A Confissão De Leontina”, De Lygia Fagundes Telles, Será Ob- Jeto De Nosso Estudo
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A DISCIPLINA DO DESESPERO MARIA CECÍLIA RUFINO (UFRJ) “Elas não têm gosto ou vontade nem defeito ou qualidade/têm medo apenas não tem sonho, só tem presságios o seu homem, mares, naufrágios lindas sirenas morenas.” (Chico Buarque de Holanda. “Mulheres de Atenas”) “A confissão de Leontina”, de Lygia Fagundes Telles, será ob- jeto de nosso estudo. Analisaremos a narrativa de forma a circuns- crever a representação do corpo, privilegiando o seu fazer literário. O título do trabalho visa sintetizar a história do conto. Os textos teóri- cos serão utilizados à medida que ajudarem como suporte para ques- tões discutidas na narrativa. Destacamos entre eles Vigiar e Punir de Foucault, mais precisamente o capítulo intitulado “Os corpos dóceis” no qual o filósofo aponta para o corpo como objeto e alvo de poder; corpo que se manipula, se modela, se treina, que obedece, responde, se torna hábil: o corpo disciplinado. A presidiária Leontina rememo- ra seu passado sofrido desde a infância até a vida adulta. O corpo em questão é marcado pelo sofrimento e por opressões de várias ordens. A epígrafe que abre este ensaio, retirada da letra da música de Chico Buarque, fala de mulheres destituídas de sonhos por estarem inseridas dentro de um contexto social de subordinação total, sem chance de reação, não só porque não podem, mas, também, porque não conhecem outro modo de viver. São submetidas a uma domina- ção que acontece de dentro para fora, que está na raiz do pensamento dos homens e das mulheres. Leontina, a protagonista do conto anali- sado, assemelha-se às mulheres de Atenas, todas têm seus corpos marcados por uma profunda dominação, que as imobiliza e as coisi- fica. O conto é iniciado com uma revelação: uma voz que procura confessar inocência. A palavra inocência não está sendo utilizada apenas para nomear a situação de Leontina perante o crime que pesa sobre seus ombros e que praticou em legítima defesa, mas, princi- palmente, pela inocência de sua condição: ser mulher. O destino de mulher de que falava Simone de Beauvoir se propaga por séculos na sociedade de base patriarcal e aparece evidente nas entrelinhas da confissão. Destino que reservou o espaço familiar, doméstico e ínti- mo às mulheres e o espaço intelectual aos homens. A dicotomia men- te e corpo será o cerne desta narrativa. O título do conto, também, é plurissignificativo uma vez que nos remete a duas interpretações: a confissão da vida de Leontina e a confissão da atuação do pensamen- to e poderio patriarcal. A personagem fala a uma senhora, não identificada, que per- mite o seu desabafo sem fazer interrupções: “Já contei esta história tantas vezes e ninguém quis me acreditar. ou agora contar tudo espe- cialmente pra senhora que se não pode ajudar pelo menos não fica me atormentando como fazem os outros” (ACL, p. 87). Essa senhora pode ser considerada uma metáfora dos leitores que escutarão o que a personagem tem a dizer, mas que, talvez, conheçam histórias de mulheres como a dela, dominadas e presas às amarras da subordina- ção. O monólogo marca a importância em destacar a solidão da per- sonagem, a união de forma e conteúdo favorece a construção da car- ga dramática que Lygia tão bem imprimiu em sua personagem. O desejo de se fazer acreditar aparece nas palavras da narrado- ra que ao contar sua vida a revive, capturando momentos que vão da infância à prisão. O trajeto realizado pela memória da personagem aponta vários acontecimentos formadores de sua identidade. Não há interrupção no monólogo, de forma que a personagem deixa transpa- recer a lógica interna que a move, seu relacionamento com a realida- de, da qual extrai elementos importantes para si, organizados de a- cordo com o seu estado psicológico no momento em que fala. O fluxo da consciência de Leontina nos dá acesso ao seu pensamento; a linguagem e as construções sintáticas revelam o discurso de uma mulher simples, prostituta e que se encontra presa, por isso são utili- zados períodos simples; palavras e expressões comuns constroem o monólogo. A travessia existencial realizada por Leontina até o final da narrativa não a faz repensar sua condição, não origina revolta, ao contrário, ratifica o seu destino. Parte dessa observação a compara- ção com as mulheres de Atenas. Leontina é refém da “violência sim- bólica”, apontada por Bourdieu, que age através de um trabalho de “inculcação” e “incorporação” a que tanto homens e mulheres são submetidos: (...) é uma forma de poder que se exerce sobre os corpos direta- mente, e como que por magia, sem qualquer coação física; mas essa magia só atua com o