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Jamelão – Face da memória carioca

Rosemere Maria da Conceição - CEFET e Rio ARte

José Bispo Clementino dos Santos nasceu na cidade do Rio de Janeiro a 12 de maio de 1913, filho de afro-descendentes pobres, migrantes nordestinos, moradores do bairro de São Cristóvão. A consulta aos jornais cariocas nos primeiros dias daquele ano revela uma cidade em mudança, dividida entre um mundo real e aquele planejado pelos reformadores. Uma boa síntese da cidade real é cotidianamente apresentada pelo Jornal do Brasil, que desde o mês de janeiro, traz uma seção intitulada Notícia dos Subúrbios , 1destinada aos problemas enfrentados pela população, às decisões das autoridades, os embates diários, além de reproduzir fotos destinadas a expor o estado de abandono que se encontrava a periferia da cidade2. Em junho de 1913, ao discutir o aumento do preço das passagens e tarifas da Estação Central afirmam que ‘os subúrbios são hoje o refúgio dos homens de trabalho que se viram forçados a deixar a cidade em vista das derrubadas que se fizeram para a sua remodelação’3 Naquele período já se faziam sentir os efeitos catastróficos da batuta com a qual, ainda em 1904, o prefeito Pereira Passos empreendeu a remodelação da cidade, buscando alcançar, talvez os parâmetros arquitetônicos parisienses, que em sua compreensão - assim como na de todos os seus seguidores- tornaria o Rio mais civilizado4. A cidade, ainda descrita como uma morrinha colonial5 deveria abrir grandes avenidas com imponentes sobrados, onde circulariam pessoas elegantes. Fazia-se premente realizar aqui, o policiamento sanitário, que desde 1729, através de diversos concursos científicos, tentava aprisionar e evacuar o lixo de Paris. Num segundo momento caberia juntamente com o lixo, evacuar os vagabundos, os fedores da imundície e a infecção social. O Rio voltava-se para as grandes avenidas, para os imponentes sobrados com moradores elegantes. A reforma iniciou-se com a destruição do grande cortiço Cabeça de Porco, localizado na atual Rua Barão de São Félix, prosseguindo com o alargamento de ruas antigas e a abertura de novas,

1 Biblioteca Nacional, Seção de Periódicos, Jornal do Brasil, Notícia dos subúrbios, 29 de junho de 1913. 2 Idem. 3 Idem, domingo, 29 de junho de 1913. . 5 Expressão usada por Luís Edmundo, O Rio de Janeiro do meu tempo. ‘Usos do Passado’ — XII Encontro Regional de História ANPUH-RJ 2006: 2 formando uma radial da Praça XV ao Estácio, composta pelas ruas Assembléia e do Carioca até a Avenida Estácio de Sá; em outras direções abrem-se a Avenida Beira-Mar e a Avenida Rodrigues Alves e a mais famosa, a Avenida Central, atual Rio Branco. Roberto Moura, 6abordando este assunto afirma que foi desta forma que os núcleos se solidificaram em torno das estações de trem, formando um tecido urbano e contínuo. Pequenas companhias loteadoras vendiam terrenos valendo-se da expansão dos serviços de transporte, e mesmo assim alguns bairros antes aristocráticos, como São Cristovão, se transformariam em bairros fabris. Assim, aos desabrigados coube o subúrbio distante ou os morros que circundavam a cidade. Para eles, o regime republicano iniciou uma política de disciplinarização através da qual libertos e imigrantes assumiriam suas responsabilidades aprofundando uma nova ideologia do trabalho. É lá que a Companhia Evoneas Fluminense inicia a construção de uma vila operária, entre as ruas General Bruce e Dr. Gusmão, compreendendo uma escola, consultório médico e sete armazéns. Além do prédio das moradias com 81 cômodos para solteiros, 46 casas com dois pavimentos para famílias e 12 casas de quinta classe, o plano conjugava uma elaborada racionalização da ocupação do espaço pelo operário e sua família com a proximidade de serviços públicos educacionais. Como demonstrou Margareth Rago7, os indícios de uma anormalidade social, as práticas populares de vida e lazer dos trabalhadores fabris (dos improdutivos, dos pobres, das mulheres públicas, das crianças que vagueiam abandonadas pelas ruas) vão se tornando objeto de profunda preocupação de médicos, higienistas, de autoridades públicas, de setores da burguesia industrial de filantropos e reformadores sociais. Acrescente-se aí, a prevenção contra negros e pobres, evidenciada na repressão à Festa da Penha que depois do Carnaval foi o evento mais importante para a cidade e para os sambistas pioneiros que ali se encontravam para festejar a santa e realizar seus batuques8. Enquanto esses acontecimentos se desenrolavam o menino Jamelão trabalhava vendendo jornais no trem. Assim como tantos outros, foi exposto a uma autonomia precoce e injusta, chamado à necessidade de prover ou de pelo menos de ajudar no sustento de sua família, distanciando-se assim da educação formal. Para inferir sobre este ambiente de trabalho recorremos a algumas notícias

