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A Representação da cidade de em Um Homem de Moral , filme sobre a vida e a obra de Paulo Vanzolini

O filme Um Homem de Moral , dirigido por Ricardo Dias e lançado em 2009, tem como temática principal a vida e a obra de Paulo Vanzolini, nascido na cidade de São Paulo no mês de abril de 1924. O filme aborda, sobretudo, as composições de Paulo Vanzolini, que criou canções com ritmo interiorano, “caipira”, mas que também elaborou músicas de caráter urbano, tendo em vista que ele foi um grande ícone do paulista, juntamente com (1912-1982). O filme foi elaborado com depoimentos leves e divertidos fornecidos por Paulo Vanzolini e seus amigos músicos, com fotos da São Paulo dos anos de 1940 e 1950, com imagens do show em homenagem ao compositor realizado há alguns anos no SESC Vila Mariana 1, com gravações da coleção de CDs Acerto de Contas , por rodas de samba na casa do próprio artista, com fotos pessoais 2 (algumas delas bastante antigas), gravações 3 das atividades cotidianas de Paulo Vanzolini e com imagens da cidade de São Paulo de fins do ano 2000. No filme, os depoimentos foram entrecortados por shows, fotografias antigas, gravação no estúdio – quando da feitura da coleção de CDs Acerto de Contas de Paulo Vanzolini - e imagens mais atuais da cidade de São Paulo e dos paulistanos. O diretor teve que trabalhar com todo esse material de natureza diversa (visual e sonora) de modo que conseguisse contar uma história interessante, coerente e consistente da vida e da obra de Paulo Vanzolini em apenas uma hora e meia. E conseguiu! Nesse sentido, é pertinente lembrar o caráter processual da produção audiovisual. Segundo Rosentone:

...as películas mostram a história como um processo. O mundo audiovisual une elementos que a história escrita separa. Em geral, a história escrita não consegue proporcionar uma visão integral, mas fracionária. É necessário que o leitor faça um esforço para reconstruir as partes. No audiovisual, todos os aspectos do processo estão interligados, imbricados 4.

1 Esse show pôde contar com a apresentação de grandes intérpretes de Paulo Vanzolini, como Ana Bernardo, Márcia e muitos outros. 2 Fotos de família. Retratos de Paulo Vanzolini quando criança, adolescente, e enquanto estudava na Universidade de São Paulo. 3 Algumas dessas imagens gravadas pertenceram originalmente aos documentários Os Calangos do Boiaçu , e No Rio das Amazonas , produções audiovisuais conduzidas pelo mesmo diretor, Ricardo Dias, na década de 1990. Nesses documentários, há a participação de Paulo Vanzolini como cientista (pesquisador, zoólogo). 4 Ver em Cristiane Nova. “Narrativas Históricas e Cinematográficas”. In: NÓVOA, Jorge, FRESSATO, Soleni e FEIGELSON, Kristian (organizadores). Cinematógrafo. Um Olhar sobre a História . Salvador: EDUFBA; São Paulo: Ed. da UNESP, 2009, p. 142.

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O cotidiano de Paulo Vanzolini é algo muito rico e bem abordado no filme. Segundo seu depoimento, ele não teve nenhuma formação musical. Foi um autodidata que aprendeu um pouco de música escutando a programação das rádios. Ele sempre considerou a Zoologia sua verdadeira profissão. Confessou que suas grandes paixões sempre foram a mata e o laboratório; como zoologista, produziu trabalhos de pesquisa na área de herpetologia, foi professor da Universidade de São Paulo e diretor do Museu de Zoologia da mesma universidade por 30 anos, da década de 1960 até o início dos anos 1990. E continuou indo lá, quase que diariamente, mesmo depois de aposentado. Todavia, o árduo trabalho científico não lhe roubou toda energia; Paulo Vanzolini trabalhou palavras e frases com maestria, criando composições clássicas para a música popular brasileira, como Ronda , Volta por Cima , Boca da Noite e Cravo Branco . Grande parte das composições de Vanzolini nasceu entre fins de 1940 e início da década de 1980. Ademais, Vanzolini foi boêmio incorrigível. Dois de seus amigos do Bar Jogral, Luís Carlos Paraná e Marcus Pereira trataram de reunir suas composições, de editá-las, e em 1967 produziram o disco Paulo Vanzolini: Onze e uma Capoeira 5. Fizeram isso porque, segundo depoimento de Paulo Vanzolini no filme, “...[ele] não podia perder muito tempo com as músicas, pois não considerava essa atividade sua profissão...”. Ainda que Paulo Vanzolini não considere as atividades de compositor e músico como a sua verdadeira profissão, ele deixou para a MPB aproximadamente 70 composições. Dessas, cerca de cinquenta e cinco foram organizadas no Acerto de Contas , uma caixa com quatro CDs da sua obra lançados em 2003. Em meados da década de 2000 a sua obra já tinha, portanto, vários registros sonoros: discos produzidos na segunda metade do século passado 6 e a coletânea Acerto de Contas . Mas a feitura de um registro audiovisual do artista e da sua obra, e a transformação desse material em um filme de longa- metragem foi uma ideia perspicaz do diretor Ricardo Dias, pois, sendo a nossa época, indubitavelmente, a do predomínio da imagem 7, o filme é um excelente produto cultural para divulgar a obra de Paulo Vanzolini e para perpetuar o seu legado artístico. E, o compositor, por sua vez, personalidade inteligente, fascinante e carismática, é um ótimo personagem para a temática de um filme. Ele, suas criações artísticas e suas histórias.

