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Ousadia e sensibilidade Caetano e Gil, duas vidas em uma só ON-LINE

Revista do Instituto Humanitas IHUNº 476 | Ano XV 03/11/2015

ISSN 1981-8769 (impresso) ISSN 1981-8793 (online)

Celso Fernando Favaretto: A musicalidade disruptiva da Tropicália em 50 anos de trajetória artística Pedro Bustamante Teixeira: Ousadia e sensibilidade de uma vida inteira Christopher Dunn: A vanguarda caleidoscópica do Brasil expressa na obra de Caetano e Gil

Marcelo Medeiros: Xavier Albó: Luiz Carlos Susin e “Não se deve tributar Caminhos Gilmar Zampieri: as grandes fortunas. de uma vida Por uma teologia da Deve-se tributar todas pelos Andes libertação animal as fortunas” Editorial Ousadia e sensibilidade. Caetano e Gil, duas vidas em uma só

aetano Veloso e Complementam esta edição um perfil somam cem anos de amizade e com o antropólogo jesuíta Xavier Albó, Cmúsica. No ano em que se cele- contando a trajetória desde sua saída bram os 50 anos de carreira dos dois ar- da Espanha, na adolescência, chegada tistas, a revista IHU On-Line rememora na América Latina e todo seu desenvol- a carreira dos dois artistas. Ao debater vimento intelectual junto com os povos a vida e a obra destes dois ilustres baia- originários dos Andes. nos, este número reúne entrevistas com A entrevista com Manfredo Araújo pesquisadores e pensadores que deba- de Oliveira revisita a história da me- A IHU On-Line é a revista do Instituto tem a produção artística e os impactos tafísica e sugere o desenvolvimento de Humanitas Unisinos - IHU. Esta publi- do trabalho na cultura brasileira. uma filosofia sistemática. cação pode ser acessada às segundas-feiras Contribuem para o debate Celso Fa- A entrevista com Milton Cruz, pes- no sítio www.ihu.unisinos.br e no endereço varetto, doutor em Filosofia e profes- quisador do Observatório das Metrópo- www.ihuonline.unisinos.br. les/Núcleo Porto Alegre, propõe uma sor aposentado da Universidade de São A versão impressa circula às terças-feiras, a reflexão sobre que cidade queremos Paulo – USP, que analisa a forma pela partir das 8 horas, na Unisinos. O conteúdo qual Caetano e Gil foram impactados para o futuro, tendo como pano de fun- da IHU On-Line é copyleft. do o projeto de revitalização do Cais pelo Tropicalismo e como suas carreiras Mauá e sua relação com Porto Alegre. Diretor de Redação foram definidas e transformaram o ce- Na próxima semana realiza-se a últi- Inácio Neutzling ([email protected]) nário cultural brasileiro. ma etapa do Ciclo de Estudos que anali- Em sua entrevista, Pedro Bustaman- Jornalistas sou e debateu, a partir da realidade da te Teixeira fala sobre a dimensão das João Vitor Santos - MTB 13.051/RS desigualdade social brasileira, o O ([email protected]) contribuições artística e política de Gil- Capital do Século XXI, de Thomas Piket- Leslie Chaves – MTB 12.415/RS berto Gil e no cenário ty. A sessão consistirá na webconferên- ([email protected]) cultural brasileiro e internacional, e sa- 2 cia de Marcelo Medeiros, pesquisador Márcia Junges - MTB 9.447/RS lienta: “A vida desses artistas é de uma do Instituto de Pesquisa Econômica Apli- ([email protected]) coragem, de uma entrega comovente”. Patrícia Fachin - MTB 13.062/RS cada – Ipea e professor na UnB. Segundo Para Frederico Coelho, professor ([email protected]) ele, na entrevista publicada nesta edi- dos cursos de graduação em Literatura Ricardo Machado - MTB 15.598/RS ção, peremptoriamente afirma: “Não e Artes Cênicas e do Programa de Pós- ([email protected]) se deve tributar as grandes fortunas. Graduação em Literatura, na Pontifícia Deve-se tributar todas as fortunas.” Revisão Universidade Católica do Rio – PUC-Rio, Luiz Carlos Susin e Gilmar Zampieri, Carla Bigliardi a obra dos artistas pensa e conta a his- professores de teologia, acabam de pu- Projeto Gráfico tória do país ao expressar o anseio por blicar o livro A vida dos outros. Ética e Ricardo Machado uma nação vanguardista. teologia da libertação animal (São Paulo: Para Alexandre Faria, professor de Paulinas, 2015). Na entrevista publicada Editoração Rafael Tarcísio Forneck Literatura no Departamento de Letras nesta edição, afirmam que “o livro abre – ICHL da Universidade Federal de Juiz um debate no campo teológico como, ao Atualização diária do sítio de Fora, em Minas Gerais, “Caetano e que se sabe, nunca tinha sido feito expli- Inácio Neutzling, César Sanson, Patrícia Gil criaram e representam personagens citamente, pelo menos no Brasil”. Fachin, Cristina Guerini, Fernanda Forner, que são leitores do Brasil, como tantos Recordando os 498 anos da Reforma Matheus Freitas e Nahiene Machado. outros de sua geração”. Segundo ele, “o Luterana, de Oneide Bobsin, profes- Colaboração que se coloca hoje em dia é se isso ain- sor de Ciências da Religião na Escola Jonas Jorge da Silva, do Centro de Pesqui- da é possível para um artista”. Superior de Teologia – EST, publicamos sa e Apoio aos Trabalhadores – CEPAT, de Para Miguel Jost Ramos, mestre e a entrevista sob o título “’’Uma Igreja Curitiba-PR. doutor em Estudos de Literatura pela da Reforma precisa estar sempre sendo PUC-Rio, Caetano e Gil inauguram uma reformada’’. forma de fazer música no Brasil, mistu- Dois artigos, igualmente, podem ser rando pop com o erudito, o novo com o lidos nesta edição. O artigo O princípio tradicional e a comunicação de massa da sinodalidade em uma Igreja pós- com a contracultura. convencional, sobre o Sínodo da Famí- Instituto Humanitas Unisinos - IHU Christopher Dunn, doutor em Estu- lia é de Sérgio Coutinho, professor de Av. Unisinos, 950 dos Luso-brasileiros pela Brown Univer- História da Igreja, e Contenção da Rús- São Leopoldo / RS sity e professor de Literatura e estudos sia, ontem e hoje, de Diego Pautasso, CEP: 93022-000 culturais brasileiros na Tulane Univer- professor de Relações Internacionais da Telefone: 51 3591 1122 | Ramal 4128 sity, de Nova Orleans, Estados Unidos, Unisinos. e-mail: [email protected] considera que a vasta produção cultural A todas e a todos uma boa leitura e Diretor: Inácio Neutzling uma ótima semana! dos dois tropicalistas apresenta para o Gerente Administrativo: Jacinto mundo uma imagem plural e dinâmica Schneider ([email protected]) do Brasil. Foto da Capa: Pedro Waddington

SÃO LEOPOLDO, 03 DE NOVEMBRO DE 2015 | EDIÇÃO 476 Sumário

Destaques da Semana

6 Destaques On-Line 8 Linha do Tempo 10 Eventos – Flávio Comim: O engodo da classe média acomodada 12 Perfil - Xavier Albó: Caminhos de uma vida pelos Andes 16 Milton Cruz: A cidade (rebelde) da modernidade tardia contra a cidade fordista-industrial 24 Manfredo Araújo de Oliveira: Francisco e a metafísica como ecologia integral: a questão fundamental do pensamento contemporâneo 36 Estante - Luiz Carlos Susin e Gilmar Zampieri: Por uma teologia da libertação animal

Tema de Capa

42 Biografias - Duas vidas, uma vida 44 Celso Fernando Favaretto: A musicalidade disruptiva da Tropicália em 50 anos de trajetória artística 51 Pedro Bustamante Teixeira: Ousadia e sensibilidade de uma vida inteira 56 Frederico Oliveira Coelho: Caetano e Gil: Uma trajetória de construção utópica e autorreflexiva do 3 Brasil 60 Alexandre Faria: A fluidez artística entre as estruturas 65 Miguel Jost Ramos: Os libertadores da criação artística brasileira 72 Christopher Dunn: A vanguarda caleidoscópica do Brasil expressa na obra de Caetano e Gil 77 Baú da IHU On-Line

IHU em Revista

80 Agenda de Eventos 82 Eventos - Marcelo Medeiros: “Não se deve tributar as grandes fortunas. Deve-se tributar todas as fortunas” 85 Sérgio Ricardo Coutinho: O princípio da sinodalidade em uma Igreja pós-convencional 88 Oneide Bobsin: “Uma Igreja da Reforma precisa estar sempre sendo reformada” 92 #Crítica Internacional - Curso de RI da Unisinos: Contenção da Rússia, ontem e hoje 94 Publicações 95 Retrovisor

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IHU ON-LINE

Destaques da Semana DESTAQUES DA SEMANA TEMA DE CAPA

Destaques On-Line Entrevistas publicadas entre os dias 26-10-2015 e 30-10-2015 no sítio do IHU

A crise política e as alternativas. “Quem inverterá esse quadro? Nós temos de construir esse ‘quem’”

Entrevista com Cândido Grzybowski, graduado em Filosofia, na Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de Ijuí, Rio Grande do Sul, mestre em Educação pela Pontifícia Universidade Católica do – PUC-Rio e doutor em Socio- logia pela Sorbone, Paris. É diretor do Instituto Brasileiro de Análises Sociais e Econômicas – Ibase. Publicada em 30-10-2015 Disponível em http://bit.ly/1MmXKHG

“O diagnóstico da crise de hegemonia que fiz anteriormente só vem se confir- mando, basta observarmos que há uma espécie de paralisia na política: os maiores

partidos não conseguem criar um acordo de governabilidade, cada um quer tirar Fonte imagem: www.ihu.unisinos.br 6 uma lasca de cá e outra de lá, e isso paralisa o governo e o Congresso”, diz Grzy- bowski à IHU On-Line, na entrevista, concedida por telefone.

Crise política: a estratégia do tensionamento

Entrevista com Benedito Tadeu César, graduado em Ciências Sociais pela Facul- dade de Filosofia, Ciências e Letras de Rio Claro, mestre em Antropologia Social pela Universidade Estadual de Campinas – Unicamp e doutor em Ciências Sociais pela mesma universidade. É professor aposentado da Universidade Federal do Rio Grande do Sul – UFRGS. Publicada em 29-10-2015 Disponível em http://bit.ly/1RDSVOC

“Se Dilma não conseguir recompor sua base parlamentar, se manterá esse cres- cente tensionamento: num momento parece que o governo vai explodir, depois a tensão diminui, a crise mais geral passa e acham que Dilma poderá governar, mas depois de uns dias de calmaria começa tudo outra vez, e ela não consegue sair do lugar. A tática hoje é mantê-la emparedada para tirá-la a partir do terceiro ano de Fonte imagem: www.ihu.unisinos.br governo, quando os efeitos do ajuste fiscal estarão fazendo efeito e o país come- çará a sair desse processo de desaceleração”. A avaliação é do sociólogo Benedito Tadeu César, em entrevista concedida à IHU On-Line por telefone.

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A fraude da reforma agrária em Santa Catarina

Entrevista com Gert Schinke, historiador e ecologista. Atualmente é presidente do Instituto para o Desenvolvimento de Mentalidade Marítima – Inmar, e ex-presi- dente da Federação das Entidades Ecologistas Catarinenses – FEEC. Publicada em 28-10-2015 Disponível em http://bit.ly/1OdNZ5n

A atuação do Instituto de Reforma Agrária de Santa Catarina – IRASC no estado catarinense, na década de 1960, durante a ditadura militar brasileira, culminou numa “antirreforma agrária”, diz Gert Schinke, autor de O golpe da reforma agrá- ria (Florianópolis: Insular, 2015), à IHU On-Line. Segundo ele, desde 1964, o órgão foi “paulatinamente instrumentalizado para executar mera ‘regularização fundiá- ria’ e distribuição de glebas em supostas terras devolutas pertencentes ao Estado de Santa Catarina”. Fonte imagem: www.ihu.unisinos.br

Açailândia, MA. Comunidade de Piquiá de Baixo: deslocamentos forçados e a ausência do Estado brasileiro

Entrevista com Dário Bossi, padre comboniano, é membro da rede Justiça nos Trilhos e da Rede Brasileira de Justiça Ambiental. Publicada em 27-10-2015 Disponível em http://bit.ly/1LGWwdj 7 A situação da comunidade de Piquiá de Baixo, que vive no bairro industrial da cidade de Açailândia, no Maranhão, denunciada internacionalmente, foi tema da audiência sobre “Violência contra Povos Indígenas” na Comissão Interamericana de Direitos Humanos – CIDH da Organização dos Estados Americanos – OEA, em Washington, nos EUA. De acordo com Dário Bossi, que acompanha a situação dos

moradores da região, a principal reivindicação das famílias “é o reassentamento Fonte imagem: www.ihu.unisinos.br coletivo numa região livre da poluição”, já que há 27 anos a comunidade “sofre pelos danos provocados por cinco empresas siderúrgicas e pelas atividades de es- coamento de ferro da mineradora Vale S.A.”.

PEC 215: a expressão da disputa de terras no país

Entrevista com Maurício Guetta, graduado em Direito pela Pontifícia Universi- dade Católica de São Paulo – PUC-SP e mestre em Direito Ambiental pela mesma instituição e pela Université Paris 1. Atualmente é advogado do Instituto Socio- ambiental – ISA e professor convidado do Curso de Direito Ambiental da Escola Superior da Advocacia no Rio de Janeiro – OAB/RJ e professor-assistente do Curso de Especialização em Direito Ambiental da COGEAE-PUC/SP. Publicada em 26-10-2015 Disponível em http://bit.ly/1KKZf1e

A retomada das sessões da Comissão para tratar da Proposta de Emenda Cons- titucional – PEC 215 “denota uma clara ofensiva ruralista contra os direitos ter- ritoriais indígenas, além dos direitos das comunidades quilombolas e dos direitos de natureza ambiental, que pertencem a toda a coletividade brasileira”, afirma Fonte imagem: www.ihu.unisinos.br Maurício Guetta em entrevista à IHU On-Line por e-mail.

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Linha do Tempo A IHU On-Line apresenta seis notícias publicadas no sítio do Instituto Humanitas Unisinos – IHU, entre os dias 26-10-2015 e 30-10-2015, relacionada a assuntos que tiveram repercussão ao longo da semana

Lei de terrorismo, Manifestantes As mulheres na aprovada no Senado, invadem arena e prova do Enem 2015 fragiliza protestos no protestam durante e o discurso de ódio Brasil Jogos Indígenas contra os direitos humanos Moradores da periferia quei- Cerca de 200 indígenas de di- Em um contexto extrema- mam um ônibus para protestar versas etnias invadiram o estádio contra a morte de um jovem nas mente conservador e de imen- dos Jogos Mundiais Indígenas e mãos da polícia. Durante uma sos retrocessos para os direitos interromperam as competições manifestação de estudantes con- das mulheres no Brasil – tanto da noite desta quarta-feira (28). no Congresso Nacional como na tra o fechamento de escolas es- Logo antes das 19h, o grupo en- execução de políticas públicas – taduais, uma estação do metrô trou na Arena Verde e invadiu esse último final de semana foi é apedrejada. Em passeata pelo o campo com cartazes e gritos marcado pela surpreendente for- impeachment da presidenta Dil- ma como algumas das questões ma Rousseff, um rapaz que ves- contra a PEC 215 – o projeto de foram abordadas pelo Exame Na- 8 emenda constitucional que teve tia camiseta vermelha é agredido cional do Ensino Médio (Enem). com tapas e pontapés. De acordo sua primeira aprovação ontem A reportagem foi publicada por com uma lei aprovada na noite por comissão especial da Câmara Plataforma de Direitos Humanos desta quarta no Senado, todos os dos Deputados. – Dhesca Brasil, 29-10-2015. exemplos podem ser enquadra- A reportagem é de Júlia Dias dos como atos de terrorismo, e Assim que abriram o caderno Carneiro, publicada por BBC Bra- aqueles que os praticaram estão de provas no último sábado (24) sil, 29-10-2015. sujeitos a penas de 16 a 24 anos. os/as estudantes se depararam No centro do campo, os indíge- com uma questão, em especial, A reportagem é de Gil Alessi, nas formaram um grande círcu- que chamou a atenção e rapi- publicada por El País, 29-10-2015. damente ganhou destaque nas lo e deram-se as mãos, gritando redes sociais. A prova de Ciên- O projeto de lei chega num “não à PEC 215”. Segundo eles, o momento em que o Brasil é sacu- cias Humanas e Suas Tecnolo- texto dificulta a demarcação de gias trazia a seguinte afirmação dido por protestos de toda natu- terras. Depois, agruparam-se ao da filósofa Simone de Beauvoir: reza, diante do aprofundamento lado de uma das arquibancadas, “Ninguém nasce mulher: torna- da crise política e econômica: de onde alguns líderes do movimen- -se mulher. Nenhum destino bio- professores que se queixam do to discursaram, apropriando-se lógico, psíquico, econômico defi- fechamento de escolas, a mo- de um dos microfones do evento ne a forma que a fêmea humana vimentos sociais que protestam assume no seio da sociedade; é o enquanto o público que até en- contra o ajuste fiscal, passan- conjunto da civilização que ela- tão assistia às provas de corrida do pelos movimento pró e con- bora esse produto intermediário tra impeachment da presidenta de 100 metros acompanhava em entre o macho e o castrado que Dilma. silêncio. qualificam o feminino.”

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O cardeal Pell A brasileirização das Mudança climática e a economia eleições na pode reduzir (eucarística). Artigo capacidade de Andrea Grillo Quem acompanhou a apura- ção dos resultados do primeiro hidrelétrica em até Um Sínodo não pode ser inter- turno da Argentina tendo vivido 20% pretado como um “balanço eco- o que aconteceu nas eleições nômico”. É óbvio que, se em um brasileiras do ano passado deve balanço não “entra” um item, Temperaturas mais elevadas, ter sentido aquele clássico déjà este também não pode “sair”. mudança no regime de chuvas e vu: um candidato governista que Se em um balanço não entra as pesquisas diziam que lutava aumento de eventos climáticos “comunhão”, também não pode sair “comunhão”: isso é pacífico. por uma vitória no primeiro tur- extremos são apenas uma parte Será possível que o bispo mais no, e apesar de ser apoiado por da história das mudanças climá- experiente em economia não te- um presidente muito popular, ticas. A forma como essas mu- 9 nha se dado conta disso? termina obtendo uma magra e danças vão impactar agricultura, decepcionante vitória, contra A opinião é do teólogo italia- geração de energia, infraestru- no Andrea Grillo, leigo casado, um opositor de direita flertan- professor do Pontifício Ateneu do com consignas de esquerda e tura, oferta d’água e saúde é o alcançando uma derrota com sa- S. Anselmo, de Roma, do Insti- outrolado que acaba de ganhar tuto Teológico Marchigiano, de bor de vitória, já que começa a detalhes para o Brasil. Ancona, e do Instituto de Litur- corrida pelo segundo como claro gia Pastoral da Abadia de Santa favorito. A reportagem é de Giovana Giustina, de Pádua. O artigo foi A reportagem é de Victor Fa- Girardi, publicada pelo jornal O publicado no seu blog Come Se Non, 28-10-2015. A tradução é de rinelli, publicada por CartaCapi- Estado de S. Paulo, 29-10-2015. Moisés Sbardelotto. tal, 27-10-2015. Considerado o mais importan- Confira um trecho. O primeiro personagem pode te estudo sobre como diversos ser tanto Dilma Rousseff quanto Desde que o Sínodo se concluiu, setores vão reagir diante do cli- o cardeal George Pell concede o peronista Daniel Scioli – o can- entrevistas em que defende: didato governista nas eleições ma modificado, o projeto Brasil , que teve 36,8% dos - o magistério sobre a família 2040 - Alternativas de Adapta- votos no último domingo. O opo- saiu totalmente confirmado da ção às Mudanças Climáticas foi sitor, em um dos casos, é Aécio Relatio, cujo texto, na sua opi- publicado no dia 28-10-2015 no nião, repetiria totalmente a Fa- Neves, no outro, é o neoliberal miliaris consortio; Mauricio Macri – 34,3% dos votos. site da extinta Secretaria de

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EVENTOS O engodo da classe média acomodada Flavio Comim propõe uma reflexão acerca do que sustenta o sistema do capital no século XXI, que engana atraindo as pessoas para uma falsa ideia de vida menos desigual

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Por João Vitor Santos

A quinta-feira, 29-10, encerrou ty, e o Capital no Século XXI (Rio Comim chama a atenção para um em clima de provocação. Em mais de Janeiro: Intrínseca, 2014). En- sistema que faz com que se busque um encontro do Ciclo de Estudos O tretanto, Comim desafiou a plateia bens que lhe confiram uma signifi- Capital no Século XXI – uma discus- a pensar porque esse capital espe- cação, vendendo a ideia de que não são sobre a desigualdade no Brasil, culativo e seu sistema financeiro, se é pobre e que consegue acessar tais bens de consumo como os ri- o economista e professor da Univer- que é o verdadeiro gerador de ri- cos. É o exemplo do carro. Quem sidade Federal do Rio Grande do Sul queza no mundo hoje, sustenta-se tem, se vê desobrigado a depender – UFRGS, Flávio Comim, debateu o sem que não haja resistências. “A do sistema público de transporte. tema Políticas públicas de regula- renda não é só a renda e sim a le- ção do capital e possibilidades para Logo, tem autonomia, liberdade gitimidade que ela carrega. O que e vantagem sobre quem não tem. um Estado social no Brasil. nos faz sentir classe média? E pior: O mesmo funciona com smartpho- Como os demais painelistas, teve o que nos faz sentir acima da classe nes, TV’s modernas de tela plana, a fala iluminada por Thomas Piket- média?”, provoca o professor. viagens... “É uma forma de ilusão.

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As pessoas acham que consumindo conseguem acessar bens que an- balho. “Pois assim (olhando só para esses bens do 1% mais rico fazem tes não se imagina para pessoas a renda do trabalho) se tem ideia parte desse 1%”, explica. A perver- mais humildes. Outro exemplo que que a desigualdade diminui, mas sidade está no fato de que, além traz é a possibilidade de se viajar na realidade não. Os pobres estão de achar que se está nesse grupo, de avião. Mais pessoas – e de clas- cada vez mais pobres. A classe mé- a classe média acaba alimentando se social mais baixa – fazem isso. dia vê seu dinheiro diminuindo e os o sistema com sua casa própria e “Mas ainda está distante de uma ricos estão cada vez mais ricos”, bens que consume. “E acabamos real mudança de paradigma. E é pontua, ao atribuir esse movimen- tendo uma aceitação por algo que justamente essa ideia de mudança to ao fato de, ao não olharmos para não entendemos. São as migalhas que incomoda essa classe do 1%”, o papel do capital nesse século, que sobram para além desse 1% aponta. não entendermos de fato o meca- mais rico que Piketty fala”, com- nismo que faz essa roda girar só a Comim traz esse cenário para se pleta Comim. favor do 1%. pensar além do que Piketty ilumina O professor reconhece que há ao demonstrar que a renda do capi- Confira a■ reportagem completa uma inclusão e que mais pessoas tal é muito superior a renda do tra- em http://bit.ly/1RDRS16

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PERFIL Xavier Albó – Caminhos de uma vida pelos Andes

Por Ricardo Machado

Xavier Albó tem um olhar terno e vívido. As marcas do tempo impres- sas em sua pele são testemunhas silenciosas de uma vida marcada por descobertas, resistência e luta. Ao comentar sobre a própria histó- ria, percebe-a a partir dos outros. Começa falando de Luis Espinal,1 o padre, artista e ativista espanhol que aterrissou na Bolívia em 1968, em plena ditadura René Barrien- tos.2 Este, depois de ter sido eleito via voto popular em 1966, havia mudado a constituição e governava o país ditatorialmente. Essa deci- 12 são foi tomada depois que a guerri- lha liderada por Che Guevara,3 as- sassinado em 1967, avançou sobre LESLIE CHAVES FOTO: o território boliviano. Albó. Recentemente, porém, seu tam a história de Espinal. A vida nome rodou o mundo depois que fez do pequenino catalão Xavier Espinal em vida não fora tão o atual presidente da Bolívia, Evo Albó, que aos 16 anos descobriu a célebre fora da Bolívia, conta Morales,4 presenteou o Papa Fran- América Latina, um homem forte, cisco com um crucifixo em forma mas sua sensibilidade não permi- 1 Luis Espinal Camps: poeta, jornalista, cineasta e padre jesuíta. Nascido na Espanha de marreta e foice. Os sentidos te longos diálogos sobre o amigo em 1932 e assassinado por um grupo de para- da amizade com Espinal ecoa no Espinal, pois os olhos mareiam, a militares em março de 1980 durante o clima presente de Albó. Emociona-se ao goela tranca e a voz não sai. de tensão prévio ao golpe de Estado do dita- dor Luis Garzía Meza. O IHU divulgou um falar do amigo, assassinado pelos amplo material sobre Espinal, que pode ser militares, em 1980. Foi o impacto Chegada à Bolívia lido nas Notícias do Dia, dos quais destaca- desta amizade que fez Albó, com mos Em La Paz o Papa Francisco prestará seu corpo esguio, acotovelar-se às Quando Xavier Albó chegou à Bo- homenagem ao jesuíta padre Luis Espinal, portas do Palácio Quemado,5 sede lívia, em julho de 1952, o país ha- assassinado pela ditadura, publicado nas No- via sido palco, meses antes, de um tícias do Dia, de 05-05-2015, disponível em do governo boliviano, para con- http://bit.ly/1l5NkGP; e Documentário recu- seguir ficar frente a frente com trágico momento, em que centenas pera a trajetória de Luis Espinal, publicado de pessoas foram mortas no que fi- o Papa Francisco. Lá entregou nas Notícias do Dia, de 06-11-2011, disponí- cou conhecido como a Revolução três livros a Bergoglio que con- vel em http://bit.ly/1RrRsv0. (Nota da IHU Boliviana, considerada um dos pri- On-Line) 2 René Barrientos Ortuño (1919-1969): 4 Juan Evo Morales Ayma (1959): é o atu- meiros levantes da América Latina foi um militar e político boliviano, vice-pre- al presidente da Bolívia e líder do movimen- feito por operários e camponeses, sidente de seu país em 1964 e presidente da to esquedista boliviaano cocalero. Morales é que reivindicavam a nacionaliza- Bolívia entre 5 de novembro de 1964 e 26 de também líder do partido Movimento para o ção das refinarias de petróleo e gás maio de 1965 e novamente entre 6 de agosto Socialismo. (Nota da IHU On-Line) de 1966 e 27 de abril de 1969. (Nota da IHU 5 Palacio Quemado (Palácio Queimado): é natural. On-Line) o nome popular da sede do governo da Bolí- 3 Che Guevara (Ernesto Guevara de la Ser- via, localizado na Praça Murillo, em La Paz. Do velho ao novo na ou El Che, 1928-1967): um dos mais famo- O palácio abriga os escritórios presidenciais mundo sos revolucionários comunistas da história. e o gabinete do presidente. Seu nome recorda Foi tema da edição 239 da IHU On-Line, uma revolta ocorrida no século XIX, quando de 08-10-2007, disponível em http://migre. o edifício sofreu um incêndio. (Nota da IHU Albó com outros colegas noviços me/2pebG. (Nota da IHU On-Line) On-Line) da Companhia de Jesus foram colo-

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cados em um barco da Companhia agosto. “Outra lembrança dos pri- Aproximação com os Itália, na Espanha, e enviados a meiros dias em que estive na Bolívia Quechuas Buenos Aires. “No dia em que cru- foi de uma nevasca muito intensa závamos a linha do Equador rece- que cobriu Cochabamba. Havia um Albó conta que quando precisou bemos a notícia de que Eva Perón vale lindo e branco”, relembra. havia morrido”, recorda Albó, que, fazer magistério, uma das etapas apesar de ser catalão, intitula-se Anos de formação na formação de um jesuíta, sua ex- como um espanhol quando se tra- periência foi diferente da maioria ta de conversar, pois é muito fa- Xavier Albó era muito jovem de seus colegas. “Nesta etapa da lante. “Quando se faz uma mísera quando chegou à Bolívia, estava no formação todos deveriam ir traba- pergunta ao espanhol ele responde primeiro ano de noviciado e havia lhar em um colégio, mas comigo com uma palestra”, brinca. feito os primeiros meses na Espa- foi diferente. Antes, logo que havia Naquela viagem, descobriram nha. No primeiro dia das férias, chegado eu tive que aprender a lín- que a distância entre a Espanha ainda em 1952, foram a uma fazen- gua Quechua. Eu fui o ajudante de e a Argentina era de um oceano da na Bolívia, que tinha as mesmas um senhor que sabia muitas coisas e dezenove dias. O tempo de tra- características do território antes e era muito competente para idio- vessia serviu para que os jovens da reforma agrária realizada por mas. Assim, as palavras que ele ia espanhóis, na época não muito in- Estenssoro,7 que acabou ocorren- aprendendo no idioma Quechua eu teirados sobre a América Latina, do a partir do ano seguinte. Antes compreendessem o que significa- de viajar para o Equador, onde fez deveria colocá-las em ordem. Isso 6 va a morte de Evita, sobretudo a formação em Filosofia, concluiu me permitiu ser o sistematizador porque estavam embarcados com um segundo ano de noviciado, em das coisas que espontaneamen- muitos migrantes argentinos. “No que aprendeu idiomas, estudou os te se sabia”, descreve. “Assim foi navio houve um funeral muito so- clássicos e complementou a forma- a maneira como aprendi a língua lene, em que cantávamos na missa ção humanística. Quechua rapidamente”, completa. por Evita. Assim fui introduzido à América Latina”, conta. “Enquanto eu estudava Filoso- Depois de estudar no Equador, o fia, também realizei um doutorado jovem catalão, que havia aportado O trem da morte cuja tese foi sobre o principal co- poucos anos antes na América Lati- munista do Equador, Manuel Agus- na, voltou à Bolívia e a essa altura tín Aguirre8”, explica. “Tornei-me Ao chegar a Buenos Aires, o gru- dominava o idioma Quechua. “Era 13 po ficou por quatro dias na capital amigo deste senhor, ia à sua casa. comum que, alternadamente, fi- argentina, depois partiu de trem Por sorte, não havia muitas coisas para La Paz, na Bolívia. Segundo escritas sobre ele, então não preci- zéssemos discursos no refeitório. E Albó, viajaram entre Córdoba e a sei fazer muitas pesquisas”, brinca quando chegou minha vez o fiz todo fronteira com a Bolívia em um va- Albó, que estudou as ideias marxis- em Quechua. Ninguém entendeu, gão-dormitório, onde depois seriam tas em Aguirre, tese que depois, exceto um colega que compreendia deixados pela locomotiva até que justifica ele, teve que refutar, uma o idioma e sugeriu – Diga-lhes que outra composição os transportasse prática tipicamente jesuíta. “Ape- rezem um pai nosso. Três vezes!”, no território boliviano até a capital. sar disso sempre tive boas recor- diverte-se ao lembrar. Com menos A propósito, na região boliviana, dações dele”, diz. Albó só viria a de 18 anos, já dominava o idioma chama-se popularmente a composi- estudar Teologia tempos depois, Quechua e podia praticá-lo com ou- ção de “trem da morte”, devido à quando retornou a Barcelona para altitude em que trafega, apesar de tros colegas do Equador e do . um período de estudos. fazer isso com extremo vagar. Índio, a palavra maldita “A paisagem no começo era linda, 7 Anjo Victor Paz Estenssoro (1907- com lagos enormes, depois vinham 2001): era advogado, ex-ministro e político boliviano. Foi presidente boliviano em qua- Na década de 1950, falar de ín- os perais (o trem tinha cremalhei- tro ocasiões (1952-1956; 1960-1964; 1964 dios na Bolívia era “proibido”. Os ras, que servem para ele não andar e 1985-1989). Em seu primeiro mandato para trás), e assim chegamos a La (1952-1956) iniciou a Revolução Nacional – indígenas haviam se convertido, Paz”, descreve. Ficaram felizes uma das transformações sociais mais impor- como um passe de mágica euro- tantes (e contraditória) da América Latina no porque havia uma grande festa na século XX, em três áreas principais: a refor- peizante, em “camponeses”, por cidade e disseram uns aos outros ma agrária, o sufrágio universal e a naciona- conta de decisões políticas da épo- “olha como nos recebem bem com lização de grandes empresas de mineração. ca, justamente quando o país era (Nota da IHU On-Line) todas essas bandeiras”, mas depois presidido por Estenssoro. “Houve se deram conta de que se tratava da 8 Manuel Agustín Aguirre Rios (1903- 1992): era um político equatoriano e profes- uma profunda reforma agrária na Festa Pátria, celebrada no dia 2 de sor. Em várias ocasiões, foi Secretário-Geral do Partido Socialista do Equador, fundador parte andina da Bolívia, a região 6 María Eva Duarte de Perón (1919- e primeiro secretário-geral do Partido Socia- de maior altitude, ao passo que 1952): foi uma atriz e líder política argenti- lista Revolucionário equatoriano e primeiro em outras partes foi o contrário”, na. Tornou-se primeira-dama da Argentina Decano da Faculdade de Economia da Uni- quando o general Juan Domingo Perón foi versidade Central de . (Nota da IHU explica. A região andina era basi- eleito presidente. (Nota da IHU On-Line) On-Line) camente habitada por indígenas

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que falavam Quechua9 e Aymara,10 senhor chegou e disse: –‘Senhorita! na Espanha o nomeou Bedel, uma idioma que Albó também aprendeu O menino precisar fazer xixi’, pe- espécie de líder hierarquicamente a falar. “Na parte andina, os indí- dindo ajuda, sem se dar conta de abaixo do chamado Superior. Nes- genas compunham cerca de 80% da que a roupa não era um vestido, ta tarefa, cabia a Albó participar população quando os territórios co- mas uma batina”, diverte-se Albó. diariamente de reuniões. “Neste meçaram a ser ocupados por conta momento fui questionado sobre o A zona onde morava era uma fa- da reforma agrária”, relata. que gostaria de estudar. Nunca ti- zenda imensa que havia pertencido nha pensado muito sobre isso, mas Para aquele jovem e miúdo espa- a Antenor Patiño,11 um dos homens depois de refletir um pouco resolvi nhol coube, como tarefa principal, mais ricos de sua época, industri- que estudaria Antropologia”, des- aprender idiomas indígenas e, para ário que era comparado aos Rock- creve. “Fiz alguns contatos e minha tanto, o dispensaram de realizar feller.12 Um cavalo manso, dos mais decisão foi a de estudar nos Estados o magistério em uma escola. Isso pacíficos que pertencia à família Unidos, em Cornell, Nova York.” permitiu uma experiência abso- Patiño, foi emprestado a Albó, que lutamente nova, uma espécie de assim percorria as distâncias entre Em apenas três anos concluiu o “renascimento” latino-americano. um sítio e outro. doutorado em Antropologia, isso “Fui enviado a uma comunidade “Eu nunca fui um bom ginete. Volta porque seu doutorado no Equador Quechua e vivi com os indígenas e meia era derrubado por um galho permitiu que se beneficiasse de al- durante três anos. No tempo em de árvore”, conta e gargalha ao se gumas disciplinas. “No departamen- que o mundo olhava para o espa- lembrar dos episódios. “Eu visitava to de Antropologia da universidade ço, na época em que as sondas es- as comunidades pedindo apoio finan- havia uma disciplina sobre o idioma paciais eram enviadas à superfície ceiro das famílias, um peso apenas, Quechua, onde eu trabalhava como lunar, eu estava em uma comuni- para construirmos uma escola. Mas a professor assistente, e com isso dade chamada Cliza. Neste lugar, família de Patiño, depois que soube consegui uma bolsa de estudos”, eu passei dois meses, retornando das ambições do projeto, discordou, explica. “Minha tese foi uma com- uma vez por semana à cidade para porque seria demasiado longo e sé- binação entre os temas da Linguísti- asseio, quando tomava banho, fa- rio. Tive que voltar a cada um dos ca, Antropologia e Sociologia rural. zia a barba e me confessava. Isso lugares para devolver o dinheiro. As- Ao longo de aproximadamente 300 foi muito bom, pois aprimorei bem sim conheci todas as comunidades”, páginas faço uma análise sobre as meus conhecimentos sobre idiomas conta. “Essa foi minha primeira vi- mudanças ocorridas na Bolívia após indígenas”, pondera. a reforma agrária”, conta. 14 vência das contradições de classe.” Professor substituto O caminho à Cipca Antropologia Albó é falante. A colcha de me- Quando retornou à Bolívia, jun- mórias com que tece a narrativa tamente com outros dois jesuítas, Tempos depois foi recebido como de sua própria vida é cheia de ane- Luís Alegre e Francisco Javier San- sacerdote em San Joan, em Barcelo- dotas. Certa vez, ao substituir a tiago, Xavier Albó fundou o Centro na. Na mesma época, Roma sediava professora, que estava em licença de Investigación y Promoción del o Concílio Vaticano II. O provincial maternidade, de uma pequena es- Campesinado – CIPCA. Atualmente, cola localizada em uma comunida- 11 Antenor Patiño Rodríguez (1896- Albó é o único jesuíta do centro de Quechua onde vivia (e na épo- 1982): era um empresário boliviano. Herdei- que conta com mais de 100 leigos ca havia rumores de que ali seria ro de Simon I. Patiño, chamado de “King of trabalhando em projetos sustenta- fundada uma escola dos jesuítas), Tin” para ser o proprietário das maiores mi- dos financeiramente por organiza- nas de estanho na Bolívia e controlar o mer- protagonizou uma cena de hilária cado mundial para esse mineral. As minas ções europeias. “A maior parte das confusão. “Recordo o dia que um foram nacionalizadas em 1952 na revolução pessoas trabalha na área de ação; boliviana e integrado ao Mining Corporation ainda que tenhamos vários pesqui- 9 Quíchua (qhichwa simi ou runa simi) tam- da Bolívia. (Nota da IHU On-Line) sadores, o trabalho da Cipca é fo- bém chamado de quechua ou quéchua: é 12 John Davison Rockefeller (1839– uma importante família de línguas indíge- 1937): foi um investidor, empresário e filan- cado nas ações”, diz. nas da América do Sul, ainda hoje falada por tropo americano. Rockefeller revolucionou o cerca de dez milhões de pessoas de diversos setor do petróleo e definiu a estrutura moder- La Paz e El Alto grupos étnicos da Argentina, Bolívia, Chile, na da filantropia, ainda muito em voga. Em Colômbia, Equador e Peru ao longo dos An- 1870, fundou a Standard Oil Company e a co- des. Possui vários dialetos inteligíveis entre mandou agressivamente até sua aposentado- Atualmente Albó é um dos maio- si. É uma das línguas oficiais de Bolívia, Peru ria oficial em 1897. A Standard Oil começou res nomes da Antropologia na Amé- e Equador. (Nota da IHU On-Line) com uma parceria em Ohio de John com seu rica Latina e no mundo. Vive na 10 Aymará também chamado de Aimará irmão, William Rockefeller, Henry Fagler, cidade de El Alto, que fica a 4.100 ou Aimara: é o nome de um povo, estabe- Jabez Bostwick, o químico Samuel Andrews lecido desde a Era pré-colombiana no sul do e Stephen V. Harkness. Como a importância metros de altitude, imediatamente Peru, na Bolívia, na Argentina e no Chile. No do querosene e da gasolina estava em alta, a ao lado de La Paz. As duas localida- Peru os falantes da língua aimará somam riqueza de Rockefeller cresceu e ele se tornou des estão ligadas por um teleférico. mais de 300 mil pessoas, o que leva a supor o homem mais rico do mundo e o primeiro “La Paz é uma cidade maravilhosa, que o grupo étnico é bem maior. Aí estão mais americano a ter mais de um bilhão de dólares. concentrados no departamento de Puno (per- Em 1937, ano de sua morte, sua fortuna foi cheia de cerros, é uma espécie de to do Lago Titicaca), nas regiões Moquegua, avaliada em 1,4 bilhão de dólares. (Nota da Rio de Janeiro sem mar. Ao mesmo Arequipa e Tacna. (Nota da IHU On-Line) IHU On-Line) tempo que é maravilhosa, é caó-

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tica e cheia de contrastes. Temos ceu e cresceu. É com essa simpli- estada no Rio Grande do Sul, sofreu agora um dos teleféricos mais mo- cidade e sensibilidade que Xavier uma queda, que lhe custou, inicial- dernos do mundo, que transporta Albó fica contente de fazer - oca mente, cinco pontos na altura da milhões de pessoas entre El Alto e minho entre El Alto e La Paz, a testa e mais dois dias no Brasil, La Paz”, avalia. bordo do teleférico, que ele clas- pois a companhia aérea não permi- O jesuíta-antropólogo-ativista é sifica como “uma beleza”. Ele vê o tiu que ele embarcasse devido aos um sujeito de hábitos simples. Os mundo nesta dialética entre o caos riscos da recente sutura. cosmopolita da capital e a tranqui- poucos cabelos que ainda ostenta O tropeço, porém, era um sinal. sobre a cabeça testemunham o ca- lidade montanhosa de onde mora. Ao chegar à Bolívia, Albó foi ao minhar de uma mente que produz Além de tudo, alegra-se com o médico e identificaram um tumor pensamentos entre a erudição do sistema de transporte implantado em seu cérebro, que apesar de be- pensamento ocidental e genialida- na região e com a velhice. “Esta é nigno estava em estágio avançado. de simples, mas não menos com- uma das grandes obras de Evo. E Dias depois retiraram o tumor e plexa, do pensamento originário. eu, que sou velho, pago a metade ele se recuperou muito bem, tan- Albó é de matriz europeia, mas foi do preço”, sorri. to que logo pediu seu computador, forjado no contato com os indíge- assim que os efeitos da anestesia nas e vê o planeta terra não como Posfácio de uma vida passaram. Recebeu muitas visitas uma prateleira de commodities, em construção e emocionou-se com todas elas, mas como Pacha mama. levantando-se para abraçar um por Xavier Albó não parece ser afei- Este perfil foi construído desde um em gesto de gratidão. Tal “tra- to a muitas vaidades. Quando uma conversa de mais de duas ho- vessura” gerou um coágulo na re- fala repetidas vezes da amizade ras com Xaviér Albó, que visitou o gião operada, o que o levou à sala que tem com o Ministro das Rela- Instituto Humanitas Unisinos – IHU, de cirurgia novamente. ções Exteriores boliviano, David onde apresentou duas conferências Albó teve alta e se recupera Choquehuanca,13 não se refere ao – Bem-Viver. Impactos na América bem, ainda que lentamente, dos amigo com pompa alguma, senão Latina – IHU ideias e O grande de- procedimentos. Faz fisioterapia com carinho de quem o conheceu safio dos indígenas nos países an- diariamente e busca retomar, com na comunidade Aymara onde nas- dinos: seus direitos sobre recursos passos ainda mais frágeis, embora naturais, no dia 27 de agosto de persistentes, seu caminho na Amé- 13 David Choquehuanca Céspedes 2015. (1961): é um sindicalista aimara boli- rica Latina, que começou a ser tri- 15 viano e líder político. Atualmente ocu- Travesso para idade que tem, lhado há mais de 60 anos, quando pa o cargo de Ministro de Relações Ex- 81 anos, Albó é um sujeito muito seus pés, ao desembarcar de um teriores, durante o primeiro, segundo e terceiro mandato do presidente Evo ativo, embora caminhe com passos navio vindo da Espanha, tocaram o Morales. (Nota da IHU On-Line) frágeis e cuidadosos. Durante sua continente.

LEIA MAIS... —— O grande desafio dos indígenas nos países andinos: seus direitos sobre os recursos naturais. Cadernos ihu ideias, edição 225, disponível em http://bit.ly/1Uhu9cT; —— As peripécias do padre Xavier Albó para conseguir falar com o Papa sobre o seu amigo Luis Espinal. Reportagem com Xavier Albó publicada nas Notícias do Dia, de 12-08-2015, no sítio do IHU, disponível em http://bit.ly/1My4rgt; —— “Luis Espinal não era comunista”, afirma Xavier Albó. Reportagem com Xavier Albó pu- blicada nas Notícias do Dia, de 10-07-2015, no sítio do IHU, disponível em http://bit. ly/1My4kBu; —— Um Deus de rosto indígena. Entrevista com Xavier Albó publicada nas Notícias do Dia, de 28-07-2011, no sítio do IHU, disponível em http://bit.ly/1Wp2UZx; —— O ideal da suma qamaña. Os indígenas e a nova Constituição da Bolívia. Entrevista com Xavier Albó publicada nas Notícias do Dia, de 14-07-2010, no sítio do IHU, disponível em http://bit.ly/1KLdeEq; —— A constituição mais humanista da América Latina. Entrevista com Xavier Albó publicada nas Notícias do Dia, de 05-02-2009, no sítio do IHU, disponível em http://bit.ly/1GPNlZ2.

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ENTREVISTA A cidade (rebelde) da modernidade tardia contra a cidade fordista- industrial Milton Cruz propõe uma reflexão sobre que cidade se quer no futuro, a partir do projeto de revitalização do Cais Mauá e sua relação com Porto Alegre

Por João Vitor Santos

ara o professor e pesquisador na Orla do Guaíba (uma região peculiar Milton Cruz, a cidade moderna da cidade) diminuiria o diferencial de Pé aquela que pensa humanisti- Porto Alegre na rede de cidades globais camente, valorizando os espaços públi- e aumentaria a sua homogeneização. cos para convívio social, e é conectada Queremos nos tornar iguais às demais com questões ambientais e não só eco- cidades que apostaram tudo no auto- nômicas. Assim, entende que a propos- móvel e nos shoppings?”, questiona. ta de revitalização do Cais Mauá, em E ainda há outro detalhe: o empre- Porto Alegre, é uma bela oportunidade endimento é apoiado na dependência de pensar a cidade com vistas ao fu- de um modal rodoviário já saturado. 16 turo. Entretanto, destaca que muitos “Como um shopping com 4.800 vagas desses princípios não parecem estar de estacionamento para automóvel na sendo levados em conta. “Não apre- orla do Guaíba não agravará os proble- senta estudos e pesquisas que mostrem mas criados pela circulação dos atuais qual a dinâmica atual do Centro Histó- 30.000 veículos/dia? E qual a garantia rico em termos econômicos, sociais e de que não estamos construindo um culturais, quais as tendências espera- ‘shopping fantasma’, como os existen- das para o futuro e como o empreen- tes em muitas cidades norte-america- dimento irá promover a qualificação do nas, que logo precisará passar por uma desenvolvimento da região”, destaca. reconversão em seu uso?”, acrescenta. “Penso que o debate em torno da re- Milton Cruz é doutor e mestre em vitalização do Cais Mauá revela dois Sociologia pela Universidade Federal projetos de cidade: a cidade (rebelde) do Rio Grande do Sul – UFRGS. Atua da modernidade tardia contra a cidade como pesquisador do Observatório das fordista-industrial. E que o futuro da Metrópoles/Núcleo Porto Alegre. Parti- cidade depende da capacidade da so- cipou como pesquisador do Instituto de ciedade civil em apresentar um Projeto Pesquisa Econômica Aplicada – IPEA e Alternativo de Modernização capaz de da Fundação de Economia e Estatística articular as propostas fragmentadas”, – FEE/RS. Ainda é graduado em Ciên- completa. cias Sociais e em Engenharia Eletrôni- Além disso, na entrevista concedida ca. No último dia 22-10, ele proferiu por e-mail à IHU On-Line, Cruz critica a conferência “Cais Mauá: duas visões a ideia de apoiar toda a reforma num em disputa sobre qual o projeto de ci- dade”, no Instituto Humanitas Unisinos modelo econômico/comercial que visa – IHU. A reportagem da cobertura da transformar o Cais em apenas mais um palestra está disponível em http://bit. grande centro de compras. “A localiza- ly/1PUsre6. ção de um empreendimento comercial existente em todas as partes do mundo Confira a entrevista.

