O -ENREDO E O ENSINO DA LÍNGUA PORTUGUESA E DA LITERATURA

Por Julio Cesar Farias

ABSTRACT

Carnival working as a culture diffuser. The language and its insertion in Brazilian culture. Discursive traits of the literary-musical support of the Samba Schools. The use of samba-enredo to teach Portughese and Literature.

Revista INTERFACES - Número 11 / 2 0 0 8 - Centro de Letras e Artes da Universidade Federal do Rio de J an eiro 73 uitos pesquisadores ensinada nos colégios. consideram como Na década de 60, com a inserção Mprimeiro samba-en- da classe média, representada pelas redo o apresentado pela , figuras de Fernando Pamplona e o casal em 1933, embora outros estudos atribuam de artistas plásticos Nery, a temática o mérito à Portela ou ao Império Serrano. mudou, introduziu-se a exaltação do negro Antes disso, os eram impro- e a exploração do nosso folclore. E visados na hora do desfile e a Escola introduz também o refrão desfilava com dois sambas para percorrer ao gênero, o que possibilitou a participação a pista, um para ir e outro para voltar. efetiva do público, visto que os sambas De lá para cá, o samba-enredo, ou não eram gravados e apenas conhecidos de enredo como alguns preferem chamá- no momento do desfile. lo, mudou bastante. Na década de 30, em Nas décadas de 70 e 80, época em que as agremiações desfilavam por horas que os sambas já eram gravados para com cerca de 80 a 100 componentes, o comercialização, ocorreu o fim dos samba, bastante lento e cadenciado, sambas tipo lençol e houve o aceleramento continha pequenos versos com uma parte do samba-enredo com a espetacu- improvisada por repentistas, sempre larização do Carnaval, marcada pela acompanhados pelas pastoras. As compo- presença revolucionária do carnavalesco sições, nessa época, tratavam das Joãosinho Trinta. desilusões amorosas dos compositores, A disputa com as marchinhas nos exaltavam a natureza e o próprio samba. salões, a criação do regulamento para Nas décadas de 40 e 50, época do desfile, a introdução da televisão como Estado Novo, já com cerca de 500 veículo voltado para a massa e a cons- componentes e com o enredo definido, para trução do Sambódromo como palco fixo, saírem da marginalidade e acom-panharem são alguns dos fatores que determinaram o crescimento dos desfiles, as Escolas de a crescente aceleração, o encurtamento Samba alongaram os sambas para 60 a 90 e a diluição poética do samba-enredo nas versos; conhecidos como sambas de lençol, décadas seguintes. com temas nacio-nalistas e ufanistas, geralmente tirados de livros didáticos, com A Epicidade no Discurso vocabulário rebus-cado para equiparar a O termo epopéia designa um produção textual popular à cultura oficial, poema de exaltação, protagonizado por um

74 Revista INTERFACES - Número 11 / 2 0 0 8 - Centro de Letras e Artes da Universidade Federal do ou vários personagens idealizados, Exemplos: Odisséia, de Homero: caracterizados por suas ações titânicas, aventuras de Ulisses, rei de Ítaca; Ilíada, enfrentando obstáculos sobrenaturais ou de Virgílio: Aquiles e a guerra de Tróia; maravilhosos, e pelo destaque de seus Os Lusíadas, de Camões: história de ideais e de seus aspectos positivos. Portugal. A epopéia está ligada ao conceito de glória e de sucesso. A essência do Características Discursivas do Sam- discurso épico é noticiar para enaltecer ba-Enredo hiperbolicamente em tom nobre e grandi- O samba-enredo, como qualquer loqüente, daí se prestar à exaltação de outro estilo musical, possui uma estrutura personagens e de fatos narrados, ocorri- melódica e lingüística própria. O samba- dos freqüentemente em cenários monu- enredo diferencia-se do samba de terreiro, mentais. levado nos fundos de quintais, do samba Os elementos básicos do poema partido alto, no qual se exercita o improviso épico são: a proposição, isto é, a obedecendo ao tema proposto, e do samba- revelação antecipada do que se pretende canção, cuja temática são as dores de abordar; a invocação do ser exaltado e amor do poeta. Esses tipos são modali- de divindades, a presença de seres dades de samba executados nas reuniões fantásticos e obstáculos, a narração de de sambistas, sem a preocupação com a batalhas heróicas, de viagens prolongadas competição do concurso oficial, como e exóticas e a constância de seres ocorre com o samba-enredo. sobrena-turais intervindo nas ações dos Guardadas as devidas proporções perso-nagens. entre a epopéia literária e o gênero No discurso épico temos a presen- musical analisado, o samba-enredo ça de dois planos distintos que se fundem apresenta características discursivas para transformar o ser comum em herói: remanescentes do gênero épico. o plano real ou histórico e o plano A característica textual mais mítico ou maravilhoso. Tal fusão faz evidente do samba-enredo está na com que o retratado consiga pisar nos dois aproximação formal com a epopéia planos: ao mesmo tempo em que integra literária, pela constante presença da a História, seus feitos e qualidades são proposição (anunciação do tema cantado), exagerados visando à mitificação, con- da invocação e da louvação heróica de ferindo-lhe heroicidade. fatos, objetos e personagens (a miti-

