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Autoficção e industrial cultural na construção do mito do autor: caso

Francielli Noya Toso (Ufes) ([email protected])

Resumo: Os romances de Chico Buarque têm disparado na lista dos livros de ficção mais vendidos no Brasil, acendendo o debate acerca da relação entre literatura e indústria cultural. Neste artigo, será analisado o papel da autoficção e da indústria cultural na criação e difusão do mito do escritor, trazendo para o centro da discussão o caso desse autor brasileiro, que desde o século passado figura na mídia nacional com o status de celebridade. Para tanto, serão consideradas as contribuições de Theodor W. Adorno e Max Horkheimer sobre a noção de mito.

Palavras-chave: Mito; Chico Buarque; indústria cultural.

Abstract: Chico Buarque has been shooting the list of best-selling fiction books in , sparking debate about the relationship between literature and the cultural industry. In this article, we will analyze the role of self-fiction and the cultural industry in the creation and diffusion of the writer's myth, bringing to the center of the discussion the case of this Brazilian author, who since the last century has appeared in the national media with celebrity status. To this end, the contributions of Theodor W. Adorno and Max Horkheimer on the notion of myth will be considered.

Palavras-chave em língua estrangeira: Myth; Chico Buarque; cultural industry.

Introdução

Neste artigo, a pergunta sobre a importância de quem fala, lançada por Michel Foucault na conferência “O que é um autor” (2001), é revisada para uma reflexão sobre o estatuto do autor e da literatura na contemporaneidade, tendo em vista a perspectiva crítica acerca da indústria cultural a partir de um caso específico no Brasil, que é a do autor Chico Buarque. A questão será debatida considerando a noção de mito oriunda das contribuições filosóficas da Escola de Frankfurt. Na conferência "O que é um autor" (2001), proferida por Michel Foucault em 1969 diante dos membros da Sociedade Francesa de Filosofia, o tema do apagamento da figura autoral é introduzido pela pergunta "Que importa quem fala?", atribuída a Samuel Becket. No entanto, a Foucault, naquele momento, não interessava apenas reforçar esse desaparecimento, mas, principalmente, identificar os lugares vazios onde a sua função era exercida. Dentre os argumentos arrolados pelo pensador francês estava a constatação da impossibilidade de tratar o nome do autor como nome próprio comum e que isso se dava devido a influência desse nome na circulação e difusão de uma obra no interior de uma sociedade. Portanto, para analisar a função autoral, é preciso observar a forma como os textos se comportam e são

organizados a partir da atração operada pelo nome do autor. Neste artigo, conduziremos a questão foucaultiana acerca da autoria a uma aproximação com as noções de mito e indústria cultural desenvolvidas pelos filósofos alemães Theodor W. Adorno e Max Horkheimer, antes da conferência no Collège de France, para identificar os mecanismos econômicos e sociais que ainda administram tanto a circulação dos textos, como também a atração desempenhada pelo nome de autor. Em Dialética do esclarecimento (2006), Theodor W. Adorno e Max Horkheimer desenvolvem o conceito de indústria cultural ao traçar a gênese do esclarecimento desde a Odisseia, de Homero. Na visão dos dois teóricos, a obscuridade da magia e dos mitos é combatida pelo saber e pela razão, que coordenam o processo de desencantamento do mundo. A partir da dissolução da magia e do mito, o esclarecimento livra o homem do medo e transforma-o em Senhor. Esse domínio, segundo o esclarecimento, só é possível por meio do conhecimento das leis da natureza, porque "desencantar o mundo é destruir o animismo" (ADORNO; HORKHEIMER, 2006, p. 17). Ao organizar a natureza, o homem tem a sua disposição o mundo administrado, onde tudo deve ser catalogado, medido e calculado para a manutenção do controle. Adorno e Horkheimer (2006) analisam essa condição na Odisséia, associando-a à ideologia da ciência positivista.