6 Roberto Moura, Tia Ciata e a pequena África no Rio de Janeiro. 2ed., Rio de Janeiro: Secretaria Municipal de Cultura, 1995.p. 57. 7 Margareth Rago, Do cabaré ao lar: a utopia da cidade disciplinar. Brasil 1890-1919. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1988. pp. 12-18. Ainda sobre a mesma questão ver Miriam Lopes, Práticas médico-sanitárias e remodelação urbana na cidade do Rio de Janeiro-1890-1920. Campinas:Unicamp, 1988(mimeo). 8 Sobre a festa da Penha ver Rachel Soihet, A subversão pelo riso: estudos sobre o carnaval carioca da belle Epoque ao tempo de Vargas. Rio de Janeiro: Editora FGV, 1988. ‘Usos do Passado’ — XII Encontro Regional de História ANPUH-RJ 2006: 3 encontradas nos jornais. Ainda no dia 12 de maio de 1913, lemos sobre a ausência de instruções municipais normatizadoras, da inexistência de placas e da jogatina presente em toda a parte9. É em Machado de Assis, ainda em 1894 que encontramos o relato de um incidente muito curioso. Ontem ia andando num bond, com pouca gente, três pessoas. A uma dessas pareceu que o cocheiro estava fumando um cigar; via-lhe ir a mão esquerda freqüentes vezes à boca, de onde saía um fiozinho de fumo, que não chegava a envolver-lhe a cabeça, com o andar do veículo, espalhava-se pelas pessoas que iam dentro deste.

Os cocheiros podem fumar em serviço? Perguntou a pessoa ao condutor.

Fê-lo em voz baixa, tranqüila, como quem quer saber só por saber. O condutor, não menos serenamente respondeu-lhe que não era permitido fumar.

Então...?

-Mas ele fuma só aqui, no arrabalde; lá para o centro da cidade não fuma, não senhor.10

As notícias evidenciam duas questões que precisam ser bem investigadas, primeiro ao trem como um ambiente não normatizado e segundo ao bonde como catalisador de tensões. Sobre este episódio, Nicolau Sevcenko, autor da citação, descreve o cocheiro como alguém que refaz a regras do jogo social: no centro ele se submeter-se-ia ao código que o anula; na periferia, ousa refazê-las. Mais do que nunca evidencia-se a cisão entre duas cidades, o recorte entre dois mundos. Lima Barreto ironizou a sanha reformista inventando uma República dos Bruzundangas, ele nos diz: E eis a Bruzundanga, tomando dinheiro emprestado, para pôr as velhas casas da sua capital abaixo. De uma hora para outra, a antiga cidade desapareceu e outra surgiu como se fosse obtida por mutação de teatro. Havia mesmo na cousa muito de teatro11.

Ao abordar a longa trajetória que envolveu a transformação dos antigos blocos em escolas de , o pesquisador Nelson da Nóbrega Fernandes12 narra episódio pouco conhecido, mas extremamente revelador.

9 BN, Jornal do Brasil, número 443, 12 de maio de 1913. 10 Esta crônica de Machado de Assis foi publicada na Revista A semana e analisada por Nicolau Sevcenko em A capital irradiante: técnica, ritmos e ritos do Rio. IN, Nicolau Sevcenko(org.), História da vida privada, volume 4. São Paulo: Companhia das Letras, 1996, p. 524 11 Citado por Margarida Souza Neves, Ordem e Progresso. São Paulo, Editora Ática 12 FERNANDES, Nelson da Nóbrega. Escolas de samba: sujeitos celebrantes e objetos celebrados. Rio de Janeiro, 1928-1949. Rio de Janeiro: Secretaria das Culturas, Departamento Geral de Documentação, 2001.op.cit., p. 53-54. ‘Usos do Passado’ — XII Encontro Regional de História ANPUH-RJ 2006: 4