Revista INTERFACES - Número 11 / 2 0 0 8 - Centro de Letras e Artes da Universidade Federal do Rio de J an eiro 75 ficação), provenientes do texto épico clássico.

Plano Maravilhoso ou mítico = Tema do enredo exaltado

Destaque de suas qualidades e características positivas

Plano Real ou Histórico = Tema do enredo (personalidade, objeto ou fato)

Elementos da narrativa épica presentes no samba-enredo: I - o agenciador da ação (sujeito); II - destino final da ação (objeto direto e indireto); III - caracterizadores narrativos (adjuntos adnominais) e; IV - Situadores da ação no tempo e no espaço (adjuntos adverbiais).

Outra característica marcante é a intertextualidade, com muitas referências a outros textos. Isso ocorre porque o samba-enredo configura-se em um texto encomendado, pautado na sinopse do enredo pré-determinado, resgatado na letra. E o compositor não se prende apenas à sinopse, utiliza também outros textos e o extralingüístico. Os compositores têm hoje uma grande preocupação com construções fáceis de serem memorizadas, enfatizando o verso rimado na constituição do ritmo, da sonoridade das frases cantadas, como acontece com o cordel. Por isso, podemos considerar o samba-enredo como uma vertente da poesia popular narrativa.

Dentre as diversas características discursivas do gênero, destacamos:

76 Revista INTERFACES - Número 11 / 2 0 0 8 - Centro de Letras e Artes da Universidade Federal do Rio de Janeiro  As frases curtas com verbos de ação semântica que sintática. O relacionamento são mais comuns porque contribuem para dos termos e expressões dá-se mais pelo a fluidez da narração do enredo e tornam significado que pela função sintática. Por o texto mais dinâmico. isso, as conjunções coordenativas são mais usadas, porque são mais apropriadas para A inversão dos termos oracionais para narrações orais e auxiliam na seqüen- a construção melódica dos sambas, facili- cialidade dos fatos e nos coloquialismos. tando a pronúncia de certas palavras e Destaque de suas qualidades e características positivas expressões para auxiliar na construção da Há um clichê vocabular, isto é, palavras rima e também para enfatizar ele-mentos e expressões que se repetem na cons- importantes do enredo. trução do texto de samba-enredo.

 Os adjetivos empregados de forma O texto de samba-enredo constitui-se rsonalidade, objeto ou fato) hiperbólica, exagerada, por se tratar de de uma narrativa predominantemente um texto de exaltação, tendo como didática, embora muitas vezes de narrativa preferência o uso intensivo de adjetivos não linear. afetivos, isto é, colocados antes dos substantivos. De caráter informativo, o texto de  Preferência pelo emprego do subs- samba-enredo deveria primar pela tantivo abstrato para realçar a qualidade objetividade, entretanto os compositores e o sentimento. passam para sua obra uma grande carga emotiva ao encherem seus versos com os  O samba-enredo segue padrões de mais variados recursos expressivos, métrica e rima próprios e os sinais de revelando que são profissionais extre- pontuação mais empregados são a vírgula, mamente intuitivos, em geral desco- as reticências e o ponto de exclamação, nhecedores das rígidas regras gramaticais, com a intenção de marcar a cadência e o mas de uma admirável sensibilidade ritmo do texto que será cantado. lingüística na adequação do discurso ao contexto do Carnaval, embora já saibamos  A coesão textual, isto é, o relacio- de "doutores" compondo samba-enredo na namento das palavras entre si, é mais atualidade.