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IHU On-Line – Como o senhor Exemplos de outras estes problemas são criados por avalia o projeto de revitalização cidades apenas 19% da população que uti- do Cais Mauá? Quais os avanços e liza o carro para ir ao trabalho), limitações do projeto? O EIA/RIMA também não fala das constatamos que ele causa mais de 45 mil mortes no trânsito por ano Milton Cruz – O Consórcio Cais alternativas de revitalização im- no país, contribui significativamen- Mauá afirma, no relatório de im- plementadas nas áreas portuárias te na poluição do ar, para a perda pacto social, econômico e am- de outras cidades e o seu resultado de tempo no trânsito e o estresse biental (EIA/RIMA) apresentado econômico e social, o que ajudaria urbano. Neste contexto, pode-se para a Secretaria do Meio Ambien- a buscar ideias para a elaboração perguntar ao Consórcio Cais Mauá te de Porto Alegre, que o projeto de um projeto que mais se ajusta e, inclusive, aos governos estadual para a Orla do Guaíba, localiza- à realidade de Porto Alegre. Várias e municipal que estão aprovando do entre a Rodoviária e a Usina cidades no mundo sofreram com a o projeto: como um Shopping com do Gasômetro, irá “revitalizar” a perda de função de seus portos e 4.800 vagas de estacionamento região. Mas o EIA/RIMA não apre- tiveram de buscar novas alterna- para automóvel na orla do Guaíba senta estudos e pesquisas que tivas para eles, como ocorreu com não agravará os problemas criados mostrem qual a dinâmica atual Boston nos anos 1950, Nova York pela circulação dos atuais 30.000 do Centro Histórico (bairro que se em 1960, Baltimore em 1970, Ro- veículos/dia? E qual a garantia de desenvolveu com as atividades do terdã em 1980, Buenos Aires e Bar- que não estamos construindo um porto Cais Mauá) em termos eco- celona em 1990, e Belém em 2000. “shopping fantasma”, como os nômicos, sociais e culturais, quais existentes em muitas cidades nor- as tendências esperadas para o Dependência do modal te-americanas, que logo precisará futuro e como o empreendimento rodoviário passar por uma reconversão em seu (formado por um Shopping, três uso? edifícios corporativos – torres e A modernização tecnológica dos garagens) irá promover a quali- meios de transporte e das comuni- O projeto do Shopping inviabili- ficação do desenvolvimento da cações mudou a relação da cidade za a ideia de uma praça contínua região. com o porto assim como com as fer- (Praça Brigadeiro Sampaio) e arbo- rovias. Mas esta modernização não rizada que ligaria a Rua dos Andra- O Centro Histórico já tem uma é um processo natural, depende de das, Sete de Setembro e Siqueira dinâmica própria que o torna um decisões tomadas principalmente Campos com a Usina do Gasôme- 17 dos bairros com maior poder de pelos governos, como foi o caso tro, criando um espaço de convi- atração da cidade. Ali estão lo- brasileiro de assumir o transporte vência contíguo e aberto ao pú- calizadas a sede do Governo Es- rodoviário (as rodovias pavimen- blico através do rebaixamento da tadual e Municipal, a Assembleia tadas, o automóvel e o caminhão) Av. João Goulart. Esta proposta, de Legislativa e a Câmara Municipal. como o símbolo do desenvolvimen- movimentos como o Cais Mauá de Também conta com a maioria dos to 1. Esta escolha produziu uma Todos2, reduziria o ruído provoca- bancos presentes no estado, o infraestrutura de transporte e um do pelos automóveis e melhoraria Mercado Público, o Museu de Ar- comportamento social que promo- a sensação térmica do entorno que tes do Rio Grande do Sul – MARGS, ve o uso exacerbado do automóvel tem prédios residenciais. o Santander Cultural, a Casa de para o transporte de passageiros Cultura Mário Quintana, a Usina e dos caminhões para o transpor- Pensando no futuro do Gasômetro, o Anfiteatro Pôr te de cargas em detrimento de um do Sol, comércio de rua bastante modelo de transporte mais equili- Na perspectiva de um planeja- diversificado. Além disso, conta brado, mais eficiente em termos de mento estratégico da cidade, é com a infraestrutura de trans- gasto de energia e menos poluen- preciso considerar: em primeiro porte que contempla o Aeropor- te, pois despreza o transporte fer- lugar, a perda de atratividade dos to Internacional Salgado Filho, o roviário e hidroviário. Shoppings, pois os dados mostram trem metropolitano (Trensurb), o que em 1990, nos Estados Unidos, transporte hidroviário de turismo Fazendo uma reflexão sobre os se construíram 140 por ano e em e de passageiros (Catamarã, Cis- impactos negativos do uso que se 2007 nenhum foi construído; em ne Branco), a estação rodoviária faz do automóvel nas cidades do segundo lugar, que a localização (que recebe ônibus de todo país, Brasil de hoje (e destacando que de um empreendimento comer- do Mercosul e interior do estado) cial existente em todas as par- por onde passam as linhas muni- 1 O Plano de Metas de Juscelino Kubits- chek destinou 93% dos recursos para os se- tes do mundo na Orla do Guaíba cipais de quase todos os bairros tores dos transportes, energia, e indústrias de da cidade, além da paisagem base, enquanto os outros dois setores incluí- 2 Cais Mauá de Todos: movimento coletivo natural que permite aos porto- dos no plano, alimentação e educação, fica- de resistência ao modelo empregado no pro- alegrenses contemplar a beleza ram com o restante. Fonte: http://cpdoc.fgv. jeto de revitalização do Cais Mauá e que luta br/producao/dossies/JK/artigos/Economia/ pelo uso comum da área pública. Saiba mais do pôr do sol sobre as águas do PlanodeMetas. Acesso em 27/10/2015. (Nota sobre o grupo em http://on.fb.me/1SlJVyC. Guaíba. do entrevistado) (Nota da IHU On-Line)

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(uma região peculiar da cidade) construídas (com construções que de não explorada pelo empreendi- diminuiria o diferencial de Porto não foram projetadas para o apro- mento, que apenas reserva 347 va- Alegre na rede de cidades globais veitamento da água da chuva e da gas para bicicletas, é a instalação e aumentaria a sua homogeneiza- energia do sol, e tampouco para de uma ciclovia de 8,7 Km entre o ção. Queremos nos tornar iguais o uso da arborização como regu- muro e o Guaíba interligando toda às demais cidades que apostaram ladora microclimática e para o a extensão do Cais Mauá com o nor- tudo no automóvel e nos Shoppin- embelezamento da paisagem) que te e o sul da cidade, ajustando-se gs? O exemplo de Detroit, cidade nos anos 1990. As chuvas deste ao Plano Cicloviário da Prefeitura norte-americana sede da General mês fizeram o nível das águas do Municipal de Porto Alegre. Motors que já foi a quinta maior Guaíba igualar as marcas dos anos cidade do país e hoje é a décima 1960 e mostraram que o Muro da Cidade fordista- oitava, que em 2013 decretou fa- Mauá apresenta problemas na sua lência, deve nos servir de alerta contenção com o vazamento de industrial para os riscos que a cidade corre uma das comportas, assim como ao ficar dependente de apenas um as bombas instaladas para levar As questões problemáticas aqui setor econômico para o seu de- as águas da cidade para o Guaíba apresentadas fazem parte do senvolvimento. A concorrência das (que apresentaram problemas) e o mundo contemporâneo em rápi- montadoras japonesas e de outros sistema de drenagem natural. da transformação, mas que o EIA/ países fez desmoronar o sonho de RIMA não leva em consideração, vida dos norte-americanos daque- Diagnóstico de pois o seu enfoque é o do plane- la cidade hoje abandonada. Este carências do centro jamento e da construção da ci- exemplo recomenda que devemos dade fordista-industrial, hoje em analisar com cautela a justificati- O empreendimento apresenta declínio. A velocidade com que os va da geração de empregos, pois o como aspectos positivos a recu- governos locais conseguem tomar projeto de “revitalização” do Cais peração e utilização do Setor Ar- (boas) decisões para o planeja- Mauá não se articula (não dialoga) mazéns, previsto para operar em mento que prepara as cidades para com a tendência atual da econo- meados de 2018 (que poderia ser as mudanças sociais, econômicas e mia mundial (também chamada de a ancoragem inicial do empreendi- ambientais ainda é mais lenta que sociedade do conhecimento), que mento), a criação de uma área de a dos problemas criados pela mo- está mais dependente de serviços 18 convívio para população no Setor dernização urbana e as mudanças de alta especialização que supor- Docas, onde se situa o Frigorífico e climáticas. tam setores inovadores como os da uma Praça hoje não utilizada pela tecnologia da informação. população. O diagnóstico do Cen- tro Histórico indicou a carência IHU On-Line – Em que medida Não foram realizados estudos a recuperação do Cais Mauá pela sobre a evolução dos serviços e de equipamentos e espaços para iniciativa privada, tornando-o o comércio de Porto Alegre e da crianças, idosos, jovens, e famí- também um empreendimento Região Metropolitana que hoje lias. O diagnóstico das carências imobiliário, ressignifica o debate funcionam como uma conurbação e potencialidades do Centro reco- acerca dos espaços públicos e de onde se estabelecem intensas tro- menda que a prioridade seja dada para a revitalização e o uso imedia- cas e deslocamentos. Tampouco se uso comum da cidade? Como deve to das Praças e dos Armazéns, com leva em consideração os Relató- ser o papel do poder público nes- a instalação de atividades que ala- rios Climáticos, como o do IPCC/ se processo? vanquem a atual dinâmica cultural AR de número 6 (Ministério da e social já existente do outro lado Milton Cruz – O projeto, que se Ciência e Tecnologia/INPE), que do Muro da Mauá, como são as Bie- vislumbra no EIA/RIMA apresenta- mostra a tendência de aumento nais do Mercosul, a Feira do Livro, do ao órgão municipal encarrega- da temperatura superficial de 2 as atividades culturais do Margs e do de aprovar o andamento do em- a 4 graus centígrados. Qual o im- da Casa de Cultura Mário Quintana, preendimento, segue a lógica das pacto das mudanças climáticas no e as visitas de turistas ao patrimô- grandes obras que buscam ganhar Centro Histórico e no Guaíba? Que nio histórico e cultural. com a infraestrutura urbana insta- tipo de medida mitigatória pode- lada e a dinâmica social e econô- ria ser tomada para aumentar o O cronograma físico-financeiro grau de segurança dos moradores proposto pelo Consórcio Cais Mauá mica de uma região com capacida- e o bem-estar de uma região al- precisa ser alterado segundo estas de de atração de consumidores de tamente densificada e com tem- prioridades, que poderiam ser mo- toda cidade e da Região Metropoli- peraturas superiores aos demais nitoradas e avaliadas na sua função tana. Uma região que agregará ao bairros? O regime de chuvas que de revitalização do Centro Históri- seu patrimônio histórico e cultural vêm se apresentando na Região co da capital gaúcha, e que devem a paisagem do Guaíba e do Pôr do Metropolitana e no Rio Grande do dar um retorno mais rápido a um Sol, que hoje não pode ser desfru- Sul revela a vulnerabilidade de menor custo e com menos riscos tada, com todo o valor simbólico nossas cidades, hoje muito mais para a cidade. Outra potencialida- e afetivo que a população porto-

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alegrense lhe atribui3. A valoriza- (Brasília), Arena da Amazônia (Ma- terço) de representantes do Mu- ção do Centro Histórico com o uso naus) e Arena Pantanal (Cuiabá) – nicípio, 1/3 (um terço) de repre- social que se pode fazer do Cais atingiu pelo menos R$ 10 milhões sentantes da comunidade local, e Mauá não pode ser reduzida a ga- desde o fim do Mundial. O exemplo 1/3 (um terço) de representantes nhos econômicos a serem garanti- da Copa indica que ainda domina a da sociedade civil organizada; e a dos por consumidores. O espaço é, prática da implantação de grandes criação de uma Operação Urbana em primeiro lugar, um patrimônio empreendimentos na cidade sem Consorciada do Centro Histórico; de uma cidade que pode e deve consulta à população, como re- além da criação de um Sistema ter garantida a sua função social comenda o Estatuto da Cidade de de Acompanhamento das Ações do criando lugares de convivência aos 2001, sem análise do papel do em- Cais Mauá, que se relaciona com diferentes estratos sociais e es- preendimento na dinâmica real da mais de 15 programas e projetos paços de educação urbana para a cidade e da região e sem o acom- do município. cidadania. panhamento da sociedade nas fa- ses de planejamento, implantação Para que a cidade cumpra sua Relação entre as e funcionamento das obras. função de educadora da cidada- pessoas e o cais nia e garanta o bem-estar cole- Este aprendizado sugere que tivo, o Poder Público deve atuar o melhor seria a participação da Levando em consideração os como mediador e regulador dos sociedade na definição de qual o usos que a população faz da Orla empreendimentos que impactam melhor projeto para o Cais Mauá. do Guaíba, onde ela tem acesso li- na vida da cidade, equilibrando o O instrumento da Operação Urbana vre para caminhar, namorar, andar interesse econômico privado com Consorciada permite a participa- de bicicleta e skate, passear com as demandas da população e as ção da sociedade, dos moradores, o cachorro, tomar um chimarrão, recomendações de especialistas do empreendedor e do governo em passear de barco ou sentar para como os estudiosos das mudanças obras que impactam significativa- contemplar o momento em que climáticas. Continuar acreditando mente na cidade. A Lomba do Pi- o sol se põe no horizonte e sobre que mais construções (edifícios, nheiro, um bairro da zona leste de o “espelho d´água” que o Guaíba viadutos etc.) é sinônimo de desen- Porto Alegre, vem implementando cria, é de se perguntar se as pes- volvimento é não aprender com o um projeto-piloto de Operação soas poderão fazer o mesmo no passado recente que nos apresenta Urbana Consorciada. Esta Lei Cais Mauá. O convívio da popula- muitos exemplos de obras que não Complementar nº 627/2009 permi- ção com esta paisagem desperta 19 cumprem papel algum no desenvol- te, por meio de uma parceria entre emoções que se expressam em pa- vimento e ainda deixam problemas o poder público e o setor privado, lavras como: “minha cidade ama- para o Poder Público resolver, mas alternativas de financiamento para da”, “maravilhoso”, “saudades”, que garantiram o lucro de empre- a organização do transporte cole- “amo tudo isso” e “rio mais lindo sas da construção civil. tivo, ampliação dos espaços pú- do mundo”, o que mostra o valor blicos, implantação de programas afetivo dos porto-alegrenses com Exemplo da Copa e habitacionais de interesse social a Orla do Guaíba e que deveria Operação Urbana ou mesmo a melhoria da infraes- ser preservado e até estimulado Consorciada trutura e do sistema viário da re- pelo projeto. Valorização que se gião onde é realizada4. Esta experi- agregaria ao patrimônio cultural, afetivo e à identidade da cidade, De acordo com um levantamento ência compreende um conjunto de que ainda não aparece na propos- feito pela BBC Brasil, o prejuízo de intervenções e medidas coordena- ta de revitalização do Cais Mauá, apenas três “elefantes brancos” da das pelo Poder Executivo Munici- mas que poderia tornar o empre- Copa – os estádios Mané Garrincha pal, por intermédio da Secretaria do Planejamento Municipal – SPM, endedor um exemplo de agente 3 As páginas do Facebook intituladas “Pôr com a participação de proprietá- econômico inovador na realização do Sol na Orla do Guaíba” e “Orla do Guaí- rios, moradores, usuários perma- de uma iniciativa orientada pela ba” apresentam, respectivamente, 2.248 e responsabilidade ética, social e 52.576 “curtidas” e “visitas”, fotos do sol no nentes e investidores privados. O horizonte, do “espelho d´água” e comentários objetivo é alcançar transformações ambiental. sobre o que os usuários sentem ao caminhar, urbanísticas estruturais, melhorias namorar, andar de bicicleta e skate, passear sociais e valorização ambiental na IHU On-Line – O muro da Aveni- com o cachorro, tomar um chimarrão, pas- sear de barco ou sentar para contemplar o área. da Mauá é visto por muitos como momento em que o sol se põe. A paisagem entrave para integrar a cidade à Poderia ser proposta criação de desperta emoções que se expressam em pa- orla do Guaíba. Como o senhor lavras como: “minha cidade amada”, “mara- um Comitê de Desenvolvimento vê esse debate acerca do muro vilhoso”, “saudades”, “amo tudo isso”, e “rio do Centro Histórico para formu- e das barreiras físicas que impe- mais lindo do mundo”. Fontes: https://www. lar e acompanhar os planos e os facebook.com/P%C3%B4r-do-Sol-na-Orla- dem essa integração? E que ou- projetos urbanísticos com 1/3 (um -do-Gua%C3%ADba-196859143678334/; e tras barreiras não físicas estão em https://www.facebook.com/pages/Orla-do- -Gua%C3%ADba/185301931541340. Acesso 4 Fonte: SMURB, Secretaria da Prefeitura de jogo nessa ideia de revitalizar o em 27/10/2015. (Nota do entrevistado) Porto Alegre. (Nota do entrevistado) espaço?

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Milton Cruz – Acredito que o para o aniversário da Associação dade emancipada das relações que muro da Mauá tornou-se um sím- de Moradores ou para os ciclistas geram subjetividades alienadas e bolo emblemático das barreiras realizarem oficinas aos que que- dependentes. que impedem o acesso ao patri- rem aprender a andar. Ver crianças Para Boaventura de Sousa San- mônio cultural e afetivo da cidade brincando com seus pais ou ciclis- tos7, a sociedade que caminha que a população porto-alegrense tas andando na rua desenvolve para a emancipação não pode re- valoriza muito, como a Orla do uma percepção de bairro muito produzir as relações de poder e Guaíba, o Parque da Redenção e a mais amigável e afetiva que aquela alienação que caracterizam a ação Feira do Livro. Desde 1941 o muro imagem produzida pelos carros an- instrumental que hoje domina a nunca foi acionado para proteger dando velozmente pela mesma via. economia e a política. O projeto a cidade como foi projetado e, A mudança de uso do espaço urba- da sociedade emancipada deve ser talvez, viesse a falhar em muitos no produz percepções e sentimen- conduzido por uma subjetividade pontos como sugere o vazamen- tos diferentes sobre as possibilida- que orienta sua ação a partir do to de uma das comportas neste des que a cidade moderna oferece. “mapa emancipatório” que busca ano de 2015 e os alagamentos na Os projetos devem qualificar esta o reconhecimento (identidade) e Rodoviária, Voluntários e outras percepção e as sensações que o in- a redistribuição (igualdade) e tem regiões ao norte do Centro His- divíduo urbano elabora ao interagir como princípios norteadores a so- tórico. Passaram-se 74 anos sem com seu bairro e a cidade. lidariedade (ética), a participação que a população, principalmente (política), e a expressão estética a do Centro, pudesse ter acesso A cidade e a sociedade (prazer, autoria, artefactualida- ao Cais e suas praças. Várias ge- pós-moderna de). Para Habermas8, os espaços rações perderam a oportunidade sociais devem garantir interações de criar seus filhos em contato Para muitos pesquisadores, as comunicativas que se baseiem na com o Guaíba, o que não pode mudanças radicais pelas quais esta- consistência dos argumentos e no ser mensurado economicamente, mos passando caracterizariam um reconhecimento do outro como mas deve ser avaliado na pers- novo período do capitalismo que portador de opiniões que devem ser pectiva da educação urbana que vem sendo denominado como a so- valorizadas e levadas em conside- a cidade propicia, ou não, aos 5 ciedade pós-moderna (Harvey) ou ração na tomada de decisão. As ex- seus moradores, principalmente sociedade da modernidade tardia perimentações participativas como para aqueles que não têm acesso 6 (Giddens) . Para Giddens, este pe- o Orçamento e o Planejamento 20 aos bens culturais e econômicos ríodo cria instabilidades que amea- Participativo seriam criações locais fundamentais para a formação da çam a segurança do indivíduo, isto que privilegiam este tipo de intera- consciência cidadã moderna. é, podem desorganizar a sua capa- ção, as trocas comunicativas. Na perspectiva da (boa) cidade cidade de dar um sentido de ordem A partir destas abordagens, é ne- do futuro, aquela que promove e continuidade ao seu “projeto de cessário analisar o projeto e a prá- valores como o respeito ao outro vida”. Esta habilidade do indivíduo e ao diálogo, se fazem necessários em dar sentido a sua vida é funda- projetos que promovam a intera- mental para a experimentação de 7 Boaventura de Sousa Santos (1940-): emoções estáveis positivas, para se doutor em Sociologia do Direito pela Univer- ção entre indivíduos diferentes sidade de Yale, Estados Unidos, e professor em termos de renda, culturais, evitar a ansiedade e o adoecimen- catedrático da Faculdade de Economia da crença religiosa e etnia, de for- to, e para se construir uma socie- Universidade de Coimbra, Portugal. É um dos principais intelectuais da área de ciên- ma a que as crianças aprendam, cias sociais, com mérito internacionalmente desde pequenas, a conviver com 5 David Harvey (1935): é um geógrafo mar- reconhecido, tendo ganho especial popula- pessoas que partilham valores xista britânico, formado na Universidade de ridade no Brasil, principalmente depois de distintos daqueles da sua famí- Cambridge. É professor da City University of ter participado nas três edições do Fórum New York e trabalha com diversas questões Social Mundial, em Porto Alegre. Confira a lia. Condomínios fechados, pré- ligadas à geografia urbana. (Nota da IHU entrevista O Fórum Social Mundial desafia- dios e casas gradeados, parques On-Line) do por novas perspectivas, concedida por e praças cercados constroem uma 6 Anthony Giddens: sociólogo inglês, foi Boaventura ao sítio do Instituto Humanitas diretor da “London School of Economics Unisinos – IHU em 30-01-2010, disponível percepção social da cidade que and Political Science” (LSE). É autor de 34 em http://bit.ly/BoaventuraIHU. (Nota da está em perigo e que precisa se obras, publicadas em 29 línguas, e de inú- IHU On-Line) proteger, e desconstrói a imagem meros artigos. Em 1985 foi co-fundador da 8 Jürgen Habermas (1929): filósofo ale- da cidade acolhedora e amiga que “Academic Publishing House Polity Press”. É mão, principal estudioso da segunda geração também conhecido como o mentor da idéia da Escola de Frankfurt. Herdando as dis- permite que as crianças brinquem da Terceira Via. Entre suas obras publicadas cussões da Escola de Frankfurt, Habermas na rua. em português citamos As Conseqüências da aponta a ação comunicativa como superação Modernidade (Oeiras: Celta, 1992); Capita- da razão iluminista transformada num novo Felizmente temos projetos que lismo e moderna teoria social: uma análise mito, o qual encobre a dominação burguesa fecham por alguns dias no ano as das obras de Marx, Durkheim e Max Weber (razão instrumental). Para ele, o logos deve ruas, dominadas pelo automóvel, (Lisboa: Editorial Presença, 1994); Trans- contruir-se pela troca de idéias, opiniões e formações da Intimidade – Sexualidade, informações entre os sujeitos históricos, esta- para as crianças brincarem com Amor, e Erotismo nas Sociedades Modernas belecendo-se o diálogo. Seus estudos voltam- seus pais (como no dia da Criança), (Oeiras: Celta Editora, 1996). (Nota da IHU -se para o conhecimento e a ética. (Nota da On-Line) IHU On-Line)

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tica dos atores, que se destacam que herdarão suas virtudes e seus política e governamental (de em- no planejamento e na construção problemas. perramento das instituições de- da cidade da modernidade tardia, mocráticas) em que a cidade e a Entretanto, acredito que este buscando por elementos que ca- cidadania reclamam por novas período de muita atividade e cria- racterizam os espaços, os equipa- modalidades de participação nos tividade se esgotou. A euforia com mentos, as tecnologias e os modos benefícios criados pela produção a participação social desapareceu de gestão que favorecem a convi- urbano-industrial que é, hoje, a e a crença no seu poder trans- vência urbana e dão estabilidade e maior da história da humanida- formador hoje é desestabilizada segurança para o indivíduo interagir de, mas ainda é extremamente pelo poder fragmentador e desor- comunicativamente e viver a cidade mal distribuída. A rede de cidades ganizador das relações políticas e como criação e construção (social) brasileira cresceu muito nos últi- econômicas clientelistas. Estamos organizada para o bem-estar cole- vivenciando um período em que o mos anos acrescentando aos polos tivo. Lugares como a praça pública Orçamento Participativo (que ain- tradicionais de desenvolvimento, em que pais e filhos podem brincar da hoje é inspiração para mais de como as metrópoles de São Paulo e após o trabalho e aos fins de se- mil cidades de todo mundo que o Rio de Janeiro, muitas outras regi- mana, equipamentos e tecnologias experimentam em diferentes mo- ões que estão demandando políti- modernas como o transporte públi- dalidades) enfrenta grandes dificul- cas públicas eficazes na mobilidade co que permite deslocar-se pela ci- dades para realizar a promessa de urbana, na segurança, na saúde, dade em busca de serviços de saúde passarmos, segundo Abers (2000), e, principalmente, na inclusão de e atividades culturais e de lazer, e “Do clientelismo à cooperação” e muitos na categoria de cidadãos governança e gestão inovadoras que consolidarmos uma nova arquitetu- e projetos de bairros e territórios introduzem novos instrumentos de ra de gestão pública capaz de fa- que garantam o bem-estar indivi- participação e novas modalidades zer interagir o governo local com a dual e coletivo. de deslocamento com as ciclovias e organização da sociedade civil na as pedovias (que incentivam andar produção de políticas públicas que IHU On-Line – A partir do debate de bicicleta e a pé). respondam, de modo participativo em torno da revitalização do Cais e inovador, aos desafios da socieda- Mauá, como pensar um projeto IHU On-Line – Como se integrar de da complexidade e da transfor- de cidade do futuro que preconi- a debates como esse do Cais, que mação acelerada e às expectativas ze não só desenvolvimento eco- tratam de recuperação de áreas da sociedade que busca o bem-es- nômico, mas também bem-estar 21 públicas, evitando que se tornem tar individual e coletivo. social em ambientes urbanos? apenas mercadoria do capital es- Milton Cruz – Penso que o de- peculativo e mercado imobiliário? Experiências e bate em torno da revitalização do Qual o papel da sociedade civil mobilizações Cais Mauá revela dois projetos de nesse contexto? cidade: a cidade (rebelde) da mo- Milton Cruz – A sociedade ci- Mas a sociedade civil ainda cum- dernidade tardia contra a cidade vil cumpriu um papel muito im- pre um papel fundamental na fordista-industrial. E que o futuro portante na luta contra o modelo desnaturalização da atual modali- da cidade depende da capacida- de cidade construído pelo regime dade de modernização e no escla- de da sociedade civil em apre- político-econômico ditatorial, um recimento e na formação de uma sentar um Projeto Alternativo de modelo elitista, excludente e que opinião pública que seja capaz de Modernização capaz de articular dispensava a participação ativa e intervir em favor da construção de as propostas fragmentadas (ainda organizada da sociedade na elabo- uma cidade culturalmente rica e muito influenciadas pelo mode- ração de políticas públicas. A so- diversificada que se mostre capaz lo fordista-industrial de cidade) ciedade civil conseguiu introduzir de se rebelar contra a homogenei- e convencer a opinião pública da na Constituição de 1988 e nas Leis zação e ao fenômeno que vem tor- sua consistência e sustentabilida- Orgânicas Municipais o direito do nando as instituições e os negócios de. Os instrumentos de regulação, cada vez mais permeáveis à prática indivíduo de participar do planeja- controle e planejamento devem da corrupção e da troca de favo- mento da cidade, e com a criação orientar-se a partir do objetivo res. A cidade de Porto Alegre já do Ministério das Cidades e a apro- da modernização includente que deu mostras desta capacidade ao vação do Estatuto da Cidade, de promove os valores da cidadania criar o Orçamento e o Planejamen- 2001, definiu diretrizes para a or- e a construção da subjetividade to Participativo, o Fórum Social ganização da Cidade de modo que comprometida com o futuro da Mundial, ao organizar o Movimento ela cumpra a sua função social, humanidade. Faz urgente regular do Não contra o projeto do Pontal isto é, para que ela não se torne o “apetite” voraz de setores do do Estaleiro e, agora, o Movimento uma mercadoria acessível apenas mercado em lucrar com o patrimô- Cais Mauá Para Todos. àqueles que podem pagar, mas que nio histórico e cultural e a infra- acolha a todos que contribuem Entretanto, este é um período estrutura urbana construída pelas para a sua construção e aos jovens de grande fragmentação da ação gerações anteriores.

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ENTREVISTA Francisco e a metafísica como ecologia integral: a questão fundamental do pensamento contemporâneo O filósofo Manfredo Araújo de Oliveira revisita a história da metafísica e sugere o desenvolvimento de uma filosofia sistemática

Por Patricia Fachin e João Vitor Santos

papa põe-se na linha do que não nada. Ele repôs, contra todos os dualismos muitos filósofos aspiram hoje. vigentes no nosso mundo, uma visão global sin- “OEsse é o ponto que não está tética, sistemática, de ver as conectividades sendo visto”, diz Manfredo Araújo de Oliveira universais de todas as coisas”, destaca. à IHU On-Line, na entrevista a seguir, con- Para Manfredo, depois da recusa ou de uma cedida pessoalmente quando esteve no Insti- reinterpretação do que seria a metafísica des- tuto Humanitas Unisinos – IHU, e participou de Kant, a filosofia deve recuperar uma pers- de uma mesa-redonda sobre a Carta Encíclica pectiva sistemática, e tratar das “conectivida- Laudato Si’. des”, ou seja, “pensar o que ética tem a ver Na avaliação do filósofo, a contribuição do com metafísica, o que tem a ver antropologia 24 papa para pensar os dilemas da COP-21, a ser com ética e filosofia da natureza”. E frisa: realizada em Paris no final deste ano, só foi “Não dá mais para ficar pensando em filosofias viável “porque abriu a perspectiva que torna que criam dualismos insustentáveis. O papa isso possível, e é disso que acho que o pessoal está diante de um certo anseio que os filósofos não está se dando conta”, comenta. norte-americanos também têm, que é superar De acordo com Manfredo, hoje muitos cien- o “gap” entre teoria e mundo, linguagem e re- tistas ou filósofos que adotam uma visão “inte- alidade. Essa é a questão fundamental do pen- grada” dos saberes ainda estão pensando numa samento contemporâneo. Mas os filósofos não perspectiva epistemológica, ou seja, estão conseguiram ir adiante”. “dizendo apenas que é preciso juntar química, Na entrevista a seguir, Manfredo de Araújo física, matemática, humanidades, tecnicida- Oliveira revisita a história da metafísica no des. Mas o papa vai muito além disso, vai numa pensamento ocidental e sugere a sua retomada visão holística da realidade, que vê a realidade como ponto fundamental para compreender a de fato como um todo”, explica. Segundo ele, realidade na sua totalidade. o que está “embutido” na Encíclica Laudato Si’ Manfredo Araújo de Oliveira é graduado é uma “perspectiva ontológica, metafísica, é em Filosofia pela Faculdade de Filosofia de algo grandioso, porque a filosofia hoje apenas Fortaleza, mestre em Teologia pela Pontifícia vislumbra superar os dualismos, o dualismo Universidade Gregoriana de Roma e doutor em cartesiano, mas não é só isso, temos de superar Filosofia pela Universität Ludwig Maximilian o dualismo ontológico, porque a realidade foi de Munique, Alemanha. Atualmente é profes- dividida toda em pedaços e ninguém vê mais sor titular da Universidade Federal do Ceará. relação de uma coisa com outra”, acentua. Recentemente, Manfredo Araújo de Oliveira De acordo com o filósofo, o capítulo cen- lançou seu novo livro intitulado A ontologia em tral da Encíclica papal é o quarto, que trata debate no pensamento contemporâneo (São da ecologia integral, “que supera aquela visão Paulo: Paulus, 2014). analítica de que as coisas estão separadas en- A entrevista foi publicada originalmente nas tre si. O papa traz uma visão metafísica sobre Notícias do Dia, de 20-10-2015, disponível em a globalidade. Há uma dimensão de contingên- http://bit.ly/1l5Wcfn. cia, que não se explica por ela mesma, ou seja, trata-se da pergunta de por que existe algo e Confira a entrevista.

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IHU On-Line – Quais foram Heidegger3, Wittgenstein4 e os pensar o Ser em seu todo, mas tra- as diferentes razões que le- membros do Círculo de Viena, ta de pensar as condições de possi- a recusar a metafísica ou a pro- bilidade a partir do sujeito. Esse é varam alguns filósofos, a por outro tipo de metafísica? o grande problema, porque se tra- 1 2 exemplo de Kant , Nietzsche , Eles de fato quiseram recusá-la ta de uma restrição. Foi aí que se ou quiseram fazer outro tipo de criou aquela dicotomia entre aqui- 1 Immanuel Kant (1724-1804): filósofo prussiano, considerado como o último gran- metafísica? lo que eu não conheço de jeito ne- de filósofo dos princípios da era moderna, nhum, que no fundo é a realidade Manfredo Araújo de Oliveira – representante do Iluminismo. Kant teve um mesma, e aquilo que posso organi- grande impacto no romantismo alemão e nas Kant queria uma outra metafísica, filosofias idealistas do século XIX, as quais se que era em primeiro lugar uma te- zar a partir das categorias. Então, tornaram um ponto de partida para Hegel. oria das condições de possibilida- a metafísica em Kant era, em pri- Kant estabeleceu uma distinção entre os fe- meiro lugar, a metafísica da epis- nômenos e a coisa-em-si (que chamou nou- de do conhecimento humano, que menon), isto é, entre o que nos aparece e o para mim significa uma metafísica temologia, depois a metafísica dos que existiria em si mesmo. A coisa-em-si não costumes e, por fim, ele levantou poderia, segundo Kant, ser objeto de conheci- extremamente restrita à dimensão mento científico, como até então pretendera epistemológica. Quer dizer, ela não a pergunta fundamental de como a metafísica clássica. A ciência se restringi- trata propriamente daquilo que se- é possível pensar a unidade entre ria, assim, ao mundo dos fenômenos, e seria essas duas dimensões. Mas como constituída pelas formas a priori da sensibili- ria a tarefa da metafísica, que é dade (espaço e tempo) e pelas categorias do ele eliminou essa possibilidade entendimento. A IHU On-Line número 93, tido, com Danilo Bilate, disponível em http:// num primeiro momento, terminou de 22-03-2004, dedicou sua matéria de capa bit.ly/HzaJpJ. (Nota da IHU On-Line) fazendo uma metafísica que pode- à vida e à obra do pensador com o título Kant: 3 Martin Heidegger (1889-1976): filósofo razão, liberdade e ética, disponível para do- alemão. Sua obra máxima é O ser e o tempo mos chamar de “como se”, que é a wnload em http://bit.ly/ihuon93. Também (1927). A problemática heideggeriana é am- terceira Crítica [Crítica do Juízo], sobre Kant foi publicado o Cadernos IHU pliada em Que é Metafísica? (1929), Cartas normalmente ignorada quando se em Formação número 2, intitulado Em- sobre o humanismo (1947), Introdução à manuel Kant – Razão, liberdade, lógica e metafísica (1953). Sobre Heidegger, confira fala de Kant. ética, que pode ser acessado em http://bit. as edições 185, de 19-06-2006, intitulada O ly/ihuem02. Confira, ainda, a edição 417 da século de Heidegger, disponível em http:// A dimensão comum, abrangente revista IHU On-Line, de 06-05-2013, inti- bit.ly/ihuon185, e 187, de 03-07-2006, inti- e unitária, para ele, é apenas uma tulada A autonomia do sujeito, hoje. Impera- tulada Ser e tempo. A desconstrução da me- tivos e desafios, disponível em http://bit.ly/ tafísica, em http://bit.ly/ihuon187. Confira, filosofia de “como se isso fosse pos- ihuon417. (Nota da IHU On-Line) ainda, Cadernos IHU Em Formação nº sível”, como Wittgenstein, aliás, 25 2 Friedrich Nietzsche (1844-1900): filó- 12, Martin Heidegger. A desconstrução da faz semelhante no Tractatus [Trac- sofo alemão, conhecido por seus conceitos metafísica, que pode ser acessado em http:// além-do-homem, transvaloração dos va- bit.ly/ihuem12. Confira, também, a entrevista tatus Logico-Philosophicus], quan- lores, niilismo, vontade de poder e eterno concedida por Ernildo Stein à edição 328 da do diz que há isomorfia entre lin- retorno. Entre suas obras figuram como as revista IHU On-Line, de 10-05-2010, dispo- guagem e mundo. Wittgenstein diz mais importantes Assim falou Zaratustra nível em http://bit.ly/ihuon328, intitulada O (9. ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, biologismo radical de Nietzsche não pode ser que essa isomorfia existe porque a 1998), O anticristo (Lisboa: Guimarães, 1916) minimizado, na qual discute ideias de sua forma lógica diz respeito tanto à e A genealogia da moral (5. ed. São Paulo: conferência A crítica de Heidegger ao biolo- linguagem quanto ao mundo, e se a Centauro, 2004). Escreveu até 1888, quando gismo de Nietzsche e a questão da biopolítica, foi acometido por um colapso nervoso que parte integrante do ciclo de estudos Filosofias filosofia fosse possível, se pensaria nunca o abandonou até o dia de sua morte. da diferença – pré-evento do XI Simpósio In- a forma lógica. Mas para ele, a fi- A Nietzsche foi dedicado o tema de capa da ternacional IHU: O (des)governo biopolítico losofia não é possível, porque meu edição número 127 da IHU On-Line, de da vida humana. (Nota da IHU On-Line) 13-12-2004, intitulado Nietzsche: filósofo 4 Ludwig Wittgenstein (1889-1951): filó- conhecimento e minha linguagem do martelo e do crepúsculo, disponível para sofo austríaco, considerado um dos maiores estão completamente voltados download em http://bit.ly/Hl7xwP. A edição do século XX, tendo contribuido com diver- 15 dos Cadernos IHU em formação é intitu- sas inovações nos campos da lógica, filosofia para dizer o que são os fatos e, lada O pensamento de Friedrich Nietzsche, e da linguagem, epistemologia, dentre outros portanto, não temos condições de pode ser acessada em http://bit.ly/HdcqOB. campos. A maior parte de seus escritos foi pensar a unidade. Confira, também, a entrevista concedida por publicada postumamente, mas seu primeiro Ernildo Stein à edição 328 da revista IHU livro foi publicado em vida: Tractatus Logi- On-Line, de 10-05-2010, disponível em co-Philosophicus, em 1921. Os primeiros tra- Nietzsche e a luta de http://bit.ly/162F4rH, intitulada O biologis- balhos de Wittgenstein foram marcados pelas forças mo radical de Nietzsche não pode ser mini- idéias de Arthur Schopenhauer, assim como mizado, na qual discute ideias de sua confe- pelos novos sistemas de lógica idealizados por rência A crítica de Heidegger ao biologismo Bertrand Russel e Gottllob Frege. Quando o Nietzsche, a meu ver, é seme- de Nietzsche e a questão da biopolítica, parte Tractatus foi publicado, influenciou profun- lhante a Heidegger. Aliás, as críti- integrante do Ciclo de Estudos Filosofias da damente o Círculo de Viena e seu positivismo diferença – Pré-evento do XI Simpósio Inter- lógico (ou empirismo lógico). Confira na edi- cas que Heidegger faz à metafísica nacional IHU: O (des)governo biopolítico da ção 308 da IHU On-Line, de 14-09-2009, a partem de Nietzsche. Nietzsche vida humana. Na edição 330 da Revista IHU entrevista O silêncio e a experiência do inefá- esbraveja contra a metafísica, On-Line, de 24-05-2010, leia a entrevista vel em Wittgenstein, com Luigi Perissinotto, Nietzsche, o pensamento trágico e a afirma- disponível em http://bit.ly/ihuon308. Leia, considerava o platonismo e o cris- ção da totalidade da existência, concedida também, a entrevista A religiosidade mística tianismo os grandes inimigos da pelo Prof. Dr. Oswaldo Giacoia e disponível em Wittgenstein, concedida por Paulo Mar- vida, mas no fundo ele tem uma para download em http://bit.ly/nqUxGO. Na gutti, concedida à revista IHU On-Line 362, edição 388, de 09-04-2012, leia a entrevista de 23-05-2011, disponível em http://bit.ly/ nova metafísica, que é a teoria da O amor fati como resposta à tirania do sen- ihuon362. (Nota da IHU On-Line) vontade de poder, que é uma es-

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trutura que marca tudo; ou seja, o “Estou em dificuldades de lingua- e Baumgarten [Alexander Gottlieb que é mundo? O mundo é uma luta gem. Toda linguagem ocidental é Baumgarten]7, quer dizer, aquela de forças. baseada na metafísica da ontoteo- ontologia que se pergunta sobre os logia e, portanto, não dá”. Mas ele constitutivos fundamentais do ente Desta forma se mostra que há nunca construiu ou pensou numa diferentes propostas, porque Kant enquanto tal, qualquer que seja linguagem alternativa, numa teoria também pode ser dito como não ele; em seguida, consideravam-se alternativa, porque havia, por par- destruidor da metafísica, pois su- os três grandes campos de entes e te de Heidegger, uma ligação tão gere uma nova metafísica, mas que chamaram isso de metafísicas es- profunda com uma certa maneira de metafísica tem muito pouco. peciais ou ontologias especiais ou de entender a fenomenologia, que Nietzsche, embora negue a meta- regionais, que consiste em: tem na intuição o elemento funda- física, termina tendo uma ontolo- mental, que o impediu de articular 1) o tratamento das coisas da na- gia específica. No meu livro “On- uma teoria. tureza, da cosmologia; tologia em debate no pensamento contemporâneo”(Paulus, 2014), Heidegger escreveu o verbete 2) os tratamentos dos fenômenos digo que ele repôs a metafísica sobre fenomenologia para uma psíquicos, da psicologia racional; através de uma metafísica da teo- nova edição da Enciclopédia Britâ- 3) e o tratamento de Deus, a 5 ria da vontade de poder, que não é nica, e Husserl [Edmund Husserl] teologia. uma categoria epistemológica, mas ficou furioso com a apresentação ontológica, porque diz o que acon- que ele fez da fenomenologia. Po- Podemos dizer, independente do tece no mundo: o mundo é uma rém, ele argumentou que todo o problema de Deus, que não pode luta de poderes e é a partir daí que pensamento da fenomenologia de ser tratado, na minha maneira de ele constrói a sua visão de mundo. Husserl se concentrava na relação entender, como uma ontologia es- entre a “subjetividade constituin- pecial – mas isso não é tema para Heidegger e a te”, aquela que constitui toda e ser tratado aqui –, que a metafísica metafísica originária qualquer realidade como objeto do hoje tem dois momentos: a metafí- conhecimento humano, e o “obje- sica enquanto teoria dos entes, que Em relação a Heidegger há uma to constituído” por ela. Ora, o Ser se pergunta pelo que há de comum 26 grande confusão, porque ficou mais diz respeito tanto ao sujeito cons- entre os entes, suas características ou menos estabelecido, pela opi- tituinte quanto ao objeto consti- fundamentais, ou seja, com quais nião pública filosófica, que Heide- tuído, ou seja, está em jogo aqui categorias podemos pensá-los; e, gger escreveu toda a sua filosofia aquela unidade que torna possível em última instância, há uma “Te- para destruir a metafísica. Claro distinguir e relacionar sujeito e oria do Ser” propriamente dita, que Heidegger, em parte, tem cul- objeto. intuída por Heidegger, mas nunca pa, porque ele fala de uma manei- pensada por ele, ou seja, Ser como ra como se fosse isso, quando na Metafísica aquela dimensão abrangente, realidade uma aproximação mais aquela dimensão que é o comum a Convencionou-se distinguir a séria e profunda do pensamento todas as realidades. De modo que metafísica enquanto ontologia, ou dele mostra que ele é contra uma esses autores que você citou têm seja, enquanto é uma teoria dos forma de metafísica que não atin- diferentes entradas e perspectivas entes, em dois grandes momentos: giu aquilo que para ele seria pro- em que se fala de destruição e re- o primeiro é aquele que depois se priamente a metafísica. Sua tese é composição da metafísica. de que toda a metafísica ocidental chamou de ontologia geral (na lin- 6 é uma ontoteologia, quer dizer, é guagem de Wolff [Christian Wolff] de 1710, chama-se Anfangs-Gründe Aller uma teoria do ente, que busca o Mathematischen Wissenschafften. (Nota da 5 Edmund Husserl (Edmund Gustav Al- IHU On-Line) Ser do ente; o Ser, porém, ficou brecht Husserl, 1859-1938): matemático e 7 Alexander Gottlieb Baumgarten: Filósofo sempre no horizonte e nunca foi filósofo alemão, conhecido como o fundador alemão nascido em Berlim, criador do vocá- tematizado e ao invés disso se ape- da fenomenologia, nascido em uma família bulo Aesthetica (=estética). Ensinou nas Uni- judaica numa pequena localidade da Morávia versidades de Halle e em Frankfurt e escre- lou para um fundamento do ente, (região da atual República Tcheca). Husserl veu em latim sua obra mais notável Aestheti- o Ente Supremo. Heidegger queria apresenta como ideia fundamental de seu ca (1750-1758), onde descreveu o conceito da anti-psicologismo a “intencionalidade da nova palavra. Nomeado professor de filosofia uma metafísica mais originária do consciência”, desenvolvendo conceitos como da Universidade de Franfurt-sobre-o-Oder que aquela que a filosofia ociden- os da intuição eidética e epoché. Influenciou, (1740), onde permanece 22 anos, até falecer tal foi capaz de criar. Do ponto de entre outros, os alemães Edith Stein, Eugen relativamente jovem. Adepto de Christian Fink e Martin Heidegger e os franceses Jean- Wolff (1679-1754), o ordenador didático do vista intuitivo, é uma intuição ge- -Paul Sartre, Maurice Merleau-Ponty, Michel pensamento do barão Gottfried Wilhelm von nial, mas que não foi capaz de se Henry e Jacques Derrida. (Nota da IHU Leibniz (1646-1716), em seu trabalho Medi- constituir como uma teoria mini- On-Line) tações filosóficas sobre algumas questões da 6 Christian Wolff (1679-1754): filósofo ale- obra poética (1735) introduziu pela primeira mamente consistente. Tem certos mão que influenciou os pressupostos raciona- vez o termo estética, no estrito significado momentos em que Heidegger diz: listas de Immanuel Kant. Sua primeira obra, dessa palavra hoje. (Nota da IHU On-Line)

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IHU On-Line – As teorias de Wit- de possibilidade do conhecimento e filosofia continental, tal como tgenstein tiveram um impacto de e, com isso, a alguns sugerem que exista, ao mais negativo sobre a metafísica? filosofia deixou de ser uma teoria menos nesses termos que o se- do mundo e se fez uma teoria dos nhor explica? Manfredo Araújo de Oliveira – pressupostos do conhecimento do Sim, foi um impacto negativo num Manfredo Araújo de Oliveira – mundo. primeiro momento. Tanto é que ele Não nesses termos. Como diz John abandonou a filosofia e foi para um Desde então a ontologia foi con- McDowell9 nos EUA, nada escapa à mosteiro, mas o abade conseguiu siderada alguma coisa banida da dimensão do conceitual. Quando mostrar a ele que o lugar dele não face do universo. Mas, por incrí- você fala de alguma coisa, já está era na abadia, mas na filosofia (ri- vel que pareça, ali onde a meta- falando e, portanto, já está utili- sos). Mas veja, há três momentos física tinha também sido banida zando conceitos e, nesse sentido, no pensamento de Wittgenstein e de uma maneira violenta por uma não há lacuna, não há um gap – o terceiro é praticamente desco- concepção que ligou a Reviravolta como diz Putnam [Hilary Putnam]10 nhecido. O primeiro momento é do Linguística e o empirismo filosófi- – entre a linguagem e o mundo. Tractatus, no qual ele disse: “Sobre co, no seio do Positivismo Lógico, Então, o problema é através da lin- o que não se pode falar, deve-se no ambiente da filosofia analítica guagem tematizar o mundo. Nesse calar”. Mas isso não quer dizer que se recuperou a metafísica. E os sentido você volta a entender que as coisas das quais a metafísica, a americanos, ao contrário dos euro- a metafísica não é uma disciplina religião e a moral tratam não se- peus – que têm até medo de falar a entre as outras, mas a pressuposta jam as mais importantes, mas não palavra metafísica –, repuseram a de todas e, portanto, se recupera, podemos falar sobre elas porque metafísica com a maior tranquili- de alguma maneira, aquilo que di- a linguagem é condicionada a fa- dade e passaram a dar um intensi- zia Aristóteles quando questionava: lar dos fatos. No segundo momen- vo tratamento. Hoje há uma certa “Por que é necessário levantar a to, Wittgenstein começou a fazer confusão na compreensão do que é pergunta do ente enquanto ente?” uma crítica muito grande à ideia a filosofia analítica. Moore [George Por que eu devo fazer isso? Porque, de linguagem, à ideia de realidade Edward Moore]8 diz com muita cla- dizia ele, tudo aquilo que eu trato que estava presente no Tractatus, reza que, quando se fala de filoso- em filosofia é ente e, portanto, o e desembocou num pragmatismo fia analítica, pode-se entender isso que é o ente está pressuposto por radical. Mas, depois disso, há um de duas formas: como uma filoso- 27 todas as outras disciplinas. Nesse terceiro momento em que ele co- fia da linguagem, ou seja, que faz sentido, a metafísica trabalha as meça a se aproximar muito mais da da linguagem o seu objeto – e não categorias com as quais nós consi- metafísica anterior a tudo isso. No é essa a perspectiva fundamental deramos toda e qualquer realidade livro Da certeza, ele toma posição da filosofia analítica; ou uma “filo- e, nesse sentido, ela é pressuposta sobre o ceticismo e faz afirmações sofia através da linguagem”, para sistemáticas. Eu fiquei até espan- dizer que a análise da linguagem por todas as outras. tado ao ler essa obra, consideran- é o espaço, a instância em que Tradição metafísica do tudo que ele havia dito antes. uma teoria filosófica se articula e Quando li esse livro pela primeira então, necessariamente, se passa A grande tradição da metafísica vez, achei que não estava enten- pela análise da linguagem na con- ocidental de fato foi uma teoria dendo, porque ele faz afirmações sideração de qualquer problema ontoteológica, isto é, dos entes, e fortes que se contrapõem à outra filosófico. fase. Recentemente descobri os in- não teve a intuição, como Tomás Nesse sentido, é perfeitamen- térpretes da última fase e vi que de Aquino teve, de que existe uma te possível conciliar a Reviravolta eu estava certo (risos). dimensão mais englobante que a Linguística com uma metafísica na questão do que é o ente enquanto medida em que se leva em consi- ente. Tomando isso dentro da cons- IHU On-Line – Como se faz me- deração a compreensão de que a ciência teórica que temos hoje, as tafísica contemporaneamente? mediação linguística é fundamen- filosofias que saíram da Reviravolta O que os filósofos entendem por tal porque a linguagem é um dos isso? elementos fundamentais de uma 9 John McDowell (1942): é um filósofo teoria. contemporâneo. Foi membro do University Manfredo Araújo de Oliveira – College da Universidade de Oxford, e atual- A metafísica tinha sido banida da mente professor na Universidade de Pittsbur- face da terra quando Kant episte- IHU On-Line – Então não há uma gh. (Nota da IHU On-Line) 10 Hilary Whitehall Putnam (Chicago, mologizou a filosofia, dizendo que separação entre filosofia analítica Illinois, 31 de julho de 1926): é um filósofo es- antes de se perguntar por qualquer tadunidense que vem sendo uma figura cen- coisa temos de nos perguntar sobre 8 George Edward Moore (1873-1958): fi- tral da filosofia ocidental desde os anos 1960, lósofo britânico. Juntamente com Bertrand especialmente em filosofia da mente, filosofia aquele que pergunta sobre qual- Russell, foi co-fundador do movimento ana- da linguagem e filosofia da ciência. (Nota da quer coisa ou sobre as condições lítico em filosofia. (Nota da IHU On-Line) IHU On-Line)

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Linguística não têm muita consci- cular minimamente, teoricamente, cação” (1999), onde diz que reto- ência dessa “dimensão primordial” o que ele queria com essa história. ma os problemas teóricos. que Heidegger chamava de Ser. Nas Ele também escreveu “A teoria filosofias analíticas, as metafísicas IHU On-Line – Alguns filósofos da Ação Comunicativa” (1981), em reconstituídas nos séculos XX e XXI também falam em pós-metafísica. que tinha a preocupação de dar são teorias dos entes e normal- Como o senhor entende isso? uma base teórica e epistemológica mente nem são uma teoria do ente às Ciências Sociais, tanto que seus enquanto tal, mas elas tratam de Manfredo Araújo de Oliveira grandes interlocutores nesta obra uma série de problemas, como o – Habermas12, hoje, é um dos fi- são todos sociólogos, como Max lósofos que fala em pensamento problema dos mundos possíveis, o Weber, Marx, os autores da sociolo- pós-metafísico e diz que aí está problema do realismo e do antirre- gia dos sistemas. No livro de 1999, o passo decisivo do pensamento alismo, o problema das modalida- ele diz que o grande desafio hoje é hoje. Ele diz que o acontecimen- des, mas normalmente não são te- uma mudança fundamental de pa- to teórico mais fundamental da orias que juntem esses problemas radigma: passar de um paradigma de forma sistemática, ao contrário, filosofia do século XX foi a Revira- mentalista (uma filosofia da consci- são trabalhadas algumas questões volta Linguística e adota a ideia de ência), que é a metafísica, ou seja, 13 isoladamente. Quine [Willard van Orman Quine] a filosofia transcendental clássica de que ela colocou a filosofia num Nesse sentido, eu diria que o que situou as condições elimináveis patamar teórico completamente grande método da filosofia analíti- do conhecimento humano na esfera ca – depois que a filosofia tinha se diferente. Agora, isso significa, do mundo inteligível, para uma fi- tornado praticamente uma consi- para Habermas, que a metafísica losofia transcendental pragmática, deração histórica dos diversos filó- se tornou impensável e o problema que vai descobrir essas condições sofos do passado – foi voltar a uma fundamental é, portanto, articular de possibilidade do conhecimento dimensão sistemática, no sentido o pós-metafísico, ou seja, devemos humano que se geram nas práticas de querer trabalhar novamente os fundamentar tudo pós-metafisi- simbólicas dos mundos vividos em problemas e não somente interpre- camente. Agora, se você vai atrás que as pessoas estão inseridas. En- tações dos filósofos de nossa tra- para ver o que Habermas pensa so- tão é preciso, como ele diz, descer 28 dição. Porém a dificuldade é que bre pós-metafísica, tem de se per- do mundo inteligível – e por isso os analíticos não têm ainda clara- guntar o que é metafísica para ele metafísico – para a terra, onde se mente uma ideia de que há uma para poder entender o que chama situam as pessoas. Portanto, para integração das diversas questões. de pós-metafísico. Habermas, a tarefa fundamental da filosofia hoje é se tornar um Por outro lado, saiu também da Re- Por incrível que pareça, Haber- viravolta Linguística a filosofia - fe pensamento pós-metafísico, o que mas manifesta uma ignorância nomenológica hermenêutica, com significa dizer, superar o modelo da enciclopédica em relação a toda Heidegger e Gadamer [Hans-Georg filosofia transcendental clássica e a metafísica anterior a Kant. Para Gadamer]11, que têm o grande mé- descer às bases do mundo. ele, metafísica é a tentativa kan- rito de ter levantado a questão do tiana de reformulação da filosofia, Tanto é assim que ele diz que a Ser, mas não conseguem pensá-la metafísica clássica foi idealista, ou seja, da filosofia transcendental por uma série de motivos, entre porque ela não pensou na prática clássica que, como ele diz, situa a outros, o fato de ter considerado da construção dos nossos esquemas esfera transcendental no mundo como momento secundário a di- transcendentais e muito menos inteligível. Ele diz isso com muita mensão teórica da filosofia. Eles pensou que esses esquemas trans- clareza no livro “Verdade e Justifi- apelam para grandes intuições, que cendentais vêm de um processo de são importantes, mas que não che- 12 Jürgen Habermas (1929): filósofo ale- evolução da natureza (teoria do gam a se constituir teoricamente. mão, principal estudioso da segunda geração naturalismo fraco). Heidegger, nos escritos publicados da Escola de Frankfurt. Herdando as discus- sões da Escola de Frankfurt, Habermas apon- depois da sua morte, sempre vol- ta a ação comunicativa como superação da ra- Uso da palavra tou com muita insistência à mesma zão iluminista transformada num novo mito, metafísica questão fundamental, de repetidos o qual encobre a dominação burguesa (razão instrumental). Para ele, o logos deve cons- modos, mas sem ser capaz de arti- truir-se pela troca de ideias, opiniões e infor- Habermas diz que se põe numa mações entre os sujeitos históricos, estabele- tradição transcendental fraca, não 11 Hans-Georg Gadamer: filósofo alemão, cendo-se o diálogo. Seus estudos voltam-se vê mais a dicotomia entre o empí- autor de Verdade e método (Petrópolis: Vo- para o conhecimento e a ética. (Nota da IHU zes, 1997), faleceu no dia 13-03-2002, aos On-Line) rico e o transcendental, e diz que 102 anos. Por essa razão, dedicamos a ele a 13 Willard Van Orman Quine (1908-2000): na verdade ontologia não é tare- matéria de capa da IHU On-Line número 9, um dos mais influentes filósofos e lógicos fa da filosofia. A filosofia continua de 18-03- 2002, Nosso adeus a Hans-Georg norte-americanos do século XX, considerado Gadamer, disponível em http://migre.me/ o maior filósofo analítico da segunda metade tendo como tarefa explicitar os DtiK. (Nota da IHU On-Line) deste século. (Nota da IHU On-Line) pressupostos do nosso conhecer e

