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Caminhando e Cantando

História Fazendo Música e Música Cantando História

Marco Antonio Gonçalves

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História Fazendo Música e Música Cantando História

MARCO ANTONIO GONÇALVES

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Marco Antonio Gonçalves

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“Dedico este livro primeiro à Deus, como tudo em minha vida, e depois à memória de Fernando Gil Feichas, a primeira pessoa a conceder entrevista para este trabalho, à Heloisa Feichas, por ter, de todas as formas possíveis e imagináveis, contribuído para que este projeto tivesse êxito, a todos que de alguma forma contribuíram para a realização deste livro e à toda a minha família, em especial à minha mãe, Francisca Maria da Silva, simplesmente por ser a melhor pessoa do mundo, que me ensinou tudo o que sei e a qual tudo o que sou”

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“A única coisa melhor que música, é falar de música” Gabriel García Marques

“Estou pensando Nos mistérios das letras de música Tão frágeis quando escritas Tão fortes quando cantadas”

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--- Sumário

Apresentação...... 11

Prefácio...... 17

Capítulo 1 – Período Pré-Bossa Nova...... 23

Capítulo 2 – A Bossa Nova...... 29

Capítulo 3 – Início da Repressão ...... 54

Capítulo 4 – Afirmação e Renovação...... 99

Capítulo 5 – A Década do Rock...... 126

Capítulo 6 – Fim de uma Era...... 142

Epílogo...... 155

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Apresentação

A música brasileira já foi tema de vários livros, reportagens, séries, filmes e documentários nacionais e estrangeiros. Ela também já serviu como trilha sonora de vários sucessos do cinema e até Walt Disney a usou em suas animações. É admirada nos quatro cantos do mundo. Em todo lugar que se vá alguém vai cantar, pelo menos cantarolar, “Garota de Ipanema”, “Aquarela do Brasil”, “Tico-Tico no Fubá” ou então, quem sabe, alguma coisa do Sepultura ou do Cansei de Ser Sexy. Mas é claro, nem todos gostam de música brasileira, mas negar que no Brasil surgiram gênios da música como , Tom Jobim, João Gilberto e é extrema ignorância. Desde o início da bossa nova em 1958 à era dos Festivais e início da rotulada MPB na década de 1960 até a explosão do rock Brasil em 1982, a música tupiniquim sempre contou a história do país em suas letras e melodias. A canção brasileira nos últimos 50 anos passou por várias transformações. Participou da luta contra a ditadura e da volta à democracia. Apesar das chuvas e tempestades, a boa música nacional continua aí, seja com os cantores antigos que se reinventam cada vez mais. Seja com aqueles que só com as músicas que fizeram no passado não precisam fazer mais nada (pois já estão no inconsciente popular), ou com a nova geração que surge para dar um sopro de vida nessa tão fascinante forma de expressão. Gente que sabe que fazer boa música independe de mídia ou repercussão. Depende de talento, dom, carisma... Desde a explosão do rock Brasil pouca coisa nova e com qualidade surgiu no canário musical brasileiro. O saudoso nordestino Chico Science e seu Mangue Beat é uma delas, o outro exemplo que me vem à memória é a banda de heavy metal

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Marco Antonio Gonçalves mineira Sepultura, que cantando em inglês levantou platéias no mundo inteiro. Outras coisas boas podem ter surgido aqui e ali, mas nenhuma teve repercussão nacional ou até tiveram, mas não merecendo os créditos deste exigente escriba. Claro que alguns grupos, bandas e cantores depois dessa época (década de 1980) são bons e vão ser citados ao longo desta história, mas eles vêm inspirados pelos antigos roqueiros, pelos emepebistas e pelos bossa-novistas então não inovaram; mas repito merecem todos os créditos. Uma das bandas de qualidade que surgiram na pobre década de 1990 foi a mineira Pato Fu. Aliás, a música de veio com tudo na última década do milênio. Vocalista da banda, a simpaticíssima Fernanda Takai, talvez tenha sido a minha maior inspiração para começar esse trabalho. A encontrei pela primeira vez no ‘Festival da Mantiqueira – Diálogos com a Literatura’ em São Francisco Xavier, charmoso distrito de São José dos Campos, em 2008. Estava no segundo ano da faculdade. Naquela época tinha que fazer uma grande reportagem e a minha pauta era o cinquentenário da bossa nova, que se completaria em agosto daquele ano. Entrei na fila dos autógrafos com a esperança de conseguir gravar pelo menos algumas palavras suas. Ela havia gravado um CD em homenagem à bossa-novista Nara Leão. Como se não bastasse ao seu lado estava o jornalista, escritor, produtor, o multifacetado Nelson Motta, grande conhecedor da música nacional e que vivenciou de perto os principais fatos que vão ser narrados neste livro. Cheguei tímido ao lado de Fernanda e fiz algumas perguntas. Ela foi de uma simpatia singular, com um sorriso e uma voz doce que me fez ficar encantado ainda mais pela sua música e pela de Nara Leão, motivo da entrevista. Nelson Motta também foi gentil e me respondeu às perguntas (que certamente estava

12 Caminhando e Cantando cansado de responder) com a autoridade de um juiz de futebol quando apita uma falta clara a meio metro distância. Fiz uma excelente reportagem, a melhor que eu já havia feito (é claro que eu não havia feito muitas antes daquela), mas por uma dessas coisas que às vezes acontecem, o áudio da entrevista foi apagado e a voz doce da Fernanda Takai e a grossa e meio anasalada de Nelson Motta conversando comigo se perderam para sempre. Já tinha decupado toda a entrevistam então dos males, o menor. Sem maiores problemas e sem ressentimentos com o professor que apagou a entrevista. Alguns meses depois as professoras Vânia Braz e Celeste Marinho me sugeriram continuar a reportagem no meu trabalho de conclusão de curso e aceitei o desafio, que aumentei ao ter a pretensão de falar da música brasileira depois da criação da bossa nova por João Gilberto. Sempre gostei de música, quando pequeno ouvia Roberto Carlos, Chico Buarque e outras coisas assim por tabela, já que minha mãe é fã desses cantores. Por outro lado, meu pai, como bom mineiro nascido na roça, tinha vários LPs de duplas caipiras dos mais variados e esquisitos nomes. Para a minha sorte puxei o gosto musical de minha mãe, mas confesso que nutro um certo carinho pela música caipira. Isso vem de berço. Tinha então genes necessários para gostar de boa música. E assim foi. História, no sentido real da palavra, é uma coisa pela qual sempre me interessei. Sempre achei fascinante saber o que aconteceu no passado e que pode ter influenciado o que vivemos hoje e o que virá pela frente. Até hoje me fascino quando descubro algo que não conhecia ou imaginava. A História tem esse poder, pelo menos sobre mim. A música e a história estão sempre ligadas quando contamos a história recente do Brasil. Chico Buarque e os seus criticando

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Marco Antonio Gonçalves a ditadura, Os Incríveis ressaltando o Brasil dos anos de chumbo, o rock e a redemocratização. Falar da música brasileira é um trabalho árduo e complicado. A criatividade do nosso povo e a mistura de raças faz com tenhamos vários tipos de manifestações através da música em todo o país; Algumas consideradas de bom gosto e que nos representam em todo o mundo. Outras podem até nos representar, mas são de gosto duvidoso e letras sem conteúdo, ao menos histórico. O escritor Jairo Severiano, um dos maiores conhecedores de nossa música, autor de “Uma história da música popular brasileira – das origens à modernidade”, uma das obras de referência deste livro, dividiu a história da música brasileira em quatro partes distintas: Formação (1770-1928), consolidação (1929-1945), transição (1946-1957) e modernização (de 1958 até os dias atuais). Este livro, portanto, vai tratar da moderna música brasileira, segundo definição de Severiano, no final do período de transição até o final do século. Esse é um livro sobre a história da música brasileira desde os anos 50. Obviamente, aqui estão algumas histórias, das mais curiosas, compiladas nos mais diversos livros sobre música, biografias de artistas, compositores, artigos de revista, jornais, vídeos e documentários e também em entrevistas com nomes que fizeram parte da história da música brasileira, como Nelson Motta e . Este livro, como não poderia deixar de ser, tenta mostrar como a História do Brasil (política, social e econômica) e a História da música sempre caminharam lado a lado nos últimos sessenta anos. Elas estão sempre andando juntas e se cruzam em diversos pontos. Durantes alguns anos elas formaram uma só linha, em outros se distanciaram, mas sempre se encontram. São algumas dessas

14 Caminhando e Cantando convergências que estão reunidas aqui. Esse livro tem os mais diversos livros, dos mais variados autores, (que constam na sua bibliografia) como fontes de histórias e curiosidades. Talvez, o livro que mais tenha inspirado este trabalho seja “Noites Tropicais – Solos, Improvisos e Memórias Musicais” de Nelson Motta, um retrato auto-biográfico do autor, que presenciou de perto os mais importantes acontecimentos da moderna música brasileira. A criação da bossa-nova, a Jovem Guarda, a MPB dos Festivais e o rock da geração 80. Os Gêneros que são tratados nessa história. Vamos ver como um baiano de jeito tímido e pouca fala modernizou e mudou para sempre a história da música brasileira. Como quatro amigos adolescentes do subúrbio do se transformaram em ícones de nossa música. Também saberemos a importância de programas de televisão para toda uma geração de artistas e como esses programas reuniram os mais celebres compositores de nossa música na década de 1960. Como um grupo de teatro e a influência de uma rádio contribuíram para a cena roqueira nos anos 80, entre tantas outras histórias e explicações. É a música como influência para a sociedade, para o pensamento e para a política. Como combustível para ações sociais e em alguns casos, rebeldia e protesto. Aqui estão reunidos os mais diversos pontos em que a História do país se une à História da Música. Um trabalho que visa contar a história da música brasileira é, de certa forma, algo pretensioso. Escrever sobre a história da música é, de fato, um trabalho instigante, que traz dificuldades, mas ao mesmo tempo, é extremamente gratificante, pois a música do Brasil é como o seu povo: cheia de misturas, criatividade, alegria, tristeza e histórias, ou causos, como se diria em Minas. A música do

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Marco Antonio Gonçalves nosso país criou seu próprio sotaque e é, sem sombra de dúvida, a maior expressão artística nacional.

Viva a Música Brasileira!

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Prefácio

--- Contexto histórico

Getúlio Vargas chegara ao poder no Brasil em 1930, depois da revolução que impediu a posse de Julio Prestes, presidente do Estado de e vencedor das eleições naquele ano. Em 1937, Getúlio instituiria o Estado Novo, regime político autoritário e ditatorial no Brasil e governaria o país até 1945, quando acontecem eleições diretas e é eleito o general Eurico Gaspar Dutra. Durante esse período o mundo viu a ascensão de Hitler na Alemanha e de Mussolini na Itália e o início da Segunda Guerra Mundial, a mais sangrenta batalha de todos os tempos, com a invasão da Polônia pelos alemães em 1939 e o fim do conflito em 1945 com a rendição da Alemanha e, posteriormente as bombas atômicas sobre Hiroshima e Nagasaki, impondo enfim, a derrota ao resistente Japão. Em 1942, Getúlio declara Guerra aos países do Eixo, Itália e Alemanha. No ano seguinte, cria a Força Expedicionária Brasileira (FEB), tropa brasileira que iria combater a partir de 1944 ao lado dos países aliados na Itália. A partir do final do conflito, o mundo se via sob a égide da Guerra Fria, iniciada após o final da Segunda Guerra. Estados Unidos e União Soviética, vitoriosos na guerra contra Hitler, disputavam o posto de maior potência mundial. Os americanos chegaram a essa posição de destaque no início do século XX, subjugando a Inglaterra, sua antiga colonizadora. A história do país é um dos fatores que os levaram, já no início do século passado, a superar as grandes potências europeias. O país da América do Norte foi um dos

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Marco Antonio Gonçalves primeiros do continente a conquistar a independência, em 1776 e logo quando foi alcançada, já foi instalada a república presidencialista. A União das Repúblicas Socialistas Soviéticas (URSS) nasceu com a revolução russa de 1917, com a chegada ao Kremlin do comunismo de Lênin e a união de outras diversas nações do leste europeu ao governo russo. A União Soviética dominava a parte leste do globo, enquanto o capitalismo americano tinha sob sua tutela o ocidente. O mundo estava divido em dois. O bloco capitalista e o bloco comunista. Surgem duas Alemanhas, ergue-se o Muro de Berlim, a Europa é separada pela Cortina de Ferro. Esse período foi uma época de grandes transformações no cenário mundial, em todos os campos possíveis, desde a ciência à cultura. Nessa época de disputa de poder, era preciso que as duas potências conseguissem mais aliados e, principalmente, manter os que já rezavam pela sua cartilha. Para o historiador Geoffrey Blainey, “somente o uso imaginativo da palavra ‘Guerra’ poderia descrever apropriadamente as relações entre os Estados Unidos e a União Soviética – que se assemelhava mais a uma quente e tensa paz”.

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--- A música brasileira antes de 1950

A música brasileira nesse período tinha como seu ritmo mais popular o . O samba poderia ser dividido em algumas vertentes como o samba do partido alto, o samba-enredo que animava as escolas de samba nos desfiles de carnaval, as marchinhas, o samba-canção, que era mais lento e cadenciado que as marchinhas, além de outras variações do estilo. O samba, com esse nome, era um gênero que fazia sucesso desde a gravação de “Pelo Telefone” composição de e Mário de Almeida, registrado como o primeiro samba da história, em 1917. O escritor e jornalista paranaense Leandro Narloch, dedica um capítulo do seu livro “Guia Politicamente Incorreto da História do Brasil” ao samba e afirma que o ele não é um estilo originário apenas de sons africanos. “Os estilos europeus fazem parte da raiz ancestral do samba tanto ou mais que a percussão africana. Os primeiros sambistas participavam de bandas de , adoravam ouvir tango e conhecer as novidades musicais nos cabarés parisienses”. O local tido como o berço do samba era a casa de Hilária Batista da Silva, a Tia Ciata, baiana que morava na Praça Onze, centro do Rio de Janeiro. Ali se reuniam não só a elite do samba, mas também a elite intelectual do país. “À noite e nos fins de semana, músicos, políticos, intelectuais, jornalistas e amigos iam para o samba na casa dela – até então samba significava festa e não um tipo de música”, afirma Leandro Narloch. No final da década de 1950 seria atribuído a um grupo de amigos que frequentavam a casa do senhor Jairo Leão, o surgimento da bossa nova, algo equivocado. Se tivermos de atribuir a um grupo de amigos a criação de um estilo, há de se

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Marco Antonio Gonçalves reconhecer o grupo que frequentava o quintal da mãe-de-santo de Salvador que morava no centro da capital federal, o Rio de Janeiro. Da casa da tia Ciata saiu o que hoje chamamos samba. Em 1942, a política da boa vizinhança já estava em voga pelos Estados Unidos, era importante que os países não se sentissem tentados a ir para o lado alemão da batalha. No mesmo ano é lançado o filme “Alô, amigos”, resultado de uma visita de Walt Disney ao Brasil e a outros países latino- americanos. No filme, o Pato Donald encontra um novo personagem, o Zé Carioca e passeia pela orla de Copacabana, além de sambar com Carmem Miranda. Leandro Narloch diz que o estado de euforia no país foi grande e o samba entrou em evidência quando do lançamento do filme. “Nada poderia ser mais significativo para os brasileiros. Na década de 1940, o Brasil era um país rural e pobre – não participava da lista das trinta maiores economias do mundo. De repente, a nação que poucas décadas antes se considerava uma reunião de párias e degenerados, ganhou uma homenagem da Disney, referência artística de um dos países mais poderosos”, escreveu ele. Ele ainda vai mais longe e diz que o samba só virou símbolo nacional por conta do nacionalismo empregado pelo presidente Vargas e, entre outras coisas, do sucesso do filme. “Sua ascensão (do samba) tem pouca coisa de pura ou autêntica: veio da variação de um estilo anterior, nacionalizou- se com a obsessão dos artistas com o exótico, o interesse de um presidente fascista e a influência de um desenho animado”. Na década de 1920 e 1930, o samba teve compositores que entraram para a história da música brasileira, como o compositor de Vila Isabel, . Noel de Medeiros Rosa nasceu em 11 de dezembro de 1910 no famoso bairro de Vila Isabel, um dos recantos do samba, do Carnaval e da boemia carioca. Letrista talentoso e cantor

20 Caminhando e Cantando consistente, o “Poeta da Vila” foi um dos mais importantes representantes da “Época de Ouro” da música popular brasileira. Em seus 26 anos de vida – ele morreu em 1936, vítima de tuberculose, doença que o acompanhou durante anos. Noel compôs obras-primas da música brasileira como “Com que Roupa?” e “Palpite Infeliz” e levou o samba para o rádio, recém inaugurado no país por Roquette Pinto no ano do primeiro centenário da independência, 1922. O começo da era de ouro do rádio no Brasil deu-se com a inauguração da Rádio Nacional do Rio de Janeiro no dia 12 de setembro de 1936, com a voz melodiosa de Celso Guimarães: “Alô, alô Brasil! Aqui fala a Rádio Nacional do Rio de Janeiro!”, seguido pelos acordes de “Luar do Sertão”, de João Pernambuco e Catulo da Paixão Cearense, precedido pela benção do cardeal da cidade Dom Sebastião Lemes da Silveira Cintra. Com a rádio nacional, a transmissão radiofônica no Brasil se profissionalizou e ajudou popularizar a música brasileira. A rádio nacional alcançava boa parte do território do país com seus programas de auditório (sim, grande parte dos programas do rádio tinha auditório), musicais, radionovelas e programas jornalísticos, como o Repórter Esso e a Voz do Brasil, instituída por Getúlio Vargas em 1935, persistindo no rádio brasileiro até os dias de hoje. A Rádio Nacional além de ser grande divulgadora da música que era feita por aqui tembém foi importante veículo para a propaganda da ditadura de Vargas. O presidente usava o meio de comunicação para fazer seus discursos e também para falatórios de seus apoiadores. Getúlio sabia muito bem usar a mais nova e poderosa “arma” de comunicação de massa. O governo federal não enxergava com bons olhos a música que era feita no território nacional, então tentou nacionalizá-la o mais

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Marco Antonio Gonçalves que pôde. Influenciou artistas como Heitor Villa-Lobos e a compor músicas que mostrassem o valor do povo brasileiro. Ary Barroso gravou durante o governo Vargas e, talvez por influência dele, o samba-exaltação “Aquarela do Brasil”que virou um dos símbolos do nosso país. Na música, Ary Barroso exaltava a nossa natureza e a miscigenação brasileira. Falava bem da mistura de raças que aconteceu no Brasil e que era combatido com veemência por alguns intelectuais brasileiros da época, como Monteiro Lobato – O escritor do Sítio do Picapau Amarelo escreveu na década de 1920 o livro “O Presidente Negro” em que crítica a união interracial e, de certo modo, prega o extermínio de raças descritas por ele como inferiores e por outros que eram apreciadores da eugenia que teve presença forte em vários países no começo do século XX. A canção veio como um complemento e uma consequência do que pregava o escritor e antropólogo Gilberto Freyre no livro “Casa Grande e Senzala”, publicado em 1 de dezembro de 1933. Esse nacionalismo na música feita no Brasil ainda persistiu depois da queda do Estado Novo em 1945, com a chegada de Dutra ao Catete.

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Capítulo 1 --- Período prépré----bossabossa nova

“BOTA O RETRATO DO VELHO OUTRA VEZ BOTA NO MESMO LUGAR. BOTA O RETRATO DO VELHO OUTRA VEZ, BOTA NO MESMO LUGAR. O SORRISO DO VELHINHO FAZ A GENTE TRABALHAR

EU JÁ BOTEI O MEU ... E TU, NÃO VAIS BOTAR? JÁ ENFEITEI O MEU .. E TU, VAIS ENFEITAR? O SORRISO DO VELHINHO FAZ A GENTE SE ANIMAR"

Essa marchinha composta por Haroldo Lobo e Marino Pinto foi a mais executada no carnaval de 1950. A letra fazia alusão claramente ao retorno de Getúlio ao cenário político depois de cinco anos de exílio voluntário na Fazenda Itu em São Borja, no Estado do Rio Grande do Sul. Getúlio havia estado no poder por 15 anos (1930-1945) dando lugar ao general Eurico Dutra. Na eleição de 1950, Getúlio consegue se eleger facilmente com 47,8% dos votos contra 29,6% do brigadeiro Eduardo Gomes da UDN e 21,5% de Cristiano Machado do PSD, que informalmente apóia Getúlio. O primeiro ano da década de 1950 ficaria marcado de maneira triste na memória dos brasileiros. O Brasil sediou a Copa do Mundo de Futebol da FIFA. A competição voltava a

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Marco Antonio Gonçalves acontecer depois de 12 anos, período que ficou parada por causa da Guerra. A Europa estava se reconstruindo depois de ter ficado em ruínas e era preciso que a competição fosse realizada em outro lugar. A FIFA escolheu o Brasil e em de 24 de junho a 16 de julho de 1950 aconteceu a competição com 13 países participantes. O jogo final da Copa foi entre Brasil e Uruguai no Maracanã lotado. Mais de 200 mil pessoas estavam no estádio. O empate dava o título ao Brasil. O jogo estava empatado em um a um, quando Ghiggia fez o segundo gol uruguaio, nos minutos finais da partida. Silêncio no maior do mundo. O Uruguai ganhava seu segundo título mundial e o Brasil teria que esperar um menino que em 1950 tinha nove anos, morava em Bauru, tinha por apelido Gasolina, mas se chamava Edson, para ganhar a sua primeira Copa ainda naquela década. Em abril de 1950 também foi feita a primeira transmissão televisiva, realizada em São Paulo, pelos Diários Associados, de Assis Chateaubriand. Pouco depois, em setembro, era inaugurada a TV Tupi, o primeiro canal de televisão brasileiro. Invenção dos anos 20, a tevê já era bem conhecida nos Estados Unidos e na Alemanha, onde grandes transmissões já haviam ocorrido, como a dos Jogos Olímpicos de Berlim em 1936. A tela em preto e branco nem havia chegado ao Brasil, mas a RCA já anunciava em 1949, nos EUA, a criação da tevê em cores, adotada a partir de 1954. O início da década também é marcado por grandes transformações sociais no Brasil. Um grande êxodo migratório com direção ao Sul do país tem início e as grandes cidades do Sudeste do país como São Paulo e Rio de Janeiro têm uma explosão demográfica conhecida apenas no final do século XIX e início do século XX com a chegada de imigrantes de toda a

24 Caminhando e Cantando parte do mundo, em busca de trabalho nas fazendas de café do interior. A cidade de São Paulo tinha pouco mais de um milhão e 300 mil habitantes em 1940. Dez anos depois, a cidade alcançou quase dois milhões e 200 mil habitantes e em 1960, a cidade já tinha quase três milhões e 800 mil habitantes. Todo esse crescimento demográfico resultou em um mistura ainda maior de culturas na maior cidade do país. João Rubinato era um comediante da São Paulo do início da década de 1950, ele fazia seus personagens no rádio e com eles alcançou o sucesso, mas a consagração de Rubinato viria com o nome de um famoso personagem seu. Ele assumiu o nome de e passou a cantar as coisas da cidade. Ele fez nascer o samba tipicamente paulistano com o forte sotaque e com o humor que lhe era peculiar. Ele compôs que entraram na história não só do cancioneiro paulistano, mas do repertório musical de todo o Brasil. Em “Saudosa Maloca”, uma de suas músicas mais conhecidas, o cantor que completaria 100 anos em 2010 contava sobre essa rápida urbanização da cidade de São Paulo e sua verticalização com as casas dando lugares a enormes prédios que aos poucos tomariam conta da cidade.

SE O SENHOR NÃO TÁ LEMBRADO DÁ LICENÇA DE CONTAR QUE ALI ONDE AGORA ESTÁ ESTE "ADIFÍCIO ARTO" ERA UMA CASA "VÉIA", UM PALACETE ASSOBRADADO FOI AQUI SEU MOÇO QUE EU, MATO GROSSO E O JOCA CONSTRUIMOS NOSSA "MALOCA" MAS UM DIA

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"NÓIS" NEM PODE SE "ALEMBRÁ" VEIO OS "HOME" COM AS FERRAMENTA E O DONO "MANDÔ DERRUBÁ" PEGUEMOS TODAS NOSSAS COISAS E FUMOS PRO MEIO DA RUA "APRECIÁ" A DEMOLIÇÃO QUE TRISTEZA QUE "NÓIS" SENTIA CADA TÁUBA QUE CAÍA DOÍA NO CORAÇÃO MATOGROSSO QUIS GRITAR MAS EM CIMA EU FALEI OS "HOME TÁ CÁ" RAZÃO "NÓIS ARRANJA" OUTRO LUGAR SÓ "SE CONFORMEMO" QUANDO O JOCA FALOU DEUS DÁ O FRIO CONFORME O "COBERTÔ" E HOJE "NÓS PEGA" A PAIA NAS GRAMA DO JARDIM E PRA ESQUECER "NÓIS CANTEMOS" ASSIM:

SAUDOSA MALOCA, MALOCA QUERIDA DIM DIM "DONDE NÓIS PASSEMO" OS DIAS FELIZ DE NOSSA VIDA

SAUDOSA MALOCA, MALOCA QUERIDA DIM DIM "DONDE NÓIS PASSEMO" OS DIAS FELIZ DE NOSSA VIDA

Adoniran Barbosa soube como ninguém escrever sobre as coisas da capital paulista. Além de “Saudosa Maloca”, no mesmo período ele comporia “Trem das Onze”, uma das músicas mais conhecidas do Brasil e que seria marco da cidade de São Paulo até hoje (Não posso ficar nem mais um minuto

26 Caminhando e Cantando com você... Moro em Jaçanã. Se eu perder esse trem que sai agora às 11 horas, só amanhã de manhã). Em 1951, a expansão da capital paulista estava em pleno vapor. A cidade já dava mostras de que ia se transformar na maior cidade da América, como é hoje em dia. Os casarões da antiga São Paulo do período imperial davam lugar a construções modernas e prédios enormes. Muitos desses casarões estavam abandonados e eram habitados por migrantes que chegavam a São Paulo sem ter onde ficar. É sobre essa situação bem típica de cidades que se industrializou rapidamente que trata a letra de Adoniran. De letra melancólica e melodia fácil, a música simboliza mais do que São Paulo do início da segunda metade do século XX. Ela também é o retrato de todas as grandes cidades do mundo pós-guerra, do mundo do início da Guerra Fria. Outro sucesso do início dos anos 50 que se tornou um clássico foi a música "Chiquita Bacana", de João de Barro, o , e Alberto Ribeiro, cantada por Emilinha Borba e destaque do carnaval de 1950 (Chiquita bacana lá da Martinica.Se veste com uma casca de banana nanica). Emilinha e Marlene, sua famosa rival, despontaram nessa época. Era a fase áurea dos programas de auditório no rádio. Como elas, o público cultuava artistas como , o “rei do baião”, que do rádio passaria a gravar seus discos, emplacando hits nordestinos, como “Assum Preto” e o xote “Cintura Fina”. A música de Gonzagão que ficou marcada para sempre foi “Asa Branca”. Essa música, que foi exaustivamente regravada, nos conta a migração das pessoas do nordeste brasileiro para o sul. É a história de um homem que precisa deixar o nordeste por causa da seca que sempre assolou a região. A música passou de popular a cult ao longo dos anos e hoje é referência quando se trata de música regional brasileira.

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Nessa mesma época, também começavam a atrair a atenção popular, os músicos Jackson do e a dupla Alvarenga e Ranchinho, com letras satíricas inspiradas na cena política. Tonico e Tinoco também já faziam sucesso cantando os causos do interior do Brasil. O disco de vinil tinha sido lançado em 1948, deixando meio obsoletos os antigos e pesadões 78 rotações. Além do baião, e da música caipira, o samba-canção, mais romântico, revelava Dolores Duran, Ângela Maria (apelidada Sapoti por Getúlio Vargas) e Cauby Peixoto, entre outras celebridades da música. Dolores Duran morreu jovem, aos 29 anos, mas com um seleto repertório e com parcerias importantes, como o jovem pianista Antonio Carlos Jobim, que compôs o samba-canção “Estrada do Sol”, para letra de Dolores. Essa uma das primeiras músicas gravadas de Tom. Na primeira metade dos anos 50 também se destacaram Francisco Alves, conhecido pela alcunha de o "Rei da Voz", o maior cantor popular da época de ouro do rádio. Ele morreu carbonizado em um acidente na Via Dutra, na divisa de Pindamonhangaba e Taubaté. Um caminhão entrou na contramão e colidiu de frente com seu carro.

