqui com tal evidência desse ethos dada logo de início. Mas, sem isso, como conjugar a série dos passos que ao fim iriam nos levar inequivocamente a ele? Por outro lado, não seria razoável considerarmos que algo sempre estará bem determinado se os termos envolvidos são apresentados constituindo-se (em particular) na exata medida em que cada qual compõe com os demais (em conjunto) um aspecto indissociável de um mesmo movimento ulterior (ethos)? Já que não posso por meio nenhum garantir uma evidência segura desse movimento poético, minha estratégia então será acompanhar não mais o simples cruzamento dos traços isolados que o compõem, mas o detalhe de sua mútua implicação, ali mesmo onde eles parecem contrastar entre si os sentidos mais díspares. Veremos que a implicação em jogo não se dá à maneira de uma causa transitiva, em que um dado termo determinaria seu efeito sobre um outro, e sim como causa imanente, em que cada qual surge com igual necessidade de um mesmo acionamento e meio inaugural — preservando tanto a radicalidade de sua diferença quanto a de sua tessitura comum. Tentemos, pois, chegar ao ponto em que não se diz mais “se x então y”, mas em que, sem confundi-los, apreendemos todavia “x como y”, conforme vimos acerca da teoria interna da interpretação. Ao longo desse processo, penso que certamente se poderá fazer uma imagem mais direta, simples e rica dessa fonte poética de Nassar.

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4.2. Da grande indiferença como sensibilidade exacerbada

Por um engodo semântico poderíamos supor que o caso em Nassar fosse o de nos apresentar o indivíduo indiferente como algo identificável ao indivíduo insensível. Mas como poderíamos designar de “insensível” aquele que não para de orçar o menor contato segundo seu potencial respectivo para ampliar ou reduzir os ciclos de fruição que alimentam sua indiferença? Não poderíamos. Aliás, isso dá testemunho de uma sensibilidade de tipo inverso, exacerbada. Segue daí que se verá mal o fogo dessa indiferença, o seu exercício e sua sensibilidade característicos, se não se enxergar o que vai na amêndoa íntima das maneiras e do trato despendidos por tais personagens, e que mesmo variando apenas entre o distante e o rude, mesmo nos sugerindo como limite dessas variações a conclusão fácil de uma insensibilidade de fundo, mesmo assim, descobriremos que afirmam contudo o exato oposto. Retomo minha aposta: há um poço de onde esses protagonistas tão singulares vêm no entanto beber de suas águas comuns; ao redor do qual vêm reunir em perfeita elegância as suas mais incoerentes dessemelhanças; onde se dissolve todo o contrassenso, já quase bobo de quase tão apenas semântico, que visa opor a ordem da delicadeza (essa imagem de uma sensibilidade acesa e como que à flor da pele) à ordem da rudeza (esta imagem de uma sensibilidade embotada e como que mortificada sob cascos). De fato, os recuos generalizados dos protagonistas, a rispidez de suas recusas e a contundência de seus silêncios, conjugados à eventual explosão de verborragias, por sua vez atiradas em jorros desproporcionais, tendem a nos fazer crer numa personalidade polarizada, desprovida de gradientes com os quais filtrar mais generosamente os encontros que faz e medir os golpes aos quais absorver, aos quais reagir e aos quais contornar. Nesses rumos, talvez disséssemos como a mulher dizia ao chacareiro, “não é pra tanto, mocinho que usa a razão”.282 Mas sempre ficamos mais bem informados por aquilo que o narrador nos entrega acerca do que se fermenta em seu caldeirão de experimentação. É quando vemos nascer de sua prosa poética mostras incontestáveis de uma fina atenção, uma que não deixa a menor textura passar sem ser aquilatada. E ela não se troca ou esmorece polarizada segundo uma alternância trivial, mas se exerce antes, durante e depois da radicalidade de um silêncio absoluto ou de uma verborragia solta, percorrendo ainda sensivelmente cada desfolhar dos efeitos que mesmo a sua dura indiferença exerce sobre os demais. Portanto, já não se pode duvidar que tal indiferença se confunde com o próprio aprofundamento de sua sensibilidade.

282 CC, p. 30.

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4.3. Do cansaço como cinismo

E o tal cansaço? Certamente não é o caso de um simples murchar abatido em meio à completa falta do que fazer aqui e agora. Não é circunstancial ou local, mas generalizado. Não adianta olhar pela janela como quando estamos diante de uma situação enfadonha. O caso é largamente mais grave: não apenas não encontramos ao redor nada que nos suscite a ação ou a preocupação, como parece mesmo que não há onde pudéssemos encontrar. André (LA) sai de casa não em busca de correr mundo, pois ele sabe que não poderia encontrar fosse onde fosse o que lhe faltava ali. Ora, isso complica ainda mais a pergunta que começamos a colocar anteriormente: como ele poderia erguer alguma relação, tanto mais alguma tão inaugural, se é justamente a sua vontade que está cansada das coisas; que as retém sob uma grande indiferença? Junta-se em agravo a isso notarmos que esse cansaço não se efetua localmente, a partir dessa ou daquela coisa no mundo, e sim globalmente, a partir dos objetos em seu conjunto. Contudo, insisto que não se trata dos objetos enquanto tais, mas apenas enquanto são considerados dentro de seus valores ordinários correntes (não-poéticos). De todo modo, se há tédio e generalizado, é porque não se pode mais evitá-lo. Ele atinge diretamente a vontade, bem como atinge indiretamente as ações, já que, se tomamos as ações como sendo realizações que remontam sempre investimentos de possibilidades primeiro desenhadas na percepção, temos de convir que o cansaço na vontade acarreta uma desarticulação desta. Portanto, manifesta-se uma dramática redução na oferta de possibilidades para a própria ação. Mas justamente por não esgotar de todo a ação, ao atingi-la indiretamente, e também porque somos continuamente chamados a agir entre as coisas do mundo por meio de forças externas, torna- se imperativo tanto que realizemos ações quanto que essas ações passem a se fundar em um princípio de indiferença às próprias demandas que as requerem. Por isso, tal cansaço resulta tanto em um princípio de inação quanto de ação cínica, ou seja, só é possível agir poeticamente por cinismo: grande insubmissão a tudo o que tenta do exterior suscitar, cercear, razoabilizar e, enfim, condicionar a ação.

4.4. Do cinismo como experimentalismo

O cinismo opera mediante uma autonomia ou hiato com relação a tudo aquilo que manipula. Em Nassar, o cinismo vai confundir-se com um ímpeto ficcionante do mundo e do Eu. Apesar disso, podemos encontrá-lo numa inusitada relação de imanência e/ou identidade

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com as figuras do autor, do narrador e do protagonista, cujas coincidências fixáveis de notas características devem ser remetidas ao caldo de uma incitação deveniente (exercício cínico), isto é, à atitude comum de estimular lacunas e oscilações na própria subjetividade, e não a de gravar traços verossímeis sobre ela — razão pela qual autor, narrador e protagonista acabam compondo um único Eu, mas ampliado, em que cada nível escapa de suas respectivas fixações por meio da ficção que articula um a outro desses níveis, deixando-nos entrever apenas a unidade fundamental de um singular devir que busca desvencilhar-se incessantemente dos itens do mundo e dos caracteres triviais da personalidade. Esse aspecto é prioritário, mas não exclusivo, o que significa que as notas características que coincidem entre os diferentes níveis não devem ser ignoradas, mas consideradas como aspecto secundário, explicável por aquele outro. Na produção de Nassar, certos traços de personalidade são plasticamente costurados entre autor, narrador e protagonista, de modo que a visão de mundo e o modo de agir que configuram possam favorecer o próprio exercício ficcional: traços de caráter (o tal “risco tosco”)283 moldados pelo seu exercício de oscilações subjetivas e expiações poéticas. O compromisso com tais fixações é concomitante àquele que se tem com as oscilações do e no Eu, do e no corpo, dos e nos humores. O corpo nunca sobra inafetado. É ele o terreno de todos os afetos possíveis. Palavras podem mentir seus significados, mas não podem evitar de primeiro se rebaterem sobre a disposição física dos indivíduos, diminuindo-a ou elevando- a. Descobre-se no cinismo um instrumento para produzir afecções, e, nessa medida, sentido e verdade. Palavras já não interessam mais em seus câmbios de significados. Passam a valer como objetos concretos que em certas circunstâncias dispõem de um potencial relativo (real) para produzir efeitos e experiências sobre a própria disposição atual (de agir e de ser afetado) do sujeito, isto é, sobre a vontade. Funda-se assim uma ilha (de aquém e de além-mar), salva da indiferença simplesmente niilista ao investir positivamente sobre si mesma. Com os olhos na superfície podemos não ver que o cinismo opera ainda segundo os gozos que recaem sobre a própria vontade. Sendo estes sempre circunstanciais, não se firmam nem na figura objetiva de uma causa qualquer, nem no mesmo indivíduo enquanto identidade estável — quando este é, de maneira equivocada, suposto sempre equivalente a si próprio e a experimentar um afeto também equivalente diante do retorno de um mesmo estímulo. Ora, se cada experiência modifica os humores e as disposições do indivíduo, o retorno de um mesmo ingrediente encontrará um corpo já modificado pelo encontro anterior. O experimentalismo torna-se um horizonte inequívoco, interiormente unido ao singular exercício de cinismo em Nassar.

283 VS, p. 56.

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4.5. Do desprezo como devoção

Também por equívoco poderíamos crer que desprezo e devoção se destinam cada qual a objetos diversos, já que parece nos enviar sugestões convincentes de que a devoção ao corpo se potencializa na mesma proporção que o desprezo ao intelectualismo, e que, sendo assim, não haveria muito caso a se fazer quanto à convivência entre essas duas direções, que só poderiam estar numa relação de conflito se os seus respectivos objetos fossem o mesmo. Vejamos isso melhor. É preciso chamar a atenção de volta para onde esse problema se torna efetivamente concreto: a subjetividade experimental. Penso que, em meio ao seu ritual, o sujeito é um devoto não apenas quando o objeto de sua devoção faz todos os demais objetos desfocados, mas quando aquele domina estes outros, impondo-lhes uma completa submissão simbólica a si. Tomemos a devoção em seu ambiente genericamente característico, o religioso. Concordaríamos que um indivíduo, de fato, não poderia estar comprometido com os valores de sua religião na mesma medida em que os desprezasse. Repare que é justamente sua devoção a esses valores que não cessará de posicionar os demais elementos do mundo e de prescrever suas relações possíveis ou aceitáveis. Nesse processo, nenhum elemento é de fato anulado, excluído ou desprezado sem que antes seja consumido, incluído e submetido pelo crivo fundamental que se projeta e se propaga desde o próprio objeto de devoção — conforme este repercute sua presença sobre todos os demais. Por exemplo, ninguém assentirá que o tema da exclusão do corpo pela tradição abraâmica (judaica, cristã e islâmica) possa ser fruto de uma simples distração graças à qual o corpo pudesse ter contornado os investimentos dogmáticos, mantendo-se quem sabe intocado simplesmente por não ser o objeto positivo da fé. Ao contrário, sentimos bem que o objeto direto da fé, assumido necessariamente como superior a tudo o mais, não cessa de submeter e de posicionar todos os outros em relação a si mesmo, e por isso o corpo, como de resto tudo o mais, não poderia ter sido — ou ainda ser — alvo de uma exclusão simples ou qualquer, mas, isso sim, de uma exclusão estrutural, muito bem determinada e construída a partir de irradiações que emanam do objeto devocional. Longe de ter sido esquecido, há vigilância constante ao corpo, sempre atravessado por toda uma série de significados e valores peculiares à tradição monoteísta e que fornecem os termos efetivos pelos quais ele recebe sua exclusão — a essa altura, poderíamos dizer “sua inclusão”, dada a tão completa absorção e apropriação efetuada pelas camadas discursivas que fundamentam o objeto positivo da fé. Com isso posto, tenhamos em mente o chamado “elemento religioso” nos textos de Nassar, a saber, o caldo híbrido de traços islâmicos mediterrâneos negociando assimilações

