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GRANDE BRASIL: QUANTOS SERTÕES?

CRISPIM, Regina Marta de Sousa1 (UFG).

As representações do sertão que escrevem um século de história da literatura brasileira, de

1869, ano de lançamento do romance O ermitão de Muquém, escrito por Bernardo

Guimarães, a 1969, data do lançamento póstumo de Estas estórias, de João Guimarães

Rosa, constituem uma tradição literária cujos momentos decisivos podem ser recontados a partir de quatro estórias: O sertanejo, de José de Alencar, Os sertões, de Euclides da

Cunha, Vidas secas, de Graciliano Ramos e Grande sertão: veredas, de Guimarães Rosa.

Cada uma dessas estórias representa tempos da literatura brasileira cuja produção é testemunha de uma relação estreita entre história e literatura.

Embora expressem ambas, e cada uma a seu modo, os problemas próprios de seu tempo, a literatura e a história se orientam, em sua escrita, por princípios específicos, que promovem as diferenças entre suas expressões. Para nos limitarmos à diferenciação clássica entre essas duas formas de representação, lembremos a lição de Aristóteles (2004, p. 47) no ponto em que ela distingue o historiador e o poeta não pelos meios utilizados em sua representação, mas pelo fato de que o primeiro se limita ao relato “dos acontecimentos que de fato sucederam, enquanto o outro fala das coisas que poderiam suceder”, resultando daí, portanto, e na conclusão de Aristóteles, que a obra do poeta seja mais apropriada à expressão filosófica da realidade que investiga, uma vez que busca apreendê-la em sua totalidade, construindo dela uma idéia que se forma não só dos acontecimentos verdadeiros, mas também dos verossímeis, criados pela imaginação.

Essa distinção clássica entre literatura e história é perfeita para compreendermos os modos como os escritores românticos, aqui representados por José de Alencar, se apropriaram de uma região cujas características geográficas, históricas, políticas e econômicas estiveram

1 Bolsista do CNPq. Doutoranda em Estudos literários no Programa de Pós-graduação da Faculdade de letras da Universidade Federal de Goiás. E-mail: [email protected]. 2 sempre presentes nos debates que visam à investigação da realidade brasileira – o sertão – para fazer dela o espaço literário da utopia. Constituindo a identidade de nossa literatura ao mesmo tempo em que buscavam afirmar nas letras a autonomia da nação recém- emancipada, os escritores comprometidos com o projeto de identificar literariamente a nação buscaram nas regiões interiores do país a paisagem, os costumes, a linguagem, as crenças, os tipos humanos, a cultura, enfim, que nos identificasse a partir de caracteres eleitos por nós próprios, em oposição àquela que fora formada no litoral sob influência da cultura européia. Inicia-se, assim, a tradição do sertão na história da literatura brasileira.

Alçado à condição utópica de terra da promissão, paisagem edênica a partir da qual se originaria o Brasil redescoberto pelos brasileiros, esse espaço literário foi, e ainda é, um dos temas que melhor se prestam à discussão das tradições e contradições próprias de nossa formação histórica e cultural.

Essa idéia do sertão como outro lugar, vazio original de onde se projeta nossa própria utopia, de certa forma repete a fantasia engendrada pelo europeu em relação ao novo mundo descoberto. Sobre o equívoco original dessa utopia alheia, Octávio Paz (1972, p.127) esclarece que, ao contrário da Europa, cuja realidade precedeu o nome, a América

“começou por ser uma idéia. Vitória do nominalismo: o nome engendrou a realidade. [...].

Terra da eleição do futuro: antes de ser, a América já sabia como iria ser. [...]. Nosso nome nos condenou a ser o projeto histórico de uma consciência alheia: a européia”. Se o europeu projetava nas terras descobertas a fantasia do paraíso perdido, expressa na exuberância da natureza, na bondade dos povos e na riqueza dos bens a serem explorados, os escritores românticos forjaram, em regiões afastadas da realidade indesejável do litoral, a nossa própria utopia. Voltemos uma vez mais à lição de Aristóteles (2004, p. 47), no ponto em que o filósofo significa a universalização da literatura como conseqüência do oficio do poeta de

“atribuir a alguém idéias e atos que, por necessidade e verossimilhança, a natureza desse alguém exige; [...]”. Se em lugar desse “alguém” pensarmos em “algo”, entenderemos os pontos que tramaram a fantasia romântica do sertão como lugar paradisíaco: considerada a realidade dos sertões brasileiros e compreendido o projeto literário no qual essa realidade 3 se representa como uma utopia própria a se construir sobre uma fantasia alheia, não é difícil perceber o quanto se exigiu do ofício do poeta romântico em termos de imaginação.