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Capítulo 2 --- A Bossa Nova

Tendo tudo isso como pano de fundo, vamos parar de respeitar a cronologia e voltar um pouco no tempo até 1956. O cenário é a Avenida Atlântica, 2853, apartamento 303, coluna Louvre, do edifício Palácio Champs Élysées, no bairro de Copacabana, no Rio de Janeiro. O imóvel é de propriedade do advogado Jairo Leão e sua esposa, conhecida como Dona Tinoca. Eles têm duas filhas, Danuza, a mais velha, modelo e casada com Samuel Wainer, diretor do jornal Última Hora, o jornalista mais amado e odiado do país. A mais nova é Nara, nascida em 19 de janeiro de 1942 em Vitória no Espírito Santo. Com dois anos viera com a família para a então capital federal. Ela adora música e tem aulas de violão com Patrício Teixeira, professor renomado e talentoso músico. Não era comum àquela época, famílias como a de Nara deixar seus filhos, principalmente filhas, aprenderem algum instrumento. Mulher ainda era vista apenas como a rainha do lar e era em casa que deveria ficar. A mulher daquela época ficaria imortalizada na canção de Mário Lago e Ataulfo Alves, “Amélia”. Mas a família da menina de Copacabana era liberal para os padrões. No livro “Chega de Saudade - A História e as Histórias da Bossa Nova”, que é considerado uma obra de referência quando o assunto é bossa nova, o escritor Ruy Castro conta que a liberdade que Dona Tinoca e Dr. Jairo davam às filhas impressionava muito a todos que os conheciam. “Danuza saíra de casa aos 18 anos, tornara-se manequim em Paris, namorara um galã barra-pesada do cinema francês e, de volta ao Rio, aos

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20 anos, casara-se com Samuel Wainer, o principal jornalista do país.” A mais nova não era tão independente e ousada como a irmã, mas liberdade não lhe faltava. “Nara, nove anos mais nova que Danuza, não era do balacobaco como a irmã, mas fora educada na mesma liberdade. Não precisava ter hora pra dormir ou acordar, nem para jantar ou fazer os deveres, nem para ir ao cinema ou voltar da praia. Estudava porque queria e se quisesse deixar os estudos, ninguém a impediria (fez isto aos 16 anos, em 1958) e se quisesse namorar algum garoto da vizinhança, também nenhum problema.” O cúmulo do liberalismo era a menina receber ensinamentos musicais. É claro que o mesmo não acontecia com a tradicional família Menescal, também residente no bairro de Copacabana. O menino Roberto Menescal era muito amigo de Nara Leão. Amizade colorida, digamos. Eles sempre estavam juntos. No cinema, na escola, na praia, em casa. Com o passar do tempo, a amizade cresceu tanto que o romance foi ficando em segundo plano. Amizade que duraria até o fim da vida de Nara, embora, interrompida durante alguns anos, depois da passagem do furacão Maysa pela bossa nova. Menescal não podia tocar violão em casa. Seus pais consideravam que a música não era para se levar a sério. Roberto teria que estudar e se tornar doutor, mas ele gostava era de música. Ele e Nara resolveram então se reunir na casa da menina para fazer e ouvir música. Ouviam de tudo à época: boleros, sambas, jazz, blues... Tudo o que havia de bom naquele tempo. Eles foram crescendo e a turma também cresceu. Reuniam- se na casa da menina, além dela e de Menescal, os violonistas e Chico Feitosa, o violonista e pianista Oscar Castro Neves e seus irmãos Mário, Leo e Iko, também músicos, o

30 Caminhando e Cantando repórter e letrista Ronaldo Bôscoli, os pianistas Luiz Eça e Luiz Carlos Vinhas, o flautista Bebeto Castilho, o contrabaixista Henrique, o baterista João Mário e outros músicos pertencentes à jovem burguesia carioca. As reuniões eram regadas a muito suco, pelo menos em 1956, já que aquela era uma casa de família e Nara tinha apenas 14 aninhos. Ela ainda não cantava, era dona de uma timidez enorme, mas possuía um charme que lhe era peculiar, um misto de delicadeza e insensatez. Tinha lindos joelhos. Ronaldo Bôscoli diz no livro “Eles e Eu – Memórias de Ronaldo Bôscoli”, em depoimento a Luiz Carlos Maciel e Ângela Chaves, que se apaixonou por ela ao bater à porta de seu apartamento, pois a menina veio ao seu encontro com um vestido que deixava “descoberto seus lindos joelhos, que foram motivos de muitas crônicas, versos e suspiros gerais”. Nara e Bôscoli começaram a namorar em 1957, ela então com 15 anos, ele com 28. Desse namoro surgiram várias canções célebres como “O Barquinho”, de Menescal e Bôscoli e “Lobo Bobo”, também da dupla. Nara só gravaria uma música dos dois na década de 1980, após reatar a amizade com Menescal. A turma da casa da Nara Leão, nome pelo qual ficou conhecido o grupo que se reunia na casa da cantora, procurava algo novo, estavam cansados da mesma música de sempre. Até que um dia, Menescal chegou ali com um baiano de jeito tímido, modo de cantar baixinho, mas com uma batida de violão impressionante e revolucionária. Eles estavam diante do “messias encarnado” que, como muito bem diz Ruy Castro, “ao invés de tábuas da lei, carregava um violão embaixo do braço”. Ficaram loucos e fascinados por João Gilberto, começaram então a segui-lo e idolatrá-lo e os que continuam por aqui o fazem até hoje.

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No início de 1958, foi lançado o disco de Elizeth Cardoso, “Canção do amor demais”, com músicas da dupla Tom Jobim e . João Gilberto tocou violão em algumas faixas, inclusive em “Chega de Saudade”. Era a primeira vez que se ouvia a batida do que viria a ser chamado bossa nova. É importante lembrar que cantores, como Maysa, já haviam gravado canções de Tom e Vinicius, mas ainda não era bossa nova. A bossa nova só pode ser ouvida na interpretação de João Gilberto no disco de Elizeth Cardoso. Em agosto do mesmo ano, a Odeon lança o disco 78 RPM, “Chega de Saudade” de João Gilberto, marco do início da bossa nova. Onde João mostrava a batida que ele havia inventado. João Gilberto Prado Pereira de Oliveira, um dos maiores nomes da música brasileira, tido como o “papa da bossa nova” nasceu em 1931, na cidade sertaneja de Juazeiro, na Bahia. Ele ganhou o primeiro violão aos 14 anos e nunca mais largou o instrumento. Aos 18 anos foi embora para Salvador tentar a vida como cantor. Logo depois se mudou para o Rio de Janeiro onde se consagraria. Na capital da Guanabara entrou para a banda Garotos da Lua, de onde foi expulso por indisciplina e viveu os anos seguintes com pouquíssimo dinheiro. Até que foi apresentado a Antônio Carlos Jobim, pianista e compositor. Com Tom Jobim sua vida começou a mudar. Via nele, a esperança de se tornar um cantor de sucesso. As músicas de Tom se encaixavam no seu jeito de tocar. Depois conheceu Vinicius de Moraes, pouco tempo mais tarde encontrou Roberto Menescal e através dele, toda a turma da casa de Nara. Estava formado o grupo de músicos que faria a bossa nova entrar para a história. Mas eles ainda não sabiam disso. O disco primogênito de João continha além da canção-título “Chega de Saudade” de Tom e Vinicius, também “Desafinado” de Tom e Newton Mendonça, “Bimbom” do próprio João e

32 Caminhando e Cantando outras músicas de compositores populares da década de 1930, todas em ritmo de bossa nova. André Midani, que nasceu na Síria, cresceu na França e se fez profissionalmente no Brasil e foi presidente de grandes companhias de música, contou em sua biografia “Música, Ídolos e Poder” que apresentou esse disco a algumas gravadoras e recebeu como resposta: “Isso é música de “viado”. Esse álbum foi o marco inicial da bossa nova e até hoje é considerado um dos melhores da música brasileira. Com esse disco, a bossa nova ganharia o mundo e influenciaria outros ritmos, até mesmo o jazz norte-americano, uma das influências para a criação do ritmo brasileiro. A bossa nova simboliza para a música brasileira o que a tomada da Bastilha significa para a Revolução Francesa. Separa a antiga música, da música moderna. Em “Uma História da Música Popular Brasileira”, o escritor Jairo Severiano separa a música em quatro tempos. O último deles começa justamente em 1958, com o lançamento do disco de João. O autor dá a essa fase o nome de modernização e ela segue até os dias atuais. A partir deste ponto, a música brasileira começou a ser feita, vista e ouvida de modo diferente. Deixamos as raízes para começar a fazer algo novo. Algo que o samba antigo não havia feito. Esse momento era necessário para a música do Brasil, que começava a perder espaço para as músicas americanas e logo perderia para as britânicas. E João Gilberto foi a pessoa escolhida para dar o pontapé nessa modernização de nossa música. Praticamente todos os músicos que viriam a escrever seu nome na música brasileira nas décadas seguintes foram diretamente influenciados pela música de João, como Chico, Caetano, Edu, Tim e Milton. Até o rock da geração dos anos 1980 se deixou influenciar pela bossa nova, como se vê em composições de e de outros nomes.

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A música nacional dá um salto com a voz doce e baixinha de João e seu violão revolucionário, que somados ao e música de Tom e as letras de Vinicius fariam sucesso no mundo inteiro e desbancariam até os Beatles. Nelson Motta é jornalista, compositor, escritor, roteirista e produtor musical. Um dos homens mais influentes no cenário musical brasileiro, ele participou dos mais importantes movimentos musicais brasileiros da última metade do século passado e continua participando intensamente do mundo da música no Brasil. Hoje, além de escrever para diversos jornais do país, ele tem uma coluna semanal no Jornal da Globo, onde aborda a música mundial, além de outros gêneros de arte. Nelson Motta (ou Nelsinho, como é conhecido no meio musical) viveu a Bossa Nova intensamente. Morador de Copacabana, ele conheceu de perto os maiores nomes do gênero e mesmo sem cantar se tornou um deles. Em entrevista ao autor destas linhas disse que o primeiro disco de João Gilberto foi essencial para a Bossa Nova. “A batida da Bossa nova inventada pelo João Gilberto foi fundamental, sem aquela batida não existe Bossa Nova.” A cantora Maysa, ainda com o sobrenome Matarazzo, na década de 1950 era uma das maiores cantoras do Brasil. Fazia tremendo sucesso com suas músicas românticas. Conhecida como “Rainha da Fossa”, foi uma das primeiras grandes intérpretes do país a gravar Tom e Vinícius em 1957 e a reconhecer que havia algo de diferente naquele violonista baiano tímido, que mal falava. Lira Neto, biógrafo de Maysa conta como a cantora conheceu João Gilberto, dois anos antes do lançamento do lendário disco, no livro “Maysa – Só Numa Multidão de amores”. “A própria Maysa garantia que bem pouca gente ouvira falar de um baiano muito tímido, que tocava um violão diferente de

34 Caminhando e Cantando tudo que se ouvira até ali. Maysa teria ficado tão impressionada com o rapaz que o levou para participar de seu programa na TV Record, em São Paulo.” Em uma de suas últimas entrevistas, Maysa conta em detalhes esse encontro: “A direção do programa não gostou da ideia de eu cantar acompanhada apenas por um violonista. Pois eu tinha uma orquestra inteira só para mim. Mas, mesmo assim, consegui que ele tocasse em uma das músicas. O rapaz ainda era completamente desconhecido e, logo percebi, era também muito estranho. Fomos do Rio de Janeiro a São Paulo de automóvel e durante os mais de quatrocentos quilômetros da viagem, não deu uma única palavra.” Lira Neto continua a história: “Na hora de apresentá-lo a Eduardo Moreira, produtor do programa, Maysa virou-se para aquele moço franzino, de camisa esporte e um violão debaixo do braço e indagou: “Escuta, como é mesmo seu nome?” “João Gilberto”, ele respondeu bem baixinho.” A bossa nova renovou o estilo de música no Brasil. Ela trouxe letras mais alegres e que falavam de coisas como beijinhos, peixinhos, sorriso, flor e mar, enquanto o samba de morro abordava temas mais profundos e suas letras falavam da realidade do morro e das favelas cariocas. Um dos maiores exemplos disso é a música “Chega de Saudade” de Tom e Vinicius que se imortalizou na voz sussurrada de João Gilberto no disco de mesmo nome.

VAI MINHA TRISTEZA, E DIZ A ELA QUE SEM ELA NÃO PODE SER, DIZ-LHE, NUMA PRECE QUE ELA REGRESSE, PORQUE EU NÃO POSSO MAIS SOFRER. CHEGA, DE SAUDADE A REALIDADE, É QUE SEM ELA NÃO HÁ PAZ, NÃO HÁ BELEZA

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É SÓ TRISTEZA E A MELANCOLIA QUE NÃO SAI DE MIM, NÃO SAI DE MIM, NÃO SAI MAS SE ELA VOLTAR, SE ELA VOLTAR QUE COISA LINDA, QUE COISA LOUCA POIS HÁ MENOS PEIXINHOS A NADAR NO MAR DO QUE OS BEIJINHOS QUE EU DAREI NA SUA BOCA, DENTRO DOS MEUS BRAÇOS OS ABRAÇOS HÃO DE SER MILHÕES DE ABRAÇOS APERTADO ASSIM, COLADO ASSIM, CALADO ASSIM ABRAÇOS E BEIJINHOS, E CARINHOS SEM TER FIM QUE É PRA ACABAR COM ESSE NEGÓCIO DE VOCÊ VIVER SEM MIM. NÃO QUERO MAIS ESSE NEGÓCIO DE VOCÊ LONGE DE MIM...

“Chega de Saudade” (o disco e a canção) não é só um marco da música nacional, mas também é mundialmente reconhecido com um dos momentos mais importantes da história desse gênero de arte. Como já foi dito, essa música mais leve e mais doce só foi bem recebido por que o Brasil vivia um momento de raro florescimento cultural e político, durante o governo JK. Tudo que era bom e novo, recebia o apelido de “Bossa Nova”. Juscelino recebeu a alcunha de “Presidente Bossa Nova” e ganhou uma música de Juca Chaves com o mesmo nome.

BOSSA NOVA MESMO É SER PRESIDENTE DESTA TERRA DESCOBERTA POR CABRAL PARA TANTO BASTA SER TÃO SIMPLESMENTE SIMPÁTICO, RISONHO, ORIGINAL. DEPOIS DESFRUTAR DA MARAVILHA DE SER O PRESIDENTE DO BRASIL,

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VOAR DA VELHACAP PRA BRASÍLIA, VER A ALVORADA E VOAR DE VOLTA AO RIO. VOAR, VOAR, VOAR, VOAR, VOAR, VOAR PRA BEM DISTANTE, ATÉ VERSALHES ONDE DUAS MINEIRINHAS VALSINHAS DANÇAM COMO DEBUTANTE, INTERESSANTE! MANDAR PARENTE A JATO PRO DENTISTA, ALMOÇAR COM TENISTA CAMPEÃO, TAMBÉM PODER SER UM BOM ARTISTA EXCLUSIVISTA TOMANDO COM DILERMANDO UMAS AULINHAS DE VIOLÃO.

ISTO É VIVER COMO SE APROVA, É SER UM PRESIDENTE BOSSA NOVA. BOSSA NOVA, MUITO NOVA, NOVA MESMO, ULTRA NOVA!

Juca Chaves, cantor e humorista, não tinha o vozeirão da bossa velha e alguns o ligaram equivocadamente ao grupo de João Gilberto. Nessa música de grande sucesso, ele retratou a vida do presidente JK. “Risonho, simpático e original” traduzia bem o que era o presidente. Um homem de bem com a vida, que conduzia o país com alegria e mostrava isso para o povo. Foram contadas suas idas e vindas de Brasília que estava em construção. JK, às vezes, ia de manhã para o canteiro de obras da nova capital, despachava do Catetinho, local especialmente construído para o presidente, e voltava à noite para o Rio, indo dormir na Residência Oficial, o Catete. A quarta estrofe remete ao fato de JK mandar sua filha Maristela ao dentista em de avião particular. Isso não era problema, afinal a família Kubtscheck era queridíssima do povo. “Tenista campeão” se referia a Maria Esther Bueno, campeã do torneio de Wimbledon em 1958 e 1959 e do Aberto dos Estados Unidos

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(US Open) em 1959 e que se tornou amiga da família presidencial. Já “Dilermando” de que se refere a música é o violonista Dilermando Reis, um dos maiores do país e também íntimo de JK. Bossa nova virou nome de geladeira, de carro, de presidente, de tudo que agora era novidade no Brasil. Esse nome, “Bossa Nova” nasceu por acaso graças à turma que freqüentava o apartamento de Nara Leão. Sérgio Cabral, jornalista e amigo íntimo da cantora, contou esse episódio em seu livro “Nara Leão – Uma Biografia”. Segundo ele, Moisés Fuks, diretor artístico do Grupo Universitário Hebraico do Brasil, foi a uma reunião no apartamento de Nara e ficou entusiasmado com o que lá ouviu. Conversou com Ronaldo Bôscoli sobre a possibilidade do grupo se apresentar no colégio. Bôscoli achou uma grande ideia e convidou Silvinha Telles para ser a estrela da apresentação, já que ela era a única famosa do grupo. “Apenas o seu nome figurou nos cartazes de divulgação: “Silvia Telles e um grupo bossa nova”, informavam os cartazes”. O “Grupo Bossa Nova” poderia identificar o conjunto de Roberto Menescal, ainda sem nome (piano, Luis Carlos Vinhas; sax e flauta, Bebeto; bateria, João Mário; contrabaixo, Henrique; e violão, Menescal), que acompanharia Silvinha, ou, além dele, Carlos Lyra e Chico Feitosa que também se apresentaram. Ao chegar ao local do show, Menescal quis saber que “grupo bossa nova” seria aquele e Moisés Fuks explicou que, não sabendo os nomes deles, achou melhor adotar aquela solução. “Mas, se vocês quiserem, eu mudo”, defendeu-se Fuks. “Pode deixar assim mesmo”, liberou o violonista. O fato é que a partir dali, a expressão bossa nova passou a identificar a música e os músicos comprometidos com o movimento.”

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Nelson Motta afirmou que Tom Jobim é muito importante para a bossa nova, mas que João Gilberto é venerado com toda razão por todos que gostam do gênero. “Tom Jobim é um compositor fabuloso, um dos maiores do século XX, comparado a Cole Porter, Mile Davis e alguns outros, mas ele não inventou nada de novo. Quem inventou uma coisa de novo foi o João Gilberto. Aliás, o Tom Jobim com as músicas que fez nem precisava ter inventado nada de novo. O inventor da Bossa Nova é o João Gilberto” Ruy Castro no fascículo dedicado à Nara Leão da “Coleção Folha 50 Anos de Bossa Nova” lançado em 2008, enfatizou que “fique claro de uma vez por todas que a bossa nova não nasceu ali, ao redor de Nara. A idealização da bossa nova como uma música criada por meninos quase amadores no apartamento de uma adolescente é fascinante, mas é até ofensiva para com as centenas de profissionais que, pelo menos dez anos antes, a partir do pós-guerra já estavam contribuindo para a modernização da música brasileira – ao mesmo tempo em que tinham de dar duro na noite e tocar toda espécie de música para pagar o aluguel”. Ruy Castro destaca alguns desses músicos: Radamés Gnatalli, Dick Farney, Lúcio alves, Luís Bonfá, Antonio Maria, , Newton Mendonça, Antônio Carlos Jobim, João Donato, Nora Ney, Dolores Duran, Maysa, Silvinha Telles e tantos outros que deixaram registrados seus nomes e suas obras na história da música brasileira. Nesse período, final dos anos 50, os jovens que haviam nascido na década anterior e que começariam a escrever suas histórias na música brasileira estavam atentos a tudo e ouviam e veneravam João Gilberto, como todo mundo. Na Bahia, terra natal de João, na pequena Santo Amaro da Purificação, Caetano e sua irmã Maria Bethânia eram apaixonados pela música de

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João. Também na Bahia, Gilberto Gil, tinha igual idolatria pelo cantor baiano. No Rio de Janeiro, 4 amigos, cantores e compositores, também eram grandes admiradores da música inventada por João Gilberto. Seus nomes: Roberto, Erasmo, Sebastião e Jorge.

--- Nasce um rei

Nos últimos anos da década de 1950, o capixaba Carlos Imperial era famoso no Rio por ser cafajeste e por seu programa de auditório na TV e no rádio. Ele era detestado pela “Turma da Bossa Nova”. Imperial ainda agenciava cantores e era produtor musical. Ele surfava na onda do rock de Elvis, que no Brasil ainda não tinha vingado. Em “Noites Tropicais” Nelson Motta conta que certo dia Imperial chegou a uma dessas festas do pessoal da bossa nova em que o próprio Nelson estava. Todos olharam desconfiados e com desprezo para a figura grande e gorda de Imperial. Ele chamou a atenção de todos e disse que tinha que apresentar um cantor que seria o príncipe da bossa nova. “Meus Jovens, belos e queridos amigos, bossa nova é silêncio. Si-lên-cio. E eu peço silêncio a vocês para apresentar o futuro príncipe da bossa nova”, disse. O cantor que Imperial trazia era “magro e tímido, com cabelos crespos e escuros e pele muito pálida, tinha olhos profundos e tristes e sorria nervosamente”. “O jovem conterrâneo de Imperial cantou, com seus lábios finos e um fio de voz, bem afinadinho e até com certo charme, duas músicas de seu mentor, que ele tinha acabado de gravar. O rapaz imitava escancaradamente João Gilberto e a música era uma sub-bossa imperialesca”.

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“As jovens senhoras adoraram. Foi a primeira vez que ouvi Roberto Carlos”, escreveu Nelson Motta. Roberto Carlos chegara ao Rio em meados da década de 1950. Ali, no bairro da Tijuca, conheceu Três adolescentes, como ele: Erasmo Esteves, Jorge e Sebastião Maia. Os três eram fascinados por João Gilberto e pela Bossa Nova, além de também gostarem de Chuck Berry, Elvis Presley e Little Richard. Tião fundou uma banda e pôs nela o nome de The Sputiniks, nome do satélite espacial russo que fora para lançado meses antes. Chamou dois amigos, Arlênio Lívio e Wellington Oliveira para acompanhá-lo. Mas ainda faltava gente na banda da Tijuca. Arlênio tinha um amigo que apresentou a Tião, a fim de entrar no conjunto. Tião achou o amigo de Arlênio meio magro, com olhos tristes e que ainda por cima puxava de uma perna. Mas ele gostava de rock e cantava bem. Era o que interessava para Tião. Ele aceitou Roberto Carlos no grupo. Roberto chegou e se assustou com a voz de trovão do mulato gordinho Na biografia de , Nelson Motta conta: “Os ensaios foram tensos, com muitas brigas na escolha do repertório, dos solistas e de quem tocaria violão. A solução foi manter os dois, com Tião tocando o mais rítmico e Roberto o mais harmônico. Roberto sabia muito bem o que queria: o mesmo que Tião, ser um solista, um cantor popular. The Sputniks era apenas uma plataforma de lançamento, os dois queriam voar alto.” E voaram. Fizeram algumas apresentações na , mas as brigas eram inevitáveis. Por que eram dois gênios da música juntos e por que Tião gostava de uma encrenca. Mas antes da briga que acabaria com o grupo, eles tocaram no “Clube do Rock”, programa de Carlos Imperial na TV. Eles foram junto com outros dois amigos Erasmo e . Lá conheceram outros cantores e aspirantes a cantores que se tornariam notáveis, como Wilson

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Simonal, um mulato que Tião foi com a cara logo da primeira vez. Foi imperial que sugeriu que Tião trocasse de nome. “Tião não era nome de artista de sucesso”. Ele sugeriu Tim. Tião achou meio coisa de bicha, mas aceitou. A partir dali ele era Tim Maia. Roberto pediu para Imperial deixá-lo cantar algumas músicas de Elvis, separado dos Sputiniks. Imperial concordou, mas Tião achou aquilo a mais alta traição e foi logo dizendo: “Seu filho-da-puta! Eu boto você no meu conjunto e você vai cantar sozinho?” Não adiantou Roberto explicar. Os Sputiniks deixaram de existir ali. E cada um seguiu seu rumo. Tião achava que não ia dar certo no Brasil e foi tentar a vida nos Estados Unidos, em 1959. Na terra de Elvis, depois de algum tempo, Tião foi preso por ter cometido vários pequenos delitos. Erasmo sempre se comunicava com o amigo através de cartas e no final assinava: “Erasmo Gilberto”, devido a sua paixão pela música de João Gilberto. O amigo respondia assinando “Tim Jobim”. Enquanto Tim estava no exterior, Erasmo e Roberto começaram sua parceria vitoriosa. A primeira canção que fez sucesso foi a versão de “Splish Splash” na voz de Roberto. No livro “Vale Tudo – O som e a Fúria de Tim Maia”, Nelson Motta (sempre ele) conta que Tim, em Nova Iorque, não acreditou quando recebeu uma carta de Erasmo dizendo que uma música sua e de Roberto estava estourando no Brasil inteiro. “Não era mais “Erasmo Gilberto”, agora era ”. Em “Noites Tropicais”, o autor conta o que Erasmo fez quando ganhou seu primeiro dinheiro com a sua música: “Mãe, assaltei a padaria, foi o que Erasmo anunciou aos gritos

42 Caminhando e Cantando chegando em casa e jogando um bolo de dinheiro em cima da mesa.” “Vá devolver já”, rebateu Dona Diva, apontando para o dinheiro e ameaçando Erasmo com a vassoura”. “É mentira! É mentira! Ganhei com a minha música”, ele respondeu, abraçando a mãe”. Erasmo Carlos gastou tudo em roupas. Em 1962, o cenário de rock no mundo havia ganhado muito mais força. De Liverpool, cidade portuária a oeste da Inglaterra, vieram os garotos que se tornariam a mais famosa banda do mundo. John Lennon, Paul McCartney, George Harrison e Ringo Starr formavam a “fab four”: The Beatles. Com o single “Love me Do”, canção composta por Lennon e McCartney, quando tinham 18 e 16 anos, respectivamente, eles alcançaram o topo das paradas britânicas e com o disco “Please Please Me”, lançado no ano seguinte foram alçados à galeria de maiores artistas da Terra, alcançando o topo das paradas americanas. Mas nas lista das mais tocadas nos Estados Unidos, eles enfrentaram uma concorrente de peso: Astrud Gilberto, mulher de João, com sua gravação clássica de Garota de Ipanema, com o marido ao violão e Tom Jobim ao piano, figurou entre as mais tocadas durante todo o ano de 1962. Ultrapassando muitas vezes os garotos de Liverpool. Os Beatles foram, sem sombra de dúvida, o maior fenômeno pop da história. Há historiadores que pregam que, com o surgimento da banda, o período chamado contemporâneo, que vigora desde a tomada da Bastilha na Revolução Francesa, deva ser dividido em Antes dos Beatles e depois deles. John, Paul, George e Ringo influenciaram muito do que passou a ser feito no Brasil. Tudo a partir daí, exceto, talvez, a

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MPB nascida nos festivais, nasceu com muita influência dos quatro garotos geniais da cidade de Liverpool. Os anos 60 começam no ritmo que terminou a década anterior. JK cumpre a promessa e inaugura a capital no meio do cerrado de Goiás, no dia 21 de abril de 1960, propositalmente, no dia dedicado ao herói da Inconfidência Mineira, Tiradentes. A construção da capital no meio do país tinha vários objetivos. Um deles era povoar o interior do Brasil, onde existia um imenso vazio demográfico. A cidade projetada pelo arquiteto e planejada pelo urbanista Lúcio Costa significava o futuro do Brasil, o Brasil Moderno. Foi a grande obra do governo Juscelino e uma das maiores, senão a maior, obra da história do Brasil. A construção da capital teve também opositores que condenavam a obra, principalmente pela grande quantia emprestada pelo presidente para custear a construção da cidade. A capital foi construída para ser o novo símbolo do país, dinâmico e avançado. Os maiores legados de Brasília foram, porém, um enorme rombo financeiro e o descontrole das contas públicas. Além de desestabilizar os governos de Jânio Quadros e de João Goulart, esses problemas foram indiretamente responsáveis pela intervenção dos militares em março de 1964, quando se encerrou a experiência democrática representada pela república. Ainda em 1960, foram realizadas eleições para a sucessão de Juscelino. O presidente e seu partido o PDS, lançaram como candidato, o Marechal Henrique Teixeira Lott, o mesmo que tinha garantido a posse de Juscelino, cinco anos antes. O candidato que tinha o apoio da UDN era o governador paulista Jânio Quadros, que teve uma carreira meteórica. Em 15 anos de vida pública, foi vereador, prefeito e governador de São Paulo, tinha como símbolo da campanha a vassoura, que varreria a

44 Caminhando e Cantando corrupção do Brasil. Com isso, a campanha de Jânio criou um dos jingles eleitorais mais famosos da história do Brasil.

VARRE, VARRE, VARRE VASSOURINHA VARRE, VARRE A BANDALHEIRA QUE O POVO JÁ ESTÁ CANSADO DE SOFRER DESTA MANEIRA JÂNIO QUADROS É A ESPERANÇA DESSE POVO ABANDONADO

JÂNIO QUADROS É A CERTEZA DE UM BRASIL MORALIZADO ALERTA, MEU IRMÃO VASSOURA, CONTERRÂNEO VAMOS VENCER COM JÂNIO .

Mesmo com alta popularidade, o presidente JK não consegue eleger Lott. Jânio consegue uma vitória avassaladora nas urnas. Ele obteve 48,26% dos votos, contra 32% do candidato da situação. Em 1961, ele assume o poder no Palácio do Planalto em Brasília. É o primeiro brasileiro a assumir o cargo na nova capital federal. Em janeiro, JK passa a faixa a Jânio. Somente em 2003, quando Fernando Henrique Cardoso passou o cargo para Luiz Inácio Lula da Silva, um presidente eleito pelo voto do povo voltaria a passar a faixa presidencial a outro que chegou ao poder democraticamente. Em agosto de 1951, Jango –que fora vice de JK e se elegera novamente para o cargo- viaja para a China, enquanto no Brasil o presidente Jânio condecora com a maior honraria do governo brasileiro, a Ordem do Cruzeiro do Sul, o maior guerrilheiro dos últimos tempos, o médico argentino Ernesto “Che” Guevara.