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migratórias com o cristianismo reinante das terras brasileiras. Lembremos que esse pano de fundo familiar permeando o personagem André em Lavoura arcaica prolonga o da própria biografia de Raduan Nassar, filho de imigrantes libaneses aportados no Brasil em 1920. As resistências e precipitações relativas a esse câmbio cultural são sempre mais perigosas quando o que está em jogo é algo superiormente decisivo — como sempre é o objeto devocional, já que, como disse, é aquele em torno do qual todos os demais extraem sua posição e valor. Apesar do ímpeto de André (LA) em se livrar das amarras da autoridade, seus movimentos no campo da fé não se resumem na direta e simples descrença religiosa, mas efetua uma voluptuosa apropriação herética, mergulhando as partes de Deus em imagens sexuais, obscenas, num ato ostensivo de dessacralização. É do que se ocupa especialmente no capítulo 18 (LA), quando logo após narrar a rejeição de Ana, e ainda com ela no horizonte de seus desejos, André passa a se entregar (note-se o quão profanamente) ao apelo religioso:

[...] e me vendo assim perdido de repente, sem saber em que atalho eu, e em que outro atalho a minha fé, nós dois que até ali éramos um só, vi com espanto que meu continente se bifurcava, que precariedade nesta separação, quanta incerteza, quantas mãos, que punhados de cabelos, acabei gritando uma terceira parte alucinada, levantei nos lábios esquisitos uma prece alta, cheia de febre, que jamais eu tinha feito um dia, um milagre, um milagre, meu Deus, eu pedia, um milagre e eu na minha descrença Te restituo a existência, [...] e eu em paga deste sopro voarei me deitando ternamente sobre Teu corpo, [...] e uma penugem macia ressurgirá com graça no lugar das Tuas velhas axilas de cheiro exuberante, e caracóis incipientes e meigos na planície do Teu púbis, e uma penugem de criança há de crescer junto ao halo doce do Teu ânus sempre túmido de vinho. (LA, p. 172-173)

Atualiza-se em relação ao religioso o mesmo programa visto em relação ao aspecto político (me ne frego). Novamente esse intrigante feito: os passos da resistência e subversão nassarianas confundem-se com os de uma conversão todavia excessiva. Dada a famigerada janela que se abre em horas de desespero, quando mesmo ao cético só restaria apelar ao divino, eis que André não a fecha, ao contrário, escancara-a e a atravessa obstinadamente. E é esse modo excessivo de entrega que acarretará uma curiosa perversão do elemento autoritário da religião, devassando seu pretenso isolamento e superioridade frente aos demais elementos do mundo — que, a princípio, a marca do sagrado viria impor como uma exigência moral de respeito bem como uma condição lógica de culto. Excessivo, André experimenta sua fé como paixão, nos termos amorosos que guardam a ideia que a desperta: Ana. Por isso, sua prece é carnal, intumescida, virulenta e despudorada nas ligações que traça com Deus. Isso talvez porque Este se sugeriu próximo demais à fogueira acesa para Ana, e porque é fatal que ideias perto demais umas das outras, convidando-se mutuamente, só não copulem se entre elas

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estiverem plantados certos impedimentos morais no interior do sujeito — como possíveis limites e marcos reguladores de sua relação com o sagrado. Contudo, num procedimento estritamente imaginativo, e que não é nada menos real por conta disso, já que é vivido e experimentado por meio das conexões efetuadas entre essas ideias no palco físico de suas disposições, André escapa completamente da submissão à face normativa da religião, ligando- se a ela de maneira declaradamente originária, já que fundando-a nos seus próprios termos tal qual um profeta:

[...] eu disse cegado por tanta luz tenho dezessete anos e minha saúde é perfeita e sobre esta pedra fundarei a minha igreja particular, a igreja para meu uso, a igreja que freqüentarei de pés descalços e corpo desnudo, despido como vim ao mundo, e muita coisa estava acontecendo comigo pois me senti num momento profeta da minha própria história. (LA, p. 158)

O fundamental é que o protagonista em sua fé não se entrega hesitante a presumíveis restrições nas quais guardar-se-ia aquém (dogmas), mas dá-se generoso, direta e absolutamente ao transformador fogo ritual com o qual vai contudo passar indefinidamente além (devoção): além do estado de coisas ordinário do mundo; além de si mesmo como subjetividade estável e bem constituída; e além das mínimas convenções que pretendem mediar Deus e seu contato possível. Transmutação do Mundo, do Eu e de Deus. Inusitado ponto de intersecção em que posições inicialmente tão contrárias se encontram. Tão extremos, desprezo e descrença identificam-se no mesmo sujeito com o próprio elemento devocional e religioso. Falo aqui do raro gesto inaugural do espírito o mais devoto: aquele que suspende completamente suas preocupações mundanas e todos os freios da razoabilidade; que recusa submeter-se à moralidade culturalmente assentada entre seus pares; que volta-se para a criação fabuladora de suas próprias tábuas da lei; que vai buscar derramar no mundo um pouco do fervor que de repente o galopa, desatando-o de suas restrições e animando suas forças. Uma estrita vontade criadora: “e eu pensei e disse sobre esta pedra me acontece de repente querer, e eu posso!” 284 Uma máxima liberação: é assim que Deus é encontrado pela fé criadora de André. Estranha religiosidade essa que não se deixa ver pela limitante negatividade de certos constrangimentos e admoestações, e nem, por outro lado, pela simples positividade de um sentimento religioso partilhado nos marcos morais e demasiado humanos do convívio social. Tomemo-la em sua positividade ilimitada, conforme a alternativa extremamente singular que Deleuze nos oferece a pretexto dos pintores do século XVII:

284 LA, p. 158.

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Não seria possível uma outra hipótese, a saber, que nessa época a pintura tem tanta necessidade de Deus justamente porque o divino, longe de ser um constrangimento para o pintor, é o lugar de sua emancipação máxima? Em outras palavras, com Deus ele pode fazer seja lá o que for [...]. Assim, Deus é investido diretamente pela pintura, por uma espécie de fluxo de pintura, e, nesse nível, a pintura vai encontrar por sua conta uma espécie de liberdade que ela não teria encontrado de outra maneira. [...]. É a grande liberação das linhas e das cores que se faz em favor dessa aparência: a subordinação da pintura às exigências do cristianismo [...]. Com Deus, tudo é permitido. (DELEUZE, grifos meus)285

Deleuze, bem como o personagem André de Nassar, encontra nessa intrigante função de Deus um desdobramento diametralmente oposto àquele que assombra o personagem Ivan Karamázov, de Dostoiévski, quando este enuncia a sua célebre formulação: “Se Deus não existe, tudo é permitido”. Tal inversão, conforme proposta por Deleuze, municia-nos decisivamente quando vemos que a fé alcança André não por um desencantado e antropologicamente explicável estratagema de coerção social — como pretenderia um descrente trivial — mas como um miraculoso vetor deveniente, cuja chave todavia deve encontrar-se em suas próprias mãos, e não fora delas, nunca nas letras de algum livro sagrado ou na autoridade de seus respectivos intérpretes — como pretenderia um religioso trivial. Em sua ambigüidade, escapa a certas tendências redutoras de ambos os lados e nos dá o desprezo e a devoção fundidos numa só espada, numa só fé incendiária:

[...] esmaguei a água dos meus olhos e disse sempre em febre Deus existe e em Teu nome imolarei um animal para provermos de carne assada, e decantaremos numerosos vinhos capitosos, e nos embriagaremos depois como dois meninos, e subiremos escarpas de pés descalços (que tropel de anjos, que acordes de cítaras, já ouço cascos repicando sinos!) e, de mãos dadas, iremos juntos incendiar o mundo! (LA, p. 175-176)

Nada a preservar, ninguém. A exceção, a única, sendo sempre essa singular vibração da vida ela mesma, essa que paradoxalmente confunde-se no sujeito com uma dedicada contemplação e torpor, uma estranha inação ativa, um convicto projetar-se além cuja força e obstinação descobrir-se-á nos termos inebriantes de uma fé libertária e altiva. Tal exceção especial impede toda leitura diretamente niilista de Nassar, garantindo a fibra positiva de um vitalismo basilar para todos os termos negativos de sua poética. O “profeta da própria história” ou o “fundador da sua igreja particular” estão investidos da mesma atitude daqueles jogadores de xadrez da Pérsia de que nos falava Ricardo Reis, daquele soldado que escrevera

285 Essa passagem pertence a uma aula de Deleuze sobre Spinoza em seus Cours Vincennes, proferida na data de 25/11/1980, e encontra-se disponível na tradução de Francisco Traverso Fuchs no seguinte link: Acesso em 31 jan. 2014. (grifos meus).

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“pouco me importa” (me ne frego) nas bandagens de seus ferimentos de guerra: ethos imperturbável e insubordinável. Muito já vimos que essa atitude positiva central percorre toda a produção e a vida de Nassar, de modo que sua feição em meio à matéria religiosa deve ser tomada como uma expressão particular pertencente ao mesmo princípio geral. Mas, para os que ainda não estão suficientemente convencidos disso, quem sabe presos ao fato de que o contexto mítico-religioso concentra-se nas páginas de Lavoura arcaica e que convidá-lo a formar uma comunidade com as demais obras pode parecer algo forçoso, a esses destaco então uma passagem crucial em que tal expressão particular (o erotismo profano devassando as partes de Deus), a despeito do contexto bastante diferenciado, reaparece em termos bem equivalentes na novela Um copo de cólera. Mais do que isso, reaparece como um traço expressamente consciente:

[...] e em que ela tentava me descrever sua confusa experiência do gozo, falando sempre da minha segurança e ousadia na condução do ritual, mal escondendo o espanto pelo fato de eu arrolar insistentemente o nome de Deus às minhas obscenidades, [...] ainda pensava em muitas outras coisas enquanto ela não vinha, já que a imaginação é muito rápida ou o tempo dela diferente, pois trabalha e embaralha simultaneamente coisas díspares e insuspeitadas. (CC, p. 15)

Sem dúvida, esse “arrolar insistentemente o nome de Deus às minhas obscenidades” poderia descrever sem emendas o gesto muito peculiar que acabamos de acompanhar em André (LA), e note-se que surge a propósito da configuração do sexo como um ato ritualizado e do gozo como uma experiência limite e algo incomunicável. Os capítulos iniciais de Um copo de cólera funcionam como um verdadeiro terço amoroso, um devaneio fruitivo em que o corpo se repassa extremamente entregue (da cama ao banho, do banho ao café...). Enfim, é uma atmosfera monocórdia que enquanto guarda algo de mantra ou de oração deve ser reconhecida como um singular foco de devoção, não apenas porque empurra todas as preocupações ordinárias para longe, mas fundamentalmente porque suscita os cuidados dramáticos de uma verdadeira linha contínua (Stanislavski). Trata-se da manutenção ativa do culto da própria atividade — não de um objeto, nenhum, nem mesmo do próprio corpo objetivo em sua exterioridade, e sim da atividade experimentadora de si, esse ponto zero (corpo catedral) em que não faz sentido distinguir o que vai no espaço ao seu redor do que vai no interior de sua imaginação, o que vai no real do que vai no ficcional, tão indiferente se está com relação ao destino de todas as coisas do mundo.