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nosso agir no mundo. Essa é a per- damentos últimos da realidade de conjuntos), ou seja, ontologia gunta transcendental. Mas chega como um todo? é matemática. Mas a realidade é um momento em que Habermas mais do que isso, é também even- Manfredo Araújo de Oliveira – diz que tem de postular um mun- to, ou seja, o novo, o não espe- Num primeiro momento a formu- do objetivo. E como é esse mundo? rado e, por isso, temos de pensar lação não é boa porque pode ser Um conjunto de objetos que têm essas duas dimensões. Markus Ga- entendida no sentido da ontoteolo- propriedades e relações. Veja, isto briel, Slavoj Žižek17 e outros agora gia. Foi essa a pretensão dela des- é a ontologia clássica, bem direiti- fazem a filosofia da finitude radi- de que nasceu. Agora, é possível nho (risos). Entretanto, ele não diz cal (tese de Meillassoux), dizendo entender isso em diferentes níveis: uma palavra sobre isso. O mesmo que só existe uma coisa necessária pode ser num nível de afirmar que acontece com John McDowell, que no mundo: a contingência (risos). há entidades no mundo – então, o diz que o grande desafio contem- Todos esses filósofos, como João que é uma entidade é o nível da porâneo é o que foi articulado por 18 ontologia –, mas posso pensar a Branquinho também em Portugal, Putnam, ou seja, superar o “gap” esfera abrangente que é comum fazem esse esforço importante de que se criou entre linguagem e a todas as entidades – isso seria volta à ontologia. Branquinho aca- mundo, teoria e realidade. Ele diz propriamente a metafísica dois, bou de escrever uma obra chamada que nós já ultrapassamos isso e ou seja, uma teoria do Ser estrita- Metafísica logicamente disciplina- analisa essa questão do ponto de mente falando. da. E o que é logicamente disci- vista da conceitualidade (nada está plinada? É aquela metafísica que fora do conceito). Mas ele não ar- Apareceu na Alemanha um li- vai pegar os principais problemas ticula uma ontologia. Ou seja, diz vro do Markus Gabriel15, que é o que Aristóteles levantou, mas vai que a dicotomia tem de ser supe- bebê da filosofia hoje, e o neorre- trabalhá-los com o instrumental ló- rada, mas sempre pensa implicita- alismo dele é decorrente de uma gico que a Reviravolta Linguística mente de forma transcendental (a ontologia que surgiu na França, pôs à disposição dos filósofos com 16 partir do conceito e não também a com Badiou. Ele é importante a lógica pós-fregeana. Então, para partir do ser). porque essa nova ontologia parte eles, a única coisa que se pode Hoje acho que se tornou simples- da seguinte percepção inicial: a aproveitar da Reviravolta Linguís- mente caótico o uso da palavra Reviravolta Linguística do século tica é o instrumental lógico para metafísica, e quando recebo um XX, quando se tornou pragmática, dar rigor lógico às considerações 29 trabalho que trata de metafísica, considerou a linguagem como pro- metafísicas. Essa nova corrente de logo pergunto para a pessoa me dução humana, mas considerada ontologia quer passar por cima da dizer o que entende por metafí- como produção humana a lingua- Reviravolta Linguística. sica. Os norte-americanos de or- gem é uma realidade diferenciada, cada povo tem a sua, quer dizer, dem analítica, por exemplo, sim- IHU On-Line – Considerando isso cairíamos, através disso, num re- plesmente identificam metafísica que o senhor disse até agora, de 14 lativismo muito radical. O que im- com ontologia. Michael Loux , por que estão entendendo metafísica porta agora? Esquecer isso, deixar exemplo, faz pura ontologia, mas por ontologia, e o atual avanço essa história da Reviravolta Lin- ele chama isso de metafísica. Da- das ciências naturais, ainda há guística para trás e fazer, simples- vid Lewis e companhia limitada fa- espaço para a filosofia em termos mente, ontologia. Agora, como? zem o mesmo. gerais, para a metafísica? Que as- Caída do céu? Na Europa, quando se fala em Para resolver isso, Badiou diz 17 Slavoj Zizek (Slavoj Žižek, 1949): filóso- metafísica, se escuta xingamento fo e teórico crítico esloveno. É professor da de todos os lados. Então, eu nem que temos de fazer duas grandes European Graduate School e pesquisador digo num primeiro momento que aproximações: uma da dimensão senior no Instituto de Sociologia da Univer- estática do mundo, e quem dá con- sidade de Liubliana. É também professor vi- sou um metafísico, porque eu ge- sitante em várias universidades estaduniden- raria na cabeça das pessoas as mais ta disso é a matemática (a teoria ses, entre as quais estão a Universidade de diferentes interpretações e as pio- Columbia, Princeton, a New School for Social 15 Markus Gabriel (1980): é um filósofo Research, de Nova York, e a Universidade res do que eu sou (risos). alemão e autor na Universidade de Bonn. de Michigan. Publicou recentemente Menos Além de seu trabalho mais especializado, ele que nada. Hegel e a sombra do materialismo também tem escrito livros populares sobre dialético (São Paulo: Boitempo, 2013) (Nota IHU On-Line – Por metafísica filosóficas questões. (Nota daIHU On-Line) da IHU On-Line) podemos compreender uma di- 16 Alain Badiou (1937): filósofo, dramatur- 18 João Branquinho: é mestre em Filosofia mensão da filosofia que tem como go e romancista, leciona filosofia na Univer- (Filosofia da Linguagem e Lógica) Pela Uni- sidade de Paris-VII Vincennes e no Collège versidade de Lisboa (1985), D. Phil. (Doctor objetivo compreender os fun- International de Philosophie. É autor, entre of Philosophy) Pela Universidade de Oxford muitos outros, do livro Saint Paul. La fonda- (1992), entre suas produções, destaque para 14 Michael J. Loux (1942): é um filósofo tion de l’universalisme (Paris: PUF, 1997), o Relatório Sobre metafísica logicamente dis- americano, e professor de Filosofia na -Uni várias vezes reeditado na França e traduzido ciplinada. É Professor Catedrático de Filoso- versidade de Notre Dame. (Nota da IHU em diferentes línguas como o inglês e o italia- fia na Universidade de Lisboa, Onde Ensina On-Line) no. (Nota da IHU On-Line) Lógica e Metafísica. (Nota da IHU On-Line)

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pectos da realidade dizem respei- Manfredo Araújo de Oliveira – quais são as estruturas específicas to à ciência e o que deve dizer Alguns explicitamente também, de determinados campos, ou seja, respeito à filosofia e como elas mas muitos implicitamente porque o que é o orgânico? Essa é uma bri- devem dialogar? eles não trabalham essas questões. ga que os biólogos têm de fazer. A metafísica hoje se desdobra em No meio dessas duas esferas tem Manfredo Araújo de Oliveira – uma série de problemas e há uma uma dimensão intermediária que Quando se recuperou a metafísica, lista de questões que são trabalha- é filosófica, que consiste em pegar ela foi recuperada no nível da onto- das. É uma metafísica embrionária, todas as informações do que são as logia e não da ontologia geral, mas mas já é importante porque, como dimensões particulares e pensá-las se pegam questões especiais, como a partir das estruturas universais. a questão da mente, que virou a ela foi considerada uma coisa proi- Isso é a nova versão das metafísicas coqueluche do mundo contempo- bida e sem sentido, temos de ver especiais do passado. râneo, mas que no fundo tem uma que existe hoje uma boa parte teoria metafísica fortíssima. de filósofos que consideram essas questões pensáveis e com sentido. Três campos do saber Os saberes devem estar entrela- çados, mas não se pode perder os Hoje é muito importante ter cla- Então, temos três grandes cam- quadros teóricos a partir de onde reza de que toda teoria tem um pos de saber: as ciências de um os diversos saberes se constituem, marco, e o marco determina não só modo geral, que têm como tarefa porque a partir do respectivo qua- todo o tipo de problema que pode tematizar as estruturas específicas dro teórico é possível avaliar os surgir, mas que respostas a teoria e particulares de todos os campos saberes. Então, eu não posso ao pode dar. Então hoje estamos sen- da realidade; tem a filosofia que mesmo tempo fazer uma ciência do obrigados – infelizmente poucos em última instância é metafísica, empírica e filosofia, achando que pensam nisso –, a nos perguntar o pensando as estruturas universais; tudo é a mesma coisa. Esse é o que nos dão as ciências da nature- e tem, por fim, aquilo que fica no grande problema da filosofia da za nas suas diversas propostas de meio, que são as ontologias espe- mente, que já não distingue mais o compreensão, porque há propostas ciais, que são metafísicas, mas que que diz respeito à ciência, à neuro- muito diferenciadas. Na física, por pegam o trabalho das ciências e ciência, e quais são as questões de exemplo, existe a mecânica clássi- pensam isso a partir das estruturas 30 ordem ontológica que são postas, ca, a mecânica quântica, a relati- universais. Nesse sentido, a ciência porque no fundo a filosofia da men- vista, a teoria de todas as coisas. não só explica os fatos, como Wit- te é uma grande ontologia, uma Isso ainda é uma ciência? Até que tgenstein diz, mas explica o que teoria muito específica do ente. Os ponto ela é científica? Stephen Ha- as coisas são nas suas particulari- 19 dualismos ou monismo que se têm wking está até fazendo afirma- dades, quais são os constitutivos aí são todos ontológicos, embora ções sobre Deus a partir da ciência. específicos das coisas. Portanto, não se tenha nunca uma clareza Mas isso é ciência? A ciência traba- é uma tarefa muito maior para as explícita da ontologia com que se lha com esse marco teórico? São ciências. está trabalhando, ou seja, ficam perguntas que devem ser feitas. Se não se diferenciam as dife- usando ontologia sem se dar conta Se você distingue a filosofia da ci- rentes atividades, adota-se o dis- dela (risos). ência, você diria que a filosofia te- curso de que existe a neurociência A tese fundamental da filosofia ria como tarefa se preocupar com e, portanto, não se precisa mais da mente em sua vertente fisica- aquilo que são as estruturas univer- de filosofia. Trata-se de saber que lista é: toda e qualquer realida- sais presentes em todos os campos existem diferentes tipos de sabe- de é física. Quando se diz isso, da realidade, ou seja, na esfera do res e que não podemos encontrar não se está mais trabalhando a físico, do biológico etc. Mas existe tudo em todos os lugares, porque mente, mas dizendo algo sobre ainda uma outra dimensão do co- os quadros teóricos são diferen- toda e qualquer realidade e fa- nhecimento, que é se perguntar tes. Eu não vejo problema em os zendo metafísica (no nível da saberes dialogarem, mas eles não 19 Stephen William Hawking (Oxford, ontologia geral). Como se justi- 1942): é um físico teórico e cosmólogo bri- podem perder as suas especifici- fica isso, é outra questão. Hoje tânico e um dos mais consagrados cientistas dades. Um filósofo que ignora a implicitamente há uma teoria da atualidade. Doutor em cosmologia, foi professor lucasiano de matemática na Uni- ciência está perdido, embora esse metafísica materialista, porque versidade de Cambridge[3] , onde hoje en- seja um problema enorme, porque a maior parte dos filósofos, im- contra-se como professor lucasiano emérito, há uma multiplicidade de saberes plicitamente, acha que o mundo um posto que foi ocupado por Isaac Newton, Paul Dirac e Charles Babbage. Atualmente, é na ciência. O que é física? Há inú- inteiro é físico. diretor de pesquisa do Departamento de Ma- meras propostas. A mesma coisa temática Aplicada e Física Teórica (DAMTP) ocorre com a filosofia, porque há e fundador do Centro de Cosmologia Teórica IHU On-Line – Implicitamente (CTC) da Universidade de Cambridge. (Nota quadros teóricos diferenciados. O ou explícita e declaradamente? da IHU On-Line) filósofo não vai poder contar com a

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ideia de que existe a filosofia, mas Uma revolução filosófica não ma coisa que a ameba e não posso existem filosofias. Mas ele terá de acontece abruptamente, ela se dizer que, porque todas as coisas fazer a comparação de por que es- gestou por um longo processo que têm algo em comum, não há uma colheu uma determinada filosofia e começou na Idade Média tardia e diversidade fundamental de efeti- aí o filósofo vai buscar as razões de se articulou de maneira plena em vação daquilo que é comum. Então por que trata a filosofia de deter- Kant. o homem como um ser que pensa, minado modo. reage, argumenta, usa conceitos, Eu digo que a posição hegemô- que decide, delibera, não pode nica em filosofia ainda é a trans- ser igual a uma ameba. Então, o IHU On-Line – Que impasses cendental nesse sentido, porque que é específico do antirrealis- percebe entre aqueles que de- o antirrealismo é uma maneira mo enquanto herdeiro da filosofia fendem uma posição realista, que diferente de dizer que todo co- transcendental é que esses esque- traz consigo uma concepção de nhecimento tem uma mediação e mas produzidos pelo homem são que não criamos o mundo, mas essa mediação é subjetiva ou in- determinantes do que seja o real, o encontramos, que é possível tersubjetiva. O realismo diz que ou seja, o real é visto a partir do ter uma descrição verdadeira, existe um mundo completamente sentido que o ser humano dá a ele. objetiva, correta e completa do independente de mim, da minha Essa concepção do subjetivo no an- mundo como ele é em si mesmo, linguagem etc. Ambas as posições tirrealismo é que é o problemático. e de outro lado, a posição antir- a meu ver são insustentáveis. realista, que culmina em aceitar Putnam diz isso com toda clareza: o construtivismo, o relativismo e Uma posição que diz que há um nada existe fora da “nossa” lin- o estruturalismo epistemológico? mundo que é independente da guagem, dos “nossos” esquemas, Por que as teses antirrealistas teoria, da consciência, da lingua- então a linguagem é apenas algo parecem ter bastante peso nas gem é equivocada, porque se au- “nosso”. Ela é, em primeiro lugar, humanidades? todestrói: estou acabando de fa- algo nosso, mas a pergunta é se ela lar do mundo e falo dele a partir não é uma estrutura do mundo que Manfredo Araújo de Oliveira de conceitos, que são expressos é anterior a nós. Então, enquanto – Óbvio que essa posição é mais na linguagem. O que não quer di- a linguagem é uma produção hu- aceita, porque ela corresponde a zer que não exista o mundo em si mana, japonês é produzido pelos uma posição que se estabeleceu mesmo na sua constituição. Nesse japoneses, e português pelos por- 31 – defendi esse ponto de vista na ponto, o antirrealismo tem razão tugueses, mas a linguagem é uma minha tese de doutorado – ainda sobre o realismo ao dizer que o esfera de expressão e, enquanto na Escolástica tardo-medieval com conhecimento não mediado não é 20 tal, ela ultrapassa as diversas pro- Ockham [Guilherme de Ockham] humano, porque sempre existe a 21 duções históricas. e Suárez [Francisco Suárez] . Não esfera na qual se articula seu co- dá para entender a metafísica mo- nhecimento. Kant achou que era Realismo derna sem entender Suárez, por- a esfera da consciência. Depois que todos os modernos aprende- da Virada Linguística, sabemos Então, eu defendo um realismo ram metafísica com ele. que é a esfera da linguagem. O não ingênuo. O antirrealismo tem 20 William de Ockham (1285-1350): fi- problema é que o antirrealismo razão em dizer que a tese clássica lósofo lógico, teólogo escolástico inglês, entende essas esferas de me- do realismo é insustentável. É o que frade franciscano e criador da teoria conhe- diação como esferas do sujeito Hegel disse de Kant, ou seja, como cida como Navalha de Ockham (em inglês, Ockham’s Razor), que dizia que as “pluralida- ou da intersubjetividade e com Kant fala de uma coisa em si que é des não devem ser postas sem necessidade”. isso se prende, queira ou não, ao incognoscível? Se fosse incognoscí- Considerado um dos fundadores do nomina- modelo anterior; é um esquema vel, não poderia falar (risos). Nesse lismo, teoria que afirmava a inexistência dos universais, que seriam apenas nomes dados transcendental. sentido as afirmações do antirrea- às coisas, e portanto produto de nossa mente lismo têm razão de ser, porque um sem uma existência prática assegurada. Por O papa é conhecimento independente de causa de suas ideias foi excomungado pela Igreja. O conceito, bastante revolucionário antropocêntrico? linguagem, de consciência, é im- para a época, defende a intuição como ponto pensável: ele se destrói a si mesmo de partida para o conhecimento do universo. Veja, acusam o papa de antropo- na medida em que se expressa. É o Ockham foi discípulo do filósofo Duns Scotus 22 e precursor do empirismo inglês, do carte- cêntrico, mas eu digo que o pessoal que Apel [Karl-Otto Apel] sempre sianismo, do criticismo kantiano e da ciência não entende o que é propriamente moderna. (Nota da IHU On-Line) antropocentrismo ou se utilizam de 22 Karl-Otto Apel (Düsseldorf, 1922): é 21 Francisco Suárez (1548-1617): padre um filósofo alemão e professor emérito da jesuíta, teólogo, filósofo e jurista espanhol, outro conceito de antropocentris- Johann Wolfgang Goethe-Universität de conhecido também como Doctor Eximius. Na mo. Para muitos, já se considera Frankfurt am Main. Licenciado em Bonn e escolástica fundou uma escola que recebe seu antropocêntrico o que distingue doutor em filosofia em Mogúncia, em 1960. nome, o suarismo, independente do tomis- Foi professor em Kiel (1962-1969), Saar- mo. De suas obras, destacam-se Disputatio- o ser humano de outras entidades brücken (1969-1972) e na Johann Wolfgang nes Metaphysicae. (Nota da IHU On-Line) no mundo. O homem não é a mes- Goethe-Universität (1972-1990). Tornou-se

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chamou de “contradição performa- aí. Puntel23 tem, em Estrutura e ção metafísica não se faz teologia, tiva”: eu me autodestruo no pro- Ser (Estrutura e ser: um quadro pensei que isto constitui um bom ferimento. O problema é como eu referencial teórico para uma fi- questionamento para a teologia entendo essa mediação. losofia sistemática. São Leopoldo: brasileira também. Ed. Unisinos, 2008), uma consid- Então, num primeiro momento eração muito interessante sobre o antirrealismo vence o realismo, IHU On-Line – Como vê o uso realismo e antirrealismo. Ele diz mas um antirrealismo que se enten- que Žižek faz da Teologia para que a posição realista clássica é de numa perspectiva puramente elaborar suas teorias? insustentável. E do outro lado tem subjetivista/intersubjetivista per- o problema do antirrealismo, que Manfredo Araújo de Oliveira – de a verdade do realismo, de que terminou num pragmatismo fraco, Eu não li tudo que ele escreveu, existe o mundo, e o mundo fica à que resolve tudo na linguística. porque ele é um escritor que não mercê do sujeito. E é acerca desse se cansa. Mas acho que ele faz uma problema que o papa chama aten- Aliás, eu acabei de fazer uma barafunda enorme. Não quer dizer ção quando fala do antropocentris- recensão de um livro do norueguês que ele não tenha intuições impor- mo. Esses dias eu fui ministrar uma A. Eikrem (Síntese, n. 133, p. 315- tantes, mas não consegui entender palestra e uma pessoa disse: “O 321) – ele publicou esse livro na seu conceito de emancipação e papa é antropocêntrico, porque diz Alemanha em inglês –, que se cha- nem o que ele propõe hoje como que cultura é algo especificamente ma Ser na religião. Da pragmática ação política etc. Até agora estou humano, mas e a cultura das gali- à hermenêutica na direção da me- em pequenas aproximações porque nhas?”. Antropocêntrico significa tafísica, e é extremamente inte- não consegui descobrir o fio condu- dizer que o homem é o centro do ressante, embora eu concorde que tor da teoria dele: de um lado está universo, que ele é o princípio de ele não atinou para o que é o Ser Hegel, de outro está a psicanálise. do qual falam Heidegger e Puntel. determinação de tudo, ou seja, Então, uma hora eu acho que ele Hoje, na Noruega, o interesse por tudo se determina com referência psicanalisa Hegel, outra eu acho ao homem, ao “eu penso”. E esse parte do pensamento de Puntel se que ele hegelianisa a psicanálise e é o problema que o antirrealismo dá entre os teólogos luteranos exa- não sei como ele junta tudo isso. não resolve e acaba caindo numa tamente por causa da recuperação posição que faz do sujeito a de- da dimensão metafísica. Esse livro 32 terminação de tudo. Até porque o do norueguês causou um rebuliço IHU On-Line – O que o senhor sujeito é contingente e finito e não nos ambientes luteranos da Norue- entende por crise da modernida- pode ser a expressão e a fonte de ga, porque a teologia se concen- de? Ela está associada a essas mu- sentido de tudo. Como posso eu ser trou na pragmática e na postura danças que foram acontecendo a fonte de sentido do mundo? Que pós-moderna, mas como ele diz, se na filosofia? pretensão é essa? (risos) você não chega à dimensão meta- Manfredo Araújo de Oliveira – física, tudo fica no ar, porque di- É possível pensar diferente, sem Sim, está. Quando se fala em crise mensões pragmáticas, semânticas ter de voltar a uma posição objeti- da modernidade se fala em crise ou hermenêuticas são subdimen- vista greco-medieval, que não pen- do paradigma transcendental de sões de uma dimensão maior que é sava a mediação, embora a intuía. pensar, ou seja, a questão da cen- o Ser. Portanto, ele quer mostrar os De modo que não podemos dizer tralidade do ser humano. Hoje essa pressupostos pragmáticos, herme- que tudo que se fez na modernida- palavra se alargou e é isso que está nêuticos e metafísicos da teologia de é sem valor, porque se levantou presente na Encíclica Laudato Si’ enquanto teoria. esse problema de que o realismo do papa. Quando ele fala em crise do estilo pré-Kant não se sustenta Escrevi um texto sobre o livro da modernidade, se trata de uma mais, embora Kant não tenha ra- dele porque a filosofia da religião determinada concepção de razão zão. Aí é que está a questão. no Brasil, quando ela existe, se na modernidade que os frankfurtia- concentra quase só em conside- nos chamaram de “instrumental”, que é aquela razão que se enten- IHU On-Line – A relação en- rações da filosofia analítica, ou de como a possibilitação de uma tre sujeito e objeto tem de ser pragmática, ou hermenêutica, mas ação eficaz do homem no mundo objetiva? nunca metafísica. Quando vi esse teólogo dizendo que sem media- para dominar a natureza. Então, Manfredo Araújo de Oliveira a crise da modernidade significa a – Sim, é objetiva, portanto não é 23 Lorenz Bruno Puntel: filósofo brasilei- crise do encurtamento da razão do que eu me prenda nas minhas re- ro radicado na Alemanha, professor em Mu- nique. (Nota da IHU On-Line) ponto de vista filosófico, porque se lações subjetivas. O desafio está Padre José Nogueira Machado: filósofo pegou uma dimensão da razão e se brasileiro, que com Karl-Heinz colaborou disse que a razão é isso e mais nada um dos teóricos mais influentes da Escola de na tradução da Fenomenologia do espírito, Frankfurt, após a morte de Adorno, no final realizada pelo Prof. Dr. Paulo Gaspar de além disso, de modo que a razão da década de 1960. (Nota da IHU On-Line) Meneses, SJ. (Nota da IHU On-Line) se limitou à ciência e quando ela

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faz filosofia, ela faz filosofia nos IHU On-Line – Mas não são, Idade Média e Tomás de Aquino modelos da filosofia transcenden- certo? chamavam de razão é o que os ale- mães chamavam de entendimento, tal nos seus diferentes matizes. Manfredo Araújo de Oliveira – ou seja, o conhecimento científi- Quando eu escrevi a “Filosofia na Não são, e o papa chama atenção a co. O que os gregos chamavam de crise da modernidade”(Loyola, 3 . disso quando fala de biocentrismo, razão (nous), Kant vai chamar de ed. 2001), era exatamente nesse no sentido de dizer que o homem é Vernunft, que é razão literalmen- sentido dos frankfurtianos, como um ser vivo como outros animais, te traduzido para o português, mas sendo a razão científica a única o que implica ter de se preocupar é o que os medievais chamavam possível. Eu também fiquei impres- com todos os seres vivos. Que te- de inteligência. Então, quando os sionado com o que eles chamavam nha de se preocupar com todos os franceses falam de razão, entende- seres vivos, é inegável, mas agora, de materialismo complexo, que se- -se conhecimento científico, mas dizer que não haja especificidade, ria algo parecido com o que Edgar os alemães, quando falam de ra- 24 é um problema – eu chamo isso de Morin chama de o pensamento zão, pensam na razão abrangente. metafísica abstrata, uma meta- complexo. Daí a confusão. física que não é capaz de pensar Hoje, o que se fala de crise da as diferenças. Esse é o desafio do Quando se fala em razão, fala-se modernidade é a crise da centra- pensamento contemporâneo: pen- de uma determinada maneira de a lidade do sujeito e do que isso sig- sar a unidade fundamental, sim, espiritualidade humana se realizar, nificou como uma redução da natu- em todas as coisas, mas há uma que é aquilo que hoje chamamos reza a puro meio da ação humana diferença num nível profundo que de ciência. Porque razão para os e, portanto, a concepção de que a é ontológica. medievais e gregos era o conheci- mento de derivação, diferente da natureza está à disposição da ação Quando o papa diz que tudo tem a intuição. Os gregos diziam que ha- humana e que o homem é o possui- ver com tudo, tudo está relaciona- via o nous que intui os princípios, dor e o senhor da natureza. É essa do com tudo, ele não está dizendo e tem aquele conhecimento que concepção subjetivista do homem simplesmente que é possível haver se deduz a partir dos princípios in- como ser poderoso. O homem par- uma cooperação entre as ciências, tuídos. O conhecimento dedutivo ticipou de uma mentira, como diz o mas que há uma visão ontológica hoje se realiza na ciência, que é papa, ao dizer que todas as coisas que diz que tudo está relacionado axiomática-dedutiva. O problema 33 da natureza estão ilimitadamente com tudo, uma conectividade uni- todo está aqui, sempre se tem de à disposição do ser humano, não se versal de tudo com tudo. Isso por- apelar para um plano mais funda- dando conta de que sem a regene- que tudo tem um mesmo esquema mental. A tarefa do filósofo é apon- ração das coisas da natureza, tudo fundamental, pode ser considera- tar para essa esfera. A razão tem se acaba. do com uma categoria metafísica a ver com o logos, tem a ver com única e fundamental que pensa teoria e teoria tem níveis, e o últi- Agora, há esse problema: não se todas as coisas e ao mesmo tem- mo nível é o englobante. pode superar uma unilateralidade po a diversidade imensa de todas com outra unilateralidade. E al- as coisas, porque essa realidade O problema é que aquilo que guns querem superar isso dizendo se realiza de maneiras diferentes, hoje chamamos de demonstração o seguinte: o homem e todas as como estava dizendo antes, nas di- é o modelo que na filosofia da ci- ência se chama axiomático-dedu- coisas são iguais. versas esferas. O problema que He- gel punha, de pensar a identidade tivo, ou seja, pressupõe axiomas 24 Edgar Morin (1921): sociólogo francês, e a diferença, é o problema central e deles tiro conclusões. E para autor da célebre obra O Método. Os seis li- Aristóteles era isso também, mas vros da série foram tema do Ciclo de Estu- da metafísica hoje. De modo que dos sobre “O Método”, promovido pelo IHU é muito ambígua essa expressão da ele tem outra forma de falar para em parceria com a Livraria Cultura de Porto crise da modernidade, porque você legitimar coisas, que é legitimar a Alegre em 2004. Embora seja estudioso da esfera dos princípios. Ele chamou complexidade crescente do conhecimento pode cair em outra unilateralidade científico e suas interações com as questões absurda de dizer que todas as coi- isso de refutação, ou seja, trata-se humanas, sociais e políticas, se recusa a ser sas são físicas, por exemplo negan- de mostrar que o sujeito entra em enquadrado na sociologia e prefere abarcar contradição consigo mesmo. Basta um campo de conhecimentos mais vasto: fi- do a enorme diferença no real. losofia, economia, política, ecologia e até bio- ver que quando alguém diz “não logia, pois, para ele, não há pensamento que há verdade”, se está dizendo isso, IHU On-Line – E há uma confu- corresponda à nova era planetária. Além de O pressupõe-se que pelo menos a Método, é autor de, entre outros, A religação são em relação ao que se entende frase que ele proferiu é verdadei- dos saberes. O desafio do século XXI (Ber- por razão, também? trand do Brasil, 2001). Confira a edição es- ra. Isso é a contradição performa- pecial sobre esse pensador, intitulada Edgar Manfredo Araújo de Oliveira tiva que Apel explica como sendo Morin e o pensamento complexo, de 10-09- 2012, disponível em http://bit.ly/ihuon402. – Sim, infelizmente aqui há uma a contradição entre aquilo que (Nota da IHU On-Line) confusão. O que os franceses, a estou dizendo e o ato de proferir

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a sentença, porque no ato eu me ses gestos de extrema ternura são isso porque abriu a perspectiva que entrego. Então, o fato de não po- importantes. torna isso possível, e é disso que der demonstrar dedutivamente não acho que o pessoal não está se dan- esgota o problema da legitimação IHU On-Line – Qual é o ponto do conta. por outros caminhos. fundamental da Encíclica Lauda- Um cientista – que deve ser in- to Si’? diano – falou da ecologia integral IHU On-Line – E como avalia Manfredo Araújo de Oliveira – como um pensamento “integrado” aquelas análises que querem Diria que é o quarto capítulo, que (não integral). Ele diz que os pro- fundamentar toda a realidade na trata da ecologia integral, que su- blemas da natureza são tão graves História? pera aquela “visão analítica” de e complexos, que só um pensamen- to que seja capaz de integrar os di- Manfredo Araújo de Oliveira – que as coisas estão separadas entre versos modelos científicos pode dar Isso pode ser tentado sem negar a si. O papa traz uma visão metafí- conta das questões. Aí, nós ainda dimensão metafísica, pois constitui sica sobre a globalidade. Há uma estamos num nível epistemológico, um certo nível de acesso ao real. dimensão de contingência, que não se explica por ela mesma, ou seja, ou seja, ele não está dizendo que Há certas coisas que são imutáveis, trata-se da pergunta de por que a realidade em última instância é que aparecem em todas as mu- existe algo e não nada (Leibniz). unitária porque tudo tem a ver com danças, quer dizer, há estruturas Por outro lado, ele repôs, contra tudo, está integrado com tudo. Ele universais, apesar da história. As todos os dualismos vigentes no está dizendo apenas que é preciso pessoas misturam graus de verdade nosso mundo, uma visão global sin- juntar química, física, matemá- com relativismo. Não é isso; pode- tética, sistemática, de ver as co- tica, humanidades, tecnicidades. -se conhecer tudo em graus dife- nectividades universais de todas as Mas o papa vai muito além disso, renciados de verdade. Ou seja, o coisas. Não dá mais para ficar pen- apresenta uma visão holística da conhecimento do real é um proces- sando em filosofias que criam dua- realidade, que vê a realidade de so aberto ao infinito. lismos insustentáveis. O papa está fato como um todo. Eu quase caí diante de um certo anseio que os para trás quando li a Encíclica e IHU On-Line – Como está ava- filósofos norte-americanos também nem estava esperando isso. O que 34 liando o pontificado do papa? têm, que é superar o gap entre te- está embutido na perspectiva onto- oria e mundo, linguagem e realida- lógica, metafísica, é algo grandio- Manfredo Araújo de Oliveira – O de. Essa é a questão fundamental so, porque a filosofia hoje apenas papa é um barato, porque ele tem do pensamento contemporâneo. vislumbra superar os dualismos, o atitudes e parece que desceu para Mas os filósofos não conseguiram ir dualismo cartesiano, mas não é só a Terra; é um ser humano capaz adiante. isso, temos de superar o dualismo de viver a dimensão humana e é ontológico, porque a realidade foi isso que encanta. Ele desmitificou IHU On-Line – Isso significa que dividida toda em pedaços e nin- o papado ao mostrar que é um ser tem de ter uma unidade entre ser guém vê mais relação de uma coisa humano como qualquer outro, tem e pensar? Como o senhor pensa com outra. apenas uma missão específica e a essa identidade? missão primeira é humanizar, e isso IHU On-Line – E para recuperar ele está fazendo. Ele está tocando Manfredo Araújo de Oliveira essa visão totalizante, a filosofia em questões fundamentais, dia- – Exatamente. A questão é saber tem de ser sistemática? loga com todas as pessoas. É uma como se deve pensar isso. Identi- “revolução pragmática” no sentido dade entre ser e pensar não signi- Manfredo Araújo de Oliveira – de que ele apresenta uma figura fica identificação, mas que o pen- Sim, mas temos de entender siste- humana do papa. Eu vivi o último sar é a expressão do Ser e o Ser é ma de um modo diferente daquele ano de João XXIII em Roma e ele expressável, articulável, é em si que Spinoza e Hegel fizeram, ou era incrível. Lembro que numa au- mesmo inteligível, compreensível. seja, não é pôr um axioma no topo diência ele estava lendo em vários O papa põe-se na linha do que mui- do qual se deriva tudo ou expor a tos filósofos aspiram hoje. Esse é idiomas e quando chegou a hora de integração de tudo através de con- o ponto que não está sendo visto. ler em inglês, ele disse: “Agora es- Ele deu uma contribuição enorme do efeito estufa. Em 2015, a COP tem sua 21ª tou frito” (risos). Lembro-me tam- para pensar os dilemas da COP-21 edição (daí COP 21), a ser realizada em Paris, bém da história de que ele treinou França, em dezembro. O objetivo é revisar o em Paris,25 mas ele está fazendo como deveria tratar com Jacque- comprometimento dos países, analisar os in- ventários de emissões e discutir novas desco- line Kennedy enquanto esposa do 25 COP 21: A COP é a Conferência das Par- bertas científicas sobre o tema. Foi criada na presidente norte-americano, mas tes da Convenção-Quadro das Nações Unidas ECO-92 e teve sua primeira edição em 1995, sobre Mudança Climática. É a autoridade em Berlim na Alemanha. Desde então, reuni- quando ele a viu, gritou simples- máxima para a tomada de decisões sobre os ões da COP ocorrem anualmente. (Nota da mente: “Jacqueline” (risos). Es- esforços para controlar a emissão dos gases IHU On-Line)

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tradições. Sistema quer dizer a co- nos EUA, em que os filósofos fa- brasileiros. Recebo uma recensão nectividade, ou seja, pensar o que zem referência uns aos trabalhos do meu livro na Espanha e não no ética tem a ver com metafísica, o dos outros? Começou-se a fazer Brasil, e acho isso muito estranho. É que tem a ver antropologia com isso no Brasil, minimamente? impressionante como não há debate ética e filosofia da natureza. Uma Manfredo Araújo de Oliveira – público no Brasil; é como se tudo vez eu disse para um colega ana- Ainda não começamos isso no Brasil que viesse de fora fosse melhor do lítico que ele fazia filosofia como e a primeira grande dificuldade da que o que se tem aqui. se fizesse matemática, ou seja, existência de um debate público. João Carlos Salles, que é reitor com problemas segmentados, sem Temos ainda uma cabeça subde- da Universidade Federal da Bahia, pensar a relação entre eles. Ele, senvolvida; os filósofos brasileiros fez um esforço gigantesco, quando então, respondeu que fazia uma não se leem a si mesmos. Veja, à frente da ANPOF, para estimular grande coisa porque já tinha saído nos EUA praticamente não existia de uma visão completamente his- a criação de uma literatura filo- filosofia, a não ser algumas teorias sófica em língua nacional, mas o toricista da filosofia. Eu concordo, pragmáticas. Na Europa se dizia mas é preciso ir além. As pessoas, movimento que existe é contrário que nos EUA não existia filosofia, a isso, porque muitos filósofos bra- às vezes, não entendem e dizem e hoje os EUA é o lugar no mundo que eu sou um comentador de fi- sileiros acham que têm de falar e talvez mais importante para a filo- publicar em inglês no país. lósofos, mas não entendem que o sofia, tanto que a língua inglesa se que está por trás de comentar um tornou obrigatória para quem faz IHU On-Line – Organizar uma autor é entender de que modo ele filosofia hoje. pode contribuir para resolver um literatura brasileira não significa problema de ordem sistemática. Em , num congres- fazer uma filosofia brasileira? so sobre Apel, eu estava caminhan- O filósofo sistemático não é aque- do com um dos discípulos dele, que Manfredo Araújo de Oliveira – le que está interessado somente me disse: “Veja que interessante Claro, temos de fazer filosofia no em ver historicamente o que os os americanos, eles nos conhecem, Brasil, nos EUA, e criar um diálo- outros disseram, mas aquele que mas não nos citam; só citam os an- go, mas não defendo algo como pensa conectividades fundamen- tigos, Kant, Hegel, mas eles se co- alguns defendem, que estudar fi- tais em todas as coisas e em última nhecem a si mesmos e citam uns aos losofia brasileira significa apenas 35 instância descobre uma esfera que outros”. No Brasil as pessoas têm ler filósofos brasileiros ou filósofos liga todas as esferas, a conexão das medo de citar um colega, porque latino-americanos, porque isso é conexões. É isso que é um filósofo acham que o seu artigo vai baixar um absurdo, uma vez que a filo- sistemático estritamente, e é isso de nível. Então, é impressionante sofia é algo universal. Do mesmo que eu procuro fazer. Sei que eu como os filósofos brasileiros não se modo, não posso fazer matemáti- sou um extraterrestre, mas isso conhecem e, portanto, não há de- ca falando de um tipo de matemá- pouco me importa (risos). bate público. Nós escrevemos para tica que se faz só no Brasil. Agora, quem? Não sei. Sinceramente acho ler o que os brasileiros escrevem é IHU On-Line – Quais são as difi- que sou um dos pouquíssimos que lê fundamental para começar a criar culdades de se fazer no Brasil uma os filósofos brasileiros e não tenho um debate filosófico público no discussão filosófica pública, como vergonha de citar e discutir com país. 

LEIA MAIS... —— Filosofia, teologia e autonomia a partir de Rahner. Entrevista com Manfredo Araújo de Oliveira, publicada na revista IHU On-Line nº 446, de 16-06-2014, disponível em http://bit. ly/1LYF1Di —— Contingência e liberdade. A aporia fundamental do sistema hegeliano. Entrevista com Man- fredo Araújo de Oliveira, publicada na revista IHU On-Line nº 261, de 09-06-2008, disponível em http://bit.ly/1LYF1TO —— O Projeto de Ética Mundial de Hans Küng. Entrevista com Manfredo Araújo de Oliveira, pu- blicada nas Notícias do Dia, de 19-08-2008, no sítio do Instituto Humanitas Unisinos – IHU, disponível em http://bit.ly/1O7fkpP —— O ECOmenismo de Laudato Si’. Revista IHU On-Line nº 469, disponível em http://bit. ly/1PQo04f

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ESTANTE Por uma teologia da libertação animal Luiz Carlos Susin e Gilmar Zampieri apresentam livro que retoma a história ocidental da ética animal e propõem novas perspectivas para analisar a questão

Por Ricardo Machado

uem são os outros? Esta pergunta das da indústria de cosméticos e da moda, tem milênios. Já foi respondida o livro recoloca o debate em torno do Qde milhares de formas diferente tema. “Portanto, ética e filosoficamente, e mesmo assim ainda não foi totalmen- é preciso fazer valer a nossa condição de te respondida. Luiz Carlos Susin e Gilmar seres livres, isto é, capazes de dizer não. Zampieri dão novos contornos à questão E no caso, capazes de dizer não à indús- ao responderem. “Os animais são os ‘ou- tria do sofrimento e da morte”, tros’. E os outros sempre inspiram as me- ponderam. lhores reflexões éticas porque a ética é é frei capu- a inclusão do outro”, provocam, ao con- Luiz Carlos Susin cederem entrevista por e-mail à IHU On- chinho, mestre e doutor em Teo- Line, sobre o livro A vida dos outros. Ética logia pela Pontifícia Universidade e teologia da libertação animal (São Paulo: Gregoriana de Roma. Leciona na Paulinas, 2015). PUCRS e na Escola Superior de Teologia e Espiritualidade Fran- 36 “Na segunda parte o livro pergunta se a ciscana – Estef, em Porto Alegre. forma como tratamos os animais não hu- É também secretário-geral do Fó- manos, é a forma correta, boa, moral e rum Mundial de Teologia e Liber- eticamente justificada e, se não for a me- tação. Dentre suas obras, desta- lhor forma, o que deveríamos fazer para camos Teologia para outro mundo possível cessar de causar terror, sofrimento e morte (Paulinas, 2006). a um ser que compartilha com os humanos pelo menos duas condições básicas que lhe Gilmar Zampieri, frade capuchinho, confere igual consideração de interesse e graduado em Filosofia pela Universidade direitos, a saber: eles sofrem e vivem uma Católica de Pelotas e em Teologia pela vida e são sujeitos de uma vida que vale Escola Superior de Teologia e Espirituali- por si e não são meio para uma outra vida dade Franciscana (ESTEF), com mestrado ou interesse”, exemplificam. nas duas áreas na Pontifícia Universidade Em tempos de ofensivas cada vez mais Católica de Porto Alegre. É professor de amplas e variadas sobre o direito dos ani- Ética e Direitos Humanos no Centro Uni- mais, que há muito deixaram de ser sacrifi- versitário Lasalle de Canoas e de Teologia cados apenas para a alimentação humana, Fundamental na ESTEF. mas são uma das “commodities” preferi- Confira a entrevista.

IHU On-Line – Em sentido am- te, da relação dos homens com os prêmio Nobel de literatura, J.M. plo, do que trata o livro A vida animais. Relação que sempre foi Coetzee,1 em seu livro A vida dos dos outros. Ética e teologia da cruel, mas com o incremento da libertação animal? De que forma indústria da carne, ovos, leite e 1 John Maxwell Coetzee: escritor sul-afri- ele atualiza o debate ético a cer- seus derivados, com a indústria cano Nobel de Literatura em 2003, sendo o ca do tema? do couro, pele, com indústria dos quarto escritor africano a receber esta honra- cosméticos e produtos químicos ria e o segundo no seu país (depois de Nadine Luiz Carlos Susin e Gilmar Zam- Gordimer, em 1991). A sua carreira literária testados em animais, aumentou pieri – O livro trata, primeiramen- no campo da ficção começou em 1969, mas o assustadoramente, a ponto de o seu primeiro livro, Dusklands, só foi publica-

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animais (São Paulo: Companhia das homem tem dignidade, tudo o mais e Tom Regan,6 sustentar essa posi- Letras, 2002), sugerir uma insti- têm preço”. Se o animal tem preço, ção é, no mínimo, desinformação gante analogia entre o holocausto então pode ser tratado como coisa ou uma postura alheia e insensí- humano perpetrado aos judeus na e substituído por qualquer coisa e vel com o que há de mais elevado segunda guerra mundial, e o holo- nisso não implica um erro do ponto moralmente. E o que há de mais causto animal imposto, diariamen- de vista moral. elevado moralmente é justamen- te, pelo homem aos indefesos e ino- te a proteção, compaixão, justiça, centes animais. A conclusão é que o Novas visões libertação e cuidado para com o termo “campos de concentração” é mais frágil e vulnerável, inclusive o que melhor define a nossa relação Hoje, porém, essa concepção já os animais não humanos. Nesse as- com os “outros” animais. A primei- não faz sentido. Depois de Jeremy pecto impõe-se uma real conversão ra parte do livro se debruça sobre Bentham,3 Darwin,4 Peter Singer5 animal, ao lado da conversão eco- esses “campos de concentração” lógica proposta pelo Papa Francis- 7 (estimação, pesquisa, instrumen- menon), isto é, entre o que nos aparece e o co na Laudato Si’. tos, entretenimento, alimentação) que existiria em si mesmo. A coisa-em-si não mostrando como os animais, no atu- poderia, segundo Kant, ser objeto de conheci- Debate ético al estágio da indústria, são coisifi- mento científico, como até então pretendera cados, sem consideração para com a metafísica clássica. A ciência se restringi- E, por fim, o livro apresenta uma ria, assim, ao mundo dos fenômenos, e seria seus interesses e direitos. constituída pelas formas a priori da sensibili- novidade no debate atual em torno dade (espaço e tempo) e pelas categorias do do bem-estar e direitos dos animais. Segunda parte entendimento. A IHU On-Line número 93, A tradição religiosa e teológica oci- de 22-03-2004, dedicou sua matéria de capa dental de cunho judaico-cristã, rei- à vida e à obra do pensador com o título Kant: Na segunda parte o livro pergun- razão, liberdade e ética, disponível para do- teradamente, tem sido criticada e ta se a forma como tratamos os wnload em http://bit.ly/ihuon93. Também acusada de antropocêntrica pelos animais não humanos, é a forma sobre Kant foi publicado o Cadernos IHU defensores dos direitos dos animais. correta, boa, moral e eticamente em Formação número 2, intitulado Em- Uma leitura fundamentalista da Bí- justificada e, se não for a melhor manuel Kant – Razão, liberdade, lógica e blia justificou e fundamentou uma ética, que pode ser acessado em http://bit. forma, o que deveríamos fazer para ly/ihuem02. Confira, ainda, a edição 417 da postura antropocêntrica e desastro- cessar de causar terror, sofrimento revista IHU On-Line, de 06-05-2013, intitu- sa para o meio ambiente e, sobretu- e morte a um ser que compartilha lada A autonomia do sujeito, hoje. Impera- do, para os animais. Mas, não é fa- com os humanos pelo menos duas tivos e desafios, disponível em http://bit.ly/ zer justiça com a Bíblia e com Deus, ihuon417. (Nota da IHU On-Line) condições básicas que lhe confere 3 Jeremy Bentham (1748-1832). Filósofo, continuar repetindo mantras do 37 igual consideração de interesse e jurista e reformador social britânico. É reco- tipo: Deus não se preocupa com o direitos, a saber: eles sofrem e vi- nhecido como o fundador do utilitarismo mo- boi; está escrito na Bíblia que deve- vem uma vida e são sujeitos de uma derno, que prega o desenvolvimento de ações mos nos multiplicar, dominar e sub- vida que vale por si e não são meio com a máxima eficiência para o bem-estar meter tudo, inclusive os animais, social e a felicidade. Foi também o primeiro para uma outra vida ou interesse. a utilizar o termo deontologia, para se refe- a nosso favor etc. Para reverter o Nesse particular o livro resgata a rir ao conjunto de princípios éticos a serem que está inscrito no inconsciente história da ética, nos seus momen- aplicados às atividades profissionais. (Nota do senso comum religioso, e até de tos e autores mais representativos, da IHU On-Line) uma postura teológica conservadora 4 Charles Darwin (Charles Robert Darwin, e faz ver como a temática dos ani- 1809-1882): naturalista britânico, propositor e fundamentalista, será necessário mais tem sido posta e debatida. da teoria da seleção natural e da base da teo- Tradicionalmente os filósofos justifi- ria da evolução no livro A Origem das Espé- caram o trato dos animais como coi- cies. Organizou suas principais ideias a partir sa e propriedade do humano, sem de uma visita ao arquipélago de Galápagos, paixão, em http://bit.ly/ihuon191. Singer é quando percebeu que pássaros da mesma autor, entre outros, de The way we eat. Why valor inerente e, portanto, fora da espécie possuíam características morfológi- our food choices matter? (New York: Rodale, comunidade moral, colocado no rei- cas diferentes, o que estava relacionado com 2006). (Nota da IHU On-Line) no das coisas e não no reino dos fins o ambiente em que viviam. Em 30-11-2005, 6 Tom Regan (1938): é um filósofo norte- em si mesmo. Essa postura hierar- a professora Anna Carolina Krebs Pereira -americano que se especializado na teoria Regner apresentou a palestra obra Sobre a dos direitos animais. É professor emérito quizante e antropocêntrica culmina origem das espécies através da seleção na- de Filosofia da Universidade da Carolina do 2 em Kant na conhecida fórmula: “O tural ou a preservação de raças favorecidas Norte, onde ele lecionou desde 1967 até a sua na luta pela vida, de Charles Darwin, no aposentadoria em 2001. Ativista dos direitos evento Abrindo o Livro, do Instituto Hu- animais, publicou, entre outros The Case for do na África do Sul em 1974. Coetzee recebeu manitas Unisinos – IHU. Sobre o assun- Animal Rights e Animal Rights and Human vários prémios antes do Nobel e foi o primei- to, confira as edições 300 da IHU On-Line, de Obligations (organizado juntamente com ro a receber o Booker Prize por duas vezes. 13-07-2009, Evolução e fé. Ecos de Darwin, Peter Singer). Jaulas Vazias (Porto Alegre: (Nota da IHU On-Line) disponível em http://bit.ly/UsZlrR, e 306, Editora Lugano, 2006) é seu primeiro livro 2 Immanuel Kant (1724-1804): filósofo de 31-08-2009, intitulada Ecos de Darwin, publicado no Brasil. (Nota da IHU On-Line) prussiano, considerado como o último gran- disponível em http://bit.ly/1tABfrH. De 9 a 7 Papa Francisco (1936): Argentino filho de de filósofo dos princípios da era moderna, 12-09-2009, o IHU promoveu o IX Simpósio imigrantes italianos, Jorge Mario Bergoglio é representante do Iluminismo. Kant teve um Internacional IHU: Ecos de Darwin. (Nota da o atual chefe de estado do Vaticano e Papa da grande impacto no romantismo alemão e nas IHU On-Line) Igreja Católica, sucedendo o Papa Bento XVI. filosofias idealistas do século XIX, as quais se 5 Peter Singer (1946): filósofo australiano. É o primeiro papa nascido no continente tornaram um ponto de partida para Hegel. Concedeu entrevista na edição 191 da IHU americano, o primeiro não europeu no papa- Kant estabeleceu uma distinção entre os fe- On-Line, de 14-08-2006, intitulada Por do em mais de 1200 anos e o primeiro jesuíta nômenos e a coisa-em-si (que chamou nou- uma ética do alimento. Sobriedade e Com- a assumir o cargo. (Nota da IHU On-Line)