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Che foi peça fundamental na revolução socialista em Cuba que culminou na deposição do presidente Fulgêncio Batista, dando início à ditadura de Fidel Castro, em 1959. Fidel ficaria no poder até 2007 quando renunciou por problemas de saúde, mas passou o bastão a seu irmão Raul. Depois da revolução em Cuba, Che voltou à América do Sul para tentar implantar o comunismo, objetivo amplamente fracassado. A cerimônia de condecoração de Che Guevara pelo governo brasileiro foi feita à noite, longe dos holofotes da imprensa e pouco divulgada. Ainda estávamos sob o contexto da guerra fria e éramos controlados pela batuta do Tio Sam e do capitalismo. Nunca um governo aliado aos Estados Unidos poderia dar qualquer honraria ao mito e símbolo do socialismo, que era Che. Dias depois, em 25 de agosto, Jânio renunciou ao mandato, apenas oito meses depois de ter assumido o comando do país. Dera um tiro no pé. Jânio que ganhara a eleição pouco tempo antes por uma grande maioria usou o pretexto de que estava sendo perseguido e sofrendo conspirações. Isso nunca vai se saber, mas o que mais se especula é que esperava revolta popular e que o congresso não aceitasse sua renúncia, queria voltar a Brasília nos braços do povo, tal qual fez Getúlio, voltando ao Catete sete anos antes, eleito democraticamente. Com a morte de Getulio o país inteiro ficou comovido e Jânio esperou que com sua renúncia acontecesse o mesmo. Queria voltar com o aval do povo e com poder ainda maior. É certo que podia estar sofrendo ameaças porque a ditadura estava prestes a acontecer a qualquer momento. A revolução seria pacífica ou sangrenta, dependeria da resistência. Mas o fato mesmo, é que em apenas oito meses de mandato, Jânio propôs medidas impopulares e incoerentes, a esmagadora maioria a favor agora não o aprovava e o feitiço virou contra o feiticeiro. Coisa que Jânio não previra.

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João Goulart ou simplesmente Jango, estava ainda em viagem oficial à China de Mao Tse-tung, país comunista, quando soube da renúncia de Jânio. Não tinha nada pior no momento para ele, devido à posição política do país asiático e à sua imagem de herdeiro da política de Vargas, o que não era bem visto pelos militares. Queriam impedi-lo de assumir alegando, entre outras coisas, estar “contaminado” pelo socialismo. Parte das forças armadas e grupos políticos não queriam sequer que Jango desembarcasse no Brasil. Seu cunhado, o então governador do Rio Grande do Sul, Leonel de Moura Brizola, defendeu a posse de Jango, deu proteção a ele em seu estado quando voltou ele voltou de viagem e assegurou a sua posse como presidente da república, cargo que acompanhara de perto com os dois últimos presidentes. Mas o seu mandato não chegaria ao final. Porém, Jango só foi aceito, depois de emenda constitucional que instituiu no Brasil o parlamentarismo. Tancredo Neves foi escolhido como primeiro-ministro e João Goulart pode enfim assumir seu posto, mas com poderes limitados. Em janeiro de 1963, um plebiscito decidiu que o presidencialismo voltaria a ser a forma de governo do país e Jango assumiu todo o controle do Brasil, mas não ficaria assim por muito tempo.

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--- Muito além de Copacabana

Em 1960, a bossa nova já tinha conquistado o Brasil, pelo menos a elite brasileira e partia para conquistar o mundo, com Tom Jobim como maior maestro e compositor do ritmo, Vinicius de Moraes como o poeta e João Gilberto, o inventor e papa do gênero. A bossa nova nunca foi música de apartamento e há muito deixara de ser música da Zona Sul. O morro e os lugares mais pobres não a idolatravam ainda, mas já conheciam o ritmo e o mundo estava começando a conhecer. Tom, João e outros músicos como Menescal e Carlos Lyra foram para os Estados Unidos levar a música que tanto sucesso faria por lá. Fizeram shows memoráveis e no Carnegie Hall, em Nova Iorque, fizeram o mais marcante de todos em 1962. Vários ícones da música americana e mundial como Stan Getz, Ella Fitzgerald, Sarah Vaughan e Frank Sinatra se interessaram pela bossa nova e gravariam seus sucessos. O primeiro deles foi Stan Getz, que com Tom Jobim ao piano e João Gilberto no violão e na voz e, também a então esposa de João, Astrud Gilberto, gravaria o memorável “Getz/Gilberto”, um dos maiores discos da música mundial. João Gilberto, já famoso por suas excentricidades e esquisitices, não poupou nem Getz de suas ácidas críticas e, referindo-se a ele, disse a Tom: “Esse gringo é muito burro”. João também exigia o som perfeito (como ainda faz até hoje), no qual era prontamente atendido, pois já era considerado um gênio pelos americanos. João Gilberto foi para os Estados Unidos em 1962 e por lá ficou. Hoje em dia são raras as vezes que é visto em terras brasileiras e mais raro ainda, é ver um show do cantor por aqui. Para Nelson Motta, a bossa nova acabou quando Tom e João Gilberto se mudaram para os Estados Unidos. “A Bossa Nova acabou em 1962, quando

48 Caminhando e Cantando aconteceu o concerto em Nova Iorque. O Tom, o Vinicius e o João Gilberto foram para os Estados Unidos e lá ficaram. Aqui ficaram alguns outros que já não faziam bossa nova. Com o João Gilberto fora não existe Bossa Nova”. Ele tem razão, embora, o fim cronológico da bossa nova, isto é, quando ela deixou de ser referência no Brasil e foi criado outro estilo, deve-se ao início da chamada MPB em 1966, já no regime militar. No início da década de 60, a rainha da fossa, a cantora Maysa Monjardim, ex-Matarazzo, se juntou à bossa nova e à Ronaldo Bôscoli, então noivo de Nara Leão. Em uma excursão que fizeram a trabalho pela Argentina, o jornalista e a cantora iniciaram um tórrido romance. No aeroporto, na chegada ao Rio, Maysa informou a todos que estava noiva de Bôscoli, isso sem o conhecimento do jornalista e muito menos de Nara, que assistiu a tudo pela televisão. Nara, claro, encerrou o romance com Bôscoli. Ela interrompia ali, também, sua amizade com Roberto Menescal que fazia parte da excursão de Maysa, assim como todo o grupo de jovens que, poucos anos antes se encontravam na casa de Nara e juntos descobriram a nova música de João Gilberto, músicos como Luizinho Eça, Luis Carlos Vinhas, Bebeto Castiho e outros Bossa-novistas. Nara pressupôs que Menescal e os outros amigos soubessem do caso de amor entre a Maysa e seu noivo e achou uma traição enorme por parte deles. Ela voltaria a se relacionar com Menescal alguns anos mais tarde. O compositor seria um de seus grandes parceiros e companheiros até o fim da vida da cantora. Maysa merece destaque quando o assunto é bossa nova. Sua vida é recheada de histórias de amor e loucuras. Aos 17 anos, casara com o milionário paulista André Matarazzo. Ela, desde pequena, cantava em reuniões familiares. Aos 20 anos, convenceu seu marido a deixá-la gravar um disco em que toda a

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Marco Antonio Gonçalves renda seria revertida ao recém-fundado Hospital do Câncer de São Paulo. Separou-se do marido e das convenções que o sobrenome lhe impunha, assim estava livre para se tornar a maior estrela deste país e assim o fez, em meio à muita bebida e a uma multidão de amores, de Bôscoli a Roberto Carlos, de João Goulart a Júlio Medaglia. Maysa passou de rainha da fossa à pioneira da bossa nova. Foi a primeira a gravar a dupla Bôscoli e Menescal e já antes da explosão da bossa em 58 já havia gravado várias músicas da mais famosa dupla do gênero, Tom e Vinicius. Depois, Maysa convidou Ronaldo Bôscoli e sua turma para gravarem com ela um disco, o primeiro que fugiria do estilo dor-de-cotovelo e gravou o disco intitulado “O Barquinho”, nome também, da música composta em homenagem a Nara Leão. Depois disso, Maysa voltou ao seu estilo original, mas não mais largou a bossa nova, que passou a ser presença constante em sua discografia. Além de romper com Bôscoli e Menescal, Nara, naquela ocasião, rompeu também com a bossa nova. Ela se cansou de falar de coisas belas como beijinhos, sol e mar. Queria retratar os problemas vividos pelo povo, pelos mais pobres e inspirada por uma visão mais nacionalista e popular, juntamente com Vinicius de Moraes, Carlos Lyra e o grande violonista e agora parceiro de Vinicius, Baden Powell, começou a criticar a influência que a bossa nova sofria do jazz norte-americano e “subiu o morro” para cantar músicas de sambistas como Zé Ketti, Ernesto Nazareth e . Os sambistas tocavam músicas que abordavam temas mais profundos e suas letras falavam da realidade do morro e das favelas cariocas, diferente da Bossa Nova que trazia letras mais doces falando de flores, sol, mar, natureza e paixão. Da mistura desses assuntos surgiram discos memoráveis como “Afro- samba”, de Vinícius e Baden Powell, e o primeiro LP de Nara.

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Ela nunca pensou em ser cantora profissional. Os amigos não a incentivavam e ela mesmo não lhe dava crédito. Achava que não tinha voz para cantar. Quando disse a Dr. Jairo Leão que iria ser cantora, o pai respondeu: “Quer dizer então, minha filha, que você vai ser puta?”. Isso por que o pai da cantora era considerado liberal e era amigo de diversos músicos. Ela foi pega totalmente de surpresa quando subiu no palco pela primeira vez, segundo conta Sérgio Cabral na biografia de Nara. Em uma das apresentações do grupo de Menescal com Sílvia Telles, a cantora chamou Nara ao palco: “Meus amigos, eu quero apresentar a vocês agora, um dos mais novos elementos da bossa nova, que faz hoje sua primeira apresentação ao público: Nara!” Em depoimento ao MIS (Museu da Imagem e do Som) Nara conta detalhes: “Quando Silvinha começou a falar, desconfiei que era comigo. Tentei fugir a tempo, mas a porta do auditório estava trancada. Então ela me chamou ao palco e eu entrei em pânico. Cantei de costas para o público, quase chorando”. O onipresente Nelson Motta estava em uma das primeiras apresentações da cantora e relata sua impressão em seu livro “Noites Tropicais”: “No auditório da Escola Naval foi onde vi e ouvi pela primeira vez Nara Leão, timidíssima, cantando de uma maneira que eu fiquei sem saber se gostava ou não. Mas sem dúvida queria ver de novo: ela era de uma beleza estranha, tinha uma bocona, uns olhos meio caídos que lhe davam um ar de musa existencialista, um cabelo muito liso e muito escuro e uma pele muito branca, um fio de voz e um charme discretíssimos, sem dúvida era diferente. A cara da bossa nova”. A cantora Fernanda Takai, vocalista da banda Pato Fu, fez sucesso de público e de crítica ao lançar, em 2007, um disco com músicas do repertório de Nara Leão. Ela disse em entrevista que Nara “era uma excelente escolhedora de

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Marco Antonio Gonçalves repertório, escolhia repertório como ninguém, fazia discos diferentes um do outro, mas com muita consistência. Eu acho que das vozes femininas de Bossa nova ela é a mais importante, tanto que no Japão ela continua muito conhecida até hoje, nos Estados Unidos e Europa também. Ela já morreu faz vinte anos e você viaja e olha nas prateleiras de Bossa Nova, Nara Leão está lá com certeza, em maior quantidade que qualquer outro artista”. Nelson Motta disse em entrevista ao autor dessas linhas o motivo do sucesso de Nara: “O sucesso deve-se à inteligência dela, ao seu talento, à sua coragem e à independência que ela tinha”. Ele também cita as várias fases por qual passou a cantora. “A Nara foi mudando, se transformado ao longo do tempo. Foi musa da Bossa Nova, depois foi musa do que seria chamado MPB, participou do Tropicalismo, foi a primeira a gravar Roberto e Erasmo, gravava versões de músicas americanas e terminou gravando Bossa Nova, num tempo em que ninguém mais queria saber de Bossa Nova. Nos anos oitenta ela gravou coisas estupendas de Bossa Nova, pouco antes de morrer”. A renovação da canção brasileira foi o grande diferencial do movimento bossa-novista e a mistura interessante e muito peculiar entre ritmo, melodia e harmonia fez com que o gênero ganhasse o mundo. O afastamento de Nara Leão da bossa nova significava o fim do gênero no Brasil. A bossa nova ficou de lado e parecia ser muito americanizada para o gosto de Nara e também para Vinicius. Em 1963, Nara foi convidada pela gravadora Elenco para gravar um LP. Ela estreou em disco o mais distante possível de suas raízes bossa-novistas. Nara formou um repertório com canções da sua “nova turma”. Era o pessoal, que Carlinhos Lyra, que também brigara com Bôscoli e com a bossa nova, levou no famoso apartamento

52 Caminhando e Cantando da Avenida Atlântica. Eram os sambistas das antigas: Zé Kéti, Nelson Cavaquinho, João do Valle e o mestre . Ruy Castro em “Chega de Saudade” diz que “esse disco cheio de sambas da “velha bossa” formalizou o rompimento da cantora com a música que teria sido musa e parteira”. Aí começou a confusão entre os que a apoiavam e os que defendiam que ela deveria cantar bossa nova. Alegavam que ela que, praticamente, só conhecia o Rio das areias de Copacabana, não poderia falar de favela e, muito menos, do Nordeste. Nara respondia classificando a bossa nova como “música de apartamento para meia-dúzia de intelectuais burgueses, alienados das questões do povo”. Assim, Nara chegou às lojas de discos e às rádios, com músicas que nem de perto lembravam a menina do apartamento no Edifício Champs Élysées. Ali, com aquele disco, estava desfeita a união da cantora com a bossa nova. Ao mesmo tempo, significava que era hora de outra coisa surgir para movimentar mais uma vez o cenário musical brasileiro. As mudanças políticas que estavam prestes a ocorrer no Brasil contribuiriam para que essa transformação ocorresse. Nesse período, início dos anos 60, estavam nascendo ou eram bem pequenos os nomes que fariam o a revolução do rock brasileiro dos anos 80. Gente como Cazuza, , Paulo Ricardo, Evandro Mesquita, , Paula Toller, Lobão e muitos outros, mas a história dessa galera vai ser contada mais a frente.

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Capítulo 333 --- Início da repressão

Em 1964, o governo de João Goulart chegaria ao seu terceiro ano, mas não o completaria. O golpe de estado há muito vinha se anunciando: em 1954, na época da morte de Getúlio. Depois na tentativa de impedir a posse de JK e depois da renúncia de Jânio, quando tentaram impedir a posse do vice, Jango. Em 31 de março de 64, os militares finalmente conseguiram depor Jango do cargo. O golpe era financiado e apoiado pelo governo americano do presidente Lindon Johnson sucessor do mítico presidente John Fitzgerald Kennedy que em novembro de 1963, fora morto com um tiro na cabeça, enquanto desfilava em um carro conversível com sua mulher Jacqueline, em Dallas, no Texas. Era conveniente para os norte-americanos que fosse instalado o estado ditatorial nos países da América Latina e foi o que aconteceu no Brasil e depois no Chile, Argentina e México. O governo João Goulart estava se tornando cada vez mais independente dos Estados Unidos e se aproximando da União Soviética. O lançamento das Reformas de Base, principal programa de Jango, foi considerado um primeiro passo para transformar o Brasil em uma república socialista. No Brasil, os militares esperavam resistência por parte do governo, porém Jango, corretamente, optou por não lutar em uma batalha que fatalmente seria perdida. Os americanos patrulhavam as fronteiras continentais e marítimas do Brasil e, seriam, nada menos, que oito submarinos do exército norte-americano em águas brasileiras, a pedido do embaixador americano no Brasil Lincoln Gordon. Na mesma

54 Caminhando e Cantando noite de 31 de março, Jango deixou Brasília e foi para o Rio Grande do Sul, de lá partiu em exílio para o Uruguai onde permaneceria até sua morte, sob condições altamente suspeitas, em 1976. O maior posto do país estava vago e uma junta militar foi chamada a governar o país, que depois teria como presidente o General Humberto de Alencar Castello Branco, escolhido pelos militares. O país ainda tinha congresso nacional, mas essa representação política duraria pouco. Começavam tempos difíceis para a sociedade e para a política do Brasil, mas também gloriosos para a música brasileira. 1964 foi um péssimo para a história da liberdade no Brasil, mas para a música foi um ano maravilhoso. Nara Leão faz sucesso com seu primeiro LP, recheado de afros-sambas. Depois de terem alcançado o topo da paradas americanas com Garota de Ipanema, João Gilberto e Stan Getz, lançam “Getz & Gilberto 2” e “Samba de Verão”, de Marcos Valle, é uma das músicas mais regravados no mundo neste ano, levando o cantor a fazer uma enorme turnê pelos Estados Unidos e Europa. Mas a música que mais retratava o sentimento político do país naquele momento era uma marcha rancheira de Carlos Lyra, com letra de Vinicius: “Marcha de quarta-feira de Cinzas” em uma metáfora do golpe militar.

ACABOU NOSSO CARNAVAL NINGUÉM OUVE CANTAR CANÇÕES NINGUÉM PASSA MAIS BRINCANDO FELIZ E NOS CORAÇÕES SAUDADES E CINZAS FOI O QUE RESTOU

PELAS RUAS O QUE SE VÊ É UMA GENTE QUE NEM SE VÊ

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QUE NEM SE SORRI SE BEIJA E SE ABRAÇA E SAI CAMINHANDO DANÇANDO E CANTANDO CANTIGAS DE AMOR

E NO ENTANTO É PRECISO CANTAR MAIS QUE NUNCA É PRECISO CANTAR É PRECISO CANTAR E ALEGRAR A CIDADE

A TRISTEZA QUE A GENTE TEM QUALQUER DIA VAI SE ACABAR TODOS VÃO SORRIR VOLTOU A ESPERANÇA É O POVO QUE DANÇA CONTENTE DA VIDA, FELIZ A CANTAR PORQUE SÃO TANTAS COISAS AZUIS E HÁ TÃO GRANDES PROMESSAS DE LUZ TANTO AMOR PARA AMAR DE QUE A GENTE NEM SABE

QUEM ME DERA VIVER PRA VER E BRINCAR OUTROS CARNAVAIS COM A BELEZA DOS VELHOS CARNAVAIS QUE MARCHAS TÃO LINDAS E O POVO CANTANDO SEU CANTO DE PAZ SEU CANTO DE PAZ

O sucesso que a bossa nova fazia nos Estados Unidos dava a dimensão contrária do que ela representava, naquele momento, no Brasil. Era o inverso. Quanto mais sucesso a bossa nova fazia em terras estadunidenses, mais desprezo ela recebia da elite intelectual que ficara aqui no Brasil. Nara Leão era agora a “musa da oposição”, embora rejeitasse com toda força o título

56 Caminhando e Cantando de musa de qualquer coisa. Ela fazia agora o espetáculo “Opinião”, um dos marcos do teatro de esquerda, junto com João do Valle e Zé Ketti, dois de seus compositores no LP. Ao sair do “Opinião”, Nara procurou uma substituta para seu lugar. Em uma viagem à Bahia conheceu uma jovem de Santo Amaro da Purificação. Dona Cano e seu Zeca, pais da cantora só deixariam a menina seguir para o sudeste se ela fosse acompanhada do irmão mais velho, foi assim que Maria Bethânia e , saíram da Bahia rumo ao estrelato. Em “Noites Tropicais” Nelson Motta diz que “poucos souberam e muito poucos celebraram os quatros Grammies ganhos por João Gilberto, Tom Jobim e Astrud com “Garota de Ipanema”, derrotando os Beatles e Elvis Presley. Nos bares de Ipanema, muitos já os (ou)viam como artistas politicamente alienados, produzindo música americanizada. O Vinicius de “Garota de Ipanema” era falso e inútil: o verdadeiro e engajado era o da “Marcha da quarta-feira de cinzas”. O Brasil precisava de alguma coisa mais forte, mais politicamente engajada e ideologicamente de esquerda, que ia contra o regime, que ainda não demonstrava sinais de sua força e de sua dureza.

A Jovem Guarda

Roberto Carlos em 1965 era um dos cantores mais ouvidos do país. Estourara cantando “Parei na Contramão”, sua música com seu parceiro inseparável Erasmo Carlos. Eles vinham embalados com o sucesso do rock americano no fim dos anos 50 e com a explosão do quarteto de Liverpool. Eles queriam mostrar que no Brasil também se fazia rock, mas aqui eles chamavam de Iê-Iê-Iê, por causa do filme “A Hard Day’s

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Night”, dos Beatles, que no Brasil se chamou “Os reis do Iê-Iê- Iê”. Era o prenúncio do rock brasileiro, embora vá se falar de rock Brasil só nos anos 80. Roberto e Erasmo foram contratados pela TV Record, para apresentar um programa nas tarde de domingo no horário do futebol. Eles queriam um trio para apresentar. Um trio jovem, que se identificasse com os jovens. A mulher escolhida para fazer companhia a Roberto e Erasmo foi Celly Campello, a primeira a cantar rock no Brasil. A cantora recusou. Era recém-casada e se retrirara da vida artística e voltara a morar em Taubaté, sua terra natal. A emissora escolheu então Vanderléa, uma jovem cantora. Contratos com salários excelentes foram assinados. Roberto ganharia mais que os companheiros. Mas ele disse só aceitaria se os salários fossem iguais. Paulo Machado de Carvalho aceitou. O programa ia ao ar às cinco da tarde de domingo e se chamava Jovem Guarda. O nome fora tirado de um discurso do ditador russo Lênin que dizia: “O futuro pertence a jovem guarda porque a velha está ultrapassada”. O programa reunia o pessoal da música jovem: Vanusa, Eduardo Araújo, Silvinha, Martinha, Ronnie Cord, Ronnie Von, Paulo Sérgio, Wanderley Cardoso, Jerry Adriani, Rosemary, Leno e Lilian, Demétrius, Os Vips, Waldirene, Sérgio Reis, Ed Wilson, e as bandas, Os Incríveis, Renato e Seus Blue Caps, Golden Boys e The Fevers, entre outros artistas que cantavam uma música alegre e pra cima. Eles não queriam nem saber de política, por isso eram execrados pela esquerda brasileira que queria artistas engajados na causa da democracia, contra a ditadura. No início do programa e como carro chefe do LP de Roberto denominado “Jovem Guarda, ele e Erasmo compuseram uma música que foi, sem querer, usada como um desabafo para os jovens brasileiros. A música, lançada em compacto simples de

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1945, tratava de um homem saudoso de sua amada e que examina a sua vida e nada mais importa, se ele não a tiver do lado. Seria uma música romântica de sucesso como qualquer outra da dupla, mas essa tinha na parte final do refrão o seu ponto chave: “... “E que tudo o mais vá pro inferno”.

DE QUE VALE O CÉU AZUL E O SOL SEMPRE A BRILHAR SE VOCÊ NÃO VEM E EU ESTOU A LHE ESPERAR SÓ TENHO VOCÊ NO MEU PENSAMENTO E A SUA AUSÊNCIA É TODO O MEU TORMENTO QUERO QUE VOCÊ ME AQUEÇA NESSE INVERNO E QUE TUDO MAIS VÁ PRO INFERNO

DE QUE VALE A MINHA BOA VIDA DE PLAYBOY SE ENTRO NO MEU CARRO E A SOLIDÃO ME DÓI ONDE QUER QUE EU ANDE TUDO É TÃO TRISTE NÃO ME INTERESSA O QUE DE MAIS EXISTE QUERO QUE VOCÊ ME AQUEÇA NESSE INVERNO E QUE TUDO MAIS VÁ PRO INFERNO

NÃO SUPORTO MAIS VOCÊ LONGE DE MIM QUERO ATÉ MORRER DO QUE VIVER ASSIM SÓ QUERO QUE VOCÊ ME AQUEÇA NESSE INVERNO E QUE TUDO MAIS VÁ PRO INFERNO

As pessoas cantavam “e que tudo mais vá pro inferno” com vontade, se referindo à política no Brasil. As pessoas não queriam saber de ditadura e mandavam com toda a força, tudo aquilo que não queriam no Brasil para o “inferno”, dito na música cantado por Roberto.

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Essa música marca o início da Jovem Guarda, que levaria Roberto ao posto de um dos maiores cantores da América Latina e um dos maiores vendedores de discos do mundo. Em “A Era dos Festivais – Uma Parábola”, o escritor e historiador Zuza Homem de Mello escreve: “A garotada iconoclasta superlotava o Teatro Record nas tardes de domingo, identificando-se com os cabeludos de roupas extravagantes, acolhendo o alheamento como forma de revolta contra as preocupações e formalidades, adotando as novas gírias como a linguagem de sua preferência e entregando-se à espontaneidade ingênua das letras e à alegria do ritmo para cantar e dançar livremente. O iê-iê-iê começava a dominar a bossa”.

--- Início da MPB --- Era dos Festivais

Antes de 1965, , não era conhecida no sudeste do Brasil. Era conhecida só pelos ouvintes de rádio gaúchos. Zuza Homem de Mello, um dos maiores especialistas em música brasileira, conta no livro “Era dos Festivais” como foi o início de carreira da cantora: "Há uma estrela no céu, há uma estrela na terra, e esta brilha na constelação do cast da Rádio Gaúcha! Vem aí, Elis Regina!", anunciava empolgado o animador Maurício Sobrinho antes de cada apresentação da mais aguardada atração de seu popularíssimo programa, aos domingos de manhã, transmitido do cinema Castelo, bairro da Azenha, em Porto Alegre. A garota assinara seu primeiro contrato profissional com a Rádio Gaúcha em 1960, ao completar 16 anos, já tendo participado durante meses do Clube do Guri, da Rádio Farroupilha, com Ari Rego. “Foi o começo da carreira de Elis Regina em Porto Alegre, com

60 Caminhando e Cantando sua voz juvenil e afinada, como se ouve nos seus dois primeiros discos”. Talvez por ironia do destino, um dos maiores compositores da Bossa Nova comporia a música que marcou o “fim” do predomínio do gênero e início do que se rotularia de MPB. Em 1965, no Guarujá, acontecia o I Festival de Música Popular Brasileira, da TV Excelsior. Uma cantora gaúcha, filha de uma lavadeira, com um nome que poucos pronunciavam corretamente interpretaria a canção vencedora daquele festival. A “Pimentinha” (nome pelo qual Elis Regina ficara conhecida) venceu o festival interpretando a música “Arrastão” de e Vinicius de Moraes. A partir desse festival a MPB nascia com a função de também protestar contra o regime militar no Brasil. Talvez os artistas não quisessem realmente protestar contra regime ou governo algum, mas as circunstâncias levaram a se acreditar que várias músicas tinham conotação contra o governo militar, como dezenas de canções de Chico Buarque que pouco tinha a ver com política, mas que com a fama de engajado do compositor, foram interpretadas dessa maneira. A televisão que chegara 15 anos antes começava a descobrir o tamanho de seu poder e com a música deu pra se ter a dimensão exata do poder que esse meio de comunicação tinha sobre o povo. Os festivais transformaram a música e o povo teve vontade de reagir contra tudo que estava acontecendo no cenário político brasileiro. Nessa época começaram a destacar nomes como o já citado Chico Buarque de Hollanda, Geraldo Vandré, Edu Lobo, Caetano Veloso, Gilberto Gil e , entre outros importantes cantores e compositores. Arrastão é a música que marca o início de anos gloriosos para a música brasileira.

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EH! TEM JANGADA NO MAR EH! EH! EH! HOJE TEM ARRASTÃO EH! TODO MUNDO PESCAR CHEGA DE SOMBRA E JOÃO JÔ VIU

OLHA O ARRASTÃO ENTRANDO NO MAR SEM FIM É MEU IRMÃO ME TRAZ IEMANJÁ PRÁ MIM OLHA O ARRASTÃO ENTRANDO NO MAR SEM FIM É MEU IRMÃO ME TRAZ IEMANJÁ PRÁ MIM

MINHA SANTA BÁRBARA ME ABENÇOAI QUERO ME CASAR COM JANAÍNA EH! PUXA BEM DEVAGAR EH! EH! EH! JÁ VEM VINDO O ARRASTÃO EH! É A RAINHA DO MAR VEM, VEM NA REDE JOÃO PRÁ MIM

VALHA-ME MEU NOSSO SENHOR DO BONFIM NUNCA, JAMAIS SE VIU TANTO PEIXE ASSIM VALHA-ME MEU NOSSO SENHOR DO BONFIM NUNCA, JAMAIS SE VIU TANTO PEIXE ASSIM

Com música de Edu e letra de Vinicius, Arrastão venceu com méritos o primeiro festival da chamada “Era dos Festivais”. A letra da canção não tinha a ver com a política do país. Por que, mesmo como diplomata, Vinicius não falava de política nas suas letras de música. Edu Lobo vinha de uma nova geração da bossa nova. A geração que, claro, idolatrava João Gilberto, mas que achava que a época para se falar de peixinhos e beijinhos já se passara. Era a geração que via a bossa nova como algo muito americanizado e que queria voltar às raízes do samba ou regionalizar mais ainda a música. É o caso de Arrastão com

62 Caminhando e Cantando forte influência da música nordestina, mas claro, com influência total de bossa nova. Foi essa mistura feita por artistas nos Festivais da Canção no fim dos anos 60, que se iniciou a música que se convencionou em chamar de Música Popular Brasileira, a MPB, o que muitos estudiosos e escritores consideram errônea, mas que caiu no gosto popular. Eduardo de Góes Lobo nasceu é carioca nascido em 29 de agosto de 1943. Filho de um Fernando Lobo, radialista e compositor, Edu Lobo formou um trio com Marcos Valle e para cantar e tocar bossa nova, como todos na época. Instumentista de mão cheia, ele começou a compor aos 19 anos e percebeu que queria fazer algo diferente de bossa nova: “Tinha vontade de fazer algo diferente do que se fazia na época. Não dava para concorrer com os compositores de bossa nova”, disse ele em entrevista ao Jornal do Brasil em 7 de novembro de 1994. Edu passava as férias no e lá começou a compor frevos e outros ritmos nordestinos, mas com a sofisticação harmônica de João Gilberto. Sem saber, ele criava, ao mesmo tempo que outros artistas, em outras partes do Brasil, o que viria a ser chamada de música de festival, depois MPB. Edu Lobo é considerado uma dos maiores músicos da fase pós-bossa nova. Ele era fortemente influenciado por Villa-Lobos e por Tom Jobim. Fez sucesso como cantor durante a década de 1960, depois dos festivais, mas foi como compositor e instrumentista que conquistou maior prestígio. Longe de ser um artista extremamente popular, foi para os Estados Unidos aprimorar seus conhecimentos em música e voltou na década de 1970, já esquecido do grande público. Na década de 1980 voltou a cena como parceiro de Chico Buarque e de outros famosos artistas. No final do século teve seu trabalho reconhecido e criou trilhas sonoras para

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Marco Antonio Gonçalves diversos filmes e é cultuado pela geração surgida no início do século XXI.

