Cobras, Lagartos E Samba
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Cobras, lagartos e samba AUTOR DE CANÇÕES MEMORÁVEIS, PAULO VANZOLINI CONTRIBUIU paRA O DESENVOLVIMENTO CIENTÍFICO oologia e samba, obrigatoriamente nesta ordem. O paulis- tano Paulo Emílio Vanzolini, aos 88 anos, é reconhecido 28 Z pelas suas significativas contribuições culturais, tanto na ciência quanto na música. No mundo científico, o autor de can- CULTURA ções como Volta por cima não tem apenas um extenso currículo. A qualidade de suas contribuições é grande. A ativa participação na criação da FAPESP, que completou 50 anos em 2012, também. Vanzolini é considerado pelos seus pares um grande estu- dioso da história natural, com vastas excursões por todo o país. Sua formação de origem foi a medicina, e não a biologia. Uma das razões para isso foi a pobreza do curso oferecido pela Uni- versidade de São Paulo (USP) no início dos anos 1940 – “uma porcaria”, na opinião sem meias palavras do zoólogo. Ele cursou a Faculdade de Medicina da USP entre 1942 e 1947. Na virada de 1948 para 1949 estava em Boston, nos Esta- dos Unidos, para fazer doutorado na Universidade Harvard. E, de quebra, frequentar bares americanos onde ouvia boa música. Foi André Dreyfus, do grupo pioneiro que criou a USP, chefe do departamento de biologia geral da então Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras e amigo do pai de Vanzolini, quem sugeriu ao estudante: “Vá para a Faculdade de Medicina, onde o curso básico, principalmente o de anatomia, é muito bom”. Vanzolini seguiu o conselho, mas assim que se formou enveredou pela zoologia. O cientista sempre soube que queria estudar bichos, e não gente. Quando voltou dos Estados Unidos, ele mostraria ter uma visão moderna do papel do cientista ao se preocupar com o fi- nanciamento da ciência, mesmo avesso às questões da política Paulo Vanzolini: científica e tecnológica. De acordo com o historiador da ciência carreira como zoólogo e da USP Shozo Motoyama, havia um grande movimento da co- composições nas munidade científica paulista para tentar concretizar a FAPESP horas vagas LÉO RAMOS no final dos anos 1950. “No meu entender, va a sério o seu interesse pela sua área Uma das o papel principal de Vanzolini foi resga- de pesquisa. Em certo momento da car- excursões do pesquisador pelos tar esse movimento dentro do Grupo de reira, antes de se aposentar, em meados rios da região Planejamento do governo Carvalho Pinto dos anos 1990, ele chegou a ter 100% de amazônica 30 e incluir a Fundação entre as prioridades todos os artigos científicos que haviam daquela gestão”, observa o historiador. sido publicados até ali sobre répteis na “Por ordem de Carvalho Pinto, escrevi América do Sul, fossem originais ou fo- a lei de criação da FAPESP”, atesta Van- tocópias. Outros zoólogos demonstraram zolini, integrante do primeiro Conselho reconhecimento pelas contribuições cien- Superior da Fundação. tíficas de Vanzolini ao batizar animais ainda não descritos com seu nome. Hoje utra instituição atrelada à vida de ele dá nome a mais de 10 espécies, uma O Vanzolini é o Museu de Zoologia da delas de macaco, embora sua especialida- USP. Só como diretor foram 31 anos, de de sejam cobras e lagartos (herpetologia). 1962 a 1993. Neste período – e ele sem- Em seus trabalhos originais fica claro pre fala disso cheio de orgulho – o museu que o cientista estava longe de ser um me- passou a contar com uma excepcional co- ro taxonomista. Ele fazia isso com gran- leção de espécies. “É uma das melhores de competência, mas também abordava do mundo”, costuma dizer. Quando o as- a questão ecológica e biogeográfica dos sunto é coleta de animais, não se importa grupos estudados. A chamada teoria dos em parecer politicamente incorreto. “As refúgios, que descreve uma hipótese ain- ONGs que criticam a captura de bichos da bastante aceita de como a diversidade falam bobagem. É claro que não se deve biológica explodiu na Amazônia, é uma caçar animais se não for para aproveitar das contribuições do zoólogo para a ciên- bem ele. No caso, montar uma coleção”, cia. A narrativa de como essa descober- explica. Nas grandes expedições que fazia, ta está perpetuada, por meio de artigos Vanzolini sempre levava para o Museu de científicos, mostra várias características Zoologia os animais novos que encontrava da personalidade do cientista e sambista. para estudo e exposição. “Em 1969 recebi, pelo correio, um O acervo bibliográfico pessoal do cien- exemplar da revista Science para dar um tista, doado à USP, está avaliado em US$ parecer a um trabalho. Quando abri o en- 300 mil e dá uma pista de como ele leva- velope e comecei a ler, falei para o Er- ESPECIAL PRÊMIO CONRADO WESSEL • PESQUISA FAPESP nest Williams, ‘Nos passaram à mesa, conversaram, tomaram algumas a perna’”, relata. O artigo a que cervejas e viraram grandes amigos. ele se referia era do