Assim como o episódio das Sereias mostra o entrelaçamento do mito e do trabalho racional, assim também a Odisseia em seu todo dá testemunho da dialética do esclarecimento. Sobretudo em seus elementos mais antigos, a epopeia mostra-se ligada ao mito: as aventuras têm origem na tradição popular. Mas, ao se apoderar dos mitos, ao “organizá-los”, o espírito homérico entra em contradição com eles (ADORNO; HORKHEIMER, 2006, p. 47).

O esclarecimento, ao buscar seu programa de desencantamento do mundo, entre o projeto Iluminista do século XVIII e a massificação dos bens culturais no século XX, deixou algumas contradições latentes, sobretudo no que envolve o poder do sistema capitalista sobre as classes sociais, que resulta em refletir os mitos e não em extingui-los. Este é o paradoxo que Adorno e Horkheimer aproximaram ao espírito homérico: ao organizar os mitos, entra-se em contradição com eles. A indústria, através da reprodução em larga escala dos bens culturais, seria a principal responsável pela criação e disseminação do obscurantismo que supostamente deveriam combater.

Adorno e Horkheimer relacionam a indústria cultural com os meios de comunicação, situando seu surgimento durante a difusão do rádio e do cinema, que vieram a ser instrumentos de controle das massas. A televisão, o rádio, os jornais e as revistas, a partir das padronizações técnicas, moldaram pensamentos, afetando a autonomia de agir dos homens. Como parte da técnica controladora e homogeneizante, a indústria produz narrativas, entre as quais as dos astros e ícones.

Os grandes astros, porém, os que produzem e reproduzem, são aqueles que falam o jargão com tanta facilidade, espontaneidade e alegria como se ele fosse a linguagem que ele, no entanto, há muito reduziu ao silêncio. Eis aí o ideal do natural neste ramo. Ele se impõe tanto mais imperiosamente quanto mais a técnica aperfeiçoada reduz a tensão entre a obra produzida e a vida quotidiana. O paradoxo da rotina travestida de natureza pode ser notado em todas as manifestações da indústria cultural, e em muitas ele é tangível (ADORNO; HORKHEIMER, 2006, p. 109).

Os grandes astros, conforme os dois teóricos, são aqueles que dominam as técnicas da indústria, criando uma sensação de espontaneidade em seus gestos públicos. O cinema e seu espectador são analisados como uma analogia dessa ilusão, também chamada de falsa projeção. No entanto, ainda que o astro esteja próximo de um semideus, assim como o cinema, ele deve se parecer, paradoxalmente, com a vida cotidiana. E a vida cotidiana uma extensão de sua imagem e narrativa ficcionais.

O mundo inteiro é forçado a passar pelo filtro da indústria cultural. A velha experiência do espectador de cinema, que percebe a rua como um prolongamento do filme que acabou de ver, porque este pretende ele próprio reproduzir rigorosamente o mundo da percepção quotidiana, tornou-se a norma da produção. Quanto maior a perfeição com que suas técnicas duplicam os objetos empíricos, mais fácil se torna hoje obter a ilusão de que o mundo exterior é o prolongamento sem ruptura do mundo que se descobre no filme (ADORNO; HORKHEIMER, 2006, p. 104)

Marcio Seligmann-Silva, em sua proposta de introdução à obra adorniana, comenta sobre o pensador alemão e sua visão sobre o culto aos ícones:

Adorno foi, como é bem conhecido, um crítico radical da indústria cultural, e uma das características dessa indústria é tanto o culto de seus "ícones" como a tendência para a banalização. O "triunfo" que desfila os "grandes homens e feitos" caracteriza apenas uma história, diria Nietzsche, monumentalizante, que Adorno também condenava (SELIGMANN-SILVA, 2010, p. 83).