apoio das predisposições colocadas, como molas propulsoras, na zona mais profunda dos corpos. Se ela pode agir como um ‘macaco mecânico’, isto é, com um gasto extremamente pequeno de energia, ela só o consegue porque de- sencadeia disposições que o trabalho de inculcação e de incorpo- ração realizou naqueles ou naquelas que, em virtude desse traba- lho, se vêem por elas capturados . (Bourdieu, 1999, p. 19) Todos os condicionamentos do mundo patriarcal são absorvi- dos com intensidade por Leontina, que representa um dos modelos de mulher, produzido pela hierarquia das relações de gênero. Acos- tumado a aceitar tudo com resignação: “O jornal me chama de assassina, ladrona e tem um que até deu meu retrato dizendo que eu era a Messalina da boca do lixo. Per- guntei pro seu Armando o que era Messalina e ele respondeu que essa foi uma mulher muito à-toa. E meus olhos que já não têm lágrimas de tanto que eu tenho chorado ainda choram mais. (...) Me queixei pro seu Armando que tenho trabalhado feito um ca- chorro e ele riu e perguntou se cachorro trabalha. Não sei eu res- pondi. Sei que trabalhei tanto e aqui ma chamam de vagabunda e me dão choque até lá dentro. Sem falar nas porcarias que eles o- brigam a gente a fazer. Daí seu Armando disse para não perder a esperança que não há mal que sempre ature. Então fiquei mais conformada.” (ACL, p. 87). A vontade de revolta é logo aplacada por um discurso apazi- guador, reproduzido pela figura masculina. A personagem se con- forma e acredita na esperança gerada nas palavras de seu Armando. Ele não precisou discutir para convencê-la, com apenas uma frase aplacou sua faísca de revolta. A ignorância da personagem fica evi- dente no início de sua fala, quando comparada à “Messalina da boca do lixo” alusão a uma prostituta devassa e fria não sabe, ao menos, o que quer dizer messalina. A condenação de Leontina não é feita ape- nas pela justiça, mas por toda a sociedade. Sem crédito, sem chance de se explicar é vista através da aparência e dos determinismos soci- as: “Já contei esta história tantas vezes e ninguém quis me acreditar” (ACL, p. 87). Grande parte do monólogo é dominada pela lembrança da vida familiar da personagem, constituída pela mãe, pelo primo e por uma irmã doente. A família será a grande “roda da fortuna” que girará o destino de Leontina, pois é nela que aprenderá seu papel na vida, internalizando-o e reproduzindo-o fielmente: “Minha mãe lavava roupa na beira da lagoa. Ela lavava quase to- da a roupa da gente da vila mas não se queixava. Nunca vi minha mãe se queixar. Era miudinha e tão magra que até hoje fico pen- sando onde ia buscar força pra trabalhar tanto. Não parava. Quando tinha aquela dor de cabeça de cegar então amarrava na testa um lenço com rodela de batata crua e fazia o chá que colhia no quintal. Assim que a dor passava ia com a trouxa de roupa pra lagoa.” (ACL, p. 88). Leontina tem como espelho uma mãe “sem voz” e totalmente voltada para os serviços domésticos, desprovida de qualquer sonho próprio. O “discurso” da mãe, mesmo silencioso, consegue marcar a submissão na memória de Leontina, disciplinada a aceitar a vida dura de trabalho: “Até a lenha do fogão era eu que catava no mato. Perguntei um dia pra minha mãe por que Pedro não me ajudava ao menos nisso e ela respondeu que o Pedro precisava estudar para ser médico e cuidar da gente. Já que o dinheiro não dava pra todos que ao me- nos um tinha que subir pra dar a mão pros outros. Quando ele for rico decerto nem mais vai ligar pra nós eu fui logo dizendo e mi- nha mãe ficou pensativa. Pode ser. Pode ser. Mas prometi para minha irmã na hora da morte que ia cuidar dele melhor do que de você. Estou cumprindo .” (ACL, p.89) Em contrapartida, a figura do pai é ausente. A desestruturação familiar divide o interior de Leontina, que “copia” a mãe e idealiza a figura paterna. Seu convívio social é limitadíssimo. Seu “habitat natural” tem a família como o único elemento de seu convívio. Con- seqüentemente, Leontina tem na mãe a única referência feminina de existência. Expondo um corpo totalmente dominado, a protagonista, mesmo consciente do sofrimento de sua mãe, atrai para si o mesmo destino dela. A personagem não luta para sair da miséria e mudar o destino das mulheres de sua família, propagando inconscientemente miséria e abnegação. A música que cantava com o irmão nos mo- mentos de brincadeiras desencadeava a curiosidade pelo pai que não conhecia: “Anoitecia e a gente ia chacoalhando uma caixinha de fósforo e mentido pros vaga-lumes numa cantiguinha que era assim vaga- lume tem- tem vaga- lume tem-tem tua mãe está aqui e o teu pai também. Não conheci meu pai. Morreu antes de você nascer res- pondia minha mãe sempre que eu perguntava.