Música popular brasileira, ao pé da letra, pode englobar muitos gêneros e estilos e pode ser qualquer canção feita no Brasil. Mas aquela que nascia ali nos festivais significava um movimento específico. Tinha também função de protestar contra o regime militar que há pouco se instalara no país. Eram jovens cultos e politizados que sabiam muito bem o que queriam. Todos fãs de boa música e que tinham real veneração a João Gilberto, mas que achavam que era hora de mudar. Em abril de 1966, a TV Excelsior apresentava o seu segundo festival. Sem a repercussão do primeiro, este festival foi vencido por Gelado Vandré com a música “Porta-Estandarte”. Essa era uma música sem maiores pretensões. A importância deste festival se resume em um garoto que fazia a sua estreias em competições: Caetano Veloso ficou em quinto lugar com a música “Boa palavra”. A TV record passou a investir pesado em música. Ramo que Paulo Machado de Carvalho percebeu que traria bons frutos e que renderia muita audiência e propaganda para a emissora. “O Fino da Bossa” de Elis Regina e fazia um tremendo sucesso. O programa estreou em 1965, depois do festival que consagrou Arrastão. Era um programa mais culto e politizado que a “Jovem Guarda”, aonde iam cantores com algum engajamento ou dito nacionalistas. Elis Regina detestava estrangeirismos e, por consequência o rock. Participavam do seu programa cantores da nova e da antiga geração como Edu Lobo, Nara Leão, Maria Bethânia e Baden Powell, Orlando Silva, Claudete Soares, Nelson Gonçalves e vários outros. Até João Gilberto tocou lá uma vez (embora Elis detestasse bossa nova). João veio de Nova Iorque só para se

64 Caminhando e Cantando apresentar no programa. Veio, cantou, tocou e foi embora. Quase ser falar uma palavra, além das canções. Quem participasse da “Jovem Guarda” não podia tocar no programa de Elis e Jair, por conta da apresentadora. Jorge Ben, amigos de longa data de Roberto e Erasmo, foi um dos únicos a tocar nos dois programas e quando começou a ficar freqüente no programa do “trio ternurinha”, Elis o baniu de seu programa. A Record ainda contava com o “Show em Si...monal”, apresentado pelo cantor carioca que fazia um imenso sucesso na época. Os musicais eram o carro-chefe da emissora. Em 1966, com o sucesso do festival da TV Excelsior, Paulo Machado de Carvalho decidiu voltar com o Festival da TV Record. O primeiro havia acontecido em 60 sem grande repercussão.

--- A grande Batalha

Em 1966, foi realizado o II Festival da Música Popular Brasileira, da TV Record. Quando foram apresentadas as músicas selecionadas, duas despontaram como grandes favoritas ao título. Chico Buarque apresentava “A banda”, uma lírica marchinha de ritmo cadenciado e harmonia simplória, mas com uma letra marcante. A música seria interpretada pela ex- bossanovista Nara Leão.

ESTAVA À TOA NA VIDA O MEU AMOR ME CHAMOU PRA VER A BANDA PASSAR CANTANDO COISAS DE AMOR

A MINHA GENTE SOFRIDA DESPEDIU-SE DA DOR

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PRA VER A BANDA PASSAR CANTANDO COISAS DE AMOR

A MOÇA TRISTE QUE VIVIA CALADA SORRIU A ROSA TRISTE QUE VIVIA FECHADA SE ABRIU E A MENINADA TODA SE ASSANHOU PRA VER A BANDA PASSAR CANTANDO COISAS DE AMOR

O HOMEM SÉRIO QUE CONTAVA DINHEIRO PAROU O FAROLEIRO QUE CONTAVA VANTAGEM PAROU A NAMORADA QUE CONTAVA AS ESTRELAS PAROU PARA VER, OUVIR E DAR PASSAGEM

O VELHO FRACO SE ESQUECEU DO CANSAÇO E PENSOU QUE AINDA ERA MOÇO PRA SAIR NO TERRAÇO E DANÇOU A MOÇA FEIA DEBRUÇOU NA JANELA PENSANDO QUE A BANDA TOCAVA PRA ELA

A MARCHA ALEGRE SE ESPALHOU NA AVENIDA E INSISTIU A LUA CHEIA QUE VIVIA ESCONDIDA SURGIU MINHA CIDADE TODA SE ENFEITOU PRA VER A BANDA PASSAR CANTANDO COISAS DE AMOR

MAS PARA MEU DESENCANTO O QUE ERA DOCE ACABOU TUDO TOMOU SEU LUGAR DEPOIS QUE A BANDA PASSOU

E CADA QUAL NO SEU CANTO EM CADA CANTO UMA DOR DEPOIS DA BANDA PASSAR

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CANTANDO COISAS DE AMOR DEPOIS DA BANDA PASSAR CANTANDO COISAS DE AMOR...

Por sua vez, Geraldo Vandré, com seu parceiro Théo de Barros, apresentava “Disparada”. Uma canção sertaneja, com forte tom de protesto social, desenvolvida na forma de moda de viola. Vandré e Théo traziam o apresentador do “Fino” Jair Rodrigues para cantar a canção sertaneja.

PREPARE O SEU CORAÇÃO PRÁS COISAS QUE EU VOU CONTAR EU VENHO LÁ DO SERTÃO EU VENHO LÁ DO SERTÃO EU VENHO LÁ DO SERTÃO E POSSO NÃO LHE AGRADAR...

APRENDI A DIZER NÃO VER A MORTE SEM CHORAR E A MORTE, O DESTINO, TUDO A MORTE E O DESTINO, TUDO ESTAVA FORA DO LUGAR EU VIVO PRÁ CONSERTAR... NA BOIADA JÁ FUI BOI MAS UM DIA ME MONTEI NÃO POR UM MOTIVO MEU OU DE QUEM COMIGO HOUVESSE QUE QUALQUER QUERER TIVESSE PORÉM POR NECESSIDADE DO DONO DE UMA BOIADA CUJO VAQUEIRO MORREU...

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BOIADEIRO MUITO TEMPO LAÇO FIRME E BRAÇO FORTE MUITO GADO, MUITA GENTE PELA VIDA SEGUREI SEGUIA COMO NUM SONHO E BOIADEIRO ERA UM REI...

MAS O MUNDO FOI RODANDO NAS PATAS DO MEU CAVALO E NOS SONHOS QUE FUI SONHANDO AS VISÕES SE CLAREANDO AS VISÕES SE CLAREANDO ATÉ QUE UM DIA ACORDEI...

ENTÃO NÃO PUDE SEGUIR VALENTE EM LUGAR TENENTE E DONO DE GADO E GENTE PORQUE GADO A GENTE MARCA TANGE, FERRA, ENGORDA E MATA MAS COM GENTE É DIFERENTE...

SE VOCÊ NÃO CONCORDAR NÃO POSSO ME DESCULPAR NÃO CANTO PRÁ ENGANAR VOU PEGAR MINHA VIOLA VOU DEIXAR VOCÊ DE LADO VOU CANTAR NOUTRO LUGAR

NA BOIADA JÁ FUI BOI

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BOIADEIRO JÁ FUI REI NÃO POR MIM NEM POR NINGUÉM QUE JUNTO COMIGO HOUVESSE QUE QUISESSE OU QUE PUDESSE POR QUALQUER COISA DE SEU POR QUALQUER COISA DE SEU QUERER IR MAIS LONGE DO QUE EU...

Parecia uma luta de boxe valendo cinturão, não por parte dos artistas, mas por parte da platéia, que encarnou e muito o espírito competitivo. “A banda” versus “Disparada” parecia Atlético e Cruzeiro em final de campeonato e o teatro Record era o Mineirão. Nara, com seu fiapo de voz não se faria ouvir diante daquela ensurdecedora plateia. Manoel Carlos, produtor do festival sugeriu que Chico também cantasse. “Na reapresentação de "A Banda" nessa noite da terceira eliminatória houve uma novidade: a fim de resolver o problema de som que prejudicara a primeira apresentação, o produtor Manoel Carlos sugeriu que Chico Buarque, mesmo a contragosto, entrasse no palco com seu violão para cantar a música inteira, antes de Nara repeti-la com a bandinha atrás, pouco importando se continuasse sendo mal ouvida, pois Chico já teria dado o recado. A manobra deu certo e agradou em cheio, ampliando a torcida de "A Banda", pois Chico e Nara, além de muito queridos, formavam um par jovial.”, conta Homem de Mello. O Brasil estava dividido entre “A banda” e “Disparada”, nunca se viu nada parecido na música brasileira. A rivalidade entre as duas músicas era tamanha que se temia pancadaria quando fosse anunciado o resultado. Vandré, Chico, Nara e Jair eram amigos e também achavam aquele espetáculo circense

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Marco Antonio Gonçalves demais. Graças à internet é possível ver o vídeo da música defendida por Nara e Chico com Jair Rodrigues acompanhando com palmas ao lado num clima amistoso em uma das eliminatórias. Chico Buarque, então com apenas 21 anos, considerava a música de Vandré muito melhor que a dele e ameaçava não receber o prêmio caso “A banda” vencesse. Ao final das apresentações pairava sobre o público, a apreensão e a ansiedade. Chico Buarque de Hollanda era filho de Sérgio Buarque de Hollanda, historiador e um dos mais importantes intelectuais do Brasil. Ele já havia gravado um compacto simples, com “Pedro Pedreiro”, uma de suas músicas mais geniais, de um lado, e “Sonho de Carnaval” de outro. Já fazia pequeno shows e fora contratado pela Record para participar de musicais. Alcançou reconhecimento quando foi gravado por Nara Leão (ela de novo). A cantora gravou em seu LP “Nara pede passagem” três músicas de Chico. “Ser gravado por Nara era o passaporte para o Olimpo da música popular brasileira, e assim Chico passou a ser mais conhecido como compositor do que como cantor”, diz Homem de Mello. Como o disco de Nara cantando suas músicas não parava de tocar nas rádios, Chico Buarque, um joão ninguém no I Festival da Excelsior, começava a ficar conhecido e sua música a levar vantagem com a intensa divulgação nos dez dias que antecederam a final do musical, marcado para 10 de outubro. Em Noites Tropicais, Nelson Motta escreve: “Torcedor ou não de uma das duas, quem quer que fosse tinha que se definir e defender a sua preferida”. Aproximava-se o dia da final, cercado da ansiedade que transformou a peleja num acontecimento único na história da arte brasileira: "A Banda" versus "Disparada".

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O Jornal O Estado de São Paulo escreveu: “Desde o finzinho de setembro, só duas torcidas contam: a da Associação Atlética Dispara e da Banda Futebol Clube”. Havia chegado o dia: segunda-feira, 10 de outubro de 1966. A expectativa era tamanha que alguns teatros e cinemas suspenderam suas sessões no dia da apresentação final. O auditório do Teatro Record, na Rua da Consolação, estava lotado. Pessoas gritavam, traziam suas faixas e gritos de guerra. O clima nos bastidores também estava pesado. Os ânimos exaltados. No dia da final a gritaria era tanta, que as outras músicas classificadas foram extremamente vaiadas. O povo só queria ouvir as duas favoritas. Com razão, o dono da emissora, Paulo Machado de Carvalho tinha medo de anunciar o resultado, por duas razões: A iminente pancadaria que poderia acontecer na plateia e a ameaça de Chico de não receber o prêmio caso “A banda” vencesse. O manda-chuva da Record, conhecido como “Marechal da Vitória” pela sua atuação como chefe da delegação brasileira na Copa de 1958, decidiu dobrar o prêmio para o primeiro lugar e decretou que houve um empate. O resultado dos votos dos jurados ficou, por muitos anos, guardado a sete chaves, até que Zuza Homem de Mello, em seu livro já citado, revelou que a música de Chico venceu por sete votos a cinco. Todos felizes e sem confusão. A transmissão da final do festival registrou um dos maiores índices de audiência, em porcentagem de televisores ligados no canal, da história da televisão brasileira. Destaque também para o terceiro (quarto) lugar para e Capinam com “Canção para Maria” e para o quinto lugar (sexto) para Gilberto Gil, com “Ensaio Geral”. Depois do festival, “A banda” vendeu mais de 100 mil discos, tanto com Chico quanto com Nara, em menos de uma semana. A canção se tornou uma das maiores canções brasileiras

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Marco Antonio Gonçalves de todos os tempos e alçou Chico Buarque a condição de maior astro nacional. Segundo Nelson Motta ele virou “uma paixão nacional, uma unanimidade. Quase uma obsessão. Jovem, bonito, culto e carismático, Chico reunia todas as qualidades certas, na pessoa certa e no momento certo: sua poesia ágil e moderna, com sólidas raízes no Brasil, unia o popular e o sofisticado em suas harmonias e melodias”. “A banda” renderia a Chico a sua primeira rusga com a ditadura militar, quando o governo resolveu usar a canção em uma campanha de alistamento militar. Chico, claro, foi contra e o governo teve de retirar a propaganda do ar. Embora, a música não trate de nenhuma questão política (Chico sempre deixou bem claro que era apenas uma marchinha simples composta para o festival), a canção gerou reações de pessoas que enxergavam nela alguma forma de protesto e daqueles que a achavam alienada demais. O grande poeta Carlos Drummond de Andrade escreveu em uma crônica publicada no jornal “Correio da Manhã”: “O jeito mesmo é ver a banda passar, cantando coisas de amor. Pois de amor andamos todos precisados, em dose tal que nos alegre, nos reumanize, nos corrija, nos dê paciência e esperança, força, capacidade de entender, perdoar, ir para a frente. (...) Pois a banda não vem entoando marchas militares, dobrados de guerra. Esta banda é de amor, prefere rasgar corações (...) Meu partido está tomado, não a Arena ou o MDB, sou desse partido congregacional e superior às classificações de emergência, que encontra na banda o remédio, a angra, o roteiro, a solução.” O não menos importante escritor escreveu em sua coluna no Jornal do Brasil: “(...) eu próprio ouvi a marchinha genial e a minha vontade foi de sair de casa, sentar no meio-fio e começar a chorar. Com “A banda”, começa uma nova época para a música popular no Brasil”.

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Mas apesar de elogios de pessoas tão notáveis, Chico não foi aclamado por todos. Os patrulheiros ideológicos, principalmente de esquerda, que logo teriam em Chico seu baluarte, acharam aquela canção lírica demais, alienada demais, um verdadeiro retrocesso. O próprio compositor em entrevista à Rádio do Centro Cultural São Paulo disse: “Quando compus “A banda” eu me lembro que havia uma discreta condenação por parte da esquerda que ainda insistia em ouvir o grito do Opinião, o grito de um “Carcará” e tal. A Nara Leão, aliás, me acompanhou nesse movimento, porque ela também já estava um pouco cansada dessa tal música de protesto que se fazia então, que não passava das portas do teatro e que, no fim das contas, era ineficaz. “A banda” era uma retomada do lirismo, proposital mesmo, porque eu não era tão inocente assim quanto parecia. Eu tinha um passado, mesmo que discreto, de luta estudantil.” “A banda” fez muito mais sucesso do que a canção de Vandré e Theo de Barros depois do festival, embora “Disparada” também tenha feito um sucesso retumbante. Aquele era o momento de Chico. Vandré explodiria com uma canção poucos festivais depois. Com o sucesso do Festival da TV Record, a TV Rio, futura Globo, também decidiu investir neste tipo de programa e pôs no ar duas semanas depois do festival que consagrou Chico Buarque, o I Festival Internacional da Canção (FIC) que dava o direito do vencedor brasileiro disputar o “Galo de Ouro” com 26 músicas estrangeiras, além de um bom prêmio em dinheiro. A final aconteceu no Maracanãzinho e consagrou uma dupla novata como campeã: Dori Caymmi, filho de Dorival, e Nelson Motta eram os compositores de “Saveiros”, música interpretada pela irmã de Dori, Nana. Mesmo sem o sucesso do festival da Record, a plateia carioca também agia com entusiasmo e chegou

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Marco Antonio Gonçalves até a assustar a veterana Maysa, que ficou com o terceiro lugar do Festival, com “Dia de Rosas”, de Luís Bonfá. Em um curto espaço de tempo, de setembro a novembro de 1967, se realizaram o terceiro festival da Record e o II FIC, já na Globo. De acordo com o escritor Jairo Severiano, “pela qualidade das músicas e dos participantes, pelos acontecimentos no palco e na plateia e pelo excepcional interesse despertado, o III Festival da Record marcou o apogeu da Era dos Festivais”. Nesta edição se reuniram pela primeira e única vez, quatros dos maiores compositores revelados nos festivais: Edu Lobo, Chico Buarque, Caetano Veloso e Gilberto Gil. As músicas apresentadas eram de qualidade inquestionável e os jurados tiveram dificuldade em escolher a melhor. Edu Lobo se consagrou de vez neste festival com a música “Ponteio”, que tinha letra de José Carlos Capinam e melodia de Edu e foi intepretada por ele e por Marília Medalha. Ponteio (Quem me dera agora/Eu tivesse a viola/Pra cantar) tinha fortes influências da musica nordestina e da música de Villa-Lobos, que Edu havia estudado e se aprofundado. A letra de Capinam, embora não seja uma crítica ao “sistema”, agradou a plateia politizada e venceu com méritos a edição deste concorrido festival. Entretanto, mesmo vencendo e se tornando célebre, as outras canções que se classificaram em posições subseqüentes tiveram um sucesso tão grande ou até maior do que a canção de Edu e ainda hoje são consideradas com grandes clássicos da Música Brasileira. A segunda posição ficou com a vanguardista e já tropicalista “Domingo no Parque” de Gilberto Gil (O rei da brincadeira/Êh José!/O rei da confusão/Êh João! Um trabalhava na feira/ Êh José!/Outro na construção/Êh João!…). A música, que assim como “Ponteio”, tem com uma forte influência nordestina e é um canto de capoeira, narra a história de dois amigos: José, o rei da brincadeira e João, o rei da confusão. Em

74 Caminhando e Cantando um domingo quando José foi ao parque viu João com Juliana, a mulher que ele amava. Tomado de ciúme, José mata o amigo e a amada em um crime passional que dá o clímax final na canção. Embora, tenha uma letra forte e marcante, a música causou impacto por seu ritmo, por sua mistura de instrumentos, que vão da guitarra elétrica ao , por sua “confusão” de harmonia, pelos recursos usados por Gilberto Gil, que ia de barulho de realejos e outros sons de parque, e por apresentar o que iria chocar a ditadura: a inovação tropicalista. “Domingo no Parque” projetou para a fama o grupo de rock , dos irmãos Sérgio Dias e Arnaldo Baptista e da cantora e futura mulher de Arnaldo, , que acompanharam Gil na interpretação. Chico Buarque desta vez ficou com a terceira posição com a canção Roda-Viva. A música conta a história de um artista que era engolido pelo show business, como havia acontecido com Chico desde o sucesso de “A banda”.

TEM DIAS QUE A GENTE SE SENTE COMO QUEM PARTIU OU MORREU A GENTE ESTANCOU DE REPENTE OU FOI O MUNDO ENTÃO QUE CRESCEU...

A GENTE QUER TER VOZ ATIVA NO NOSSO DESTINO MANDAR MAS EIS QUE CHEGA A RODA VIVA E CARREGA O DESTINO PRÁ LÁ ...

RODA MUNDO, RODA GIGANTE RODA MOINHO, RODA PIÃO O TEMPO RODOU NUM INSTANTE NAS VOLTAS DO MEU CORAÇÃO...

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A GENTE VAI CONTRA A CORRENTE ATÉ NÃO PODER RESISTIR NA VOLTA DO BARCO É QUE SENTE O QUANTO DEIXOU DE CUMPRIR FAZ TEMPO QUE A GENTE CULTIVA A MAIS LINDA ROSEIRA QUE HÁ MAS EIS QUE CHEGA A RODA VIVA E CARREGA A ROSEIRA PRÁ LÁ...

RODA MUNDO, RODA GIGANTE RODA MOINHO, RODA PIÃO O TEMPO RODOU NUM INSTANTE NAS VOLTAS DO MEU CORAÇÃO...

A RODA DA SAIA MULATA NÃO QUER MAIS RODAR NÃO SENHOR NÃO POSSO FAZER SERENATA A RODA DE SAMBA ACABOU...

A GENTE TOMA A INICIATIVA VIOLA NA RUA A CANTAR MAS EIS QUE CHEGA A RODA VIVA E CARREGA A VIOLA PRÁ LÁ...

RODA MUNDO, RODA GIGANTE RODA MOINHO, RODA PIÃO O TEMPO RODOU NUM INSTANTE NAS VOLTAS DO MEU CORAÇÃO...

O SAMBA, A VIOLA, A ROSEIRA QUE UM DIA A FOGUEIRA QUEIMOU

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FOI TUDO ILUSÃO PASSAGEIRA QUE A BRISA PRIMEIRA LEVOU...

NO PEITO A SAUDADE CATIVA FAZ FORÇA PRO TEMPO PARAR MAS EIS QUE CHEGA A RODA VIVA E CARREGA A SAUDADE PRÁ LÁ ...

Ela acabou virando tema de uma peça que foi dirigida por José Celso Martinez Correa e estreou no Teatro Princesa Isabel, no Rio de Janeiro, no dia 15 de março de 1968. Com muitos palavrões e cenas violentas a peça criou polêmica e chocou a sociedade, como queria o diretor. Ela também serviu para afastar a fama de bom moço de Chico, exatamente como ele queria. "Antes que brigassem com o Chico, já briguei com ele", disse ele mais tarde, numa entrevista do início dos anos 70. A peça não tinha nada a ver com política. Apenas contava a história do cantor popular Benedito Silva e sua entrada no mundo já conhecido pelo autor, sua ascensão como artista e sua morte, envolvido em um esquema de televisão. A tal roda-viva nada mais era do que o showbiz. Fernando de Barros e Silva escreve no livro “Chico Buarque”: “Com um grão de sal, pode-se afirmar que Roda Viva é o momento tropicalista na carreira de Chico Buarque.” Tropicalista porque José Celso mudou cenas e a transformou em uma peça anarquista, polêmica e que tinha a intenção de incomodar o público e recebeu a chancela de Chico. No dia 17 de julho, em São Paulo, a organização de extrema- direita CCC (Comando de Caça aos Comunistas) invadiu o teatro Galpão, onde a peça estava sendo encenada, depredou o prédio, destruiu os cenários e espancou violentamente o elenco.

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Marco Antonio Gonçalves

A tese mais correta era de que o grupo queria bater no elenco do espetáculo Feira Paulista de Opinião, de , encenada em outra sala do mesmo teatro. Como os atores dessa peça já não estavam mais no local, eles descontaram no elenco de “Roda-Viva”. Depois de um mês, em Porto Alegre, agentes da repressão voltaram a bater nos atores da peça e José Celso e Chico encerraram a curta, mas conturbada, carreira do espetáculo. A música, tanto quanto o espetáculo teatral, não tinha absolutamente nada relativo à política, embora muita gente insistisse e insiste até hoje que a roda-viva era o governo, que levava embora toda a liberdade e a democracia. Chico nega veementemente essa versão. A canção foi composta apenas para o festival da Record. Era a chamada música de festival. Em uma entrevista durante o intervalo daquele festival, Chico Buarque ainda tímido e desacostumado com as câmeras diz: “Com a seqüência de festivais, um após o outro, vai se criando uma forma que agrada. Certos ritmos que agradam mais. Igual à música de carnaval há um tempo, que tinha que ser curta e bla-bla-bla. Hoje já se que quebrou essa regra. E a música de Festival vai repetindo um esquemazinho, o que torna a música ‘festivalesca’”. Roda-Viva era uma dessas músicas de festival como descreveu Chico. Mas passou a ser muito mais do que uma música criada para uma competição entre compositores. Roda- Viva passou a ser um marco, dentre tantos outros, na carreira de Chico. A música entrou para o imaginário popular e até hoje pode ser ouvida entoado por filhos e netos da geração que fazia música em 67. O quarto lugar ficou para a música mais politizada do festival. “Alegria, Alegria”, de Caetano Veloso contava a história de um cidadão comum brasileiro que sofria a opressão

78 Caminhando e Cantando vigente na época. Opressão das ruas, da mídia e denuncia o abuso de poder e a falta de liberdade do povo como se lê nos primeiros e mais famosos versos.

CAMINHANDO CONTRA O VENTO SEM LENÇO E SEM DOCUMENTO NO SOL DE QUASE DEZEMBRO, EU VOU.

O SOL SE REPARTE EM CRIMES ESPAÇONAVES, GUERRILHAS EM CARDINALES BONITAS, EU VOU.

EM CARAS DE PRESIDENTE, EM GRANDES BEIJOS DE AMOR, EM DENTES, PERNAS, BANDEIRAS, BOMBA E BRIGITTE BARDOT.

O SOL NAS BANCAS DE REVISTA ME ENCHE DE ALEGRIA E PREGUIÇA. QUEM LÊ TANTA NOTÍCIA?

EU VOU POR ENTRE FOTOS E NOMES OS OLHOS CHEIOS DE CORES O PEITO CHEIO DE AMORES VÃOS.

EU VOU POR QUE NÃO? E POR QUE NÃO?

ELA PENSA EM CASAMENTO

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E EU NUNCA MAIS FUI À ESCOLA SEM LENÇO E SEM DOCUMENTO EU VOU.

EU TOMO UMA COCA-COLA ELA PENSA EM CASAMENTO UMA CANÇÃO ME CONSOLA EU VOU.

POR ENTRE FOTOS E NOMES SEM LIVROS E SEM FUZIL SEM FOME, SEM TELEFONE, NO CORAÇÃO DO BRASIL.

ELA NEM SABE ATÉ PENSEI EM CANTAR NA TELEVISÃO O SOL É TÃO BONITO

EU VOU SEM LENÇO, SEM DOCUMENTO NADA NO BOLSO OU NAS MÃOS EU QUERO SEGUIR VIVENDO AMOR.

EU VOU POR QUE NÃO? E POR QUE NÃO?

Foi a primeira canção que criticava abertamente a ditadura a ter sucesso no Brasil. Caetano usa de metáforas para mostrar a situação do país e do mundo naquele momento da década como na segunda estrofe: “O sol se reparte em crimes/ Espaçonaves, guerrilhas/ Em Cardinales bonitas/ Eu vou”. Também nos mostra a alienação sofrida pela população através dos meios de

80 Caminhando e Cantando comunicação e propaganda usando termos como as beldades do cinema Claudia Cardinale e Brigitte Bardot e a principal imposição midiática mundial, a coca-cola. Caetano também não deixa de falar da violência no Brasil: “Sem livros e sem fuzil/ Sem fome, sem telefone/ no coração do Brasil”. A educação brasileira e a alienação do povo também foi escrita por Caetano na canção: “O sol nas bancas de revista /me enche de alegria e preguiça/quem lê tanta notícia?”. Caetano conseguiu usar diversas formas, palavras e conceitos para criticar o mundo em que vivia. Com “Alegria, Alegria” Caetano conseguiu o que queria. Transformou-se em ícone de uma época que se mostrava extremamente conturbada para a política brasileira, mas extremamente rica em termos estilísticos, musicais na história da canção nacional. A partir de 1968, com a promulgação do Ato Institucional Número 5, todos os artistas do Brasil teriam que “caminhar contra o vento, sem lenço e sem documento”. Neste festival Caetano com “Alegria, Alegria” e Gil, com “Domingo no Parque” mostraram ao Brasil a “Tropicália”. A plateia agia cada vez mais como em um campo de futebol ou em um ringue de luta e vaiava absurdamente as músicas que não queriam ouvir. Sérgio Ricardo ficou célebre por um ato de descontrole neste festival. Durante a apresentação de “Beto Bom de Bola”, sua música finalista, ele não conseguiu se fazer ouvir, tamanha era a vaia da plateia. Ele, durante algum tempo, tentou em vão cantar a música, acompanhado de um violão. Os gritos eram ensurdecedores. Ele só não desistiu de cantar como ainda quebrou o instrumento e o jogou no público aos gritos de “vocês ganharam”. “Beto Bom de Bola” foi desclassificada e o resultado final foi aceito de bom grado pela plateia, ao contrário da vencedora “Saveiros” no primeiro FIC,

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Marco Antonio Gonçalves onde a música de Nelson Motta e Dory Caymmi foi extremamente vaiada quando foi anunciado o resultado. Antes mesmo do fim do Festival da Record, o II FIC já tinha início na Rede Globo. A única grande surpresa e o maior nome deste festival foi a aparição de um compositor mineiro que trazia três das mais importantes canções desta competição: “Morro Velho”, “Maria minha fé” e “Travessia”, esta em parceria com Fernando Brant. Ele era Milton Nascimento, um dos principais nomes surgidos na época de ouro dos festivais da canção, muito embora “Travessia” tenha ficado em segundo lugar no FIC, perdendo para “Margarida”, canção de Gutemberg Guarabira. Canção esta que teve apenas quinze minutos de fama e caiu no esquecimento geral, enquanto “Travessia” se consagrou com uma de nossas maiores músicas, alcançando reconhecimento internacional com inúmeras regravações no Brasil e no exterior, inclusive da renomada cantora islandesa Bjork. Nelson Motta conta que quando ouviu Milton neste festival ficou maravilhado, assim como todos. “Desde Elis não se ouvia um cantor tão bom. Sua música parecia com a de Tom, Chico ou Caetano, Vandré ou Gilberto Gil. Era muito original e pessoal. Mais parecida com o que faziam Edu e Dory Caymmi, mas também de John Coltrane e Mile Davis, com suas harmonizações compexas e seu fraseado sinuoso. O cara era um monstro. Mais um.” O III FIC que aconteceu entre 12 de setembro e 6 de outubro de 1968 ficou marcado como o último grande festival, que contou com os maiores nomes surgidos nos Festivais. Também foi o que teve maior repercussão política. As torcidas, mais do que nunca, manifestavam sua insatisfação com o regime na torcida por determinadas candidatas no que se deu como o mais conturbado festival já realizado.