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um longo esforço de hermenêutica dizer cruéis. Esses animais vivem ler com atenção. O Papa Francisco, que, modestamente, o livro propõe. em campos de concentrações e sa- na Laudato si’, insiste que é mais crificados no altar do mercado que do que tempo de corrigir uma lei- Nesse aspecto o livro abre um é insensível aos humanos e muito tura antropocêntrica e arbitrária debate no campo teológico como, mais insensível à vida dos animais do célebre mandato de “dominar” ao que se sabe, nunca tinha sido não humanos. sobre os animais que, na verdade, feito explicitamente, pelo menos é governar no sentido ético, res- no Brasil. Provocativamente, o sub- Os animais ponsável. Além disso, o Papa leva título sugere o fazer teológico sob mais adiante a compreensão de um novo enfoque, para além do Quando se pergunta quem são que os animais tem um valor em ecoteológico que, a nosso ver, não os animais, é preciso colocar a di- si mesmos, inerente às suas vidas, dá conta de pensar a especificida- mensão qualitativa e quantitativa. e não podem ser reduzidos a uso de dos seres particulares sencien- Bem sabemos da variedade que se humano. tes e sujeitos de uma vida como esconde sob o nome genérico: ani- são os animais. mais. Animal é o mosquito, a mos- IHU On-Line – A partir de quan- ca, a barata, o inseto mais imper- do os animais passam a ser vistos IHU On-Line – Quem são os ani- ceptível, o passarinho, o cachorro, como seres de direitos? De que mais? Qual a questão de fundo o gato, o boi, o leão etc. Não po- forma isso coloca em questão o que está por trás desta pergunta? demos continuar com a postura antropocentrismo exacerbado De que forma ela se torna ética e especista seletiva que constituiu a que surge a partir do Iluminismo? filosoficamente um ponto crucial moral tradicional. Amamos e cuida- em nosso tempo? mos os cachorros e gatos, mas ma- Luiz Carlos Susin e Gilmar Zam- pieri – Por muito tempo, e ainda Luiz Carlos Susin e Gilmar Zam- tamos e comemos sem sentimento continuamos com essa mentalida- pieri – Os animais são os “outros”. de culpa, vergonha e indignação, o de, pensamos que os animais só E os outros sempre inspiram as boi, a vaca, o carneiro, o coelho, o teriam direitos indiretos. Direitos melhores reflexões éticas porque peixe etc. Como continuar susten- indiretos que nos colocam deveres a ética é a inclusão do outro. No tando essa postura? indiretos. Tanto Tomás de Aquino8 âmbito humano, costumamos dizer Portanto, ética e filosoficamente, quanto Kant, expressam essa con- que os outros são os diferentes, os é preciso fazer valer a nossa condi- cepção limpidamente. Eles dizem não-eu, os de fora do círculo do ção de seres livres, isto é, capazes que não devemos maltratar ou eu, os mais distantes, os além da de dizer não. E no caso, capazes de matar animais não porque a eles 38 margem, os pobres etc. Fala-se, dizer não à indústria do sofrimento devemos algum respeito por um até mesmo, do outro totalmente e da morte que constitui a indús- valor inerente que nos obrigaria a outro. E diz-se que um ser huma- tria da carne, ovos e leite, para dar não maltratar. Não. Segundo esses no é tanto mais ético e religioso, um exemplo apenas. autores, e eles são a síntese do quanto mais for capaz de respeitar todo antropocentrismo, não deve- e se sacrificar pelo outro. Ora, não IHU On-Line – Em termos teoló- mos maltratar os animais, porque seria o caso de pensar os animais gicos e bíblicos, como se compre- em maltratando-os nos tornamos como os outros, verdadeiramente endeu historicamente a relação piores e desumanos. Não devemos outros? Por isso o título pode soar entre o ser humano e os animais ser cruéis com os animais, porque, provocativo: A vida dos outros. (Gênesis 1:26-28 )? Qual o impac- com isso nos tornaríamos insensí- Os outros, que são os animais, to da Laudato Si’ (LS 69) sobre a veis e propensos a cometer cruel- são muitos. Não infinitos, mas, cer- hermenêutica bíblica e como isso dade também com os humanos. O tamente, incontáveis. Não há re- atualiza o debate? argumento é, pois, de deveres in- censeamento de todos os animais diretos exatamente porque os ani- Luiz Carlos Susin e Gilmar Zam- que vivem na terra, debaixo da mais não portam direitos. Isso mu- pieri – O texto bíblico está reple- terra, no ar e nas águas. São incon- dou no século XX, através de vários to de referências aos animais, da táveis! Mas há uma conta que os ór- autores, mas principalmente com primeira à ultima pagina. Mas para gãos governamentais conhecem e Peter Singer, e mais definitivamen- ver o obvio é necessário prestar os defensores dos direitos dos ani- te, com o filósofo americano Tom atenção de forma diferente. A Es- mais também conhecem. Estima- critura foi objeto de uma leitura -se que assassinamos anualmente viciada por, praticamente, os dois em torno de 60 bilhões de animais, 8 São Tomás de Aquino (1225-1274): pa- mil anos que se seguiram ao tex- dre dominicano, teólogo, distinto expoente para o nosso prazer na alimenta- to. Ela traz uma história da relação da escolástica, proclamado santo e cognomi- ção. Isso significa algo em torno dos humanos com os demais seres nado Doctor Communis ou Doctor Angelicus de 180 milhões diariamente. Sete pela Igreja Católica. Seu maior mérito foi a vivos, sobretudo com os mais pró- milhões por hora. Os números im- síntese do cristianismo com a visão aristoté- ximos, os animais. Nessa história pressionam. Os números também lica do mundo, introduzindo o aristotelismo, está tanto a tragédia da relação sendo redescoberto na Idade Média, na es- têm peso moral. Não é a mesma de abuso – comer, sacrificar, ido- colástica anterior. Em suas duas “Summae”, coisa a morte de um e a morte de latrar etc – como os ensinamentos sistematizou o conhecimento teológico e filo- bilhões. Esses animais são criados sófico de sua época: são elas a Summa Theo- que provem dos próprios animais, em condições precárias, para não logiae e a Summa Contra Gentiles. (Nota da o que é mais do que se imagina ao IHU On-Line)

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Regan. É inestimável a contribui- A questão é que nunca se colocou para uma mudança de mentalidade ção desses dois pensadores para a explicitamente um enfoque teoló- e de ação em relação aos animais. inclusão dos animais não humanos gico em que o sujeito seja a vaca, E a conclusão é que a acusação na roda do discurso e prática mo- o boi, o cachorro etc. Até há uma de que a tradição judaico-cristã é ral. A partir desses dois autores a ecoteologia da libertação com re- antropocêntrica e especista, não ação de não maltratar e não matar lativo relevo e produção teológica. se confirma, quando a leitura bí- muda de centro. Não é por nossa A Laudato Si’ é um bom exemplo. blica for colocada numa ajustada causa, é por eles mesmos. Mas na ecoteologia, parece-nos, há hermenêutica. um excesso de platonismo. Insiste- -se, acertadamente, na necessida- IHU On-Line – Metodologica- IHU On-Line – Como Francisco de de pensar o todo, as conexões, mente, como a Teologia de Liber- de Assis ajuda a pensar a questão a integralidade. Acertada e corajo- animal nos dias atuais? Que har- tação Animal aborda a questão de samente o Papa Francisco eleva em fundo em torno dos direitos dos monias possíveis há entre o ser nível teológico e religioso a refle- humano e os animais? De que or- animais? xão em torno da ecologia integral, dem é tal desafio ético? Luiz Carlos Susin e Gilmar Zam- pensando a necessidade do cuida- Luiz Carlos Susin e Gilmar Zam- pieri – Se o título do livro pode pa- do da casa comum de uma forma pieri – Para compreender Francisco recer demasiado e provocativo, o que une economia, política, ética, é necessário distinguir dois tipos subtítulo pode parecer pretensio- antropologia, religião, ciências e teologia. de escritos: os dele mesmo, que so, inadequado e inoportuno. Mas é são poucos, e o que depois se es- importante lembrar que o livro que O valor dessa reflexão e dessa creveu sobre ele. Francisco prefe- levantou a poeira da nossa consci- metodologia é inestimável. Mas re deixar os animais viverem suas ência moral foi exatamente o livro ainda não chega ao ponto de uma próprias vidas e, por isso, proíbe que se intitula Libertação Animal possível teologia da libertação seus seguidores de terem animais (Porto Alegre: Lugano, 2004), de animal. E sem uma teologia da li- de criação. Ele se recusa a utilizar Peter Singer. bertação animal, a reflexão fica a animais até para seu encantamen- meio caminho. E por quê? Porque Sabemos que a teologia da li- to. Ao invés de dispor dos animais, os animais não compõem o meio bertação opera com o método ver, sugere que se deve estar disposto ambiente, não são apenas parte de a “obedecer” os animais, se Deus julgar e agir, agora também in- um todo, não são valiosos somente assim quiser. Isso parece bobagem, corporado até pelo Papa, como é como espécie para a harmonia do mas, na verdade, é uma inversão 39 o caso da Laudato Si’. O ponto de todo. Não. Os animais são nossos da hierarquia em que os humanos partida para uma teologia da liber- irmãos. São nossos iguais, mesmo sempre se colocam no topo da hie- tação sempre será uma situação de sendo os “outros”. São iguais no rarquia da vida. Para ele, o manda- opressão, escravidão, sofrimento, sofrimento e no desejo de viver to bíblico de governar é traduzido cruz. Lá onde não há cruz, não há livres, em estado de bem estar, em “servir” inclusive os animais. porque insistir e proclamar a res- com saúde e respeito. Eles não Os textos poéticos coincidem to- surreição e libertação. Onde há são um produto, uma mercadoria dos no fato de que Francisco ama- paz, bem-estar, vida plena, liber- na cadeia alimentar. Eles não são va uma relação de reciprocidade dade etc, aí acontece o reino e a algo, são alguém. Se aceitarmos com os animais, cada um falando glória. A libertação arranca da dor. isso, então há um longo caminho a sua própria língua: ele pregava A libertação inicia lá onde o sofri- de teologia da libertação animal a o evangelho e o louvor a Deus, e mento e morte se insinuam. É teo- ser percorrido. O nosso intuito foi os animais gorgeavam, abanavam o logia porque o horizonte de juízo, exatamente, além de revisitar as rabo... uma convivência que ante- avaliação e de olhar é da fé no sen- fontes filosóficas na sua dimensão cipa o sonho de Isaías, a boa convi- tido religioso, em nosso caso, com ética, testar as fontes bíblicas para vência entre humanos e animais no fonte bíblica. ver se é possível contar com a fé gozo do Reino do Messias.  LEIA MAIS... —— A semântica do sacrifício na obra da salvação. Entrevista com Luiz Carlos Susin publicada na revista IHU On-Line, nº 403, de 24-09-2012, disponível em http://bit.ly/1l5PiH7; —— Franz Rosenzweig. Um pensador para ajudar o Ocidente a se curar de sua esquizofrenia. Entrevista com Luiz Carlos Susin publicada na revista IHU On-Line, nº 386, de 19-03-2012, disponível em http://bit.ly/1KVXEpz; —— A evolução como elemento central do espiritismo. Entrevista com Luiz Carlos Susin publi- cada na revista IHU On-Line, nº 349, de 01-11-2010, disponível em http://bit.ly/1k7mmOS; —— Uma Igreja tradicionalista nunca será criativa. Entrevista com Luiz Carlos Susin publicada na revista IHU On-Line, nº 320, de 21-12-2009, disponível em http://bit.ly/1Q3cv9x.

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Tema de Capa DESTAQUES DA SEMANA TEMA DE CAPA

Biografias Duas vidas, uma vida

Por Ricardo Machado

ascido em 1942, na cidade de Santo Amaro da Purificação, no recôncavo baiano, Caetano Emanuel Vianna Telles Velloso, quinto de uma família Nbaiana de sete filhos, chega aos 50 anos de carreira. Começou cantando em bares de Salvador com sua irmã. Quando estava em casa, volta e meia era interpelado por dona Canô, sua mãe, que o chamava dizendo: “Caetano, vem ver o preto que você gosta”. O preto era Gilberto Gil. No mesmo ano, nasceu em Salvador, mas cresceu no interior da Bahia, em Itu- açu, um pequeno moleque miúdo e negro que não resistia ao primeiro tilintar de clarinete, que ressoava na festa à padroeira. Deixava-se levar pela música, que era ao mesmo tempo a música da terra e a música do céu. Seu nome, Gilberto Gil. Estes dois pequenos personagens mal podiam imaginar que suas vidas iriam se cruzar e seriam muitas e uma só. Em 2015 celebram-se os 50 anos de carreira de Caetano Veloso e Gilberto Gil, cuja obra ilustra a riqueza de um país em sua essência. Dois dos grandes nomes do Tropicalismo, Gil e Caetano retomam o an- tropofagismo como forma de devolver o Brasil ao Brasil. Perseguidos e censurados pelo regime de exceção, exilaram-se em Londres. Voltaram ao país na reabertura política. Agora, já de cabelos brancos e olhares 42 serenos, consta em seus currículos Grammys, milhares de discos vendidos e uma carreira digna das bodas de ouro. A biografia de Caetano e Gil vem sendo contada há cinco décadas e recontá- -la seria um exercício precário e vão. O que fazemos nas próximas páginas não é recontar a história de Gil e Caetano, mas apresentar olhares de “uma vida” que reverbera em nossa cultura. Com vocês, Caetano e Gil!

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Discografia Caetano Veloso Discografia Gilberto Gil

1967 – Domingo 1963 – Salvador – 1962/1963 1967 – Caetano Veloso 1967 – Louvação 1968 – Tropicália ou Panis et Circencis 1968 – Tropicália ou Panis et Circencis 1969 – Caetano Veloso 1968 – Gilberto Gil 1971 – Caetano Veloso 1969 – Gilberto Gil 1972 – Transa 1970 – Copacabana Mon Amour (trilha sonora) 1973 – Araçá Azul 1971 – Gilberto Gil 1975 – Joia 1972 – Barra 69 – Caetano e Gil Ao Vivo na Bahia 1975 – Qualquer Coisa 1972 – Expresso 2222 1977 – Bicho 1974 – Cidade Do Salvador 1978 – Muito – Dentro da Estrela Azulada 1974 – Ao Vivo 1979 – Cinema Transcendental 1975 – Refazenda 1981 – 1975 – Gil & Jorge – Ogum – Xangô 1982 – Brasil 1977 – Refavela 1984 – Velô 1977 – Refestança 1978 – Ao Vivo em Montreux 1986 – Totalmente Demais 1979 – Nightingale 1986 – Caetano Veloso 1979 – Realce 1989 – 1981 – Brasil 1991 – 1991 1981 – Luar (A Gente Precisa Ver o Luar) 1993 – Tropicália 2 1982 – Um Banda Um 1994 – Fina Estampa 1983 – Extra [WEA Latina] 2002 – Eu Não Peço Desculpa (com ) 1984 – Quilombo (trilha sonora) 2004 – A Foreign Sound 1984 – Raça Humana 2006 – Cê 1985 – Dia Dorim Noite Neon 2009 – 1987 – Em Concerto 2012 – Abraçaço 1987 – Um Trem para as Estrelas (trilha sonora) 1988 – Ao Vivo em Tóquio (Live in Tokyo) 1989 – O Eterno Deus Mu Dança 1991 – Parabolicamará 1994 – Acústico MTV 43 1995 – Esotérico: Live in USA 1994 1995 – Oriente: Live in Tokyo 1996 – Em Concerto 1996 – Luar 1997 – Indigo Blue 1997 – Quanta 1998 – Ao Vivo em Tóquio (Live in Tokyo) [Braziloid] 1998 – O Sol de Oslo 1998 – O Viramundo (Ao Vivo) 1998 – Quanta Gente Veio Ver 1998 – Ensaio Geral (caixa com gravações de 1967 a 1977) 2000 – Me, You, Them 2001 – Milton e Gil 2001 – São João Vivo 2002 – Kaya N’Gan Daya 2002 – Quanta Live 2002 – Z: 300 Anos de Zumbi 2004 – Eletrácustico 2005 – Ao Vivo 2005 – As Canções de Eu, Tu, Eles 2005 – Soul of 2006 – Gil Luminoso 2006 – Rhythms of Bahia 2008 – Banda Larga Cordel 2009 – BandaDois – Ao Vivo 2010 – Fé na Festa 2010 – Fé na Festa: Ao Vivo 2011 – Gil + 10: Gilberto Gil Convida ao vivo 2012 – Concerto de cordas e Máquinas de Ritmo 2014 – Gilbertos 2014 – Live in London ‘71 – (com )

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A musicalidade disruptiva da Tropicália em 50 anos de trajetória artística Para Celso Fernando Favaretto, no tropicalismo Caetano e Gil definiram suas carreiras e transformaram o cenário cultural brasileiro

Por Leslie Chaves

s 50 anos de carreira de Caetano Segundo Favaretto, até hoje Caetano e Gil e Gil são repletos de acontecimen- “são muito fiéis a essa origem tropicalista, Otos interessantes e significativos. ou seja, experimental e definidora de - ou Entre os mais marcantes, destaca-se o Tropi- tros modos de compor e cantar, que levam calismo, que representa uma revolução cul- a outros modos de audição, a partir de uma tural no sentido mais amplo da expressão. vinculação simultânea com a tradição da Conforme Celso Fernando Favaretto aponta música popular brasileira e as influências em entrevista por telefone à IHU On-Line, do presente, tanto nacionais como interna- esse movimento “vem responder a uma ne- cionais, na música, arte e cultura em geral. cessidade experimental, a qual tinha duas Soma-se ainda a presença e atuação política facetas: um lado propriamente musical, isto de ambos”. é, levar adiante o que a Bossa Nova já havia Celso Fernando Favaretto é graduado em 44 trazido de modernização e, por outro lado, Filosofia pela Pontifícia Universidade Cató- responder, de maneira radical e muito parti- lica de Campinas – PUC-Campinas, mestre cular, aos desafios sociais e políticos que se e doutor em Filosofia pela Universidade de acentuaram depois do golpe de 1964”. São Paulo – USP, onde também tem livre- Para o pesquisador, as referências da Tro- docência pela Faculdade de Educação e picália reverberam até hoje no campo ar- aposentou-se como professor. Entre suas tístico brasileiro construindo novos modos publicações destacam-se Tropicália: alego- de criação e fruição artística, articulando ria, alegria (São Paulo: Kairós Editora, 1979) variadas fontes de alimentação, de diversos e A invenção de Hélio Oiticica (São Paulo: locais e temporalidades, ao engajamento Edusp, 1992). às questões do contexto social e político. Confira a entrevista.

IHU On-Line – Qual a importân- juntamente com Torquato Neto1, Capinan2 e Tom Zé3.

cia do movimento Tropicalista nas 1 Torquato Pereira de Araújo Neto de 1960, com o AI-5 e o exílio dos amigos e carreiras de Gil e Caetano? De que (1944 – 1972): nascido em Teresina, foi um parceiros Gil e Caetano, viajou pela Europa e poeta brasileiro, jornalista, letrista de músi- Estados Unidos. De volta ao Brasil, no início forma foi se compondo o cenário ca popular, experimentador ligado à contra- dos anos 1970, Torquato começou a se iso- cultura. Torquato atuava como um agente lar, sentindo-se alienado tanto pelo regime para a emersão deste movimento? cultural e polemista defensor das manifesta- militar quanto pela “patrulha ideológica” de ções artísticas de vanguarda, como a Tropi- esquerda. Ele se suicida em 1972. (Nota da cália, o cinema marginal e a poesia concreta, IHU On-Line) Celso Fernando Favaretto – No circulando no meio cultural efervescente da 2 José Carlos Capinam (1941): mais co- época, ao lado de amigos como os poetas Dé- nhecido como Capinam ou Capinan é um po- Tropicalismo, Caetano e Gil se de- cio Pignatari, Augusto e , eta e músico brasileiro. Também é jornalista. finiram como cancionistas, como o cineasta Ivan Cardoso e o artista plástico Nascido em Esplanada, na Bahia, tem uma Hélio Oiticica. Nesta época, Torquato pas- vasta obra literária e diversas composições músicos da música popular brasilei- sou a ser visto como um dos participantes musicais. Participou ativamente da Tropicália do Tropicalismo, tendo escrito o breviário como um destacado letrista. (Nota da IHU ra. Eles foram os principais criado- Tropicalismo para principiantes, no qual On-Line) defendeu a necessidade de criar um “pop” 3 Antônio José Santana Martins – Tom res e integrantes desse movimento, genuinamente brasileiro. No final da década Zé (1936): é um compositor, cantor, arran-

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ainda os desenvolvimentos na mú- sica erudita contemporânea e na música popular, nesse último caso a emergência daquilo que seria a A musicalidade encontrou um Bossa Nova12, com o surgimento lugar disruptivo, uma mudança dos três primeiros discos de João Gilberto13 e a atividade enorme de do ouvido musical brasileiro Tom Jobim14 e de outros músicos que vão surgindo, chamados de “bossanovistas”. O Tropicalismo surgiu da necessi- Janeiro; ou na poesia, como a Po- dade de uma revisão do que vinha esia Concreta7 de Augusto, Harol- Os anos 1950 foram aqueles em sendo a música popular brasileira, do8 e Décio Pignatari9; também os que efetivamente começou a haver que ao mesmo tempo respondia processos que aos poucos vão ge- uma modernização da sociedade de maneira muito direta às pres- rar o Cinema Novo10, inicialmente brasileira, inclusive em termos es- sões políticas e sociais daquele com Nelson Pereira dos Santos11; e truturais, políticos e econômicos, momento dos anos 1960, tanto as mas principalmente houve a in- questões anteriores quanto poste- em 1954, o grupo era formado pelo artista trodução da modernidade cultural 4 carioca e vários de seus alunos e riores ao golpe de 1964 ; e estava ex-alunos. O grupo aceitava pintores de todos que se buscava desde os anos do tentando responder ao impulso de os gêneros, inclusive figurativistas e, segundo modernidade que se desenvolvia Ivan Serpa, a única condição para participar sidade de São Paulo, turma de 1952. Conside- do grupo era romper com as fórmulas da ve- rado um dos mais importantes cineastas do nas artes e na cultura desde os lha academia, dispondo-se a questionar a arte país, seu filme Vidas Secas, baseado na obra anos 1950. Momento em que apa- e caminhar pelos próprios pés. A extinção do de Graciliano Ramos, é um dos filmes brasi- Grupo Frente, em 1956, foi uma conseqüên- leiros mais premiados em todos os tempos, recia uma série de proposições cia natural do crescimento do prestígio de sendo reconhecido como obra-prima. Foi um de vanguarda nas artes plásticas, muitos de seus participantes, os quais pas- dos precursores do movimento do Cinema como o grupo Ruptura5, de São saram a encontrar condições de prosseguir Novo. É o fundador do curso de graduação cada um o seu próprio caminho. (Nota da em Cinema da Universidade Federal Flumi- 6 Paulo, e o grupo Frente , do Rio de IHU On-Line) nense. (Nota da IHU On-Line) 7 Poesia Concreta: é um tipo de poesia 12 Bossa nova: derivado do samba e com jador e jardineiro brasileiro. É considerado vanguardista, de caráter experimental, ba- forte influência do , trata-se de - ummo 45 uma das figuras mais originais da música po- sicamente visual, que procura estruturar o vimento da música popular brasileira do final pular brasileira, tendo participado ativamen- texto poético escrito a partir do espaço do dos ano 50 lançado por João Gilberto, Tom te do movimento musical conhecido como seu suporte, sendo ele a página de um livro Jobim, Vinícius de Moraes e jovens cantores Tropicália nos anos 1960 e se tornado uma ou não, buscando a superação do verso como e/ou compositores de classe média da zona voz alternativa influente no cenário musical unidade rítmico-formal. Surgiu na década de sul carioca. De início, o termo era apenas do Brasil. (Nota da IHU On-Line) 1950 no Brasil e na Suíça, tendo sido primei- relativo a um novo modo de cantar e tocar 4 Golpe Militar: Movimento deflagrado em ramente nomeada por samba naquela época, ou seja, a uma refor- 1º de abril de 1964. Os militares brasileiros, na revista Noigandres de número 2, de 1955, mulação estética dentro do moderno samba apoiados pela pressão internacional anti- publicada por um grupo de poetas homônimo carioca urbano. Com o passar dos anos, a comunista liderada e financiada pelos EUA, à revista e que produziam uma poesia afins. Bossa Nova tornou-se um dos movimentos desencadearam a Operação Brother Sam, que (Nota da IHU On-Line) mais influentes da história da música popu- garantiu a execução do Golpe, que destituiu 8 Augusto e Haroldo de Campos: poe- lar brasileira, conhecido em todo o mundo , do poder o presidente João Goulart, o Jango. tas concretistas brasileiros. (Nota do IHU um grande exemplo disso é a música Garota Em seu lugar os militares assumem o poder. On-Line) de Ipanema composta em 1962 por Vinícius Sobre a ditadura de 1964 e o regime militar 9 Décio Pignatari (1927-2012): Nascido em de Moraes e Antônio Carlos Jobim. Sobre o o IHU publicou o 4º número dos Cadernos Jundiaí, SP, foi um publicitário, poeta, ator, tema, confira a edição da IHU On-Line inti- IHU em Formação, intitulado Ditadura 1964. ensaísta, professor e tradutor brasileiro. Des- tulada Chega de saudade... Bossa Nova, 50 A memória do regime militar. Confira, tam- de os anos 1950, realizava experiências com anos, de 08-09-2008, disponível em http:// bém, as edições nº 96 da IHU On-Line, inti- a linguagem poética, incorporando recursos bit.ly/YzDFvb. (Nota da IHU On-Line) tulada O regime militar: a economia, a igreja, visuais e a fragmentação das palavras. Tais 13 João Gilberto Prado Pereira de Oli- a imprensa e o imaginário, de 12 de abril de aventuras verbais culminaram no Concre- veira: conhecido como João Gilberto, violo- 2004, e nº 95, de 5 de abril de 2005, 1964- tismo, movimento estético que fundou jun- nista e cantor, é considerado um dos pais da 2004: hora de passar o Brasil a limpo. (Nota to com Augusto e Haroldo de Campos, com bossa-nova brasileira, juntamente com Tom da IHU On-Line) quem editou as revistas Noigandres e Inven- Jobim. Nasceu em Juazeiro (BA), em 1931, 5 Grupo Ruptura: Grupo de artistas surgi- ção e publicou a Teoria da Poesia Concreta mudando-se para o Rio de Janeiro, em 1950. do na cidade de São Paulo, em 1952, reunindo (1965). Sua obra poética está reunida em Perfecionista, apresenta-se com sucesso em os pioneiros do Concretismo no Brasil. Lide- Poesia Pois é Poesia (1977). (Nota da IHU todo o mundo (Nota do IHU On-Line) rado por Waldemar Cordeiro, seu porta-voz On-Line) 14 Antônio Carlos Brasileiro de Almei- e principal teórico, o grupo era, a princípio, 10 Cinema Novo: movimento cinematográ- da Jobim (1927-1994): mais conhecido formado também por Geraldo de Barros, Luís fico brasileiro, influenciado pelo neo-realis- como Tom Jobim, foi um compositor, maes- Sacilotto, Lothar Charroux, Kazmer Fejer, mo italiano e pela “Nouvelle Vague” francesa, tro, pianista, cantor, arranjador e violonista Anatol Wladslaw e Leopoldo Haar, recebendo com reputação internacional. Surge em cir- brasileiro. É considerado o maior expoente a adesão posterior de Hermelino Fiaminghi, cunstâncias idênticas ao do movimento ho- de todos os tempos da música brasileira pela Judith Lauand e Maurício Nogueira Lima. mônimo português, também referido como revista Rolling Stone, e um dos criadores do (Nota da IHU On-Line) Novo Cinema. (Nota da IHU On-Line) movimento da bossa nova. É praticamente 6 Grupo Frente: foi um grupo artístico 11 Nelson Pereira dos Santos (1928): é uma unanimidade entre críticos e público em brasileiro, considerado um marco no movi- um diretor de cinema brasileiro. Bacharel em termos de qualidade e sofisticação musical. mento construtivo das artes plásticas. Criado direito pela Faculdade de Direito da Univer- (Nota da IHU On-Line)

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Modernismo de 2215 e que final- da música popular brasileira, como ziram uma reconfiguração da mú- mente se efetivou. E essa efeti- também elementos da chamada sica popular que não só definiu a vação se deu em novas condições, música contemporânea e outros carreira deles como compositores em uma sociedade em ritmo de de- de procedências diversas, como do e cantores, cancionistas, como re- senvolvimento, pelo menos de ma- cinema, teatro e literatura, o Tro- definiu os rumos da música popular neira mais acentuada a partir do picalismo compôs uma suma mui- brasileira. 16 governo de Juscelino Kubitschek , to interessante em que o contexto A partir de então, muitos músi- com as consequentes mudanças so- social e político encontrava aí uma cos, mais jovens ou não, passaram ciais, inclusive nos costumes, nas nova forma de expressão, com a a ter uma liberdade imensa de relações entre as pessoas, na edu- nova acentuação de uma política composição. Coisa que não tinham cação, nos meios de comunicação, disruptiva. Simultaneamente, a antes, seja pela pressão das impo- que começavam a se desenvolver, musicalidade encontrou um lugar sições da cultura de massa, seja na produção de livros e na tradu- também disruptivo, isto é, uma pela pressão vinda da necessidade ção de títulos estrangeiros; enfim, mudança do ouvido musical brasi- da música de expressar a realida- houve uma veloz transformação leiro. Isso porque a integração de de brasileira, seja pelo fato de os cultural dos anos 1950 até o final procedimentos de vanguarda, das compositores ainda não consegui- dos anos 1960. mais diversas procedências, fazia rem fundir as novas contribuições com que as músicas tropicalistas Dentro deste contexto, o Tropica- vindas de dentro e de fora do país. fossem um tanto quanto estranhas, lismo vem responder a uma neces- tanto na letra como na musicalida- Depois de 1968, que foi o mo- sidade experimental, a qual tinha de. Caetano e Gil, como eu disse mento tropicalista da cultura bra- duas facetas: um lado propriamen- antes, com Torquato Neto, Tom Zé sileira, a música e outras artes te musical, isto é, levar adiante o e Capinan, juntando-se a eles o encontraram, exatamente devido que a Bossa Nova já havia trazido canto da Gal Costa17, algumas ve- às atividades tropicalistas, uma li- de modernização, e por outro lado zes o da Nara Leão18 etc., produ- berdade muito maior de atuação, responder, de maneira radical e de criatividade e desenvolvimentos muito particular, aos desafios -so 17 Maria da Graça Costa Penna Bur- variados em diferentes atos. ciais e políticos que se acentuaram gos – Gal Costa (1945): é uma cantora 46 brasileira. Gal estreou ao lado de Caetano depois do golpe de 1964. O Tropi- Veloso, Gilberto Gil, Maria Bethânia, Tom Zé IHU On-Line – Como está situ- calismo deu uma resposta singular, e outros, o espetáculo Nós, Por Exemplo..., ado o movimento Tropicalista na muito especial a essas duas coisas. – que estreou em 22 de agosto de 1964-, que inaugurou o Teatro Vila Velha, em Salvador. narrativa construída por Caetano Altamente experimental, incluin- Nesse mesmo ano participou de Nova Bossa e Gil ao longo dos seus 50 anos de Velha, Velha Bossa Nova, no mesmo local e carreira? do não só os elementos da tradição com os mesmos parceiros. (Nota da IHU On-Line) Celso Fernando Favaretto – Nos 15 Semana de Arte Moderna: também 18 Nara Lofego Leão Diegues – Nara chamada de Semana de 1922, ocorreu em São Leão (1989): foi uma cantora brasileira con- anos de 1967 e 1968, prioritaria- Paulo nos dias 13, 15 e 17 de fevereiro daquele siderada a musa da Bossa Nova, movimento mente, eles desenvolveram um pro- ano, no Teatro Municipal. Representou uma que nasceu em 1957, quando Nara fazia reu- grama propriamente experimental verdadeira renovação de linguagem, na busca niões no apartamento de seus pais, em Copa- de experimentação, na liberdade criadora da cabana, das quais participavam nomes que de música popular brasileira. Eles ruptura com o passado e até corporal, pois a seriam consagrados no gênero, como Roberto já vinham ensaiando isso antes, em arte passou então da vanguarda para o mo- Menescal, , Chico Feitosa e Ronal- dernismo. Participaram da Semana nomes do Bôscoli. Mas a consagração efetiva ocorre algumas músicas, mas nesse perío- consagrados do modernismo brasileiro, como após o golpe militar de 1964, com a apresen- do eles definem uma nova postura Mário de Andrade, , Víc- tação do espetáculo Opinião, ao lado de João diante daquilo que se entende por tor Brecheret, Plínio Salgado, Anita Malfatti, do Vale e Zé Keti, um espetáculo de crítica Menotti Del Pichia, Guilherme de Almeida, social à dura repressão imposta pelo regime música popular e outros modos de Sérgio Milliet, Heitor Villa-Lobos, Tarsila do militar. Nara Leão vai mudando suas prefe- fazer música popular. Amaral, Tácito de Almeida, Di Cavalcanti en- rências musicais ao longo dos anos 1960. De tre outros. (Nota da IHU On-Line) musa da Bossa Nova, passa a ser cantora de Uma vez encerrado o Movimen- 16 Juscelino Kubitschek de Oliveira protesto e simpatizante das atividades dos to Tropicalista – eu digo encerrado (1902-1976): médico e político brasileiro, Centros Populares de Cultura da UNE. Em 19 conhecido como JK. Foi presidente do Brasil 1966, interpretou a canção A Banda, de Chico porque com o AI-5 não só houve entre 1956 e 1961, sendo o responsável pela Buarque no Festival de Música Popular Brasi- construção de Brasília, a nova capital federal. leira (TV Record), que ganhou o festival e pú- 19 AI-5 (Ato Institucional Número Cin- Juscelino instituiu o plano de governo base- blico brasileiro. Dentre as suas interpretações co): decretado pelo general Arthur da Costa ado no slogan “Cinquenta anos em cinco”, mais conhecidas, destacam-se O Barquinho, e Silva, que ocupava a cadeira de presidente, direcionado para a rápida industrialização A Banda e Com Açúcar e com Afeto – feita a em 13 de dezembro de 1968, foi um instru- do País (especialmente via indústria automo- seu pedido por , cantor e com- mento de poder que deu ao regime militar bilística). Além do progresso econômico, no positor a quem homenagearia nesse disco poderes políticos absolutos. A primeira con- entanto, houve também um grande aumento homônimo, lançado em 1980. Nara também sequência do AI-5 foi o fechamento por quase da dívida pública. Sobre JK, confira a edição aderiu ao movimento tropicalista, tendo par- um ano do Congresso Nacional. O ato repre- 166, de 28-11-2005, A imaginação no poder. ticipado do disco-manifesto do movimento – sentou o ápice da radicalização do regime de JK, 50 anos depois, disponível em http://bit. Tropicália ou Panis et Circensis, lançado pela exceção e inaugurou o período em que as li- ly/ihuon166. (Nota da IHU On-Line) Philips em 1968. (Nota da IHU On-Line) berdades individuais foram mais restringidas

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muita repressão da censura e do ção, a partir de uma vinculação si- Em Londres, Caetano e Gil, em- regime militar, como também Ca- multânea com a tradição da música bora morando juntos e trabalhando etano e Gil saíram do país –, en- popular brasileira, de Noel Rosa21 perto, começaram a desenvolver tre o final de 1968 e o período em em diante, e com as influências do carreiras e, principalmente, modos que ficaram exilados em Londres presente, tanto nacionais como in- muito particulares de fazer músi- eles foram redefinindo a maneira ternacionais, na música, na arte e ca; ao voltarem para o Brasil, eles de trabalharem na música, porém na cultura em geral. Soma-se ainda se particularizaram mais ainda. em condições adversas. Eles esta- a presença e atuação política de Cada um seguiu sugestões e inte- vam no exterior em contato com ambos. resses muito próprios. Ambos se músicos e outros artistas das mais tornaram astros, artistas da maior diferentes proveniências, e nesse importância no Brasil até hoje. contexto puderam repensar aquilo Eles dois, juntamente com Chico que tinham feito no Tropicalismo. Buarque22, talvez sejam as presen- Primeiro eles mantiveram sempre No Tropicalismo ças artísticas na música popular a importância da experimentação. mais relevantes surgidas dos anos Segundo, conservaram a impor- Caetano e Gil se 1960 para cá. tância do cruzamento da tradição definiram como Assim, não se pode dizer que da música popular brasileira com houve um grupo formal, e neces- aquilo que estava aparecendo, cancionistas sariamente esses artistas nunca como no Brasil os desenvolvimen- definiram uma posição em unísso- tos que vinham da Jovem Guarda, IHU On-Line – De que modo a no. Muitas vezes, inclusive, não em e no exterior o rock, que participou identidade do Movimento Tropi- termos de música, mas em termos da constituição de alguns agrupa- calista se relaciona com as iden- de cultura e de política, nem sem- mentos no país; um dos exemplos tidades de Caetano e Gil indivi- pre eles tiveram a mesma posição, mais importantes foram Os Mutan- dualmente? Como interpretar a mas evidentemente sempre se res- tes20, que trabalharam diretamen- atuação desses artistas individu- peitaram e mantêm uma relação te com eles. almente e coletivamente? muito viva e forte de amizade e Desta inter-relação entre novas Celso Fernando Favaretto – Na participação cultural, haja vista 47 referências musicais, nacionais e verdade, não houve formalmente os shows que eles fizeram recen- internacionais, e a experimentação um grupo. Em 1968 o que se cha- temente, tanto no exterior como tropicalista que eles tinham desen- mou de “grupo baiano” se consti- aqui no Brasil, comemorando os 50 volvido durante dois anos, vão, tuiu aos poucos em torno do Caeta- anos de carreira. Eles continuam cada um deles, encontrar caminhos no e do Gil principalmente, junto irmãos, parceiros, mas cada um singulares para continuar fazen- com o Torquato, o Capinan e o Tom com sua singularidade. do música brasileira, mas com os Zé. Naquela época, até se pode mais diversos sotaques, exatamen- dizer que houve um grupo baiano IHU On-Line – Você poderia falar te porque estavam influenciados pensando e trabalhando junto, que um pouco sobre o papel do músico pelo cruzamento de muitas refe- constituiu um programa de traba- popular na sociedade brasileira, rências. Isso eles vão desenvolver lho que atuou durante dois anos. principalmente à luz das discus- de lá até hoje, porque são muito Terminado esse período, eles se sões em torno do posicionamento fiéis a essa origem tropicalista, ou distanciaram. Caetano e Gil foram seja, experimental e definidora de 22 Chico Buarque de Hollanda (1944): para Londres, Tom Zé, Torquato e outros modos de compor e cantar, músico, dramaturgo e escritor brasileiro, Capinan ficaram por aqui. Em se- conhecido por ser um dos maiores nomes da que levam a outros modos de audi- MPB. Sua discografia conta com aproximada- guida o Torquato morre, o Capinan mente oitenta discos, entre eles discos-solo, e desrespeitadas, constituindo-se em movi- volta para a Bahia e o Tom Zé fica em parceira com outros músicos e compac- mento final de “legalização” da arbitrariedade meio obscurecido em São Paulo até tos. É compositor de Construção, considera- que pavimentou uma escalada de torturas e da uma das melhores músicas brasileiras já assassinatos contra opositores reais e imagi- reaparecer décadas depois. feitas. Filho do historiador Sérgio Buarque de nários ao regime. (Nota da IHU On-Line) Holanda, iniciou sua carreira como escritor 20 : banda psicodélica bra- 21 Noel de Medeiros Rosa – em 1962. Ganhou destaque como cantor a sileira formada em 1966, em São Paulo, por (1910-1937): sambista, cantor, compositor, partir de 1966, quando lançou seu primeiro (vocais), Sérgio Dias (guitarra, vo- bandolinista, violonista brasileiro e um dos álbum, Chico Buarque de Hollanda, e venceu cais) e Arnaldo Baptista (baixo, teclado, vo- maiores e mais importantes artistas da músi- o Festival de Música Popular Brasileira com a cais). Depois de quase trinta anos ausentes ca no Brasil. Teve contribuição fundamental música A Banda. Socialista declarado autoe- dos palcos, o grupo retorna em 2006 com sua na legitimação do samba de morro e no “as- xilou-se na Itália em 1969, devido à crescen- formação clássica, exceção feita a Rita Lee, falto”, ou seja, entre a classe média e o rádio, te repressão da regime militar do Brasil nos que não aceitou voltar ao grupo. A cantora principal meio de comunicação em sua época chamados “anos de chumbo”, tornando-se, Zélia Duncan foi convidada a assumir os vo- – fato de grande importância, não só o sam- ao retornar, em 1970, um dos artistas mais cais e desde então acompanha a banda. (Nota ba, mas a história da música popular brasilei- ativos na crítica política e na luta pela demo- da IHU On-Line) ra. (Nota da IHU On-Line) cratização no país. (Nota da IHU On-Line)

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político de Caetano e Gil, que se Gil, distintamente de Caetano, mo, músicos como Jards Macalé23 identificavam com o compromis- foi além, em certo momento foi e Walter Franco24 – só para citar so artístico e estético, porém por vereador em Salvador, depois foi dois, que continuaram a fazer uma um lado foram perseguidos pelo ministro da Cultura. Afora ele ter experimentação na linha tropica- regime ditatorial e por outro mui- uma significação social com a mú- lista – nunca tiveram realmente to cobrados por parte do público? sica, a partir das suas declarações oportunidade clara de fazer discos Como esses conflitos incidiram na e atuação, acabou exercendo car- que recebessem mais apoio, que carreira de ambos? gos políticos. Já Caetano age di- fossem distribuídos nacionalmen- ferente, pois sua atuação política Celso Fernando Favaretto – te em grande escala. Aí a ques- está na música que ele faz, na sua Como fez parte do próprio Tro- tão é da relação entre mercado e produção intelectual escrita, nas picalismo, a relação entre arte e experimentação. referências que faz em entrevistas política sempre foi o lugar em que ou em shows etc. Mas ambos nunca Como se sabe, a experimentação eles estiveram e estão até hoje. deixaram de aliar experimentalis- geralmente não vende. Não pen- Eles são acima de tudo artistas, mo artístico e participação social. se que os Tropicalistas venderam sempre se definiram como músi- muito no tempo do Tropicalismo, cos populares e o compromisso IHU On-Line – Em seu livro “Tro- porque a audição deles era mui- inicial deles era um avanço e um to difícil, mas seu trabalho serviu trabalho dentro da música popu- picália alegoria alegria” (Divinó- polis: Kairós, 1979) consta uma para abrir as portas para muitas lar, mas em nenhum momento eles experimentações musicais e outras deixaram de participar da vida afirmação de Luiz Tatit apontan- tentativas que vieram logo depois, política e social brasileira. Entre- do que “o Tropicalismo deixou estilhaços em diversos lugares da tanto, nem sempre essa participa- 23 Jards Anet da Silva – Jards Macalé ção precisa ser feita sob a forma cultura brasileira”, os quais ainda (1943): é um ator, cantor e compositor bra- estão vívidos. Nas obras de Caeta- sileiro. Começou carreira profissional em de militância; ela pode ser feita 1965, como violonista no Grupo Opinião. Fez através do trabalho artístico em no e Gil, onde é possível verificar direção musical dos primeiros espetáculos de si, onde eles sempre se posicio- essas fagulhas atualmente? Maria Bethânia. Teve composições gravadas por Elisete Cardoso, Nara Leão. Com Gal Cos- naram. Em alguns momentos esse Celso Fernando Favaretto – É ta, e o parceiro José Carlos trabalho inclusive levou-os a ser difícil citar pontualmente essa in- Capinam, criou a agência Tropicarte, para ad- 48 ministrar os próprios espetáculos. Em 1969, mais explícitos. O Tropicalismo ao fluência na obra deles, mas o fato participou do 4.º Festival Internacional da mesmo tempo era uma pesquisa mais importante é que o trabalho Canção apresentando a canção Gotham City, de linguagens artísticas, particu- dos tropicalistas liberou os artistas e lançou o primeiro disco, “Só Morto”. Ma- calé é autor de canções como Vapor Barato, larmente na música popular, era para pesquisas que até então eles Anjo Exterminado, Mal Secreto, Movimento experimental na música e no cam- não ousavam fazer. Mais ainda, o dos Barcos, Rua Real Grandeza, Alteza, Ho- po artístico em geral, mas tam- Tropicalismo abriu um campo social tel das Estrelas, Poema da Rosa. Teve como parceiros Capinam, Waly Salomão, Torquato bém era experimental em pensar de audição de música até então in- Neto, , Xico Chaves, Jorge novas relações entre arte e cultu- terditado. Por exemplo, naquele Mautner, Gláuber Rocha e ainda Abel Silva, ra e arte e política. Tanto é assim Vinícius de Morais, Fausto Nilo. Entre os tempo se considerava que o rock intérpretes de suas canções, estão Gal Cos- que grande parte das músicas dos e a Jovem Guarda produziam mú- ta (“Hotel das Estrelas” e “Vapor barato”), tropicalistas é experimental artis- sicas alienadas, não nacionalistas Maria Bethânia (“Anjo exterminado” e “Mo- vimento dos barcos”), (“O mais- ticamente e muito política, fazen- etc. O Tropicalismo quebrou essas -que-perfeito”), Camisa de Vênus (“Gotham do a crítica da sociedade brasilei- alegações muito falsas porque não City”) e O Rappa (“Vapor Barato”), entre ou- ra daquele momento. condiziam com as condições cultu- tros. (Nota da IHU On-Line) 24 Walter Rosciano Franco – Walter rais do Brasil e do mundo naquele O importante é que eles sempre Franco (1945): é um cantor e compositor momento de fluxo de informações paulistano. Não chegou a participar de ne- se posicionaram, nunca deixaram culturais e artísticas de todas as nhum movimento cultural musical, como de fazer isso. Naquele tempo, exa- bossa nova ou tropicalismo, mas sempre es- partes e de crítica à concepção es- tamente porque o momento dos teve na vanguarda, em vários momentos. Já tanque de gêneros de música e de era parte da Vanguarda Paulista, antes mes- anos 1960 propiciava e exigia, as arte em geral. Isto é que perdurou! mo da expressão ser cunhada pela geração de coisas eram mais explícitas. Dos Arrigo Barnabé e Itamar Assumpção. Traba- anos 1970 até hoje nem sempre os Depois do Tropicalismo os mú- lhou com arranjadores como Rogério Duprat e Júlio Medaglia, e teve a letra da música posicionamentos políticos são tão sicos se sentiram autorizados a “Cabeça” traduzida para o inglês por Augusto explícitos nas músicas, nem sem- fazer o que tinham necessidade e de Campos. Seu álbum mais aclamado pela crítica é Revolver, de 1975. Walter Franco já pre as canções são explicitamente vontade e que não tinham espaço foi regravado por artistas como Leila Pinhei- críticas, mas o são no modo de fa- para fazer. Por exemplo, a indús- ro, Oswaldo Montenegro e Chico Buarque, zer música internamente, através tria fonográfica não aceitava mú- além de bandas de rock como Ira!, Camisa de Vênus, Pato Fu e Titãs que também regrava- da formulação de novas lingua- sica experimental, tanto era assim ram músicas do compositor. (Nota da IHU gens, temas e assuntos. que, mesmo depois do Tropicalis- On-Line)

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como eu citei, Walter Franco e Ma- do baião etc.; nem só era a música tigante, bonita, simples e que foi calé, ainda Luiz Melodia25, João folclórica das diversas regiões do cativante no momento e até hoje Bosco26 e tanta gente que se de- país, mas também incluía aquilo envolve pelo seu ritmo bastante senvolveu depois de uma maneira que artistas cultos faziam conju- rápido. É como se cantássemos muito singular. gando diferentes tradições cultu- sempre “Alegria, alegria” com um rais. Isso é que possibilitou a emer- Esses artistas não apareceriam sorriso nos lábios. gência de uma produção musical, com facilidade, ou talvez fosse que também teve a influência de impossível que eles surgissem se IHU On-Line – De que forma a outras áreas artísticas, muito gran- o Tropicalismo não tivesse aberto canção “Domingo no parque”, de de a partir dos anos 1970 até hoje. as portas da seguinte maneira: ao Gilberto Gil, emprega a prática mesmo tempo afirmando a experi- antropofágica oswaldiana? mentação como sendo também um Celso Fernando Favaretto – domínio próprio da música popular Essa música surgiu no mesmo fes- brasileira e mostrando que a mú- tival da Record em que é lançada sica popular do Brasil não era só o “Alegria, alegria”. Ambas foram que foi produzido nos anos 1920, Caetano e Gil premiadas: Se bem me lembro, como Noel Rosa e outros; nem reconfiguraram “Domingo no parque” ficou em eram apenas os ritmos que vieram terceiro lugar e “Alegria, ale- depois por influência do mambo e a música popu- gria” em quarto. “Domingo no 25 Luiz Carlos dos Santos – Luiz Melo- lar brasileira parque” é uma música altamen- dia (1951): é um ator, cantor e compositor te experimental, só que é diversa brasileiro de MPB, rock, blues, soul e sam- ba. Começou sua carreira musical em 1963, IHU On-Line – De que forma a da do Caetano. Em meu livro, por ao mesmo tempo em que trabalhava como canção “Alegria, Alegria”, de Ca- exemplo, eu mostrei que enquan- tipógrafo, vendedor, caixeiro e músico em to “Alegria, alegria” poderia ser bares noturnos. Em 1964 formou o conjunto etano Veloso, representa uma das musical Os Instantâneos, com Manoel, Na- marcas da atividade dos tropica- comparada com um filme de Go- zareno e Mizinho. Lança seu primeiro LP em listas. Por quê? dard27, isto é, um filme sem cor- 1973, Pérola Negra. No “Festival Abertura”, tes, em continuidade, “Domingo competição musical da Rede Globo, conse- Celso Fernando Favaretto – Essa gue chegar à final com sua canção “Ébano”. no parque”, ao contrário, é uma 49 foi a primeira música que Caetano Nas décadas seguintes Melodia lançou di- música toda construída, como o versos álbuns e realizou shows no Brasil e na apresentou no festival da TV Re- cinema do Eisenstein28. Então, Europa. Em 1987, apresentou-se em Chate- cord. É uma canção que revela que auvallon, na França, e em Berna, Suíça. Em é uma canção feita pela monta- estávamos vivendo um momento 1992, participou do “III Festival de Música gem de diversas cenas, gerando de Folcalquier”, na França, e, em 2004, do histórico de abertura nos compor- a história de um amor. O mais Festival de Jazz de Montreux, à beira do Lago tamentos, de vida muito marcada Leman, onde se apresentou no Auditorium importante é a maneira como a Stravinski, palco principal do festival. (Nota pelo consumo, pelas referências música se desenvolve, ela vai se da IHU On-Line) do rock, mas principalmente mar- 26 João Bosco de Freitas Mucci – João cada por muitas informações que construindo aos poucos em um Bosco (1946): é um cantor, violonista e com- ritmo meio alucinante, que vai positor brasileiro. começou a tocar violão aos vinham pela imprensa, pela banca doze anos, incentivado por uma família re- de jornal como ele diz, ainda pelo produzindo uma figuração, como pleta de músicos. Alguns anos depois, iniciou na Escola de Minas em Ouro Preto cursando cinema etc. Então é uma música 27 Jean-Luc Godard (1930): cineasta fran- Engenharia Civil. Apesar de não deixar de muito ágil e muito bonita que con- cês, reconhecido por um cinema vanguardista lado os estudos, dedicava-se sobremaneira à templa esses diferentes aspectos e polêmico, que tomou como temas e assumiu carreira musical, influenciado principalmen- como forma, de maneira ágil, original e quase te por gêneros como jazz e bossa nova e pelo da abertura cultural que se estava sempre provocadora, os dilemas e perplexi- tropicalismo. Foi em Ouro Preto, em 1967, vivendo. No cerne dessa canção dades do século XX. Além disso, é também que conheceu Vinícius de Moraes, com o tem uma referência clara à situa- um dos principais nomes da Nouvelle Vague, qual compôs as seguintes canções: rosa-dos- assim como Truffaut. Um de seus filmes éVi - -ventos, Samba do Pouso e O mergulhador ção brasileira. vre sa vie (1962). (Nota da IHU On-Line) – dentre outras. Em 1970 conheceu aquele 28 Serguei Mikhailovitch Eisenstein que viria a ser o mais frequente parceiro, com Caetano fala, num certo momen- (1898 – 1948): foi um dos mais importantes quem compôs mais de uma centena de can- to, “no coração do Brasil”, quer di- cineastas soviéticos. Foi também um filmó- ções: Aldir Blanc, O mestre sala dos mares, zer: tudo isso está acontecendo no logo. Relacionado ao movimento de arte de O bêbado e a equilibrista, Bala com bala, Kid vanguarda russa, participou ativamente da , Caça à raposa, Falso brilhante, país como um todo. Há uma crítica Revolução de 1917 e da consolidação do ci- O rancho da goiabada, De frente pro crime, política interna porque a música nema como meio de expressão artística. No- Fantasia, Bodas de prata, Latin Lover, O ron- tabilizou-se por seus filmes mudos A Greve, co da cuíca, Corsário, dentre muitas outras. é leve, meio irônica inclusive, vai O Encouraçado Potemkin e Outubro, assim Em 1972 conheceu , que gravou narrando fatos e nomes e, ao fa- como os épicos históricos Alexandre Nevski uma parceria sua com Blanc: Bala com Bala; a zer essa narração, diz que tudo isso e Ivan, o Terrível. Sua obra influenciou for- carreira deslanchou quando da interpretação temente os primeiros cineastas devido ao seu da cantora para o bolero Dois pra lá, dois pra está compondo naquele momento uso inovador de escritos sobre montagem. cá. (Nota da IHU On-Line) o Brasil. É uma música muito ins- (Nota da IHU On-Line)

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se estivéssemos vendo alguma interrompeu uma produção cul- do Teatro Oficina31, do cinema de coisa acontecer, como um cinema tural, educativa, social e políti- Glauber Rocha32 e a tantas outras na nossa frente. Essa introdução ca que vinha se desenvolvendo da época. Os militares reagem, e do cinema vai ser fundamental na numa tentativa de pensar um música do Caetano e do Gil desde Brasil mais livre, mais liberado ao produzir o AI-5 enrijecem ainda então. dos mecanismos internacionais mais a censura, a prisão, o exílio de controle, um país menos de- e a tortura. Isto realmente foi um Essa música do Gil não se con- sigual, que deveria fazer reforma trapõe à do Caetano, representa golpe dentro do golpe. 1964 já ha- fiscal e agrária. Então, foi inter- o outro lado dele. “Domingo no via sido brutal, mas 1968 foi du- rompido esse processo que vinha parque” é experimental, constru- se configurando com dificuldades plamente brutal. tivista como “Alegria, alegria”, só desde os anos 1950 de diversas que enquanto Caetano chama a do Estudante, que apresenta,■ em 1958, seu maneiras. texto “Eles Não Usam Black-Tie”, que perma- atenção para o ritmo de vida da so- nece mais de um ano em cartaz e abre espaço ciedade de consumo, Gil está aten- Nesse sentido, o golpe militar para o surgimento de um movimento para re- tando para o outro lado da história foi terrível porque parou os desen- velar novos autores brasileiros, destacando- volvimentos da cultura brasileira -se, entre outros, Vianna Filho e Flávio Mi- e da nossa sociedade: o modo de gliaccio. Numa outra fase, o Teatro de Arena vida popular. de uma maneira drástica, não só volta-se para os musicais, sob a influência do porque instaurou a censura, mas teatro de Bertold Brecht, com espetáculos Sobre a sua pergunta, todo o Tro- também porque efetuou prisões, como “Arena conta Zumbi” e “Arena conta picalismo é oswaldiano e antropo- Tiradentes”, duas parcerias de e torturou, exilou etc. A partir de . A inovação é o cha- fágico, porque ele vai integrando 1965, houve uma retomada da mado sistema coringa, em que todos os atores referências, sob a forma de cita- revezavam-se representando quase todos os análise do que havia sido a cultura personagens, sem caracterização. Mas a re- ção, de música, de literatura, de brasileira nos anos anteriores ao pressão do governo militar a partir de 1964 cinema, de teatro... ele integra. golpe, as influências que ele pro- e o Ato Institucional nº 5, o AI-5, impedem a continuidade destas experiências. E a traje- vocou, e novas táticas e estraté- tória do grupo é interrompida 1972. (Nota da IHU On-Line – De que maneira gias foram sendo construídas en- IHU On-Line) a ditadura militar se configurou tre 1965 e 1968. 31 Uzyna Uzona ou sim- plesmente Teatro Oficina: é uma compa- como uma força reativa à liberda- 50 Em 1968, ao perceber que estas nhia de teatro do Brasil, localizada em São de que emergiu na década de 60 Paulo no bairro do Bixiga. Foi fundada em novas táticas e estratégias cultu- 1958 na Faculdade de Direito da Universi- e se materializou no Brasil com os rais estavam produzindo resultado dade de São Paulo – USP por Amir Haddad, tropicalistas? José Celso Martinez Correa e Carlos Queiroz e estabelecendo novamente uma Telles. O local de grande parte da experiên- Celso Fernando Favaretto – conscientização muito grande da cia cênica internacional, que reuniu de Bre- Mais do que reativa, a ditadura estagnação que o regime ditato- cht, Sartre ao Living . Foi neste lugar que foi lançado um importante manifesto da 29 foi reacionária. O golpe de 1964 rial havia provocado, o governo cultura brasileira, o Tropicalismo, versão na militar reage fortemente às cria- década de sessenta do movimento antropofá- 29 Golpe Militar: Movimento deflagrado ções artísticas, como as tropica- gico de Oswald de Andrade. Este influenciou em 1º de abril de 1964. Os militares brasilei- músicos, poetas e outros artistas. (Nota da 30 ros, apoiados pela pressão internacional an- listas, as do Teatro de Arena , IHU On-Line) ticomunista liderada e financiada pelos EUA, 32 Glauber de Andrade Rocha – Glau- desencadearam a Operação Brother Sam, que 30 Teatro de Arena: fundado em São Pau- ber Rocha (1939 – 1981): foi um cineasta garantiu a execução do Golpe, que destituiu lo, em 1953, pelo ator e diretor José Renato, brasileiro, ator e escritor. Começou a realizar do poder o presidente João Goulart, o Jango. que faz parte da primeira turma da Escola de filmagens (seu filme Pátio, de 1959, ao mes- Em seu lugar os militares assumem o poder. Arte Dramática de São Paulo (EAD), como mo tempo em que ingressou na Faculdade de Sobre a ditadura de 1964 e o regime militar forma de se contrapor aos espetáculos pro- Direito da Bahia, hoje da Universidade Fe- o IHU publicou o 4º número dos Cadernos duzidos na época pelo Teatro Brasileiro de deral da Bahia, entre 1959 a 1961), que logo IHU em Formação, intitulado Ditadura 1964. Comédia (TBC). A proposta era de apresentar abandonou para iniciar uma breve carreira A memória do regime militar. Confira, tam- produções de baixo custo, que durante dois jornalística, em que o foco era sempre sua bém, as edições nº 96 da IHU On-Line, inti- anos forma apresentadas em espaços impro- paixão pelo cinema. Queria uma arte enga- tulada O regime militar: a economia, a igreja, visados. Em 1955, uma garagem na Rua The- jada ao pensamento e pregava uma nova es- a imprensa e o imaginário, de 12 de abril de odoro Baima, no centro de São Paulo, é adap- tética, uma revisão crítica da realidade. Era 2004, e nº 95, de 5 de abril de 2005, 1964 – tada e passa a ser a sede da companhia. Atin- visto pela ditadura militar, que se instalou no 2004: hora de passar o Brasil a limpo. (Nota ge o sucesso com a chegada de Gianfrancesco país em 1964, como um elemento subversivo. da IHU On-Line) Guarnieri, um jovem ator do Teatro Paulista (Nota da IHU On-Line)

LEIA MAIS... —— Tropicalismo, uma revolução? Entrevista especial com Celso Fernando Favaretto publicada na Revista IHU On-Line nº 411, de 10-12-2012, disponível em http://bit.ly/1ScEFxd.