5 Ver em Paulo Vanzolini – Coleção Folha Raízes da MPB . Disponível em: http://raizesmpb.folha.com.br/vol- 16.shtml 6 Paulo Vanzolini: Onze Sambas e uma Capoeira , de 1967, e A Música de Paulo Vanzolini , de 1974. 7 Ver em Angel Luis Montón. “O Homem e o Mundo Midiático no Princípio de um Novo Século”. In: NÓVOA, Jorge, FRESSATO, Soleni e FEIGELSON, Kristian (organizadores). Cinematógrafo. Um Olhar sobre a História . Salvador: EDUFBA; São Paulo: Ed. da UNESP, 2009, p. 32.

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Uma palavra esteve muito presente na realização desse filme em praticamente todos os seus aspectos: afetividade. Logo no seu início, temos a imagem e a fala de Vanzolini explicando os motivos para a realização do filme: mostrar o artista, a sua obra e oferecer um tributo à cidade de São Paulo e ao seu povo, principais inspirações para a criação de suas composições. Nesse primeiro instante, portanto, Vanzolini informa o espectador que ama a cidade e que tem uma dívida muito grande com ela. A urbe e os paulistanos são, como veremos mais adiante, temáticas muito presentes no filme. Prosseguindo no aspecto da afetividade, Ricardo Dias conhece Paulo Vanzolini desde criança, pois o seu pai era amigo do artista. Para conseguir as belas e instigantes fotografias da São Paulo dos anos de 1940 e 1950 o diretor recorreu a Thomaz Farkas (1924-2011), grande nome da fotografia paulista e brasileira e seu amigo pessoal. Além do mais, Paulo Vanzolini cantou pouco no filme; ele fez algumas aparições no show do SESC, cantou a música Volta por Cima e cantarolou um pouco nas rodas de samba realizadas em sua residência. Por esse motivo, vários artistas interpretaram suas músicas no filme, muitos deles nomes consagrados da MPB, tais como , , , Miúcha e . Ana Bernardo, Chico Aguiar, Elton Medeiros, Maria Marta e Márcia, entre outros, também marcaram presença no filme, sobretudo Ana Bernardo e Márcia, grandes intérpretes de Paulo Vanzolini. O critério para a escolha dos artistas, segundo Ricardo Dias e o diretor musical Ítalo Peron, partiu do próprio Vanzolini que foi a amizade e a afetividade. A escolha desses artistas consagrados para participarem do filme, também objetivou capturar a atenção dos potenciais espectadores pela afetividade e pela empatia, tendo em vista que nem todos os amantes da MPB conhecem Paulo Vanzolini, mas, certamente, todos conhecem (e muitos adoram) Chico Buarque, Martinho da Vila, Adoniran Barbosa e Paulinho da Viola, nomes que constam na capa/estojo do DVD, ao lado da imagem de Vanzolini. Sobre Adoniran Barbosa, foram inseridas imagens do final dos anos 70’ onde o artista, em um bar (na companhia do grupo musical Demônios da Garoa ), fala de Paulo Vanzolini, da relação entre os temas das suas composições e da amizade que existia entre eles. Ambos trabalharam juntos na Record na década de 1960. A afetividade, a empatia, a atitude de despertar emoções , foram, portanto, aspectos muito importantes para a elaboração e a condução do filme. Nesse sentido, é pertinente lembrarmo-nos de dois teóricos que estudaram o cinema, a história e a relação entre ambos: Rosentone e Raack. Eles consideram que