82 Caminhando e Cantando

Já na eliminatória paulista do Festival, Caetano Veloso defendia ao lado dos Mutantes a música “É proibido proibir” e recebido por uma chuva de vaias, ovos e tomates, ele interrompeu a canção no meio, quando não era mais possível ouvir som algum, além dos gritos ensurdecedores da plateia. O compositor começou a gritar furioso para o público: “Mas é isso que é a juventude que diz que quer tomar o poder? Vocês têm coragem de aplaudir esta ano uma música teriam coragem de aplaudir no ano passado! Vocês são a mesma juventude que vai sempre, sempre, matar o velhote que morreu ontem! Vocês não estão entendendo nada, nada, nada, absolutamente nada! Eu hoje vim dizer aqui, que quem tem a coragem de assumir a estrutura de festival e faze-la explodir foi o Gilberto Gil e fui eu. Não foi ninguém. Foi Gilberto Gil e fui eu. Vocês estão por fora! Vocês não entendem nada. Mas que juventude é essa? Que juventude é essa?” Esse desabafo furioso e nada modesto de Caetano já fazia parte do que eles chamariam de Tropicália. A plateia que vaiava absurdamente Caetano era contra a música do compositor por que, segundo eles, ele havia se afastado da militância política, suas músicas não eram de protesto como se pedia a época e se implorava o gosto da plateia presente nos festivais. Por isso Caetano protestou aclamando que ele, juntamente com Gil, era o responsável pelo padrão imposto pelo festival. Essa anarquia. Essa mudança de comportamento já era sinal do tropicalismo que, até então, não agradava muita gente e desagradava ainda mais o governo militar. Curiosamente o refrão de “É proibido proibir” poderia ser usado como um hino contra a ditadura, que censurava e impedia manifestações maiores. Entretanto, ainda faltava três meses, na época do festival em que essa canção concorreu, para o governo

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Marco Antonio Gonçalves fechar o congresso e instalar a censura e aumentar a repressão, que se daria com o decreto do Ato Institucional 5.

E EU DIGO SIM E EU DIGO NÃO AO NÃO E EU DIGO: É! PROIBIDO PROIBIR É PROIBIDO PROIBIR É PROIBIDO PROIBIR É PROIBIDO PROIBIR É PROIBIDO PROIBIR...

O público daquele festival já tinha sua preferida. Aliás, já tinha seu hino. Hino esse que ficaria para sempre ligado ao nome do seu compositor e também vinculado aos tempos sombrios da república. Geraldo Vandré apresentava a música “Pra não dizer que não falei das flores” ou “Caminhando”. Uma forte canção de protesto, com um imenso apelo revolucionário.

CAMINHANDO E CANTANDO E SEGUINDO A CANÇÃO SOMOS TODOS IGUAIS BRAÇOS DADOS OU NÃO NAS ESCOLAS, NAS RUAS CAMPOS, CONSTRUÇÕES CAMINHANDO E CANTANDO E SEGUINDO A CANÇÃO

VEM, VAMOS EMBORA QUE ESPERAR NÃO É SABER QUEM SABE FAZ A HORA NÃO ESPERA ACONTECER

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PELOS CAMPOS HÁ FOME EM GRANDES PLANTAÇÕES PELAS RUAS MARCHANDO INDECISOS CORDÕES AINDA FAZEM DA FLOR SEU MAIS FORTE REFRÃO E ACREDITAM NAS FLORES VENCENDO O CANHÃO HÁ SOLDADOS ARMADOS AMADOS OU NÃO QUASE TODOS PERDIDOS DE ARMAS NA MÃO NOS QUARTÉIS LHES ENSINAM UMA ANTIGA LIÇÃO: DE MORRER PELA PÁTRIA E VIVER SEM RAZÃO

NAS ESCOLAS, NAS RUAS CAMPOS, CONSTRUÇÕES SOMOS TODOS SOLDADOS ARMADOS OU NÃO CAMINHANDO E CANTANDO E SEGUINDO A CANÇÃO SOMOS TODOS IGUAIS BRAÇOS DADOS OU NÃO

OS AMORES NA MENTE AS FLORES NO CHÃO A CERTEZA NA FRENTE A HISTÓRIA NA MÃO CAMINHANDO E CANTANDO

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Marco Antonio Gonçalves

E SEGUINDO A CANÇÃO APRENDENDO E ENSINANDO UMA NOVA LIÇÃO

VEM, VAMOS EMBORA QUE ESPERAR NÃO É SABER QUEM SABE FAZ A HORA NÃO ESPERA ACONTECER

A letra da música de Vandré claramente provocava o exército como no na parte: “Há soldados armados, amados ou não / Quase todos perdidos de armas na mão / Nos quartéis lhes ensinam uma antiga lição / de morrer pela pátria e viver sem razão". A canção, uma marcha em tom de hino militar incitava às pessoas à resistência. Ela se tornou uma das músicas mais onhecidas de todos os tempos no Brasil. Seu refrão é entoado até hoje e sempre lembrado pelos professores de história pelo Brasil afora quando o assunto é a ditadura militar brasileira. Segundo alguns críticos, um dos estopins da decretação do AI-5. Obviamente, a canção foi censurada. A primeira artista que gravou a canção foi Simone, em 1979, já depois da anistia concedida pelo governo federal. O compositor se tornou um mito da música brasileira e vários boatos e lendas são conhecidos pelos quatro cantos do país sobre o que de veras aconteceu com Vandré depois daquele estrondoso sucesso. Dizem que ele fora preso, torturado e enlouqueceu. Outros dizem que depois que foi embora do Brasil, fez um acordo com o governo para voltar ao país, com a condição que não fizesse mais músicas contra o regime. Boato alimentado, quando foi lançado o disco Fabiana, em homenagem a FAB (Força Aérea Brasileira), o último de sua carreira.

86 Caminhando e Cantando

A versão oficial, contada pelo próprio compositor, e que certamente é a verdadeira, é que depois do festival, ele se auto- exilou no Chile e depois rumou para a Europa, devido a sua insatisfação com a política e que voltara ao país em 1973, também por vontade própria. Vandré hoje mora em São Paulo, exerce a função de advogado (formou-se em direito em 1959) e vive recluso do mundo, principalmente do mundo da música. Não vê televisão ou ouve rádio. Compõe músicas, diz que não conhece nada da atual MPB e só ouve músicas clássicas. Mora sozinho e somente recebe a visita de alguns poucos amigos e raramente concede entrevistas. Em 2000, em uma de suas raras entrevisas ao site Clique Music, rechaçou todas as teorias em torno de sua figura: "Caminhando não era uma canção política. Era um aviso aos militares: ‘Olha gente, desse jeito não dá mais’. Eles (militares) nunca tocaram um dedo em mim". Em 2010, apareceu no programa “Dossiê GloboNews”, do canal a cabo da GloboSat, em entrevista concedida a Geneton Moraes Neto. Fazia mais de quatro décadas que não aparecia na televisão. Nesta entrevista disse que preparava um disco de canções populares em espanhol para ser lançado no Uruguai. Quando perguntado sobre “Caminhando”. Disse que não fazia canções de protesto, “apenas fazia música brasileira”. Segundo suas palavras “protesto é coisas de quem não tem o poder”. Embora todo o estardalhaço no III FIC tenha ficado em torno das duas músicas – “É proibido proibir” e “Caminhando” – a vencedora foi uma belíssima música de Antonio Carlos Jobim, com letra de Chico Buarque, “Sabiá”, com “Pra não dizer que não falei das flores (Caminhando)” em segundo. Quando foi anunciado o resultado se ouviu uma estrondosa vaia para Tom (Chico Buarque estava viajando e não estava presente na final do festival), que foi receber o prêmio. O

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Marco Antonio Gonçalves público não se conformava com a derrota de “Caminhando”. O grande mestre Tom Jobim nunca ouviu tamanha vaia dirigida a sua pessoa. Vandré saiu em defesa de Tom e Chico dizendo ao público: “Antonio Carlos Jobim e Chico Buarque de Hollanda merecem o nosso respeito. A nossa função é fazer canções. A função de julgar é do júri que ali está”. As vaias aumentaram, juntamente com os gritos de “marmelada”. “Vem, vamos embora que esperar não é saber. Quem sabe faz a hora, não espera acontecer”, seria dali em diante o grito de guerra de toda manifestação contra o regime político vigente no Brasil e que estava perto de apertar ainda mais o cerco contra a liberdade.

--- Uma década de revoluções

A década de 1960 foi uma das décadas mais movimentadas da história da humanidade. Com o fantasma da Segunda Guerra um pouco mais longe, o mundo estava preparado para mudanças drásticas que mudariam o rumo dos acontecimento nas próximas décadas, e por que não dizer nas próximas gerações. Um dos principais acontecimentos desse período foi a explosão dos Beatles em 1962, que se arrastou durante toda a década, com eles ainda em atividade. Dizem que depois que surgiram nunca, em parte alguma do globo, se deixou de tocar uma canção da banda. O mundo estava em plena mudança e efervescência cultural. O contexto da Guerra Fria deixou tudo mais livre, e ao mesmo tempo, a repressão aumentou. Algo paradoxal já que a juventude nascida nos anos da Grande Guerra chegava então ao seu tempo, à sua época e não queria saber de cerceamento de qualquer tipo de coisa. Era a juventude da liberdade, do amor livre.

88 Caminhando e Cantando

A segunda metade da década foi no Brasil e no mundo inteiro uma época de vários movimentos culturais e políticos que marcam nosso tempo. 1968 foi o ano que marcou esse período. Foi o ano em que se eclodiram por diversas partes do mundo várias manifestações que culminaram nos mais importantes avanços culturais e sociais do século XX. Em maio de 1968, uma greve geral se instala na França, a partir de manifestações estudantis nas universidades Sorbonne e Nanterre, reprimido pelo governo de Charles de Gaulle. A partir desse ato dos jovens franceses uma reação em cadeia se espalhou pelo ocidente e várias manifestações estudantis ocorreram em diversos países da Europa e América. 1968 é tratado por muitos como o ano que não terminou, como diz o título do best-seller de Zuenir Ventura. O mês de maio de 1968 representou o auge de um momento histórico de intensas transformações políticas, culturais e comportamentais que marcaram a segunda metade do século 20. No Brasil não foi diferente. As primeiras grandes manifestações contra a ditadura também surgiram nessa época. “A Passeata dos Cem Mil” foi um marco no combate à repressão do regime militar. A manifestação aconteceu em 28 de junho de 1968 nas ruas do Rio de Janeiro, depois que o estudante Edson Luis de Lima Souto, de 17 anos fora morto durante uma invasão de militares no Restaurante Calabouço, que funcionava na escola em que Edson Luis estudava. Os estudantes estavam protestando contra o preço das refeições. A morte do estudante comoveu o país inteiro e todos os setores da sociedade civil se revoltaram contra o ato. O velório e o enterro do rapaz foram acontecimentos colossais em que uma multidão de pessoas participou protestando e bradando contra a violência dos militares.

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No dia 4 de junho foi realizada uma missa na igreja da Candelária, no centro do Rio, para milhares de pessoas. A cavalaria da polícia interveio e dezenas de pessoas ficaram feridas. Então foi organizada pelos colegas de Edson Luis uma passeata, nela estavam presentes mais de cem mil pessoas, que bradavam gritos de guerra contra o governo e à violência e tendo a frente uma faixa dizendo: “Abaixo a ditadura, o povo no poder”. Na linha de frente da passeata vinham artistas e intelectuais que davam apoio total a causa. Entre os músicos presentes estavam Chico Buarque de Hollanda, Edu Lobo, Caetano Veloso, Gilberto Gil, Milton Nascimento, Nana Caymmi, Nara Leão, Zé Rodrix, Jards Macalé e Vinicius de Moraes. Ainda estavam estrelas do teatro como Tônia Carrero, e . Escritores como Zuenir Ventura e . Ainda havia duas pessoas que algumas décadas à frente seriam eleitas para o posto máximo de poder no país: Tancredo Neves e Dilma Rousseff. Esse movimento ocasionou diversas insurreições contra a ditadura em vários lugares do país. Essas manifestações espalhadas pelo território nacional obrigaram o governo a aumentar a repressão. Começavam os “Anos de Chumbo” no Brasil. Em 13 de dezembro de 1968 a liberdade no Brasil sofreu o seu mais duro golpe com o decreto do Ato Institucional número 5. O AI-5 dava poderes absolutos ao presidente da república, que então era o Marechal Arthur da Costa e Silva. O presidente cassou direitos políticos, apertou a censura, proibiu qualquer tipo de manifestação política e fechou o congresso nacional. Grandes transformações musicais também ocorreram nesse curto período de tempo, por isso os anos 60, principalmente os últimos anos dessa década são importantíssimos para se

90 Caminhando e Cantando entender o cenário musical brasileiro e mundial de hoje em dia. Foi naquele período que surgiram conceitos que moldaram as gerações que ainda viriam. Nesses anos surgiram ou estavam no auge grupos musicais e cantores que hoje são considerados sinônimos de música. Aqui no nosso país, tendo o contexto da ditadura como pano de fundo, ocorreram grandes transformações na nossa música. O declínio da bossa nona em território brasileiro e o sucesso dela na América do Norte, foi um dos motivos que levaram a rotulada MPB (aquela nascida nos festivais) a ganhar espaço e cada vez mais adeptos e fãs, como já foi dito. Tropicalismo Junto com os festivais televisivos, músicos que fizeram sucesso nessa época também fizeram movimentos musicais paralelos às competições. O mais notório deles, e o que mais teve efeito popular, sem dúvida, foi o Tropicalismo de Gilberto Gil e Caetano Veloso. Embora já tenha aparecido vários expoentes da Tropicália anteriormente, somente em 1968, esse movimento ganhou um disco e uma cara definitiva, se é que possamos dar uma cara a “confusão” que criaram Caetano e Gil na música brasileira. Eles achavam que a música brasileira entrava numa onda de caretice tremenda, com suas músicas padronizadas pelos festivais e pelo imenso nacionalismo que tomou conta desse universo. Eles misturaram em suas músicas diversos ritmos, além de MPB e bossa nova, também o rock, com as guitarras elétricas, o pop, o folk, e ritmos latinos, criando sua própria identidade. Caetano durante o festival em que “Alegria Alegria” ficou em quarto lugar, disse o que era música pop para ele. “Não sei se o que a gente está fazendo é pop. Isso é uma coisa que eu admito como termo porque de alguma forma a gente está fadado

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Marco Antonio Gonçalves para um tipo de cultura pop, quer dizer de assumir todas as formas de cultura massificada. Por exemplo, revistas em quadrinhos, que é uma coisa pop. Utilizamos todos os elementos, das coisas que tem sucesso de massa, de comunicação direta com a massa.” Naquele momento no Brasil, havia uma dualidade na música. De um lado, a elite intelectual que prezava pelo conservadorismo e o nacionalismo da MPB e de outro lado a adesão dos jovens à música de Roberto Carlos e da Jovem Guarda e o rock internacional. Caetano e Gil viram uma oportunidade de criar uma terceira opção, adotando essas tendências e misturando com outras jamais testadas. “Alegria Alegria” e “Domingo no Parque” foram as bases do movimento tropicalista, que não teve apenas adeptos na música. Também repercutiu no cinema com , que fez “Terra em Transe” na época, nas artes com Hélio Oiticica e no teatro com José Celso Martinez Corrêa, diretor anárquico de “Roda-Viva”. O disco marco desse movimento só sai em 1968, quase um ano após o festival da Record. Os artistas entraram no estúdio e só saíram de lá com o disco finalizado. Caetano cuidou do repertório, que contou com composições inéditas dele, de Gil, de Tom Zé e de Torquato Neto, além de outras três canções antigas adaptadas à versão tropicalista. O disco manifesto teve a participação de diversos artistas. Os baianos Gil, Caetano, Tom Zé e . Além dos Mutantes e de Nara Leão, musa da bossa nova, musa da MPB e agora musa da Tropicália. Caetano disse à escritora argentina Violeta Weinschelbaun, no livro “Estação Brasil”, que naquela época o mundo passava por grandes mudanças e que no Brasil essas mudanças eram muito fortes. “O que eu fiz com os colegas próximos na segunda

92 Caminhando e Cantando metade dos anos sessenta estava carregado dessas forças de transformação e teve muita influência no futuro da Música Popular Brasileira. Tudo o que fazemos hoje, e os que vieram depois, devem algo a essa mudança.” Caetano vai mais longe. “Pode-se dizer que àqueles que trabalharam com o rock no Brasil depois de 1967, não teriam alcançado a amplitude que conseguiram se não fosse o Tropicalismo. Milton Nascimento não teria coragem e a naturalidade de mostrar sua admiração pelos Beatles, senão fosse o tropicalismo”, disse o compositor. Em “Verdade Tropical” ele diz que a música tropicalista se parecia muito mais com a de Roberto Carlos do que com a MPB de Elis Regina, maior defensora do que Caetano chama de “Frente Única da Música Popular Brasileira contra o Iê-iê-iê”. “Tínhamos e ainda temos, como limites, os discos de João arranjado por Jobim. Elis e Roberto apresentavam exemplos opostos de profissionalismo. E os resultados obtidos por ele nos interessava mais dos que os atingidos por ela”, escreveu Caetano. Nesse mesmo ano houve, a “Passeata em favor da música brasileira”, conhecida como “Passeata contra a guitarra elétrica”, pois esse era o real motivo da manifestação: o uso de elementos estrangeiros na música feita em nosso país, como a guitarra. A passeata foi liderada por Elis Regina e Ronaldo Bôscoli e teve na linha de frente Wilson Simonal, Jair Rodrigues, Geraldo Vandré e pasmem Gilberto Gil. Justo ele que era um dos que mais usava o instrumento. Caetano explica a participação de Gil naquele momento. “Era para Gil aproveitar a oportunidade para lançar as bases da grande virada que tramávamos”, escreveu ele. “Mas nunca apoiei essa ida dele a essa passeata”.

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O show de Caetano e Gil nesse período chocou muita gente. Era um espetáculo provocador, como nunca havia sido feito no Brasil. Em uma das performances, Caetano cantava “É proibido proibir” deitado, depois viriam vários sons de guitarras distorcidos feitos por Gil e um hippie americano urrava descontroladamente como um bicho em cima de Caetano que voltava a cantar a canção. Muitos saíam do local antes mesmo da metade da apresentação. Segundo Caetano, ao escrever em seu livro sobre o show, ele foi o espetáculo mais bem sucedido do tropicalismo. “Pelo menos era o que melhor expunha nosso interesse estático e nossa capacidade de realização”. Segundo Gil, os tropicalistas continuaram esse trabalho, mesmo depois daquele disco. “Nós tropicalistas sempre vamos ser de vanguarda, sempre vamos lançar novas coisas. Os tropicalistas sempre serão tropicalistas”, afirmou o cantor. Caetano resume a tropicália. “Foi a retomada de linha evolutiva da música popular brasileira”, escreveu.

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Milton Nascimento também surgiu nos festivais. Impressionou muita gente com seu timbre e com suas composições. “Bituca”, como é conhecido, nasceu no Rio de Janeiro, em 1942 (mesmo ano que outros grandes de nossa música: Caetano, , Tim Maia, Paulinho da Viola, Gilberto Gil e Jorge Ben). Queria o destino que ele se torne o maior nome da música de Minas Gerais, para onde foi ainda bebê com sua família adotiva, que se instalara em Três Pontas, cidade no sul do Estado.

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Em 1963, mudou-se para Belo Horizonte, onde conheceu jovens compositores como ele. Morava no mesmo prédio da família Borges, que tinha nada menos que 11 irmãos com raro talento musical. Entrou em um grupo com o irmão mais velho Marilton. Ficou encantado com o talento do caçula, Salomão, o Lô, e ficou o melhor amigo de Márcio. Em BH começou as ter aulas de harmonia com e formou com o duo “The Beavers”, depois de passar dias inteiros ouvindo os Beatles sem se cansar ou parar. Os garotos de Liverpool, que tanto influenciaram o Tropicalismo, mexeriam ainda mais com a turma de Minas Gerais. Em um bar de BH, Lô Borges mostrou a Milton alguns acordes soltos. Milton pegou seu violão e começou a compor uma música em cima desses acordes, ao mesmo tempo Márcio Borges escreveu a letra para a música. Nascia ali, a canção “Clube da Esquina”, que daria nome ao movimento liderado por Milton, que surgiu nas Gerais e se espalhou pelo mundo. Clube da esquina pode ser qualquer reunião de pessoas em uma esquina de qualquer cidade do planeta, mas se esse cruzamento for o da Rua Divinópolis com a Rua Paraisópolis (nome de duas cidades mineiras) em Belo Horizonte no bairro de Santa Teresa, certamente deverá ser o grupo de músicos que fizeram dessa esquina um lugar utópico que entrou para a história de nossa música. Milton, pouco tempo depois de chegar à capital, conheceu o cantor Agostinho dos Santos, que, por sua vez, inscreveu três de suas músicas no FIC, sem o conhecimento do compositor: “Maria minha fé” “Morro Velho” e “Travessia”. Quando ficou sabendo, Milton já tinha as três músicas classificadas para as finais do festival. O disco com esse título “Clube da Esquina” só viria a ser lançado em 72, mas bem antes disto artistas mineiros estavam

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Marco Antonio Gonçalves espalhando os acordes desse movimento pelo Brasil e pelo mundo. Depois do disco “Travessia” de 1967, na esteira do sucesso no Festival Internacional, Milton chamou a atenção de uma gravadora estadunidense que o convidou para gravar um LP, que saiu em 1968 sob o nome de “Courage”. Ele foi o representante pós-bossa nova do Brasil no mundo. Juntaram-se a Milton nesse movimento, além de Lô e Márcio Borges, os músicos Fernando Brant, Beto Guedes, Ronaldo Bastos, o pianista três-pontano Wagner Tiso, Toninho Horta e Flávio Venturini, que viria a formar o 14-bis. Eles combinavam música pop, folclore mineiro, Beatles, pitadas jazzísticas e bossa-novistas, definitivamente algo estava acontecendo em Minas. Em “Estação Brasil”, Milton diz que não gostava que os chamassem “grupo mineiro”. Eu não gostava desse negócio de grupo e além do mais, não éramos todos mineiros, mas de qualquer maneira aquilo tudo acabou virando um movimento. Teve uma época que teve o Clube da Esquina e a Tropicália, mas falávamos mais ou menos as mesmas coisas, só que de maneiras diferentes.” Com os discos e as músicas desse pessoal, o “Clube da Esquina” saiu de Belo Horizonte e firmou seu nome junto aos grandes da música brasileira. Como já foi dito, uma das maiores influê influências para o Clube da Esquina e para a Tropicália e também para muitas coisas que aconteceram no histórico ano de 1968 foram os Beatles, principalmente depois do lançamento em 1967 do disco Sgt. Pepper’s Lonely Hearts Club Band, o mais psicodélico e considerado o melhor disco da Fab Four. Também em 1967, morria na Bolívia o médico e guerrilheiro argentino Ernesto “Che” Guevara. Um dos líderes da revolução cubana, ele foi executado por tropas do exército

96 Caminhando e Cantando boliviano na aldeia de La Higuera. A morte de Che inspirou a música de Gilberto Gil “Soy loco por tí América”. A utópica pretensão do homem de chegar à Lua se tornou realidade nos pés do astronauta americano Neil Armstrong. O mundo viu a Apollo 11 pousar na superfície lunar e seus três passageiros caminharem sobre o satélite da terra no dia 20 de julho de 1969. Para a música o último ano da década de 60 também foi bastante especial, como que para fechar esplendorosamente a década que revolucionou a música mundial, aconteceu na pequena cidade de Bethel, no Estado americano de Nova Iorque, o Festival de Woodstock, reunindo astros do rock internacional como Jimi Hendrix, Creedence Clearwater Revival, Janis Joplin e The Who. No Brasil, nascia O Pasquim, lançado por , Sergio Cabral e Tarso de Castro, o jornal que seria um dos maiores opositores da ditadura, de maneira irreverente e sempre provocadora, inclusive com entrevistas memoráveis de grande nomes de nossa música. Quando os anos 70 já batiam à porta, o governo militar dá seu mais duro golpe, até então, na música brasileira: Caetano Veloso e Gilberto Gil têm de sair do país e seguem em exílio rumo a Europa. Antes disso, os tropicalistas foram presos por que, entre outros motivos, cantaram a música “Boas Festas” (Já faz tempo que eu pedi, mas o meu papai Noel não vem. Com certeza já morreu, ou felicidade é brinquedo que não tem) com uma arma apontada para a cabeça nas vésperas do natal de 1968, dias depois do decreto do AI-5. Presos tiveram seus cabelões raspados. Foram soltos em março do ano seguinte, sendo mantidos em prisão domiciliar, sem poder falar publicamente. Em julho, embarcaram para a Inglaterra.

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Chico Buarque foi retirado à força de casa, no Rio, para prestar depoimento em dezembro de 68, ficou horas no Dops (Departamento de Ordem Política e Social) e não podia sair da cidade sem comunicar as Forças Armadas. No ano seguinte foi para Paris e de lá, seguiu, para Roma, também em exílio, mas espontâneo, pois não agüentava mais a pressão que sofria no Brasil.

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Capítulo 4 --- Afirmação e renovação

AMANHÃ VAI SER OUTRO DIA HOJE VOCÊ É QUEM MANDA FALOU, TÁ FALADO NÃO TEM DISCUSSÃO, NÃO A MINHA GENTE HOJE ANDA FALANDO DE LADO E OLHANDO PRO CHÃO VIU?

VOCÊ QUE INVENTOU ESSE ESTADO INVENTOU DE INVENTAR TODA ESCURIDÃO VOCÊ QUE INVENTOU O PECADO ESQUECEU-SE DE INVENTAR O PERDÃO

APESAR DE VOCÊ AMANHÃ HÁ DE SER OUTRO DIA EU PERGUNTO A VOCÊ ONDE VAI SE ESCONDER DA ENORME EUFORIA? COMO VAI PROIBIR QUANDO O GALO INSISTIR EM CANTAR? ÁGUA NOVA BROTANDO E A GENTE SE AMANDO SEM PARAR

QUANDO CHEGAR O MOMENTO ESSE MEU SOFRIMENTO VOU COBRAR COM JUROS. JURO! TODO ESSE AMOR REPRIMIDO

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ESSE GRITO CONTIDO ESSE SAMBA NO ESCURO

VOCÊ QUE INVENTOU A TRISTEZA ORA TENHA A FINEZA DE "DESINVENTAR" VOCÊ VAI PAGAR, E É DOBRADO CADA LÁGRIMA ROLADA NESSE MEU PENAR

APESAR DE VOCÊ AMANHÃ HÁ DE SER OUTRO DIA AINDA PAGO PRA VER O JARDIM FLORESCER QUAL VOCÊ NÃO QUERIA VOCÊ VAI SE AMARGAR VENDO O DIA RAIAR SEM LHE PEDIR LICENÇA E EU VOU MORRER DE RIR E ESSE DIA HÁ DE VIR ANTES DO QUE VOCÊ PENSA

APESAR DE VOCÊ APESAR DE VOCÊ AMANHÃ HÁ DE SER OUTRO DIA VOCÊ VAI TER QUE VER A MANHÃ RENASCER E ESBANJAR POESIA COMO VAI SE EXPLICAR VENDO O CÉU CLAREAR, DE REPENTE IMPUNEMENTE? COMO VAI ABAFAR

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NOSSO CORO A CANTAR NA SUA FRENTE

APESAR DE VOCÊ APESAR DE VOCÊ AMANHÃ HÁ DE SER OUTRO DIA VOCÊ VAI SE DAR MAL, ETC E TAL LA, LAIÁ, LA LAIÁ, LA LAIÁ

Chico Buarque estava em auto-exílio na Itália, onde chegou até a passar dificuldades financeiras, com a mulher, a atriz grávida. Voltou de lá em março de 1970, porque André Midani havia lhe dito que “as coisas estavam melhorando no Brasil”. Quando voltou percebeu que o amigo estava completamente equivocado. Nunca as coisas estiveram tão ruins no Brasil, principalmente para um artista com fama de rebelde, como era Chico. Todas as artes eram obrigadas a passar antes pelos agentes da censura. As redações de jornal não viviam sem a presença de censores, as manifestações eram cada vez mais reprimidas e havia denúncias de tortura a presos políticos. A liberdade no Brasil estava em seu pior momento nas mãos do general Emilio Garrastazu Médici, que assumira o poder em outubro de 1969. “Apesar de Você” é a música mais marcante dessa época chamada de “Anos de Chumbo”. A letra é clara e não deixa dúvidas para quem ela era dirigida, se a pessoa souber ler nas entrelinhas, o que não era o caso do censor federal que liberou a música, lançada em 1970 em um compacto, vendendo rapidamente mais de 100 mil cópias. Somente depois do sucesso enorme e da música tocar em todas as rádios que o governo percebeu que o “você” da música se referia ao presidente Médici. A polícia recolheu todos os

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Marco Antonio Gonçalves discos das lojas, proibiu sua execução pública e invadiu a fábrica e destruiu o estoque. A música foi caçada como um bicho. Mas da memória do povo, o governo não conseguiu tirar a canção. “Apesar de Você” é uma das únicas músicas que Chico admite ser de protesto contra a ditadura. Os anos 70 representaram para a música brasileira um período de afirmação dos nomes que se consagraram na década anterior, foi nessa década que alguns dos principais músicos do país compuseram obras que se tornaram obras primas do cancioneiro popular. Também nessa época surgiram artistas que também se destacaram em meio a tantos talentos que o Brasil já tinha na MPB e no rock. Em 1970, o Brasil buscava o tri campeonato mundial de futebol no México, depois do vexame em 66. O Brasil foi tomado por uma onda de ufanismo geral com as canções “Eu te amo, meu Brasil”, de Dom e Ravel e “Pra Frente Brasil”, de Miguel Gustavo, essas canções foram usadas pelo governo em inúmeras atrações cívicas e junto com o slogan, “Brasil: Ame-o ou Deixe-o”, eram os carros-chefes da propaganda governista. Depois da excelente campanha da Seleção, o sentimento ufanista tomou conta do país e era só o que se ouvia:

EU TE AMO MEU BRASIL, EU TE AMO MEU CORAÇÃO É VERDE, AMARELO, BRANCO, AZUL ANIL EU TE AMO MEU BRASIL, EU TE AMO NINGUÉM SEGURA A JUVENTUDE DO BRASIL

Chico Buarque disse em entrevista ao programa Ensaio da TV Cultura, em 1988, que “era espantoso ver que as mesmas pessoas que cantavam entusiasticamente Apesar de Você eram as mesmas que cantavam Eu te amo meu Brasil”, que foi sucesso com o grupo Os Incríveis.