Alencar, a quem uns e outros acusam de excesso de imaginação na construção dos espaços e na configuração dos traços dos heróis de seus romances, foi dos que contribuíram para a missão de imaginar no sertão o outro lugar de valores ideais para a tessitura da trama misturada que caracteriza a identidade da cultura brasileira.

O sertão representado por Alencar se situa num tempo distante mais de um século em relação ao tempo da publicação do romance que o retrata, o ano de 1875. Com esse artifício, o autor funda as bases necessárias à realização do projeto que concebe o sertão como a imagem ideal de um Brasil mais brasileiro. Situando as ações e formando as imagens desse lugar num passado distante, o narrador do romance pode falar, com propriedade, das mudanças que redesenham a paisagem, alteram os costumes e interferem nas relações do homem com a natureza e, a partir dessas observações, construir a verossimilhança necessária à comparação entre um lugar original, que é recuperado pela memória, e outro, já alterado pela marcha da civilização, que invadindo as “remotas regiões” sertanejas, adultera-lhes, dia após dia, “a primitiva rudeza, que tamanho encanto lhes infundia” (ALENCAR, 2004, P. 12).

É exatamente esse “encanto” recordado nostalgicamente pelo narrador de O sertanejo, que dá o tom ao retrato do sertão feito por Alencar. Afinados quanto aos critérios a serem seguidos na realização do projeto de nacionalização de nossa literatura, o romancista e o crítico Alencar unem-se na criação de seu romance sertanejo. As idéias apresentadas e discutidas no prefácio a Sonhos d’ouro (ALENCAR, [19..], p. 13-19) são postas em prática na representação do sertão da terra natal do narrador alencariano. Imagens de um passado distante, retidas na memória da infância desse narrador, inspiram o desenho de uma natureza virgem e exuberante, a configuração de personagens impregnados de nobres valores, como o herói Arnaldo, cujo caráter se forma no convívio harmonioso com as forças da natureza. A “cor local”, alterada pela “luz da civilização”; o novo idioma, nascido do desbaste das impurezas e misturas próprias do idioma velho que o originara; a investigação 4 dos usos e costumes de recantos guardiões de uma pureza original de nossa gente; a nova forma do romance brasileiro, as idéias, enfim, que o crítico defende nesse prefácio escrito em 1872 e que (1986) ratifica em seguida, o romancista pratica na composição de O sertanejo, legando para a história da literatura brasileira um dos primeiros retratos do sertão a compor a imagem e contar a história de um Brasil desconhecido dos brasileiros. Outros retratos se juntariam a esse, de Alencar, expressando problemas de outros tempos, denunciando equívocos originais de nossa formação histórica e organizações marginais geradas no seio desses equívocos.

Em 1902, Euclides da Cunha inauguraria com Os sertões um novo tempo de reflexões acerca desse Brasil empurrado para as margens e ignorado pelos poderes oficiais do país.

Nesse retrato, a imagem do sertão não é a de um lugar edênico, embora a sensibilidade do autor não o deixe imune aos encantos da terra sertaneja; nos lances dramáticos que contam a guerra de , não há heróis idealizados como Arnaldo, embora o heroísmo coletivo de um povo que resiste, surpreendentemente, a repetidos ataques de numerosos homens armados não passe despercebido ao estrategista militar Euclides da Cunha; a linguagem que narra a guerra sertaneja não se nutre da poesia que caracteriza o sertão de Alencar, mas da ciência, de cujas teorias o autor se vale para analisar e interpretar as causas que marginalizam o sertão e condenam as “sub-raças sertanejas do Brasil” à rápida extinção. É inegável que há nos sertões de Euclides menos idealização e mais realidade, pautada nos relatos de “acontecimentos que de fato sucederam” e escreveram um importante capítulo da história do Brasil: a guerra de Canudos. Pela clássica definição de Aristóteles, teria Euclides da Cunha criado estória ou feito história ao compor Os sertões?

A investigação da realidade ontológica da obra maior de Euclides tem sido objeto de interesse da crítica literária desde o seu lançamento. Entre as concordâncias e discordâncias relativas à sua classificação, a análise que sobreleva é a que vê a obra como uma fusão entre arte e ciência. Há, entre os muitos estudos que se ocuparam dessa questão, um ensaio de Franklin de Oliveira que, pela minúcia com que trata o problema, não só dá conta do panorama completo das análises literárias que tentaram cunhar a identidade 5 de Os sertões, como também discute cada uma delas, para concluir, baseado numa argumentação muito bem construída, que “Os sertões é ensaio da crítica histórica”

(OLIVEIRA, 1991, p. 321). Não obstante cunhar a identidade histórica da obra, o ensaísta aponta e discute sua dimensão artística, sem a qual o livro “não teria perdurado como documento e, sobretudo, como monumento cultural (OLIVEIRA, 1991, p. 321).

