<<

BUSCANDO A TRADIÇÃO, ENCONTRANDO O SUCESSO: A VELHA GUARDA DA

Nilton Rodrigues Junior*

*Doutorando, PPGSA, UFRJ

RESUMO

The members of Velha Guarda are marked by the paradox of enjoying success or keeping loyal to their roots and traditions. The feeling of being Velha Guarda means being and making de raiz, resisting the market and the made for entertainment.

Revista INTERFACES - Número 11 / 2 0 0 8 - Centro de Letras e Artes da Universidade Federal do Rio de J an eiro 95 m 1989, entrei em contato, velha guarda, Velha Guarda?3 pela primeira vez, com a A Velha Guarda da Portela é um EVelha Guarda da Portela, conjunto musical fundado, em 1970, no quando fui convidado para uma tripa Grêmio Recreativo Escola de Samba lombeira, na casa de Argemiro Patrocínio, Portela4, no , por iniciativa um dos integrantes do grupo. Era uma do músico . O grupo espécie de almoço-ensaio que acontecia atualmente é formado por 15 integrantes: em alguns "quintais". Uma atividade do 5 mulheres e 10 homens5. grupo que se tornou tão popular que A narrativa fundacional do grupo acabou imortalizando alguns desses está relacionada à gravação do Long Play "quintais": da tia Doca, da tia Surica, do Portela passado de glória: a Velha Guarda Manaceá e do próprio Argemiro. da Portela, produzido por Paulinho da Esses "quintais" nada tinham de Viola, em 9 de julho de 1970, pela RGE. diferentes em relação a tantos outros do Conforme o texto do encarte, assinado subúrbio carioca. O do Argemiro, por pelo próprio Paulinho da Viola, a gravação exemplo, nem quintal era, se consi- do disco tinha como objetivo: "reunir o derarmos um quintal como um espaço maior número possível de obras inéditas particular da casa, em geral, nos fundos, dessas figuras maravilhosas, que influíram pois ele morava numa vila de casas e o direta ou indiretamente na criação da seu "quintal" era o espaço de circulação escola [Portela], para dar uma idéia ao da vila. À frente de sua casa, alongava- público de sua importância". se por toda a vila abrigando instrumentos, Durante todo o tempo que estudei mesas e panelas, transformando-se num a Velha Guarda, permaneci constrangido dos "quintais" da Velha Guarda da Portela1. pela seguinte "advertência" de Oreste Naquele dia, na casa de Argemiro, Barbosa: "essa história de origem, de raiz, tive a intuição de que, naquele lugar, de etimologia é para os trouxas" (Barbosa, configurava-se alguma coisa além de um Oreste. Samba: sua história, seus poetas, simples almoço-ensaio, mas na época foi seus músicos e seus cantores. Rio de só mesmo uma intuição. Janeiro: FUNARTE, 1978, p. 123). Quando, em 2006, re-visitei a Velha Pareceu-me que uma solução para não Guarda, então para estudá-la2, estava ser "trouxa" foi escapar do debate em informado pela intuição que tivera em torno da questão de ser o samba de pretos 1989 e pela seguinte questão: o que faz a ou não, se da África, da ou do Rio

96 Revista INTERFACES - Número 11 / 2 0 0 8 - Centro de Letras e Artes da Universidade Federal do Rio de Janeiro de Janeiro, se dos morros ou do asfalto, inserção na mídia a partir de suas carreiras se do subúrbio ou de toda a cidade. individuais. Ao longo de meu estudo, verifiquei Enquanto a autenticidade está que os integrantes do grupo viviam a partir relacionada a quatro aspectos. Primeiro de uma contradição que marca suas a ligação da Velha Guarda da Portela com histórias de vida, suas inserções, no samba, a "comunidade", tanto a comunidade e as características da Velha Guarda, portelense, quanto a comunidade oswaldo- como um grupo de músicos, que faz shows cruzense6, reificando uma identidade além de desfilar. comunitária. Segundo o aspecto espacial Para os integrantes da Velha que articula desde os espaços onde a Guarda existe um paradoxo entre o Escola de Samba ocupou, tais como Sede, sucesso e a idéia de que devam manter- ruas e casas dos seus integrantes, até os se fiéis às raízes, às tradições. Ser Velha "quintais" da Velha Guarda da Portela, Guarda é ser e fazer samba de raiz, onde se experimenta relações mais portanto, é preciso não sucumbir aos pessoais e, portanto, capazes de "romper" apelos do mercado e às exigências do com as impessoalidades. Terceiro uma carnaval de espetáculo. postura "não-comercial" do grupo, que Ser de raiz, por conseguinte, é continua fazer como expressão manter acesa a chama do samba e nem das espontaneidades. Quarto e último sempre o sucesso, neste caso, é visto aspecto relaciona-se à disciplina, enten- como fidelidade a este samba. dida como a forma de organizar os A partir da minha pesquisa de comportamentos e as relações intra e campo, percebi que o sucesso para os extra grupos, que vem sendo construída integrantes da Velha Guarda pode ser desde as afirmações de que Paulo da entendido a partir de três elementos. Portela queria todos de gravata e sapato, Primeiro a capacidade de atrair interpretes até as seguintes afirmações: "Velha já famosos para gravar suas compo- Guarda tem disciplina" (Doca), "Oswaldo sições. Segundo a habilidade de esta- Cruz é um bairro disciplinado" (Surica), belecer-se em outros espaços fora da "todos os portelenses são finos. Na Portela Velha Guarda da Portela, como por não há brigas" (Guaracy do Violão) e "a exemplo: Teatro Rival (Surica), Bola Preta Portela é disciplinada" (Monarco). (Doca), Conjunto ABC da Portela (Edir e Entretanto, o sucesso parece estar Marquinhos). Terceiro a capacidade de desvinculado da realização financeira, pois