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As coisas estavam feias para todos os artistas no Brasil. Os únicos a manter o imenso sucesso eram Roberto Carlos e Wilson Simonal, os dois cantores mais populares do Brasil na época. Roberto Carlos é considerado pelos entusiastas mais xiitas da MPB como um cantor alienado. É visto como a cara da ditadura. Obviamente, qualquer comentário que se faça nesse sentido será uma tremenda injustiça com o artista mais popular que o Brasil já conheceu. O “Rei” não tem culpa de a ditadura ter começado quando ele já fazia tremendo sucesso cantando música jovem. Ele não tem culpa de outros artistas partirem para outros rumos e ele querer ficar naquilo que gostava e que estava dando mais que certo. Tanto é assim, que é admirado, por expoentes da luta contra o governo militar, como Chico Buarque e Caetano Veloso, seus amigos pessoais. Ele e Erasmo mantiveram sua linha de composições coerentemente na época do governo militar e por não mudar sua linha fizeram por merecer em alguns momentos os títulos de cantores da ditadura, mas isso não quer dizer que ele apoiava o regime. O jornalista Pedro Alexandre Sanches afirma: “Roberto Carlos é grande (mesmo que seja de direita), também porque, do outro lado do espelho, a maioria absoluta dos brasileiros que o inventaram, fermentaram e fizeram vicejar ignora solenemente a luta maniqueísta do “bem” contra o “mal” que a MPB inventou para si. Esses preferem dar de ombros ao falatório estéril e seguir assoviando pela taba “Detalhes”, “Cavalgada”, “Eu Sou Terrível”, “Emoções”, “Quero Que Vá Tudo pro Inferno”. O Rei foi em 1970 a Londres, onde visitou os amigos exilados Gilberto Gil e Caetano Veloso. Escreveu então uma música para Caetano, que depois retribuiu com “Força Estranha”. É a única música de Roberto que tem alguma ligação direta contra a ditadura.

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UM DIA A AREIA BRANCA TEUS PÉS IRÃO TOCAR E VAI MOLHAR SEUS CABELOS A ÁGUA AZUL DO MAR

JANELAS E PORTAS VÃO SE ABRIR PRA VER VOCÊ CHEGAR E AO SE SENTIR EM CASA SORRINDO VAI CHORAR

DEBAIXO DOS CARACÓIS DOS SEUS CABELOS UMA HISTÓRIA PRA CONTAR DE UM MUNDO TÃO DISTANTE DEBAIXO DOS CARACÓIS DOS SEUS CABELOS UM SOLUÇO E A VONTADE DE FICAR MAIS UM INSTANTE

AS LUZES E O COLORIDO QUE VOCÊ VÊ AGORA NAS RUAS POR ONDE ANDA NA CASA ONDE MORA VOCÊ OLHA TUDO E NADA LHE FAZ FICAR CONTENTE VOCÊ SÓ DESEJA AGORA VOLTAR PRA SUA GENTE

DEBAIXO DOS CARACÓIS DOS SEUS CABELOS UMA HISTÓRIA PRA CONTAR DE UM MUNDO TÃO DISTANTE DEBAIXO DOS CARACÓIS DOS SEUS CABELOS UM SOLUÇO E A VONTADE

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DE FICAR MAIS UM INSTANTE

VOCÊ ANDA PELA TARDE E O SEU OLHAR TRISTONHO DEIXA SANGRAR NO PEITO UMA SAUDADE, UM SONHO UM DIA VOU VER VOCÊ CHEGANDO NUM SORRISO PISANDO A AREIA BRANCA QUE É SEU PARAÍSO

Roberto Carlos disse certa vez: "Eu sou o que sou e acho que tenho o direito de ser assim. Existem aqueles que se propõem a ser líderes, a fazer uma série de coisas, a tomar um monte de atitudes; eu resolvi exatamente tomar um outro tipo de atitude e que talvez conduza a resultados que esses críticos não conseguiram apreender em meu trabalho." O escritor Paulo César de Araújo, biógrafo proibido do cantor afirma: “Roberto Carlos surgiu em um tempo de guerra e em que todos tinham de tomar posições claras sobre todos os assuntos: da política à arte, da cibernética à chegada do homem na Lua, de Roberto Campos a Marshall. Os cantores de formação universitária como Caetano Veloso, Gilberto Gil e Chico Buarque tiravam isso de letra. Já os cantores suburbanos, de pouca escolaridade e sem hábito de leitura, como Roberto, o que iam dizer sobre esses temas?” Caetano escreve em seu livro: “Nós sentíamos nele a presença simbólica do Brasil. Como um rei de fato, ele claramente falava e agia em nome do Brasil com mais autoridade e propriedade do que os milicos que nos tinham expulsado, do que a embaixada brasileira em Londres que me considerava persona non grata, e muito mais do que os

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Marco Antonio Gonçalves intelectuais, artistas e jornalistas de esquerda que a princípio não nos entenderam e, agora, queriam nos mitificar: Roberto era o Brasil profundo.” Wilson Simonal, o outro cantor que lotava estádios pra ver suas apresentações, teve um destino totalmente diferente do de Roberto Carlos. Simonal estourara no final da década de 1960, vendeu milhões de cópias e rivalizava com Roberto no posto de artista mais popular do país. Tinha um estilo malandro e se dizia do estilo “pilantragem”, com o sucesso, veio o dinheiro e os problemas. Cercou-se de pessoas que não eram dignas de confiança e também esnobava o seu sucesso com carrões e mulheres. Nelson Motta escreveu em Noites Tropicais: “Quanto mais sucesso fazia, mais arrogante se tornava, mais vaidoso, mais autosuficiente, e mais gente tinha a sua volta. No palco era divertidíssimo, mas na vida real cada vez mais gente o detestava pelas costas”. Quando voltou ao Brasil de uma viagem, percebeu que havia uma discrepância muito grande nas contas de sua empresa, que administrava todos os seus bens. Demitiu seu contador e chamou dois amigos militares para arrancar a confissão do contador e saber onde havia ido parar o dinheiro. O contador de Simonal foi espancado nas dependências do Dops e confessou o desfalque. Ele prestou queixa contra o cantor por espancamento. O caso veio a público. Um dos oficiais do exército testemunhou a favor do cantou dizendo que estecolaborava com o Dops. Ser acusado de dedo-duro nessa época era a pior coisa que podia acontecer a algum artista. Simonal foi condenado a cinco anos de prisão, que cumpriu em liberdade, mas já era tarde. Estava acabado. Não tinha amigos, dinheiro e agora a fama era de ser delator, em uma época que muitos eram torturados e não entregavam seus companheiros e amigos.

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Nelson Motta diz: “Se era (delator) ou não, nunca se soube ao certo. Mas por todos os motivos, não fazia o menor sentido ser. Simonal era uma estrela, uma figura pública, não tinha exatamente o perfil de alguém que fosse espionar seus colegas”. O compositor , no entanto, afirma, em entrevista ao Caderno 2 do Estadão, que Simonal era, de fato, "dedo duro" do regime militar e complementa: "Essa recuperação que estão fazendo do Simonal é falsa. Ele era dedo- duro mesmo. Ele se gabava de ser dedoduro da ditadura' (...) na frente de muitos amigos ele dizia 'eu entreguei muita gente boa'”. Nunca ficou nada provado e Simonal sempre tentou provar quer era inocente das acusações de delação. Ficou relegado ao esquecimento, morreu em 2000, alcoólatra, pobre e se dizendo inocente. Na década de 1970, também surgiram novos nomes na MPB, vindos de várias partes do país.Provenientes do MAU (Movimento Artístico Universitário) vieram , Luiz Gonzaga Júnior e Aldir Blanc. Gonzaguinha, filho adotivo do rei do baião, começou a carreira nos festivais, já em declínio no início da década. Suas letras eram extremamente críticas ao governo e à situação social no Brasil. Certa vez, entregou 70, músicas à censura, 54 foram vetadas. Seu primeiro sucesso, “Comportamento Geral”, de 1973, era uma dura crítica a situação que o povo brasileiro vivia nos anos do governo Médici.

VOCÊ DEVE NOTAR QUE NÃO TEM MAIS TUTU E DIZER QUE NÃO ESTÁ PREOCUPADO VOCÊ DEVE LUTAR PELA XEPA DA FEIRA E DIZER QUE ESTÁ RECOMPENSADO VOCÊ DEVE ESTAMPAR SEMPRE UM AR DE ALEGRIA E DIZER: TUDO TEM MELHORADO

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VOCÊ DEVE REZAR PELO BEM DO PATRÃO E ESQUECER QUE ESTÁ DESEMPREGADO VOCÊ MERECE, VOCÊ MERECE TUDO VAI BEM, TUDO LEGAL CERVEJA, SAMBA, E AMANHÃ, SEU ZÉ SE ACABAREM COM O TEU CARNAVAL? VOCÊ MERECE, VOCÊ MERECE TUDO VAI BEM, TUDO LEGAL CERVEJA, SAMBA, E AMANHÃ, SEU ZÉ SE ACABAREM COM O TEU CARNAVAL? VOCÊ DEVE APRENDER A BAIXAR A CABEÇA E DIZER SEMPRE: "MUITO OBRIGADO" SÃO PALAVRAS QUE AINDA TE DEIXAM DIZER POR SER HOMEM BEM DISCIPLINADO DEVE POIS SÓ FAZER PELO BEM DA NAÇÃO TUDO AQUILO QUE FOR ORDENADO PRA GANHAR UM FUSCÃO NO JUÍZO FINAL E DIPLOMA DE BEM COMPORTADO VOCÊ MERECE, VOCÊ MERECE TUDO VAI BEM, TUDO LEGAL CERVEJA, SAMBA, E AMANHÃ, SEU ZÉ SE ACABAREM COM O TEU CARNAVAL? VOCÊ MERECE, VOCÊ MERECE TUDO VAI BEM, TUDO LEGAL CERVEJA, SAMBA, E AMANHÃ, SEU ZÉ SE ACABAREM COM O TEU CARNAVAL? VOCÊ MERECE, VOCÊ MERECE TUDO VAI BEM, TUDO LEGAL E UM FUSCÃO NO JUÍZO FINAL VOCÊ MERECE, VOCÊ MERECE E DIPLOMA DE BEM COMPORTADO VOCÊ MERECE, VOCÊ MERECE

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ESQUEÇA QUE ESTÁ DESEMPREGADO VOCÊ MERECE, VOCÊ MERECE TUDO VAI BEM, TUDO LEGAL

Uma das mais contundentes músicas dos anos 70, compostas por um dos principais compositores da década, “Comportamento Geral”, foi censurada. Mostrava a verdadeira situação em que vivia o povo. Contava a história de um homem sem dinheiro, quase sem comida, sem emprego, sem dignidade, que tinha que sempre demonstrar estar contente com a situação em que se encontrava. Só lhe restava, o carnaval. E se lhe tirassem isso também?, Indagava Gonzaguinha. Médici deixou escapar em uma entrevista: “O Brasil vai bem, mas o povo vai mal”. A música, totalmente engajada com a situação social do Brasil mostra exatamente o que quer dizer a frase do presidente. Mesmo que as coisas estivessem indo mal, não se podia falar, não se podia criticar, não se podia, ao menos, saber disso, pois as notícias eram também censuradas. Julinho da Adelaide Chico Buarque chegou quase à unanimidade com “Construção” em 1971, foi censurado em “Calabar – O Elogio da Traição”, de 1972, peça escrita em parceria com Ruy Guerra, que tinha clara intenção de relacionar o personagem título ao Capitão Carlos Lamarca, que deixou o exército para entrar na guerrilha e lutar contra os militares. A imprensa foi proibida de citar o nome da peça e o disco “Chico canta Calabar” foi trocado somente para “Chico canta”. Também foi vetado em “Cálice”, parceria com Gil. A música havia sido feita para o “Phono 73”, que reuniria a fina flor da MPB. No dia do show, souberam que não poderiam cantá-la. Mesmo assim mantiveram a música e iriam dizer versos desconexos com a música ao fundo.

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Quando os dois autores começaram a cantar, o microfone de Chico foi desligado. Diziam que o trecho “de tão gorda a porca já não anda” se referia a Delfim Neto, então ministro da Fazenda, do governo Médici. Todas as músicas que Chico mandava para a censura eram censuradas ou cortadas. Entretanto, o compositor arrumou uma maneira simples de fazer com que suas músicas fossem aprovadas pelos censores. Mandava as músicas com outros nomes. Nascia ali o genial Julinho da Adelaide. Ele apareceu no disco “Sinal Fechado”, que Chico atuava como intérprete e não parecia como autor de nenhuma canção. O Grande sucesso do disco foi “Acorda Amor”, justamente de Julinho da Adelaide.

ACORDA AMOR EU TIVE UM PESADELO AGORA SONHEI QUE TINHA GENTE LÁ FORA BATENDO NO PORTÃO, QUE AFLIÇÃO ERA A DURA, NUMA MUITO ESCURA VIATURA MINHA NOSSA SANTA CRIATURA CHAME, CHAME, CHAME LÁ CHAME, CHAME O LADRÃO, CHAME O LADRÃO ACORDA AMOR NÃO É MAIS PESADELO NADA TEM GENTE JÁ NO VÃO DE ESCADA FAZENDO CONFUSÃO, QUE AFLIÇÃO SÃO OS HOMENS E EU AQUI PARADO DE PIJAMA EU NÃO GOSTO DE PASSAR VEXAME CHAME, CHAME, CHAME CHAME O LADRÃO, CHAME O LADRÃO SE EU DEMORAR UNS MESES

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CONVÉM, ÀS VEZES, VOCÊ SOFRER MAS DEPOIS DE UM ANO EU NÃO VINDO PONHA A ROUPA DE DOMINGO E PODE ME ESQUECER ACORDA AMOR QUE O BICHO É BRABO E NÃO SOSSEGA SE VOCÊ CORRE O BICHO PEGA SE FICA NÃO SEI NÃO ATENÇÃO NÃO DEMORA DIA DESSES CHEGA A SUA HORA NÃO DISCUTA À TOA NÃO RECLAME CLAME, CHAME LÁ, CHAME, CHAME CHAME O LADRÃO, CHAME O LADRÃO, CHAME O LADRÃO (NÃO ESQUEÇA A ESCOVA, O SABONETE E O VIOLÃO)

Se essa canção chegasse ao censor com o nome de seu autor real, certamente seria expressamente proibida e Chico ainda tomaria uma dura do governo, mas como Julinho da Adelaide era desconhecido e não tinha antecedentes rebeldes, ela foi liberada e se tornou sucesso. A música retrata o que Chico passou quando foi retirado à força de casa para depor, sem a certeza de que iria voltar. Ainda troca de posição, ladrão e polícia. Afinal, quem era o bandido e quem era o mocinho? Julinho ainda iria aprontar mais. Deu entrevista ao Pasquim contando que sua inspiração era sua mãe, Adelaide. Elogiou a censura e disse sentir ciúmes de Chico Buarque. Na canção “Jorge Maravilha”, ele dizia, “Você não gosta de mim, mas sua filha gosta”. É claro, que todos imaginaram de quem se tratava. A filha do presidente Ernesto Geisel, que assumira o poder em 1974, Amália Lucy, disse em entrevista que gostava de Chico. Você não gosta de mim,

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MAS SUA FILHA GOSTA VOCÊ NÃO GOSTA DE MIM, MAS SUA FILHA GOSTA (...) E COMO JÁ DIZIA JORGE MARAVILHA CHEIO DE RAZÃO MAIS VALE UMA FILHA NA MÃO DO QUE DOIS PAIS VOANDO

Chico sempre refutou essa teoria. Dizia que a música não fora feito para a filha de Geisel. "Aconteceu de eu ser detido por agentes de segurança (do Dops), e no elevador o cara pedir autógrafo para a filha dele. Claro que não era o delegado, mas aquele contínuo de delegado", disse ele em entrevista a Folha de São Paulo. Em 2007, em entrevista a Revista Almanaque Chico afirmou: “Nunca fiz música pensando na filha do Geisel, mas essas histórias colam, há invencionices que nem adianta mais negar. Durante a ditadura, de um lado ou de outro, as pessoas gostavam de atribuir aos artistas intenções que nunca lhe passaram pela cabeça. Achavam que a maioria dos artistas só fazia música pensando em derrubar o governo. Depois da ditadura, falam que o artista só faz música para pegar mulher. Mas aí geralmente acontece o contrário, o artista inventa uma mulher para pegar a música.” Julinho também escreveu “Milagre Brasileiro”, inspirado pelo crescimento econômico tão alardeado pelo governo, mas que fazia o pobre ficar cada vez mais pobre.

CADÊ O MEU? CADÊ O MEU, Ó MEU? DIZEM QUE VOCÊ SE DEFENDEU

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É O MILAGRE BRASILEIRO QUANTO MAIS TRABALHO MENOS VEJO DINHEIRO É O VERDADEIRO BOOM TU TÁ NO BEM BOM MAS EU VIVO SEM NENHUM CADÊ O MEU? CADÊ O MEU, Ó MEU? EU NÃO FALO POR DESPEITO MAS, TAMBÉM, SE EU FOSSE EU QUEBRAVA O TEU COBRAVA O MEU DIREITO

Mesmo sendo assinada por Julinho, a música desta vez não passou pelos censores e só chegou aos discos em 1980. Logo descobriram que Julinho da Adelaide era Chico, e acabou aí a carreira do jovem talento. O governo passou a exigir cópia do CPF e RG dos compositores que apresentassem uma música aos censores.

--- O Rock Setentista

Com Roberto Carlos investindo mais na música romântica e com a expulsão de Rita Lee dos Mutantes, o rock brasileiro parecia condenado ao esquecimento. Entretanto, em São Paulo, surgia uma banda que iria transformar esse cenário, Os Secos & Molhados, que tinha nos vocais, e mais João Ricardo e Gérson Conrad. Eles tocavam um rock progressivo e apostavam em performances e caras pintadas no palco. Era um assombro para a época. “Era uma loucura o que Ney

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Matogrosso fazia. Naquela época, com a ditadura ainda em vigor, o cara aparecia de sunga, rebolando. Ele virava a cabeça das pessoas mesmo. Porque não tinha vergonha. Era rock’n roll Brasilês, uma coisa bem brasileira”, disse Rita Lee, no livro “Que rock é esse?”. O grupo lançou apenas dois discos com a formação clássica, o primeiro, em que a capa estampava a cabeça dos integrantes sendo servida em uma bandeja, é considerado pela crítica como um dos melhores discos de rock brasileiro. O cantor e compositor Lobão, afirma que para ele esse é um disco de referência. “Pra mim e pra minha música, o disco deles foi fundamental, como o do Clube da Esquina”. Em 74, o grupo lança seu segundo disco, também aclamadíssimo pela crítica e pelo público. Porém, a banda se dissolveu uma semana depois do lançamento. Seus integrantes seguiram carreira solo, mas Conrad continuou com o nome “Secos & Molhados” tocando e lançando discos, mas sem sucesso. Ney Matogrosso se tornou a partir dali uma das vozes mais conhecidas e admiradas do país, e teria importante peso para o sucesso do Barão Vermelho, na década seguinte. Também nessa época surgiu um baiano que se tornaria um mito da música e do rock. sacudiu o Brasil e começou a colecionar devotos com “Krig-há, Bandolo”, disco de 1973, que tinha clássicos como “Mosca na sopa”, “Metamorfose Ambulante” e “Ouro de Tolo”. Nelson Motta diz que “Ouro de Tolo” era uma música intensamente política. “Era um deboche sobre a ideia de um Brasil grande, sonhos da classe média no governo Médici. Raul esculhambou com tudo. A música era um folk sem-vergonha, meio Bob Dylan, meio baladinha de Roberto Carlos, com letra corrosiva”.

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EU DEVIA ESTAR CONTENTE PORQUE EU TENHO UM EMPREGO SOU UM DITO CIDADÃO RESPEITÁVEL E GANHO QUATRO MIL CRUZEIROS POR MÊS... EU DEVIA AGRADECER AO SENHOR POR TER TIDO SUCESSO NA VIDA COMO ARTISTA EU DEVIA ESTAR FELIZ PORQUE CONSEGUI COMPRAR UM CORCEL 73...

Raul começou a carreira na década de 1960, sem muito sucesso. Quando conheceu Paulo Coelho, sua carreira se transformou. Com ele, compôs seus maiores sucesso. A combinação era perfeita, com letra de Paulo e Música de Raul, o sucesso era certeiro. Dois doidões, malucos beleza, que juntos compuseram músicas que são hoje clássicas e certamente ainda embalam muita gente. Criaram uma tal “Sociedade Alternativa”, que pregavam com a canção de mesmo nome e que tinha como lema: “Fazes o que tu queres, há de ser tudo da lei”. Tiveram que se explicar aos censores. Os agentes do Dops prenderam Raul e Paulo, pensando que a Sociedade Alternativa fosse um movimento armado contra o governo. Depois de torturados, Raul (“Tomei até choque no saco”, disse ele) e Paulo foram exilados para os Estados Unidos. Lá veio uma de suas histórias mais interessantes. Dissera que tinha se encontrado com John Lennon no Edifício Dakota. Conversaram muito, tocaram violão. “Quando me encontrei com Lennon nos EUA, conversamos muito sobre figuras históricas do mundo. Num momento da

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Marco Antonio Gonçalves conversa, ele me perguntou: ‘E no Brasil? Quem é o tal?’ Fiquei nervoso e falei a primeira coisa que me veio na cabeça: ‘um tal de Café Filho’”, disse Raul posteriormente. Obviamente, ninguém nunca soube se esse encontro realmente aconteceu ou se era coisa da cabeça maluca, mas genial de Raul Seixas. Raul continuou fazendo sucesso até sua morte, em 1989, vítima do alcoolismo, que o acompanhou durante toda a sua carreira. Paulo Coelho se tornou o escritor brasileiro mais lido e mais vendido em todo o mundo e hoje é um imortal da Academia Brasileira de Letras. Os Novos Baianos, um grupo de hippies que cantavam rock com pitadas de elementos nordestinos e moravam juntos em um apartamento em Copacabana no Rio já faziam sucesso no início da década. O grupo era formado por Moraes Moreira, Pepeu Gomes, Baby Consuelo, Paulinho Boca de Cantor, Dadi e Luís Galvão. Com “Acabou Chorare”, álbum de 1973, eles alcançaram o sucesso, com as músicas “Preta Pretinha” e “Brasil Pandeiro”, Em 2008, a Revista Rolling Stone elegeu o disco como o melhor álbum da história da música brasileira. Encerraram a carreira em 79, mas ainda tiveram vários retornos aos palcos e aos discos nos anos seguintes. Depois da saída conturbada dos Mutantes, Rita Lee lançou uma nova banda, “Tutti Frutti”. Junto com a banda, conseguiu sucesso de público ainda maior do que com Os Mutantes, lançando clássicos como “Ovelha Negra” e “Agora só falta você”. O Clube da Esquina influenciou os grupos de rock de maior sucesso no fim da década de 1970. O disco, como já foi dito, lançado em 72, também inspirou o chamado Rock rural, que Sá, Rodrix e Guarabira iniciaram. Destacam-se nesse período, as bandas “O Terço”, de Flávio Venturini e Sagrado Coração da Terra.

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O rock progressivo, principalmente inglês, deu sua contribuição para a música brasileira. No Rio surgia no final da década de 1970, o Vínama, banda que teve apenas um disco, pouco sucesso, mas que lançou três importantes cantores e compositores: Lulu Santos, Lobão e Ritchie. Enquanto em Brasília, o Aborto Elétrico, de Renato Russo faz seus primeiros shows e grava suas primeiras músicas. Esse era um prenúncio do rock que viria nos anos 80, época em que esse gênero floresceu expressivamente e se tornou o símbolo da década. Em meados da década, a música regional tomou conta do país. Cantores vieram de várias partes do Brasil, principalmente do Nordeste, e firmaram seus nomes na história da música. Da Bahia, veio Simone; Pernambuco revelou Alceu Valença, Geraldo Azevedo, Nana Vasconcelos e o Quinteto Violado; A Paraíba trouxe para o cenário nacional , Zé Ramalho. Os artistas cearenses também tiveram destaque nos anos 70, como é o caso de Ednardo, Belchior, gravado por diversos artistas e autor de clássicos como “Apenas um rapaz latino americano”, e “Como nossos pais”, um dos maiores sucessos na voz de Elis Regina. Da cidade de Orós, veio Fagner, descoberto por Nara Leão, assim como Maria Bethânia. Fagner foi um dos cantores de MPB mais executados e mais respeitados da década e continuou assim nos anos seguintes. Ele é autor de várias canções clássicas como “Mucuripe”, em parceria com Belchior, “Borbulhas de Amor”, parceria com o poeta , e “De volta ao Cariri”. Um dos cantores de maior sucesso revelado nos anos 70 é o alagoano Djavan. Ele lançou o primeiro LP em 76, com sucesso de crítica e de público. Ao longo dos anos, ele colecionou hits e

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Marco Antonio Gonçalves foi um dos artistas que mais emplacou sucessos. Fez parcerias com a fina flor da MPB e também com artistas do rock. Porém, foi Tim Maia, o antigo amigo de Roberto, Erasmo e Jorge Bem, o maior hitmaker da década emplacando um disco de sucesso atrás do outro. Em 1975, Tim Maia lançou o primeiro disco da série “Tim Maia-Racional”. O disco foi um retumbante fracasso de vendas, deixando o artista em más condições financeiras, mas pela crítica é considerado o melhor disco do artista e um dos melhores da música brasileira. Já perto do fim da década, estoura nos Estados Unidos a Disco Music, com Donna Summer fazendo o papel de rainha. O ritmo também foi embalado pelo sucesso do longa “Embalos de Sábado à Noite”, com John Travolta e Olívia Newton-John. No Brasil, essa onda chegou fortíssima. As discotecas lotavam e as cores tomavam conta do cenário. A música de Tim Maia se encaixou perfeitamente nesse ritmo e ele emplacou mais sucessos, como “Sossego”. Ainda no embalo de Travolta e Newton-John, Nelson Motta abriu a danceteria Dancin’Days, Ainda se destacaram nesta década, Fafá de Belém, do Norte e Kleiton e Kledir, dupla de pop rock e MPB gaúcho. Em 1976, a política nacional perde dois ex-presidentes de maneiras jamais esclarecidas, Juscelino Kubtschek, morto em um acidente de carro na Via Dutra, em Resende e João Goulart, morto oficialmente por um ataque cardíaco. Posteriormente a família, amigos e outras pessoas suspeitaram que ele houvesse sido morto pela Chamada Operação Condor,que teria matado também JK e políticos argentinos, além de colaborar com a instalação da ditadura militar de Pinochet no Chile, com a deposição e morte do presidente Salvador Allende, tudo isso em menos de seis meses de diferença.

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No mesmo ano, Chico Buarque lança o disco “Meus Caros Amigos”. Neste ano, manteve-se afastado do público, dedicou- se à família e à filha recém-nascida Luísa. Ele não ficava à vontade em apresentações em público e também não queria ficar conhecido como símbolo da luta contra a ditadura. Paradoxalmente, com o disco ele se tornou ainda mais popular e a música título fez um sucesso tremendo. Era um recado ao teatrólogo Augusto Boal, composta em parceria com Francis Hime, seu mais novo parceiro.