pesquisador Vanzolini se refere ao próprio trabalho VANZOLINI TEVE alemão Jürgen Haffer. A pes- dizendo não ter feito nada pensando no paRTICIpaÇÃO quisa tratava da distribuição de desenvolvimento da ciência, mas apenas aves na Amazônia. A teoria que para ter o prazer de escrever um traba- IMPORTANTE embasava o trabalho era muito lho benfeito. Quando o assunto é música NO MUSEU parecida com as ideias que Van- ele se torna ainda mais comedido. “Não zolini e Williams, colaborador sei se tenho relevância nessa área”, diz. DE ZOOLOGIA americano do zoólogo brasilei- Amigos do compositor como o violonista E NA CRIAÇÃO ro, haviam discutido em outro Paulinho Nogueira, grande companheiro, artigo, que tratava da distribui- costumam brincar com as deficiências DA FAPESP ção ecológica e geográfica de um musicais dele. Certa vez, durante um show grupo de lagartos amazônicos. do qual participavam com Eduardo Gudin, Nas palavras de Haffer, eis Paulinho agradeceu as palmas e disse para o cerne da ideia: “A teoria dos a plateia, “Vocês bateram palmas para a refúgios propõe que as mudanças na ve- única pessoa neste palco que não sabe a getação seguiram reversões climáticas em diferença entre tom maior e tom menor”. virtude dos ciclos naturais durante algum período da história da Terra, causando anzolini confirma que não sabe o a fragmentação dos centros de origem V que é uma nota musical e que “essa das espécies e o isolamento de parte das coisa de ter ouvido treinado” também não respectivas biotas em refúgios ecológi- é com ele. Afirma que apenas gostava de cos separados entre si”. Vanzolini gostou fazer letras, do que desistiu há décadas, das ideias do cientista alemão, morto em principalmente depois da morte do amigo Vanzolini (no centro 2010. “Ernst e eu não propusemos teoria Luís Carlos Paraná, cantor de samba. O da foto à esquerda) nenhuma. Apenas ajudamos a explicar zoólogo era o letrista de suas músicas e em Mato Grosso; na 31 rede, na casa do pai, aquilo que o Haffer havia teorizado”, diz contava sempre com amigos, como Eduar- em São Paulo; e em com franqueza o zoólogo. O brasileiro co- do Gudin e outros, para refinar a melodia. barco em um dos nheceu Haffer quando, informado do tra- Autor de composições conhecidas, co- rios da Amazônia, tomando notas balho sobre o lagarto, o cientista alemão mo Ronda e Pedacinho de céu, e ícone do (fotos sem data) resolveu vir ao Brasil. Eles se sentaram samba paulista, ele gosta de citar outras R A MILI A O F V RQUI A FOTOS pesquisa fapesp • ESPECIAL PRÊMIO CONRADO WESSEL canções menos conhecidas do público fício dos Diários Associados, na em geral. Vanzolini gosta de Capoeira do rua Sete de Abril, no centro de Arnaldo, uma música de tom nordestino: São Paulo. “Lá tinha um barzi- “(...) Quando eu vim da minha terra / Ve- nho que a gente frequentava e O GOSTO ja o que eu deixei pra trás / Cinco noivas depois fechou”, conta o compo- PELA MÚSICA sem marido / Sete crianças sem pai / Doze sitor. “O pintor Rebolo e outros santos sem milagre / Quinze suspiros sem fizeram o Clube dos Artistas e IMPREGNOU ai / Trinta marido contente / Me pergun- Amigos da Arte, mais conhecido O COMPOSITOR tando ‘já vai?’/ E o padre dizendo às beata como clubinho.” De acordo com / ‘Milagre custa, mas sai’ (...)”. Vanzolini, ele começou na rua NA ÉPOCA “É uma das minhas melhores”, acre- Barão de Itapetininga, no fun- DA FACULDADE, dita. A letra surgiu em um ônibus a partir do de uma galeria de pintura, do desafio de um amigo, o artista plástico e depois foi para a boate Oásis, NOS ANOS 1940 e crítico de arte Arnaldo Pedroso Hor- na praça da República, antes de ta. “Carybé, pintor de origem argentina, chegar ao prédio do Instituto era muito meu amigo. Certa vez, aqui em dos Arquitetos do Brasil. “A Ine- São Paulo, ele começou a cantar capoeira zita Barroso dava show quase toda noite no clubinho e no barzinho do museu e o e corria o chapéu. Era um lugar para es- Arnaldo me desafiou dizendo, ‘Você não tar entre a hora do serviço e a do jantar. presta para nada, porque esse gringo che- Depois ainda frequentei o bar Jogral, que gou aqui cheio de capoeira e você nunca era do Paraná.” fez nenhuma’”, conta Vanzolini. No dia O gosto pela música impregnou Van- seguinte, a letra da capoeira, enorme, com zolini na época da Faculdade de Medicina. cinco estrofes e 65 versos, estava pronta. Naquele tempo ele frequentava as rodas O clubinho e o museu aos quais o cien- boêmias da cidade, antes de trabalhar em tista e compositor se refere foram impor- programas musicais na televisão para au- 32 tantes para ele. A primeira sede do Museu mentar a renda. Nesse convívio, surgiu de Arte de São Paulo, o Masp, foi instalada uma amizade fraterna com Sérgio Buar- por Assis Chateaubriand em 1947 no edi- que de Holanda e a mulher dele, Maria MOS A LÉO R FOTOS ESPECIAL PRÊMIO CONRADO WESSEL • PESQUISA FAPESP Vanzolini durante show Amélia.