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Ousadia e sensibilidade de uma vida inteira Para Pedro Bustamante Teixeira, essas são tônicas que marcam os 50 anos de carreira de Caetano e Gil, que simultaneamente se mantêm situados no tempo e fora dele

Por Leslie Chaves

ilberto Gil e Caetano Veloso gênero, raciais, homoafetivas, religio- participaram ativamente dos sas, rítmicas, tudo isso estará presente Gdiversos momentos históricos na obra desses artistas que mais pela que marcaram a construção do Brasil, micropolítica do que pela macropolíti- tanto cultural quanto politicamente. Ao ca detonariam um processo de abertura mesmo tempo que seus protagonismos mental e corporal que, por outros cami- pontuaram os contextos sociopolíticos nhos, também levarão à abertura polí- do país que perpassaram os 50 anos tica”, frisa. de suas carreiras, ambos continuam se Ao longo da entrevista, Pedro Busta- reinventando, prática que os mantêm mante Teixeira fala sobre a dimensão atentos e vivos em qualquer tempo. “A das contribuições artística e política de importância de Caetano e de Gil para Gilberto Gil e Caetano Veloso no cenário a formação da cultura brasileira, na se- cultural brasileiro e internacional e sa- 51 gunda metade do século XX, é central. lienta: “A vida desses artistas é de uma Não só pelo impacto que causaram com coragem, de uma entrega comovente. O a virada tropicalista – que vem para artista não é esse que se permite viver questionar as bases de um nacionalismo o que deveria de fato ser vivido? É por cultural essencialista, herdeiro de um isso que assim o são, por todos nós que modernismo Mário Andradiano, predo- não o somos”. minante na MPB e nas artes ditas bra- sileiras no início dos anos 60 –, mas por Pedro Bustamante Teixeira é gradu- continuarem tropicalistas, neoantropó- ado em Língua Portuguesa e Língua Ita- fagos, ao longo de todos esses anos, o liana e suas respectivas literaturas pela que significa, apesar do paradoxo, ja- Universidade Federal de Juiz de Fora mais repousar no mesmo”, ressalta Pe- – UFJF, instituição pela qual também dro Bustamante Teixeira em entrevista obteve os títulos de especialista em por e-mail à IHU On-Line. Estudos Literários, mestre e doutor em Letras: Estudos Literários. Entre suas Para o professor e pesquisador, o publicações destacam-se Do samba à trabalho de Caetano e Gil foi um dos Bossa Nova: inventando um país (Curiti- precursores do processo de redemocra- ba: Appris, 2015), tema de sua pesquisa tização da sociedade brasileira, anteci- de mestrado, e Sonhe com os sonhos ou pando causas que atualmente estão na o ano em que tive 18 anos (Rio de Janei- agenda política mundial. “Nos anos 70, ro: Animula Vagula Blandula, 2000). ambos irão engajar-se em causas levan- tadas pela contracultura. Questões de Confira a entrevista.

IHU On-Line – Qual a importân- é o principal aspecto que lhes dá para a formação da cultura brasi- cia de Caetano e Gil para a for- notoriedade nesse contexto? leira, na segunda metade do século mação da cultura brasileira na se- Pedro Bustamante Teixeira – A XX, é central. Não só pelo impacto gunda metade do século XX? Qual importância de Caetano e de Gil que causaram com a virada tropi-

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calista1 – que vem para questionar anos 70, assim como ser tropica- mem uma postura menos marginal, as bases de um nacionalismo cul- lista nos anos 80 não é o mesmo do que pelo que fizeram com o tural essencialista, herdeiro de um que ser tropicalista nos anos 90, movimento tropicalista. A prisão e modernismo Mário Andradiano2, e assim por diante. O que significa o exílio, mais os vinte anos de um predominante na MPB e nas artes ser tropicalista hoje? Os aggiorna- regime militar no Brasil, cobririam 4 ditas brasileiras no início dos anos mentos da dupla não são senão o com um grosso véu essa parte da 60 –, mas por continuarem tropica- esforço de se manterem fiéis a uma história da dupla. Por muitos anos, listas, neoantropófagos3, ao longo série de princípios, tropicalistas, as referências ao tropicalismo, à de todos esses anos, o que signifi- no tempo presente. Acredito que prisão, ao regime e ao exílio ti- ca, apesar do paradoxo, jamais re- vem daí a notoriedade da dupla. nham que ser escamoteadas. Daí As respostas que eles dão ao tempo pousar no mesmo. ser tão difícil visualizar uma coe- nunca são as mesmas. E não o sen- rência na práxis artística e política Ser tropicalista nos anos 60 não do, estaremos sempre atentos ao desses dois artistas. Sem a compre- é o mesmo que ser tropicalista nos que dizem, porque dizem confor- ensão da proposta inicial da Tropi- me uma lógica muito singular, não- cália, é mesmo inviável entender 1 Tropicalismo, Movimento tropica- -binária, embrionária no modernis- a movimentação desses artistas ao lista ou Tropicália: movimento cultural 5 brasileiro que surgiu sob a influência das mo da Semana de 22 – em Oswald longo do tempo. correntes artísticas de vanguarda e da cultura de Andrade6 sobretudo – e que só pop nacional e estrangeira (como o pop-rock se inaugura na música popular e de Mas acontece que ambos tive- e o concretismo), misturou manifestações ram, dado o acordo que fizeram tradicionais da cultura brasileira a inovações massa com o tropicalismo. estéticas radicais. Tinha objetivos comporta- com o tempo, a sorte de ver o mun- mentais, que encontraram eco em boa parte do e o Brasil dar muitas voltas. E, IHU On-Line – Como vêm se situ- da sociedade, sob o regime militar, no final da aquilo que não se entendia e que ando ao longo do tempo as obras década de 1960. O movimento manifestou-se não se podia explicar, teve o tem- principalmente na música (cujos maiores de Caetano e Gil no cenário cul- po de se revelar também. O que a representantes foram Gilberto Gil, Torquato tural brasileiro? E para além do Neto, Os Mutantes e Tom Zé); manifestações princípio parecia rendição ao mer- artísticas diversas, como as artes plásticas Brasil? (destaque para a figura de Hélio Oiticica), o cado ou um flagrante da alienação cinema (o movimento sofreu influências e in- Pedro Bustamante Teixeira – Ca- desses artistas, se revelaria um fluenciou o Cinema novo de Gláuber Rocha) e etano e Gil acabaram se tornando projeto artístico radical, um dos o teatro brasileiro (sobretudo nas peças anár- muito mais famosos pelo que fize- 52 quicas de José Celso Martinez Corrêa). Um mais ousados movimentos artísti- dos maiores exemplos do movimento tropi- ram depois do exílio, quando assu- cos da segunda metade do século calista foi uma das canções de Caetano Velo- XX. Talvez o primeiro movimento so, denominada exatamente de “Tropicália”. 4 Aggiornamento: é um termo italiano, artístico a enfrentar de frente o Leia a edição 411, intitulada Tropicalismo. O que significa “atualização”. Esta palavra foi desejo de uma modernidade amorosa para o a orientação chave dada como objetivo para binarismo que tanto marcou o sé- Brasil, disponível em http://bit.ly/ihuon411. o Concílio Vaticano II, convocado pelo Papa culo XX. (Nota da IHU On-Line) João XXIII em 1962. Por outras palavras, o 2 Mário Raul de Morais Andrade (1893- aggiornamento é a adaptação e a nova apre- A redemocratização nos anos 1945): poeta, romancista, crítico de arte, fol- sentação dos princípios católicos ao mundo 80, que reunia, talvez por uma clorista, musicólogo e ensaísta brasileiro. Em atual e moderno, sendo por isso um objetivo 1917 foi publicado o seu primeiro livro de ver- fundamental do Concílio Vaticano II. Aqui última vez, os artistas da Música sos: Há uma gota de sangue em cada poema. na entrevista este termo é empregado com o Popular Brasileira em prol de um A sua segunda obra, Pauliceia desvairada, sentido de inovação, atualização, como citado objetivo comum, apagava certas colocou-o entre os pioneiros do movimento inicialmente. (Nota da IHU On-Line) modernista no Brasil, culminando, em 1922, 5 Semana de Arte Moderna: também diversidades ideológicas, que a como uma das figuras mais proeminentes da chamada de Semana de 1922, ocorreu em São volta das eleições diretas faria famosa Semana da Arte Moderna. Durante a Paulo nos dias 13, 15 e 17 de fevereiro daquele novamente aparecer. O fim do década de 1920 continuou sua carreira literá- ano, no Teatro Municipal. Representou uma 7 ria, ao mesmo tempo que exercia a função de verdadeira renovação de linguagem, na busca regime militar com a campanha crítico musical e de artes plásticas na impren- de experimentação, na liberdade criadora da sa escrita. Em 1928 publicou seu romance ruptura com o passado e até corporal, pois a 7 Golpe Militar: movimento deflagrado em mais conhecido, Macunaíma, considerado arte passou então da vanguarda para o mo- 1º de abril de 1964. Os militares brasileiros, por muitos como uma das obras capitais da dernismo. Participaram da Semana nomes apoiados pela pressão internacional anti- narrativa brasileira no século XX. Alguns dos consagrados do modernismo brasileiro, como comunista liderada e financiada pelos EUA, seus livros de poesia mais conhecidos são: Mário de Andrade, Oswald de Andrade, Víc- desencadearam a Operação Brother Sam, que Losango cáqui, Clã do jabuti, Remate de ma- tor Brecheret, Plínio Salgado, Anita Malfatti, garantiu a execução do Golpe, que destituiu les, Poesias e Lira paulistana. (Nota da IHU Menotti Del Pichia, Guilherme de Almeida, do poder o presidente João Goulart, o Jango. On-Line) Sérgio Milliet, Heitor Villa-Lobos, Tarsila do Em seu lugar os militares assumem o poder. 3 Movimento Antropofágico: manifes- Amaral, Tácito de Almeida, Di Cavalcanti en- Sobre a ditadura de 1964 e o regime militar tação artística brasileira da década de 1920. tre outros. (Nota da IHU On-Line) o IHU publicou o 4º número dos Cadernos Baseado no Manifesto Antropófago, escrito 6 José Oswald de Sousa Andrade (1890- IHU em formação, intitulado Ditadura por Oswald de Andrade, o movimento antro- 1954): escritor, ensaísta e dramaturgo brasi- 1964. A memória do regime militar. Confira, pofágico brasileiro tinha por objetivo a de- leiro. Foi um dos promotores da Semana de também, as edições nº 96 da IHU On-Line, glutição (daí o caráter metafórico da palavra Arte Moderna de 1922 em São Paulo, tornan- intitulada O regime militar: a economia, a “antropofágico”) da cultura norte-americana do-se um dos grandes nomes do modernismo igreja, a imprensa e o imaginário, de 12 de e europeia. Foi certamente um dos marcos literário brasileiro. Foi considerado pela crí- abril de 2004, e nº 95, de 5 de abril de 2005, do modernismo brasileiro. (Nota da IHU tica como o elemento mais rebelde do grupo. 1964 – 2004: hora de passar o Brasil a lim- On-Line) (Nota da IHU On-Line) po. (Nota da IHU On-Line)

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das Diretas Já8 daria início a um Embora tardio, o êxito planetá- Cepecista9 que reduziria sobrema- rearranjo das forças políticas do rio da Tropicália provocaria uma neira em sua leitura ideológica, país. Caetano e Gil, por sua vez, o série de lançamentos nos anos 90, um movimento musical singular primeiro, “menos estrangeiro no no Brasil e no mundo. A descons- brasileiro que afirmava a nossa lugar que no momento”, e o se- trução tropicalista tornar-se-ia música para muito além das nossas gundo, mais envolvido com a polí- finalmente inteligível. Não por fronteiras. Foram eles, sobretudo tica do que com a música (Gil tor- acaso, nos anos 90, a divisão en- Caetano Veloso, os primeiros a de- nara-se vereador de Salvador pelo tre rock e MPB que marcou os anos nunciar a regressão da estética da PMDB em 1988, e no ano seguinte música popular diante da progres- se filiara ao Partido Verde), não são de uma arte engajada no Bra- se enquadravam no ambiente eu- sil. No entanto, a crítica, sozinha, fórico da reabertura política. O não seria capaz de enfraquecer um movimento nacionalista de esquer- que antes era nebuloso, a saber, o da como era o da música popular papel desempenhado pela Tropi- A vida desses nos anos 60. cália nos idos de 1967/1968, per- artistas é de maneceria oculto, mesmo após a Com o tropicalismo, a crítica en- reabertura política. uma coragem, fim transformava-se em práxis, e então, o que era tabu para a es- Mas os anos 90 veriam reemergir de uma entre- querda se transformaria em totem soluções tropicalistas para equa- ga comovente para a Tropicália. E enfraquecendo lizar binarismos antigos, políticos uma ideologia hegemônica conse- e culturais que voltavam a pre- guia-se salvar a sua maior vítima, dominar nos anos 80. Além disso, que, ao contrário do que se pensa- 80 começa a ser violada. Artistas nos anos 90, os discos tropicalistas va, não era o regime militar, e sim retomam estratégias tropicalistas voltam a ser cultuados por cole- a própria arte brasileira, já que a para circularem livres entre os cionadores, tanto no Brasil quanto cartilha cepecista sacrificava dois opostos. É quando vai gra- fora dele. São redescobertos Os dos seus mais exitosos movimentos: var , quando Mutantes, Tom Zé, Rogério Duprat, a poesia concreta e a bossa nova. e, logo depois, o Caetano, o Gil e a regrava em um só disco: Os Mu- São os tropicalistas os artífices de Gal tropicalista. tantes, Caetano, e Titãs. um movimento que irá detonar os 53 Quando deixa os pressupostos essencialistas de uma 8 Diretas Já: foi um movimento civil de rei- Titãs para se tornar um dos prin- arte popular. São eles que incluirão vindicação por eleições presidenciais diretas cipais artistas brasileiros da con- no Brasil ocorrido em 1983-1984. A possibili- os Beatles, a arte pop, a alegria dade de eleições diretas para a Presidência da temporaneidade. Quando os Para- oswaldiana e a contracultura nas República no Brasil se concretizaria com a vo- lamas do Sucesso voltam-se para a rodas das esquerdas. E sempre com tação da proposta de Emenda Constitucional música brasileira. Dante de Oliveira pelo Congresso. Entretan- um senso de responsabilidade mui- to, a Proposta de Emenda Constitucional foi Enfim, ora explicitamente ora to grande diante do público, algo rejeitada, frustrando a sociedade brasileira. implicitamente, o tropicalismo de inédito no Brasil. A dupla não só Ainda assim, os adeptos do movimento con- agia, como também não se furtava quistaram uma vitória parcial em janeiro do Gil e de Caetano foi sempre uma ano seguinte quando Tancredo Neves foi elei- questão a ser debatida não só na a explicar as suas razões e os seus to presidente pelo Colégio Eleitoral. A ideia propósitos. de criar um movimento a favor de eleições di- cultura brasileira como também na retas foi lançada em 1983, pelo então senador política, ainda que por muitas ve- Nos anos 70, ambos irão enga- alagoano Teotônio Vilela no programa Canal zes preferiu-se acreditar que ela já jar-se em causas levantadas pela Livre da Rede Bandeirantes. A primeira ma- nifestação pública a favor de eleições diretas estava superada. contracultura. Questões de gênero, ocorreu no recém-emancipado município de raciais, homoafetivas, religiosas, Abreu e Lima, em Pernambuco, no dia 31 de IHU On-Line – Que história do rítmicas, tudo isso estará presen- março de 1983. Organizada por membros do te na obra desses artistas que mais Partido do Movimento Democrático Brasi- Brasil é contada ao longo dos 50 leiro (PMDB) no município, a manifestação anos de carreira de Caetano e Gil? pela micropolítica do que pela ma- foi noticiada pelos jornais do estado. Diver- Quais são as passagens mais mar- sas outras manifestações se seguiram a esta, 9 Centro Popular de Cultura (CPC): porém a que ganhou mais notoriedade públi- cantes da narrativa construída foi uma organização associada à União Na- ca foi a realizada em São Paulo, no Vale do pelos artistas? cional de Estudantes (UNE). Foi criado em Anhangabaú, no Centro da Capital, que co- 1961 no Rio de Janeiro, no Brasil. Foi extinto memorava seu aniversário – dia 25 de janei- Pedro Bustamante Teixeira – pelo Golpe de Estado no Brasil em 1964. Um ro. Mais de 1,5 milhão de pessoas se reuniram Advindo do que já se chamou de grupo de intelectuais de esquerda, com o ob- para declarar apoio ao Movimento das Dire- jetivo de criar e divulgar uma “arte popular tas Já. O ato foi liderado por Tancredo Neves, segunda geração da bossa nova, revolucionária”, reuniu artistas de diversas Franco Montoro, Orestes Quércia, Fernando Caetano Veloso e Gilberto Gil, áreas, como teatro, música, cinema, literatu- Henrique Cardoso, Mário Covas, Luiz Inácio primeiramente, operaram para ra e artes plásticas, para defender o caráter Lula da Silva e Pedro Simon, além de artistas coletivo e didático da obra de arte, bem como e intelectuais engajados pela causa. (Nota da assegurar importância da bos- o engajamento político do artista. (Nota da IHU On-Line) sa nova para além da ideologia IHU On-Line)

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cropolítica detonariam um proces- bem à geração dos anos 90, acom- para, como diz Caetano: “manter so de abertura mental e corporal panhando Marisa Monte, os Para- o sol no centro do céu”. Significa que, por outros caminhos, também lamas do Sucesso e outros. Agora, também desconfiar dos pares opo- levarão à abertura política. Se a justo agora, estão os dois juntos sitivos, para desconstruir dogmas e ditadura, como já afirmam muitos encerrando uma turnê internacio- hegemonias culturais. E significa, historiadores, não foi só militar, e nal no Brasil em que comemoram antes de tudo, zelar pela liberdade sim civil-militar, os questionamen- 50 anos de carreira. de experimentação artística, geral tos micropolíticos e comportamen- e irrestrita. Significa zelar pela be- Enfim, a vida desses artistas é de tais levantados pela dupla também leza da arte nacional ao longo do uma coragem, de uma entrega co- terão sua importância no processo tempo, que se dá por acolher e não movente. O artista não é esse que se de reabertura. Como diz a canção: por expelir outras culturas. permite viver o que deveria de fato “pipoca ali, aqui, pipoca lá, desa- ser vivido? É por isso que assim o são, noitece e amanhã tudo mudou”. por todos nós que não o somos. IHU On-Line – De que maneira Nos anos 80, já com carreiras in- a ousadia e sensibilidade artística ternacionais mais sólidas, acompa- de Caetano e Gil para influências IHU On-Line – O que representa culturais diversas do Brasil e de nhariam de perto o surgimento do para a carreira de Caetano e Gil 10 outros países vêm contribuindo BRock e serviriam de inspiração o posicionamento político con- para muitos artistas que se propu- ao longo dos 50 anos de carreira testatório (questionador tanto da dos dois artistas para o cenário nham a ir além do rock ou além da direita quanto da esquerda) que MPB. Nos anos 90, saudaram com cultural brasileiro? eles sempre tiveram (a despeito entusiasmo o sucesso do samba- de não sobreporem a política à Pedro Bustamante Teixeira – reggae, o ressurgimento dos blocos arte)? Ousadia e sensibilidade regeram a afro, participariam ativamente na vida de Caetano e de Gil ao longo recuperação da Tropicália, e sem- Pedro Bustamante Teixeira – A de todos esses anos. No entanto, é pre em frente, iriam, ambos, se dificuldade de se entender -os po a partir da ruptura tropicalista que tornando cada vez mais famosos no sicionamentos políticos de Caeta- se acentuam os aspectos que lhes mundo. no e de Gil é a mesma que se tem diferenciariam dos outros composi- para entender a Tropicália ou, ex- Em 2006, o Caetano sério do iní- tores da MPB. O rompimento com pandindo, a contracultura. A socie- cio dos anos 2000 rejuvenesce e um padrão estético nacionalista, 54 dade contemporânea ainda não se sorri com a Banda Cê, e Gil investe o livre fluxo entre as ideologias acostumou a viver para além dos na excelência de sua música, repe- de então, a presença de um jeito binarismos clássicos. Querem o tindo aquilo que Caetano fizera no de corpo, masculino e feminino, sim ou o não. Isso ou aquilo. À es- final dos anos 90 com a regência de o flerte com o mundo, enfim, faz querda ou à direita. Não admitem Jacques Morelembaum, já que an- aparecer o protótipo de um novo o talvez, o isso e aquilo ou, o que tes de Caetano, integrara-se muito homem, de uma nova mulher, de seria mais trágico ainda, o nem isso um novo artista. É esse novo artis- 10 BRock: denominação dada por Nelson nem aquilo. Ou seja, não se admite ta que servirá de modelo para uma Motta, para o período dos anos 80 em que senão o preconcebido, o já dado. leva de artistas que vem, dentre novas bandas brasileiras surgiram, sob in- Mas Caetano e Gil não se furtam eles os Novos Baianos, Ney Mato- fluência principal de bandas dos anos 70. A efervescência que cursava nos primeiros anos de pensar, mesmo em público. Mais grosso, Djavan, Cazuza, Marisa da década e o fim da ditadura foram os princi- importante que o resultante de um Monte e Adriana Calcanhotto. pais motivos que propiciaram o renascimento determinado raciocínio é o pró- do rock, com integrantes que até então eram jovens impedidos de falar e com os anos 80 prio e explícito ato de pensar. De IHU On-Line – Que canções puderam se expressar. É caracterizado por pensar o movimento, não o todo. dos dois artistas você destacaria influências variadas, indo do new wave, pas- Porque mesmo o todo é regido pelo como as mais representativas na sando pelo punk e o próprio conteúdo pop “tempo, tempo, tempo, tempo”11 emergente do final da década de 70. Ainda trajetória dos 50 anos de carreira assim, em alguns casos, tomou por referência de Caetano ou pelo “eterno deus de ambos? Por quê? ritmos como o reggae e a soul music. Suas le- mudança”12 de Gil. Assim o que tras falam na maioria das vezes sobre amores vale para a vida, vale para a arte, Pedro Bustamante Teixeira – perdidos ou bem-sucedidos, não deixando de vale para a política, nessa ordem e Acredito que seja muito compli- abordar algumas temáticas sociais. O grande cado destacar as canções mais re- diferencial das bandas deste período era a não ao contrário. capacidade de falar sobre estes assuntos sem presentativas na trajetória deles, deixar a música tomar um peso emocional ou Ser tropicalista significa estar em se fosse para dizer alguns discos político exagerados. Fora a capacidade que movimento, para ser vários sendo o já seria bem complicado, canções seus integrantes tinham de falar a respeito mesmo. Na medida em que o tem- de quase tudo com um tom de ironia, outra então... Mas, arriscando um pou- característica marcante do movimento. Outra po passa é preciso reposicionar-se co, diria que a recente “Não Tenho particularidade típica foi o visual próprio da Medo da Morte” (2008) de Gilberto época, cabelos armados ou bastante curtos 11 Canção “Oração ao tempo”, de Caetano Ve- Gil apresenta muito bem um pro- para as meninas, gel, roupas coloridas e ex- loso, 1970. (Nota da IHU On-Line) travagantes para os meninos. (Nota da IHU 12 Canção “O eterno Deus Mu Dança”, de Gil- cesso de composição seu, bem filo- On-Line) berto Gil, 1989. (Nota da IHU On-Line) sófico, que representa ainda assim

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apenas uma faceta de sua obra. etano e Gil são reconhecidos e cul- ou da dor esperançosa da canção Já para Caetano, é impossível não tuados como grandes artistas. de protesto. pensar em “Quereres”13, para ten- tar dar conta de sua maneira sin- IHU On-Line – Em um de seus IHU On-Line – Você menciona gular de pensar, e na poesia de estudos, você menciona que “Os que a Tropicália foi o primeiro 14 “Ciúme” e de “Terra” (1968). Mutantes em 1967 abriam cami- movimento a apontar uma saída nho para um devir-rock à música essencialmente contracultural e, IHU On-Line – Como se dá a re- e à poesia de Caetano”. Poderia sobretudo, artística, para o con- lação de Caetano e Gil com outros texto político entre as décadas de artistas do cenário cultural bra- 1960 e 1970. O que representou sileiro e internacional ao longo essa alternativa em termos políti- desses anos de carreira? cos e culturais para o cenário bra- sileiro da época? Ela se reflete de Pedro Bustamante Teixeira – Ousadia e sen- alguma maneira atualmente? Após o rompimento tropicalista, que é claro, deixou algumas rusgas, sibilidade rege- Pedro Bustamante Teixeira – Na tanto Gil quanto Caetano caminha- época a Tropicália representou um ram para uma harmonia cada vez ram a vida de rompimento. Quebra de paradig- maior com seus pares no cenário Caetano e de Gil ma. Instauração de um novo pro- nacional. Ainda que se negassem ao blema numa época de crise. Isto tropicalista alguns espaços na es- ao longo de to- é, uma época que, para alguns, a querda mais tradicional, fora dela a dos esses anos inserção de uma outra questão pa- simpatia era quase total. Sobretudo recerá inapropriada, e para outros, a partir da prisão e do exílio, quan- urgente. Para as esquerdas uma do se tornavam heróis nacionais. Por falar um pouco sobre o que sig- traição que só será perdoada com outro lado, Caetano e Gil sempre se nifica essa influência no traba- a prisão e o exílio. Contudo, como entusiasmaram pelo novo, e assim, lho tanto de Caetano quanto dos essa história não termina com o jamais adotaram atitudes reativas Mutantes? perdão das esquerdas, fatalmente para com os artistas vindouros. as mesmas diferenças se sobressal- Pedro Bustamante Teixeira – tariam e novos confrontos ideológi- Quanto à influência internacio- 55 Até o contato com Caetano e Gil, cos se instaurariam por conta dessa nal, somente agora podemos ob- Os Mutantes eram uma banda de eterna desafinação entre as partes. servar alguns reflexos da Tropicália rock ‘n’ roll antinacionalista que Pois aceitar o perdão não significa em artistas como Devendra Banhart compunha em inglês. Como já dis- se juntar ao algoz, a paz entre as e Beck. A conjuntura nacional não se Rita Lee, Caetano e Gil foram partes não silenciará as vozes, nem permitiu ao tropicalismo voos se- mostrando a eles como poderiam de um lado, nem de outro. melhantes aos da bossa nova, e a fazer o que faziam em português. saída para o exílio de Caetano e Concomitantemente, os Mutantes Mais recentemente, quando Gil de Gil não significou, apesar das mostravam a Caetano e Gil o lifes- é convidado pelo presidente Lula a tentativas, a consagração interna- tyle rock ‘n’ roll que eles, até en- assumir, em seu primeiro mandato, cional desses artistas. Então o que tão, jamais haviam presenciado. A o Ministério da Cultura, o músico poderia ter se dado concomitan- partir do tropicalismo, Os Mutantes faz questão de destacar, afastando temente ao movimento, só viria a começavam a se sentir novamente a hipótese de um estranho conluio se dar muito depois nos “estranhos brasileiros, e poderiam até mesmo político: “saibam que quem vai anos 90”. Contudo, hoje, nos pa- fazer música popular. Sem o rock comandar o Ministério da Cultu- íses lusófonos, na Inglaterra, nos de Os Mutantes, dificilmente os ra é um tropicalista”. Ou seja, há EUA e no Japão, e em boa parte baianos Caetano e Gil teriam as sempre um descompasso, que con- dos países de língua neolatina, Ca- credenciais para adentrarem em sidero sadio, entre a Tropicália e as mundo novo que não lhes perten- esquerdas que foi, é e continuará 13 Canção de Caetano Veloso, “O Quereres”, cia ainda, e assim seria bem mais sendo essencial para o amadureci- 1984. (Nota da IHU On-Line) 14 Canção de Caetano Veloso, “O Ciúme”, complicado ir muito além do oti- mento de um pensamento cultural 1987. (Nota da IHU On-Line) mismo melancólico da bossa nova e político no Brasil e no mundo.

■ LEIA MAIS... —— Um movimento libertário? Entrevista especial com Pedro Bustamante Teixeira, publicada na revista IHU On-Line, nº 411, de 10-12-2012, disponível em http://bit.ly/1Gvlcqi; —— O samba como símbolo de brasilidade. Entrevista especial com Pedro Bustamante Teixeira, pu- blicada na revista IHU On-Line, nº 380, de 14-11-2011, disponível em http://bit.ly/1MgsxWK.

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Caetano e Gil: Uma trajetória de construção utópica e autorreflexiva do Brasil Para Frederico Oliveira Coelho, a obra dos artistas pensa e conta a história do país e expressa o anseio por uma nação vanguardista

Por Leslie Chaves

versatilidade e a ousadia artís- uma concepção arrojada de nação, mas tica sempre permearam as car- simultaneamente atenta às adversida- A reiras de Gilberto Gil e Caetano des. “A grande contribuição de ambos Veloso. De acordo com Frederico Olivei- foi por uma política da diversidade de ra Coelho, esse perfil fez com que a arte gêneros, etnias e opiniões. Caetano e de ambos circulasse em espaços bastan- Gil assumiram uma sexualidade dúbia te diversos da cultura. Eles “transitaram e reivindicaram a cultura africana no durante boa parte de sua carreira entre Brasil e a cultura negra brasileira como os públicos sofisticados e populares. Não base de seus trabalhos. Se há uma ‘his- só atuaram no âmbito massivo da música tória do Brasil’ contada nessas trajetó- popular brasileira – isto é, o rádio, a te- rias, é a história de um país sempre em 56 levisão e a indústria fonográfica –, como construção utópica pelo viés da diferen- sempre estiveram próximos de repertó- ça e sempre autorreflexivo na consciên- rios de vanguarda através de conversas, cia de suas mazelas e limites”, aponta. trabalhos e relações com intelectuais ligados à poesia concreta, ao cinema Frederico Oliveira Coelho é graduado experimental, à poesia, à literatura e em História e mestre em História Social às artes visuais”, explica o professor em pela Universidade Federal do Rio de Ja- entrevista por e-mail à IHU On-Line. neiro – UFRJ e doutor em Literatura Bra- sileira pela Pontifícia Universidade Ca- Esse trânsito intenso entre diversas tólica do Rio de Janeiro – PUC-Rio. Atua áreas e públicos, o contato com varia- como pesquisador para documentários, das fontes de influências e ainda o en- gajamento político atento às demandas sítios eletrônicos, editoras e institui- dos diferentes momentos conjunturais ções culturais. Atualmente é professor do Brasil contribuíram para que Caetano dos cursos de graduação em Literatura e Gil construíssem carreiras sólidas em e Artes Cênicas e do Programa de Pós- âmbito nacional e internacional. “Todos -Graduação em Literatura, Cultura e esses elementos, aliados, claro, à quali- Contemporaneidade do Departamento dade dos seus trabalhos, fizeram deles de Letras da PUC-Rio. Entre suas publi- personagens centrais na formação cul- cações destacam-se Eu, brasileiro, con- tural brasileira do seu período”, confor- fesso minha culpa e meu pecado – cul- me ressalta Coelho. tura marginal no Brasil nas décadas de 1960 e 1970 (Rio de Janeiro: Civilização Para o professor e pesquisador, o al- Brasileira, 2010), Livro ou livro-me – os cance da obra desses dois artistas, in- escritos babilônicos de Hélio Oiticica dividual e coletivamente, chegou tanto (1971-1978) (Rio de Janeiro: Ed. UERJ, à cultura de massa quanto à Academia. 2010), Série Encontros – Tropicália (Rio Foi sobretudo a Tropicália a responsável de Janeiro: Azougue Editorial, 2008) e por abrir passagem no Brasil para infor- A MPB em discussão – Entrevistas (Belo mações acerca do que acontecia com Horizonte: UFMG, 2005). a juventude mundial e por ampliar o repertório cultural do país, a partir de Confira a entrevista.

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nês e são respeitados por nomes de peso em diferentes países.

IHU On-Line – As obras de Gil e Suas canções e opiniões torna- Caetano se influenciam recipro- camente? Como se dá e em que ram-se patrimônio pessoal de aspectos é possível se perceber milhões de ouvintes e temas de essa influência mútua? Frederico Oliveira Coelho – Sim, reflexões críticas no centro do desde o início dos dois, ainda nos pensamento acadêmico nacional primeiros anos de 1960, eles se tornaram amigos musicais, dividin- do repertórios, descobertas, tra- IHU On-Line – Qual a importân- dito, do massivo ao sofisticado. Isso balhos. Caetano sempre apontou a cia de Caetano e Gil para a for- compõe uma trajetória bem sólida, excelência musical de Gil como um mação da cultura brasileira na se- em que seus discos foram comen- motor que o ensinou bastante, as- gunda metade do século XX? Qual tando as mudanças mais importan- sim como Caetano foi sempre uma é o principal aspecto que lhes dá tes da sociedade e da cultura brasi- espécie de liderança natural, “or- notoriedade nesse contexto? leira e mundial. Desde o momento ganizando o movimento” das ações tropicalista no fim dos anos 1960, deles e do grupo de amigos mais Frederico Oliveira Coelho – passando pela fase internacional amplo ao redor dos dois. Em 1964, Creio que é difícil precisar exa- do exílio no início dos anos 1970, ainda em Salvador, ele já estava di- tamente a importância de dois mergulhando na relação da Bahia rigindo Gil, Gal, Bethânia e outros artistas que transitaram durante e da África com o Brasil, flertan- amigos no espetáculo “Nós, por boa parte de sua carreira entre os do com a black music através do exemplo”. Mas Caetano viu, em públicos sofisticados e populares. movimento Black Rio1, assumindo o casa, Gil cantar na televisão antes Não só atuaram no âmbito massivo rock pop dos anos 1980, se tornan- de se conhecerem. Quando vieram da música popular brasileira – isto do profissionais maduros nos anos para o Rio (Caetano) e São Paulo é, o rádio, a televisão e a indústria 1990 e lançando discos de forma (Gil), vieram por motivos distintos, fonográfica –, como sempre esti- ininterrupta até hoje, todos es- mas rapidamente se articularam 57 veram próximos de repertórios de ses fatos os colocam sempre como em amizades e trabalhos. São par- vanguarda através de conversas, referência entre diferentes gera- ceiros de canções, de discos, de trabalhos e relações com intelec- ções. No que diz respeito às suas projetos, de turnês, de famílias. É tuais ligados à poesia concreta, ao carreiras internacionais, também impossível que a obra de um não cinema experimental, à poesia, à são sólidas, apesar de em escala cause profundo impacto na obra do literatura e às artes visuais. Suas reduzida. Nunca foram pop stars outro. canções e suas opiniões tornaram- mundiais, mas sempre fizeram tur- -se patrimônio pessoal de milhões IHU On-Line – Que história do de ouvintes e temas de reflexões 1 Movimento Black Rio: surgido nos anos Brasil é contada ao longo dos 50 críticas que atingiram o centro do 1970, foi uma espécie de resposta a uma época de contestação, de luta por direitos anos de carreira de Caetano e Gil? pensamento acadêmico nacional. humanos, de uma procura involuntária por Quais são as passagens mais mar- Além disso, os dois, principalmen- uma identidade negra universal, com base cantes da narrativa construída te Gilberto Gil, nunca se furtaram no que os negros americanos reivindicavam e que os africanos recém-libertos do domínio pelos artistas? em participar dos desafios políticos colonial europeu se permitiam fazer em sua do país. Todos esses elementos, terra, após séculos de diáspora para Améri- Frederico Oliveira Coelho – aliados, claro, à qualidade dos seus ca e a própria Europa. O gênero que fundia a Uma história de um país que pre- trabalhos, fizeram deles persona- soul music ao samba ganhava uma projeção cisou, em poucas décadas, sair de inédita e transbordava e importava ideias: os gens centrais na formação cultural artistas burilavam suas canções, enquanto os uma condição rural, pré-industrial brasileira do seu período. adeptos em geral se espelhavam na luta pelos e arcaica para uma situação de direitos civis nos Estados Unidos para com- sociedade urbana, tecnológica e bater o preconceito racial. Os artistas negros de massa. Que teve de entender IHU On-Line – Como vêm se situ- tornaram-se subversivos por exibir orgulho como lidar com a demanda mo- ando ao longo do tempo as obras de sua cultura e cor. Não pretendiam, ne- cessariamente, se vincular à luta armada ou, derna de ruptura com a tradição de Caetano e Gil no cenário cul- apesar da importação de valores, aos Pante- e, simultaneamente, com a força tural brasileiro? E para além do ras Negras. A musicalidade era o ponto de tradicional da Nação. A geração Brasil? convergência daquela geração e a influência estrangeira surgiu como uma opção à MPB, de Gil e Caetano foi responsável Frederico Oliveira Coelho – Eles que não oferecia canais para ela se expressar. por pensar politicamente e esteti- sempre tiveram em estado de trân- Entretanto, com o período ditatorial a ação camente essa passagem dramática repressiva surtiu efeito neutralizador e o ím- sito entre extremos da divisão cul- peto e a atitude original se esvaíram. (Nota da dos anos 1950/1970 que o país vi- tural moderna, do popular ao eru- IHU On-Line) veu. Claro que um dos momentos

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culminantes e desencadeadores de O movimento surgiu esponta- mento de trabalho. Ambos dizem, conflitos que até hoje permane- neamente, por uma série de con- em entrevistas, que se tornaram cem no debate cultural brasileiro tingências e de uma tentativa da compositores mais concentrados e foi o breve momento tropicalista mídia e de críticos em sintetizar melhores músicos. Além disso, ti- de 1967/1968, em que os compo- em uma palavra – um ismo, bem ao veram a possibilidade de conviver sitores baianos e seus parceiros estilo das vanguardas modernas – a com a cena de rock mais intensa marcaram profundamente o ima- ação coletiva desses artistas. A im- do período que era a de Londres. ginário brasileiro ao nos mostrar portância do movimento também Viram shows de músicos no auge, nossas contradições nesse projeto já vem sendo debatida há décadas. foram aos grandes festivais como o moderno-conservador que sempre Foi marcante, pois despertou de- da Ilha de Wight2 e tudo isso contri- nos serviu de lastro para nos expli- bates, se espalhou pela cultura de buiu decisivamente para suas vidas carmos. O enfrentamento do com- massa e pela Academia, tornou-se e suas obras. ponente nacionalista presente nas tanto tema de camiseta quanto de teses, virou documentários, enfim, esquerdas de seu tempo, a aber- IHU On-Line – Como as obras de sua atuação em apenas dois anos tura das matrizes tradicionais da Gil e Caetano dialogam/se contra- se desdobrou em muitos outros canção para outras fontes inter- põem com outros estilos musicais eventos que reivindicaram ali a sua nacionais e industriais, o comen- que circulam no cenário cultural origem. Por ter sido responsável tário poético sobre uma sociedade brasileiro? Como se deram tais re- paralisada pelas benesses fugazes pela entrada sistemática de uma série de informações globalizadas lações ao longo dessas cinco dé- de um regime civil-militar, são cadas? Que momento (ou momen- temas fundamentais ao redor do sobre a juventude mundial em uma época que isso não ocorria no país, tos) o senhor destaca como mais período dos seus primeiros discos. marcante? No mais, a grande contribuição também contribuiu para a amplia- de ambos foi por uma política da ção do repertório cultural do país. Frederico Oliveira Coelho – diversidade de gêneros, etnias e Eles sempre foram antenas li- opiniões. Caetano e Gil assumiram gadas ao que circulava de mais uma sexualidade dúbia e reivindi- contemporâneo na sua época. caram a cultura africana no Brasil Ao mesmo tempo, sempre tive- e a cultura negra brasileira como São parceiros ram capacidade de articular as 58 base de seus trabalhos. Se há uma novidades com o repertório tra- “história do Brasil” contada nes- de canções, de dicional do cancioneiro nacional. sas trajetórias, é a história de um discos, de pro- e Bob Marley, João país sempre em construção utópi- Gilberto e Pixies, Stevie Wonder ca pelo viés da diferença e sempre jetos, de turnês, e Peninha, Black Rio e Racionais autorreflexivo na consciência de MCs, todos esses e muitos outros suas mazelas e limites. de famílias. É sons atravessam suas obras desde impossível que a o início. Na busca dessa lingua- gem universal e brasileira, algu- IHU On-Line – Como é a partici- mas experiências foram mais feli- pação de Gil e Caetano no Tropi- obra de um não zes que outras. Se nos anos 1980 calismo? De que forma participa- cause profun- a aproximação com o pop pasteu- ram da gênese e construção desse rizado das rádios não resultou em movimento? Qual a importância do impacto na discos potentes, nos dias atuais desse movimento nas carreiras obra do outro ambos apresentam trabalhos pro- de ambos e na história brasileira? vocadores e que não são óbvios. Frederico Oliveira Coelho – Essa Como fã, o momento mais feliz participação está amplamente ma- IHU On-Line – De que forma a foram os anos 1970, em que suas peada em inúmeros trabalhos de experiência do exílio de Caetano ideias estavam em diálogo com todos os tipos e qualidades que e Gil aparece em suas obras? uma série de experimentações e foram feitos ao longo dos últimos Frederico Oliveira Coelho – Di- 50 anos. Os dois são fundadores de 2 Festival da Ilha de Wight: (The Isle of retamente nas suas letras e nos Wight Festival) é um festival musical que uma ideia que teve parceiros fun- discos que fizeram no exílio (cada acontece anualmente na Ilha de Wight, In- damentais para que fosse concebi- um gravou dois discos em Londres). glaterra. Foi realizado originalmente entre da e executada. O talento de am- Comentaram de formas bem distin- 1968 e 1970, respectivamente em Ford Farm (próximo a Godshill), Wootton e Afton Down bos se junta ao talento de jovens tas o fato, em que Caetano assumiu (próximo a Freshwater). A edição de 1970 foi como Torquato Neto, José Carlos um viés melancólico e nostálgico e de longe a maior e mais famosa dos primeiros Capinam, Rogério Duarte, Rogerio Gil assumiu um viés universalista festivais desse estilo. O evento foi retomado Duprat, Os Mutantes, Hélio Oiti- e afirmativo. Essas diferenças- fi em 2002 no Seaclose Park, um local de re- creação nos arredores de Newport. Tem sido cica, Rubens Gerchman e muitos caram evidentes também na rela- realizado anualmente desde então. (Nota da outros. ção dos dois com o violão, instru- IHU On-Line)

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renovações temáticas da música Frederico Oliveira Coelho – São públicos sempre aguardam deles e da cultura em geral. Mesmo as- muitos públicos para quem está há provocações, qualidade, inventi- sim, é difícil dizer que momento meio século trabalhando. A rela- vidade e, ao mesmo tempo, ma- é mais marcante que outro, pois ção sempre foi positiva, calcada nutenção do mesmo – como ocor- toda a trajetória deles é coesa e na formação de um corpo de can- re com qualquer clássico forjado de extrema qualidade. ções incontornáveis no imaginário na lógica da ruptura. Assim, cada nacional do século XX. Suas letras um ao seu modo, eles continuam e melodias passam de pais para fi- ampliando e renovando públicos – IHU On-Line – De que maneira lhos, frequentam escolas em todas seja Caetano com sua guinada ao o senhor avalia a relação de Cae- as idades, fazem parte de trilhas power trio dos últimos três discos, tano e Gil com o público? De que sonoras infantis, são estudadas na seja Gil se envolvendo diretamen- forma foi sendo construído o pú- universidade, tornaram-se stan- te no planejamento e execução blico desses artistas? Que perfil dards da história de nossa músi- de novas políticas culturais para de público eles tiveram e têm ao ca, enfim, são obras que estão na a juventude e os múltiplos povos longo dos 50 anos de carreira? corrente sanguínea de todos. Seus brasileiros.

■ LEIA MAIS... —— Tropicalismo, “força fatal” da música popular. Entrevista especial com Frederico Oliveira Coelho publicada na revista IHU On-Line, nº 411, de 10-12-2012, disponível em http://bit. ly/1k7nZLV —— A música na Semana de Arte Moderna: fluidez entre o erudito e o popular. Entrevista espe- cial com Frederico Oliveira Coelho publicada na revista IHU On-Line, nº 395, de 04-06-2012, disponível em http://bit.ly/1Mq693p

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A fluidez artística entre as estruturas Alexandre Faria destaca a habilidade de Caetano e Gil em perambular entre estilos musicais e posições políticas que se polarizam

Por Leslie Chaves e João Vitor Santos

aetano Veloso e Gilberto Gil ensão coletiva, a ideia de povo, mas a surgem em um momento de reafirmação de um individualismo em C“popularização e massificação liberdade, o que é, até hoje, potente no Brasil do projeto estético e políti- e necessário frente às ondas de con- co do modernismo literário”, destaca servadorismo que avançam no Brasil”, o professor de Literatura Alexandre explica o professor. Na entrevista, con- Faria. Entretanto, entende que o su- cedida por e-mail à IHU On-Line, Fa- cesso dos dois pode ser atribuído à ria ainda destaca o domínio e trabalho habilidade de não se aterem apenas empregado pelos artistas na compo- a um estilo ou mesmo a uma posição sição e interpretação das letras. Eles política única. Ao mesmo tempo que concebem cada música de forma mui- absorviam novidades estéticas, não se tíssimo particular. “A variedade de gê- colocavam como alternativos, respon- neros musicais em que ambos investem dendo também a demandas do merca- é a prova de uma pesquisa detalhada do fonográfico. “Talvez o aspecto que sobre a melhor maneira de cantar uma 60 melhor tenha garantido a notoriedade letra ou de pôr letra numa canção”. de Caetano e Gil nesse panorama tão Alexandre Faria é professor de Li- rico tenha sido a habilidade que ambos teratura no Departamento de Letras – tiveram para entrar e sair das estrutu- ICHL da Universidade Federal de Juiz ras. A Bossa Nova, o CPC/UNE, a Jovem de Fora, em Minas Gerais. Graduado Guarda/Ieieiê, forças que se polariza- em Letras pela Universidade do Estado vam naquela segunda metade dos anos do Rio de Janeiro – UERJ, é mestre em 1960, foram todas visitadas pelos par- Literatura Brasileira na PUC-Rio. Publi- ceiros baianos, que, no entanto, não se cou o livro Literatura de subtração: ex- comprometeram com nenhuma delas”, periência urbana e literatura contem- destaca. porânea (Rio de Janeiro: Papel Virtual, Faria reconhece que o trabalho dos 1999), resultante de sua dissertação artistas é banhado por questões políti- de mestrado. Em 1998, ingressou no cas. O que não quer dizer que assumis- doutorado em Letras, também na PUC- sem a postura dura de resistência. “As -Rio. Desenvolveu pesquisa sobre a re- presentação da identidade nacional na canções que envolvem o projeto tropi- cultura brasileira contemporânea, que calista não são absolutamente canções resultou na tese “O Brasil presente: de protesto, embora tenham um espí- construções-ruínas do imaginário na- rito de contestação, no plano mais am- cional contemporâneo”. plo, dos valores e comportamentos da época. Não há, no entanto, uma apre- Confira a entrevista.