Respeitado o trabalho da crítica em fixar a identidade de Os sertões, parece-nos, que a

“mistura”, que resiste à homogeneização necessária a essa fixação, é não apenas o que melhor caracteriza a obra, mas também o que lhe possibilita a expressão das ambigüidades e dos problemas próprios de seu tempo de gestação, escritura e publicação, o período de transição do final do século XIX e começo do XX. Os fatos históricos que alteraram a realidade brasileira dessa época afetaram de tal modo a sociedade que os intelectuais comprometidos a compreendê-los no contexto de seu tempo foram levados a se munir de informações de várias áreas do saber. Euclides, em resposta à primeira análise crítica de

Os sertões como “o livro de um homem de ciência, um geógrafo, um etnógrafo; de um homem de pensamento, um filósofo, um sociólogo, um historiador; e de um homem de sentimento, um poeta, um romancista, um artista” (VERÍSSIMO, 1977, P.45), é dos primeiros escritores a reconhecer essa necessidade de agregar saberes para formular respostas às questões propostas por seu tempo. Em carta a Veríssimo defende o “consórcio entre ciência e arte” como a “tendência mais elevada do pensamento” e afirma que a poligrafia e a “tecnografia” seriam recursos indispensáveis ao “escritor do futuro”. (CUNHA,

1966, p.620-1).

Analisando as transformações que caracterizam a época vivida por Euclides, e sua conseqüente repercussão nos modos de representação da natureza em dois textos, um do

Romantismo e outro da primeira fase do Modernismo brasileiro, Nicolau Sevcenko (1989, p.

241) afirma que “a forma diferenciada pela qual cada autor se sensibiliza e se comporta diante de um mesmo cenário, glosando um mesmo tema, testemunha uma mudança profunda de quadros mentais traduzida em linguagem literária”. Se não perdermos de vista que a obra de Euclides da Cunha se criou no e a partir do contexto histórico que 6 impulsionou essa “mudança profunda de quadros mentais”, compreenderemos as imagens contraditórias com que o autor fixa o seu retrato dos sertões brasileiros, ora descritos como inferno ora revelados como paraíso, exercendo, em qualquer dessas imagens, um mistura de encantamento e atração, repúdio e negação, contradições que se negam à síntese e que o autor compartilha com o leitor à medida que interroga a realidade dos sertões.

Refletindo a tensão de seu tempo e reproduzindo a clareza exigida pela ciência, a linguagem “tecnográfica” de Euclides ora se afina com as análises minuciosas das causas que originaram os sertões e das conseqüências que os condenam às margens da história, ora causa estranhamento pela extrema simpatia e compaixão com que descreve a luta pela sobrevivência, que iguala plantas, bichos e gentes, oprimidos pelo “martírio secular da terra” e massacrados por tropas enviadas em nome de um governo, de uma instituição e de um povo que ignoram o que condenam à extinção. Em nome desse Brasil desconhecido, o inventor dessa linguagem técnico-científica esmera-se na descrição, na análise e na interpretação das contradições que caracterizam a formação e o desenvolvimento do país.

Lançando mão de saberes os mais diversos, Euclides fez história enquanto narrava a estória da guerra no sertão. Daí se reconhecer na grandeza de Os sertões a força e o valor de uma literatura que, sendo a obra de seu tempo, sobrevive à marcha dos tempos e mantém-se, atualíssima, como testemunha de um triste capítulo da história do Brasil.

O próximo retrato do sertão a representar, neste estudo, um novo capítulo da história da literatura brasileira faz parte dos romances regionalistas da década de 30. Vidas secas, publicado em 1938, pertence à série de romances nordestinos que representaram os sertões como a terra dos miseráveis retirantes, vidas severinas fustigadas pela fome, presas ao ciclo do eterno retorno das secas e condenadas a sofrer suas terríveis conseqüências. O romance de 30 terá como uma das principais tendências a investigação do sertão como meio cujos elementos caracterizadores condicionam o comportamento, as ações e reações do homem nele inserido. Daí se compreende a recorrência do tema da seca e dos seus personagens principais, os retirantes. Esse fenômeno natural, além de traço identificador das regiões do sertão nordestino, é perfeito para a investigação do homem do sertão no seu 7 ambiente natural. Flagrando os sertanejos retirantes nas trilhas poeirentas dos sertões, rotas de fuga onde desempenham o seu papel mais dramático, observando-os nos breves interregnos concedidos pelas terríveis forças da natureza, oprimidos, no entanto, por forças mais poderosas e menos compreensíveis, os romancistas de 30 tiveram sob os olhos o quadro completo da miséria humana, da aflição, do medo, da degradação, da desumanização, enfim, provocada por condições sócio-histórico-econômicas que tornam mais dura a luta pela sobrevivência no sertão.