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4.6. Do corpo como utopia

É conscientemente que André põe os pés no terreno dessa devassidão, lá onde trabalha a imaginação (“a imaginação é muito rápida ou o tempo dela diferente, pois trabalha e embaralha simultaneamente coisas díspares e insuspeitadas”). É a imaginação que faz André chegar a Deus e passar além: arrastando-O a composições obscenas com ideias vulgares, e tanto mais quanto mais se serve de um princípio elevado. Mecanismo propriamente imaginativo: misturar coisas díspares e insuspeitadas mais rápida e prontamente do que a razoabilidade lógica ou moral requer para filtrá-las. Assume-se tal mecanismo como recurso político de preservação de uma voz própria bem como via devocional cujo objeto de devoção redunda na própria atividade ela mesma (a grande razão — ou o corpo ampliado, isto é, tomado em contraste com sua imagem objetual e, digamos assim, mais sedimentar e trivial. Em direção a um certo tipo de experiência, vivida em sua plenitude, o sujeito recua austero para se dispor efetivamente como um devoto. Por outro lado, é apenas aí que pode ser apreendido como um grande indiferente, entregando-se a esse ponto de sono e atividade superiores em que tudo o mais como que passa a estar ofertado a si, posto sobre seu altar — como se diz, na verdade entregue aos caprichos e à devassidão amoral na dinâmica da livre (no sentido de autônoma: exatamente por isso justa e necessária) associação imaginativa. O adormecimento das camadas diurnas do sujeito consciente poderia nos fazer pensar que restaríamos diante do simples acaso mecânico comportando o encontro passivo de coisas e ideias. Mas eis sua redenção: revela-se uma surpreendente potência ulterior e impessoal espargindo em formas e sentidos precisos o jacto austero de um cerimonial ativo de ligações; memórias antigas dançam provocando o esquecimento das coisas presentes na retina, cruzamentos proibidos alhures mais do que se permitem, desejam-se, inflamam-se de ocasião. Nenhum acaso nessa vontade mais vasta, impessoal. Desenha-se um inusitado vínculo entre elementos que vão do hedonismo ao ascetismo: somente quando o espírito solta-se aos movimentos do desejo na plena abertura da imaginação (como irrestrita conectividade entre as ideias) é que se encontra a ponto de ser soerguido pelo apanhamento positivo da vibração da vida (como produtividade eminentemente criteriosa). E podemos revirar esse desenho em todos os sentidos: não se mergulhará em tal abertura imaginativa sem fazê-lo por meio de uma diligente privação contra o barulho do mundo, e, mais radical, contra o próprio barulho interior, contra todas as emissões de si como sujeito de razão e de vontade livre; mas tampouco se será soerguido por aquele apanhamento vital sem que a licenciosidade de seu tônus faça correr fluxos amorais, quando então se é lançado para bem longe dos pseudo-

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rigores mundanos e as judiciosas restrições com as quais estes pretendem prescrever boas ligações entre as ideias e/ou entre os corpos. O protagonista de Nassar tem sempre a serena distração, a sanha dos nervos ou a explosão das palavras como pesadas cargas magnéticas, como pulsos vibracionais de máxima importância. Ele age sempre em atenção às modificações da massa de humores em cada caso. Naturalmente, limites circunstanciais aparecem, muitas vezes bem estreitos, mas já não importa. Residente nesse plano energético em que hesitações, palavras e gestos são tomados pela justa deformação sensível que produzem, preparam ou contornam, os limites já não podem mais significar a mera restrição de possibilidades ante o irrestrito campo da imaginação. Ora, tanto mais se desliza na continuidade desse fio imanente em que as ações se desenrolam, mais se pode ver motivos interiores ali onde de outro modo se veria apenas restrições exteriores. Afinal, os limites circunstanciais não dizem mais do que tão somente o estado atual do plano, e, por isso mesmo, não aparecem sob condições abstraídas e distantes da ação, mas sim fincados na urgência desse mesmo corpo em que a ação decorre agora. Fixe um momento qualquer: o tapa contra a mulher (CC), o vinho que se empurra a Pedro (LA), o repentino olhar de louco (TT), o desesperar da esposa (HM), a retórica do bisavô (MS), a revelação a Paula (VS). Pouco importa, todos os signos com que se poderia pretender falar negativamente de impasses e obstáculos surgem completamente preenchidos pelo jato produtivo a partir do qual um protagonista prolonga sua ação e, nisso, modifica a massa de seus humores, sua substância. Enfim, não é como impedimento de via ou motivo de concessões que o ethos nassariano vai divisar o concreto, mas como empolgações do desejo ou qualidades expressivas: os caracteres determinados ressoam potenciais específicos, tão mais caros quanto mais singulares e tomados no seio de ações atuais e em curso. Sua loucura, também nisso religiosa, está em tomar a imaginação não como uma faculdade geral ou maneira de pensar específica, mas como horizonte absoluto sobre o qual se esboçam todos os modos de vida concretos (complexo de ligações também provisórias). Vimos que é justamente por isso que o corpo é o paradoxal lugar privilegiado de toda utopia (não-lugar):

[...] em alguns casos, no limite, é o próprio corpo que retoma seu poder utópico contra si e faz entrar todo o espaço do religioso e do sagrado, todo o espaço do outro mundo, todo o espaço do contramundo, no interior mesmo do espaço que lhe é reservado. Então, o corpo, na sua materialidade, na sua carne, seria como o produto de seus próprios fantasmas. (FOUCAULT, 2013, p. 14)

Não se poderia tratar da busca por algo como a universalidade do humano, pois não faria o menor sentido vir se plantar inteiro num campo diversamente fértil de amoras

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assassinas para daí pretender abstrair a forma mais geral de todas as nossas experiências possíveis. Tampouco se festeja algo como o simples espetáculo da diversidade, pois seria muito otimismo crer que a mera contemplação das mil variegadas brotações exteriores nos levasse a participar o mínimo que fosse da unidade de seu correspondente elã constitutivo. Da imaginação, trata-se de herdar in loco a sua liberdade vertiginosa para fazer conexões e a sua precisão superior para aflorar aqui e ali uma forma, um sentido ou um gesto precisos, plasticamente singulares, poéticos. Gozar dessa fertilidade germinal nela mesma tanto quanto em nós mesmos; enquanto nos gesta em seu ventre, mas também enquanto prolonga-se no nosso: criação de criação. Um mais preciso modo de vida, uma mais encarnada experiência, um mais apurado trato, uma mais inequívoca palavra. Uma continuidade ético-poética: verdadeiro empenho de austeridade como elevação criadora. Conforme narra André:

[...] que instante, que instante terrível é esse que marca o salto? que massa de vento, que fundo de espaço concorrem para levar ao limite? o limite em que as coisas já desprovidas de vibração deixam de ser simplesmente vida na corrente do dia-a-dia para ser vida nos subterrâneos da memória; (LA, p. 168)

É verdade que são no geral empenhos frágeis e por si só dramáticos. Os personagens de Nassar não param de percorrer seus bloqueios, cortes e interrupções, de medir suas forças. Zelo ascético: não porque cuida de esvaziar a própria carne diante do que seria provação, mas porque vai enchê-la até os poros de um sabor esticado cuidadosamente em certas práticas devocionais. Nestas vai abrindo a realidade ao delírio, liberando o horizonte para generosas ligações entre ideias, corpos, memórias, enfim, afetos. O concreto passa a ser tudo o que assombra e constitui o corpo, este cuja realidade, portanto, não se deixa reduzir à mera tangibilidade física, que bem poderia nos deixar tropeçando em carcaças vazias. Corpo tomado desde a própria vibração da vida, na atividade utópica que mal faz caso ao transitar do estado de coisa presente até os subterrâneos da memória. Envolvendo toda a cena qual uma atmosfera, acontecimento tanto exterior quanto interior, só entrega suas expressões segundo os devaneios do próprio corpo afetado. Pois, nas palavras de Foucault:

O corpo é o ponto zero do mundo, lá onde os caminhos e os espaços se cruzam, o corpo está em parte alguma: ele está no coração do mundo, este pequeno fulcro utópico, a partir do qual eu sonho, falo, avanço, imagino, percebo as coisas em seu lugar e também as nego pelo poder indefinido das utopias que imagino. Meu corpo é como a Cidade do Sol, não tem lugar, mas é dele que saem e se irradiam todos os lugares possíveis, reais ou utópicos. (FOUCAULT, 2013, p. 14)

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Tal a exceção que o corpo funda e na qual opera. De todos os objetos que se podem dar à percepção, o corpo, sendo ainda um deles, é uma espécie de ponto zero: o único cuja face passiva — de objeto percebido — coincide com sua face ativa — de vetor perceptivo. Mais do que o corpo enquanto um objeto discreto entre outros, é nessa viva atividade que a devoção encontra seu objeto; nesse ponto em que toda percepção já não difere de uma ação; em que todos os objetos exteriores são primeiro apreciados no suporte do próprio corpo quando por eles afetado; em que toda percepção é primeiro uma afecção. A fim de não deixar esse aspecto fundamental mais vago do que o necessário, sinto-me forçado a recorrer a uma longa mas extremamente sintética passagem em que Bergson formula essa relação entre ação, percepção e afecção:

O que é uma afecção? Nossa percepção, dizíamos, desenha a ação possível de nosso corpo sobre os outros corpos. Mas nosso corpo, sendo extenso, é capaz de agir sobre si mesmo tanto quanto sobre os outros. Em nossa percepção entrará portanto algo de nosso corpo. Todavia, quando se trata dos corpos circundantes, eles são, por hipótese, separados do nosso corpo por um espaço mais ou menos considerável, que mede o afastamento de suas promessas ou de suas ameaças no tempo: é por isso que nossa percepção desses corpos só desenha ações possíveis. Ao contrário, quanto mais a distância diminui entre esses corpos e o nosso, tanto mais a ação possível tende a se transformar em ação real, a ação tornando-se mais urgente à medida que a distância decresce. E, quando essa distância é nula, ou seja, quando o corpo a perceber está em nosso próprio corpo, é uma ação real, e não mais virtual, que a percepção desenha. (BERGSON, 1999, p. 272)286

Tal é também a radicalização que orienta e aprofunda a experimentação nassariana do mundo: suscitações que se produzem do corpo e no corpo quando se está diante ou em meio a esse ou aquele objeto (afeto). Eis por que, numa discussão como a do chacareiro (CC), interessa nos argumentos mais o que se arrasta e se morde nos humores envolvidos, sua carga de excitações físicas e seus repasses corporais, do que qualquer clareza e distinção no plano das ideias — cujo papel, a essa altura, é bem secundário, subordinado às demandas desses jogos corporais. Enfim, a grande razão é, de fato, o limite concreto de experiências no qual o protagonista está decididamente empenhado. Voltando-se à afecção, sendo esta a percepção do e no corpo, o devoto não escolhe um objeto entre outros para a sua devoção, mas, ao contrário, elege um ponto sem extensão que é a própria atividade ulterior ao corpo — e onde mais haveria de se encontrar com algo ativo? Não o corpo enquanto carcaça cuja exterioridade lhe dá uma natureza indistinta dos demais objetos, mas o corpo enquanto planificação viva cujo afetar-se é sua atividade mesma. Daí por que o ser desprezador é

286 BERGSON, Henry. Matéria e memória: ensaio sobre a relação do corpo com o espírito. Trad. Paulo Neves. São Paulo: Martins Fontes, 1999.