...assim como a escrita é mais adaptada a expressar melhor determinados elementos e aspectos da história, a exemplo das descrições, das elaborações teóricas, das narrações cronológicas, a

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audiovisual expressa melhor questões como a emoção, os dramas cotidianos, os costumes, o caráter processual e plurissignificativo da história. 8

Nos primeiros minutos do longa-metragem, Paulo Vanzolini afirma que não se trata de um filme sobre sua vida e obra apenas, trata-se também de oferecer um tributo à cidade de São Paulo, pois o artista diz que tem uma dívida muito grande com ela. Nesse aspecto, acreditamos que seria interessante analisar a representação ou as representações da cidade de São Paulo e de seu povo sugeridas no filme Um Homem de Moral . Por representações compreendemos leituras, visões. A cidade de São Paulo que aparece no écran é dinâmica e fervilhante. Os bairros e regiões da cidade que foram incluídos na filmagem são principalmente os do Centro: região da Luz, imediações do mercado municipal, Praça Clóvis, Praça da Sé e imediações, e algumas ruas próximas à estação de metrô São Bento. Podemos pensar que Um Homem de Moral privilegiou as imagens do Centro pelo fato de Paulo Vanzolini ter vivido longos períodos de sua vida nessa região. Depois de se mudar da casa de seus pais, nos anos 40, o artista foi morar bem perto da Praça Clóvis, logradouro que inspirou um samba do mesmo nome. E prosseguiu vivendo na região central por um longo período. Enquanto o filme era realizado, na segunda metade dos anos 2000, o homenageado morava em uma região muito próxima ao Centro, no bairro do Cambuci. Portanto, a sua relação com essa parte de São Paulo, é de afetividade e vivência. No entanto, as imagens do filme nos dizem mais: a câmera não mostra apenas as ruas agitadas e os edifícios do Centro. Ela focaliza, enquanto os sambas são cantados pelos intérpretes, os personagens anônimos da urbe paulistana - os trabalhadores não qualificados que labutam nos comércios do centro ou fazem baldeações nesta região. Portanto, o filme penetra nos salões de cabeleireiro, nos karaokês, nas lojas, nos comércios ambulantes e nos bares, e mostra as pessoas desempenhando suas atividades empregatícias ou comendo algo, tomando uma cerveja, jogando sinuca ou videogame. Os pontos de ônibus cheios de gente também são capturados com frequência pela câmera, sugerindo que na gigantesca e frenética São Paulo, todos ficam em trânsito por pelo menos algum tempo do seu dia. Apreendemos, no decorrer do filme, que Vanzolini sempre se inspirou no cotidiano dos trabalhadores comuns para compor seus sambas. As imagens não se cansam de fazer referência ao presente e ao passado da cidade de São Paulo e de Paulo Vanzolini. O diretor Ricardo Dias, por exemplo, escolheu gravar nas ruas no mês de janeiro, quando a chuva é intermitente, para fazer referência à urbe da garoa dos anos de 1950/60, décadas em que o artista mais compôs. E as constantes imagens das lanchonetes, bares e boates no cair

8 Ver em Cristiane Nova. “Narrativas Históricas e Cinematográficas”. In: NÓVOA, Jorge, FRESSATO, Soleni e FEIGELSON, Kristian (organizadores). Cinematógrafo. Um Olhar sobre a História . Salvador: EDUFBA; São Paulo: Ed. da UNESP, 2009, p. 141.

Anais do XXI Encontro Estadual de História –ANPUH-SP - Campinas, setembro, 2012. 5 da noite dialogam com o lado boêmio que Vanzolini teve outrora. Muitas de suas músicas foram criadas a partir da sua vivência noturna, como foi o caso de Ronda , uma das suas composições mais famosas. Nos últimos 08 minutos do filme os intérpretes que participaram da homenagem ao artista no SESC Vila Mariana sobem ao palco. Paulo Vanzolini os acompanha e, em conjunto – mas com o predomínio da voz grave do homenageado - , eles cantam a memorável música Volta por Cima (gravada pela primeira vez em 1962).