IHU On-Line – Qual a importân- Alexandre Faria – Talvez, a me- nem na esfera musical. Sem falar cia de Caetano e Gil para a for- lhor maneira de pensar essa ques- nos compositores da 2ª Geração mação da cultura brasileira na se- tão seja imaginar Caetano e Gil da Bossa Nova, que também des- gunda metade do século XX? Qual como pessoas certas na hora certa. é o principal aspecto que lhes dá Mas não foram os únicos no cená- pontavam nos festivais, na própria notoriedade nesse contexto? rio cultural brasileiro dos anos 60, onda tropicalista figuras como Tom

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Guimarães Rosa9, Clarice Lispec- tor10 e outros autores modernis- tas. Se a Tropicália11 radicalizou O tempo deixa claro que a al- 9 João Guimarães Rosa (1908-1967): escritor, médico e diplomata brasileiro. Como escritor, criou uma técnica de lingua- ternativa tropicalista foi mui- gem narrativa e descritiva pessoal. Sempre considerou as fontes vivas do falar erudito to mais eficiente na articula- ou sertanejo, mas, sem reproduzi-las num realismo documental, reutilizou suas estru- ção entre política e estética turas e vocábulos, estilizando-os e reinven- tando-os num discurso musical e eficaz de grande beleza plástica. Sua obra parte do regionalismo mineiro para o universalismo, Zé1, Rogério Duprat2, Rogério Du- e massificação no Brasil do projeto oscilando entre o realismo épico e o mágico, arte3, Os mutantes4, entre outros, estético e político do modernismo integrando o natural, o místico, o fantásti- co e o infantil. Entre suas obras, citamos: foram importantes na constitui- literário. Sagarana, Corpo de baile, Grande sertão: ção desse contexto a que nos re- veredas, considerada uma das principais ferimos. É um contexto que, em Momento em que artistas li- obras da literatura brasileira, Primeiras linhas gerais, pode ser pensado gados à canção popular, ao ci- estórias (1962), Tutameia (1967). A edi- ção 178 da IHU On-Line, de 02-05-2006, como o momento de popularização nema, ao teatro, à televisão dedicou ao autor a matéria de capa, sob o (incipiente naquele momento) título “Sertão é do tamanho do mundo”. 1 Antônio José Santana Martins – Tom 50 anos da obra de João Guimarães Rosa, Zé (1936): é um compositor, cantor, arran- desenvolvem suas linguagens disponível para download em http://migre. jador e jardineiro brasileiro. É considerado a partir do profícuo diálogo me/qQX8. De 25 de abril a 25-05-2006 o uma das figuras mais originais da música po- IHU promoveu o Seminário Guimarães 5 pular brasileira, tendo participado ativamen- com Oswald e Mário de Andra- Rosa: 50 anos de Grande Sertão: Veredas. te do movimento musical conhecido como de6, com os romancistas de 30, Confira, ainda, a edição 275 da revista IHU Tropicália nos anos 1960 e se tornado uma On-Line, de 29-09-2008, intitulada Ma- 7 8 voz alternativa influente no cenário musical com Drummond , João Cabral , chado de Assis e Guimarães Rosa: intér- do Brasil. (Nota da IHU On-Line) pretes do Brasil, disponível em http://bit. 2 Rogério Duprat (1932-2006): 5 José Oswald de Sousa Andrade (1890- ly/mBZOCe. (Nota da IHU On-Line) compositor e maestro brasileiro. Um dos 1954): escritor, ensaísta e dramaturgo brasi- 10 (1920-1977): escri- maiores responsáveis pela ascensão da leiro. Foi um dos promotores da Semana de tora nascida na Ucrânia. De família judaica, Tropicália, personalizando o som do então Arte Moderna de 1922 em São Paulo, tornan- emigrou para o Brasil quando tinha apenas 61 emergente movimento musical com arranjos do-se um dos grandes nomes do modernismo dois meses de idade. Começou a escrever bem elaborados, criativos e perfeitamente literário brasileiro. Foi considerado pela crí- logo que aprendeu a ler, na cidade de Reci- antenados com as tendências internacionais tica como o elemento mais rebelde do grupo. fe. Em 1944 publicou seu primeiro roman- da época. (Nota da IHU On-Line) (Nota da IHU On-Line) ce, Perto do coração selvagem. A literatura 3 Rogério Duarte Guimarães (Ubaíra, 6 Mário Raul de Moraes Andrade (1893- brasileira era nesta altura dominada por 10 de abril de 1939): Intelectual multimédia 1945): poeta, escritor, crítico literário, musi- uma tendência essencialmente regionalis- baiano, Rogério Duarte é artista gráfico, mú- cólogo, folclorista, ensaísta brasileiro. Ele foi ta, com personagens contando a difícil re- sico, compositor, poeta, tradutor e professor. um dos pioneiros da poesia moderna brasi- alidade social do país na época. Lispector Nos anos 60 mudou-se para o Rio de Janeiro, leira com a publicação de seu livro Pauliceia surpreendeu a crítica com seu romance, onde trabalhou como diretor de arte da UNE e Desvairada em 1922. Andrade exerceu uma quer pela problemática de caráter existen- da Editora Vozes. Foi o autor de vários carta- grande influência na literatura moderna bra- cial, completamente inovadora, quer pelo zes para filmes de seu amigo , sileira e, como ensaísta e estudioso – foi um estilo solto elíptico, e fragmentário, remi- como Deus e o diabo na terra do sol (símbo- pioneiro do campo da etnomusicologia – sua niscente de James Joyce e Virginia Woolf, lo do cinema nacional), Terra em transe e A influência transcendeu as fronteiras do Bra- ainda mais revolucionário. Seu romance idade da terra. Também criou, para este úl- sil. (Nota da IHU On-Line) mais famoso embora menos característico timo, a trilha sonora. Entre os vários artistas 7 Carlos Drummond de Andrade (1902- quer temática quer estilisticamente, é A com os quais colaborou, contam-se Gilberto 1987): poeta brasileiro, nascido em Minas hora da estrela, o último publicado antes Gil, Caetano Veloso, João Gilberto, Gerais. Além de poesia, produziu livros in- de sua morte. Este livro conta a vida de Ma- e Gal Costa. Considerado um dos mentores fantis, contos e crônicas. Confira a edição 232 cabéa, uma nordestina de Alagoas que vai intelectuais do movimento tropicalista, Rogé- da revista IHU On-Line, de 20-08-2007, morar no Rio de Janeiro, em uma pensão, rio foi também um dos primeiros a ser preso intitulada Carlos Drummond de Andrade: o tendo sua vida descrita por um escritor fic- e a denunciar publicamente a tortura no regi- poeta e escritor que detinha o sentimento do tício chamado Rodrigo S.M. Sobre a autora, me militar. Preso juntamente com seu irmão mundo, disponível em http://bit.ly/1beJjIJ. confira a edição 228 da IHU On-Line, de Ronaldo Duarte, o caso mobilizou artistas e (Nota da IHU On-Line) 16-07-2008, intitulada Clarice Lispector. mereceu ampla divulgação no jornal carioca 8 João Cabral de Melo Neto (1920-1999): Uma pomba na busca eterna pelo ninho, Correio da Manhã, que publicou uma carta poeta e diplomata brasileiro. Sua obra poéti- disponível para download em http://migre. coletiva pedindo a libertação dos “Irmãos ca, caracterizada pelo rigor estético, com poe- me/qQHT. (Nota da IHU On-Line) Duarte”. (Nota da IHU On-Line) mas avessos a confessionalismos e marcados 11 Tropicalismo, Movimento tropica- 4 Os Mutantes: banda psicodélica brasilei- pelo uso de rimas toantes, inaugurou uma lista ou Tropicália: movimento cultural ra formada em 1966, em São Paulo, por Rita nova forma de fazer poesia no Brasil. Mem- brasileiro que surgiu sob a influência das Lee (vocais), Sérgio Dias (guitarra, vocais) e bro da Academia Pernambucana de Letras e correntes artísticas de vanguarda e da cultura Arnaldo Baptista (baixo, teclado, vocais). De- da Academia Brasileira de Letras, foi agra- pop nacional e estrangeira (como o pop-rock pois de quase trinta anos ausentes dos palcos, ciado com vários prêmios literários. Confira e o concretismo) misturou manifestações o grupo retorna em 2006 com sua formação a edição 310 da revista IHU On-Line, de tradicionais da cultura brasileira a inovações clássica, exceção feita a Rita Lee, que não 05-10-2009, intitulada A secura do sertão estéticas radicais. Tinha objetivos comporta- aceitou voltar ao grupo. A cantora Zélia Dun- nos versos de João Cabral de Melo Neto, mentais, que encontraram eco em boa parte can chegou a integrar a banda nesse período. disponível para download em http://bit. da sociedade, sob o regime militar, no final da (Nota da IHU On-Line) ly/1P9KBqL. (Nota da IHU On-Line) década de 1960. O movimento manifestou-se

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programaticamente a aposta na IHU On-Line – Que história do contorno étnico-social que valoriza interseção entre as tradições Brasil é contada pelas letras das a diferença em detrimento do pro- arcaicas e a modernidade indus- canções ao longo dos cinquenta jeto nacional que buscava alguma trial na cultura brasileira, este anos de carreira de Caetano e forma de unidade fundamentada aspecto estará presente, em ou- Gil? Quais são as passagens mais na diversidade. tra medida, nas diversas produ- marcantes da narrativa construí- Caetano e Gil são autores de pro- ções não tropicalistas do período. da pelos artistas? jetos de interpretação do Brasil, Nesse sentido, talvez o aspecto Alexandre Faria – O fato de es- que estão explícitos em canções- que melhor tenha garantido a no- tarem atuando sempre na tensão -manifesto como “Tropicália” (Ve- toriedade de Caetano e Gil nes- entre as demandas comerciais e os loso) e “Geleia Geral” (Gil e Tor- se panorama tão rico tenha sido anseios de um projeto estético e quato Neto), ou em “Haiti” (da a habilidade que ambos tiveram político, pode-se dizer que os ar- dupla), que justamente por esse para entrar e sair das estruturas. tistas (e nesse caso não só Caetano aspecto, apesar de constituir-se A Bossa Nova, o CPC/UNE12, a Jo- e Gil, mas todos os ligados a essa pela linguagem do RAP, difere do vem Guarda/Ieieiê13, forças que geração que tiveram e têm um pa- RAP típico, do que chamei “voz se polarizavam naquela segun- pel preponderante junto ao públi- da comunidade”, por representar da metade dos anos 1960, foram co e ao mercado) constituem a si o preto/pobre como o outro e não todas visitadas pelos parceiros mesmos como personagens. Com- como o eu. Quando o refrão afirma baianos, que, no entanto, não se positores de canções, parceiros de e nega que o Haiti é/não é aqui (ci- comprometeram com nenhuma outros músicos afinados com seus tando outra canção de Caetano “o delas. Da mesma maneira que, ao projetos, e capazes de circular em Havaí que seja aqui”), este “aqui” longo da carreira, não se negaram refere-se à nação brasileira. O eu às demandas do mercado fono- que surge nas canções de Caetano gráfico e cultural nem somente se e Gil, nas canções que manifestam renderam a ele. esse projeto político, coloca-se principalmente na música (cujos maiores (Caetano e Gil) como o cantor (crítico, é claro) do representantes foram Gilberto Gil, Torquato Brasil. Neto, Os Mutantes e Tom Zé); manifestações artísticas diversas, como as artes plásticas Tornam-se Enfim, Caetano e Gil criaram e (destaque para a figura de Hélio Oiticica), o representam personagens que são 62 cinema (o movimento sofreu influências e in- herdeiros dos fluenciou o Cinema novo de Glauber Rocha) e leitores do Brasil, como tantos ou- o teatro brasileiro (sobretudo nas peças anár- modernistas tros de sua geração. Isso só foi pos- quicas de José Celso Martinez Corrêa). Um sível graças ao legado modernista dos maiores exemplos do movimento tropi- da primeira calista foi uma das canções de Caetano Velo- de que são herdeiros diretos. O que so, denominada exatamente de “Tropicália”. metade do se coloca hoje em dia é se isso ain- Leia a edição 411, intitulada Tropicalismo. O da é possível para um artista. desejo de uma modernidade amorosa para o século XX Brasil, disponível em http://bit.ly/ihuon411. (Nota da IHU On-Line) IHU On-Line – De que modo o 12 Centro Popular de Cultura (CPC): foi diversas estruturas da indústria fo- senhor avalia as letras das can- uma organização associada à União Nacional de Estudantes (UNE), criado em 1961, no Rio nográfica, do mercado, do mains- ções compostas por Gil e Caeta- de Janeiro. Foi extinto pelo Golpe de Estado tream, tornam-se personagens que no durante o período ditatorial no Brasil em 1964. Um grupo de intelectuais interpretam a si mesmos enquanto no Brasil, em que os artistas de esquerda, com o objetivo de criar e divul- gar uma “arte popular revolucionária”, reu- artistas, portadores de uma voz se posicionavam politicamen- niu artistas de diversas áreas, como teatro, privilegiada que pode ser difundi- te contra esse sistema e eram música, cinema, literatura e artes plásticas, da como leitura e interpretação do constantemente vigiados pela para defender o caráter coletivo e didático da censura? obra de arte, bem como o engajamento políti- Brasil. co do artista. (Nota da IHU On-Line) Também nesse sentido, tornam- Alexandre Faria – Caetano e Gil 13 Jovem Guarda: movimento cultural brasileiro surgido em meados da década de -se herdeiros dos modernistas da praticamente não fizeram a can- 1960, que mesclava música, comportamento primeira metade do século XX, mo- ção de protesto típica dos anos e moda. Surgida em agosto de 1965, a partir mento em que o autor e o intelec- 60/70. É claro que haverá uma ou de um programa televisivo exibido pela TV Record, em São Paulo, apresentado pelo can- tual colocam sua obra em função outra exceção, das quais me lem- tor e compositor Roberto Carlos, juntamente da ideologia nacional. São artistas bro agora de “Roda” (Gil e João com o também cantor e compositor Erasmo diametralmente diferentes dos Augusto). Mas as canções que en- Carlos e da cantora Wanderléa, a Jovem Guarda deu origem a toda uma nova lingua- que, no BRock anos 80, embalados volvem o projeto tropicalista não gem musical e comportamental no Brasil. Sua pela onda Punk, escapam pelo do it são absolutamente canções de alegria e descontração transformaram-na em yourself; ou dos que, como no RAP, protesto, embora tenham um es- um dos maiores fenômenos nacionais do sé- a partir dos anos 90, começaram a pírito de contestação, no plano culo XX. Sua principal influência era o rock and roll do final da década de 1950 e início representar “a voz da comunida- mais amplo, dos valores e com- dos 1960. (Nota da IHU On-Line) de”, num movimento de evidente portamentos da época. Não há, no

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entanto, uma apreensão coletiva, mento militar. Lida longe do calor da canção. Por isso, falar de uma a ideia de povo, mas a reafirmação da hora, a canção de Vandré é uma poesia, isoladamente, deixaria a de um individualismo em liberda- convocação para um alinhamento à desejar em se tratando da leitura de, o que é, até hoje, potente esquerda. de suas canções. Mas consideran- e necessário frente às ondas de O tempo deixa claro que a alter- do a letra que fazem, é tentador, conservadorismo que avançam no nativa tropicalista foi muito mais para o crítico – e muitos o fazem Brasil. eficiente na articulação entre- po – deslocá-los para o lugar do poe- Quando a personagem da canção lítica e estética, na compreensão ta. Não que seja mais importante, “Alegria, alegria” (Caetano) diz ou melhor, ser poeta do que letris- “Eu vou... sem livros e sem fuzil”, ta. São trabalhos diferentes. Mas demarca exatamente uma posição o trato que Caetano e Gil dão à de quem não se alinha nem aos letra demonstra, quase sempre, militares no poder (fuzil) nem ao Caetano e uma habilidade que ultrapassa, e CPC/UNE (livros). Outros gestos, às vezes iguala-se, a de letristas demarcados na canção, como “eu Gil criaram e que são unanimemente considera- tomo uma Coca-Cola” são arre- dos ótimos. dios ao projeto anti-imperialista representam de esquerda. Caetano Veloso fará Isso é um diferencial da dupla uma canção de protesto mais tí- personagens que talvez só encontre equiva- pica muito tardiamente, nos anos que são leitores lência em alguns outros nomes, 1980, que é “Podres poderes”. Há todos mais ou menos da mesma que se frisar que Gil e Caetano, do Brasil geração, dentre os quais é obri- como eu disse na questão anterior, gatório citar Chico Buarque15. nunca deixaram de dialogar com Outros letristas à altura desses as estratégias e as convenções nomes destacam-se como apenas composicionais da época. Há, por profunda das contradições que ain- letristas, mas não são intérpre- exemplo, uma referência a Mari- da assombram a sociedade brasi- tes da própria canção, e aí temos ghella14, num grito dado por Gil, leira. A compreensão do Brasil por na gravação feita por ambos da esse viés torna claro por que ainda um time muito maior. Não vou me canção “Alfômega” (Gil), do Disco hoje a classe média/alta ocupa a lembrar de todos os nomes agora, 63 16 Branco (1969) de Veloso. Mas isso Avenida Paulista para pedir golpe, mas são gênios como Aldir Blanc , fica tão subliminar que quase nun- conclamar a volta dos militares e manifestar sem “silêncio sorri- 15 Chico Buarque [Francisco Buarque ca é mencionado. de Hollanda] (1944): músico, compositor, dente” o ódio aos pretos, pobres, teatrólogo e escritor carioca. Ganhou fama Por outro lado, a maneira como nordestinos etc. É significativo por sua música, que comenta o estado social, os valores simbólicos são apropria- como, nesse momento, a figura de econômico e cultural do Brasil. Abordou a ditadura e, fugindo dela, criou um pseudôni- dos pela cultura ao longo do tem- Marighella reapareça no cancionei- po pode relativizar essas leituras. mo para continuar compondo e não ser bar- ro de Caetano (“Um comunista”, rado pela censura: Julinho da Adelaide com Quando “Alegria, alegria” se tor- Abraçaço). Nessa canção fica cla- o qual compôs apenas três músicas. Sobre a nou tema de abertura de uma mi- ro o elogio da posição dissidente canção “Cálice”, além do título da composi- nissérie da Globo sobre os anos de ção ter som idêntico à expressão cale-se, seus do líder comunista em relação ao versos poderiam ser confundidos com uma chumbo (“Anos Rebeldes”, de Gil- projeto autoritário e totalitarista divagação religiosa, tal como no trecho “Pai, berto Braga), foi equivocadamen- do partido. afasta de mim esse cálice, De vinho tinto de te assimilada como uma canção sangue, Como beber dessa bebida amarga, Tragar a dor, engolir a labuta, Mesmo calada de protesto da época. Da mesma IHU On-Line – De que modo o a boca, resta o peito, Silêncio na cidade não se forma, nada me assustará se “Pra escuta”. Gilberto Gil e Chico Buarque foram senhor avalia a poesia nas can- não dizer que não falei das flores” proibidos pela censura de cantar a canção em ções de Gil e Caetano? Quais ca- (Vandré) venha a ser usada numa parceria no festival Phono 73, que aconteceu racterísticas você destacaria como de 11 a 13 de maio de 1973, no Anhembi, em campanha publicitária do alista- as mais marcantes no trabalho dos São Paulo. A dupla resolveu peitar a censura ao vivo, mas teve os microfones desligados. 14 Carlos Marighella (1911-1969): político artistas? Por quê? (Nota da IHU On-Line) e guerrilheiro brasileiro, um dos principais 16 Aldir Blanc Mendes (1946): compo- organizadores da luta armada para a im- Alexandre Faria – As melhores sitor e escritor brasileiro. Notabilizou-se plantação do Comunismo no Brasil e contra escolas do estudo da canção desa- como letrista a partir de suas parcerias com o regime militar a partir de 1964. Preso no conselham a ler a letra dissociada João Bosco, criando músicas como “Bala Presídio Especial de São Paulo, Marighella com Bala” (sucesso na voz de Elis Regina), foi torturado pela polícia de Filinto Müller. dos demais elementos constituin- “O Mestre-Sala dos Mares”, “De Frente Pro Na noite de 04-11-1969 Marighella foi surpre- tes do todo, a melodia, o ritmo, a Crime” e “Caça à Raposa”. Uma de suas can- endido por uma emboscada na alameda Casa harmonia, o desempenho vocal e ções mais conhecidas, em parceria com João Branca, na capital paulista. Foi morto a tiros (nas apresentações ao vivo) corpo- Bosco, é “O Bêbado e a Equilibrista”, que se por agentes do DOPS, em uma ação coorde- tornou um hino contra a ditadura militar, nada pelo delegado Sérgio Paranhos Fleury. ral do artista. Todos esses elemen- também tendo sido gravada por Elis Regina. (Nota da IHU On-Line) tos são significativos para a leitura (Nota da IHU On-Line)

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Paulo Cesar Pinheiro17, Fausto prova de uma pesquisa detalhada amplos, sem isso conter um as- Nilo18, Fernando Brant19 etc. sobre a melhor maneira de cantar pecto absolutamente idiossincrá- uma letra ou de pôr letra numa tico. As únicas menções que já IHU On-Line – De que forma le- canção. Ao mesmo tempo, o ecle- podem ser historicamente garan- tra e música se relacionam nas tismo é marca do que poderíamos tidas são as canções-manifesto canções de Caetano e Gil? Que chamar de registro poético-musical do movimento tropicalista, “Tro- papéis desempenham na constru- dos artistas. Usamos aqui o termo picália” e “Geleia geral”; as que os lançaram no festival de 1967, ção simbólica transmitida nas mú- registro no mesmo sentido em que “Alegria, alegria” e “Domingo no sicas? O que representou para o se pode falar em registro linguísti- parque”; e a antológica gravação cenário cultural brasileiro as ex- co, diferentes níveis de acessibili- dade a um código. É assim que suas ao vivo de “Proibido proibir”, no perimentações estéticas? canções variam desde elaborações Festival Internacional da Canção Alexandre Faria- É evidente o bastante acessíveis (e isso não quer de 1968, no Teatro Universida- trabalho da articulação entre letra dizer simples ou fáceis ou pobres, de Católica – TUCA, da Pontifícia e música na produção de Caetano como alguns costumam entender), Universidade Católica – PUC-SP, e Gil. A variedade de gêneros mu- em diálogo com profundas tradi- principalmente pelo conteúdo do sicais em que ambos investem é a ções populares brasileiras, como o discurso furioso de Caetano. Com samba e o baião, até elaborações exceção desse título, qualquer ci- 17 Paulo César Francisco Pinheiro tação de canções parecerá pessoal (1949): compositor e poeta brasileiro. Tem mais voluntariamente hibridizadas mais de duas mil canções, das quais mais de (porque aquelas já são híbridas e aleatória. Eu mesmo teria diver- mil gravadas, compostas com cerca de 120 em sua origem), em momentos de sas playlists de ambos e dos dois parceiros, uma grande variedade que inclui juntos para compartilhar. músicos como João Nogueira, João de Aqui- maior ou menor experimentação. no, Francis Hime, Dori Caymmi, Raphael Cumpre ressaltar, ainda, que Rabello, Antônio Carlos Jobim, , É claro que o custo de acessibi- , Mauro Duarte, , , lidade das canções mais experi- embora estejam comemorando os Eduardo Gudin, Luciana Rabello, Mauricio mentais é alto e pode representar 50 anos de carreira juntos (como Carrilho, Cristovão Bastos, Sergio Santos, Moacyr Luz, Danilo Caymmi, Baden Powell “fracassos” comerciais, como foi o o fizeram pelos 25 anos, em 1993, e Maria Bethânia. (Nota da IHU On-Line) caso do disco Araçá Azul, de Velo- com Tropicália 2) e sejam os dois 18 Fausto Nilo Costa Júnior (1944): com- nomes mais lembrados quando se 64 positor, arquiteto e poeta brasileiro. Deixou a so. Outro aspecto é que o diálogo cidade natal aos onze anos de idade e foi para com musicalidades populares mui- fala de Tropicália, estamos refle- a capital, Fortaleza, onde viria a se formar tas vezes se estabelece através de tindo sobre dois artistas bastante em Arquitetura, na Faculdade de Arquitetu- diferentes entre si. Compartilham ra da Universidade Federal do Ceará. Junto letras que se tornam profundamen- com Antonio Carlos Aires Medina. Em 1971 te reflexivas sobre aquele gênero uma amizade pública mais do que mudou-se para Brasília e depois São Paulo e opções artísticas e estéticas que Rio de Janeiro. Gravou o primeiro grande su- que está sendo executado. Aconte- cesso, “Fim do mundo”, em 1972. É conside- ce, por exemplo, em “Desde que o cada um evidencia em sua obra. O rado até hoje, ao lado de Paulo César Pinhei- samba é samba”, “Miami macule- sintoma disso é que só em alguns ro, Ivan Lins, Vítor Martins, Caetano Veloso, momentos muito pontuais assina- Gilberto Gil, Tom Jobim, Roberto & Erasmo lê”, ou “Funk melódico”. Carlos Vinícius de Moraes, Chico Buarque e ram parcerias. Como a entrevista Noel Rosa, um dos compositores com maior é feita sobre os dois juntos, talvez IHU On-Line – Que canções número de composições, cerca de 400 suces- fosse o caso de lembrar aqui suas sos. (Nota da IHU On-Line) dos dois artistas você destacaria parcerias, que não deve chegar no 19 Fernando Rocha Brant, conhecido como as mais representativas na como Fernando Brant (1946-2015): foi com- total a 20 títulos, dos quais eu des- trajetória dos 50 anos de carreira positor brasileiro. Na década de 1960, na ci- taco “Panis et circenses”, “Divino dade de Belo Horizonte participou do movi- de ambos? Por quê? mento musical Clube da Esquina e durante a maravilhoso”, “Batmacumba”, sua carreira foi parceiro de Milton Nascimen- Alexandre Faria – É pratica- “Cinema novo”, “Haiti”, além da to, Lô Borges, Wagner Tiso, Márcio Borges, Nivaldo Ornelas, e Paulo Bra- mente impossível eleger algumas recentíssima “As Camélias do Qui- ga. (Nota da IHU On-Line) canções, de dois repertórios tão lombo do Leblon”.

LEIA MAIS... —— A palavra escrita, falada e cantada como realizações da arte literária. Entrevista com Alexandre Faria, publicada na revista IHU On-Line, nº 380, de 14-11-2011, disponível em http://bit.ly/1OcZVnW.

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Os libertadores da criação artística brasileira Para Miguel Jost Ramos, Caetano e Gil inauguram uma forma de fazer música no Brasil. Eles misturam o pop com o erudito, o novo com o tradicional e a comunicação de massa com a contracultura

Por Leslie Chaves e João Vitor Santos

magine um liquidificador que re- uma aproximação com colaboradores cebe doses de arcaico e moderno, jovens que trouxeram para o seu traba- Ide popular e erudito, de elemen- lho uma estética inovadora e original”, to pop e elemento folclórico, da comu- destaca. Gil, por sua vez, é entendido nicação de massa e da contracultura, pelo professor como um verdadeiro tudo ao mesmo tempo. O resultado multiculturalista brasileiro que vai do dessa mistura é uma “geleia geral” que rock, reggae, funk, ao disco e ao soul mixa elementos culturais diversos. Para norte-americano, sem esquecer marcas o professor do departamento de Letras bem nacionais como o samba. “Gil tem da Pontifícia Universidade Católica do um aspecto do seu trabalho que o co- Rio de Janeiro – PUC-Rio Miguel Jost loca numa relação especial com outros 65 Ramos, essa é a receita do movimento instrumentistas e compositores. Sua da Tropicália, que tem Gilberto Gil e forma de entender e conceber músi- Caetano Veloso como seus expoentes. ca tem uma originalidade muito forte, “Como consequência, influenciaram marca de sua assinatura, e, ao mesmo muitas gerações posteriores de artistas tempo, o coloca como um virtuoso da brasileiros de diferentes linguagens a música brasileira”, completa. ampliarem suas possibilidades de atu- Miguel Jost Ramos é formado em ação”, destaca. Assim, Ramos entende Ciências Sociais pela PUC-Rio, mestre que os parceiros abandonam a ideia de e doutor em Estudos de Literatura por dicotomia cultural, estética e política esta mesma instituição. É pesquisador e passam a ver “seus aspectos de com- musical, atuando junto ao Núcleo de plementaridade e tensão”. O resulta- Estudos em Literatura e Música – Nelim, do é que “Caetano e Gil libertaram a da PUC-Rio. Tem experiência nas áreas criação artística brasileira de amar- de Literatura e Sociologia, com ênfase ras históricas como, por exemplo, o em Cultura Brasileira, Música Popular nacionalismo fechado e tacanho que e Produção Cultural Contemporânea. acreditava numa essência da música Desde 2013, atua como parecerista em popular brasileira a ser preservada e editais para teatro e música na Secre- protegida”. taria de Cultura do município do Rio de Na entrevista a seguir, concedida por Janeiro e na Secretaria de Cultura do e-mail à IHU On-Line, Ramos ainda Espírito Santo. Atualmente é pós-dou- destaca o caráter de complementari- torando CAPES/PNPD no Departamento de Letras da PUC-Rio, onde atua como dade das carreiras, influenciando-se professor e coordena o curso de ex- mutuamente. “Caetano sempre se ca- tensão e pós-graduação em Literatura, racterizou por ser um compositor e in- Arte e Pensamento Contemporâneo. térprete atento ao contemporâneo. Em muitos momentos de sua obra vemos Confira a entrevista.

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inúmeras vezes sobre isso em sua obra. O fato é que estamos falando de um período da Cidade da Bahia muito rico, que teve, não ao mes- mo tempo, a presença de nomes A carreira de ambos é marca- como Glauber Rocha4, Raul Seixas5, da por uma pluralidade que Maria Bethânia, Caetano Veloso, Gilberto Gil, Gal Costa, Tom Zé6, nos dificulta apontar uma ca- Waly Salomão7, Rogério Duarte8,

racterística ou mesmo delimi- e televisão e diversos ensaios sobre urbanis- mo e história da Bahia e do Brasil. (Nota da tar um espaço de atuação IHU On-Line) 4 Glauber de Andrade Rocha (1939- 1981): foi um cineasta brasileiro, ator e escri- IHU On-Line – Como se deu a a educação brasileira, e com uma tor. Começou a realizar filmagens (seu filme aproximação artística entre Gil direção às perspectivas contempo- Pátio, de 1959), ao mesmo tempo em que ingressou na Faculdade de Direito da Bahia, e Caetano e como entender essa râneas e de vanguarda. Fortaleceu onde atualmente é a Universidade Federal da aliança que perdura até os dias de também as faculdades das áre- Bahia, entre 1959 a 1961, e logo abandonou hoje? as das ciências humanas e sociais para iniciar uma breve carreira jornalística, em que o foco era sempre sua paixão pelo com investimentos estruturais e no Miguel Jost Ramos – A cidade cinema. Ele se propunha a fazer uma arte corpo docente, e criou o primeiro engajada ao pensamento e pregava uma nova de Salvador na década de 1960 centro de estudos afro-orientais estética, uma revisão crítica da realidade. Era (Cidade da Bahia à época) vivia da academia brasileira, sob a ba- visto pela ditadura militar que se instalou no país, em 1964, como um elemento subversi- uma efervescência cultural muito 2 tuta de Agostinho Santos , figura vo. (Nota da IHU On-Line) específica na história brasileira. paradigmática da UFBA naquele 5 (1945-1989): cantor, compo- Esse fato decorria, a meu ver, prin- momento. sitor brasileiro, pioneiro do rock. É conside- cipalmente da experiência radical rado o pai do rock brasileiro. Em 1973, lançou São inúmeros os relatos, de quem Kirg-Há, Bandolo! (Nota da IHU On-Line) proposta pela Universidade Federal 6 Antônio José Santana Martins – Tom da Bahia – UFBA sob a direção do viveu em Salvador nestes anos, de Zé (1936): é um compositor, cantor, arran- reitor Edgar Santos1 a partir do fim que essa experiência de uma ‘nova’ jador e jardineiro brasileiro. É considerado 66 uma das figuras mais originais da música po- dos anos 50. Médico e político de universidade criou na cidade um ambiente que fomentava e incen- pular brasileira, tendo participado ativamen- tendências conservadoras, Edgar te do movimento musical conhecido como Santos aplicou na Universidade da tivava a criação artística, o deba- Tropicália nos anos 1960 e se tornado uma te, o pensamento crítico, e que foi voz alternativa influente no cenário musical Bahia uma proposta, nunca reedi- decisivo para toda uma geração na do Brasil. (Nota da IHU On-Line) tada em mesma escala na univer- 7 Waly Dias Salomão (1943-2003): poeta qual estavam inseridos também sidade brasileira, de investimentos brasileiro. Era filho de sírio com uma serta- Caetano e Gil. Quem melhor cha- amplos e decisivos nas escolas de neja, formou-se em Direito pela Universidade ma atenção para essa experiência Federal da Bahia em 1967, mas nunca exer- linguagens artísticas como dan- e o impacto dela é o antropólogo ceu a profissão. Cursou a Escola de Teatro da ça, teatro e música. Como reitor, mesma universidade (1963-1964) e estudou Antonio Risério3, que já escreveu convidou professores e artistas do inglês na Columbia University, Nova York (1974-1975). Na década de 1960, participou Brasil e do exterior para gerir es- 2 Agostinho dos Santos (1932-1973): do movimento tropicalista. Foi também uma ses investimentos, e lhes concedeu cantor e compositor brasileiro. Seu maior figura importante da contracultura no Brasil, total liberdade para criação de sucesso foi cantando músicas da peça Orfeu nos anos 1970. Atuou em diversas áreas da da Conceição e depois do filme Orfeu Negro, cultura brasileira. Foi letrista de canções de programas ousados, inéditos para como Manhã de Carnaval e Felicidade. Par- sucesso, como “Vapor Barato”, em parceria ticipou da apresentação de bossa nova no com Jards Macalé. (Nota da IHU On-Line) 1 Edgard do Rêgo Santos (1894-1962): Carnegie Hall, em Nova Iorque (1962). Fale- 8 Rogério Duarte Guimarães (1939): in- médico e político brasileiro. Formou-se na ceu, em 1973, em trágico desastre aéreo nas telectual multimédia baiano, Rogério Duarte Faculdade de Medicina em 1917, clinicou na imediações do Aeroporto de Orly em Paris, é artista gráfico, músico, compositor, poeta, cidade de São Paulo, e em 1922 volta para a no Voo Varig 820. (Nota da IHU On-Line) tradutor e professor. Nos anos 60 mudou-se Bahia. Em seguida, segue para a Europa, em 3 Antonio Risério (1953): antropólogo, para o Rio de Janeiro, onde trabalhou como viagem de estudos e trabalho em hospitais poeta, ensaísta e historiador brasileiro. Em diretor de arte da UNE e da Editora Vozes. da França e Alemanha. De volta ao Brasil 1968, fez política estudantil, mergulhou na Foi o autor de vários cartazes para filmes em 1924, ingressa por concurso no quadro contracultura, sendo preso como subversivo de seu amigo Glauber Rocha, como Deus e de docentes da sua Faculdade de Medicina, pela ditadura militar aos dezesseis anos de o diabo na terra do sol (símbolo do cinema como lente da recém-criada cátedra de Pa- idade. Em 1995, defende tese de mestrado em nacional), Terra em transe e A idade da ter- tologia Cirúrgica. Neste concurso apresenta Sociologia com especialização em Antropolo- ra. Também criou, para este último, a trilha duas teses: “Câncer de bexiga” e “Intervenção gia na Universidade Federal da Bahia. Inte- sonora. Entre os vários artistas com os quais cirúrgica nos domínios do simpático”. Assu- grou grupos de trabalho que implantaram a colaborou, contam-se Gilberto Gil, Caetano me a direção do Hospital do Pronto-Socorro televisão educativa, as fundações Gregório de Veloso, João Gilberto, Jorge Ben e Gal Costa. de Salvador, acumulando com a direção da Matos e Ondazul, e o Hospital Sarah Kubits- Considerado um dos mentores intelectuais do Faculdade de Medicina da Bahia. Após a chek, na Bahia. Elaborou o projeto geral para movimento tropicalista, Rogério foi também extinção do Estado Novo, esteve à frente da implantação do Museu da Língua Portuguesa um dos primeiros a ser preso e a denunciar unificação das faculdades baianas na Univer- em São Paulo, e do Cais do Sertão Luiz Gon- publicamente a tortura no regime militar. sidade da Bahia. (Nota da IHU On-Line) zaga, no . Tem feito roteiros de cinema Preso juntamente com seu irmão Ronaldo

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Carlos Nelson Coutinho9, entre cos, harmônicos, melódicos, assim Agrippino de Paula12, e os irmãos muitos outros que protagonizaram como de procedimentos e suportes Haroldo e Augusto de Campos13 uma cena cultural e intelectual vi- da cultura pop, da pop art, da mú- também são um dado fundamen- talizada. Esse é o ambiente urbano sica erudita de vanguarda, da poe- tal para entender como a música e cultural que aproximou Gil e Ca- popular expandia o seu campo de sia concreta, da publicidade, entre etano e lhes proporcionou a chance atuação e de interesses naque- outros meios do qual o tropicalismo de fazerem coisas juntos no teatro le momento. Gil e Caetano, sem e na música. se apropriou, revolucionou a forma dúvida alguma, foram forças cen- trais desse processo, e esse é um No sentido prático e biográfico, é importante constatar que Gil já primeiro aspecto a destacar que tinha uma breve carreira de músi- caracteriza de maneira singular o co nos programas de auditório de surgimento dos dois artistas. rádios e televisões da Bahia, e que Caetano e Gil Após o exílio dos dois em Londres Caetano, ainda em Santo Amaro, já entre 1969 e 1971-2, imposto pela sabia quem era e prestava relativa abriram uma ditadura civil militar brasileira, e a atenção em Gilberto Gil. Caetano volta ao Brasil já sem o compromis- citou muitas vezes em entrevistas possibilidade so com o movimento tropicalista, e depoimentos o fato de que sua nova de fazer suas carreiras percorreram cami- mãe lhe gritava da frente da tele- nhos diversos. Assim, compõem um visão: “Caetano, venha ver aquele música no Brasil quadro muito complexo para apon- preto que você gosta tocando vio- tar uma característica ou outra que lão na televisão”. Assim, ao chegar seja a mais marcante. em Salvador, vindo de Santo Ama- de se pensar e fazer música no Bra- ro, ele já reconhecia o lugar de Gil sil com implicações presentes até IHU On-Line – Qual a importân- como músico popular. os dias de hoje. cia de Caetano e Gil para a for- mação da cultura brasileira na se- O trânsito com artistas de outras IHU On-Line – Quais caracte- gunda metade do século XX? Qual rísticas você destacaria como as linguagens como Zé Celso Marti- é o principal aspecto que lhes dá 10 11 mais marcantes do trabalho de Gil nez Correa , Hélio Oiticica , José notoriedade nesse contexto? 67 e Caetano? Por quê? 10 José Celso Martinez Corrêa, conheci- Miguel Jost Ramos – Caetano e Miguel Jost Ramos – A carreira do como Zé Celso (1937): é uma das pessoas Gil abriram uma possibilidade nova de ambos é marcada por uma plu- mais importantes ligadas ao teatro brasileiro. Destacou-se como um dos principais direto- de fazer música no Brasil, e como ralidade que nos dificulta apontar res, atores, dramaturgos e encenadores do consequência influenciaram muitas uma característica ou mesmo deli- Brasil. Seu trabalho, encarado às vezes como gerações posteriores de artistas mitar um espaço de atuação para orgiástico e antropofágico, iniciou-se no fim brasileiros de diferentes lingua- estes dois artistas. Mas podemos da década de 1950, e se definiu na década de 1960 quando Zé Celso liderou a importan- gens a ampliarem suas possibilida- dizer que, num primeiro momento, te Teatro Oficina − grupo amador formado des de atuação. O fato de adotar dentro do que consideramos ser o quando integrava a Faculdade de Direito da como dado positivo a coexistência período do tropicalismo, Gil e Ca- Universidade de São Paulo. (Nota da IHU On-Line) do arcaico e do moderno, do popu- etano foram artífices de profundas 11 Hélio Oiticica (1937-1980): pintor, escul- lar e do erudito, do elemento pop e transformações nos horizontes es- tor, artista plástico e performático de aspira- do elemento folclórico, da comuni- ções anarquistas. É considerado por muitos téticos da canção popular produ- cação de massa e da contracultura, zida no Brasil. A incorporação de um dos artistas mais revolucionários de seu tempo e sua obra experimental e inovadora entre outras dicotomias que não uma série de novos elementos líri- é reconhecida internacionalmente. Em 1959, eram pensadas em suas obras como fundou o Grupo Neoconcreto, ao lado de ar- Duarte, o caso mobilizou artistas e mereceu tistas como Amilcar de Castro, , polos de oposição, mas sim em seus ampla divulgação no jornal carioca Correio Lygia Pape e . Na década aspectos de complementaridade da Manhã, que publicou uma carta coletiva de 1960, Hélio Oiticica criou o Parangolé, que e tensão, Caetano e Gil liberta- pedindo a libertação dos “Irmãos Duarte”. ele chamava de “antiarte por excelência” e ram a criação artística brasileira (Nota da IHU On-Line) uma pintura viva e ambulante. O Parangolé é 9 Carlos Nelson Coutinho: filósofo brasi- uma espécie de capa (ou bandeira, estandar- de amarras históricas como, por leiro, livre docente pela Universidade Federal te ou tenda) que só mostra plenamente seus do Rio de Janeiro e docente nesta instituição. tons, cores, formas, texturas, grafismos e tex- fazia parte da dimensão da sua obra. (Nota da Organizou as obras Ler Gramsci, entender a tos (mensagens como “Incorporo a Revolta” e IHU On-Line) realidade (Rio de Janeiro: Civilização Brasi- “Estou Possuido”), e os materiais com que é 12 José Agrippino de Paula (1937–2007): leira, 2003) e Antonio Gramsci, Escritos po- executado (tecido, borracha, tinta, papel, vi- escritor brasileiro. Dentre os livros de sua líticos (Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, dro, cola, plástico, corda, palha) a partir dos autoria se destaca PanAmérica (1967), obra 2004). Traduziu para o português os Cader- movimentos de alguém que o vista. Por isso, é fundamental para o desenvolvimento do nos do cárcere, lançados pela editora Civi- considerado uma escultura móvel. Em 1965, movimento da Tropicália. (Nota da IHU lização Brasileira. É autor de, entre outros, foi expulso de uma mostra no Museu de Arte On-Line) Marxismo e Política. A dualidade de poderes Moderna do Rio de Janeiro por levar ao even- 13 Augusto e Haroldo de Campos: po- e outros ensaios (São Paulo: Cortez, 1996). to integrantes da vestidos com pa- etas concretistas brasileiros. (Nota do IHU (Nota da IHU On-Line) rangolés. A experiência dos morros cariocas On-Line)

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exemplo, o nacionalismo fechado estrangeiros interessados por suas IHU On-Line – Que elementos e tacanho que acreditava numa es- obras. Se não desfrutaram do mes- você destacaria como mais rele- sência da música popular brasileira mo impacto que o sucesso de artis- vantes na construção dos perfis a ser preservada e protegida. A ex- tas da Bossa Nova como João Gil- de artista e das obras de Caeta- periência tropicalista de colocar no berto14 e Tom Jobim15 gerou fora do no e Gil? Quais mais contribuíram mesmo liquidificador, e criar uma Brasil, não deixam de ter uma car- para eles serem como são? verdadeira miscelânea, ou melhor, reira internacional de destaque em Miguel Jost Ramos – Caetano, ao uma verdadeira geleia geral, em vendas, público e crítica. E, ainda, longo de sua carreira, sempre se que misturava e mixava os elemen- ambos criaram parcerias com ar- caracterizou por ser um composi- tos culturais mais diversos que con- tor e intérprete atento ao contem- viviam no Brasil, é uma marca defi- porâneo. Em muitos momentos de nitiva da história desse movimento sua obra vemos uma aproximação e, mais especificamente, dos dois com colaboradores jovens que cantores e compositores. Ao longo des- trouxeram para o seu trabalho uma estética inovadora e original. Isso IHU On-Line – Como vem se situ- tas décadas aconteceu em trabalhos dos anos ando ao longo do tempo as obras ambos se tor- 70, 80, 90, e mesmo de 2000 para de Caetano e Gil no cenário cul- cá. Sua veste ‘camaleônica’ é uma tural brasileiro? E para além do naram figuras marca muito forte e pode ser vista Brasil? paradigmáticas de forma clara em discos que in- Miguel Jost Ramos – Caetano e do nosso meio terviram no cenário cultural do seu Gil tem, desde 1967, um papel de tempo de maneira contundente protagonismo no cenário cultural cultural e tam- como “Araçá Azul” (1973), “Estran- brasileiro. Suas canções, seus dis- bém político geiro” (1989) ou mesmo o recente cos, shows, turnês possuem enor- “Cê” (2006), primeiro disco da tri- me relevância e ampla divulgação logia completada por “Zii e Zie” dos meios de comunicação, dos cir- tistas de fora do Brasil de grande (2009) e “Abraçaço” (2012). cuitos da crítica, e costumam atin- projeção na música mundial. Vide, Gil tem um aspecto do seu traba- 68 gir um grande e fiel público. Para por exemplo, a colaboração de Gil- lho que o coloca numa relação es- além disso, são constantemente berto Gil com nomes consagrados pecial com outros instrumentistas abordados e questionados a res- da música norte-americana como e compositores. Sua forma de en- ponderem sobre os mais variados Stevie Wonder16 e Quincy Jones17. tender e conceber música tem uma temas da política e da sociedade originalidade muito forte, marca brasileira. Em todas as entrevis- 14 João Gilberto Prado Pereira de Oli- de sua assinatura, e, ao mesmo tas que concedem, os dois artistas veira: conhecido como João Gilberto, violo- nista e cantor, é considerado um dos pais da tempo, o coloca como um virtuoso são chamados a comentar fatos bossa-nova brasileira, juntamente com Tom da música brasileira. Sua veia tro- mais distintos da política nacional, Jobim. Nasceu em Juazeiro (BA), em 1931, picalista, permanente no interesse como a corrupção de determinado mudando-se para o Rio de Janeiro, em 1950. Perfeccionista, apresenta-se com sucesso em por experiências da cultura pop partido ou governo, sua posição na todo o mundo (Nota do IHU On-Line) como o rock, o reggae, o funk, a política de drogas, ou do aborto, 15 Antonio Carlos Jobim (1927-1994.): disco e o soul norte-americano, se ou da redução da maioridade pe- músico brasileiro. Foi pianista, composi- expressa também no conhecimen- nal, ou do direito ao casamento, tor, arranjador, cantor, violonista e um dos principais compositores da bossa-nova. Fez to profundo da tradição da música entre tantos outros temas polêmi- carreira internacional. Sua composição “Ga- popular brasileira por via do sam- cos para nossa sociedade. Ao longo rota de Ipanema”, composta em parceria com ba, o samba de roda da Bahia e o destas décadas ambos se tornaram Vinicius de Morais em 1962, chegou a figurar entre as dez mais executadas do mundo, ten- baião. Gil é um multiculturalista figuras paradigmáticas do nosso do sido gravada pelo cantor estadunidense no sentido pleno do termo, e não meio cultural e também político. Frank Sinatra, entre outros intérpretes. So- no contexto da armadilha político- bre o tema bossa-nova, confira a edição 272 Seus posicionamentos a favor de retórica que o termo criou dos um candidato A ou B, ou a favor da revista IHU On-Line, 08-09-2008, inti- tulada Chega de saudade... Bossa nova, 50 anos 90 para cá. Seu interesse em do posicionamento X ou Y dentro anos, disponível para download em http:// pesquisar, descobrir e processar de um tema polêmico, costumam bit.ly/1jXeSh7. (Nota do IHU On-Line). sonoridades de todos os lugares e gerar acalorados debates em meios 16 Stevie Wonder (1950): nome artístico de Stevland Hardaway Morris, compositor, fontes possíveis é uma espécie de de comunicação, crítica e redes. cantor e ativista de causas humanitárias e sociais estadunidense. Gravou mais de trinta te 50 anos na indústria do entretenimen- Tanto Gil quanto Caetano tem um sucessos que alcançaram o top ten e ganhou to, o trabalho de Jones foi indicado para 79 relevante destaque internacional 25 Grammy Awards, o maior número já ga- Grammy Award, sendo premiado com 27 de suas carreiras. Seus shows em nho por um artista masculino. (Nota da IHU destes, e um Grammy Legends Award em turnês internacionais têm, além da On-Line) 1991. Ele é mais conhecido por ajudar o ícone 17 Quincy Delight Jones Jr. (1933): em- cultural Michael Jackson a produzir o álbum presença de brasileiros radicados presário, arranjador vocal e produtor musical Thriller, que viria a ser o álbum mais vendido no exterior, um grande número de de trilhas sonoras norte-americano. Duran- de todos os tempos. (Nota da IHU On-Line)