Em dezembro de 1932 durante uma das primeiras apresentações que a fazia para pessoas de fora do morro, o jornalista Jofre Rodrigues exclamou: Mangueira não fica na África mas no Rio de Janeiro13. Estaria ele tentando denunciar a alienação e segregação que a cidade impunha ao morro ou aludir à origem carioca do samba que se ouvia? Utilizamos esta passagem para ratificar a idéia de fosso social e de sociedade partida. Mas como negar – a exemplo de Nicolau Sevcenko - que estes mundos se cruzassem, que eles coexistiam? Preferimos concluir afirmando que estes mundos até se tocavam mais neles os papéis já estavam previamente definidos, devendo ser respeitados. Nossa inferência advém de um conjunto de anúncios que versam sobre a questão racial. Num artigo intitulado Questão de Raça, o jornalista Carlos Laet discorre sobre a relação de um distinto magistrado português do Supremo Tribunal Federal e uma mulher negra. Assim ele se posiciona sobre o assunto: o cruzamento de éguas e asnos homens e mulheres quando se alliam certamente o fazem dentro da mesma espécie, como assás o comprova a fecundidade indefinida dos produtos.

Que nessas mesclas se haja deteriorado o typo humano é falso. As qualidades moraes e intelectuais à raça negra perduram, mas suas características phisicas rapidamente se absorvem por sucessivas uniões com brancos (..).14

Novo aspecto da mesma questão está presente numa série de pequenos anúncios, apagados pelos bolores, dos quais ainda podemos ler as seguintes frases: Elixir para curar caatinga de negro15 Somamos este anúncio a outros que servem para corroborar nossas inferências: refiro-me aqueles que aludem a viagens para o exterior descrito sempre como o mundo dos sonhos. Em tese defendida na Universidade de São Paulo, a antropóloga Lilia Moritz Schwarcz16 procurou compreender as construções teóricas de inúmeros homens de ciência que, de dentro de algumas instituições pensavam nas soluções e no destino do país. Além de inventariar pormenorizadamente o grande número de teorias que priorizavam o tema racial na análise dos problemas brasileiros, a Autora perscruta a utilização e a re-acomodação destas teorias. Emerge como argumento principal do livro, a afirmação de que no Brasil adotou-se modelos cujas decorrências teóricas eram originalmente diversas. Incorporou-se, de um lado, o darwinismo

13 Idem, p. 53. 14 Biblioteca Nacional, Jornal do Brasil, 26 de junho de 1926. 15 Idem, ibidem. 16 SCHWARTZ, Lilia Moritz. SCHWARTZ, Lilia Moritz. O espetáculo das raças. São Paulo, Companhia das Letras, 1992.

‘Usos do Passado’ — XII Encontro Regional de História ANPUH-RJ 2006: 5 social, com seu mote da diferença entre as raças e sua natural hierarquia, sem que no entanto se problematizasse a implicação negativa da miscigenação. Por outro lado, a partir do evolucionismo, sublinhou-se a noção de que as raças humanas não permaneceriam estacionadas, mais sim em constante evolução e aperfeiçoamento; obliterando a idéia que a humanidade era una. Todos os institutos investigados pela Autora irradiam idéias visando a construção de uma história branca e européia para o Brasil, justificando a partir de conclusões evolucionistas, o predomínio branco e a hierarquia social rígida. O desfecho apresentado pelo jornalista Carlos Laet vai ao encontro dos teóricos de seu tempo: utiliza-se do darwinismo sócio-biológico, explicando o natural branqueamento da população. Enquanto parte do jornal discorria sobre o 25º aniversário da Lei Áurea, repleto de festividades na Irmandade Nossa Senhora do Rosário, em outras permitia a seus anunciantes explicitar seus preconceitos tanto que não são poucos os estudos que se ocuparam dos esteriótipos que nesta época estava sujeita envolviam a população negra17. Outras colocações evidenciam o mesmo problema aqui, na cidade de nosso biografado. Quando coletou processos criminais de atentado ao pudor, estupro e rapto ocorridos entre 1900 e 1913, Martha Abreu Esteves18 constatou o preconceito racial da sociedade da sociedade a partir da análise quantitativa dos desfechos. Segundo ela, a maior proporção percentual de processos considerados improcedentes pelos juízes é registrada quando as ofendidas são pretas. Logo, através de seus estudos constata-se a maior dificuldade das jovens pobres “de cor”, principalmente as pretas, de conseguir algum benefício ao procurarem a Justiça por crime sexual. Em Roberto Moura19 encontramos uma abordagem clara das adversidades que marcaram aqueles dias. Para ele, o negro teria melhor sorte no Rio de Janeiro do que em São Paulo, onde a competição com o imigrante seria menor. Aqui se abriram oportunidades na multiplicidade de ofícios em torno do cais do porto, para alguns na indústria, para os mais fortes e aguerridos na polícia, para os mais claros no funcionalismo e para todos no Exército e na Marinha.