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absoluto, pois não poupa nenhum objeto do mundo, nem o próprio corpo — basta ver que a morte não distrai os jogadores de xadrez, e jogar ácido na panela do estômago (CC) não é lá algo indicativo de maiores cuidados. Mas daí também por que o ser devoto é absoluto, pois em vez de se voltar a um objeto determinado que por ventura viesse apanhar, volta-se ao interior da própria atividade vivida de apanhá-los, quaisquer que sejam. Parte-se e retorna-se insistentemente ao que é ao mesmo tempo o mais ideal e o mais real: corpo utópico.

4.7. Do delírio como realidade

Começa a se esboçar toda uma medicina, cujos termos são ditados e lidos de uma só vez pelo próprio indiferente, e isso com a religiosidade de um devoto, com a volúpia com que se colhe um pomo. Absoluta atenção à vida e seus perigos decisivos a atingir a liberdade do pensamento enquanto tal, indissociável da vontade e, portanto, do corpo e suas afecções. Atenção à vida não apenas nos termos de uma intuição capaz de nos reatar ao elã vital, mas também nos termos de uma consideração minuciosa dos limites os mais concretos, da verticalidade irredutível das relações, das subordinações sorrateiras e suas estratégias. A experiência é ainda a experiência do mundo, e como ela aqui há de partir de um ponto que está para além dos valores, isto é, como há de partir da própria ação de tomá-los (a todos os valores) sob a generosa liberdade de sua performance, ela tende então a ser a mais elevada experiência concreta do mundo que se pode fazer. E isso não exatamente porque o encontra tal como ele é em si mesmo — supostamente atrás dos valores, ou na sua verdade nua e irredutível — mas sim porque o encontra onde ele melhor se abre a nós, isto é, em experiências tais que o nosso espírito constitui com ele uma relação inaugural. Pensemos em André fundando sua igreja sob o impulso de se fazer profeta da sua própria existência. É ainda ali o grande indiferente desprezando tudo o que está dado, mas igualmente tudo o que está por vir, já que o seu ethos tanto não se antecipa à experiência como tampouco a promete como se ela fosse um meio para confirmações investigativas que a extrapolariam ou que se acumulariam sobre ela. Assim, é o nível representacional, ainda por conta de sua referencialidade e abstração características, que não encontra suporte nesse regime de intensa experimentação. Tudo é vivido no plano das afecções do corpo. Pode-se ver que são rejeitados até mesmo o hábito e o consenso, efeitos de certos acúmulos. Todavia, não são rejeitados por motivações metodológicas ou especulativas — por exemplo, na medida em que nos fariam confundir razão e crença —, mas sim por motivações médicas — por exemplo, na

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medida em que acarretam um notável embotamento da própria experiência. Vemos assim que há um elo indissociável entre a absoluta indiferença e a absoluta atenção à vida. Como não há fronteiras morais, pois os valores além-corpo estão esmaecidos sob efeito da indiferença na vontade, o ímpeto ficcionante do mundo não encontra limites. Não se detém. Mas o cinismo, ao estar fundado (por imanência) na experimentação das disposições do corpo, vai encontrar nestas um primeiro critério e, portanto, um primeiro limite: a promoção das afecções de si. Isto é, empreende-se a separação sensível e sempre atual do que serve e do que não serve às fruições da grande razão (o corpo), tentando-se desviar de tudo o que lhe é indigesto — não pela via, naturalmente exterior, de alguma autoridade prévia (operação de um plano de direito), mas pela via, naturalmente interior, da efetiva recolha de seus danos e dissabores (operação de um plano de fato). Aqui vemos que o segundo sono está em plena atividade expansiva, extremamente comprometido com seu movimento letárgico, de modo que esse mesmo movimento, mais do que qualquer atenção consciente ou racional, é que percebe, mede e seleciona os elementos que lhe são favoráveis enquanto contorna os demais. Daí aquele aspecto devocional incendiário, aquela dada a tendência a dissolver tudo — o mundo todo — no vinho dessa demanda. Mas essa devoção só se cumpre, só se pode cumprir, caso tal tendência tenha fôlego. É preciso, portanto, notar as fontes e os jatos positivos, ou seja, que dizem respeito à intensidade formalmente implicada por essa tendência na dinâmica especial cuja forma é a da qualidade expressiva que cresce conforme faz crescer as disposições que se dirigem a ela. Trata-se de um verdadeiro efeito de espiral ascendente que se dá do seguinte modo: a vontade funda em si mesma, por meio do cinismo, uma ilha de experimentação — experimentação que é sobretudo de si mesma, ainda que a pretexto dos objetos do mundo, remexendo-os, apropriando-se deles, de maneira que toda uma ética ou uma estratégia de convívio decorre do fato de que é apenas na medida em que os elabora que ela se devolve a eles. Retorno oblíquo, quando já não se é o mesmo. Talvez um pouco como o retorno de André. Aliás, era isso quem sabe que André buscava: regenerar o seu poder de amolecer o mundo (perdido no caso com Ana). Ou seja, nesse experimentalismo, a vontade só tende a selecionar zelosamente os seus estímulos a fim de deixar-se fruir neles. E cada conquista é inequívoca, confirmada no interior da própria vontade, uma vez que gera necessariamente uma elevação atual de suas próprias disposições afetivas. Em troca, a cada elevação dessas, a vontade, então mais larga e acesa do que antes, passa a dispor de um fôlego mais generoso com o qual elaborar ainda mais poderosamente os estímulos. Ou seja, quanto mais a vontade se alegra, tanto mais tende — e com tanto mais poder — a se alegrar. A ampliação do poder ficcionalizante (delírio) alimenta

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a (ao mesmo passo em que também é alimentada pela) ampliação da mais fina e aprimorada sensibilidade acerca dos códigos a sua disposição e suas respectivas potencialidades — numa espiral de retroalimentação virtualmente infinita: mundo que cresce e ganha mais e mais realidade quanto mais dessemelhante se torna.

4.8. Do poético como verdade

Talvez porque — sobrancelhas franzidas — forçamos muita atenção no ler, é que por vezes lemos mal. Vai daí que muitos artistas e escritores reclamam desse excesso de luz sobre os objetos; desse excesso de vigília nos sujeitos. Não tardam a nos recomendar, cada qual a seu modo, uma espécie de roteiro terapêutico cujo ensinamento principal gira sempre em torno da redução dessas luzes; do afrouxamento dessas prensas; enfim, do distrair-se. Rigor mais paradoxal esse cuja eficácia está inusitadamente ligada a certas folgas de que se é capaz. Se tais terapias nos dizem respeito é porque não podemos nos esconder o embaraço que tanto mais se apossa de nós quanto mais dura e incisivamente nos dirigimos à experiência. De fato, sempre obtemos pouco de um espetáculo de dança, por exemplo, quando reduzimos nossa atenção a notar apenas seus elementos mais patentes e assinaláveis, o movimento e suas distribuições; sempre obtemos igualmente pouco de uma apresentação de música se a tomamos seletivamente pelo jogo das frequências sonoras e suas distribuições, notas e pausas etc. Afinal, o feito decisivamente miraculoso de toda arte, mas já de todo sentir, parece começar precisamente quando se cruza o ponto a partir do qual toda essa fisiologia do suporte material perde o seu protagonismo, mesmo quando tenta obstinadamente se consagrar nos limites deste — a exemplo de certas vanguardas modernas, como o cubismo e especialmente o suprematismo. Os movimentos de dança, as notas musicais, as palavras, como também uma simples impressão, um aroma, uma memória (Proust), em sua mutualidade, como que ensejam e cedem passagem a um princípio de delírio, plantando em nós o vetor sereno de ir- se indo nesse embalo, como que para nunca mais tocar de novo o chão opaco e frio a que se prendem os sóbrios “realistas” e seus pés de chumbo. Para estes, tais acessos e dilatações implicam “fuga da realidade”, pois creem que sob aqueles afrouxamentos obtemos fatalmente menos daquilo que experimentamos; que o devaneio vai na contramão do rigor e da realidade. Daí aquela reclamação dos artistas e escritores quanto ao excesso de luz e vigília; quanto a todo esse intelectualismo pseudo-rigoroso ser na verdade pouco inteligente. Ele subestima largamente a intimidade que há entre o poético e a verdade, pois mesmo que os grandes

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artistas e escritores tivessem alcançado o poético por uma famigerada exclusão da realidade, estes só poderiam fazê-lo apenas na medida em que pudessem fundar na sua própria expressão toda uma dinâmica das qualidades como máxima realidade. Realidade percorrida no interior de seu próprio jacto criador e, por isso mesmo, apenas na medida de uma correlata tenacidade perceptiva. Apenas assim, pois de uma poesia fraca podemos sempre dizer tanto que apreende mal aquilo que elabora, quanto que elabora mal aquilo que apreende. E o que podemos dizer então de certo hábito acadêmico que insiste deliberadamente em fazer menos que poesia ruim? Eis que o preconceito dos sóbrios “realistas” se desfaz tão logo notamos o desprezo criador como algo indissociável de um zelo auto-sensibilizador, todo um lavrar e colher. Ao contrário do que pretendem presumir, é justamente essa inextirpável irrigação de fantasia, esse mel e esse voo das palavras o que nos empolga a obter mais e a apreender melhor o próprio solo de onde se toma impulso — enquanto é, também esse solo, aí mesmo elaborado e ficcionalizado. Diante disso, e sendo efetivamente rigorosos, onde mais ou melhor se poderia fundar a verdade? A própria criação poética vai se apresentando como a mais legítima investigação da realidade, tão logo esta se afaste dos pontos de resistência objetivos fixados contra os devaneios, e se aproxime daqueles mais generosos para a imaginação. Pois não é no que resiste, mas sim no que provê a fantasia que o real vai sendo melhor apreendido. Não é, portanto, em alguma forma supostamente anterior (e por isso pretensamente mais real) àquela configurada por meio da experiência elaborada, mas justamente aí, na forma ficcional forjada sob a apropriação atuante já na mais rasteira experimentação que o vigor poético devém rigor hermenêutico — e vice-versa, nos termos daquele efeito de espiral ascendente, num elo indissociável entre o ímpeto mais delirante de fantasia e o acesso mais destinado à verdade. Nas palavras de Nietzsche:

Basta amar, odiar, desejar, simplesmente sentir — imediatamente o espírito e a força do sonho vêm sobre nós, e de olhos abertos e indiferentes ao perigo escalamos os mais perigosos caminhos, rumo aos telhados e torres da fantasia, sem qualquer vertigem, como que nascidos para escalar — nós, sonâmbulos diurnos! Nós, artistas! (NIETZSCHE, 2005, p. 97)287