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motor do seu trabalho nesses 50 plo, a partir de meados da déca- Sucesso20 e Cazuza21, nos anos 90 anos de carreira e música. da de 70, se aproximou muito do com Chico Science22 e Arnaldo An- caldeirão musical da black music tunes23, e não cabeira aqui citar IHU On-Line – Como se dá a in- internacional. Seus discos da fase todas suas inúmeras parceiras que fluência mútua entre as obras “Re” – “Refazenda” (1975), “Refa- reificam essa vocação para o diálo- dos dois? Em que aspectos é mais vela” (1977), “Realce” (1979) – são go musical e cultural. perceptível? o retrato mais fiel desse envolvi- Caetano até hoje também des- mento e interesse. Gil também foi Miguel Jost Ramos – Como par- dobra sua carreira em parcerias di- ceiros desde o início de suas car- versas com artistas de sua geração reiras, e estando sempre próximos e mais jovens. Desde seu primeiro como interlocutores e amigos, Gil e disco com Gal24, passando por Chi- Caetano construíram uma cumpli- co Buarque25, sua irmã Bethânia26, cidade evidente entre seus traba- Caetano, ao lon- lhos. Cumplicidade citada e expli- 20 Paralamas do Sucesso: é uma banda de ska e rock, formada no município flumi- citada em muitos depoimentos, e go de sua car- nense de Seropédica, no Estado do Rio de que faz com que ainda hoje os dois Janeiro em 1982. Seus integrantes desde en- saiam em uma longa turnê nacional reira, sempre tão são (guitarra e vocal), Bi Ribeiro (baixo) e João Barone (bateria). No e internacional para comemoração se caracterizou início a banda misturava rock com reggae, de 50 anos de carreira. Gil afirmou posteriormente passaram a agregar instru- muitas vezes que não saberia di- por ser um com- mentos de sopro e ritmos latinos. (Nota da zer se teria sido capaz de realizar IHU On-Line) positor e intér- 21 Cazuza (1958-1990): cantor e compositor tudo que fez na música brasileira brasileiro que ganhou fama como vocalista e se não houvesse Caetano por perto prete atento ao principal letrista da banda Barão Vermelho. e como parceiro. Caetano cita até Sua parceria com Roberto Frejat foi critica- mente aclamada. (Nota da IHU On-Line) hoje que foi Gil quem fez ele per- contemporâneo 22 Francisco de Assis França – Chico der o ‘medo’ da música e do violão Science (1966-1997): mais conhecido pela como instrumento. alcunha de Chico Science, foi um cantor e compositor brasileiro, um dos principais co- Só esses dados já seriam fortes um artista voltado para a pesquisa laboradores do movimento manguebeat em demais para entendermos a influ- e conhecimento de tradições popu- meados da década de 1990. (Nota da IHU On-Line) 69 ência recíproca das suas obras, lares e regionais do Brasil. Do seu 23 Arnaldo Augusto Nora Antunes Fi- mas podemos ir além e chamar interesse pela Banda de Pífanos do lho – Arnaldo Antunes (1960): músico, atenção também para discos que Caruaru18 no início de sua carreira poeta, compositor, ex-VJ e artista visual bra- sileiro. (Nota da IHU On-Line) lançaram juntos ou individualmen- até aproximações recentes com 24 Maria da Graça Costa Penna Bur- te em períodos que mantiveram outros artistas populares, são inú- gos – Gal Costa (1945): é uma cantora forte contato. “Tropicália” (1968), meros exemplos desse trânsito que brasileira. Gal estreou ao lado de Caetano Veloso, Gilberto Gil, Maria Bethânia, Tom Zé “Transa” (1972), “Expresso 2222” sempre se propôs. Esteve também e outros, o espetáculo Nós, Por Exemplo..., (1972), “Tropicália 2” (1993) são junto com diversos artistas da sua – que estreou em 22 de agosto de 1964-, que demonstrações significativas desse geração em shows, discos e outros inaugurou o Teatro Vila Velha, em Salvador. entrelaço entre os dois músicos. Nesse mesmo ano participou de Nova Bossa trabalhos. Talvez o disco com Jor- Velha, Velha Bossa Nova, no mesmo local e ge Ben19 seja um dos mais signifi- com os mesmos parceiros. (Nota da IHU IHU On-Line – Como as obras de cativos desses exemplos. Nos anos On-Line) 25 Chico Buarque de Hollanda (1944): ambos dialogam/se contrapõem 80, trabalharia com Paralamas do músico, dramaturgo e escritor brasileiro, com outros estilos musicais e ar- conhecido por ser um dos maiores nomes da tistas dos cenários culturais bra- 18 Banda de Pífanos de Caruaru ou Ban- MPB. Sua discografia conta com aproximada- da de Pífanos Zabumba de Caruaru: conjunto mente 80 discos, entre eles discos-solo, em sileiro e internacional? Que mo- de música instrumental regional do Nordeste parceira com outros músicos e compactos. mento (ou momentos) o senhor brasileiro composta por pífanos e percussão. É compositor de Construção, considerada destaca como mais marcante? (Nota da IHU On-Line) uma das melhores músicas brasileiras já fei- 19 Jorge Ben Jor (1945): guitarrista, cantor tas. Filho do historiador Sérgio Buarque de Miguel Jost Ramos – Em diversos e compositor popular brasileiro. Seu estilo ca- Holanda, iniciou sua carreira como escritor trabalhos de suas carreiras, Caeta- racterístico possui diversos elementos, entre em 1962. Ganhou destaque como cantor a eles: rock and roll, samba, samba rock (termo partir de 1966, quando lançou seu primeiro no e Gil apontaram para influên- que gosta de usar), bossa nova, jazz, maraca- álbum, Chico Buarque de Hollanda, e venceu cias de outros artistas e procura- tu, funk, ska e até mesmo hip hop, com letras o Festival de Música Popular Brasileira com a ram dialogar com outras escolas da que misturam humor e sátira, além de temas música “A Banda”. Socialista declarado auto- esotéricos. A obra de Jorge Ben tem uma im- exilou-se na Itália em 1969, devido à crescen- música brasileira e internacional. portância singular para a música brasileira, te repressão do regime militar do Brasil nos O tropicalismo já era uma afirma- por incorporar elementos novos no suingue chamados “anos de chumbo”, tornando-se, ção desse desejo e isso se realiza e na maneira de tocar violão, com caracterís- ao retornar, em 1970, um dos artistas mais em muitos outros momentos e dis- ticas do rock, soul e funk norte-americanos. ativos na crítica política e na luta pela demo- Além disso, trouxe influências árabes e afri- cratização no país. (Nota da IHU On-Line) cos de suas respectivas carreiras a canas, oriundas de sua mãe, nascida na Etió- 26 Maria Bethânia (1946): é uma cantora partir dos anos 70. Gil, por exem- pia. (Nota da IHU On-Line) brasileira de MPB. Nascida em Santo Ama-

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Odair José27, David Byrne28, Grupo da música popular. Assim como Gil, Marley38 e, recentemente, um dis- Olodum29, Jorge Mautner30, Maria Caetano traz em muitos dos seus co só de gravados por João Gadú31, Roberto Carlos32, entre discos a assinatura de produtores Gilberto em sua discografia. É no- musicais com os quais travou um tório também seu trabalho de reve- muitos outros, o compositor divide diálogo intenso e precioso. Des- rência à tradição do baião no Brasil palco e estúdio com outros artistas de Rogério Duprat33, no período e à obra de Luiz Gonzaga39. Caeta- tropicalista, passando pela con- no Veloso rendeu homenagens mais ro da Purificação, Bahia, ela participou, na 34 juventude, de peças teatrais ao lado de seu tribuição de Jards Macalé para panorâmicas em que interpretava irmão, o cantor Caetano Veloso e de outros o disco “Transa”, e chegando em clássicos do cancioneiro latino- cantores proeminentes da época. Em 1965, nomes mais recentes em sua car- -americano e norte-americano. mudou-se para o Rio de Janeiro onde come- 35 çou sua carreira musical substituindo a can- reira como , Jac- Uma curiosidade a mais que pode- tora Nara Leão no espetáculo Opinião. (Nota ques Morelembaum36 e Alexandre mos perceber em Caetano está na da IHU On-Line) Kassin37, são muitos os momentos maneira constante que cita outros 27 Odair José de Araújo (1948): é um can- tor e compositor brasileiro, de estilo popular- em que Caetano traz para seus músicos em letras de sua autoria, 40 41 romântico-brega. (Nota IHU On-Line) discos a contribuição e assinatu- como Djavan , Donato , Kassin, 28 David Byrne (1952): nascido em Dum- ra de músicos e arranjadores que entre muitos. barton, Escócia, Reino Unido, é um músico, compositor e produtor musical conhecido conferem aos discos sonoridades por ter fundado a banda , em novas. IHU On-Line – Qual a importân- 1974, um dos grupos precursores dos estilos cia do movimento tropicalista new wave e worldbeat. Além do trabalho com Caetano e Gil também criaram, nas carreiras de Gil e Caetano? o grupo, compôs trilhas para artistas como em determinados momentos de Twyla Tharp e Robert Wilson, nomes da dan- De que forma foi se compondo suas carreiras, espécies de ‘discos ça e do drama respectivamente, além do filme o cenário para a emersão deste tributos’ em que homenageiam ou O Último Imperador (de 1987, realizado por movimento? Bernardo Bertolucci) pelo qual ganhou um releem algumas de suas principais Oscar. Também dirigiu o filme “True Stories” influências na música. Gil gravou Miguel Joel – Como disse, o tro- (de 1986) e produziu diversos álbuns de mú- sica caribenha e brasileira (incluindo traba- um disco de canções só de Bob picalismo é determinante para lho com Tom Zé e Margareth Menezes), no- tadamente “Rei Momo” (de 1989) e um vídeo 33 Rogério Duprat (1932-2006): compo- 38 Robert Nesta Marley – Bob Marley documentário sobre o candomblé chamado sitor e maestro brasileiro. Um dos maiores (1945-1981): um cantor, guitarrista e com- “The House of Life” (também de 1989). (Nota responsáveis pela ascensão da Tropicália, positor jamaicano, o mais conhecido músico da IHU On-Line) personalizando o som do então emergente de reggae de todos os tempos, famoso por 70 29 Grupo Olodum: fundado como bloco movimento musical com arranjos bem ela- popularizar o género. Marley já vendeu mais afro carnavalesco em Salvador no ano de borados, criativos e perfeitamente antenados de 75 milhões de discos. A maior parte do seu 1979, a Banda Olodum é atualmente um gru- com as tendências internacionais da época. trabalho lidava com os problemas dos pobres po cultural, considerado uma organização (Nota da IHU On-Line) e oprimidos. Levou, através de sua música, não-governamental reconhecida como de 34 Jards Anet da Silva (1943): conhecido o movimento rastafári e suas ideias de paz, utilidade pública pelo governo do estado da como Macalé, é um ator, cantor e compositor irmandade, igualdade social, preservação Bahia. Depois da estréia no carnaval de 1980, brasileiro. (Nota da IHU On-Line) ambiental, libertação, resistência, liberdade a banda conquistou quase dois mil associados 35 Arthur Morgan Lindsay (1953): é e amor universal ao mundo. (Nota da IHU e passou a abordar temas históricos relativos um cantor, guitarrista, produtor musical e On-Line) às culturas africana e brasileira. (Nota da compositor estadunidense. (Nota da IHU 39 Luiz Gonzaga do Nascimento – o Rei IHU On-Line) On-Line) do Baião (1912-1989): foi um importante 30 Jorge Mautner (1941): cantor, com- 36 (1954): é um compositor e cantor popular brasileiro. Foi positor e escritor brasileiro. (Nota da IHU violoncelista, arranjador, maestro, produtor uma das mais completas, importantes e in- On-Line) musical e compositor brasileiro. Filho do ma- ventivas figuras da música popular brasileira. 31 Mayra Corrêa Aygadoux – Maria Gadú estro Henrique Morelenbaum e da professora Cantando acompanhado de sua sanfona, za- (1986): cantora, compositora de canções e de piano Sarah Morelenbaum, é irmão de Lu- bumba e triângulo, levou a alegria das festas violonista brasileira de Música Popular. Des- cia Morelenbaum, clarinetista da Orquestra juninas e dos forrós pé-de-serra, bem como de sua estreia, Maria chamou a atenção de Sinfônica Brasileira, e de Eduardo Morelen- a pobreza, as tristezas e as injustiças de sua público e crítica, sendo indicada duas vezes baum, maestro, arranjador e instrumentista. árida terra, o Sertão Nordestino, ao resto do ao Grammy Latino. (Nota IHU On-Line) É casado com a cantora Paula Morelenbaum. país, numa época em que a maioria desco- 32 Roberto Carlos Braga (1941): cantor Iniciou a carreira musical como integrante nhecia o baião, o xote e o xaxado. (Nota da e compositor brasileiro, um dos primeiros do grupo A Barca do Sol, participou também IHU On-Line) ídolos jovens da cultura brasileira, liderando da Nova Banda em dez anos de parceria com 40 Djavan Caetano Viana (1949): cantor, o primeiro grande movimento de rock feito Antônio Carlos Jobim, atuando em espetácu- compositor, produtor musical e violonista no Brasil. Além dos discos, estrelou um pro- los e gravações que os levaram a vencedores brasileiro. As músicas de Djavan são conheci- grama na TV Record, chamado Jovem Guar- do Grammy com o CD Antônio Brasileiro. das pelas suas “cores”. Ele retrata muito bem da (que batizou esse movimento de rock), e Destacado como violoncelista, estudou músi- em suas composições a riqueza das cores do filmes inspirados na fórmula lançada pelos ca no Brasil e mais tarde ingressou no New dia a dia e se utiliza de seus elementos em Beatles – como “Roberto Carlos em Ritmo England Conservatory, onde frequentou as construções metafóricas de maneira distin- de Aventura”, “Roberto Carlos e o Diamante classes de Madeline Foley, que, por sua vez, ta dos demais compositores. As músicas são Cor-de-rosa” e “Roberto Carlos a 300km por foi discípula de Pablo Casals. (Nota da IHU amplas, confortáveis chegando ao requinte de Hora”. Atualmente continua se apresentando On-Line) um luxo acessível a todos. Até hoje é conheci- com frequência e produz anualmente um es- 37 Alexandre Kamal Kassin (1974): pro- do mundialmente pela sua tradição e o ritmo pecial que vai ao ar na semana do Natal pela dutor musical, cantor, compositor e multi- da música cantada. (Nota da IHU On-Line) Rede Globo, mesma época em que costuma- -instrumentista brasileiro. É um dos princi- 41 João Donato de Oliveira Neto (1934): vam ser lançados seus discos anuais. Segundo pais produtores musicais brasileiros. Inte- mais conhecido apenas como João Donato, é a ABPD, o Roberto Carlos é o artista solo com grou junto com Moreno Veloso e Domenico um pianista, acordeonista, arranjador, can- mais álbuns vendidos na história do Brasil. Lancelotti, o aclamado grupo +2. (Nota da tor e compositor brasileiro. (Nota da IHU (Nota da IHU On-Line) IHU On-Line) On-Line)

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toda produção cultural brasileira discussões em torno do posiciona- outros músicos populares de sua a partir do fim dos anos 60. Seu mento político de Caetano e Gil, geração. Essa foi uma década com legado é enorme em nosso país, que de um lado foram persegui- muitas particularidades e é pos- o que podemos ver nas inúmeras dos pelo regime ditatorial e, de sível dizer que talvez tenha sido citações, pesquisas, homenagens, outro, muito cobrados por parte um dos raros momentos em que se tributos, antologias que rememo- do público? realmente acreditou que a cultu- ram a experiência do movimento. ra tinha implicações diretas sobre Miguel Jost Ramos – A música Caetano e Gil, como duas das vozes a realidade política e social bra- tem, desde sempre, um papel mui- mais representativas dessa experi- sileira. Discussões como arte en- ência, são, e serão, sempre lem- gajada, papel do intelectual e do brados por seu protagonismo nesse artista nas transformações e lutas período. Acredito que em relação sociais, nacionalismo versus im- ao desenvolvimento de suas carrei- perialismo cultural, resistência à ras, o legado tropicalista teve mui- Gil e Caetano ditadura, eram temas do dia a dia to peso nos anos 70, quando, ainda entre músicos, compositores e de- no período da ditadura civil militar construíram mais artistas. Muitos acreditavam, brasileira, muitos esperavam que uma cumplicida- de fato, que o compositor popular atitudes fortes e contestadoras pu- deveria ser o porta-voz de uma sé- dessem vir dos dois compositores à de evidente entre rie de demandas políticas e sociais semelhança do que ocorrera entre do Brasil. O uso inteligente dessa 67 e 68. seus trabalhos crença por parte dos produtores de televisão, e também dos festivais Na imprensa alternativa e no de música, criou um ambiente de público jovem havia também uma to particular no Brasil. Seguindo polarização entre determinados tentativa de entender por que o a ideia defendida por José Miguel grupos, como o do tropicalismo e Wisnik42 de que em nosso país sal- tropicalismo não se configurava o da canção de protesto, e gerou mais como um movimento organi- tamos da tradição oral para uma ainda mais repercussão em cima de zado e por que Gil e Caetano se tradição áudio-audiovisual, e que algumas divergências entre estes. recusavam a responder em nome não passamos pela consolidação do tropicalismo ou como seus re- da escrita e da leitura em nossa O fato é que se jogou muita luz presentantes. A partir dos anos 80 sociedade, podemos entender que sobre esse lugar do compositor 71 e na chegada aos 90, quando inclu- canção popular e urbana brasilei- popular como alguém que deveria sive eles gravam o disco “Tropicá- ra, como configurada no início do comentar e interpretar o país. Ana- lia 2”, essa pressão e expectativa século XX, foi decisiva em temas lisando depoimentos e entrevistas começam a se dissipar. Hoje, em básicos da identidade nacional bra- daquele momento com os compo- vez de expectativa, o que encon- sileira como a unificação da língua. sitores e cantores, encontramos tramos é um tom de celebração e, Isso também para a compreensão perguntas que anos antes seria por vezes, até mesmo mítico em de determinadas práticas e costu- inimaginável vermos sendo feitas a relação à participação de ambos mes como tipicamente brasileiras. artistas ligados à bossa nova ou ao no movimento. Através do rádio se inventou muito samba jazz. Talvez pela violência do que até hoje entendemos como com que a ditadura reagiu à pre- Contudo, acredito que podemos sença destes compositores como afirmar que, como prática e proce- “o Brasil”. A canção popular foi o meio pelo qual se revelou e explici- referências de um pensamento dimento, como estética e política, de oposição ao regime autoritá- o tropicalismo sempre se manteve tou essa ideia de país. Esse já é um dado significativo para entender- rio, talvez pela forma contunden- presente ao longo dos 50 anos de te com que eles se pronunciavam mos a centralidade que a canção carreira dos dois compositores. O nesse período, o que aconteceu foi popular desempenhou para nós. problema que se configura nesse que se consolidou no Brasil, princi- caso é de como interpretamos o Como não nos cabe aqui repisar palmente em relação a esta gera- que foi o Tropicalismo. Entenden- toda essa história, podemos sal- ção de artistas, uma prática de exi- do-o, como eu prefiro, como -prá tar diretamente para os anos 60 e gir e cobrar do músico popular uma tica e procedimento, é possível tentar entender em qual contexto postura política definida diante dos sim afirmar sua permanência nos estavam inseridos Gil, Caetano e mais variados e surpreendentes te- trabalhos de Gil e Caetano, assim mas. Esse é um movimento que se como de outros que não são o tema 42 José Miguel Soares Wisnik (1948): inicia nos anos 60, mas que perdura dessa nossa conversa. músico, compositor e ensaísta brasileiro. É também professor de Literatura Brasileira na nossa história cultural ainda nos na Universidade de São Paulo. Graduado em dias de hoje. Caetano, Gil e Chi- IHU On-Line – Você poderia fa- Letras (Português) pela Universidade de São co Buarque talvez sejam a repre- lar um pouco sobre o papel do Paulo (1970), mestre (1974) e doutor em Teo- sentação máxima desse papel que ria Literária e Literatura Comparada (1980), músico popular na sociedade bra- pela mesma Universidade. (Nota da IHU também coube ao músico popular sileira, principalmente à luz das On-Line) no Brasil.

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A vanguarda caleidoscópica do Brasil expressa na obra de Caetano e Gil Para Christopher Dunn, a vasta produção cultural dos dois tropicalistas apresenta para o mundo uma imagem plural e dinâmica do país

Por Leslie Chaves

á algum tempo o trabalho de “ambos são conhecidos como vozes que Gilberto Gil e Caetano Velo- não podem ser reduzidas a uma linha, Hso é consagrado no exterior. porque eles podem transitar por diver- Esse reconhecimento foi sendo cons- sos estilos. Dentro deste contexto am- truído ao longo da trajetória desses plo, eles são associados, por exemplo, artistas a partir de sua ousadia criativa com a louvação da Bahia, vista como e liberdade de experimentação. Na en- um lugar mágico de produção cultural trevista concedida por telefone à IHU muito forte. Ao mesmo tempo, são co- On-Line, Christopher Dunn aponta que nhecidos como artistas que retratam o essa riqueza cultural encantou o pú- Brasil com uma sensibilidade crítica, blico norte-americano, que estava ha- abordando os problemas sociais, como bituado a associar a música brasileira a violência policial, a pobreza, a de- 72 prioritariamente à Bossa Nova antes de sigualdade de classe, as questões ra- tomarem contato com a obra tropica- ciais e de gênero. Esses temas entram lista. “Em meados dos anos 1990 hou- na música de Caetano e Gil há muito ve, aqui nos Estados Unidos, um surto tempo”. de interesse na Tropicália, que foi mui- to tardio, mais de 20 anos depois. Nos Christopher Dunn é doutor em Estu- anos 1960 não se sabia nada da Tropi- dos Luso-brasileiros pela Brown Univer- cália aqui e mesmo depois, nos anos sity e professor de Literatura e estudos 1970 e 1980, havia pouca informação culturais brasileiros na Tulane Univer- sobre isso, só mesmo os estudiosos co- sity, de Nova Orleans, Estados Unidos. nheciam. Então, a partir dos anos 1990 Entre suas publicações destacam-se houve a descoberta dessa música que Brutality Garden: Tropicália and the soava psicodélica, e as pessoas ficaram emergence of a Brazilian Countercul- fascinadas”, conta. ture (Chapel Hill: University of North Carolina Press, 2001), além de Brazil- A partir da obra desses dois artistas ian Popular Music and Citizenship (Dur- não só a música e o cenário cultural ham: Duke University Press, 2011) e brasileiro começam a ganhar diferen- Brazilian popular music and globaliza- tes nuances aos olhos do mundo, mas tion (Londres: Routledge, 2001), obras também a representação do Brasil no das quais é coorganizador. exterior se complexifica e recebe- no vos referenciais. Como aponta Dunn, Confira a entrevista.

IHU On-Line – De onde partiu va com a história latino-america- do pela música brasileira. Foi as- seu interesse pelos estudos sobre na. Ele era meio brasilianista, mas sim que resolvi visitar o Brasil pela a cultura brasileira? como historiador, não era musicó- primeira vez e fui ficando cada vez logo. Porém, ele tinha uma coleção mais interessado no assunto. Christopher Dunn – Quando eu de discos de MPB e era daquela estava na faculdade tive um pro- grande geração dos anos 1960. Ou- Depois, decidi fazer uma pós- fessor muito querido que trabalha- vindo os discos, eu fiquei apaixona- -graduação e durante o curso tive

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João Gilberto8 e outros artistas da Bossa Nova. Hoje em dia esse gosto já está muito mais diversificado, as pessoas conhecem vários aspectos Eles são grandes referências da música brasileira.

para a música e a cultura IHU On-Line – Como a música mundial porque são re- brasileira de uma forma geral é vista no exterior? E nos Estados almente dois gênios Unidos? Christopher Dunn – Como eu es- a oportunidade de produzir um lançou um selo de discos chamado tava dizendo, o conhecimento e o programa de rádio. Então nós re- Luaka Bop, que ainda existe. Esse gosto pela música brasileira têm solvemos fazer uma edição sobre a selo era dedicado a encontrar mú- se diversificado muito nos últimos Tropicália, porque completava 25 sica internacional interessante. O tempos. Atualmente é bastante anos de seu surgimento – isso foi primeiro disco que ele lançou foi de comum ter norte-americanos que em 1992. Naquela época, nos Esta- música brasileira4, e logo depois, conhecem, por exemplo, o forró; dos Unidos não se falava da Tropi- em 1990, lançou uma coletânea5 há bandas desse gênero aqui e di- cália, então foi uma das primeiras de músicas do Tom Zé. Esse álbum versos grupos que cultuam músicas reportagens sobre o movimento. foi muito importante tanto para o do nordeste brasileiro. Tem cresci- Nesse período eu conheci Gil, Ca- artista quanto para o público nor- do muito o número de bandas de etano e Tom Zé1, que me concede- te-americano e europeu, porque a música brasileira que tocam aqui ram entrevistas para o programa. música dele soava muito diferente, nos Estados Unidos, tipicamente Foi a partir daí que eu percebi que experimental e vanguardista e essa são formadas por brasileiros radi- a Tropicália seria um tema perfeito não era a impressão que as pessoas cados aqui e norte-americanos que para uma tese. tinham da música brasileira. Antes gostam de música brasileira. dos anos 1990 a música brasileira Em meados dos anos 1990 houve, Esse foi um momento interessan- era uma subcategoria de Jazz, era aqui nos Estados Unidos, um surto 73 te porque no final dos anos 1980 o sempre vendida nas lojas nessa se- 2 3 de interesse na Tropicália. Um crí- David Byrne , dos Talking Heads , ção, por causa da Bossa Nova6. O tico do jornal The New York Times público que ouvia música brasilei- 1 Antônio José Santana Martins – Tom escreveu sobre o Tropicalismo e co- ra em geral apreciava Tom Jobim7, Zé (1936): é um compositor, cantor, arran- meçou a circular mais a música do jador e jardineiro brasileiro. É considerado uma das figuras mais originais da música po- music, principalmente ritmos africanos. O movimento. Esse interesse foi mui- pular brasileira, tendo participado ativamen- grupo existiu de 1974 até 1991. (Nota da IHU to tardio, mais de 20 anos depois. te do movimento musical conhecido como On-Line) Nos anos 1960 não se sabia nada da Tropicália nos anos 1960 e se tornado uma 4 Disco Beleza Tropical (1989). (Nota da voz alternativa influente no cenário musical IHU On-Line) Tropicália aqui e mesmo depois, do Brasil. (Nota da IHU On-Line) 5 Disco The Best of Tom Zé (1990). (Nota nos anos 1970 e 1980, havia pouca 2 David Byrne (1952): Nascido em Dum- da IHU On-Line) barton, Escócia, Reino Unido, é um músico, 6 Bossa nova: derivado do samba e com informação sobre isso, só mesmo compositor e produtor musical conhecido forte influência do jazz, trata-se de - ummo os estudiosos conheciam. Então, a por ter fundado a banda Talking Heads, em vimento da música popular brasileira do fi- partir dos anos 1990 houve a des- 1974, um dos grupos precursores dos esti- nal dos anos 1950 lançado por João Gilber- los new wave e worldbeat. Além do trabalho to, Tom Jobim, Vinícius de Moraes e jovens coberta dessa música que soava com o grupo, compôs trilhas para artistas cantores e/ou compositores de classe média psicodélica, e as pessoas ficaram como Twyla Tharp e Robert Wilson, nomes da zona sul carioca. De início, o termo era fascinadas. Foram relançados aqui da dança e do drama, respectivamente, além apenas relativo a um novo modo de cantar e do filme O Último Imperador (de 1987, rea- tocar samba naquela época, ou seja, a uma re- os discos tropicalistas, e artistas lizado por Bernardo Bertolucci) pelo qual ga- formulação estética dentro do moderno sam- nhou um Oscar. Também dirigiu o filmeTrue ba carioca urbano. Com o passar dos anos, a sileiro. É considerado o maior expoente de Stories (de 1986) e produziu diversos álbuns Bossa Nova tornou-se um dos movimentos todos os tempos da música brasileira pela de música caribenha e brasileira (incluindo mais influentes da história da música popular revista Rolling Stone, e um dos criadores do trabalho com Tom Zé e Margareth Menezes), brasileira, conhecido em todo o mundo, um movimento da bossa nova. É praticamente notadamente Rei Momo (de 1989) e um vídeo grande exemplo disso é a música “Garota de uma unanimidade entre críticos e público em documentário sobre o candomblé chamado Ipanema”, composta em 1962 por Vinícius termos de qualidade e sofisticação musical. The House of Life (também de 1989). (Nota de Moraes e Antônio Carlos Jobim. Sobre o (Nota da IHU On-Line) da IHU On-Line) tema, confira a edição da IHU On-Line in- 8 João Gilberto Prado Pereira de Oli- 3 Talking Heads: banda surgida em Nova titulada Chega de saudade... Bossa Nova, 50 veira: conhecido como João Gilberto, violo- Iorque, Estados Unidos, no dia 8 de setem- anos, de 08-09-2008, disponível em http:// nista e cantor, é considerado um dos pais da bro de 1974, entre os movimentos punk e new bit.ly/YzDFvb. (Nota da IHU On-Line) bossa nova brasileira, juntamente com Tom wave. Formada pelo guitarrista e vocalista 7 Antônio Carlos Brasileiro de Almeida Jobim. Nasceu em Juazeiro (BA), em 1931, David Byrne, Chris Frantz, Tina Weymouth e Jobim (1927-1994): mais conhecido como mudando-se para o Rio de Janeiro, em 1950. Jerry Harrison, a banda ganhou notoriedade Tom Jobim, foi um compositor, maestro, Perfeccionista, apresenta-se com sucesso em por fundir o rock e o new wave com a world pianista, cantor, arranjador e violonista bra- todo o mundo. (Nota da IHU On-Line)

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como Gal Costa9 e Os Mutantes10 foi traduzido para o inglês. No iní- Christopher Dunn – Acima de fizeram muito sucesso. cio dos anos 1990 ele foi chama- tudo Caetano e Gil são cosmopoli- Hoje a Tropicália é uma referên- do para escrever um ensaio sobre tas, mas também têm uma grande 11 cia para um público considerável e acho que esse sensibilidade para a própria tra- de pessoas que acompanham a trabalho também despertou o inte- dição. Eles comunicam os valores música mundial. Também há mais resse pelo pensamento de Caetano estéticos e culturais da tradição artistas brasileiros se apresentando e sua leitura da cultura brasileira. brasileira, mas também são conhe- cedores profundos das tradições de aqui, o que contribui para construir Então ambos têm um prestígio, diversos outros países. Isso se de- uma noção muito mais diversifica- mas não uma referência de massa, da da música brasileira do que ha- monstra, por exemplo, pelo fato de atingem um público predominante- via cerca de 30 anos atrás. eles logo no início da carreira abra- mente de estudantes, intelectuais e pessoas que têm uma certa sensi- çarem a linguagem do rock, como 12 13 IHU On-Line – Em geral como bilidade para a música internacio- os Beatles e Bob Dylan , enfim, são vistos especificamente Caeta- nal. Imagino que eles tenham mais a música feita nos Estados Unidos no e Gil no exterior? E nos Esta- público na Europa, onde têm uma e Inglaterra, e incorporarem esses dos Unidos? elementos no próprio trabalho. Christopher Dunn – Eles são Mesmo trabalhando dentro da tra- grandes referências para a mú- dição brasileira, eles estão sempre sica e a cultura mundial porque muito antenados no que está acon- são realmente dois gênios. O fato Em meados dos tecendo no cenário internacional. de Gil ter sido ministro da Cultura Não é que sejam os únicos a fazer também contribuiu para ampliar o anos 1990 hou- isso, mas eles tiveram uma certa conhecimento sobre o trabalho de- ve, aqui nos sensibilidade ao longo dos anos que les. Ele veio muitas vezes aos Esta- facilitou esse trânsito entre Brasil dos Unidos, esteve na universidade Estados Uni- e o mundo. Como eu disse, são cos- em que leciono, onde recebeu o dos, um sur- mopolitas que têm essa vantagem título de Doutor Honoris Causa. A de criar música enraizada na tra- 74 atuação dele como ministro atraiu to de interesse dição local, mas ao mesmo tempo muita atenção, ele apareceu muito na Tropicália na mídia como um administrador 12 The Beatles: banda de rock inglesa, cria- cultural, uma referência muito im- da no final da década de 1950. Formada por John Lennon (guitarra e vocal), Paul McCar- portante, para além de sua carrei- tney (baixo e vocal), George Harrison (gui- ra de artista. história mais conhecida. Ao longo tarra e vocal) e Ringo Star (bateria e vocal), dessas cinco décadas de carrei- é o grupo musical considerado mais bem- No caso do Caetano, o conheci- sucedido e aclamado da história da música ra, tenho a impressão de que eles mento sobre ele passou pela sua popular. Enraizada do skiffle e do rock and têm feito mais turnês pelos países roll da década de 1950, a banda veio mais atuação como intelectual público, tarde a assumir diversos gêneros que vão do europeus. Porém, quando eles se muito em função da publicação do folk rock ao rock psicodélico, muitas vezes livro Verdade Tropical (São Paulo: apresentam aqui nos Estados Uni- incorporando elementos da música clássica dos, atraem bastante público nos e outros, em formas inovadoras e criativas. Companhia das Letras, 1997), que Sua crescente popularidade, que a imprensa shows. britânica chamava de “Beatlemania”, fez com 9 Maria da Graça Costa Penna Burgos que eles crescessem em sofisticação. Os Bea- – Gal Costa (1945): mais conhecida como tles vieram a ser percebidos como a encarna- Gal Costa, é uma cantora brasileira. Gal es- IHU On-Line – Quais caracte- ção de ideais progressistas e sua influência se treou ao lado de Caetano Veloso, Gilberto Gil, rísticas você destacaria como as estendeu até as revoluções sociais e culturais Maria Bethânia, Tom Zé e outros, o espetá- da década de 1960. (Nota da IHU On-Line) culo Nós, Por Exemplo..., que estreou em 22 mais marcantes do trabalho de Gil 13 Bob Dylan (nome artístico de Robert de agosto de 1964, que inaugurou o Teatro e Caetano? Por quê? Quais se des- Allen Zimmerman) (1941): é um cantor e Vila Velha, em Salvador. Nesse mesmo ano tacam no exterior? compositor norte-americano de música Folk participou de Nova Bossa Velha, Velha Bossa dono de uma extensa discografia. Em 2004, Nova, no mesmo local e com os mesmos par- foi eleito pela revista Rolling Stone o 7º maior ceiros. (Nota da IHU On-Line) cantor de todos os tempos e, pela mesma re- 10 Os Mutantes: banda psicodélica brasilei- 11 Maria do Carmo Miranda da Cunha vista, o 2º melhor artista da música de todos ra formada em 1966, em São Paulo, por Rita (1909-1955): mais conhecida como Carmen os tempos, ficando atrás somente dos Bea- Lee (vocais), Sérgio Dias (guitarra, vocais) Miranda, foi uma cantora e atriz luso-bra- tles, e uma de suas principais canções, “Like e Arnaldo Baptista (baixo, teclado, vocais). sileira. Sua carreira artística transcorreu no a Rolling Stone”, foi escolhida como uma das Depois de quase trinta anos ausentes dos pal- Brasil e Estados Unidos entre as décadas de melhores de todos os tempos. Influenciou di- cos, o grupo retornou em 2006 com sua for- 1930 e 1950. Trabalhou no rádio, no teatro de retamente grandes nomes do rock americano mação clássica, exceção feita a Rita Lee, que revista, no cinema e na televisão. Foi consi- e britânico dos anos de 1960 e 1970. Em 2012, não aceitou voltar ao grupo. A cantora Zélia derada pela revista Rolling Stone como a 15ª Dylan foi condecorado com a Medalha Presi- Duncan foi convidada a assumir os vocais e maior voz da música brasileira. Um ícone e dencial da Liberdade pelo presidente dos Es- desde então acompanha a banda. (Nota da símbolo internacional do país no exterior. tados Unidos Barack Obama. (Nota da IHU IHU On-Line) (Nota da IHU On-Line) On-Line)

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bastante engajada com as coisas posição de destaque é relevante. esse. Foi a primeira vez que uma que vêm de fora. Também acho sempre interessan- música de um bloco afro foi gra- te lembrar que os dois até hoje vada. Então acho que essa foi uma IHU On-Line – O exílio de Caeta- se identificam como tropicalistas. passagem importante. Desse modo, essa foi uma experi- no e Gil em Londres deixou influ- Sobre o Caetano, acho que a gra- ência claramente formadora. ências no cenário cultural inter- vação do disco Estrangeiro (1989) nacional? Quais? De que modo? A música que eles produziram na foi bem interessante, sobretudo Christopher Dunn – Estamos fa- volta do exílio também foi muito para a sua projeção internacional, lando de cerca de dois anos e meio, significativa. Aqueles dois discos porque foi produzido em Nova Ior- entre junho de 1969 e janeiro de que eles lançaram em 1972, no que com a participação de músi- 1972, relativamente pouco tempo, caso de Caetano foi Transa e no de cos de lá. Já nos anos 1990, outro e também os dois ficaram basica- Gil Expresso 2222, marcaram a vol- ponto que marcou a carreira dele mente na Inglaterra. Eles até viaja- ta deles para o Brasil e foram fun- foi seu trabalho com Jaques More- 16 ram para a França, não para fazer damentais para o cenário cultural lenbaum , que tocou violoncelo e shows, mas para visitar amigos. Gil daquele tempo, o início dos anos fez os arranjos das canções. Além chegou a passar em Nova Iorque em 1970. desses há muitos momentos inte- ressantes de projetos dele com 1971. Assim, esse exílio teve mais Depois eu destacaria como mo- grandes bandas e outros com gru- impacto sobre a cena folk rock mento interessante o final da dé- pos menores e novas propostas de britânica, mas tenho a impressão cada de 1970, quando eles abraça- som. Essa capacidade de se rein- de que não houve uma influência ram a música negra internacional, ventar de Caetano é que chama a muito significativa em outros cam- como o soul e o reggae. Eles chega- atenção. pos. Por exemplo, toda a produção ram a viajar para a África, onde Gil deles de 1968 teve pouca projeção participou do Festival de Arte Ne- Mais tarde, no início dos anos na época. O público deles em Lon- gra – Festac14, na Nigéria. Naquele 1990, quando lançaram Tropicália dres, na Inglaterra, era restrito. tempo eles também começaram II (1993), eles vieram aos Estados Então, a projeção deles como a se aproximar das manifestações Unidos fazer shows. Isso foi jus- músicos internacionais foi relativa- populares afro-baianas, como os tamente naquele período em que mente pequena durante o exílio, só blocos afros, e tiveram um papel houve a descoberta da Tropicália, 75 a partir dos anos 1980 é que assume muito importante na difusão e, que era desconhecida nos Estados mais relevância. No final dos anos de alguma forma, na legitimação Unidos. Ambos estavam comple- 1970 Gil fez uma tentativa de bus- desses grupos emergentes. Gil, no car projeção internacional, quando disco Refavela (1977), gravou uma 15 da história africana vinculando-os com a ele gravou um disco em Los Angeles música do Ilê Aiyê , a Que bloco é história do negro no Brasil, construindo um intitulado Nightingale (1979), com mesmo passado, uma linha histórica da ne- 14 II Festival Negro e Africano das Ar- gritude. O seu movimento rítmico musical, algumas composições em inglês. tes e da Cultura – Festac: nos meses de inventado na década de 1970, foi responsá- Foi uma tentativa de atrair um janeiro e fevereiro de 1977, foi realizado na vel por uma revolução no carnaval baiano. A público norte-americano, mas não Nigéria o II Festival Negro e Africano das Ar- partir desse movimento, a musicalidade do tes e da Cultura, o Festac. O primeiro festival carnaval da Bahia ganha força com os ritmos teve muito êxito. O disco é inte- havia acontecido em 1966, em Dakar, Sene- oriundos da tradição africana favorecendo o ressante, é bom, mas não surtiu o gal. Os dois projetos representavam a emer- reconhecimento de uma identidade peculiar resultado esperado. Nos últimos 20 gência e a afirmação dos países e da identi- baiana, marcadamente negra. (Nota da IHU dade africana perante o mundo, funcionavam On-Line) anos é que eles realmente conquis- como pontes e ao mesmo tempo amplificado- 16 Jaques Morelenbaum (1954): é um vio- taram um público bem maior. res de divulgação e troca de culturas e entre loncelista, arranjador, maestro, produtor mu- os países ricos e colonizadores e os africanos, sical e compositor brasileiro. Iniciou a carrei- já em grande número, independentes. (Nota ra musical como integrante do grupo A Barca IHU On-Line – Ao longo dos 50 da IHU On-Line) do Sol, participou também da Nova Banda em anos de carreira de Caetano e Gil, 15 Ilê Aiyê: é o mais antigo bloco afro do dez anos de parceria com Antônio Carlos Jo- carnaval da cidade de Salvador, no estado bim, atuando em espetáculos e gravações que quais momentos destacaria como da Bahia, Brasil. Criado em 1º de novembro os levaram a vencedores do Grammy com o mais significativos no cenário cul- de 1974, foi o primeiro bloco afro do Brasil e CD Antônio Brasileiro. Destacado como vio- tural mundial? hoje constitui um grupo cultural de luta pela loncelista, estudou música no Brasil e mais valorização e inclusão da população afrodes- tarde ingressou no New England Conserva- Christopher Dunn – Há muitos cendente, inspirando a criação de muitos ou- tory, onde frequentou as classes de Madeline momentos interessantes, é até tros grupos culturais no Brasil e no mundo. Foley, que, por sua vez, foi discípula de Pablo Na sua primeira apresentação, no carnaval Casals. Em 1995 integrou o Quarteto Jobim difícil escolher, mas vou destacar de 1975, o Ilê Aiyê apresentou a música “Que Morelenbaum com o qual excursionou várias alguns. A experiência Tropicalista Bloco é Esse”, de Paulinho Camafeu. Desde vezes à Europa, aos Estados Unidos, além do é uma dessas fases importantes, que foi fundado, o Ilê Aiyê vem homenagean- Brasil. Formou juntamente com Paula More- do os países, nações e culturas africanos e as lenbaum e o renomado pianista e compositor foi uma experiência fundamental. revoltas negras brasileiras que contribuíram japonês o grupo M2S, com O fato de terem participado de um fortemente para o processo de fortalecimento o qual gravou vários projetos, incluindo os trabalho coletivo assumindo uma da identidade étnica e da autoestima do ne- memoráveis “Casa” e “A day in New York”. gro brasileiro, tornando populares os temas (Nota da IHU On-Line)

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tando 50 anos de idade nessa épo- por exemplo, com a louvação da fardo de Caetano e Gil me parece ca. Já eram artistas bem estabe- Bahia, vista como um lugar mágico mais pesado, porque eles são da lecidos e foi um momento em que de produção cultural muito forte. geração dos anos 1960, em que a havia um interesse não somente na Ao mesmo tempo, ambos são co- questão da tomada de posição era música que eles estavam fazendo nhecidos como artistas que retra- muito importante e muito espera- naquele instante, mas também na tam o Brasil com uma sensibilidade da no Brasil. Os artistas da geração obra que eles tinham construído crítica, abordando os problemas deles nos Estados Unidos, em ge- nos anos 1960 e 1970. sociais, como a violência policial, ral, não são tão cobrados hoje em a pobreza, a desigualdade de clas- dia pelas suas posições políticas IHU On-Line – Que Brasil é re- se, as questões raciais e de gênero. e usualmente não fazem grandes tratado ao exterior a partir das Esses temas entram na música de intervenções. obras de Caetano e Gil? Caetano e Gil há muito tempo. En- tão, quando o público pode acom- Eu sinto em Caetano e Gil uma Christopher Dunn – Isso depende panhar e entender as letras das certa ambivalência. Por um lado muito do nível da proficiência na músicas, tem uma ideia bem mais vejo que eles querem fazer inter- língua portuguesa que o estrangei- rica do Brasil. Depende muito do venções no espaço público sobre ro tem. Porque, para um público ouvinte, de sua experiência com a diferentes temáticas, mas ao mes- que não entende português, é su- língua e a cultura brasileira. mo tempo, às vezes, percebo um ficiente apreciar somente a músi- certo recuo, uma volta a um di- ca e os aspectos mais tipicamente IHU On-Line – Desde a Tropicália recionamento mais efetivo para o brasileiros da sonoridade dos gê- Caetano e Gil são tensionados a campo estético e cultural. neros musicais do Brasil e as ex- assumirem uma posição mais mi- perimentações com as influências É uma questão complexa, e o litante diante das questões políti- internacionais. Mas para aqueles caso de Israel, por exemplo, é cas que se apresentam ao longo da estrangeiros que falam português bastante complicado. O que me trajetória deles, seja no contexto a imagem que recebem é muito parece é que eles entenderam a brasileiro, seja no internacional, variada. É difícil generalizar essa importância de fazer o show nes- como nas polêmicas em torno do representação, porque Caetano e se país e falar sobre o assunto, dar show de ambos em Israel. De que 76 Gil têm uma vasta obra. Uma coisa o posicionamento deles a respeito modo o senhor interpreta o papel que é possível apontar é que ambos das ações do governo de lá. Mas de músico desempenhado pelos são conhecidos como vozes que não acho que a própria história de Gil e dois artistas no exterior? podem ser reduzidas a uma linha, Caetano foi decisiva para eles de- porque eles podem transitar por Christopher Dunn – Cada socie- cidirem ir a Israel, país onde eles diversos estilos. Dentro deste con- dade tem artistas que são mais também têm um público há bastan- texto amplo, eles são associados, engajados, entretanto acho que o te tempo.

■ LEIA MAIS... —— Fazer música: uma prática de cidadania. Entrevista especial com Christopher Dunn publi- cada na Revista IHU On-Line, nº 380, de 14-11-2011, disponível em http://bit.ly/1M19ikF.

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Baú da IHU On-Line Confira outras publicações do Instituto Humanitas Unisinos – IHU nas quais foi abordado o tema da música

• Tropicalismo. O desejo de uma modernidade amorosa para o Brasil. Revista IHU On-Line nº 411, de 10-12- 2012, disponível em http://bit.ly/20qxtD3;

• Canção: a palavra cantada. Revista IHU On-Line nº 380, de 14-11-2011, disponível em http://bit.ly/20qxNS9;

• Chega de saudade... Bossa Nova, 50 anos. Revista IHU On-Line nº 272, de 08-09-2008, disponível em http://bit.ly/20qxNS9;

• Rock ‘n’ roll na veia. Revista IHU On-Line nº 212, de 19-03-2007, disponível em http://bit.ly/1MesEqd;

• Jazz. O som da surpresa. Revista IHU On-Line nº 139, de 02-05-2005, disponível em http://bit.ly/1iAfpEj.

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IHU ON-LINE

IHU em Revista DESTAQUES DA SEMANA TEMA DE CAPA

Agenda de Eventos Confira os eventos que ocorrem no Instituto Humanitas Unisinos – IHU de 03-11-2015 a 13-11-2015

I Congresso Internacional de Estudos Históricos Latino- americanos – I CI – EHILA

Início: 04/11/2015 (quarta-feira) 04/11 a Término: 06/11/2015 (sexta-feira) 06/11 Local: Auditório Central – UNISINOS, Campus de São Leopoldo da UNISINOS (Av. Unisi- nos, 950, São Leopoldo – RS). Saiba mais em: http://bit.ly/1NefsCC

Ciclo de Estudos Metrópoles, Políticas Públicas e Tecnologias de Governo. Territórios, governamento da vida e o comum 80 Conferência: Movimentos sociais de resistência: coletivos de ocupação urbana 05/11 Conferencistas: Guilherme Schroder – Ocupação Pandorga, Lorena Castillo – Cole- tivo Ateneu Libertário a Batalha da Varzea, Darci Campos dos Santos – Vila Gaúcha – Porto Alegre e Orley Maria da Silveira – Vila União – Porto Alegre. Horário: 17h às 19h Local: Sala Ignacio Ellacuría e Companheiros – IHU Saiba mais em http://bit.ly/1jXsHfv

Ciclo de Estudos: Saúde e segurança no trabalho na região do Vale do Rio dos Sinos

O Ciclo compreende atividades presenciais e através de Ensino à Distância – EAD 09/11 a Saiba mais em http://bit.ly/1Mn1War 26/11

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Oficina: Realidades da Educação Infantil no Vale do Sinos e RMPA

Ministrantes: Profa.. Gislaine Leães e a Profa. MS Maria Claudia Bombassaro – SMED 10/11 – POA Horário: 14h às 17h Local: Sala Ignacio Ellacuría e Companheiros – IHU Saiba mais em http://bit.ly/1Wm0Yq7

Ciclo de Estudos O Capital no Século XXI – uma discussão sobre a desigualdade no Brasil

Conferência: Os ricos e a desigualdade de renda no Brasil 11/11 Conferencista: Prof. Dr. Marcelo Medeiros – UnB e Ipea Horário: 17h30min às 19h Local: A atividade será uma webconferência, transmitida na Sala Ignacio Ellacuría e Companheiros – IHU Saiba mais em http://bit.ly/1PanvjQ

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EVENTOS “Não se deve tributar as grandes fortunas. Deve-se tributar todas as fortunas” O economista e pesquisador Marcelo Medeiros apresentará na próxima semana, no Instituto Humanitas Unisinos – IHU, dados de uma pesquisa recente sobre a desigualdade brasileira

Por Ricardo Machado

s desafios com relação à ini- mente, pelos ricos. Por isso o compor- quidade social, educacional tamento da renda dos ricos afeta muito Oe econômica no Brasil foram o comportamento geral da desigualda- pensados historicamente observando de”, avalia. “Não se deve tributar as a base da pirâmide social. Para ten- grandes fortunas. Deve-se tributar to- tar compreender melhor o fenômeno, das as fortunas”, provoca. o pesquisador e economista Marcelo Medeiros virou a realidade de cabeça Marcelo Medeiros é graduado em para baixo e se deu conta de por que, Economia pela Universidade de Brasília apesar dos anos de estudo, soluções – UnB, mestre e doutor em Sociologia 82 efetivas para o problema nunca foram pela mesma instituição. Atualmente é apontadas. “Os ricos concentram uma pesquisador do Instituto de Pesquisa fração muito grande da renda total e, Econômica Aplicada – Ipea e professor por isso, têm um peso gigantesco na na UnB. Além disso, leciona anualmen- desigualdade. Falar de desigualdade te na Universidad Nacional de General é falar de ricos, da diferença entre os San Martín -UNSAM, Buenos Aires. Foi ricos e o resto. O que acontece com a pesquisador no International Poverty pobreza não muda muito a desigualda- Centre – UNDP, pesquisador-visitante de”, destaca em entrevista por e-mail no CSC – Cambridge University, no Ins- à IHU On-Line. titute for Human Development – Delhi, no Indira Ghandi Institute – Mumbai, na O professor chama atenção para o Sophia University – Tóquio, no CNRS- fato de que um quarto de toda a ren- Cermes3 – Paris e na University of Cali- da do país está concentrado em 1% fornia – Berkeley, além de especialista dos adultos, o que justifica observar em avaliação de políticas do Tribunal os ricos para compreender a pobreza. de Contas da União – TCU. “Quando se fala de renda, se fala de algo que é apropriado, predominante- Confira a entrevista.

IHU On-Line – Quais serão os da no Brasil no último ano. Ela tem O que acontece com a pobreza não pontos centrais a serem aborda- como eixo uma ideia simples, mas muda muito a desigualdade. dos na conferência Os ricos e a importante: os ricos concentram desigualdade de renda no Brasil, IHU On-Line – Quem são os ricos uma fração muito grande da ren- evento que ocorre na próxima do Brasil? De que forma eles de- semana? da total e, por isso, têm um peso sequilibram a balança da justiça gigantesco na desigualdade. Falar econômica e social no país? Marcelo Medeiros – Essa confe- rência sintetiza os resultados de de desigualdade é falar de ricos, da Marcelo Medeiros – Ainda pre- estudos sobre desigualdade de ren- diferença entre os ricos e o resto. cisamos saber mais sobre isso.