Segundo Costa e Palheta et al (2003), Adorno e Horkheimer situam a indústria cultural nos Estados Unidos e na Europa durante a passagem do século XIX para o XX, mas podemos observar mecanismos equivalentes no século XXI, em escala global e com novas roupagens. Atualmente, a literatura, assim como outras formas de arte, está enredada na indústria cultural: aparentemente, os autores, para serem lidos, precisam participar desse sistema, uma vez que "quem resiste só pode viver integrando-se" (ADORNO; HORKHEIMER, 2010, p. 109). Em algumas situações, os escritores incorporam o tema da indústria criticamente em seus textos, ao mesmo tempo em que fazem uso de seu aparato publicitário para venderem livros. É o caso do autor brasileiro Chico Buarque, vencedor do prêmio Camões em 2019. Durante o ano de 2015, foi o único autor brasileiro figurando na lista dos livros de ficção mais vendidos no Brasil. Dentre várias questões que se poderia desenvolver a partir dessa informação, apenas estar num ranking já levanta o debate sobre o protagonismo desse autor na indústria cultural. Chico Buarque foi durante muitos anos reconhecido por sua carreira musical. Era, portanto, identificado como cantor ou compositor de sucesso, com coleções de prêmios nessa área. Desde o anos 1990, tem se lançado na vida pública como escritor, buscando promover a nova identidade em seus livros, em megaeventos de literatura onde os divulga e em entrevistas. Por meio da estrutura comunicativa da indústria editorial, Chico Buarque conseguiu em 2015 ser o único escritor brasileiro entre os que mais vendem livros de ficção no seu país, permanecendo na lista nos anos subsequentes. Em 2019, figurou em primeiro lugar entre os autores nacionais com o livro Essa gente (2019) no ranking da PublishNews, que analisa os números de vendas em livrarias de todo o país. O irmão alemão (2014) foi o livro do autor que integrou a lista dos mais vendidos em 2015 e será analisado neste artigo. Trata-se de uma ficção recheada de referências biográficas, marcadas principalmente pela combinação de nomes e informações autorreferenciais (Francisco e Sérgio, que coincidem com o nome do autor e do pai do autor, respectivamente). Por isso esse livro tem sido apontado por alguns estudiosos contemporâneos enquanto uma narrativa autoficcional, na esteira dos estudos sobre o fenômeno do “retorno do autor”.

Asa de inseto, nota de dez mil-réis, cartão de visita, recorte de jornal, papelzinho com garranchos, recibo de farmácia, bula de sonífero, de sedativo, de analgésico, de antigripal, de composto de alcachofra, há de tudo ali dentro. E cinzas, sacudir um livro do meu pai é como soprar um cinzeiro. Desta vez eu vinha lendo O Ramo de Ouro, numa edição inglesa de 1922, e ao virar a página 35 dei com uma carta endereçada a Sergio de Hollander,

rua Maria Angélica, 39, , Sudamerika, tendo como remetente Anne Ernst, Fasanestrasse, 22, Berlin (BUARQUE, 2014, p. 8).

Este trecho está no início do romance, apontando já para um cenário intelectual e um narrador que relaciona diretamente essa intelectualidade ao pai, que no romance é um bibliófilo e crítico literário de grande influência. A carta citada no fragmento logo em seguida revela a existência de um filho alemão que o pai Sérgio não pôde conhecer devido às dificuldades impostas pelo regime nazista. Alguns anos antes da publicação do livro, o tema do irmão estrangeiro já aparecera em entrevistas do autor, que tratara do assunto publicamente como uma informação secreta, rodeada de mistérios. Essa abordagem de uma questão familiar contribui para ampliar a atração do mito: aquele que está relativamente acessível, mas sobre o qual não sabemos tudo.

Já mais velho, quando fui morar no Rio de Janeiro, mas garoto ainda, fomos visitá-lo [o Manuel Bandeira]. Fui com o Tom e o Vinícius. Foi um encontro interessante. Ele tocou um pouco de piano e começou a contar umas histórias do meu pai. "Ah! o Sérgio"... e no meio de algumas lembranças ele mencionou "aquele filho alemão". Eu perguntei: "Que filho?" Eu não sabia que meu pai tinha tido um filho na Alemanha. O Vinícius me perguntou: "Você não sabia?" Eu disse: "Não". Era um pouco segredo lá em casa. Meu pai tinha tido um filho alemão antes de casar. Eu fiquei muito chocado e quando pude ir a São Paulo perguntei ao meu pai sobre isso. No começo ele não quis falar, mas depois abriu o jogo (BUARQUE, 1994, s. p).