287 NIETZSCHE, Friedrich. A gaia ciência. Tradução: Paulo César de Souza. São Paulo: Companhia das Letras, 2005.

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CONCLUSÃO

O remoinho da imaginação

Conforme Kierkegaard, Sócrates é a ironia tomada como ponto de vista existencial ou modo poético-existencial. Nassar talvez pudesse ter com a imaginação um relacionamento de radicalidade comparável. Mas tal como “ironia”, “imaginação” é um termo amplo demais, não nos dizendo muito antes de especificarmos seu sentido. Tradicionalmente, o que se vai primeiro tomar por imaginação é esse espaço de livre associação entre as ideias, essa liberdade de ignorar os limites fixados pelas constantes reiterações da experiência. E se ela é essa abertura propriamente inaugural é porque não se resume a percorrer possibilidades diferentes daquelas sugeridas pelo hábito, como se estivessem sempre igualmente disponíveis e a imaginação fosse uma mera abstração na qual as ideias testam ligações irreais e em separado: inofensivas. Ao contrário, é uma abertura que se dá na carne dos afetos, em luta contra suas tendências mais sedimentadas: os próprios hábitos, ou costumes. Estes, mais do que nos tornar apenas aptos a sentir e agir de determinado modo, nos tornam predispostos a fazê-lo. Foi o que observou Hume: “o costume não cria apenas uma facilidade para realizar uma ação, como também uma inclinação e tendência a realizá-la”.288 Lembremos que o enfrentamento de Nassar à autoridade construída pelo consenso, pela maioria ou pela razão é tomado como um exercício, algo que demanda um empenho subjetivo e uma produção de estratégias ou espaços de resistência, os quais acompanhamos sua constituição como parte do caráter dos mais diversos protagonistas de suas obras (e além). A imaginação entra nesse campo de combate como um problema concreto do mais alto grau, pois, ainda seguindo as observações de Hume: “a imaginação e os afetos mantêm entre si uma união estreita, e nada que afeta aquela poderá ser inteiramente indiferente a [estes].”289 Por outro lado, do ponto de vista da moralidade, vemos que esta só corta o fluxo dos nossos devaneios no limite em que estes escorregam em ações exteriores sobre o mundo, isto é, ali onde começam a fugir do espaço exclusivo da imaginação — para ser mais exato, ali onde o próprio espaço da imaginação foge da toca à qual a moralidade como que o empurra e o mantém. Tomada em seu próprio espaço, a imaginação vive a ligação entre as ideias como espetáculo per si, já que nada se pode fazer contra a espontaneidade de sua

288 HUME, p. 459. 289 Ibidem, p. 460.

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manifestação ao espírito. Daí o corte moral operar por admoestações, cerrada observância inter e intra-subjetiva (uns em relação aos outros e cada qual em relação a si), alfândega de tudo o que ameaça escapar da imaginação em direção ao campo compartilhado da vida diária. Se podemos dizer que Nassar insiste no ponto de vista da imaginação é porque as balizas da moralidade, dos hábitos e da tradição — que orientam a importância das coisas tal como devem ser assentidas pelos sujeitos, e da ligação entre as ideias tal como devem ser encontradas na realidade — são deixadas sob uma suspensão muito especial. Suspensão que desperta as ideias não como meras possibilidades abstratas, mas como tendências afetivas e atinentes, portando uma mais vasta realidade na qual a memória, por exemplo, pode ser vivida em pé de igualdade com um objeto diante dos sentidos. Basta que ambos os registros se confundam num só, terceiro (“de aquém e além mar”), a superar as restrições impostas pelos hábitos. Ora, somente uma fabulação mais viva poderia levantar uma liberdade soterrada sob tal peso, e, ao fazê-lo, somente sobre si mesma (não-lugar) poderia religar as ideias de modo autônomo — imoral ou amoral. Veja-se que é como um estrito movimento ficcional vivido no interior da imaginação que o personagem André (LA) avança incestuoso sobre Lula. Pode-se indagar se ele não percebe quando algo se passa no interior de seu devaneio ou quando toma forma entre as ações exteriores, mas essa pergunta só faz sentido se a imaginação ainda está subordinada à moralidade, isto é, se ela ainda não é o ponto de vista enquanto tal. Pergunte-se a um ator e se verá que a imaginação por si mesma nunca cessa no limite em que começa a ação, como quer o moralista. Antes, ela vivencia a ação em si. Avança, mistura e liga as coisas exteriores do exato modo como faz com as ideias que rolam afastadas das impressões originais sobre os sentidos, e cruza todos esses registros formando um outro tão ilocalizável e irredutível a esse ou aquele quanto absolutamente presente. Mundo outro, todavia precário, já que a imaginação quase nunca é deixada com a ação entregue em suas mãos, valendo de seu próprio ponto de vista. Antes, é frequentemente preterida por demandas fixadas sobre ela. Lembremos da atmosfera algo imaginária do conto “Menina a caminho”, suas cenas ligadas de modo planificado, numa linearidade marcadamente segmentada, em que pequenos episódios sucessivos e quase independentes começam imediatamente no limite em que o anterior finda, e assim por diante. Deixa-nos uma imagem claramente similar àquela do movimento das ideias que se trocam na mente, em um encadeamento simultaneamente rememorativo e projetivo: imaginativo. O conto apresenta-se como narrativa de narrativas, unidas pelo percurso da protagonista e pelo reiterado retorno ao tema da sordidez do mundo sexualizado que se choca contra a precária inocência da menina. Mas seu passeio é ainda parte de um exercício de experimentalismo que, por si mesmo, a encaminha a tais encontros e

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seus respectivos descobrimentos. É ela, menina, quem ativamente sonda, investiga, persegue, xereta, assiste, invade, descobre e supõe as ligações desempenhadas entre as coisas, pessoas ou, de modo mais básico, entre as ideias — e faz isso tão apenas porque é próprio da inocência não ter ainda fixadas essas ligações, mas ter de produzi-las e testá-las no espaço lúdico no qual são primeiramente experimentadas sobre o corpo, jogadas sobre os humores. Lembremo-nos dela, por exemplo, acocorando-se sobre o espelho em confusas apreensões, ou ainda mantendo tudo num registro de irrealidade e indiferença infantil com relação aos conflitos e traumas que a cercam, ameaçam-na e a transformam. A imaginação tanto incide sobre o corpo como elabora-se a partir do corpo. Quando o narrador descreve os olhos cheios de espanto da menina sob a descoberta de seu sexo emoldurado, pode-se supor que ela esteja abandonando a infância e, com isso, o espaço fabulador, o que é questionável não apenas porque ao fim ela sai para brincar, simplesmente, mas também porque o corpo, esse nosso mínimo ponto de contado com tudo o mais, acaba de lhe dar vivas mostras de que não está fixado, de que se move, estranho, preparando dilatações insuspeitas, e de que o faz com a mesma espontaneidade livre com que age aquilo a que chamamos de imaginação. De fato, a narrativa do conto gera uma textura que temos de chamar “imaginativa”, já que rebate-se em uma visão encantada do mundo, como o notou Maria José Cardoso Lemos: “O recurso ao discurso narrativo metafórico, associado ao discurso indireto livre, permite construir uma visão poética da experiência, bastante próxima daquela, mágica, da criança.”290 Eis a impressão de um espetáculo que simplesmente se dá: uma ideia sobe à mente e, simultaneamente, um afeto correlato atinge o corpo e suas disposições. Somente a partir de então se pode censurá-lo. Dito de outro modo, vemos o corpo fabulando seu espetáculo como que per si, e sendo empurrado ao sigilo do banheiro e ao posterior silêncio por uma espécie de recato que não é apenas análogo, mas é o mesmo que cerca e constrange a imaginação. Esse jogo se dá em múltiplas camadas, pois perceba-se ainda que quando a menina toca seu sexo, essa ideia é um evento imediatamente real, na medida em que não nos permite evitar encarar o afeto de sua presença: temos que conceber o vínculo que repentinamente se traça entre a menina e a ponta dos dedos acariciando “demoradamente” seu sexo. Essa a nossa irrecusável experiência: a dela — mas também a do narrador, a do autor. Essa a ideia nervosa, não tanto por se dar a ela, e sim por se dar a ela diante de nós, na verdade, por não se dar a ninguém em especial mais do que à própria imaginação que nos envia, a todos, à clandestinidade do espaço

290 LEMOS, Maria José Cardoso. Raduan Nassar: apresentação de um escritor entre tradição e [pós] modernidade. Alea: Estudos Neolatinos, Rio de Janeiro, v. 1, n.20, p. 81-112, 2003, p. 101.

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ficcional e à liberdade que este porta em relação à moralidade. É algo da mesma espécie que se passa quando ela, agachada e desapercebida do “sexo de piche” do cavalo, então recebe dele respingos de mijo, sendo abertamente escarnecida por carregadores, descritos ainda como “musculosos” e “atarracados”: “‘Num brinca co’a boneca do cavalo, menina’, debocha um deles acenando o chapéu em forma de cuia e engrossando com isso a gargalhada dos dois outros.”291 A menina está indefesa. É o que a cada vez experimentamos. Não apenas indefesa diante dos apuros estritamente narrados, mas em relação a nós mesmos e ao espaço da imaginação em sua autonomia naturalmente despudorada: somos todos “filhos-da-puta”, como diz o homem fofo da barbearia: “Na verdade, não tem ninguém, ninguém nesta cidade — ou não importa em que outra cidade — que não seja um filho-da-puta.”292 O tempo todo as ideias se misturam em nós, e se vinculam entre si, conforme se rebatem sobre nossos afetos diante da exposição da menina à sordidez dos adultos: inclusive nós, que a observamos da borda do texto. Contudo, não mais do que se misturam nela, conforme essas ideias se rebatem sobre seu corpo experimentador. Esse realismo e essa imanência entre corpo e imaginação nos atinge em cheio na cena do armazém, quando a visão da imagem de João Batista é arrastada por um breve delírio da menina. Leve flutuação, longe de ser fruto de um empenho propositado de abstração, longe de se dar pelo afastamento do contato tangido pelo corpo entre as coisas em sua imediatez, ela é um afundamento e uma aproximação ainda maior na matéria que está sendo concretamente experimentada bem como na sua própria língua a experimentá-la, repleta de memórias e pensamentos — efetuações que concorrem num mesmíssimo plano, estritamente presente. Eis o que se passa: a menina lambe um torrão de açúcar. É esse afeto que começa a foragir, a contaminar os demais, planificando a todos em um mesmo movimento, no qual esposa a imagem de João Batista sobre a outras, até então remotas, em remissões que inevitavelmente teremos de chamar de imaginárias, já que não se encontram dadas para além desses afetos. Ora, mas é por isso mesmo que se terá de aceitar que essas ideias só devem ser ditas imaginárias na medida em que são demasiado concretas e presentes ao corpo, a sensações e pensamentos através dos quais ganham forma. Isso ocorre justamente porque não se deixam reduzir à imediatez do fato; porque recusam aquela objetividade que no fundo é contrária à concretude do vivido e tributária, esta sim, de um princípio de abstração, dado que pretende conservar das impressões apenas o que se puder manter para além do corpo atualmente

291 MC, p. 18. 292 MC, p. 21.

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afetado — ou seja, as representações puras. Vejamos com detalhe esse episódio especial no armazém e como a imagem de João Batista pende ao sabor do torrão de açúcar:

A menina não tira os olhos é da imagem de João Batista estampada na bandeira do meio, contempla com indisfarçável paixão o menino de cabelos encaracolados que aperta contra o peito um cordeiro de tenras patas soltas no ar, um cajado roçando seu ombro nu. Lambendo o torrão de açúcar, o menino se transfigura, transporta-se pras noites frias de junho, o pano com São João drapeja no alto de um mastro erguido no centro da quermesse, afogueado pelas chamas de lenha que queima embaixo. Mas suspenso assim num recolhimento de sombras, o menino de olhos meigos e cabelos anelados se dilui talvez na calma triste de um convento. (MC, p. 42-43)

Quanto mais se entrega aos estados de coisas, mais estes flutuam permeados pelos demais afetos presentes. Mesmo no regresso do voo imaginativo — e justo por isso, por ser afetada pelo contraste — a menina recolhe o choque térmico que a intercepta: “o menino de olhos meigos e cabelos anelados se dilui talvez na calma triste de um convento”. Uma atenção que não se contenta em fazer analogias e extrair semelhanças daquilo que tem diante de si (sobre si). Antes, uma atenção maior, poética, vai produzindo e curtindo o tecido original de um afeto peculiar, segundo as ligações ainda afetivas que este traça com aqueles oriundos tanto da memória quanto de alguma elaboração atual. Fuça vínculos manifestos, produzindo- os na verdade. Uma atenção que só se permite voar à paisagem enclausurada de um convento seguindo ainda cerradamente o fio de sua apreensão telúrica bem ali: na particularidade do armazém, filtrando o preciso modo com que o ar do recinto afeta a já nem tão inerte imagem de João Batista, enviando-a à “calma triste de um convento”. Esse preciso modo (já poético) nada tem evasivo, pois não alça voo sem deitar raízes. Nada perde, por exemplo, do detalhe inicialmente trivial do “João Batista” estar “suspenso assim num recolhimento de sombras” — flagrado-o com ainda maior acuidade no pé do contraste que se sente ao se retornar de imaginadas “noites frias de junho”: o torrão de açúcar desdobra-se nos signos na cena. Sabemos que a menina tem algo a fazer ali, afinal, ela está a caminho. Contudo, perde- se tanto e se deixa ir nesses múltiplos desvios, aos quais sobretudo contempla vivamente, que, quando enfim a vemos desatar o recado que levava a seu Américo, a impressão é a de sermos de repente acordados. Pois cada desvio anterior é um poço, uma agitação sedutora da imaginação prometendo e motivando mais do que a mensagem ordinária que serve parcamente de motivo a todo o percurso. E ela se deixa ir atrás de cada canto de sedução com a mesma entrega com que, por exemplo, olha a imagem de João Batista ao sabor do torrão de açúcar. O percurso da menina é como uma linha que ordinariamente se pretendeu traçar de um a outro ponto determinado, mas ocorreu que no caminho topou com certos declives, certos

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deslizamentos, enfeitiçou-se olhando seu fundo — passando além apenas à força de mais ter sido expulsa a cada vez do que por retomar a si mesma e ao objetivo inicial. São tais espécies de afundamentos ou tais chamados sensíveis ao ato imaginativo que devem nos interessar aqui; tais declives ou poços para os quais se é magneticamente atraído por um inebriante afeto; remoinhos da imaginação. Pode-se pensar que não demandam uma atitude subjetiva especial, uma vez que são um espetáculo per si; que seduzem e mergulham o indivíduo em suas águas com tão persuasivo influxo que parecem mesmo dispensar os protocolos de uma adesão propriamente voluntária. Contudo, dar corda a esses remoinhos, embarcar e seguir seus desvios, tomá-los como perspectiva existencial a ponto de se perder neles enquanto tudo o mais grita urgências lá da varanda, tudo isso é o que sobretudo exige um muito específico ethos. Na tese de Kierkegaard, Sócrates é a ironia como “ponto de vista existencial” porque ocupa seu modo de vida em todos os seus momentos e aspectos. Pode-se objetar que no caso de Nassar, em relação à imaginação, o ethos em questão paira dessa vez como algo mais intermitente, nunca perene. Mas seu poder é justamente o de nos fazer apreender daí mesmo tanto os exercícios mais luminosos e preenchidos quanto os movimentos mais afastados e desprovidos: independente do ponto em que se está, trata-se sempre de fruir e retomar a espiral de um equipotente afundamento. A imagem de um remoinho da imaginação deve nos recomendar de uma só vez a confluência entre viva atenção zeladora e inercial desatenção letárgica. Mas deve nos recomendar fundamentalmente essa potência poética que acolhe as coisas no campo ampliado do corpo. Considere-se essa ampliação nos termos de uma estrita fenomenologia: o corpo sendo o conjunto dos afetos presentes. Feito isso, não se colocará mais aquelas mil equívocas linhas entre fato e ficção, objetividade e projeção, concreto e abstrato. Tudo cede à lírica voragem: o torrão de açúcar, a imagem de João Batista, certa memória, certa iluminação, as sugestões de um cenário. Toda uma festa produzida contudo sobre um mesmo plano: afetos de origens diversas ali conectados uns aos outros segundo suas repentinas sugestões para a paisagem comum que conspiram, fazem florescer e ampliam. Essa planificação, generalista num primeiro momento — já que dissolve toda sorte de limites e distinções entre os afetos —, tem um efeito oposto do ponto de vista da apreensão dos elementos que se fazem presentes à experiência: sem a mediação que os protegeria do contato com o corpo, os afetos agora têm de se mostrar em suas respectivas singularidades, esbarrando-se nus, ligando-se uns aos outros tão apenas conforme suas respectivas afinidades em dado momento. É porque, então, esses elementos todos se tornam irredutivelmente discretos uns dos outros, sendo tomados cada qual em sua própria singularidade, que suas ligações já estabelecidas pelo costume passam a ser muito frágeis frente à imaginação e sua

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sanha criadora. Assim, a planificação típica da representação é que se torna inviável quanto mais o sujeito parte dessa outra planificação, típica da imaginação e imanente ao corpo, ampliando em vez de reduzir o terreno concreto do vivido. Isso é ainda mais flagrante quando vemos que o ato imaginativo vai dispensando essa tarefa articulatória de conectar as ideias e/ou as coisas segundo uma gramática ainda representacional. Será que podemos chegar daqui ao ponto em que está André, em Lavoura arcaica, na sua relação direta com as palavras (palavras-afetos) como se dizendo apontasse ou, mais, fizesse-nos ali mesmo experimentar certo afeto? Considere-se André em dado momento tal como a protagonista de “Menina a caminho” diante da imagem de João Batista; repare-o narrando: “e é enxergando os utensílios, e mais o vestuário da família, que escuto as vozes difusas perdidas naquele fosso.”293 Repare- o descrevendo o lamento puxado pela mãe na tragédia final do livro: “tinha cal, tinha sal, tinha naquele verbo áspero a dor arenosa do deserto.”294 A singularidade nua das coisas em seus afetos respectivos e inalienáveis é assumida com tal segurança em sua escrita que o narrador nem sequer se presta a secar em maiores explicações aquilo que quer com elas atingir a cada vez, e no entanto atinge em cheio. Em tudo se evade de movimentar composições engenhosas de literato; antes, simplesmente acorre às palavras de modo quase dêitico, como que apenas apontando e sobrelevando no vasto campo dos afetos planificados sobre o corpo aqueles justos; aqueles que em sua colheita venturosa arrecadam um sentido estrito e impecável tão logo nos surpreendam com a evidência a que nos enviam. E faz isso, insisto, tão apenas designando, por exemplo, certas coisas jogadas num canto ou retiradas de uma vez do cesto e da memória — como se ao mostrá-las, apenas, as mostrasse já recheadas de significação. Indo até certo ponto nessa direção, André Luis Rodrigues acredita que esses objetos, “ao impregnar-se dos valores da família, perdem em utilidade o que ganham em representação”.295 Sua hipótese, porém, estanca no limite em que todo efeito fica reduzido a um cruzamento entre tais objetos e determinadas atribuições de natureza antropomórfica ou anímica, que somente os ligaria aos afetos familiares de maneira metafórica. Diz-nos:

Assim, mais do que semelhança, analogia ou contiguidade, o que aproxima esses objetos na rememoração é o que neles há de simbólico relativamente ao sofrimento, às dores e às desgraças familiares: o secador é provecto; as gamelas, ulceradas e carcomidas; a caneca, amassada; a moringa, machucada; o torrador de café, enegrecido, lamentoso e pachorrento; o ferro de passar, febril. (RODRIGUES, p. 145, grifos do autor)

293 LA, p. 146. 294 LA, p. 262. 295 RODRIGUES, 2006, p. 145, grifos do autor.

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Parece-me, contudo, que ao invocá-los de uma só vez o narrador os está compondo num afeto terceiro. Sem maiores recursos articulatórios intermediando e pacificando a carga dessas palavras em alguma forma de metáfora, a composição há de ser compreendida de modo mais peculiar e quiçá elevado. Ela suscita uma generosa entrega à percepção apurada dos signos que ressoam como que na materialidade (pele e peso) da palavra; uma fina captação de suas emissões imaginárias, virtualizadas pelas marcas de sua circulação em certos campos semânticos e impregnações várias. As insinuações que burburinham ao pensamento, afetando as demais ideias de um modo eminentemente corpóreo e imediatamente afetivo são, mais do que qualquer outra coisa que se lhes acrescente, a camada decisiva de seu significado. Fazem sentido na proporção (e na qualidade) em que se fazem sentir. Vejam que tal lista consta no capítulo 10 de Lavoura arcaica, quando André segue de fato montando uma espécie de inventário das “coisas da família”, puxando-as do poço da memória. Elas são seguramente afetivas, porém insisto que não apenas na medida em que afetam a ele, André, em sua familiaridade presumida, e nem exatamente porque afetam a nós, que tampouco passamos ilesos pela viva atmosfera que levantam. São afetivas sobretudo porque afetam umas às outras, impessoalmente, forjando algo bastante especial: uma singular performance da rememoração enquanto tal. Esta, independentemente de termos um dia estado diante desse conjunto tão preciso de coisas, vivemo-la em nós ainda assim como rememoração, isto é, sob o bafio que marca as exalações de um poço antigo. É que esses múltiplos afetos singulares (o “latão de leite sempre assíduo na janela”, o “ferro de passar saindo ao vento pra recuperar sua febre” etc.) compõem um só afeto simples, cuja unidade não poderia portanto pertencer mais à interioridade pressuposta de uma pessoa, André, do que à exterioridade explícita que desfrutam sobre si mesmos no seio de uma materialidade desguarnecida. Diferente de um realismo mimético, tem-se aqui um realismo que é tanto da forma quanto do conteúdo; mas que, em vez de se afirmar por alguma esperável autonomia com relação à subjetividade, vai, no entanto, envolvê-la e fazê-la reagir junto aos demais elementos na química franca de suas misturas. Tem-se uma unidade já cheia de significado, encharcada de potenciais que não são e nem poderiam ser, eles próprios, a obra arbitrária de um narrador ou pessoa qualquer; de signos ativados, apropriados de súbito por uma ação tanto mais criadora quanto mais pode recolhê-los em gomos inteiros e já maduros, adiantando-se apenas em servir-se deles nas licenciosas composições que forma. É o que lemos: não bem uma listagem de objetos que representariam os conteúdos rememorados por um dado personagem — e nós sendo disso informados —, mas especialmente uma série de afetos em si mesmos significativos e prontos para valerem diretamente como experiência de rememoração — e nós sendo dela acometidos.