17 Cf. Lilia Schwartz, Retrato em branco e negro: jornais, escravos e cidadãos em São Paulo no final do século XIX. São Paulo: Companhia das Letras, 1987.

18 Martha Abreu Esteves, Meninas perdidas: o cotidiano do amor no Rio de Janeiro da Belle Epoque. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1988. p. 111 19 Roberto Moura, op.cit., no capítulo Vida de sambista e trabalhador., pp. 64-68. ‘Usos do Passado’ — XII Encontro Regional de História ANPUH-RJ 2006: 6

Para aqueles que se preocupavam em se distanciar ainda mais da massa indesejável mais do que tentar reproduzir aqui a atmosfera parisiense, fazia-se necessário estar em Paris, 20circular em seus boulevares, visitar as maisons de alta costura, embebedar-se em sua cultura. O Rio de Janeiro de início de século era um campo minado pra pobres e favelados aumentando a belicosidade se estes fossem pretos! À população liberta coube adaptar-se: tornar-se um trabalhador obediente, que durante o trabalho servisse sem esquecer -por um só momento- quem fora o senhor e quem fora o escravo. Após a labuta, deveria retirar-se para seu reduto, para seu mundo, cosmos da desordem, de uma sempre eventual marginalidade. Enquanto o Rio de Janeiro se debatia com estes choques o cenário artístico mundial pungia em direção a meios e vanguardas capazes de seduzir mais e mais pessoas. Os anos compreendidos entre 1920 e 1950- denominados de Era dos cataclismos, Era das Catástrofes ou simplesmente Entre Guerras - numa clara associação entre as câmaras e as reportagens, tornou o mundo do homem comum, do cidadão anônimo a sua grande atração das artes que a partir deste momento seriam produzidas por ele e para ele21. O processo foi puxado pelos jornais que cresceram, nos Estados Unidos mais rápido do que a população. Nesta altura, vendiam-se entre 300 e 350 jornais por cada cem homens, mulheres e crianças de um país desenvolvido. Sem a barreira da leitura maior alcance teve o cinema que apresentou-se como veículo de massa internacional, seja utilizado em propaganda política, a exemplo do que ocorrerá no projeto nazista, ou como catalisador de outras artes já que exibido precedido por pequenas apresentações musicais. Contudo, como bem enfatizam os estudiosos, ninguém foi mais longe quanto o rádio. Inicialmente os altos preços limitaram-no a países desenvolvidos. Na Itália, o número de aparelhos não ultrapassou o de automóveis até 1931. Às da Segunda guerra grandes concentrações limitavam-se aos Estados Unidos, Escandinávia, Nova Zelândia e Grã-Bretanha. Os políticos e governantes logo perceberão a capacidade de se dirigir a milhões, cada um deles sentindo-se abordado como indivíduo. Uma impressionante arma política que fez surgir programas como Hora da Nação na Alemanha, o Conversa ao pé da lareira do presidente americano ou as

20 Sobre esta questão é possível notar que “durante a Belle Epoque a prática de viagem à Europa voltou-se para uma tração pelo luxo e luxúria de Paris, gerando narrativas- que tematizam uma literatura epidérmica, caracterizada por descrições superficiais e paisagísticas, de modo geral comprometida em louvar a capital francesa enquanto modelo, mito e meta.”... Citado por Eduardo Bouças, João do Rio: descobrir Portugal/ Redescobrir o Brasil. Convergência Lusíada, RGPL, Rio de Janeiro: 2000. 21 Baseamos nossa análise em Eric Hobsbawm, Era dos extremos. São Paulo, Companhia das Letras, 1995, principalmente no capítulo As artes. ‘Usos do Passado’ — XII Encontro Regional de História ANPUH-RJ 2006: 7 transmissões de natal da família real inglesa, além da perene Hora do Brasil. Contudo a grande transformação opera-se na labuta cotidiana , na casa da anônima dona de casa: o rádio transformava a vida dos pobres e sobretudo das mulheres pobres presas ao lar, como nada fizera antes. Trazia o mundo à sua sala. Daí por diante, os mais solitários não precisavam mais ficar inteiramente sós. E toda a gama do que podia ser dito, cantado ou de outro modo expresso em som estava agora ao alcance deles22.