MEU CARO AMIGO ME PERDOE, POR FAVOR SE EU NÃO LHE FAÇO UMA VISITA MAS COMO AGORA APARECEU UM PORTADOR MANDO NOTÍCIAS NESSA FITA

AQUI NA TERRA TÃO JOGANDO FUTEBOL TEM MUITO SAMBA, MUITO CHORO E ROCK'N'ROLL UNS DIAS CHOVE, NOUTROS DIAS BATE SOL MAS O QUE EU QUERO É LHE DIZER QUE A COISA AQUI TÁ PRETA

MUITA MUTRETA PRA LEVAR A SITUAÇÃO QUE A GENTE VAI LEVANDO DE TEIMOSO E DE PIRRAÇA E A GENTE VAI TOMANDO E TAMBÉM SEM A CACHAÇA NINGUÉM SEGURA ESSE ROJÃO

MEU CARO AMIGO EU NÃO PRETENDO PROVOCAR NEM ATIÇAR SUAS SAUDADES MAS ACONTECE QUE NÃO POSSO ME FURTAR A LHE CONTAR AS NOVIDADES

AQUI NA TERRA TÃO JOGANDO FUTEBOL TEM MUITO SAMBA, MUITO CHORO E ROCK'N'ROLL

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UNS DIAS CHOVE, NOUTROS DIAS BATE SOL MAS O QUE EU QUERO É LHE DIZER QUE A COISA AQUI TÁ PRETA

É PIRUETA PRA CAVAR O GANHA-PÃO QUE A GENTE VAI CAVANDO SÓ DE BIRRA, SÓ DE SARRO E A GENTE VAI FUMANDO QUE, TAMBÉM, SEM UM CIGARRO NINGUÉM SEGURA ESSE ROJÃO

MEU CARO AMIGO EU QUIS ATÉ TELEFONAR MAS A TARIFA NÃO TEM GRAÇA EU ANDO AFLITO PRA FAZER VOCÊ FICAR A PAR DE TUDO QUE SE PASSA

MUITA CARETA PRA ENGOLIR A TRANSAÇÃO E A GENTE TÁ ENGOLINDO CADA SAPO NO CAMINHO E A GENTE VAI SE AMANDO QUE, TAMBÉM, SEM UM CARINHO NINGUÉM SEGURA ESSE ROJÃO MEU CARO AMIGO EU BEM QUERIA LHE ESCREVER MAS O CORREIO ANDOU ARISCO SE ME PERMITEM, VOU TENTAR LHE REMETER NOTÍCIAS FRESCAS NESSE DISCO

A MARIETA MANDA UM BEIJO PARA OS SEUS UM BEIJO NA FAMÍLIA, NA CECÍLIA E NAS CRIANÇAS O FRANCIS APROVEITA PRA TAMBÉM MANDAR LEMBRANÇAS A TODO O PESSOAL ADEUS

O amigo de Chico era Augusto Boal, famoso teatrólogo, exilado em Portugal. Ele sempre reclamava que os amigos não lhe mandavam notícias. Chico pediu a Hime que fizesse um chorinho para que ele fizesse a letra. Mandou a Portugal uma

120 Caminhando e Cantando fita com a música-carta. Na letra ele explica como as coisas estavam no Brasil: “a coisa aqui ta preta”. Essa era uma época um momento de transição entre os “Anos de Chumbo” no governo Médici, para um momento mais estável, do governo Geisel. O ar estava mais respirável, mas o disco ainda assim sofreu cortes da censura. Apesar da faixa-título ser um grande sucesso, a música mais emblemática é a faixa composta em parceria com Milton Nascimento e uma das mais famosas de ambos: “O que será (à flor da terra)

O QUE SERÁ QUE SERÁ QUE ANDAM SUSPIRANDO PELAS ALCOVAS? QUE ANDAM SUSSURRANDO EM VERSOS E TROVAS? QUE ANDAM COMBINANDO NO BREU DAS TOCAS? QUE ANDA NAS CABEÇAS? ANDA NAS BOCAS? QUE ANDAM ACENDENDO VELAS NOS BECOS? ESTÃO FALANDO ALTO PELOS BOTECOS E GRITAM NOS MERCADOS QUE COM CERTEZA ESTÁ NA NATUREZA SERÁ, QUE SERÁ? O QUE NÃO TEM CERTEZA NEM NUNCA TERÁ! O QUE NÃO TEM CONCERTO NEM NUNCA TERÁ!

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O QUE NÃO TEM TAMANHO... O QUE SERÁ? QUE SERÁ? QUE VIVE NAS IDÉIAS DESSES AMANTES QUE CANTAM OS POETAS MAIS DELIRANTES QUE JURAM OS PROFETAS EMBRIAGADOS ESTÁ NA ROMARIA DOS MUTILADOS ESTÁ NAS FANTASIAS DOS INFELIZES ESTÁ NO DIA A DIA DAS MERETRIZES NO PLANO DOS BANDIDOS DOS DESVALIDOS EM TODOS OS SENTIDOS SERÁ, QUE SERÁ? O QUE NÃO TEM DECÊNCIA NEM NUNCA TERÁ! O QUE NÃO TEM CENSURA NEM NUNCA TERÁ! O QUE NÃO FAZ SENTIDO... O QUE SERÁ? QUE SERÁ? QUE TODOS OS AVISOS NÃO VÃO EVITAR PORQUE TODOS OS RISOS VÃO DESAFIAR PORQUE TODOS OS SINOS IRÃO REPICAR PORQUE TODOS OS HINOS IRÃO CONSAGRAR

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E TODOS OS MENINOS VÃO DESEMBESTAR E TODOS OS DESTINOS IRÃO SE ENCONTRAR E MESMO PADRE ETERNO QUE NUNCA FOI LÁ OLHANDO AQUELE INFERNO VAI ABENÇOAR! O QUE NÃO TEM GOVERNO NEM NUNCA TERÁ! O QUE NÃO TEM VERGONHA NEM NUNCA TERÁ! O QUE NÃO TEM JUÍZO...

A música se transformou em senha para que as pessoas pudessem voltar a lutar pela volta das liberdades democráticas. “O que será” mostrou o descontentamento e o desejo de mudanças que começava a tomar conta dos brasileiros. A distenção, prometida por Geisel, seria “lenta, gradual e segura”. Em agosto de 1979, veio a tão esperada lei da anistia (o AI-5 já havia sido abolido em janeiro do mesmo ano) promulgada pelo governo João Baptista Figueiredo, que assumiu o poder no mesmo ano. Com ela vários exilados puderam voltar ao Brasil e assim retomar suas carreiras. Antes da promulgação dessa lei, o compositor mineiro João Bosco escreveu uma das mais bonitas letras e música sobre a ditadura militar, que ganhou o mundo na interpretação de Elis Regina e se tornou seu maior sucesso.

CAÍA A TARDE FEITO UM VIADUTO E UM BÊBADO TRAJANDO LUTO ME LEMBROU CARLITOS...

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A LUA TAL QUAL A DONA DO BORDEL PEDIA A CADA ESTRELA FRIA UM BRILHO DE ALUGUEL E NUVENS! LÁ NO MATA-BORRÃO DO CÉU CHUPAVAM MANCHAS TORTURADAS QUE SUFOCO! LOUCO! O BÊBADO COM CHAPÉU-COCO FAZIA IRREVERÊNCIAS MIL PRÁ NOITE DO BRASIL. MEU BRASIL!... QUE SONHA COM A VOLTA DO IRMÃO DO . COM TANTA GENTE QUE PARTIU NUM RABO DE FOGUETE CHORA! A NOSSA PÁTRIA MÃE GENTIL CHORAM MARIAS E CLARISSES NO SOLO DO BRASIL... MAS SEI, QUE UMA DOR ASSIM PUNGENTE NÃO HÁ DE SER INUTILMENTE A ESPERANÇA... DANÇA NA CORDA BAMBA DE SOMBRINHA E EM CADA PASSO DESSA LINHA PODE SE MACHUCAR...

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AZAR! A ESPERANÇA EQUILIBRISTA SABE QUE O SHOW DE TODO ARTISTA TEM QUE CONTINUAR...

O Henfil de que fala a letra era o cartunista, jornalista e escritor Henrique Filho, e seu irmão era Herbert de Souza, sociólogo e ativista dos direitos humanos. Herbert foi um dos exilados, como tantos outros que partiram. Tanto ele e o irmão eram hemofílicos e morreram em decorrência da Aids, na década de 1999, depois de pegarem a doença em uma transfusão de sangue. Já Clarice era esposa do jornalista Vladimir Herzog, que fazia parte do movimento de resistência contra o regime e que morreu nas dependências do DOI-CODI, por um suposto suicídio, coisa que todos sabem não é verdade. Maria, por sua vez, era esposa do metalúrgico Manuel Fiel Filho, torturado até a morte sob a acusação de fazer parte do Partido Comunista Brasileiro, embora seu real crime tenha sido ler o jornal A Voz Operária. No plural, “Marias e Clarisses” são todas as mulheres, sejam mães, filhas ou esposas, que sofreram por alguém que fora torturado ou exilado.

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Capítulo 5 --- A década do rock

A penúltima década do século começa com o Brasil acreditando que a democracia não demoraria a retornar. O general João Batista Figueiredo que assumiu o poder em 1979, prometia manter a “distenção lenta, gradual e segura”, iniciada pelo seu antecessor. Os anistiados estavam de volta. O irmão do Henfil já estava no Brasil, a censura era mais branda. A juventude que cresceu dentro da ditadura começaria a dar seus gritos em busca de liberdade. Partidos políticos nasciam. As greves no ABC paulista lideradas por Lula e o surgimento de partidos políticos como o PT, o PDT e o PMDB, demonstravam que o povo já tinha opção. Que a ditadura não tardaria a ser vencida. No mundo, o socialismo também dava sinais de fraqueza. A União Soviética não era mais tão poderosa quanto nas décadas anteriores e os Estados Unidos cada vez mais iam tomando seu lugar como única superpotência do planeta. O mundo da música vivia agitado com as transformações, afirmações e revoluções que os anos 70 mostraram. Os jovens buscavam algo novo. Aquela velha música de festival já parecia algo distante. Os adolescentes e os jovens adultos brasileiros não queriam muito saber de Chico Buarque e sua turma. Queriam fazer algo novo, muito inspirado pelo punk rock inglês ou pelo new wave americano. Queriam mostrar que no Brasil também se podia fazer esse tipo de rock, um rock diferente daquele feito por Celly Campelo e depois por Roberto, Erasmo e toda a turma da Jovem Guarda. Também não queriam imitar Rita Lee e os Mutantes ou Raul Seixas e Os Secos & Molhados. Aos poucos,

126 Caminhando e Cantando no início da década mágica de 1980, um período de mudanças extraordinárias no mundo inteiro, essa geração nascida entre o surgimento da bossa nova e a euforia dos festivais, mostraria ao Brasil a que veio. Muitos deles já faziam música no final dos anos 70, sem o devido sucesso, mas chegaria a hora dessa turma toda começar uma revolução que mexeria com a música brasileira. Entretanto, em dezembro de 1980, a música mundial perde seu maior ídolo, três anos depois do rei do rock, morria John Lennon, o garoto de Liverpool. Mark Chapman deu três tiros nas costas do artista enquanto ele entrava no edifício Dakota, sua residência em Nova Iorque. O mundo inteiro se comoveu com a morte de Lennon. As pessoas pararam ao redor do mundo para lembrar as músicas dos Beatles e da carreira solo do cantor. Ninguém queria acreditar. John Lennon estava morto. Em 1980, o papa João Paulo II visita o Brasil. É o primeiro pontífice da igreja católica a pisar o solo brasileiro. Visitou 13 cidades em 12 dias. Foi de Porto Alegre à Manaus, passando por Brasília, recepcionado pelo presidente Figueiredo. Falou à multidões de fiéis em todos os lugares. Em 1981, na Praça de São Pedro, no Vaticano, sofreu um atentado a tiros. Foi alvejado à queima-roupa pelo turco Mehmet Ali Agca. Anos depois a banda Engenheiros do Hawaii faria sucesso com uma música retratando o episódio. “O Papa é Pop” dizia: “O papa é pop. O pop não poupa ninguém. Levou um tiro à queima-roupa. O pop não poupa ninguém.” No final da letra, trocava papa por John Lennon: “John Lennon levou um tiro à queima-roupa. O pop não poupa ninguém”. O mundo é sacudido em 1982, por sucessos dos dois maiores artistas pop da história. Michael Jackson lança “Thriller” e Madonna lança seu primeiro single, “Everybody”.

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No Brasil, a violência de extremistas de direita também aumentou nos primeiros anos da década. Foram registrados ataques à bomba na sede da OAB (Ordem dos Advogados do Brasil), Associação Brasileira de Imprensa (ABI) e no centro de eventos Riocentro. Enquanto isso, a pressão para se realizar eleições democráticas para presidente crescia.

--- Um circo, uma rádio, um grupo de teatro.

As bandas de rock surgidas no início dos anos 80 e fim dos 70 não tinham oportunidade de mostrar seu trabalho para um público mais amplo. As rádios não ofereciam espaço para esse tipo de música e os shows ficavam restritos a pequenos espaços undergrounds e circuitos universitários. O público era pequeno e o som era amador. Apenas pequenos grupos conheciam aquilo que estava sendo feito em garagens, apartamento e universidades pelo Brasil afora. Em janeiro de 1982, se instalou na praia do Arpoador, no Rio de Janeiro, o Circo Voador, uma casa de espetáculos, onde se apresentavam grupos teatrais e músicos para um público majoritariamente jovem. Um dos primeiros grupos a se apresentar no espaço foi o “Asdrúbal Trouxe o Trombone”, que revelou talentos do teatro e do humor, como Regina Casé, Patrícia Travassos, Luis Fernando Guimarães e Patrícia Pillar. Um desses artistas era Evandro Mesquita, que também cantava e tocava e era diretor artístico do Circo. O grupo se apresentava antes dos shows de Marina Lima. Evandro fazia uma jam session entre os dois espetáculos. Com isso ele chamou dois músicos que tocavam com Marina para acompanhá-lo nas apresentações: Lobão, ex-Vínama, e Ricardo Barreto. Aos poucos essas apresentações foram crescendo e tomaram conta do horário principal, acrescentando o coro feminino de

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Márcia Bulcão e . Nesse mesmo ano se apresentaram a um executivo da Odeon, que achou que poderia dar certo e resolveu apostar na banda. Então, a Blitz, nome dado por Lobão, foi a primeira banda de rock a assinar o contrato com uma gravadora. A Rádio Fluminense FM de Niterói tocava rock internacional além do rock setentista brasileiro, de Raul Seixas. A partir dali, ela também começou a tocar o rock da Blitz, com “Você não Soube me Amar”, que estava no compacto da banda, antes mesmo do lançamento do disco. “As aventuras da Blitz” teve censuradas as duas últimas faixas. A gravadora então fez uma jogada de mestre. Não gravaram outras faixas e aí riscaram o lugar das faixas censuradas. Para deixar mais claro ainda que houvera censura. Em três meses, vendeu mais de 100 mil cópias e a Blitz virou mania nacional, com um repertório escrachado e totalmente rock’n roll. As crianças adoravam. Os pais também. . "Bateu na veia. Do Oiapoque ao Chuí. A gente teve a felicidade de entrar em várias camadas sociais. A empregada curtia, a madame curtia, a filha da madame e a netinha também curtiam", afirmou Evandro em esntrevista ao Estado de São Paulo em fevereiro de 2011. Lobão se desentendeu com os outros integrantes e saiu da banda antes mesmo do lançamento do disco. Para Roger Moreira, líder da banda paulistana Ultraje a Rigor a música de maior sucesso da Blitz é o maior símbolo da década. “Pra mim “Você não soube me amar do Evandro Mesquita é a cara dos anos 80”, afirmou. O rock dos anos 80 começava a mostrar a sua cara e começava a dominar a década. Outro grupo precursor do rock nos anos 80 foi a Gang 90 e as Absurdettes, liderado por Júlio Barroso. Em 81, eles participaram do Festival MPB-Shell e fizeram sucesso com o hit “Perdidos na Selva”. Depois do festival, Júlio foi fazer música nos Estados Unidos, fracassou e quando voltou a Blitz já havia

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Marco Antonio Gonçalves estourado. Lançou um LP, fez sucesso, mas devido aos problemas com drogas e álcool, não conseguiu mantê-lo. Júlio se matou em 84, aos 31 anos. Com as portas abertas para o rock, Lulu Santos começou a emplacar um sucesso atrás do outro, desde 1983 e é assim até hoje. A Rádio Fluminense foi de extrema importância para que o rock brasileiro se desenvolvesse na década. Ela recebia fitas demo de bandas iniciantes e colocava no ar. Sem jabá. Se chamava a atenção do público, as músicas eram repetidas e logo chamavam a atenção dos empresários e agentes das gravadoras. Era uma época que gravar um disco de MPB era caro, porque os artistas queriam arranjos especiais e, na maioria das vezes, gravar em um estúdio fora do Brasil. Os grupos de rock só queriam ser ouvidos. Entrar num estúdio, seja de Niterói ou da Baixada fluminense, já era uma vitória. Com o sucesso da Blitz, do Circo Voador e da Rádio Fluminense, os olhos das gravadoras estavam voltados para essa nova geração de artistas. Gente que nasceu no começo dos anos 60 e não tinham influência de bossa nova ou da MPB dos festivais. Assim foram nascendo as principais bandas do BRock, o rock brasileiro dos anos 80. Na primeira metade da década apareceram Léo Jaime, Eduardo Dusek, João Penca e seus Miquinhos Amestrados e Dr. Silvana e Cia. Algumas bandas teriam sucesso mais duradouro como os cariocas Biquíni Cavadão, de Bruno Gouveia, Kid Abelha e os Abóboras Selvagens, de Paula Toller e Leoni, , de Herbert Vianna e Barão Vermelho, de Frejat e Cazuza. Depois que os meios de comunicação começaram a prestar atenção nessa gente toda e foi feito o projeto Rock Voador. Feito no Circo, reunia toda essa onda de novos artistas cariocas e foi se espalhando pelo Brasil inteiro. Logo, bandas de outras

130 Caminhando e Cantando partes também fariam sucesso nacional como os paulistas Titãs, Ira!, de Nasi e Edgar Scandurra, Ultraje a Rigor, de Roger. De Brasília, viera Legião Urbana, de Renato Russo, Pelbe Rude, de Philippe Seabra e Capital Inicial, de Dinho Ouro Preto. O único artista, sem ser do rock ou da nova geração, a realmente fazer sucesso com os mais novos, era Tim Maia. Uma banda paulista logo ia fazer sucesso e mostrar uma das principais canções do Brock. O Ultraje a Rigor, de Roger e Edgar Scandurra, (que depois foi para o Ira!) fez sucesso com duas canções em 1984 “Mim quer tocar” e “Inútil”, esta última tinha uma veia cômica, que falava a realidade que o Brasil precisava ouvir naquela época, era uma chamado de atenção ao povo. André Midani, então executivo da Warner, ficou impressionado com a música: “Eu adorava a esplêndida sátira “a gente somos inútil”, do Ultraje a Rigor, tão adequada na época e tão adequada ainda hoje e carregava uma fita cassete com a música pra todo lugar”, escreveu Midani em sua autobiografia.

A GENTE NÃO SABEMOS ESCOLHER PRESIDENTE A GENTE NÃO SABEMOS TOMAR CONTA DA GENTE A GENTE NÃO SABEMOS NEM ESCOVAR OS DENTE TEM GRINGO PENSANDO QUE NÓIS É INDIGENTE

INÚTIL A GENTE SOMOS INÚTIL INÚTIL A GENTE SOMOS INÚTIL INÚTIL A GENTE SOMOS INÚTIL INÚTIL A GENTE SOMOS INÚTIL

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A GENTE FAZ CARRO E NÃO SABE GUIAR A GENTE FAZ TRILHO E NÃO TEM TREM PRÁ BOTAR A GENTE FAZ FILHO E NÃO CONSEGUE CRIAR A GENTE PEDE GRANA E NÃO CONSEGUE PAGAR

A GENTE FAZ MÚSICA E NÃO CONSEGUE GRAVAR A GENTE ESCREVE LIVRO E NÃO CONSEGUE PUBLICAR A GENTE ESCREVE PEÇA E NÃO CONSEGUE ENCENAR A GENTE JOGA BOLA E NÃO CONSEGUE GANHAR

Esta música tinha tudo para virar o hino de uma época e foi o que aconteceu. André Midani conta: “O Washington (Olivetto) me pediu uma cópia e entregou ao radialista Osmar Santos, que dirigia o comício das Diretas Já, em 1984. Osmar entregou a fita ao Ulysses Guimarães (deputado do PMDB) e ele percebeu a importância do discurso de Roger. Ulysses tocou a fita em pleno congresso nacional e fez dela um de seus mais virulentos discursos contra a dos políticos e do sistema. Afinal, todos entenderam”.

--- Diretas já

O deputado Dante de Oliveira entregou ao congresso uma proposta que propunha o voto direto para presidente da república, que poria fim ao sistema interno de escolha e restabelecia a democracia no Brasil. A partir de então, o Brasil se mobilizou em campanha a favor da emenda. Em vários lugares do Brasil, as pessoas se reuniam para dizer que queriam votar para presidente. Mas dois comícios marcaram a campanha, dias antes de ser votada a emenda Dante de Oliveira. Um no Rio de Janeiro, no dia 10 de abril de 1984 e outro no dia 16 de abril,

132 Caminhando e Cantando em São Paulo. Aos gritos de “Diretas Já!” mais de um milhão de pessoas lotaram a Praça da Sé, na capital paulista. O movimento foi liderado por diversos políticos de renome como Tancredo Neves, Leonel Brizola,Miguel Arraes, Ulysses Guimarães, André Franco Montoro, Mário Covas, Luiz Inácio Lula da Silva, Eduardo Suplicy, Roberto Freire e Fernando Henrique Cardoso. Muitos artistas também participaram ativamente do movimento: Chico Buarque de Hollanda, Milton Nascimento, Fafá de Belém, que ficou conhecida como “musa das Diretas” entre tantos outros artistas. Várias músicas ficaram com a cara das Diretas. Além da já citada “Inútil”, uma das músicas que mais foram executadas nesses comícios era “Coração de Estudante”, de Milton Nascimento e Wagner Tiso.

QUERO FALAR DE UMA COISA ADIVINHA ONDE ELA ANDA DEVE ESTAR DENTRO DO PEITO OU CAMINHA PELO AR PODE ESTAR AQUI DO LADO BEM MAIS PERTO QUE PENSAMOS A FOLHA DA JUVENTUDE É O NOME CERTO DESSE AMOR

JÁ PODARAM SEUS MOMENTOS DESVIARAM SEU DESTINO SEU SORRISO DE MENINO TANTAS VEZES SE ESCONDEU MAS RENOVA-SE A ESPERANÇA NOVA AURORA A CADA DIA E HÁ QUE SE CUIDAR DO BROTO PRA QUE A VIDA NOS DÊ FLOR E FRUTO

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CORAÇÃO DE ESTUDANTE HÁ QUE SE CUIDAR DA VIDA HÁ QUE SE CUIDAR DO MUNDO TOMAR CONTA DA AMIZADE ALEGRIA E MUITO SONHO ESPALHADOS NO CAMINHO VERDES, PLANTAS, SENTIMENTO FOLHA, CORAÇÃO, JUVENTUDE E FÉ

Essa canção, na voz de Milton Nascimento, faz qualquer um que tenha participado daquele movimento rememorar aqueles dias históricos e que marcaram para sempre a história do Brasil. Outra canção que estourou neste ano contava um pouco da história dessa geração de jovens que nasceram sobre as sombras da ditadura, que agora protestavam pela democracia, sem ter medo de serem presos, torturados ou exilados, eram os filhos da revolução, eram a Geração Coca-Cola, tão bem expressa na canção de Renato Russo e Dado Villa-Lobos.

QUANDO NASCEMOS FOMOS PROGRAMADOS A RECEBER O QUE VOCÊS NOS EMPURRARAM COM OS ENLATADOS DOS USA, DE 9 ÀS 6.

DESDE PEQUENOS NÓS COMEMOS LIXO COMERCIAL E INDUSTRIAL MAS AGORA CHEGOU NOSSA VEZ VAMOS CUSPIR DE VOLTA O LIXO EM CIMA DE VOCÊS.

SOMOS OS FILHOS DA REVOLUÇÃO SOMOS BURGUESES SEM RELIGIÃO NÓS SOMOS O FUTURO DA NAÇÃO GERAÇÃO COCA-COLA.

134 Caminhando e Cantando

DEPOIS DE VINTE ANOS NA ESCOLA NÃO É DIFÍCIL APRENDER TODAS AS MANHAS DO SEU JOGO SUJO NÃO É ASSIM QUE TEM QUE SER?

VAMOS FAZER NOSSO DEVER DE CASA E AÍ ENTÃO, VOCÊS VÃO VER SUAS CRIANÇAS DERRUBANDO REIS FAZER COMÉDIA NO CINEMA COM AS SUAS LEIS.

SOMOS OS FILHOS DA REVOLUÇÃO SOMOS BURGUESES SEM RELIGIÃO NÓS SOMOS O FUTURO DA NAÇÃO GERAÇÃO COCA-COLA GERAÇÃO COCA-COLA GERAÇÃO COCA-COLA GERAÇÃO COCA-COLA.

DEPOIS DE VINTE ANOS NA ESCOLA NÃO É DIFÍCIL APRENDER TODAS AS MANHAS DO SEU JOGO SUJO NÃO É ASSIM QUE TEM QUE SER?

VAMOS FAZER NOSSO DEVER DE CASA E AÍ ENTÃO, VOCÊS VÃO VER SUAS CRIANÇAS DERRUBANDO REIS FAZER COMÉDIA NO CINEMA COM AS SUAS LEIS.

SOMOS OS FILHOS DA REVOLUÇÃO SOMOS BURGUESES SEM RELIGIÃO NÓS SOMOS O FUTURO DA NAÇÃO

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GERAÇÃO COCA-COLA GERAÇÃO COCA-COLA

Embora composta no final dos anos 70, na época do Aborto Elétrico, essa música se encaixou perfeitamente paras o ano em que foi lançada pela Legião Urbana, 1984. Ela expressa tudo o que havia passado a geração de Renato, que viveu toda a juventude sobre os olhares da ditadura. A Legião Urbana, formada por Renato e Dado, mais o baterista Marcelo Bonfá foi a banda de rock brasileira de maior expressão da história. Foram os que mais venderam disco e ainda hoje, mais de 15 anos depois da dissolução da banda, ainda sempre figuram na lista dos mais vendidos. Vinda de Brasília, assim como Capital e Plebe Rude, a banda começou a fazer sucesso depois que Herbert Vianna, vocalista dos Paralamas do Sucesso, e amigo de Ranato dos tempos de Brasília apresento uma fita com a música “Geração Coca-Cola” a sua gravadora e a Rádio Fluminense começou a tocar incansavelmente. Renato Russo foi o maior letrista de sua geração compondo obras-primas que ficaram na memória de muitos brasileiros e que foi sucesso total nos anos 80, como “Eduardo e Mônica” e “Faroeste Caboclo”. A emenda Dante de Oliveira foi rejeitada no congresso nacional, e eleições diretas não iriam acontecer no Brasil, mas os reis de farda já estavam postos. Figueiredo comandou o país até a redemocratização, que ocorreria por meio de eleições indiretas, em 1985. De um lado estava Tancredo Neves, governador mineiro, e de outro Paulo Maluf, ex-prefeito paulistano. Tancredo venceu a eleição, o Brasil ficou em festa, todos comemoraram a volta de um civil ao poder depois de 24 anos. Era o fim da ditadura.

136 Caminhando e Cantando

A posse estava marcada paro o dia 15 de março, porém na véspera, ele fora internado com fortes dores abdominais. O maranhense José Sarney, vice de Tancredo, assumiu o poder provisoriamente. Entretanto no dia 21 de abril, o presidente morre em São Paulo e Sarney assume de maneira definitiva. O rock fazia sucesso no Brasil de então, e o país ganhou um dos maiores festivais já realizados no mundo, o , realizado de 11 a 20 de janeiro de 1985. O país estava eufórico com a eleição de Tancredo para presidente e viu os maiores astros do rock internacional e nacional se apresentar para um público de mais de um milhão e meio de pessoas. Estiveram na primeira edição do evento a banda inglesa Queen, Rod Stewart, Whitesnake, Iron Maden, AC/DC, Scorpions entre outros famosos artistas e grupos internacionais. Para a música brasileira foi um marco divisório. Antes destinados a apenas algumas partes do país, os artistas que tocaram no festival, tiveram grande destaque na mídia e alavancaram suas carreiras. Destaque para Os Paralamas do Sucesso, que com o hit “Óculos” foi o maior sucesso do evento, ultrapassando até alguns consagrados artistas internacionais. O Barão Vermelho, ainda com Cazuza, também fez ferver a Cidade do Rock. O Rock in Rio consolidou o rock brasileiro de vez no cenário musical mundial. Em 1985, o Brasil conheceu a banda que mais vendeu discos, em menos tempo. Era o fenômeno RPM, com Paulo Ricardo. A banda vendeu mais de dois milhões de discos em menos de um ano. Um recorde. De Porto Alegre vieram duas bandas de sucesso a partir da segunda metade da década, Engenheiros do Hawaii e Nenhum de Nós.

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Os “Engenheiros”, liderados por Humberto Gessinger conseguiram emplacar vários sucessos como “Infinita Highway” e “Toda Forma de Poder””.

EU PRESTO ATENÇÃO NO QUE ELES DIZEM MAS ELES NÃO DIZEM NADA FIDEL E PINOCHET TIRAM SARRO DE VOCÊ QUE NÃO FAZ NADA E EU COMEÇO A ACHAR NORMAL QUE ALGUM BOÇAL ATIRE BOMBAS NA EMBAIXADA

SE TUDO PASSA TALVEZ VOCÊ PASSE POR AQUI E ME FAÇA ESQUECER TUDO QUE EU FIZ

TODA FORMA DE PODER É UMA FORMA DE MORRER POR NADA TODA FORMA DE CONDUTA SE TRANSFORMA NUMA LUTA ARMADA A HISTÓRIA SE REPETE, MAS A FORÇA DEIXA A HISTÓRIA MAL-CONTADA

SE TUDO PASSA TALVEZ VOCÊ PASSE POR AQUI E ME FAÇA ESQUECER TUDO QUE EU FIZ

O FASCISMO É FASCINANTE, DEIXA A GENTE IGNORANTE E FASCINADA É TÃO FÁCIL IR ADIANTE E ESQUECER QUE A COISA TODA TÁ ERRADA EU PRESTO ATENÇÃO NO QUE ELES DIZEM, MAS ELES NÃO DIZEM NADA

SE TUDO PASSA TALVEZ VOCÊ PASSE POR AQUI E ME FAÇA ESQUECER TUDO QUE EU FIZ

Humberto Gessinger prega um descrédito nas formas de governo. Em seguida critica os combates armados. Era o final da guerra fria, o mundo ainda estava sob tensa, vários atentados aconteciam pelo mundo. Era a história se repetindo sem deixar explicações.