Chorei, não procurei esconder Todos viram, fingiram Pena de mim, não precisava, Ali onde eu chorei Qualquer um chorava Dar a volta por cima eu dei Quero ver quem dava Um homem de moral não fica no chão Nem quer que mulher Venha lhe dar a mão Reconhece a queda e não desanima Levanta, sacode a poeira E dá a volta por cima

Quando eles começam a cantá-la a câmera deixa de mostrar o show e passa para as imagens dos populares na rua cantando a mesma música: por um instante, a câmera focaliza um engraxate trabalhando, logo depois, um time de futebol de bairro e em seguida um motoboy sobre sua moto, passando para um vendedor ambulante ao lado da sua mercadoria e uma mulher em um salão de cabeleireiro. Em seguida, há a focalização de dois homens na periferia de São Paulo jogando sinuca; segundos depois, duas mulheres trabalhando em uma gráfica, um homem tomando uma cerveja, uma moça em uma lanchonete e dois homens dentro de um ônibus em movimento. Todos eles aparentavam ser pessoas muito simples e cantavam Volta por Cima com emoção e desenvoltura. Acreditamos que essas cenas sugerem que não foi apenas Paulo Vanzolini que buscou inspiração no cotidiano dos meios populares, mas que as pessoas comuns também buscaram inspiração nas composições de Vanzolini para prosseguirem com suas vidas. Ou seja, essas cenas afirmam que as composições do artista são queridas e populares, pois estão de boca em boca. Esses minutos finais do filme explicitam, portanto, o sonho de todo compositor da MPB: de que suas canções estejam “na boca do povo”. Além de todas essas informações temos aí uma outra compreensão do porquê da captação de imagens do Centro de São

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Paulo: não é só pelo fato de Paulo Vanzolini viver nele e gostar dele, mas porque é nessa localidade que o povo 9 trabalha e transita. São Paulo é também a cidade da diversidade cultural, pois ao observarmos, no écran , os paulistanos andando nas escadas do metrô, nas ruas, nos comércios e nos bares, percebemos uma multiplicidade de cores e aparências: negros, morenos, brancos, japoneses e coreanos. Traço evidente de uma cidade que recebeu muitos migrantes e imigrantes. Acreditamos que o filme sugere que foram esses trabalhadores anônimos que construíram São Paulo (o poder econômico e a riqueza dela), justamente por suas imagens insistirem com frequência na ligação cidade/trabalhadores. Mas é pertinente lembrarmos que a metrópole paulistana sempre tratou com desdém seus trabalhadores. Desde o início do século passado a cidade foi crescendo rapidamente, mas, segundo Regina Helena Alves da Silva, seu crescimento foi marcado basicamente pelos interesses da especulação do solo e dos imóveis urbanos, acrescentando-se a isso os interesses políticos de determinados administradores públicos 10 . Em fins do século XIX e início do XX, com os planos de reforma urbana implementados em São Paulo a partir do centro da cidade, os pobres, os operários e os trabalhadores não qualificados foram sendo forçadamente deslocados dessa região, indo para o que na época era considerado o subúrbio da cidade: os bairros do Brás, do Ipiranga, do Cambuci, da Mooca, do Bixiga e da Barra Funda. Não podiam mais morar no Centro da Cidade, pois essa localidade passou a ser o “cartão de visita” de São Paulo, uma vez que começou a abrigar o cerne da atividade econômica (e cultural) da cidade e do estado. Por causa disso, teve que expulsar os pobres da sua redondeza 11 . Na segunda metade do século passado os paulistanos viram a migração das grandes atividades econômicas e culturais para a Avenida Paulista e a degradação do centro. A partir de então, os pobres voltaram a habitá-lo, ainda que em condições desumanas, uma vez que este perdeu completamente o esplendor. Todavia, a maior parte dos pobres não teve outra opção senão ir morar “do outro lado da cidade”. Foram empurrados pela especulação imobiliária para viverem precariamente em bairros muito distantes, longes não só do centro da cidade como também dos bairros que concentram empregos e serviços básicos, como saúde, educação e saneamento. A música Seu Barbosa , composta por Paulo Vanzolini na década de 1970, foi feita para gozar de Adoniran Barbosa. Para tanto, Vanzolini procurou imitar um pouco da forma de compor do amigo, cometendo propositalmente alguns erros gramaticais. Mesmo feita em tom de gozação - direcionada a

9 No filme, o “povo” é colocado genericamente como as pessoas de origem simples, sem erudição nem qualificação; indivíduos que exercem trabalhos braçais ou pouco valorizados socialmente e financeiramente. 10 Ver em Regina Helena Alves da Silva. São Paulo. A Invenção da Metrópole. Tese de Doutorado em História Social apresentada à FFLCH/USP. São Paulo: digitado, 1997, p. 45. 11 Idem, pp. 142-145.