É desta maneira que ocorre a maior transformação da história da música. Se ela, desde 1914, conhecera a reprodução mecânica com o gramofone, agora com o rádio, vivenciará inclusive a popularização da música de minorias. Uma bela abordagem destes dois fatores, deste lado do Atlântico, é feito por Eric Hobsbawm em livro dedicado à história Jazz.23 O Autor perscruta a utilização da música como profissão por negros que objetivavam fugir das piores formas de escravidão instilando assim muitas de suas tradições. Num segundo momento, localiza o nascimento do Jazz na New Orleans de final do século XIX, período descrito como universalmente revolucionário para as artes populares, fruto da necessidade de entretenimento profissional dos trabalhadores pobres e da urbanização. Seria cansativo e desnecessário avançar mais nestes paralelos, contudo o samba percorreu caminhos semelhantes. Aqui também a atividade musical do negro fundiu-se com a qualificação profissional dos escravos tanto assim que boa geração de historiadores recuperaram a história de irmandades de músicos como a Santa Cecílha, onde João de Deus de Castro Lobo24 fundiu música européia com informações musicais coloniais. Esta prática avançou pelo século XIX como ilustram as aquarelas de Jean Baptiste Debret para o Rio de Janeiro. Na realidade brasileira do Entre Guerras ser músico popular não significava alcançar fama, reconhecimento ou dinheiro. Em entrevista a Sérgio Cabral, ainda na década de 8025, Jamelão, em meio a canções e alguns cigarros, discorre sobre a vida, deixando-nos perceber dois momentos bem distintos: no primeiro aflora a história do menino vendedor de jornais que torna-se crooner de gafieiras. O segundo, enlaça-se com a transformação da escola em indústria cultural. Nos falando sobre Mangueira descreve-a coberta por barracos de madeira. Uma escola risonha e franca com uma pequena sede no Buraco Quente. Nesta escola, o pequeno vendedor de jornais ingressa como tamborinista. Anos mais tarde, a pedido da mãe, tenta ingressar na Deixa Malhar, onde fica mas

22 Cf. Nicolau Sevcenko, op. Cit. 194. 23 Eric Hobsbawm, História Social do Jazz. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1990 24 O belo texto é uma dissertação de mestrado defendida na Universidade de São Paulo. João de Deus de Castro Lobo e as práticas musicais nas associações religiosas de . São Paulo, 1995. 25 Museu da Imagem e Som, Brahma intérpretes, 1988. ‘Usos do Passado’ — XII Encontro Regional de História ANPUH-RJ 2006: 8 o coração verde e rosa o faz retornar e lá ele observará todas as mudanças que assolarão o mundo do samba. Segundo Nelson da Nóbrega Fernandes26 foi durante os anos 30 que as escolas de samba e seus sambistas tornar-se-ão arautos da cultura nacional.. Nestes anos, imbuídos de diferentes propósitos, jornalistas, estadistas e intelectuais aproximaram-se. Lá em 1936 chegam Lindolfo Collor a , Pedro Ernesto à Mangueira e as subvenções da Diretoria Geral de Turismo. Os anos subseqüentes poriam lado a lado, Paulo da Portela e Walt Disney, e Heitor Villa-Lobos, em homenagens promovidas a Luís Carlos Prestes pelo jornal Tribuna Popular, criado pelo PCB. É na década de 40 que Jamelão rende-se ao canto. Através de amigos do futebol foi cantar na gafieira Dance Avenida, voltando outras tantas noites, até que o amigo então crooner adoece, cabendo- lhe substituí-lo. Desta segue para outras casas e mais tarde, apesar dos valores da época acerca do trabalho formal, com carteira assinada, abandona a fábrica de tecidos. Sua entrada no mercado fonográfico não foi fácil. Muitos acreditavam que ele não possuía condições de ser cantor romântico, devendo limitar-se a sambão. Mesmo assim, a gravação de Folha Morta de Ari Barroso, o primeiro lugar num festival de música de Carnaval na Tv Tupi e inúmeros sucessos de Lupicínio Rodrigues renderam-lhe contratos com a Odeon, Sinter e outros que ainda viriam. Uma leitura cuidadosa da obra, A MPB na Era do Rádio, de Sérgio Cabral27 revela as inúmeras teias que envolveram o rádio, o samba e a política entre as décadas de 20 e 50, i.e., dos discursos de Epitácio Pessoa na inauguração da Exposição do Centenário da Independência à morte de Almirante no início da Era da Televisão. Nestas mesmas décadas, pari passu às histórias do rádio o nome Jamelão expande-se dos salões de gafieira e dos auditórios da Rádio Nacional para a frente da escola de samba. Com o título Lá vem Mangueira28, a manchete do jornal O Globo de fevereiro de 1956 fez coro a tantos outros que tentaram descrever o espetáculo de ritmo, beleza e luxo. Contudo a grande novidade foi a voz forte vinda do coração que pulsa no ritmo da bateria. Cantando Exaltação à Mangueira, ele consagrou-se. O aparecimento de um novo ícone traduzia os novos tempos. Nossa hipótese central é que em 1956, momento da consagração de Jamelão, fecha-se um ciclo na história do samba carioca. As transformações começaram na década anterior, fruto do desaparecimento de seus patriarcas fundadores:

26 Cf. op.cit. p. 94. 27 Sérgio Cabral, A MPB na Era do rádio. São Paulo: Moderna, 1996. 28 BN, Seção de periódicos, número 9431-9454. ‘Usos do Passado’ — XII Encontro Regional de História ANPUH-RJ 2006: 9

1944: morre Zé Espinguela, descrito por todos os estudiosos como lendário. Em sua casa surgiu o primeiro samba (Pelo Telefone), o primeiro concurso entre escolas e a proibição do uso de instrumentos de sopro. 1948: afastamento de Cartola da Mangueira e do mundo do samba, creditado por muitos a morte de sua primeira esposa, Dona Deolinda mas que também pode suscitar motivos relacionados a maneira como ele e seus amigos mais próximos, e Paulo da Portela foram impedidos de entrar na quadra da Portela. O fato ficou tão notório que chegou a ser registrado em um samba do mesmo ano: Mangueira

Onde é que estão os tamborins, ó nega

Viver somente do cartaz não chega

Pôr as pastoras na avenida

Mangueira querida

Antigamente havia grande escola

Lindos do Cartola.

Um sucesso de Mangueira

Mas hoje o silêncio é profundo

E por nada deste mundo

Não consigo ouvir Mangueira29

1949: a morte de Paulo da Portela, o cidadão samba, o cicerone de Walt Disney, aquele cujo cortejo fúnebre fez parar de Osvaldo Cruz a Irajá. Os jornais trazem ainda mais exemplos. A 14 de fevereiro de 1957 em uma longa entrevista Heitor dos Prazeres, posando ao lado de seus quadros, fala com amargura sobre carnaval e das escolas de samba. Para ele , tudo só é feito com muito dinheiro30, cotejando com aquele tempo em que se desfilava por amor. Da mesma opinião são Almirante e , sendo que o último declarou: Carnaval de hoje é símbolo de música trabalhada31

29(Citado por Nelson da Nóbrega, op.cit. p. 135-136. 30 BN, Seção de periódicos, Jornal do Brasil, 14 de fevereiro, número 9431-9454. 31 Idem, ibidem. ‘Usos do Passado’ — XII Encontro Regional de História ANPUH-RJ 2006: 10

Com certeza Ismael referia-se aqueles que viam na redução do tempo dos sambas uma alternativa para sua entrada no mundo dos Longplayings. Com efeito, o Brasil mudara muito entre o primeiro concurso das escolas de samba realizado em 1935 e este momento. Conhecera uma ditadura , a democracia de um mundo em Guerra Fria e o nacionalismo ufanista dos anos 50. Se quisesse impor-se como veículo cultural economicamente viável o samba teria que adaptar-se. Jamelão seguiu sua carreira de cantor de samba-canção e de samba-enredo. Indiferente àqueles que insistem em negar-lhe o status de cantor, imputando-lhe a mera função de puxador. Indiferente ao samba marchado e tantas outras inovações empobrecedoras, ele a cada aparição, nos faz pensar na Belle Epoque carioca, em Paulo da Portela, em Heitor dos Prazeres, em Cartola.