138 Caminhando e Cantando

O governo Sarney ia mal, a inflação chega a níveis inimagináveis, a economia é uma lástima, o desemprego altíssimo. Neste cenário, fez sucesso uma música da Legião Urbana, uma de suas mais famosas e que segue fazendo sucesso até os dias atuais, tendo inúmeras regravações.

NAS FAVELAS, NO SENADO SUJEIRA PRA TODO LADO NINGUÉM RESPEITA A CONSTITUIÇÃO MAS TODOS ACREDITAM NO FUTURO DA NAÇÃO

QUE PAÍS É ESSE? QUE PAÍS É ESSE? QUE PAÍS É ESSE? QUE PAIS É ESSE?

NO AMAZONAS, NO ARAGUAIA, NA BAIXADA FLUMINENSE NO MATO GROSSO, MINAS GERAIS E NO NORDESTE TUDO EM PAZ NA MORTE EU DESCANSO MAS O SANGUE ANDA SOLTO MANCHANDO OS PAPÉIS, DOCUMENTOS FIÉIS AO DESCANSO DO PATRÃO

QUE PAÍS É ESSE? QUE PAÍS É ESSE? QUE PAÍS É ESSE? QUE PAÍS É ESSE?

TERCEIRO MUNDO SE FOR PIADA NO EXTERIOR MAS O BRASIL VAI FICAR RICO VAMOS FATURAR UM MILHÃO

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QUANDO VENDERMOS TODAS AS ALMAS DOS NOSSOS ÍNDIOS NUM LEILÃO.

Renato Russo indagava várias vezes “Que país é esse?”. Este não era o país que todos queriam quando acabasse a ditadura. O Brasil que estavam vendo não era o que todos esperavam. Infelizmente, a música da Legião continua sempre atual e parecer ser mesmo atemporal. No final da década, algumas bandas já não faziam tanto sucesso como no início. Somente a Legião Urbana, Os Engenheiros do Hawaii se mantiveram no auge. O rock internacional tomou conta de boa parte do mercado brasileiro no fim da década. Com a economia de mal a pior, não dava mesmo para se inventar muito. Cazuza, que deixou o Barão Vermelho, por divergências musicais (queria cantar outros estilos) ainda fazia muito sucesso. Aproximou-se da bossa nova. Até compôs uma: “Faz parte do meu show”. Também começou a cantar samba (“O mundo é um moinho, de Cartola”). Com isso renovou seu público e se manteve no ápice. O que não ia bem era sua saúde. Portador do vírus HIV, a doença da década, era levado constantemente a Boston, para fazer tratamento. Cada vez mais debilitado pela doença, fazia show, programas de televisão e chegou a gravar discos. O último de sua carreira, “Burguesia” já estava totalmente doente, magro e respirando com dificuldade. O resultado é um disco perfeito, com músicas mais intimistas e cheios de obras-primas, como a faixa-título onde xinga a burguesia.

A BURGUESIA FEDE A BURGUESIA QUER FICAR RICA

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ENQUANTO HOUVER BURGUESIA NÃO VAI HAVER POESIA

A BURGUESIA NÃO TEM CHARME NEM É DISCRETA COM SUAS PERUCAS DE CABELOS DE BONECA A BURGUESIA QUER SER SÓCIA DO COUNTRY A BURGUESIA QUER IR A NEW YORK FAZER COMPRAS

POBRE DE MIM QUE VIM DO SEIO DA BURGUESIA SOU RICO MAS NÃO SOU MESQUINHO EU TAMBÉM CHEIRO MAL

No seu disco mais vendido e mais aclamado, ele conta a própria história em “Ideologia”, uma de suas músicas de maior sucesso.

(...) QUE AQUELE GAROTO QUE IA MUDAR O MUNDO MUDAR O MUNDO FREQUENTA AGORA AS FESTAS DO "GRAND MONDE"...

MEUS HERÓIS MORRERAM DE OVERDOSE MEUS INIMIGOS ESTÃO NO PODER IDEOLOGIA! EU QUERO UMA PRA VIVER IDEOLOGIA!

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O MEU PRAZER AGORA É RISCO DE VIDA MEU SEX AND DRUGS NÃO TEM NENHUM ROCK 'N' ROLL EU VOU PAGAR A CONTA DO ANALISTA PRA NUNCA MAIS TER QUE SABER QUEM EU SOU

Em 1989, Cazuza morre no Rio de Janeiro. Também morreram duas grandes estrelas de nossa música: Nara Leão, vítima de um câncer que a afetou durante 10 anos e Raul Seixas, vítima de uma cirrose, provocada pelo alcoolismo. Grandes mudanças ocorrem em 1989, as Alemanhas estão juntas novamente. Com a derrubada do Muro de Berlim, tem fim um período trágico na história daquela nação. Agora era questão de tempo para que a União Soviética também seja dissolvida. No Brasil, ocorrem as primeiras eleições diretas para presidente desde 1960. 22 candidatos concorrem ao cargo, entre eles Fernando Collor, Lula, Leonel Brizola, Ulysses Guimarães, Paulo Maluf e Mário Covas. Collor vence o primeiro turno e encara Lula no segundo turno. Inúmeros artistas participaram da campanha de Lula, Gilberto Gil, Chico Buarque e Djavan gravam o jingle da campanha “Lula lá”. Depois de debates acalorados e uma disputa acirradíssima, o Brasil já tinha seu novo presidente. O primeiro eleito pelo povo em 30 anos: Fernando Collor de Mello.

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Capítulo 6

--- Fim de uma era

O presidente Fernando Collor de Mello toma posse e já no primeiro dia de governo põe em prática o plano que confisca a poupança dos brasileiros, elaborado pela ministra Zélia Cardoso de Mello. No início dos anos 90, o mercado fonográfico brasileiro estava totalmente desaquecido. As gravadoras sem dinheiro e os músicos impossibilitados de gravar. A economia fracassava com o plano Collor. O povo desacreditado. Legião, com “As quatro Estações” e Engenheiros, com “O papa é pop” emplacam sucessos. As outras bandas amargaram fracassos em seus últimos discos. Entretanto, a banda que mais fez sucesso no início da década foi o Sepultura. A banda de heavy metal mineira cantava em inglês e fez sucesso principalmente no exterior. Porém, os anos 90 começam com um estouro de duplas sertanejas. No rádio, não havia mais espaço para MPB ou rock, os sertanejos haviam dominado as estações e o dinheiro das gravadoras. Vendiam milhões de discos. Para Nelson Motta, foi uma tragédia: A música sertaneja dominou as ruas e a classe média, foi a trilha sonora das festas do poder em Brasília e em São Paulo. As peruas da “república de Alagoas” dançavam ao som de Chitãozinho e Xororó e Leandro e Leonardo. Uma foto emblemática do governo Collor mostra o presidente e a primeira-dama Rosane, alegres e sorridentes ao lado de 60 duplas sertanejas na Casa da Dinda. Para um garoto de classe média de Copacabana dos anos 50 não

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Marco Antonio Gonçalves poderia haver coisa pior do que ouvir 60 duplas caipiras cantando em terças ao mesmo tempo. Para um jovem libertário de 68, não haveria maior horror do que ver o Brasil sob o estilo, a ideologia e a rapinagem de Collor”, desabafa ele em Noites Tropicais. Com as denúncias de corrupção do governo Collor explodindo na mídia, o povo brasileiro começou a se unir para derrubar o presidente. Quando, já em 92, ele foi a televisão e pediu que todos vestissem verde e amarelo para apóia-lo, todos saíram de preto. Com as caras pintadas, foram às ruas do país pedir pela saída de Collor. Os cara pintadas saíam às ruas cantando antigas canções de protesto como “Alegria, Alegria” e “Caminhando”, mas também uma nova, da banda Biquíni Cavadão, “Zé Ninguém”

QUEM FOI QUE DISSE QUE AMAR É SOFRER? QUEM FOI QUE DISSE QUE DEUS É BRASILEIRO, QUE EXISTE ORDEM E PROGRESSO, ENQUANTO A ZONA CORRE SOLTA NO CONGRESSO? QUEM FOI QUE DISSE QUE A JUSTIÇA TARDA MAS NÃO FALHA? QUE SE EU NÃO FOR UM BOM MENINO, DEUS VAI CASTIGAR!

OS DIAS PASSAM LENTOS AOS MESES SEGUEM OS AUMENTOS CADA DIA EU LEVO UM TIRO QUE SAI PELA CULATRA EU NÃO SOU MINISTRO, EU NÃO SOU MAGNATA

EU SOU DO POVO, EU SOU UM ZÉ NINGUÉM AQUI EMBAIXO, AS LEIS SÃO DIFERENTES EU SOU DO POVO, EU SOU UM ZÉ NINGUÉM AQUI EMBAIXO, AS LEIS SÃO DIFERENTES

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QUEM FOI QUE DISSE QUE OS HOMENS NASCEM IGUAIS? QUEM FOI QUE DISSE QUE DINHEIRO NÃO TRAZ FELICIDADE? SE TUDO AQUI ACABA EM SAMBA, NO PAÍS DA CORDA BAMBA, QUEREM ME DERRUBAR!! QUEM FOI QUE DISSE QUE OS HOMENS NÃO PODEM CHORAR? QUEM FOI QUE DISSE QUE A VIDA COMEÇA AOS QUARENTA? A MINHA ACABOU FAZ TEMPO, AGORA ENTENDO POR QUE ....

CADA DIA EU LEVO UM TIRO QUE SAI PELA CULATRA EU NÃO SOU MINISTRO, EU NÃO SOU MAGNATA EU SOU DO POVO, EU SOU UM ZÉ NINGUÉM AQUI EMBAIXO, AS LEIS SÃO DIFERENTES

A canção sintetiza muito bem o que o povo brasileiro sentia em relação ao governo Collor de Mello. A banda conseguiu traduzir na música todo o rancor que o brasileiro sentia em relação ao presidente. Demonstra todo o descontentamento com o sistema político, com a corrupção. No início da década surgem no país diversos grupos e cantores de hip hop, rap e funk. Gabriel O Pensador é o principal e o mais artista que apareceu na onda do hip hop nos anos 90. Com uma canção extremamente agressiva ele dá as caras, dizendo que “matou o presidente” e mostra que a honestidade na política poderia ser a mesma de anos atrás, mas a liberdade de expressão era a mais absoluta vitória do povo brasileiro pós-ditadura. Ele desabafa em “To Feliz (matei o presidente)”.

TIREI O PAU NO RATO MAS O RATO NÃO MORREU

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DONA ROSANE, ADMIROU-SE DO FERRÃO TRÊS-OITÃO QUE APARECEU TODO MUNDO BATEU PALMA QUANDO O CORPO CAIU EU ACABAVA DE MATAR O PRESIDENTE DO BRASIL FÁCIL UM TIRO SÓ BEM NO OLHO DO SAFADO QUE MORREU ALI MESMO TODO ENSANGUENTADO QUÊ? SAÍ VOADO COM A POLÍCIA ATRÁS DE MIM E ENQUANTO EU FUGIA EU PENSAVA BEM ASSIM: "TINHA QUE TER TIRADO UMA FOTO NA HORA EM QUE O SANGUE ESPIRROU PRA MOSTRAR PROS MEUS FILHOS QUE LINDO, PÔ" EU TAVA EMOCIONADO MAS CORRI PRA VALER E CONSEGUI ESCAPAR AH TÁ PENSANDO O QUÊ? E QUANDO EU CHEGO EM CASA O QUE EU VEJO NA TV? PRIMEIRA DAMA CHORANDO PERGUNTANDO (POR QUÊ?) AH! DONA ROSANE NUM FODE NUM ENCHE NÃO É DE HOJE QUE SEU CHORO NÃO CONVENCE MAS SE VOCÊ QUER SABER PORQUE EU MATEI O FERNANDINHO PRESTA ATENÇÃO SUA PUTA ESCUTA DIREITINHO ELE GANHOU A ELEIÇÃO E SE ESQUECEU DO POVÃO E UMA COISA QUE EU NÃO ADMITO É TRAIÇÃO PROMETEU, PROMETEU, PROMETEU E NÃO CUMPRIU ENTÃO EU FUZILEI, VÁ PRA PUTA QUE O PARIU É "PODRE SOBRE PODRE" ESSA NOVELA É MAGRI, É ZÉLIA É ALCENI COM BICICLETA E GUARDA-CHUVA LBA PREVIDÊNCIA CHEGA DESSA INDECÊNCIA EU APERTEI O GATILHO E AGORA VOCÊ É VIÚVA

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E NÃO ME ARREPENDO NEM UM POUCO DO QUE FIZ TOMEI UMA PROVIDÊNCIA QUE ME FEZ MUITO FELIZ

HOJE EU TÔ FELIZ! (MINHA GENTE!) HOJE EU TÔ FELIZ MATEI O PRESIDENTE

EU TÔ FELIZ DEMAIS ENTÃO FUI COMEMORAR A MULTIDÃO ME VIU E COMEÇOU A FESTEJAR (É PENSADOR, É PENSADOR, É GABRIEL O PENSADOR) ME CARREGARAM NAS COSTAS A GRITARIA NÃO PAROU EU DISSE "EU SOU FUGITIVO GENTE NÃO GRITA O MEU NOME POR FAVOR!" NINGUÉM ME ESCUTOU E A POLÍCIA ME ENCONTROU TENTARAM ME PRENDER MAS O POVO NÃO DEIXOU (O POVO UNIDO JAMAIS SERÁ VENCIDO) UMA FESTA DESSE TIPO NUNCA TINHA ACONTECIDO TAVA BONITO DEMAIS ALEGRIA E TUDO EM PAZ E NINGUÉM VAI BLOQUEAR NOSSO DINHEIRO NUNCA MAIS CORINTHIANO E PALMEIRENSE FLAMENGUISTA E VASCAÍNO TODOS JUNTOS COM A BANDEIRA NA MÃO CANTANDO O HINO ("OUVIRAM DO IPIRANGA ÀS MARGENS PLÁCIDAS DE UM POVO HERÓICO O BRADO RETUMBANTE") E COMEÇOU O FUNERAL E O POVO TODO NA MORAL INVADIU O CEMITÉRIO NUMA FESTA EMOCIONANTE ENTRAMOS NO CEMITÉRIO CANTANDO E DANÇANDO E O PRESIDENTE ESTAVA LÁ JÁ DEITADO NOS ESPERANDO TODOS VIRAM NO SEU OLHO A BALA DO MEU TRÊS-OITÃO E EM CORO ELOGIAMOS NOSSO ATLETA NO CAIXÃO: (BONITA CAMISA FERNADINHO

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BONITA CAMISA FERNADINHO VOCÊ NESSA ROUPA DE MADEIRA TÁ BONITINHO!) E COMO SEMPRE LÁ TAMBÉM TINHA UM GRUPO MAIS EXALTADO ENTÃO DEPOIS DE POUCO TEMPO O CAIXÃO FOI VIOLADO O DEFUNTO FOI DEGOLADO, E O CORPO FOI QUEIMADO MAS DEPOIS NÃO VI MAIS NADA PORQUE EU JÁ TAVA CERCADO DE MULHERES E AQUILO ME OCUPOU (AI DEIXA EU VER SEU REVÓLVER PENSADOR!) ENTÃO EU VI UM PESSOAL NUMA PELADA DIFERENTE JOGANDO FUTEBOL COM A CABEÇA DO PRESIDENTE E A FESTA CONTINUOU NESSE CLIMA SENSACIONAL FOI NO BRASIL INTEIRO UM VERDADEIRO CARNAVAL TEVE UM TURISTA QUE ESTRANHOU TANTA ALEGRIA E EMOÇÃO CHEGANDO NO BRASIL ME PEDIU INFORMAÇÃO: (O BRASIL FOI CAMPEÃO? TÁ TODO MUNDO CONTENTE!) NÃO AMIGÃO É QUE EU MATEI O PRESIDENTE!

E O VELÓRIO VAI SER CHIQUE SEM FALTA EU TÔ LÁ OUVI DIZER QUE É O PC QUE VAI PAGAR

No final de dezembro de 1992, Collor renuncia para não ser cassado e se tornar inelegível, e o mineiro Itamar Franco assume a presidência da república, coma difícil tarefa de consertar os estragos do governo de Collor. Em Minas Gerais, surgem três bandas de pop rock com sucesso. Em 1991, surgiu o Skank, liderada por Samuel Rosa que misturva elementos de rock com reggae e ska. De lá pra cá, não saíram por nenhum ano das paradas de sucesso. E são, sem dúvida a cara do pop dos anos 90.

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O Pato Fu, de Fernanda Takai e John Ulhoa, também apareceu em Belo Horizonte nessa época. Fazendo rock, com misturas de elementos eletrônicos e sons experimentais, entrou para a história quando a revista Time colocou a banda entre as 10 melhores do mundo foras dos Estados Unidos, ao lado de e U2. A banda teve o nome inspirado em uma tira do quadrinho “Garfield”, e tem se consagrado no cenário musical por transitar entre os circuitos populares e alternativos experimentando novos conceitos e sonoridades em seus trabalhos. O surgiu em 1993 e a partir do single “As dores do Mundo” se consolidou como uma das bandas de mais sucesso do Brasil. Não saindo mais das rádios brasileiras. Fernanda Takai conta porque Minas Gerais, ao contrário de outros Estados, não teve bandas de sucesso nos anos 80. “A cena roqueira em Minas era muito heavy metal, por causa mesmo do Sepultura. Então o pop rock, das outras bandas não tinha muito espaço. Mas nós mesmos, do Pato Fu, viemos de outras bandas (John foi da banda Sexo Explícito) que já tocavam no final dos anos 80, mas o mercado só se abriu nos anos 90. A gente começou o trabalho como banda universitária mesmo. Tocávamos para universitários e nosso trabalho ia se espalhando boca-a-boca. Buscávamos sempre mostrar nosso trabalho com qualidade”, afirmou a cantora. Samuel Rosa também explicou essa falta de bandas mineiras nos anos 80 em entrevista para o livro “Que rock é esse?”: “Isso aconteceu talvez por esse distanciamento da capital mineira com o restante do Brasil, talvez pela nossa pouca idade, a geração dos anos 80 era a nossa, mas os caras eram um pouco mais velhos, quatro, cinco anos. Ficamos no limiar da fama e do profissionalismo para atingir esse objetivo na década seguinte, mais maduros”.

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Fernanda completa: “Creio que o boom do início dos anos 90 em Minas Gerais trouxe reflexos até os dias de hoje. Vejo o Rio Grande do Sul sempre trazendo coisas novas, também a influência do Chico Sciense, no nordeste, estimula o surgimento de novas bandas por lá que trazem um som diferente e de qualidade.” A Legião Urbana continuou fazendo sucesso nos anos 90, e continuou lançando música que mostrava todo o descontentamento com o mundo. “Perfeição” talvez seja uma das canções mais pesadas de Renato Russo, em que ele fala de peito aberto tudo de ruim que acontece no Brasil e no mundo. Lançada em 93, a música foi um sucesso enorme, se fosse dez ou quinze anos antes seria motivo até de prisão para o compositor.

VAMOS CELEBRAR A ESTUPIDEZ HUMANA A ESTUPIDEZ DE TODAS AS NAÇÕES O MEU PAÍS E SUA CORJA DE ASSASSINOS COVARDES, ESTUPRADORES E LADRÕES VAMOS CELEBRAR A ESTUPIDEZ DO POVO NOSSA POLÍCIA E TELEVISÃO VAMOS CELEBRAR NOSSO GOVERNO E NOSSO ESTADO, QUE NÃO É NAÇÃO CELEBRAR A JUVENTUDE SEM ESCOLA AS CRIANÇAS MORTAS CELEBRAR NOSSA DESUNIÃO VAMOS CELEBRAR EROS E THANATOS PERSEPHONE E HADES VAMOS CELEBRAR NOSSA TRISTEZA VAMOS CELEBRAR NOSSA VAIDADE.

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VAMOS COMEMORAR COMO IDIOTAS A CADA FEVEREIRO E FERIADO TODOS OS MORTOS NAS ESTRADAS OS MORTOS POR FALTA DE HOSPITAIS VAMOS CELEBRAR NOSSA JUSTIÇA A GANÂNCIA E A DIFAMAÇÃO VAMOS CELEBRAR OS PRECONCEITOS O VOTO DOS ANALFABETOS COMEMORAR A ÁGUA PODRE E TODOS OS IMPOSTOS QUEIMADAS, MENTIRAS E SEQÜESTROS NOSSO CASTELO DE CARTAS MARCADAS O TRABALHO ESCRAVO NOSSO PEQUENO UNIVERSO TODA HIPOCRISIA E TODA AFETAÇÃO TODO ROUBO E TODA A INDIFERENÇA VAMOS CELEBRAR EPIDEMIAS: É A FESTA DA TORCIDA CAMPEÃ.

VAMOS CELEBRAR A FOME NÃO TER A QUEM OUVIR NÃO SE TER A QUEM AMAR VAMOS ALIMENTAR O QUE É MALDADE VAMOS MACHUCAR UM CORAÇÃO VAMOS CELEBRAR NOSSA BANDEIRA NOSSO PASSADO DE ABSURDOS GLORIOSOS TUDO O QUE É GRATUITO E FEIO TUDO QUE É NORMAL VAMOS CANTAR JUNTOS O HINO NACIONAL (A LÁGRIMA É VERDADEIRA) VAMOS CELEBRAR NOSSA SAUDADE

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E COMEMORAR A NOSSA SOLIDÃO.

VAMOS FESTEJAR A INVEJA A INTOLERÂNCIA E A INCOMPREENSÃO VAMOS FESTEJAR A VIOLÊNCIA E ESQUECER A NOSSA GENTE QUE TRABALHOU HONESTAMENTE A VIDA INTEIRA E AGORA NÃO TEM MAIS DIREITO A NADA VAMOS CELEBRAR A ABERRAÇÃO DE TODA A NOSSA FALTA DE BOM SENSO NOSSO DESCASO POR EDUCAÇÃO VAMOS CELEBRAR O HORROR DE TUDO ISSO - COM FESTA, VELÓRIO E CAIXÃO ESTÁ TUDO MORTO E ENTERRADO AGORA JÁ QUE TAMBÉM PODEMOS CELEBRAR A ESTUPIDEZ DE QUEM CANTOU ESTA CANÇÃO.

VENHA, MEU CORAÇÃO ESTÁ COM PRESSA QUANDO A ESPERANÇA ESTÁ DISPERSA SÓ A VERDADE ME LIBERTA CHEGA DE MALDADE E ILUSÃO.

VENHA, O AMOR TEM SEMPRE A PORTA ABERTA E VEM CHEGANDO A PRIMAVERA - NOSSO FUTURO RECOMEÇA: VENHA, QUE O QUE VEM É PERFEIÇÃO

Do Nordeste, veio a única coisa realmente nova feita depois da explosão do rock nos anos 80: a banda pernambucana Chico Science & Nação Zumbi. O vocalista Chico Science criou o

152 Caminhando e Cantando manguebueat: um estilo que misturava ritmos regionais, como o maracatu com hip hop, funk e música eletrônica. O estilo tem esse nome porque como o mangue é o ecossistema biologicamente mais rico do planeta, o Manguebeat precisava formar uma cena musical tão rica e diversificada como os manguezais. Devido a principal bandeira do mangue ser a diversidade, a agitação na música contaminou outras formas de expressão culturais como o cinema, a moda e as artes plásticas. Esse estilo influenciou bandas como Mundo Livre S/A e artistas como Mestre Ambrósio e Otto. Chico Science lançou dois discos, um deles “Da Lama ao Caos”, de 1994, sempre figura na lista dos álbuns mais importantes da música brasileira.

Depois que assumiu a presidência, Itamar Franco botou em prática o Plano Real, que mudava a moeda do país, controlava a inflação e aquecia a economia. Amparado pelo Ministro da Fazenda Fernando Henrique Cardoso, o Plano é um sucesso e FHC vence a eleição em 1994 sobre Lula ainda no primeiro turno. A partir deste momento o país vive um período de estabilidade econômica e democrática. Os anos 90 foram férteis em artistas que vieram inspirados nos ritmos que já faziam sucesso nas décadas anteriores. Nada surgiu de novo, além do manguebeat de Pernambuco. Surgiram cantoras excepcionais como Cássia Eller e Adriana Calcanhotto. Além das citadas bandas mineiras, apareceram Raimundos, de Brasília, Los Hermanos, O Rappa e Planet Hemp do Rio e Charlie Brown Júnior e Racionais Mcs, de São Paulo. Em 1995, surgiu em Guarulhos, uma banda que marcaria época no Brasil e ficaria presente no coração de toda uma geração. Os “”, capitaneados pelo vocalista Dinho, tiveram sucesso relâmpago. Banda de punk rock, tinha em suas músicas elementos de vários ritmos populares do

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Marco Antonio Gonçalves pagode ao brega, do sertanejo ao baião. Com um único álbum, em sete meses de carreira, eles venderam três milhões de discos. Encantou e conquistou fãs de todas as idades, principalmente crianças, com sucessos como “Pelados em Santos” “Vira Vira” e “Robocop Gay”. Os "Mamonas" preparavam uma carreira internacional, com partida para Portugal preparada para 3 de Março de 1996. Porém em 2 de Março, enquanto voltavam de um show em Brasília, o jatinho Learjet em que viajavam, chocou-se contra a Serra da Cantareira, em São Paulo, numa tentativa de arremeter vôo, matando todos os integrantes do grupo. O enterro, no dia 4 de Março, fora acompanhado por mais de 65 mil fãs. Em 11 de outubro de 1996, Renato Russo morre no Rio de Janeiro, em decorrência da Aids, que também vitimara Cazuza. Renato era o maior dos poetas do rock e um de seus maiores símbolos. Para alguns críticos, a morte de Renato simboliza o fim de uma era, iniciada em 1982.

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Epílogo - Século XXI

No final do século, o Brasil assistiu a ascensão do axé, do pagode e do funk. Todos esses ritmos vendiam mais discos do que qualquer disco de MPB, rock ou samba tradicional. Para Roger Moreira, a década de 1990 e na de 2000 é impossível contextualizá-la com a história do Brasil. “Tudo o que foi feito de novo nesse período é de péssima qualidade, diferente de outras épocas em que a música refletia o que acontecia no Brasil”. Lobão endossa o coro: “Tudo o que foi feito aqui, foi uma porcaria, aliás há muito tempo não vejo uma coisa realmente boa”, afirma o compositor. A primeira década do milênio mostra-se, na música, como uma continuação da década anterior, com os mesmos ritmos e personagens fazendo sucesso. A indústria fonográfica fica cada vez mais combalida com o advento dos meios digitais e as formas de downloads pela internet, somado à pirataria deixam a vendas de CDs praticamente nulas. Os bons artistas continuam aí, expressando sua arte, contado a história do povo, talvez não com tanto destaque, mas com certeza com a criatividade, a inventividade e a capacidade de criticar do brasileiro sempre vai ter alguém por aí fazendo música boa e bem brasileira. Os anos 2000 representaram para o Brasil uma época de crescimento econômico, tranqüilidade democrática e liberdade de expressão. Com a chegada de Lula ao poder, em 2003, o país

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Marco Antonio Gonçalves viu a pobreza diminuir e o Brasil se destacar como uma das principais economias do mundo. O Brasil vai indo de vento em popa. Que bons ventos também soprem a favor da música brasileira.

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Letras de músicas citadas neste livro:

-Retrato do Velho – Haroldo Lobo e Marino Pinto -Saudosa Maloca – Adoniran Barbosa -Chega de Saudade – Vinicius de Moraes e Tom Jobim -Presidente Bossa Nova – Juca Chaves -Marcha da Quarta-Feira de Cinzas – Vinicius de Moraes -Quero que Vá Tudo para o Inferno – Roberto e Erasmo Carlos -Arrastão – Vinicius de Moraes e Edu Lobo - Alegria, Alegria – Caetano Veloso - Pra não dizer que não falei das flores – Geraldo Vandré - Apesar de Você – Chico Buarque - Debaixo dos Caracóis dos Seus Cabelos – Roberto e Erasmo -Comportamento Geral – Gonzaguinha - Acorda, Amor – Julinho da Adelaide e Leonel Paiva - O Bêbado e a Equilibrista – João Bosco - Inútil – Roger Moreira - Coração de Estudante – Milton Nascimento e Wagner Tiso - Geração Coca-Cola – Renato Russo e Fê Lemos - Toda Forma de Poder – Humberto Gessinger

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Marco Antonio Gonçalves

- Zé Ninguém – Álvaro, Bruno, Miguel, Sheik e Coelho - Tô Feliz (Matei o Presidente) – Gabriel O Pensador - Perfeição – Renato Russo

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---Bibliografia-Bibliografia

BLAINEY, Geoffrey. Uma breve história do século XX. Curitiba: Ed. Fundamento, 2009.

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IDEM. Vale Tudo – O Som e a Fúria de Tim Maia. Rio de Janeiro: Objetiva, 2008.

PICCOLI, Edgard. Que Rock é esse? - A História do Rock Brasileiro Contada por Alguns de Seus Ícones. Rio de Janeiro: Editora Globo, 2008.

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