Revista INTERFACES - Número 11 / 2 0 0 8 - Centro de Letras e Artes da Universidade Federal do Rio de J an eiro 77 Exemplos do discurso épico no samba-enredo

1) Portela 1984 Jogo feito banca forte Contos de Areia Qual foi o bicho que deu? Autores: Dedé Portela e Norival Reis Deu águia, símbolo da sorte é um encanto a mais Pois vinte vezes venceu Visão de aquarela É cheiro de mato E no ABC dos orixás É terra molhada Oranian é Paulo da Portela É Clara Guerreira Um mundo azul e branco Lá vem trovoada O deus negro fez nascer Epa hei Iansã, epa hei Paulo Benjamin de Oliveira Na ginga do estandarte Fez esse mundo crescer Portela derrama arte Okê, okê oxosse Nesse enredo sem igual Faz nossa gente sambar Faz da vida poesia Okê, okê Natal E canta sua alegria Portela é canto no ar Em tempo de Carnaval

1) Samba-enredo Contos de Areia, do G.R.E.S. Portela 1970.

Plano Maravilhoso ______Oraniah, Criador do Mundo Oxosse, Caçador Iansã, deusa dos ventos e da Deus negro morador das matas tempestade

PAULO DA PORTELA NATAL

Dono de banca Cantora, ilustre defensora Fundador da Portela de jogo do bicho da Portela, compositor Presidente de Honra Referência à rua sede da Escola

78 Revista INTERFACES - Número 11 / 2 0 0 8 - Centro de Letras e Artes da Universidade Federal do Rio de Janeiro Plano Histórico

As personalidades portelenses, portanto, freqüentam simultaneamente os planos histórico e maravilhoso.

2) Unidos da Tijuca 2009 Da Ciência à navegação Tijuca 2009, uma odisséia sobre o Luar que embala meus sonhos espaço Luar de qualquer estação Autores: Julio Alves e Totonho Eu vi brilhar, em seu olhar, a devoção Dourado é o sol a clarear A lenda do guerreiro e o dragão No azul do céu, estende o véu, isso é O despertar da fantasia Tijuca Vi também a criança em seu carrossel Chegou na cauda do cometa o pavão De heróis das estrelas, um céu E a minha estrela foi buscar na imensidão De mistérios e magia Cruzou o céu no limiar do infinito Na tela, tantas jornadas pelos astros O meu Borel visto de cima é mais bonito Quem dera poder viver em pleno espaço Eu vou alçar ao espaço Vejo em minha lente a imagem sideral Cavaleiro alado a desvendar Viagem do meu Carnaval Além das estrelas o Monte de Zeus A nave vai pousar Horizonte de meu deus, Oxalá E conquistar seu coração Vai Tijuca, me faz delirar O dia vai chegar A essência vem de lá Quando brilhar nossa constelação

PLANO MARAVILHOSO OU MÍTICO Fantasia Chegou na cauda do cometa o pavão, estrela, alçar ao espaço, cavaleiro alado a desvendar, Monte de Zeus, deus Oxalá, meus sonhos, delirar, devoção, lenda do guerreiro e o dragão, heróis das estrelas, jornadas pelos astros, mistérios e magia, despertar da fantasia, viagem, constelação - a nave vai pousar (de seres extraterrestres e imaginário futurista) ------ESPAÇO CELESTE ------a nave vai pousar (das expedições científicas)

Revista INTERFACES - Número 11 / 2 0 0 8 - Centro de Letras e Artes da Universidade Federal do Rio de J an eiro 79 Realidade Sol dourado, azul do céu, estrela, luar, da Ciência à navegação, viver em pleno espaço, vejo em minha lente a imagem sideral, viagem, constelação

PLANO REAL OU HISTÓRICO

Possibilidades pedagógicas do uso do samba-enredo em sala de aula: a) Expor o aluno às diversas tipologias discursivas: texto literário clássico e texto de massa; b) Desenvolver leitura e interpretação; c) Estender vocabulário; d) Contextualizar fatos históricos e personalidades; e) Ampliar universo cultural; f) Confrontar e relacionar textos (intertextualidade); g) Introduzir estudos literários; h) Reconhecer elementos da narrativa poética; i) Reconhecer as figuras de linguagem; j) Identificar a linguagem coloquial; l) Aplicar semântica; m) Praticar ortografia; n) Exercitar fonologia, morfologia e sintaxe; o) Empregar regras de acentuação e de pontuação; p) Analisar versificação e rima.

Referências:

FARIAS, Julio Cesar. Para Tudo Não Se Acabar Na Quarta-Feira: A Linguagem do Samba-Enredo. Rio de Janeiro: Litteris Editora, 2001.

______. Aprendendo Português Com Samba-Enredo. Rio de Janeiro: Litteris Editora, 2002.

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