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Assim também quando diz coisas do tipo “batendo a pedra do punho contra o peito”,296 entrega-nos uma experiência inequívoca, vazando a capa pacífica das representações e nos levando de pronto a imaginar essa “pedra do punho” não apenas em sua força, mas em sua qualidade só poeticamente captável: corpo significativo que nos mostra diretamente esta imagem tão improvável quanto exata e iniludível. Afeto singular em vez de metáfora. Esse procedimento se desdobra nas próprias ações narradas, cuja natureza e presença tende a dissolver a divisa entre ação atual e ação rememorada. Thayse Leal Lima, em seu estudo, chama nossa atenção a esse aspecto franco e plástico. Servindo-se das descrições do capítulo “Na cama”, de Um copo de cólera, mostra o protagonista narrador experimentando em seus pensamentos toda uma viva cena sexual que se abre como algo tanto resgatado em lembranças quanto projetado em expectativas, mas algo fundamentalmente vivido de modo imediato e sensível em sua textura afetiva a mais presente. Conforme Thayse:

Os verbos no gerúndio, expressando ideia de ação em trânsito, e a descrição dos detalhes de cada movimento além de criarem uma cena vívida, pictural, podem gerar no leitor mais desprevenido a impressão de que a ação ocorre no momento em que é narrada. Essa forma de “narrar mostrando” faz com que nos esqueçamos de um detalhe importante [...]: na verdade, toda a cena descrita não passa de algo imaginado (ou rememorado) pelo personagem-narrador, sendo, portanto, uma espécie de imagem mental que ele repassa enquanto espera pela parceira. (LIMA, 2006, p. 63)

É que a virulência nos vínculos entre as ideias não parece trocar de espaço quando chega a ponto de abrir vaga entre corpos e ações e se inscrever no mundo, pois tal inscrição é ela mesma imaginativa se considerarmos o quanto sempre demanda um meio artificial, isto é, um meio por se produzir. Isso pode ser apreendido na imagem de inocência infantil da menina (MC) em seu movimento lúdico, no qual experimenta dilatações que liberam tanto as ideias de suas ligações quanto o corpo de suas fixações. Por outro lado, também pode ser visto na reserva clandestina com que trafega a sordidez dos adultos da cidade. No fim das contas, ambos procedem do mesmo. Isso porque a imaginação é de fato essa clandestinidade, e, apesar de todos os revezes, a própria inocência da menina não encontra apenas um limite, mas também um convite a atuar e a se mover nos termos dessa clandestinidade. Seu aprendizado deriva e dá saltos em silêncio, entre lances confusos, porém repletos de experimentalismo. A imaginação, mais do que em sua tradicional relação com o corpo — este doando os dados dos sentidos que aquela manipula quando deixada per si —, vai encontrar ainda aí, algo mais: no corpo, um critério ativo para os diversos vínculos que estabelece entre as ideias. Tal

296 LA, p. 262.

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limite fisiológico da imaginação são os humores: seus golpes e acendimentos, as cóleras, os sonos etc. Todas essas disposições da vontade são vividas não como abstrações pairando mediante escolhas que se faz, mas como afecções flagrantes das conexões produzidas entre as ideias que se assediam e o efeito espontâneo que inspiram sobre o quadro geral dos próprios humores. São, portanto, bem concretas e reais. Daí o conto “Menina a caminho” narrar o tempo todo disputas não apenas da moral, mas do moral: Zuza primeiro se sobrepondo malicioso aos outros garotos por meio de seu gesto, “movimentando lentamente o braço teso da banana, para cima e para baixo, os olhos cheios de safadeza”;297 dona Ismênia, em seguida, sobrepondo-se a Zuza, zombando de seu gesto com uma malícia relativamente superior, animando risos cúmplices atrás da cortina. É como se, a cada vez, o mais despudorado (fatalmente o menos inocente) prevalecesse nessas disputas que não reclamam motivo mais profundo que o da simples abertura dos ânimos, levando a imaginação a dar-se de pronto a quaisquer infames torpezas de onde se possa arrancar matéria de risos e festejos particulares. Eis por que devemos nos voltar diretamente aos transportes carreados pelo que se diz em vez das representações que lhes servem de capa acessória. Eis também por que, mesmo no nível mais geral da produção poética nassariana, e a despeito de toda sua inter- referencialidade, é nas cargas humorais, prontamente sensíveis, que devemos encontrar um fundamento mais elevado para desvendar a criação (ou convocação) das palavras ali brandidas, em vez de qualquer simples “referência” a algum autor ou posição, recurso de todo mais indireto e desligado do suporte corpóreo imediato e incontornável. Devemos nos dirigir à organização interior dos fluidos em função da qual o remoinho da imaginação devém um programa concreto e exige a elaboração de um ethos correspondente; uma atitude que alcance as ações assinaláveis cujos ritmos ela então se destina a zelar e gerir. Num sentido (ainda secundário), segue perspectivando desde fora: das palavras atalha- se ao seu miolo, orçando-as como quem apenas apalpa a lisura superficial da casca para melhor decifrar abaixo a carne, viçosa ou magoada, que nos oferecem e nos fazem ingerir:

Aquele “mocinho” foi de lascar, inda mais do jeito que foi dito, tinha na observação de resto a mesma composta displicência que ela punha em tudo, qualquer coisa assim, no caso, que beirava o distanciamento, como se isso devesse necessariamente fundamentar a sensatez do comentário, e isso só serviu pra me deixar mais puto, “pronto” eu disse aqui comigo como se dissesse “é agora” [...]. (CC, p. 30)

Tudo isso nos coloca já bem distantes daquela imagem simplista em que a imaginação paira como mecanismo abstrato de livre associação das ideias. Pois vemos já que tal

297 MC, p. 13.

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associação sempre incorpora e revela toda sorte de afinidades semióticas e de ondas humorais movimentadas em sua produção, imanentemente, segundo o fluxo de códigos e afetos determinados que comporta a cada vez. Noutro sentido (e esse sim prioritário) tal movimento se radicaliza e, tão só por isso, ele como que muda de natureza e de direção. Agora ele segue perspectivando para dentro: turbilhonando fundo e inicialmente suave até entorpecer toda a massa da subjetividade e seu caldo grosso na própria circularidade hipnótica que liquidifica a tudo, tanto os móbiles em torno quanto a si mesmo. Trata-se de um deslizamento escalonado. Um pouco de vibração compassada e já se explicam as pequenas desistências, os recuos a meio caminho (“mas acabei não dizendo nada, nem ele disse qualquer coisa, logo recolhendo o aceno vago do seu gesto”).298 Com um pouco mais de pulso nessa rotação, despontam silêncios longos, escapes robustos (“que que você tem?”).299 Dê-se uma carga decisiva e a vertigem arrastará toda a paisagem. Delírios mais fortes virão trançar os cabelos de tempos distintos, desmembrando a subjetividade em mil partes esfaceladas (“minha cabeça rolava entorpecida enquanto meus cabelos se deslocavam em grossas ondas sobre a curva úmida da fronte [...], mas meus olhos pouco apreenderam, sequer perderam a imobilidade ante o vôo fugaz dos cílios”).300 Cada acréscimo de intensidade nessa cadência pesa no mesmo escorregar maciço rumo à modorra mais espessa e opaca, ao sono mais sem sonhos. Assim como a menina (MC) que vê sem compreender seu sexo emoldurado, podemos pensar em André (LA), que no chão de seu quarto vê a maçaneta girar: “mas ela em movimento se esquecia na retina como um objeto sem vida, um som sem vibração, ou um sopro escuro no porão da memória.”301 A mesma pane de incompreensão a nascer de uma imaginação que, de tanto se afundar na carne das afecções do corpo, descola-se não só dos limites morais da vida pragmática como do próprio plano da ação. Desliza para a letargia. É assim que o chacareiro se encontra quando a ação também lhe escapa ao fim de Um copo de cólera: “em vez de me entregar a estripulias de regozijo, fiquei ali parado, olhando o chão como um enforcado, o corpo enroscado nas tramas da trapaça.”302 Isso emblematicamente reproduz nos mesmos termos o final de “Menina a caminho”, quando após igualmente agredir a mulher e afundar em meio aos impasses da cena seguinte, Zeca Cigano é descrito com “a

298 LA, p. 139-140. 299 CC, p. 25. 300 LA, p. 82. 301 LA, p. 82. 302 CC, p. 70.

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cabeça tão caída que nem fosse a cabeça de um enforcado”.303 Imagem precisa: sequer necessitamos determinar a causa ou a representação última que gira no pensamento nesses momentos de pane, pois são mesmo confusas e não nos dariam, elas próprias, qualquer acesso ao seu fundamento. Também por isso não precisamos saber que conteúdos ou motivos anteriores estão de fato em jogo na atitude do protagonista de “Hoje de madrugada”, por exemplo. Basta notarmos que ele em nada se move na direção de desfazer a dúbia atmosfera com a qual, isso sim, vai torturar a esposa. Mesmo quando sonda seus motivos, o faz como um exercício diletante de imaginação, ainda não crivado por qualquer preocupação imediata ou exigência de realizar alguma ação iminente — um pouco gozando de ter talvez empurrado a mulher a uma pane equivalente:

Numa arrancada súbita, ela se deslocou quase solene em direção à porta, logo freando porém o passo. E parou. Fazemos muitas paradas na vida, mas supondo-se que aquela não fosse uma parada qualquer, não seria fácil descobrir o que teria interrompido o seu andar. Pode ser simplesmente que ela se remetesse então a uma tarefa trivial a ser cumprida quando o dia clareasse. Ou pode ser também que ela não entendesse a progressiva escuridão que se instalava para sempre em sua memória. Não importa que fosse por esse ou aquele motivo, só sei que, passado o instante de suposta reflexão, minha mulher, os ombros caídos, deixou o quarto. (HM, p. 58.)