Revista INTERFACES - Número 11 / 2 0 0 8 - Centro de Letras e Artes da Universidade Federal do Rio de J an eiro 97 essa se concretiza através dos empregos fazem "samba-raiz" ou "samba-boi-com- formais: costureira, motorista de ônibus, abóbora". Enquanto o primeiro é tratado barbeiro, decoradora, ladrilheiro, militar, como tradicional, autêntico e "puro", mas policial. Ter sucesso, portanto, não é quase sempre não-comercial; o segundo sinônimo de uma situação financeira é tratado como inautêntico, produzindo estável, ainda que o mesmo possa música para agradar um público mais contribuir para isso. amplo e, portanto, um samba que atenda Portanto, para os integrantes do às demandas do mercado. grupo, a autenticidade é entendida como Outro autor que estudou a relação uma música que mantém suas raízes com entre produção musical e mercado foi a comunidade e com um ritmo e letra, que Richard Peterson ao tratar da produção não se deixam apropriar pelos apelos da autenticidade na música country comerciais, numa clara oposição entre um americana: "samba-raiz" e um "samba-boi-com- abóbora", ou seja, na gíria dos sambistas O que distingue o fenômeno que vamos examinar, é que a infi- um samba comercial, com letra e melodia delidade histórica se constrói fracas. através de uma série de interações Becker quando estudou, na década e de ajustamentos sucessivos entre interesses comerciais de um lado e de 1950, a relação dos músicos de Jazz um público do outro, e que jamais com o sucesso chegou à seguinte con- nenhuma das partes está em condições de impor a outra sua clusão: definição de autenticidade.8 7. Becker, Howard. Los extraños: sociología de la desviación. Buenos Os músicos sentem que a única Para melhor compreender essa Aires: Tiempo Contem- música que merece ser tocada é a poráneo, 1971, p. 81,82 que denominam jazz [...] os músicos relação entre sucesso e autenticidade, que [tradução minha]). se classificam a si mesmos de pode ser traduzida como "fora" e "dentro", 8. Peterson, Richard. La acordo com o grau que cedem aos gostaria de recorrer às teorizações de frabrication de estranhos, esta classificação varia l'authenticité la country desde o músico puro de jazz, até o DaMatta sobre a "casa" e a "rua". Para o music. Actes de la músico comercial7. recherche en sciences autor "a oposição entre rua e casa é sociales. 93, jun. 1992, básica, podendo servir como instrumento p. 5 tradução minha. Essa classificação diferenciada poderoso na análise do mundo social 9. DaMatta, Roberto. entre os "músicos puros" e os "músicos brasileiro"9. Carnavais, malandros e comerciais" pode ser traduzida, no caso heróis. Rio de Janeiro: DaMatta define a casa como "um Zahar Editores, 1979, p. da Velha Guarda, para os sambistas que 70 espaço profundamente totalizado numa