Da mesma maneira que o romance mescla dados autobiográficos a um enredo ficcional, também destaca um contexto político traumático da história do Brasil, no qual viveu o autor no início de sua carreira artística. A realização do paralelo entre a sua vida pública e os caminhos traçados pelo protagonista é um movimento inevitável para o leitor, que, por conta disso, pode encarar a autoficção como um efeito de leitura diante de questões bastante sensíveis que estão no encontro do individual com o coletivo, isto é, o indivíduo diante da experiência histórica. Francisco de Hollander, o personagem, e Francisco Buarque de Hollanda, o homem, encontram-se e desencontram-se no romance. No entanto, este último é também o nome de registro de Chico, Chico Buarque, Chico Buarque de Hollanda, Julinho de Adelaide, F.B.H, Francesco, Leonel Paiva, Pagão - que para alguns críticos e artistas, como Rui Guerra, também poderiam ser chamados de outras ficções. Entre os nomes de tal coleção onomástica, aquele que mais estampa capas de discos e livros é Chico Buarque. Com essa "griffe", foi

projetada uma imagem pública influente no cenário artístico e político do Brasil, cujas declarações quase nunca passam em branco nos meios de comunicação. O destaque midiático de Chico Buarque foi conquistado, como já mencionado, enquanto representante da música popular brasileira, com um vasto repertório de canções. Desde a juventude, no entanto, a carreira de intérprete e compositor já disputava com a de dramaturgo e, mais recentemente, disputa com a de romancista, a partir da publicação de livros que tiveram ampla divulgação, premiações, homenagens públicas e críticas de variados contrastes. A esta altura, os biógrafos e atualizadores de perfis públicos, como o da Wikipedia, por exemplo, já o apresentam enquanto músico, dramaturgo, escritor e ator brasileiro. A partir dos anos 1960, muito escreveu-se, especulou-se e divulgou-se na imprensa nacional e internacional acerca do artista em pauta, amalgamando numerosas narrativas em torno do nome "Chico Buarque". Nessa linha, Andreia Delmaschio, na tese de doutorado A máquina de escrita (de) Chico Buarque (2007), realizou um estudo sobre o magnetismo exercido pelo nome de autor Chico Buarque, considerando que, pela diversidade de escritos sobre a "pessoa" e a influência na recepção da obra, esse não poderia ter apenas o valor de um nome próprio e que teria, entre outras funções, uma função autoral. Essa leitura vem na esteira das reflexões de Michel Foucault sobre a categoria do autor, que envolve a conjuntura estruturalista acerca do sujeito enquanto objeto de estudo. De acordo com Foucault (2001), a função autor aparece para dar conta da dificuldade de nossa sociedade em lidar com o anonimato e que, por isso, o autor serviria como dispositivo de controle dos discursos, correspondendo à “característica do modo de existência, de circulação e de funcionamento de certos discursos no interior de uma sociedade” (FOUCAULT, 2001, p. 274). Delmaschio (2007) leva em consideração esse deslocamento do autor enquanto "entidade" e "unidade" para analisar o que denominou o "paradoxo da anônima autoria" no romance Budapeste (2010), de Chico Buarque. Em Budapeste (2010), o narrador e personagem José Costa é um ghost writer cuja identidade é invisibilizada quando outros sujeitos assinam os textos que ele escreveu. Logo, sem responder pelos próprios textos, José Costa acaba incorporando as biografias de seus clientes, como se a todo momento trocasse de pele. Sendo um narrador autodiegético, a escrita do romance materializa essa confusão de autores numa multiplicidade de vozes que levam até ao questionamento da própria paternidade do texto de Chico Buarque. Assim como o nome do autor é o principal dentre vários para o mesmo referente em carne e osso, José Costa também ganha outros nomes, como Zsose Kósta, Kocksi Ferenc e Kaspar Krabbe. O paradoxo da anônima autoria, proposto por Delmaschio (2007), levando em

conta a tônica do ghost writer, envolve as contradições entre se esconder e se expor, entre vaidade e modéstia, no processo de criação artística. Delmaschio (2007) também chama a atenção para a lista de nomes com os quais o escritor e compositor Chico Buarque já assinou seus trabalhos, afirmando que:

(...) além de indicar uma atuação profissional multifacetada, também aponta para as diferentes abordagens dessas facetas, ocasiões nas quais cada um (além do próprio implicado) acaba por "renomear" a figura em questão, reconhecendo e ampliando a dimensão do mito, o que não deixa de ser uma "releitura" dele (DELMASCHIO, 2007, p. 18).