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Adoniran Barbosa ou a João Rubinato 12 - sua primeira estrofe sugere uma crítica à especulação imobiliária e às brutais desigualdades sociais, crítica esta que as imagens do filme só fazem intensificar:

Ô Seu Barbosa, nóis era dois casado certo Morando num bairro longe, mas passando ônibus perto Uma vista tão linda, de cima do nosso morro E as crianças precisando de um pronto-socorro – só uma hora dali

A partir do momento em que a música começa a ser cantada no estúdio por Ana Bernardo, as imagens mostram um bairro encravado no morro, com casas mal-acabadas, muitas delas verdadeiros barracos. Se uma chuva forte ocorre naquele local, podemos imaginar que a vila fica tragicamente suscetível ao deslizamento de terra. O bairro em questão é tão distante que há resquícios da mata atlântica. Ainda que o ponto do ônibus seja próximo, e a todo instante vemos transporte público passando pelas ruas (em conformidade com a letra), os outros serviços básicos para a população inexistem – tem um pronto-socorro só depois de uma hora de viagem, como diz a música. Escola, parque e centros culturais? Não aparecem no écran, o que leva o espectador a pensar que eles não existem naquela localidade. A única instituição que reconhecemos é religiosa, uma igreja pentecostal (O Santuário da Oração ). Não há “rastros” da existência do poder público além de algumas ruas asfaltadas. O final da música coincide com um homem pulando de um ônibus num fim de tarde, o que sugere que tudo – emprego, assistência médica etc. – está distante do bairro e que a sina dessas pessoas é a de se tornarem viajantes cotidianas, dentro de sua própria cidade. Mas por causa da sanha da especulação imobiliária, os terrenos daquele bairro são os únicos que a maioria dos trabalhadores brasileiros pode comprar, ainda que muitos deles não sejam legalizados. Na minha dissertação de mestrado realizei uma análise das crônicas humorísticas de Belmonte publicadas no jornal Folha da Noite durante os anos 30’. Um dos aspectos que abordei na minha pesquisa - ainda que este não tenha sido a minha principal temática - foram as críticas que o escritor fez ao crescimento desordenado da cidade de São Paulo, às vantagens da modernização restritas apenas à elite paulistana e aos péssimos serviços de transporte público, luz, água e esgoto prestados à população 13 . Infelizmente, quase oitenta anos se passaram e muitos desses problemas persistem. Nesse sentido, as críticas ainda não podem ser mais amenas.

12 Nome verdadeiro de Adoniran Barbosa. 13 Ver em Sandra Maret Scovenna. Nas Linhas e Entrelinhas do Riso: As crônicas humorísticas de Belmonte (1932- 1935) . Dissertação de Mestrado em História Social apresentada à FFLCH/USP. São Paulo: digitado, 2009, pp. 197- 200. Disponível em: http://www.teses.usp.br/teses/disponiveis/8/8138/tde-09032010-111451/pt-br.php.

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Outro aspecto da cidade de São Paulo abordado no filme é o anonimato das pessoas. A metrópole cresceu muito no decorrer do século XX e as relações se tornaram cada vez mais frias, impessoais. Isso fica evidente através do trabalho da câmera. Enquanto os intérpretes cantam as músicas de Vanzolini ela focaliza por alguns instantes as pessoas que trabalham e transitam com pressa nas ruas, das quais não sabemos o nome, a origem e nem o passado. A câmera é um flâneur que busca silenciosamente, na simplicidade e na dureza do cotidiano, personagens e situações que contribuam para a criação de histórias. Ela é, na verdade, o olhar de Paulo Vanzolini sobre essa cidade gigantesca situada na periferia do sistema econômico mundial; estamos diante de uma metrópole que busca coisificar as pessoas mas que não consegue sufocar por completo a criatividade e o lirismo, rendendo, apesar de tudo, belas composições. Todavia, a impessoalidade e o anonimato persistem no cotidiano da urbe, o que faz com que algumas das letras de Paulo Vanzolini contenham uma certa melancolia. É o sentimento de estar só no mundo e de ser apenas mais um. Trocando em miúdos, as palavras exprimem o desamparo das pessoas. Vejamos a letra de Cravo Branco , composta na década de 1970:

Saiu de casa de terno tropical, Camisa creme, lenço e gravata igual, Jantou e saiu satisfeito, Pra antes da meia-noite, Morrer com um tiro no peito

Ela lhe deu o cravo. O outro se ofendeu, Ele olhou no revólver, Dava tempo e não correu, Dobrou o joelho, desabou no chão, Os olhos redondos, E o cravo branco na mão, Ai, o pobre, caído no chão, De bruços no sangue, Com o cravo branco na mão, Com o cravo branco na mão.

Quem jantou e saiu satisfeito, vestido com um terno tropical? Nada sabemos dele. Sabemos apenas que se trata de uma pessoa do sexo masculino, que chamou a atenção de uma mulher e suscitou

Anais do XXI Encontro Estadual de História –ANPUH-SP - Campinas, setembro, 2012. 9 ciúmes em um outro indivíduo. Este, movido pela fúria, matou o primeiro com um tiro. Sabemos que a história se passou de noite e que o causador do crime foi um singelo presente: um cravo branco. Da mulher que deu o cravo, do homem que jantou e morreu, e daquele que matou não sabemos sequer o nome. São apenas pronomes . Em Ronda , composta, segundo Vanzolini, em 1945, temos novamente o flerte com o anonimato nas noites da grande cidade:

De noite eu rondo a cidade A te procurar sem encontrar No meio de olhares espio em todos os bares Você não está Volto para casa abatida Desencantada da vida O sonho alegria me dá Nele você está Ah, se eu tivesse quem bem me quisesse Esse alguém me diria Desiste, essa busca é inútil Eu não desistia Porém com perfeita paciência Volto a te buscar Hei de encontrar Bebendo com outras mulheres Rolando um dadinho Jogando bilhar E neste dia então Vai dar na primeira edição Cena de sangue num bar Da avenida São João

Novamente, a mulher que procura freneticamente o seu amado não tem nome. Pode ser qualquer uma. Os outros personagens também não são nomeados. Há muitos homens e mulheres nas noites de São Paulo, bebendo e jogando nos bares. No filme, Ronda é interpretada por Márcia após o quarto minuto de seu início e a câmera penetra nos bares simples da cidade focalizando as pessoas com copos na mão. Algumas conversam. São mostrados também as boates e hotéis baratos, sugerindo encontros casuais e, posteriormente, a solidão. No final da música, há o destaque de algumas fotos do

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Centro de São Paulo dos anos de 1940 e 1950, justamente porque logo em seguida Vanzolini explica quando e porque escreveu Ronda .

Temos, portanto, algumas leituras da cidade de São Paulo (e dos paulistanos) suscitadas pelo filme Um Homem de Moral . A urbe, local dinâmico, agitado e agigantado, foi construído principalmente pelos trabalhadores. Os obreiros, nesse caso, são simples e não qualificados, pois, segundo as informações sugeridas pelo filme, foram eles que inspiraram as composições de Paulo Vanzolini e que valorizam e gostam da música do artista. Estabelece-se, portanto, uma ligação entre Vanzolini e o seu suposto público. E é por isso também que há um predomínio de imagens sobre o Centro de São Paulo. Além da questão da afeição do artista por essa região, ela é muito frequentada pelas classes populares. Há, também, uma sugestão de crítica às más condições de vida dos trabalhadores e à especulação imobiliária. O filme e algumas músicas abordam os sentimentos de anonimato e solidão, típicos de quem vive em uma grande cidade. E Paulo Vanzolini conseguiu fazer isso muito bem, tornando-se um cronista das noites de São Paulo. Ainda que o filme apresente a cidade de São Paulo como palco de diversos problemas, ela aparece, ao mesmo tempo, como instigante e amada, pois graças ao seu dinamismo e experiências culturais diversas, incentiva o surgimento de novas ideias e novas histórias, que podem ser musicadas ou não. * * *

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