98 Revista INTERFACES - Número 11 / 2 0 0 8 - Centro de Letras e Artes da Universidade Federal do Rio de Janeiro forte moral", enquanto na rua "temos dualmente circula por outros espaços, apenas grupos desarticulados". Continua construindo seu sucesso particular para 10. DaMatta, Ro- o autor: "na casa ou em casa, somos não conspurcar o espaço da autenticidade. berto. O que faz o membros de uma família e de um grupo Neste sentido, gostaria de retomar brasil, Brasil?. Rio de Janeiro: Rocco, fechado com fronteiras e limites bem- dois fragmentos de entrevistas com os 1986, p. 24,29 10 definidos" . integrantes da Velha Guarda: "não sou eu 11. Coutinho, Eduar- Comparando com o que encontrei que vou botar nada em ordem, a casa não do. Velhas histórias, memórias futuras: o na Velha Guarda da Portela, referente a é minha" (Doca) e "eu não sou sambista sentido da tradição na obra de Paulinho da um "dentro" e um "fora", poderia dizer, de da Portela, eu sou sambista mesmo" Viola. Tese de Dou- torado em Comuni- forma mais generalizada, que o "dentro" (David do Pandeiro). cação, Escola de Co- está ligado às idéias de autenticidade, O tema do "dentro" e "fora" é municação, Univer- sidade Federal do Rio tradição, onde cada integrante vive a partir fundamental também para entender a de Janeiro, 1999, p. 190. de relações de afinidade, identificando-se, lógica da Velha Guarda. Quando Doca dessa maneira, com a casa; enquanto que falou que a casa não é dela e quando o "fora" está relacionado ao sucesso e as David disse que ser sambista é mais do redes de sociabilidade que cada integrante que ser sambista da Portela ambos individualmente consegue estabelecer, revelam uma lógica do "dentro" e do estando, portanto, relacionada à rua. "fora". Esse estar "dentro" e poder A idéia de que a Velha Guarda da mandar e estar "fora" e ser independente Portela seria um desses espaços de do grupo. autenticidade, que ficou livre de se Coutinho, em sua tese de douto- submeter às influências externas; pres- ramento em Comunicação sobre Paulinho supõe que existam fronteiras nítidas de da Viola, é bastante claro ao associar o onde se pode dizer o que seja e o que não sucesso com uma rede de sociabilidade: seja Velha Guarda da Portela e o que é "puro" ou "impuro, de "dentro" ou de "fora". Manacéa, por exemplo, chega às Quando se construiu esse limite paradas de sucesso quando Cristina Buarque regrava em 1974 o seu entre um espaço pensado como de "dentro" "Quantas Lágrimas", Alberto Lo- e um de "fora", sendo o espaço de "dentro" nato terá sua composição "So- visto como a autenticidade, parece que o frimento de quem ama" regravada por , em 1975; Mo- sucesso passou a ser identificado, quase narco verá sambas seus se tor- que "naturalmente", como estando "fora". narem sucesso nas vozes de e Beth Carvalho11. Deste modo, cada integrante indivi-

Revista INTERFACES - Número 11 / 2 0 0 8 - Centro de Letras e Artes da Universidade Federal do Rio de J an eiro 99 Outro autor que associa o sucesso tendo a autenticidade, mas servem dos integrantes da Velha Guarda com uma também para garantir que as "indivi- rede de sociabilidade estabelecida "fora" dualidades artísticas" de seus integrantes da Velha Guarda é Cazes na biografia de não sejam anuladas, garantindo, daí, o Monarco: sucesso. Neste sentido, creio poder afirmar Se transformou [gravação da música Tudo menos amor de que não há na Velha Guarda da Portela Monarco por Martinho da Vila] uma preocupação com uma "reserva" 12. (Cazes, Henrique. num divisor de águas na vida e na Monarco: voz e me- protecionista da uma forma cultural mória do samba. Rio de carreira de Monarco [...] Roberto Janeiro: Relume Duma- [Ribeiro] gravou em 1973 o Qui- específica. O que encontrei foram pessoas rá, 2003, p. 45,46) tandeiro [...] Clara Nunes, João que negociam seus cotidianos, sejam eles Nogueira e também "cotidianos artísticos" ou não, de forma o ajudaram a colocar Monarco na linha de frente dos sambistas12. mais plural possível.

Deste modo, é fundamental a Referências capacidade de estabelecer uma rede BARBOSA, Oreste. Samba: sua história, complexa de contatos e interações, seus poetas, seus músicos e seus can- construindo diferentes espaços de socia- tores. Rio de Janeiro: FUNARTE, 1978. bilidade, o que garante ao integrante do grupo não um aumento de poder hierár- BECKER, Howard. La cultura de un quico no interior do próprio grupo, mas uma grupo desviado: los músicos profesionales maior autonomia em relação ao sucesso, de las orquestas populares. In. _____. mais do que o que o grupo pode pro- Los extraños: sociología de la desviación. porcionar de forma direta. Buenos Aires: Tiempo Contemporáneo, A fronteira entre um "dentro" e um 1971. "fora" relaciona-se muito mais com o CAZES, Henrique. Monarco: voz e movimento de visibilidade do que com um memória do samba. Rio de Janeiro: movimento protecionista. Isto é, as Relume Dumará, 2003 fronteiras, que a Velha Guarda da Portela estabeleceu ao longo de sua existência, COUTINHO, Eduardo. Velhas histórias, não servem apenas para "proteger" o memórias futuras: o sentido da tradição grupo do que se pode chamar de uma na obra de Paulinho da Viola. Tese invasão de "elementos estranhos", man- (Doutorado em Comunicação), Escola de

100 Revista INTERFACES - Número 11 / 2 0 0 8 - Centro de Letras e Artes da Universidade Federal do Rio de Janeiro Comunicação, Universidade Federal do DANTAS, Beatriz. Vovó Nagô e papai Rio de Janeiro, 1999. branco: usos e abusos da África no Brasil. Rio de Janeiro: Graal, 1988. DAMATTA, Roberto. Carnavais, malan- dros e heróis. Rio de Janeiro: Zahar PETERSON, Richard. La frabrication de Editores, 1979 l'authenticité la country music. Actes de ______. O que faz o brasil, Brasil? la recherche en sciences sociales. n. 93, Rio de Janeiro: Rocco, 1986. jun. 1992.

Revista INTERFACES - Número 11 / 2 0 0 8 - Centro de Letras e Artes da Universidade Federal do Rio de J an eiro 101