Desta maneira, é incontornável suspeitar que o nome Chico Buarque, sendo mais que um nome próprio nas diversas narrativas produzidas sobre ele, entre multidões de admiradores e críticos, resvalaria para o mito. Renomeá-lo, recontá-lo, fazer-lhe uma releitura, ou qualquer tentativa de apagá-lo, são tarefas que o autor protagonizou algumas vezes em livros, apresentações musicais, palanques políticos, entrevistas e em outras formas de aparições públicas. No campo literário, quando o autor traz para o interior da narrativa o próprio nome, existem alguns efeitos em jogo. Assim, tanto o romance Budapeste como O irmão alemão, quando investem nisso, além de provocarem o fetiche pelo mito ou griffe em torno do nome Chico Buarque, ainda parodiam a imagem sacralizante do mito do escritor: aquela figura intelectual totêmica que vive cercada de livros e nunca perde uma oportunidade de lançar referências literárias que não passam além do universo circunscrito de uma tradição letrada. Diana Klinger, ao estudar a autoficção, aponta o seu papel na produção do mito do escritor:

A autoficção é uma máquina produtora de mitos do escritor, que funciona tanto nas passagens em que se relatam vivências do narrador quanto naqueles momentos da narrativa em que o autor introduz no relato a referência à própria escrita (KLINGER, 2012, p. 46).

O romance O irmão alemão em diversos trechos se destaca enquanto máquina produtora de mitos do escritor, não só quando deixa marcas autorreferenciais como também quando expõe um narrador sem carisma e versado na tradição literária, que cita Franz Kafka, Maiakovsky, Sir James Frazer; menciona a convivência com Mário de Andrade, Manuel Bandeira, Guimarães Rosa etc, como se fossem moeda de troca, nomes de autor que promoveriam determinado status dentro de uma comunidade acadêmica ou mesmo beletrista.

No 5º capítulo, após uma página com a digitalização de um autógrafo de Guimarães Rosa a Sérgio de Hollander, é possível constatar essa relação fetichista com a literatura:

Gabola, gabarola, cabotino, meus colegas não me perdoavam por ostentar os livros autografados do meu pai nos corredores da faculdade de letras. E arriscando-me a aborrecê-los mais um pouco, eu não resistia a me referir sem cerimônia aos autores assíduos da minha casa, o João, o Jorge, o Carlos, o Manuel (BUARQUE, 2014, p. 47).

Francisco de Hollander, portanto, é um narrador que admite vaidosamente o desejo de ter alguma posição numa linhagem de leitores ou escritores, sem no entanto ter qualquer sucesso nesse quesito, uma vez que nenhum membro de sua família ou outro sujeito de seu círculo social responde satisfatoriamente às suas investidas literárias. O pai, que segundo Francisco, deveria ter autoridade para convidá-lo a fazer parte do seu "clube de intelectuais", nunca lhe dá um aceno. Pelo contrário, só atende às vulgaridades anti-intelectuais do outro filho. Essa característica do narrador-personagem encontra eco na ideia de Adorno e Horkheimer apresentada na Dialética do esclarecimento de que o homem comum acredita mais no mito do sucesso do que os sujeitos bem-sucedidos:

Assim como os dominados sempre levaram mais a sério que os dominadores a moral que deles recebiam, hoje as massas logradas sucumbem mais facilmente ao mito do sucesso do que os bem-sucedidos. Elas têm os desejos deles. Obstinadamente, insistem na ideologia que as escraviza (ADORNO; HORKHEIMER, 2006, p 110).