O tempo todo somos chocados por um mesmo singular comportamento físico-mental, por uma notável crueldade livre no modo de vasculhar e de ligar as ideias e as representações na carne de seus afetos correspondentes. Nem aqueles com quem se está em relação de intimidade escapam a isso. Ainda em “Hoje de madrugada”, o narrador nos diz: “Tentei arrumar (foi um esforço) sua imagem remota, iluminada, provocadoramente altiva, e que agora expunha a nuca a um golpe de misericórdia.”304 Repare-se mais uma vez que é uma disposição repentina ou um aspecto eminentemente corpóreo o que determina tal liberdade interior do pensamento (seu modo), e não os próprios motivos ou representações assinaláveis (seus conteúdos). Primazia da imaginação como remoinho, como atiçamento somático que dispensa sentidos mais meandrosos ao se dar prontamente sobre os humores. É no remoinho da imaginação que a pane da ação encontra seu fundamento — como em CC e MC, HM. É ele a febre, o feno e o sono de planta de André (LA). É a ele que se dirigem as desatenções repletas de silenciosa fruição do chacareiro (CC), bem como toda a incitação do narrador de “Aí pelas três da tarde”. É ele essa “vida interior”, esse movimento de fluidos cuja imersão pode fazer o indivíduo indiferente à maior das urgências. É ele

303 MC, p. 48. 304 HM, p. 55.

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também essa constituição do indivíduo na ilha distante e todavia íntima em que seus pensamentos divisam uma segunda natureza das coisas. Nesse remoinho da imaginação, os personagens de Nassar fruem, por exemplo, um elemento qualquer ao seu redor como um afeto imediato sobre si, este tão desatado de marcadores morais quanto encharcado de cifras afetivas. Liberam-se ao prazer e ao despudor, à crueldade e à contemplação devotada, à falsidade e à simples impenetrabilidade com que perfazem suas relações com o outro. Buscam nas palavras a sua plasticidade vicariante, o seu poder anfíbio de funcionar em meios outros, interceptando e valendo entre dimensões fisiológicas. É tal remoinho a imagem intermediária que nos permite ver, tão logo a miramos, a unidade poética de Nassar. Ali a clandestinidade afetiva, o cinismo, o esmaecimento do que se passa objetivamente fora (grande indiferença), tanto quanto o avivamento do que se passa subjetivamente dentro (delírio), o valor e a constituição das coisas e das relações em seus respectivos estágios inaugurais de doação e de produção (devoção). Ali, Nassar e seus personagens: bebendo e se embriagando. Seria equivocado tratar o sentido da imaginação nassariana como um elogio do sonho e das múltiplas paisagens que se pode nele representar ao espírito: as infinitas maneiras de se ligar ideias umas às outras. Mais exato seria, como vimos, dizer que é um elogio do sono em seu movimento opaco de deslizamento, em seu prazer ainda cego de qualquer imagem. Em sua superfície, de fato, as imagens até aparecem, mas sobretudo como desperdícios “esquecidos na retina”, ou então como meios disponíveis, úteis na medida de um cinismo que só mexe com elas como que para mexer consigo próprio, para animar o seu próprio movimento. Essa a atitude dos protagonistas; esse o seu ethos. Esse o seu ponto de vista sobre o mundo e sobre o limite das ações: o horizonte pelo qual se orientam. Esse o lugar de onde os protagonistas miram os gestos desprovidos daqueles que vêm às suas margens tentar recuperá-los para o lado de fora — abotoando-lhes a camisa, abrindo suas venezianas, a exemplo das admoestações de Pedro (LA). A contundência desse ethos reside na imaginação desde que não a tomemos como obsessão a alguma imagem especial, nem como sede insaciável de experimentar imagens mil. Ao contrário, reside na imaginação enquanto disposição sensível cujo tônus é ampliado conforme o corpo e a atenção escapam das fixações que comprometem, enfraquecem e degeneram esse mesmo corpo e atenção. O que pode nos confundir aqui é o fato de que a imaginação, tomada nos limites desse gesto sensível e cego, não exclui todavia um concomitante e intenso fluxo de imagens. Na verdade, ela abre e anima toda uma voracidade intensa e inaugural em que as imagens aparecem resplandecentes de possibilidades afetivas, inclusive para o bem da força poética que delas se serve. Vimos como, no limite, isso marca aquela sua maneira de “narrar

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mostrando”. Mas é preciso ver ainda que em Nassar nada disso consta como objetivo último, afinal, não se está prosaicamente procurando um simples meio cujo valor remeta a alguma finalidade diversa, algo assim como uma mina de onde se pretenda em seguida voltar com alguma pepita nas mãos: uma obra. Antes, é o inverso: convive-se com tais imagens e seus potenciais poéticos justamente enquanto dão testemunho in loco de uma agitação interior vergando sempre no sentido dessa descida ao poço, arrastando a um ponto ideal em que o dizer, o significar e, enfim, o comunicar não detenham mais o protagonismo. Vemos isso melhor se nos voltamos para as diferenças entre os motivos da fuga de André e aqueles que agitam o irmão Lula. Este último pode ser pensado ainda nos termos da imaginação como simples abertura do horizonte de experimentação das imagens. Diz Lula:

Quero conhecer muitas cidades, quero correr todo este mundo, [...] quero conhecer também os lugares mais proibidos, desses lugares onde os ladrões se encontram, onde se joga só a dinheiro, onde se bebe muito vinho, onde se cometem todos os vícios, onde os criminosos tramam os seus crimes; vou ter a companhia de mulheres, quero ser conhecido nos bordéis e nos becos onde os mendigos dormem, quero fazer coisas diferentes, ser generoso com meu próprio corpo, ter emoções que nunca tive (LA, p. 247-248)

Lula interpreta a fuga de André segundo suas próprias disposições. Recolhe do ato do irmão apenas a superfície dos eventos que presumivelmente se abriram à sua experimentação, lamenta-se talvez por não ter sido ele a percorrê-los. Ele, que emblematicamente carrega muitos dos signos de extrapolação e de recusa com os quais bem poderíamos descrever André: “não agüento mais os sermões do pai, nem o trabalho que me dão, e nem a vigilância do Pedro em cima do que faço, quero ser dono dos meus próprios passos”.305 Essa aproximação faz com que também nós participemos um pouco da suposta coincidência entre os irmãos quanto a seus motivos e situação. Mas eis que André, de modo diametralmente oposto, não nos permite seguir por aí quando diz: “[...] não era com estradas que eu sonhava, jamais me passava pela cabeça abandonar a casa, jamais tinha pensado antes correr longas distâncias em busca de festas pros meus sentidos.”306 André tira completamente o peso da experimentação frívola do mundo.307 A abertura não interessa pelo banquete de possibilidades virtualmente infinitas, mas apenas por permitir — se permite — um mergulho inverso, desprovido de distâncias e variações inúteis; um mergulho que em última instância tende a

305 LA, p. 247. 306 LA, p. 138-139. 307 Assim como o narrador de “O ventre seco” em sua diferença com Paula: “tenho todas as medidas cheias dos teus frívolos elogios do amor” (VS, p. 64).

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anular tudo o mais em prol da afecção pura de si mesmo nesse afundamento. A notável diferença entre Lula e André sobre os motivos da fuga encena um gesto retificador acerca da compreensão diversa que podemos fazer da própria imaginação nassariana. Esta não é tomada como um espaço repleto de novidades em comparação com um espaço mais enfadonho que chamaríamos de realidade. Ao contrário, ela sequer é um espaço, mas um ponto zero em que toda percepção é ainda afecção: nenhuma distância. Pode-se dizer que sua voragem, seus remoinhos, nos dão a imaginação como princípio de silêncio e não como multiplicador de ruídos. Daí que, embora libere as luminosas imagens, sonhos e devaneios de uma prosa poética, isso é feito apenas enquanto se aprofunda na massa escura e cega da própria carne sensível com a qual de fato se afaz: cansaço e sono. Por isso, enquanto Lula fala, André pensa: “[...] e enquanto eu escutava aquelas fantasias todas — infladas de distâncias inúteis — ia pensando também em abaixar seus cílios alongados, dizendo-lhe ternamente ‘dorme, menino’”.308 É que o sono é um acontecimento concreto, experimentado na espessura que o separa da vigília, e é nessa espessura que a imaginação desata suas ideias e imagens; que nos oferece manipulá-las dos mais generosos modos. Mas são bens secundários, pois nunca é atrás delas mesmas que os protagonistas de Nassar chegam até aí. Não é o caso de se subordinar a imaginação à ordinariedade cotidiana que a espera na borda, como se o afundar nessa espessura que há entre sono e vigília se desse à maneira de um anzol que desce sob planos de retornar a meio caminho com algum prêmio fisgado. Antes, trata-se de tomar a imaginação como uma tendência vetorial de, enquanto predomina, seguir atravessando indefinidamente toda a sua espessura, escorregando rumo ao próprio sono (de planta). E já não será estanho que isso se organize naquela insubordinação dos protagonistas e narradores de Nassar diante do mundo moderno e suas cotidianidades — neste, sim, eles sobem apenas o suficiente para poderem retornar o quanto antes ao poço de sua letargia redentora. Pensemos no desabotoar dessa prazerosa dissipação, desse afeto que nos vai fazendo adormecer, e divisaremos o sentido opaco desse remoinho da imaginação. É algo assim que seduz o chacareiro de Um copo de cólera quando ele se entrega inteiro às carícias da mulher no banho; ou às expectativas e devaneios sexuais na cama; ou às contemplações distantes dentro de seu silêncio imperturbável. É ainda algo da mesma espécie que o coloca em sua pane, ao final da briga com a mulher — quando vai afundando (como um enforcado) em lembranças remotas da mãe. Basta um vislumbre da sugestiva continuidade entre esse protagonista com aquele do conto “O ventre seco” para vermos que não há metáfora alguma

308 LA, p. 248-249.

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— ao contrário, há mesmo uma evidente tentativa de deter todo recurso evasivo ou de transigência alienante na formação de um ponto ou ciclo inveterado — quando este diz: “estou cansado, estou muito cansado, Paula, estou muito, mas muito cansado, Paula”. E já não se trata apenas de André, pois os demais protagonistas tampouco estão buscando correr mundo. Todos estão vivendo o problema de uma séria negociação — sempre no menor número de cláusulas possível — tentando assegurar o mínimo inegociável, isto é, aquilo que precariamente chamaríamos de um “si mesmo”. E o que fazem de si mesmos senão, vez a vez, negarem a sua parte no modo de vida do homem (especialmente em sua consagração como homem moderno)? Mesmo quando desvendam as virtudes do trabalho é para demarcá- las também em seus ciclos de arrebatamento, também em sua intransigência e opacidade, a exemplo de marcantes passagens de Lavoura arcaica. O próprio Nassar nos diz em entrevista: “Hoje minha vida é fazer, fazer, fazer, no âmbito da fazenda evidentemente, num espaço de constante transformação, o que não deixa de ser uma outra forma de escrever. Além disso, tem em comum com a literatura o fato de eu não saber por quê. Então, é fazer, fazer, fazer”309. Sim, pois fora desse pulso ritmado e mântrico, suas incitações não pretendem fazer qualquer elogio do trabalho, ainda menos de um supostamente “mais criativo”; nem promover uma famigerada liberação da percepção, dos pensamentos e experiências; nem bem levar a uma superação das formas de governos, ou melhorias sociais de qualquer espécie; nem abrir novos paradigmas estéticos para a literatura, as artes ou a cultura em geral. No mais das vezes, suas incitações nos impelem a abandonar tudo isso e simplesmente nos deixar embalar pelo sono; seguir o pulso desses ciclos, o fio desse cansaço. É assim que o narrador de “Aí pelas três da tarde” quer nos arrancar do mundo do trabalho e nos fazer deitar na rede. Sempre esse remoinho da imaginação; esse afogamento que num momento embaralha as ideias e as torna em leve confusão, enquanto nos toma e enquanto nos deixamos tomar por ele. Essa travessia cuja envergadura do gesto remonta um afeto rígido: dormir. Ocorre ainda desse remoinho ser mirado por Raduan Nassar, que então nos diz sem enganos:

Gostar, gostar para valer, eu gosto mesmo é de dormir. Dormir é a melhor coisa deste mundo. Nem leitura, nem diversão, nem uma boa mesa, nada se compara. Sexo então é fichinha perto. É um momento de magia quando você, só cansaço, cansaço da pesada, deita o seu corpo e a sua cabeça numa cama e num travesseiro. Ensaio, prosa, poesia, modernidade, tudo isso vai para o brejo quando você escorrega gostosamente da vigília para o sono. É o nirvana! 310

309 CADERNOS, p. 39. 310 SABINO, 1997.

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