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preensão sobre o fenômeno da desigualdade? Marcelo Medeiros – Essa pesqui- sa e outra, publicada quase simul- Quando se fala de renda, se fala taneamente, usam os novos dados de algo que é apropriado, predo- do imposto de renda para analisar a história recente da desigualdade. minantemente, pelos ricos. Por Esses dados apontam que a desi- isso o comportamento da renda gualdade no Brasil é maior do que estávamos calculando até recente- dos ricos afeta muito o compor- mente e, ao contrário do que todos nós acreditávamos, não caiu entre tamento geral da desigualdade 2006 e 2012. E quando digo “nós”, me incluo: quando olhava apenas para os dados da PNAD eu também Temos que reavaliar parte do que te qualidade, e a história contada achava que havia queda. Mas em sabemos sobre desigualdade depois a partir da PNAD passa a dominar pesquisa sempre é assim, diante de que os dados do Imposto de Ren- acerca do que sabemos sobre desi- novos dados temos que rever nos- da confirmaram aquilo que muitos gualdade. Porém, a partir da déca- sas posições. A interpretação que suspeitavam: nossas informações da de 2000 os dados tributários vol- parece mais prudente é a de que sobre renda nas pesquisas domici- taram a ter muita importância em houve estabilidade entre 2006 e liares estavam subestimadas. Mas todo o mundo, pois são uma forma 2012, não queda. já sabemos, por exemplo, que cada de se analisar a história de longo pessoa das elites ocupacionais e prazo da desigualdade. No Brasil, a De todo modo, o que importa não educacionais contribui de forma primeira série de longo prazo sobre são os pequenos sobe e desce e sim muito desproporcional para a de- desigualdade ano a ano é do Pedro as grandes tendências, pois é isso sigualdade de renda. Elites edu- Souza, do Ipea, publicada em 2014, que ajuda a explicar o que causa a cacionais são as pessoas com for- e que cobre de 1933 a 2012. Recen- desigualdade no país e o que pode mação naquilo que alguns chamam temente essa série foi alongada e ser feito para reduzi-la. Precisa- 83 de profissões imperiais, como me- conta com dados desde 1928. mos saber o que muda no que sa- dicina, engenharia, direito e algu- bemos sobre desigualdade diante mas outras novas atividades. Elites É difícil resumir um período tão das novas evidências do imposto ocupacionais são os empresários. longo de história em poucas pala- de renda. Aprendemos muito com Estudos recentes também mostram vras, mas há algo na série que cha- as PNAD, agora precisamos colocar que essas elites são compostas pre- ma a atenção: nos períodos de di- esse conhecimento à prova, pois as dominantemente por homens bran- tadura a desigualdade sobe, nos de PNAD subestimam a renda no topo cos com mais de 45 anos de idade. democracia ela cai. Ao que parece, da distribuição. As desigualdades de gênero, raça os níveis mais baixos de desigual- e geração parecem ser maiores do dade da história brasileira foram IHU On-Line – Por que estudar que se acreditava. no começo dos anos 1960 e isso foi os mais ricos? De que forma eles revertido bruscamente em 1964, ajudam a compreender os mean- IHU On-Line – Historicamente, mesmo antes do milagre econômi- dros de uma sociedade em que a quais foram os aspectos determi- co do final da década. Não deve- maioria massiva da população é nantes da desigualdade no Brasil? mos, portanto, subestimar o papel pobre? Como foram medidos e analisados que o Estado e a política têm na Marcelo Medeiros – Um quarto os dados sobre a desigualdade? desigualdade. de toda a renda do país está con- Marcelo Medeiros – Os primeiros centrado em 1% dos adultos. Meta- estudos sobre desigualdade de ren- IHU On-Line – De que forma a de em 5% da população. Quando se da no Brasil datam da década de pesquisa A estabilidade da de- fala de renda, fala-se de algo que 1930. Eram estudos baseados em sigualdade de renda no Brasil, é apropriado, predominantemen- dados do imposto de renda, recém- 2006 a 2012: Estimativa com da- te, pelos ricos. Por isso o compor- -criado. Há estudos parecidos nas dos do imposto de renda e pes- tamento da renda dos ricos afeta décadas de 1940, 1950 e 1960. A quisas domiciliares,1 publicada muito o comportamento geral da partir dos anos 1970 o Brasil passa ano passado, atualiza nossa com- desigualdade. Aliás, também quan- a contar com a Pesquisa Nacional do se fala de crescimento, fala-se 1 Leia mais sobre a pesquisa nas Notícias por Amostra de Domicílio – PNAD, do Dia do IHU, disponível em http://bit. de algo que será apropriado, pre- pesquisas domiciliares de excelen- ly/1LZLYny. (Nota da IHU On-Line) dominantemente, pelos ricos. En-

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tre 2006 e 2012, o 1% mais rico fi- pagas pelo Estado contribuem com IHU On-Line – Em que medida cou com 28% dos frutos de todo o uma parcela não desprezível da a taxação das grandes fortunas crescimento do país. desigualdade, mas isso não é ne- pode contribuir no processo de cessariamente um problema: se o redução da iniquidade social? Em IHU On-Line – Embora os pro- Estado contratar mais enfermeiras que medida são insuficientes? para cuidar de pacientes nos hos- gramas sociais do Estado sejam Marcelo Medeiros – Não se deve voltados à população mais empo- pitais públicos, pagará mais salá- tributar as grandes fortunas. Deve- brecida, como explicar o fato de rios e irá provavelmente aumentar -se tributar todas as fortunas. Im- que os maiores fluxos de renda sua participação na desigualdade, postos são uma contribuição feita estatal sejam destinados às popu- mas isso não deve ser visto como para cuidar do bem comum. Todos lações da parte de cima da pirâ- algo ruim. Nem todo aumento da têm o dever de contribuir para o mide social? Como compreender desigualdade é ruim, nem toda re- bem comum, na proporção de suas os paradoxos que estão em jogo dução é boa. O problema é bem capacidades. Quem pode mais, nestes processos? mais complicado. paga mais. Por isso, precisamos Marcelo Medeiros – O que é im- rever não só a forma como tribu- portante nisso é entender que o IHU On-Line – De que ordem são tamos fortunas, mas toda nossa Estado é importante para determi- os desafios para superar a desi- tributação. Precisamos há anos de nar a desigualdade. Ou seja, desi- gualdade social no Brasil? algo difícil de fazer, uma reforma gualdade é um problema político, Marcelo Medeiros – Não existe tributária. Nas últimas décadas só no sentido dado pela Economia uma solução simples, rápida e ba- temos feito remendos, mas ne- Política à expressão. Quando o Es- rata para um problema dessa mag- nhuma reforma de maior fôlego. tado faz políticas para os mais po- nitude. Uma fórmula mágica desse Temos uma carga tributária dese- bres, ajuda a reduzir um pouco a tipo provavelmente está fadada quilibrada, que dá muito peso aos desigualdade; mas quando dá sub- ao fracasso. Não é simples fazer o tributos sobre produção, consumo sídios, investe em infraestrutura, Brasil ter a desigualdade da Áus- e trabalho e pouco peso ao imposto ou mesmo quando faz políticas de tria, assim como não é simples o de renda. Deveria ser o contrário, controle da inflação, ele pode es- Brasil ter o PIB per capita da Áus- pois o imposto de renda é economi- tar ajudando diretamente os mais camente muito mais eficiente que 84 ricos. tria. Uma coisa é certa: igualdade tem custos, esses custos não são outros impostos, além de ser tam- Nosso estudo mostra que a baixos. Criar uma sociedade justa bém mais justo. maior parte da população dá ou dá trabalho, e justiça implica re- É importante termos uma tribu- recebe diretamente rendas do Es- duzir uma série de vantagens que tação melhor, que ao mesmo tem- tado. Por exemplo, dá na forma de hoje tem a população mais rica. imposto de renda e contribuições po seja mais produtiva e mais justa previdenciárias e recebe na for- Por outro lado, igualdade é mais que a atual. Mas há muito mais na ma de transferências e salários. O eficiente. É melhor para a econo- promoção da igualdade que os tri- saldo desses fluxos de renda é que mia. Nossos níveis de desigualdade butos. Os impostos são importantes o Estado acaba transferindo mais são disfuncionais, atrapalham o para arrecadar de um lado e fazer dinheiro para os mais ricos do que bom desempenho de nossa econo- investimentos de outro. É com para os mais pobres. Em parte, isso mia, estimulam comportamentos impostos que se cria infraestrutu- é esperado, pois as pessoas con- predatórios e desestimulam com- ra e se investe em educação, por tratadas pelo Estado geralmente portamentos produtivos. Temos exemplo. Sem esses e outros inves- têm maior qualificação e isso está que mudar isso, mas vai custar timentos, vamos ficar para trás na associado a maiores salários. É im- muito, econômica e politicamente, corrida internacional estabelecida portante entender que as rendas e levará um bom tempo. pela globalização.

■ LEIA MAIS... —— Desigualdade de renda no Brasil: os 10% mais ricos e a metade mais pobre. Entrevista com Marcelo Medeiros publicada nas Notícias do Dia, de 01-10-2014, no sítio do IHU, disponível em http://bit.ly/1GMvu57; —— Problema está ligado à questão cultural, e não à baixa renda familiar. Artigo de Marcelo Medeiros reproduzido nas Notícias do Dia, de 03-01-2012, no sítio do IHU, disponível em http://bit.ly/1MkD6bj.

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TEOLOGIA PÚBLICA O princípio da sinodalidade em uma Igreja pós-convencional

Por Sérgio Ricardo Coutinho

Sínodo possibilitou aos participantes que colocassem sua racio- nalidade comunicativa em uso. Realizado em duas etapas, este “Oevento provocou, pelo menos na esfera do sistema burocrático romano, a abertura de um processo de liberação do ‘potencial de racionalidade contido no agir comunicativo’, por meio daquilo que Habermas chamou de ‘verba- lização do sagrado’. A ideia de verbalização do sagrado traduz uma ‘secularização racional’ do vínculo social primitivo na força ilocucionária da linguagem, cuja au- toridade está ligada à força não-coercitiva, motivada racionalmente, pelo melhor argumento”, escreve Sérgio Coutinho, professor de História. Segundo ele, através desse encontro, “Francisco conduz a Igreja a se encontrar com a sociedade moderna pós-convencional, ‘sem medo e sem esconder a cabeça na areia’”. Coutinho ainda entende que o Papa está “disposto a dar provas da sua vitalidade na contemporaneidade e sem ‘medo de abalar as consciências aneste- siadas ou sujar as mãos discutindo, animada e francamente’”. Sérgio Ricardo Coutinho é professor de História da Igreja no Instituto São Boa- 85 ventura de Brasília e da disciplina “Serviço Social, Religião e Movimentos Sociais”, no curso de Serviço Social do Centro Universitário IESB de Brasília. O artigo foi publicado originalmente nas Notícias do Dia, de 28-10-2015, no sítio do IHU, disponível em http://bit.ly/1GJfC3I. Eis o artigo.

“Uma condição geral de base é a seguinte: falar cla- exerce-se com estas duas atitudes”. (Discurso do Papa ro. Que ninguém diga: ‘Isto não se pode dizer; pensará Francisco na abertura da III Assembleia Geral Extraor- de mim assim ou assim...’. É necessário dizer tudo o dinária do Sínodo dos Bispos, 06/10/2014). que se sente com parrésia1. Depois do último Consis- Francisco propôs, há um ano, uma “reviravolta lin- tório (fevereiro de 2014), no qual se falou sobre a fa- guística” (linguistic turn): dizer tudo sem medo e ou- mília, um cardeal escreveu-me dizendo: é uma lástima que alguns Purpurados não tiveram a coragem de di- vir com humildade. Com isso, a Igreja, após o encer- 2 zer certas coisas por respeito ao Papa, talvez julgando ramento deste Sínodo da Família , retoma a prática

que o Papa pensasse de outra maneira. Isto não está 2 Sínodo da Família: em 2013 o papa Francisco convocou o Sínodo bem, isto não é sinodalidade, porque é necessário di- sobre a família, intitulado “Sínodo dos Bispos: os desafios pastorais da zer tudo aquilo que, no Senhor, sentimos que devemos família no contexto da evangelização”. Na primeira etapa, o Vaticano enviou às dioceses do mundo todo um questionário de 38 perguntas dizer: sem hesitações, sem medo. E, ao mesmo tem- sobre o tema, que serviu como um documento preparatório para a III po, é preciso ouvir com humildade e aceitar de cora- Assembleia Geral Extraordinária do Sínodo dos Bispos sobre a Famí- lia, que ocorreu em outubro de 2014. Durante a III Assembleia Extra- ção aberto aquilo que os irmãos dizem. A sinodalidade ordinária do Sínodo dos Bispos, no Vaticano foi produzido um texto com 46 pontos a serem refletidos pela comunidade católica. Todo esse 1 Parrésia: na retórica, parrésia é descrita como franqueza, confiança processo culminou na XIV Assembleia Geral Ordinária, que ocorreu ou ousadia para falar em público. A palavra grega é frequentemente entre 4 e 25 de outubro de 2015, no Vaticano. O discurso do Papa Fran- usada para descrever certos diálogos atribuídos a Jesus Cristo no Novo cisco aos bispos pode ser conferido pelo link http://bit.ly/1kQWt60. O Testamento. (Nota da IHU On-Line) sítio do Instituto Humanitas Unisinos – IHU também vem publicando

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nicativa. Ou seja, o proferimento linguístico também é uma forma de ação. É uma forma de agir que serve ao estabelecimento de rela- ções interpessoais. É o que Haber- O Sínodo possibilitou mas chama por agir comunicativo. aos participantes que O conceito habermasiano de ra- zão comunicativa visa mostrar que colocassem sua a estrutura racional interna dos racionalidade processos de intercompreensão se produz melhor num contexto so- comunicativa em uso cial, político e cultural, em que o “mundo vivido” não é mais o mo- nopólio das interpretações arcaicas iniciada no Concílio Vaticano II3 e se reinsere na mo- subtraídas à reflexão e das instituições autoritárias, dernidade pós-convencional. mas se abre à resolução discursiva dos problemas Seguindo a tese de Jürgen Habermas4, a Igreja, de- sociais e políticos (e, porque não, eclesiais e pasto- pois de 50 anos, faz novamente uma reviravolta linguís- rais). Por isso, Habermas acredita nos progressos de tica, deixando de lado a concentração quase que ex- uma socialização reflexiva no próprio seio do mundo clusivista na dimensão semântica (conceitual-abstrata) vivido, apoiando-se nos recursos da discussão, isto da linguagem dogmática. Com este Sínodo, a partir da é, efetuando-se na perspectiva do agir orientado a parrésia dos Padres sinodais, a Igreja voltou a valorizar intercompreensão. as “situações de fala”, das pretensões de validade, dos O Sínodo possibilitou aos participantes que colocas- argumentos, do uso da linguagem e de seus contextos, sem sua racionalidade comunicativa em uso (e muitos das tomadas de posição e dos papéis dialogais dos falan- deles com muitos anos de inutilidade). Realizado em tes. Numa palavra: da pragmática da linguagem. duas etapas, este evento provocou, pelo menos na es- De fato, este Sínodo possibilitou uma reviravolta fera do sistema burocrático romano (“colonizador” e 86 pragmática em que a linguagem passou a ser percebi- responsável por muitas patologias no “mundo da vida” da não somente na sua dimensão semântica-conceitu- das comunidades eclesiais), a abertura de um proces- al, mas, fundamentalmente, em sua dimensão comu- so de liberação do “potencial de racionalidade contido no agir comunicativo”, por meio daquilo que Habermas uma série de materiais acerca do Sínodo que pode ser acessado em ihu. chamou de “verbalização do sagrado”. A ideia de verba- unisinos.br. (Nota da IHU On-Line) 3 Concílio Vaticano II: convocado no dia 11-11-1962 pelo Papa João lização do sagrado traduz uma “secularização racional” XXIII. Ocorreram quatro sessões, uma em cada ano. Seu encerramen- do vínculo social primitivo na força ilocucionária da lin- to deu-se a 8-12-1965, pelo Papa Paulo VI. A revisão proposta por este guagem (realizar uma ação através de um enunciado), Concílio estava centrada na visão da Igreja como uma congregação de fé, substituindo a concepção hierárquica do Concílio anterior, que cuja autoridade está ligada à força não-coercitiva, mo- declarara a infalibilidade papal. As transformações que introduziu fo- tivada racionalmente, pelo melhor argumento. ram no sentido da democratização dos ritos, como a missa rezada em vernáculo, aproximando a Igreja dos fiéis dos diferentes países. Este O Concílio Vaticano II, no nosso entender, já tinha Concílio encontrou resistência dos setores conservadores da Igreja, iniciado o processo de dissolução de um imaginário e defensores da hierarquia e do dogma estrito, e seus frutos foram, aos poucos, esvaziados, retornando a Igreja à estrutura rígida preconizada de ações tradicionais no meio do episcopado, do cle- pelo Concílio Vaticano I. O Instituto Humanitas Unisinos – IHU ro e dos fiéis. No entanto, os últimos 30 anos ficaram produziu a edição 297, Karl Rahner e a ruptura do Vaticano II, de marcados por uma retomada de uma Igreja autorrefe- 15-6-2009, disponível em http://bit.ly/o2e8cX, bem como a edição 401, de 03-09-2012, intitulada Concílio Vaticano II. 50 anos depois, rencial, simultaneamente pré-convencional e conven- disponível em http://bit.ly/REokjn, e a edição 425, de 01-07-2013, cional. Ou seja, por um lado, uma Igreja marcada por intitulada O Concílio Vaticano II como evento dialógico. Um olhar práticas direcionadas a legitimar autoridades, onde se a partir de Mikhail Bakhtin e seu Círculo, disponível em http://bit. ly/1cUUZfC. Em 2015, o Instituto Humanitas Unisinos – IHU procurou criar homogeneidades e similitudes compor- promoveu o colóquio O Concílio Vaticano II: 50 anos depois. A Igre- tamentais. O consenso era obtido mediante a imposi- ja no contexto das transformações tecnocientíficas e socioculturais da ção de uma fala oriunda do topo do poder (o papado) contemporaneidade. As repercussões do evento podem ser conferidas na IHU On-Line, edição 466, de 01-06-2015, disponível em http:// à totalidade dos fiéis, determinando a permanência do bit.ly/1IfYpJ2 e também em Notícias do Dia no sítio IHU. (Nota da estado de coisas, das relações sócio-eclesiais, manten- IHU On-Line) do nas pessoas a resignação. 4 Jürgen Habermas (1929): filósofo alemão, principal estudioso da segunda geração da Escola de Frankfurt. Herdando as discussões Conforme bem lembrou o historiador Alberto Mello- da Escola de Frankfurt, Habermas aponta a ação comunicativa como ni5, desde o século XI, o pontífice sempre subtraiu a superação da razão iluminista transformada num novo mito, o qual encobre a dominação burguesa (razão instrumental). Para ele, o logos deve construir-se pela troca de ideias, opiniões e informações entre os 5 Alberto Melloni (1959): historiador da igreja conhecido especial- sujeitos históricos, estabelecendo-se o diálogo. Seus estudos voltam-se mente por seu trabalho sobre o Concílio Vaticano II. Melloni estudou para o conhecimento e a ética. (Nota da IHU On-Line) em Bolonha, Cornell e Fribourg. Ele lecionou na Universidade de Bo-

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potestade dos bispos. Paulo VI6 restitui algumas facul- tra Francisco. Como afirma Massimo Faggioli7, isto dades em atenção ao Vaticano II. No entanto, neste se deu, em parte, pela “aversão pessoal ao papa Sínodo, “nunca, há mil anos, um papa tinha cedido argentino por parte dos órfãos dos pontificados poderes por vontade própria”. anteriores”, mas também pelo “sintoma da ideo- Por outro lado, e simultaneamente, uma Igreja logização e doutrinalização do catolicismo ‘lei e centralizada numa normatividade social baseada na ordem’”. “Lei” (Código de Direito canônico e Catecismo da Este Sínodo propiciou um novo ethos que privile- Igreja Católica) e confirmada pela Tradição de modo giou a “verbalização do sagrado”, a inovação, a par- formal. Toda a identidade católica, coletiva ou indi- ticipação, a iniciativa, a parceria, a deliberação co- vidual, devia estar baseada na aceitação das conven- mum, as reformas negociadas e não outorgadas, não ções, em conformidade com as normas numa imitação permitindo a repetição literal da Tradição e obrigan- ou reprodução social. De fato, como mais uma vez do a uma interpretação das mudanças. Neste modelo lembra Meloni, o próprio Sínodo dos bispos, apesar do de Igreja pós-convencional, Francisco encontrou nos nome, nunca foi nada mais do que um órgão consulti- “princípios de organização” de sinodalidade e de co- vo, que entregava ao papa os próprios antagonismos, legialidade, e no princípio da “misericórdia”, aqueles para que ele mediasse e chegasse a um consenso por valores universais presentes no Evangelho: integrida- todos sem correr riscos. de, direitos humanos, reciprocidade, justiça social, Foram os defensores deste modelo de Igreja que liberdade e igualdade. geraram os incidentes e destilaram o veneno con- Com este Sínodo, Francisco conduz a Igre- lonha, a Universidade de Roma III e é professor de História do Cristia- ja a se encontrar com a sociedade moderna pós- nismo na Universidade de Modena e Reggio Emilia, titular da Cátedra convencional, “sem medo e sem esconder a cabeça Unesco para o Pluralismo Religioso e Paz, e Diretor da Fondazione per le Scienze Religiosas João XXIII de Estudos da Religião em Bolonha. na areia”, disposto a dar provas da sua vitalidade Também é colunista do Il Corriere della Sera e é comentarista da RAI na contemporaneidade e sem “medo de abalar as TV. Leia O modelo de família que surge do Sínodo, artigo de Alberto consciências anestesiadas ou sujar as mãos discu- Melloni publicado nas Notícias do Dia, de 26-10-2015, disponível em http://bit.ly/1XLDpnG. (Nota da IHU On-Line) tindo, animada e francamente”. 6 Papa Paulo VI: nascido Giovanni Battista Enrico Antonio Maria Montini, Paulo VI foi o Sumo Pontífice da Igreja Católica Apostólica 7 Massimo Faggioli (1970): historiador da ■Igreja, Professor Associa- de 21 de junho de 1963 até 1978, ano de sua morte. Sucedeu ao Papa do do Departamento de Teologia e diretor do Instituto para o catolicis- 87 João XXIII, que convocou o Concílio Vaticano II, e decidiu continuar mo e Cidadania na Universidade de St. Thomas, St. Paul, Minnesota. os trabalhos do predecessor. Promoveu melhorias nas relações ecu- Leia, também, O ataque contra Francisco: a carta dos 13, mas não só, mênicas com os Ortodoxos, Anglicanos e Protestantes, o que resultou artigo de Massimo Faggioli publicado nas Notícias do Dia, de 14-10- em diversos encontros e acordos históricos. (Nota da IHU On-Line) 2015, disponível em http://bit.ly/1HoreUy. (Nota da IHU On-Line)

LEIA MAIS... —— Igreja e sociedade: o projeto de Francisco. Artigo de Sérgio Ricardo Coutinho, publicado em Notícias do Dia de 25-06-2013, no sítio do Instituto Humanitas Unisinos – IHU, disponível em http://bit.ly/1N7ioRl. —— O desafio da conversão pastoral e de um novo modelo deIgreja. Entrevista com Sérgio Ricardo Coutinho, publicada na revista IHU On-Line nº 465, de 18-05-2015, disponível em http://bit.ly/1LBEglD. —— Os “novos” bispos de Francisco no Brasil: mudar para que as coisas continuem as mesmas. Artigo de Sérgio Ricardo Coutinho, publicado em Notícias do Dia de 19-02-2015, no sítio do Instituto Humanitas Unisinos – IHU, disponível em http://bit.ly/1LBEo4k. —— Para além de ruptura e continuidade. O Concílio Vaticano II e os diferentes projetos histó- ricos. Entrevista com Sérgio Ricardo Coutinho, publicada na revista IHU On-Line nº 395, de 04-06-2012, disponível em http://bit.ly/1LBEtVJ. —— A recepção de Francisco no Brasil Entre o início e o fim de uma “primavera”. Artigo de Sérgio Ricardo Coutinho, publicado em Notícias do Dia de 24-03-2013, no sítio do Instituto Humanitas Unisinos – IHU, disponível em http://bit.ly/1S9bmvl.

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TEOLOGIA PÚBLICA “Uma Igreja da Reforma precisa estar sempre sendo reformada” “Não há organização religiosa que perpasse os tempos sem um corpo doutrinário, que podemos chamar, no caso das instituições cristãs, de princípios fundamentais”, avalia Oneide Bobsin

Por Patrícia Fachin

pesar de o termo protestante individualmente. Costumo brincar que estar “cada vez mais em desu- o sistema capitalismo não tem graça. Aso no Brasil”, nas duas Igrejas E os fiéis destas Igrejas herdeiras de Luteranas – IELB e IECLB – “que trazem uma concepção gratuita da vida e da em sua identificação uma explicitação fé estão tão integrados na visão ideo- do patrimônio teológico do reformador lógica do sistema, que dificulta a expli- Martinho Lutero (...) o traço étnico citação de uma peculiaridade que não teuto-brasileiro ainda é muito saliente. é própria das Igrejas da Reforma, mas Mas isto é um traço externo. Tais igre- do cristianismo com as suas múltiplas jas luteranas, herdeiras da Reforma do igrejas – a reciprocidade que nasce da século XVI, continuam atualizando a gratuidade”, justifica. 88 compreensão de que os seres humanos não podem contribuir com a salvação. Em 2017, as Igrejas Evangélicas de Mas tocados por ela, a salvação de gra- Confissão Luterana irão celebrar os 500 ça por meio da fé, se envolvem com os da Reforma, e uma série de atividades problemas da humanidade”, diz Onei- estão sendo planejadas para marcar a de Bobsin à IHU On-Line, na entrevista data. Toda essa movimentação, diz Bo- a seguir, concedida por e-mail por oca- bsin, “tem relação com a busca de atu- sião do dia de hoje em que se celebra alização da Reforma do século XVI, com os 498 anos da Reforma. o objetivo de reafirmar a mensagem de De acordo com Bobsin, “este traço Cristo para um mundo globalizado, ain- distintivo é de difícil tradução para o da pouco reconciliado”. nosso contexto brasileiro; e não o é Oneide Bobsin é professor de Ciên- por causa do catolicismo. Acho que a cias da Religião na Escola Superior de concepção de vida que se baseia na Teologia – EST, e é doutor em Ciências graça de Deus bate de frente com a Sociais pela Pontifícia Universidade de visão de mundo do sistema capitalista São Paulo – PUC-SP. de consumo, que nos vende a ilusão de que somos poderosos e podemos tudo Confira a entrevista.

IHU On-Line – Qual é o significa- ma. Valho-me da condição de pro- burguesa e a revolução socialista. do da Reforma? fessor de Ciências da Religião para São referências que nos consti- comentar as perguntas. tuem como ocidente distinto de Oneide Bobsin – O meu ponto de outros povos. Como vivemos cinco partida não se baseia estritamente Para o nosso mundo ocidental séculos após o movimento da Re- numa teologia confessional, embo- a Reforma Protestante é uma das forma Protestante, não temos mais ra eu seja um teólogo identificado grandes referências. No campo po- a dimensão do lugar que a religião com uma Igreja oriunda da Refor- lítico tivemos a revolução francesa ocupava naquela época. Uma mu-

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que o sistema capitalismo não tem graça. E os fiéis destas Igrejas her- deiras de uma concepção gratuita da vida e da fé estão tão integra- Quando a pureza religiosa, polí- dos na visão ideológica do sistema, que dificulta a explicitação de uma tica ou de outra natureza se ins- peculiaridade que não é própria tala, procura-se eliminar o dife- das Igrejas da Reforma, mas do cristianismo com as suas múltiplas rente, simbólica ou fisicamente igrejas – a reciprocidade que nasce da gratuidade.

IHU On-Line – Na igreja católica, dança no campo religioso impac- IHU On-Line – Qual é a peculia- ao menos em algumas regiões do tava profundamente a sociedade ridade do protestantismo pratica- país, percebe-se um sincretismo em suas múltipla dimensões. Hoje, do no Brasil? religioso. O mesmo ocorre en- em nosso contexto, uma mudan- Oneide Bobsin – O termo “pro- tre os protestantes? Como avalia ça religiosa tende mais para uma testante” está cada vez mais em esse tipo de fenômeno e de que adaptação à sociedade. Evidente desuso no Brasil. A grande mídia modo o protestantismo dialoga que precisamos desconsiderar o comprou a proposta de igrejas com o pluralismo religioso e o impacto do fundamentalismo. Tam- pentecostais que renomearam os sincretismo? bém precisamos considerar que a cristãos não católicos apostóli- Reforma Protestante foi um movi- Oneide Bobsin – Parto do pres- cos romanos como “evangélicos”. suposto que não há religião pura. mento religioso dentro da cristan- Não vou, pois, falar deste campo dade ocidental heterogêneo e que E quando a pureza religiosa, políti- “evangélico”, que também bebe, ca ou de outra natureza se instala, não tinha como objetivo a cisão do de certa forma, da Reforma do sé- cristianismo. procura-se eliminar o diferente, culo XVI. Limito-me às duas Igre- simbólica ou fisicamente. Não con- jas Luteranas – IELB e IECLB – que seguimos entender o Novo Testa- IHU On-Line – Qual foi o impac- 89 trazem em sua identificação uma mento sem o Antigo Testamento. to religioso, social e cultural da explicitação do patrimônio teoló- Na verdade, os cristãos são judeu- Reforma? gico do reformador Martinho Lute- -cristão. Nossa Bíblia é composta Oneide Bobsin – Nenhum fenô- ro, apesar das diferenças entre si. de duas tradições, embora as Igre- meno, seja ele social, político ou Como protestantismo luterano de jas cristãs lêem o Antigo Testamen- religioso pode ser visto de forma transplante, o traço étnico teuto- to através do Novo. Assim, como há estanque. Há uma inter-relação -brasileiro ainda é muito saliente. uma variedade de práticas católi- entre as diversas dimensões da Mas isto é um traço externo. Tais cas que se interpenetram com ou- realidade. Nesta perspectiva, a igrejas luteranas, herdeiras da Re- tras tradições religiosas, como, por Reforma retomou aspectos impor- forma do século XVI, continuam exemplo, a indígena ou de matriz tantes do cristianismo que a se- atualizando a compreensão de que africana, da mesma forma, no pro- dimentação eclesiástica fora tor- os seres humanos não podem con- testantismo isto também ocorre, nando irrelevante. A valorização tribuir com a salvação. Mas tocado embora seja menos admitido pelo da educação pública recebeu for- por ela, a salvação de graça por clero e por teólogos. Principal- te impulso da Reforma; no campo meio da fé, se envolvem com os mente no contexto urbano, onde o político, a separação entre Igreja problemas da humanidade. controle social da comunidade de e Estado impulsionou uma autono- Em outras palavras, o que rece- fé é menor, há pessoas luteranas mia relativa entre política e reli- bemos na fé devemos passar aos que recorrem a outros credos nos gião. Igreja e Estado passam a ser outros no amor. Este traço distin- momentos difíceis da vida, como distintos, mas não separados. Com tivo é de difícil tradução para o luto, desemprego, doença etc. E isto temos impulsos para a consti- nosso contexto brasileiro; e não o não significa que estas pessoas dei- tuição do Estado moderno, laico. é por causa do catolicismo. Acho xam de participar de sua Igreja. Repito, não que isto tivesse sido que a concepção de vida que se No imaginário religioso dominante, um plano explícito dos reformado- baseia na graça de Deus bate de os sistemas religiosos são comple- res; antes foi uma decorrências de frente com a visão de mundo do mentários. Na cabeça da religião novas concepções que já estavam sistema capitalista de consumo, oficial existe uma certa ilusão de nos primórdios do cristianismo. A que nos vende a ilusão de que so- exclusão dos sistemas, que para música e o estudo das línguas anti- mos poderosos e podemos tudo a maioria é complementar. Como gas recebem impulsos. individualmente. Costumo brincar a televisão trouxe a religião para

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dentro de casa, este processo sin- diferenças de princípios entre as a partir dos efeitos da legalidade, crético tende a se aprofundar. Igrejas. Mas isto é assunto para com a eleição de Ildo Meneghet- teologia confessional. ti para o Governo do Estado. De IHU On-Line – Na igreja católi- qualquer forma, a transferência ca há tentativas de rever tanto IHU On-Line – Em que consiste da Assembleia foi um duro golpe a doutrina quanto as práticas de sua pesquisa acerca da atuação na IECLB da época, gerando, logo atuação, a exemplo do Sínodo dos da Igreja Evangélica de Confissão em seguida, um rico debate de in- bispos, que discutiu uma série de Luterana no Brasil durante a dita- serção dela no contexto brasileiro questões relacionadas à família. dura militar? empobrecido. Há possibilidade de revisões dou- Oneide Bobsin – Estou concluin- trinais ou das práticas religiosas do uma pesquisa sobre Direitos IHU On-Line – Como estão os entre os protestantes? Em que Humanos, Ditadura Civil-militar preparativos para a celebração aspectos? Como se dá essa discus- e Igreja. A pesquisa privilegiou o dos 500 anos da Reforma? são na sua igreja? entorno dos anos de 1970, quando Oneide Bobsin – Há um grande Oneide Bobsin – Não há organiza- deveria ocorrer no Brasil a Assem- movimento bem diversificado no ção religiosa que perpasse os tem- bleia da Federação Luterana Mun- sentido de buscar uma atualiza- pos sem um corpo doutrinário, que dial, uma assembleias de igrejas ção da mensagem da Reforma para podemos chamar, no caso das ins- luteranas que representavam mais múltiplos contextos, sem cair con- tituições cristãs, de princípios fun- ou menos 70 milhões de pessoas. fessionalismos excludentes, como damentais. Tais princípios podem Poucas semanas antes de sua rea- no passado. Tenho poucas condi- ser comparados aos fundamentos lização, ela fora transferida para ções para fazer avaliações quan- de um prédio, via de regra, não Evian, França. Comitivas de várias titativas. No campo teológico há visíveis. Mas, diante da complexi- partes do mundo estavam reticen- uma grande movimentação. A Fa- dade da vida, de novos desafios e tes com a presença do Governo culdades EST, por exemplo, criou de novas perguntas, as instituições brasileiro na Assembleia. Circula- uma Cátedra de Pesquisa sobre precisam descongelar a tradução va pela Europa e pela América do Lutero. Assim, há tantas outras das doutrinas para que possam ser Norte, de onde viria grande par- iniciativas no campo teológico e 90 relevantes para os novos tempos. te das comitivas, que o regime eclesial mundo afora. Tenho certe- As perguntam mudam; elas preci- brasileiro desrespeitava os direi- za que toda a movimentação tem sam ser respondidas com as mes- tos humanos, especialmente dos relação com a busca de atualização mas doutrinas. Na maioria das igre- oponentes políticos. A questão da da Reforma do século XVI, com o jas cristãs, e não é diferente nas tortura dos inimigos do governo objetivo de reafirmar a mensagem grandes religiões, são formados militar era vista como inverdades de Cristo para um mundo globaliza- corpos de teólogos e teólogos, cuja denunciadas pela imprensa inter- do, ainda pouco reconciliado. tarefa é auscultar as novas pergun- nacional para algumas das lideran- tas e atualizar as tradições. Prefiro ças locais. Afinal, precisamos constante- falar em atualização que “revisão mente de reformas em todos os A direção da Igreja Luterana de doutrinas”. campos. Lutero havia dito que de então afirmava que não havia uma Igreja da Reforma precisa Uma instituição religiosa que tortura no Brasil, embora pessoas estar sempre sendo reformada. não sabe traduzir sua mensagem exiladas comentavam o contrário Esperamos isto para o Estado bra- para novos tempos, certamen- no exterior. Fiz uma pesquisa en- sileiro, bem como necessitamos te trai seus princípios. Um dos trevistando um grupo de pessoas de tantas outras reformas, como problemas das Igrejas, muitas luteranas que participaram na re- agrária, a política, educacional, vezes, reside na dificuldade de sistência ao Regime Militar através tradução de princípios. A tradu- da participação política, movimen- urbana etc., de forma a que to- ção das palavras de Cristo é um tos estudantil e, posteriormente, dos/as sejam incluídos/as na dis- problema complexo, que merece na luta dos pequenos agricultores. tribuição da riqueza. Uma das revisão no sentido de atualiza- Tais pessoas confirmam a existên- grandes contribuições da Reforma ção, mas sem cair em modismos. cia de violação aos direitos hu- Protestante foi a subordinação Há poucos dias o padre Zezinho manos, torturas, antes de 1970, da economia à política. Vivemos disse algo fundamental, como embora os “anos de chumbo” são numa subordinação da política a aviso a alguns dos novos padres considerados a partir de 70. A Co- interesses econômicos de elites, cantores: “Quando o meio se tor- missão Estadual da Verdade/RS, que desfiguram a cidadania. na mais importante que a men- da qual fiz parte, tinha como- ob sagem, algo está equivocado no jeto de apuração as violações no IHU On-Line – Como avalia a meio e na mensagem”. Ele ques- período de 1961 a 1985. No RS, por visita do papa Francisco a Igreja tionou o modismo. Contudo, há exemplo, a repressão já se instalou evangélica e luterana em Roma?

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Oneide Bobsin – Só posso - da Igreja Católica porque é um de Cristo. Nos seus gestos pasto- tir uma opinião pessoal, como papa muito atualizado. Seus ges- rais estão implícitos os valores do os demais comentários acima: é tos simples, fransciscanos, denun- evangelho de Cristo. É uma tes- um papa certo para um momen- ciam um modo de vida arrogante temunha de seu tempo. Ora, não to certo. Em outras palavras, é e consumista que ameaça o nosso uma pessoa situada no tempo e planeta. Talvez tenha muitos con- é fácil ser contemporâneo de seu nos grandes dramas da humanida- flitos internos com a hierarquia, próprio tempo. Papa Francisco de. Sabe se comunicar para além que teme atualizar a mensagem consegue.

LEIA MAIS... —— “A participação dos evangélicos na vida política desprivatiza as igrejas”. Entrevista com Oneide Bobsin publicada nas Notícias do Dia, de 25-02-2015, no sítio do IHU, disponível em http://bit.ly/1WtkFw2; —— Libertados pela graça de Deus. Dia 31 de outubro a festa da Reforma protestante. Repor- tagem publicada nas Notícias do Dia, de 27-10-2015, no sítio do IHU, disponível em http:// bit.ly/1koIjbw; —— Protestantes alemães pedem perdão pela iconoclastia da Reforma. Reportagem publicada nas Notícias do Dia, de 30-07-2015, no sítio do IHU, disponível em http://bit.ly/1LNQQy5; —— O tributo ao ecumenismo. Primeira vez que um Papa visita um templo valdense. Reporta- gem publicada nas Notícias do Dia, de 22-06-2015, no sítio do IHU, disponível em http:// bit.ly/1Mejnyi; —— Novo presidente da Igreja Evangélica Alemã confirma unidade à frente dos 500 anos da Reforma. Reportagem publicada nas Notícia do Dia, de 04-02-2015, disponível em http:// 91 bit.ly/1MuT7eN; —— O Papa poderá participar do jubileu da Reforma. Reportagem publicada nas Notícias do Dia, de 22-01-2015, no sítio do IHU, disponível em http://bit.ly/1Pj6bJv; —— Reencarnação – entre o determinismo e a liberdade. Entrevista com Oneide Bobsin publica nas Notícias do Dia, de 06-03-2007, no sítio do IHU, disponível em http://bit.ly/1NagwCV.

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#Crítica Internacional - Curso de RI da Unisinos Contenção da Rússia, ontem e hoje

Por Diego Pautasso

desintegração da União Soviética e as fragilidades da Nova Rússia governada por Boris Yeltsin (1991-1999) aparentaram o fim da po- “A lítica de contenção. Bastou surgir uma liderança como Vladimir Putin (presidente da Rússia de 1999 a 2008, retornando ao Kremlin desde 2012) disposto a recolocar a Rússia no centro da política internacional, desafiando ini- ciativas e impondo resistências aos planos dos EUA e seus aliados, para que a polí- tica de contenção ganhasse evidência novamente”, avalia Diego Pautasso. Diego Pautasso é doutor e mestre em Ciência Política com ênfase em Relações Internacionais pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul – UFRGS, e gradu- ado em Geografia pela UFRGS; atua como professor de Relações Internacionais da Unisinos. E-mail: [email protected]. Eis o artigo.

92 O quadro histórico das relações da Rússia com o Oci- fora do domínio dos países membros (Balcãs), sem que dente é repleto de contradições: a invasão napoleô- estes estivessem sendo ameaçados e, para completar, nica, o apoio à contrarrevolução russa, o ‘cordão sa- ultrapassando o mandato da ONU. Paralelamente à ex- nitário’ e a brutal agressão nazista. Durante a Guerra pansão da OTAN, tem ocorrido uma notável expansão Fria, a política de contenção da URSS desencadeada da União Europeia (UE) em direção ao Leste Europeu, pelos EUA inspirada em George Kennan redundou no de modo que em 2004 entraram Malta e Chipre e os cerco militar (OTAN, CENTO e OTASE), dando substân- países do antigo campo socialista, como Estônia, Letô- cia às formulações geopolíticas de Nycholas Spykman, nia, Lituânia, Polônia, República Tcheca, Eslováquia, segundo o qual quem controlasse o rimland controlaria Hungria e Eslovênia, aos quais se somaram em 2007 a Eurásia (heartland mackinderiano) e, com efeito, o Romênia e Bulgária e, em 2013, Croácia. E ainda es- mundo. tão em processo de tramitação sobretudo os países da antiga Iugoslávia (Sérvia, Bósnia, Macedônia), além de A desintegração da União Soviética (URSS) e as fra- Albânia, Islândia e Turquia. Não por acaso, a Ucrânia gilidades da Nova Rússia governada por Boris Yeltsin de Petro Poroshenko (atual presidente e oligarca cuja (1991-1999) aparentaram o fim da política de conten- fortuna tem duvidosa origem) assinou um acordo de ção. Bastou surgir uma liderança como Vladimir Pu- associação com a União Europeia prevendo a liberali- tin (presidente da Rússia em duas ocasiões, de 1999 zação comercial e a futura integração ao bloco. a 2008 e retornando ao Kremlin desde 2012) disposto a recolocar a Rússia no centro da política internacio- Além das expansões da OTAN e União Europeia, de- nal, desafiando iniciativas e impondo resistências aos vemos destacar outras iniciativas ocidentais voltadas planos dos EUA e seus aliados, para que a política de a limitar o espaço de atuação da Rússia na política contenção ganhasse evidência novamente. Esta é a internacional. Primeiro, o governo norte-americano do lógica da Organização do Tratado do Atlântico Norte recém-eleito George W. Bush retirou em 2001 o país (OTAN, aliança militar do Ocidente) que mais do que do Tratado de Mísseis Antibalísticos (ABM) assinado em dobrou o número de integrantes: em 1999, ingressa- 1972 com a URSS, objetivando levar adiante a ideia ram Hungria, Polônia e República Checa; em 2004, de construção de um Sistema de Defesa Antimíssil na foram incluídas Bulgária, Estônia, Letônia, Lituânia, Polônia e na República Tcheca. Em 2008, os três paí- Romênia, Eslováquia e Eslovênia; e em 2009, aderi- ses assinaram um acordo que prevê a instalação desse ram Albânia e Croácia – inclusive com uma intervenção sistema com uma base de dez mísseis interceptores na

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A vilanização da Rússia volta-se a evi- tar a formação do heartland baseado no eixo Berlim-Moscou-Pequim completa- mente fora do controle de Washington

Polônia e um radar de detecção na República Tcheca, inimigos capazes de prover a coesão para a sua lide- provocando fortes reações do presidente Dmitri Med- rança: o discurso do ‘fim da história’ e a Guerra Global vedev (sucessor de Putin e seu aliado, governando de ao Terror tinham limites espaciais e temporais. É assim 2008 a 2012) e o recuo do presidente Barack Obama. que se enquadra a lógica de criar atritos e ameaças na fronteira russa e esperar respostas afirmativas como Destaque-se ainda que o intervencionismo e o unila- forma de forjar uma espécie de russofobia no Ociden- teralismo dos EUA no Pós-Guerra Fria têm provocado insegurança. Note-se que tais demonstrações de for- te e isolar o gigante eurasiano. A vilanização da Rússia ça concentram-se no entorno estratégico da Rússia, volta-se a evitar a formação de um heartland baseado principalmente as intervenções no Balcãs, quando da num eixo Berlim-Moscou-Pequim completamente fora desintegração da Iugoslávia, e no Afeganistão, com a do controle de Washington. declaração da Guerra Global ao Terror. Paralelamente, A vilanização da Rússia, em oposição a uma suposta os EUA aproveitaram a oportunidade para a ampliação Europa historicamente democrática e civilizada, é par- de sua capacidade de projeção de força, com a cons- te da narrativa voltada a reforçar visões maniqueístas. trução de base aérea uzbeque de Khanabad e o aero- Entretanto, há mais contradições que perpassam os porto de Manas, na Quirguízia. A presença na região espaços europeu e russo nesses séculos. Dialeticamen- foi confrontada pela Rússia e China através da OCX, te, as principais potências europeias foram também o que resultou no fechamento dessas bases militares promotoras do imperialismo no século XIX; o epicentro 93 em 2005 e 2014, respectivamente. Ademais, muitas das duas sangrentas guerras mundiais; e, após isso e já intervenções ocorreram ultrapassando o mandato con- concomitante com a integração europeia, os respon- ferido pelas Nações Unidas, como as agressões ao Ira- sáveis por violentas guerras contra os movimentos de que (2003) e à Líbia (2011). Sem exceção, da Somália libertação nacional. No Pós-Guerra Fria, as potências (1993) à Líbia e Síria (2013-14), todas as intervenções ocidentais foram artífices da traumática desintegração tiveram resultados trágicos, sob qualquer perspectiva. da Iugoslávia, da expansão da União Europeia no ex- Some-se a isso o apoio aberto a grupos oposicionis- -espaço soviético, da desestabilização de regimes na tas em países vizinhos da Rússia. As ‘revoluções colori- Geórgia (2003) e Ucrânia (2004 e 2014) em favor de das’ são ilustrativas: a revolução das rosas na Geórgia regimes de perfil fascista. Sem mencionar suas con- (2003), a revolução laranja na Ucrânia (2004) e a re- tribuições na destruição política e territorial de paí- volução das tulipas na Quirguízia (2005). Nitidamente ses objetos de intervenção, como Afeganistão (2001), são os golpes do século XXI, com grande mobilização Iraque (2003) e Líbia (2011). A Rússia, ao contrário, de inteligência, recursos financeiros, atuação de- or foi palco da mais importante revolução do século XX, ganizações não governamentais etc. O expansionismo central para a universalização de direitos sociais inclu- dos EUA e a contenção da Rússia fazem parte da cons- sive na Europa do Estado de Bem Estar, e do combate trução da narrativa da “Nova Guerra Fria”. Diante da à mais retrógrada força política do século, o nazifas- desintegração da URSS, os EUA se viram desprovidos de cismo.

Expediente Coordenadora: nome da professora, com a maior titulação Editor: Bruno Lima Rocha, com a maior titulação Autor: nome do autor com a maior titulação

SÃO LEOPOLDO, 03 DE NOVEMBRO DE 2015 | EDIÇÃO 476 DESTAQUES DA SEMANA TEMA DE CAPA

PUBLICAÇÕES

Um olhar biopolítico sobre a bioética

Cadernos IHU ideias, em sua 229ª edição, publica o artigo “Um olhar biopolítico sobre a bioética”, de Anna Quintanas Feixas da Universidade de Girona, Espanha. Nos últimos anos temos defendido a necessidade de cruzar a bioética com os estudos biopolíticos. A razão principal reside no fato de pensar que a bioética corre o risco de converter-se na “cara amável da biopolítica” se, de forma consciente ou não, seu quefazer contribuir para maquiar, esconder ou esfumar as relações de poder e as questões políticas que se produzem em torno do “bios”. Seguramente, este perigo tem causas que estão além da própria bioética, posto que parece ser uma tendência do nosso tempo abusar do ponto de vista ético-humanitário, de tal forma que a perspectiva política fica relegada ou esquecida. A versão digital está disponível em http://bit.ly/1RDWmoj Esta e outras edições dos Cadernos IHU ideias podem ser adquiridas diretamente no Instituto Humanitas Unisinos – IHU ou solicitadas pelo en- dereço [email protected]. Informações pelo telefone 55 (51) 3590 8213.

94 Concílio Vaticano II: o diálogo na Igreja e a Igreja do Diálogo Cadernos Teologia Pública, em sua 101ª edição, traz o artigo Concílio Vaticano II: o diálogo na Igreja e a Igreja do Diálogo, de Elias Wolff, PUCPR (Pontifícia Universidade Católica do Paraná). Refletir sobre o Concílio Vaticano II implica refletir sobre o diálogo na Igreja e a Igreja do diálogo como um dos elementos centrais para o aggiornamento ecle- siológico proposto pelo ensino conciliar. O Concílio foi em si mesmo uma fecunda experiência de diálogo e essa experiência passa a configurar o modo de ser e de agir da Igreja. A partir de então, a Igreja desenvolve essa experiência em três principais horizontes: com a sociedade (diálogo sociocultural); com as outras Igrejas (diálogo ecumênico); com as religiões (diálogo inter-religioso). Isso implica saber situar-se no contexto sociocultural e religioso atual, que se caracteriza pela pluralidade. Nesse contexto, é preciso superar toda tendência ao exclusivismo, à apologética conflitiva, ao universalismo mono- polizador. E afirmar uma “Igreja em saída”, “não autorreferenciada”, que não teme percorrer os caminhos do diálogo, da comunhão e da parceria. Somente assim é possível um real aggiornamento da Igreja em sua auto- consciência, suas instituições, seus projetos de evangelização, sua espiritualidade, na perspectiva do encontro com as diferentes tradições socioculturais, eclesiais e religiosas do nosso tempo que a enriquecem. Esse modus essendi e modus operandi da Igreja precisa ser afirmado nas comunidades católicas atuais como expressão da fidelidade destas à dialogicidade do ensino conciliar. A versão digital está disponível em http://bit.ly/1WoUtNP Esta e outras edições dos Cadernos Teologia Pública podem ser adquiridas diretamente no Instituto Humanitas Unisinos – IHU ou solicitados pelo endereço [email protected]. Informações pelo telefone (51) 3590 8467.

SÃO LEOPOLDO, 03 DE NOVEMBRO DE 2015 | EDIÇÃO 476 TEMA DE CAPA IHU EM REVISTA

Retrovisor Releia algumas das edições já publicadas da IHU On-Line.

Canção: a palavra cantada

Edição 380 – Ano XI – 14.11.2011 Disponível em http://bit.ly/1kh01xJ É ao som de e Fernando Brant que a IHU On-Line desta se- mana traz como tema de capa a canção. A “palavra cantada” e a intensa relação entre música, literatura, cultura e sociedade é o assunto desta edição feita em parceria com Pedro Bustamante Teixeira, doutorando do Programa de Pós-Gradu- ação em Letras: Estudos Literários e Representações Culturais da Universidade Federal de Juiz de Fora – UFJF. Contribuem nesta edição Alexandre Faria, Car- los Sandroni, Christopher Dunn, Luiz Augusto de Morais Tatit, Pedro Bustamante Teixeira, Santuza Cambraia Naves, Walter Garcia da Silveira Junior e Júlio Cesar Valladão Diniz.

Tropicalismo. O desejo de uma modernidade amorosa para o Brasil Edição 411 – Ano XII – 10.12.2012 95 Disponível em http://bit.ly/1Wm2F6K Um modo de ser nos trópicos, uma postura de vida, uma antropofagia que deglutiu a jovem guarda, a bossa nova e influências além-mar e regurgitou uma cultura nova e inquietante, embalada por guitarras elétricas e dissonâncias as mais diversas. Tudo isso e mais um pouco ajuda a compreendermos o que foi o movimento tropicalista, surgido em 1967 como expressão máxima de uma arte que não podia e nem queria mais ser a mesma. Os tempos eram outros, urgia o novo. Nem o peso das botas de um regime ditatorial poderia sufocá-la. Contudo, nem todos os pesquisadores que participam do debate proposto pela IHU On-Line desta semana concordam no caráter inovador e emblemático do tropicalismo. Contribuem para o debate Gilberto Felisberto Vasconcellos, Eduardo Guerreiro Brito Losso, André Monteiro, Celso Fernando Favaretto, Pedro Rogério, Pedro Bustamante Teixeira, Júlio Cesar Valladão Diniz, Armando Almeida e Frederico Oliveira Coelho.

João Simões Lopes Neto: força de literatura brasileira e latino-americana

Edição 73 – Ano III – 01.07.2003. Disponível http://bit.ly/1NGceGd O tema de capa deste primeiro número do mês de setembro é dedicado a João Simões de Lopes Neto. Trata-se de um escritor gaúcho, que abriu caminho da invenção de uma linguagem típica como o fariam depois João Guimarães Rosa e o pernambucano João Cabral de Melo Neto, segundo preciosa observação de um dos estudiosos entrevistados nesta IHU On-Line. A relação que a professora Márcia Lopes Duarte estabelece entre J. Simões de Lopes Neto e Jorge Luis Borges é sim- plesmente fascinante. João Simões Lopes Neto é patrimônio da cultura brasileira e latino-americana.

SÃO LEOPOLDO, 03 DE NOVEMBRO DE 2015 | EDIÇÃO 476 Eventos

O ciclo tem o propósito de realizar um processo de formação em saúde e segu- rança no trabalho, em vis- ta da sua melhoria na vida dos(as) trabalhadores(as), no ambiente das empresas e no contexto da região do Vale do Rio do Sinos.

Inscrições e mais informa- ções em http://bit.ly/1M1fXvt.

Os ricos e a desigualdade de renda no Brasil

O evento integra a programação do Ciclo de Estudos que analisa e debate o livro O Capital do Século XXI de Thomas Pi- ketty. Conferencista: Prof. Dr. Marcelo Medeiros – UnB e Ipea Data: 11-11-2015 Encontro com representantes de Movimentos sociais Horário: 17h30min às 19h de resistência, às 17h30, na Sala Ignacio Ellacuría e Compa- Local: A atividade será uma webconferência, transmitida na Sala Ignacio Ellacuría e Companheiros – IHU. nheiros – IHU. Esta atividade integra o 2º Ciclo de Estudos Metrópoles, Políticas Públicas e Tecnologias de Governo. Territórios, governamento da vida e o comum. Conferencistas: Guilherme Schroder - Ocupação Pandorga Lorena Castillo - Coletivo Ateneu Libertário a Batalha da Varzea Darci Campos dos Santos - Vila Gaúcha - Porto Alegre Orley Maria da Silveira - Vila União - Porto Alegre

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