A falta de sucesso do narrador, no entanto, é o avesso da condição do outro Francisco, o autor, que tem seu reconhecimento intelectual verificado tanto no alto índice de venda de livros como também na coleção de prêmios no meio político e acadêmico (ganhador do Jabuti em três edições e do Camões de 2019). Francisco, o personagem literário, é um professor de curso pré-vestibular que durante a pesquisa pelo paradeiro do irmão alemão espalha pela narrativa, em diálogos e divagações, uma miscelânea de referências culturais europeias e brasileiras, confundindo nomes e criando encontros com estrangeiros que pudessem levar aos nomes de Anne e Sergio Ernst. O labirinto de pistas é tão emaranhado quanto os livros agrupados pela mãe nas numerosas estantes do pai. Assim, entre pistas do irmão desaparecido e as pistas literárias, os dois Franciscos vão alimentando o mito do escritor ao mesmo tempo em que fomentam o voyerismo do leitor. Como reforça Klinger (2012):

Confundindo as noções de verdade e ilusão, o autor desafia a capacidade do leitor de “cessar de descrer”. Assim, o que interessa na autoficção não é a relação do texto com a vida do autor, e sim do texto como forma de criação de um mito, o mito do escritor (KLINGER, 2012, p. 45).

Este mito do escritor que é criado no texto tem sua continuidade no espaço público, se ainda for levado em conta que a indústria cultural impõe que o escritor esteja o tempo todo de corpo presente nos aparatos midiáticos: segurando o livro num evento, lendo, opinando, fazendo performances, dando declarações polêmicas etc. Caso a campanha publicitária do escritor tenha longo alcance, o número de leitores no ranking pode dar uma medida de sucesso que leve o romance a ganhar um filme e, assim, as ilusões passarem a níveis cada vez mais difíceis de serem desfeitas. Chico Buarque é um autor brasileiro que já teve três de seus romances transformados em filmes, fazendo uma aparição como ator em Budapeste (2009). Os três últimos livros (Leite derramado, O irmão alemão, Essa gente) ainda não possuem suas adaptações para as telas, mas há um grupo de críticos de cinema aguardando as produções. Existe, portanto, uma rede comercial e midiática que dá visibilidade ao autor: o livro não é promovido somente nos espaços editoriais ou nas manchetes de jornais, ainda é projetado nas salas de cinema do país. Os romances dessa forma tem uma considerável capacidade de desdobramento a partir da figura do autor. No caso de Chico Buarque, os limites de criação e recriação do mito ainda não foram traçados, sempre encontrando espaço na indústria cultural, mas, sobretudo, desafiando a descrença dos leitores na hora de encarar a narrativa.

Referências

ADORNO, T. W.; HORKHEIMER, M. Dialética do esclarecimento. Rio de Janeiro: Zahar, 2006.

BUARQUE, C. Budapeste. São Paulo: , 2010.

______. O irmão alemão. São Paulo: Companhia das Letras, 2014.

COSTA, Alda Cristina Silva da; PALHETA, Arlene Nazaré Amaral Alves et al. Indústria cultural: revisando Adorno e Horkheimer. Revista Movendo Idéias, Belém, v. 8, n. 13, p. 13- 22, jun. 2003.

DELMASCHIO, A. A máquina de escrita (de) Chico Buarque. Rio de Janeiro: 7letras, 2007.

FOUCAULT, M. O que é um autor? In: ______. Estética: literatura e pintura, música e cinema. Trad. Inês Barbosa. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2001, p. 264-298. (col. Ditos e Escritos; v. III).

KLINGER, D. Escritas de si, escritas do outro. Rio de Janeiro: 7letras, 2012.

NASCIMENTO, Evando. Matérias-primas: da autobiografia à autoficção – ou vice-versa. In: NASCIF, Rose Mary Abrão; LAGE, Verônica Lucy Coutinho (Org.). Literatura, crítica, cultura IV: interdisciplinaridade. Juiz de Fora: Ed. UFJF, 2010, p. 189-207.

SELIGMANN-SILVA, M. A atualidade de Walter Benjamin e de Theodor W. Adorno. São Paulo: Civilização Brasileira, 2010.

SIBILIA, Paula. O show do eu: a intimidade como espetáculo. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2008.