Embora o foco de interesse dos romancistas de 30 se desloque da terra para o homem sertanejo, não será a essência desse homem o objeto principal da investigação de

Graciliano Ramos em Vidas secas. O que o autor põe em relevo são as relações sociais opressoras entre o homem e o meio e entre os homens observados nesse meio. A expressão dos modos como se estabelecem essas relações exige escolhas, o que torna o escritor uma espécie de representante de seus personagens, cujo perfil, linguagem, ação ou estagnação resultam diretamente dessa escolha. Nesse sentido, as representações literárias são também uma forma de representação política, o que nos leva de volta às relações entre história e literatura. Pensando nas relações entre essas fontes do conhecimento humano, Nicolau Sevcenko (1983, p. 243) afirma que “o ponto de intersecção mais sensível entre a história, a literatura e a sociedade está concentrado evidentemente na figura do escritor”. A afirmação se apoia, naturalmente, no fato de ser o escritor um elo que participa, como agente ou paciente, de cada uma dessas instituições.

Graciliano fez parte de uma sociedade transformada sob o impulso do capitalismo industrial e do alto preço que esse fenômeno cobra pela modernização e o progresso. Como escritor, representou no sertão de Vidas secas o drama vivido pelos que foram marginalizados pelo processo compulsório de desenvolvimento, restando esquecidos num mundo condenado ao atraso, num meio opressivo, condenado pela própria natureza. Como representante desses seres degradados, Graciliano concebe uma família de sertanejos retirantes, descrevendo sua trajetória em função do ciclo das secas. Desse modo, o fim do romance retoma o seu início, com a família de Fabiano e sinhá Vitória novamente nas trilhas batidas e secas do 8 sertão, fugindo da seca que os trouxera às paragens que ora deixavam para trás. O tempo que se interpõe entre e primeira e a segunda fuga é passado numa fazenda onde a família se abriga e onde Fabiano se emprega como vaqueiro. É nas normas que configuram essa relação de trabalho que Graciliano expõe os nervos de um sistema de exploração econômica que degrada e desumaniza os que a ele são submetidos.

Entre os capítulos que compõem o romance, “Contas” talvez seja o que expressa de modo mais explícito a exploração e a degradação que Fabiano sente transformá-lo num ser

“arruinado”. Nesse capítulo, o sertanejo está às voltas com contas cujos resultados ele não entende, mas sente que agravam a condição de dependência e servidão que o prendem ao patrão. Sem conseguir entender as somas que lhe diminuem o pão e lhe multiplicam a miséria, Fabiano “sentia um ódio imenso a qualquer coisa que era ao mesmo tempo a campina seca, o patrão, os soldados e os agentes da prefeitura” (RAMOS, 1996, P. 95).

Diante desse ódio “engrossado” pelas agruras da terra, a ganância do patrão e a violência e covardia dos que representam o poder, a Fabiano não é permitido sequer o consolo da queixa, privilégio reservado ao patrão, diante da insolência do empregado que ousa pôr em dúvida o resultado dos juros e prazos por ele contabilizados.

Não é só para as queixas contra a extorsão do patrão que faltam palavras a Fabiano. A esterilidade da terra sertaneja parece se estender aos sentimentos e à expressão dos seres que a povoam. Os personagens de Vidas secas comunicam-se por gestos e, quando usam a voz, sua linguagem é monossilábica, sai “aos arrancos”, como se relutasse em deixar o abrigo a que acostumou recolher-se. Fabiano não sabe lidar com palavras, mas desconfia do poder delas, tanto que as teme, porque “sempre que os homens sabidos lhe diziam palavras difíceis, ele saía logrado. Sobressaltava-se escutando-as. Evidentemente só serviam para encobrir ladroeiras”. (RAMOS, 1996, P. 96). Porém, quando a voz do personagem se cala, ouve-se alto a voz de seu representante. Como neste trecho em que o narrador projeta o futuro de Fabiano: “Desejaria imaginar o que ia fazer para o futuro. Não ia fazer nada. Matar-se-ia no serviço e moraria numa casa alheia, enquanto o deixassem ficar.

Depois sairia pelo mundo, iria morrer de fome na catinga seca” (RAMOS, 1996, p.98). 9

Se em Vidas secas a miséria dos retirantes sertanejos é denunciada pelo narrador, representante constituído pelo autor Graciliano Ramos, em Grande sertão: veredas os papéis se invertem: quem fala em nome do sertão é um sertanejo e quem se cala e ouve é o homem da cidade, o “doutor” a quem Riobaldo narra as aventuras vividas em companhia dos bandos de jagunços pelos sertões de Minas Gerais, Goiás e e os mistérios da travessia solitária pelos sertões de sua alma, em busca do sentido de sua existência.

Desde a primeira página do romance de Rosa, o sertão se desdobra em uma realidade física, paisagem geográfica e configuração histórica específicas de uma região brasileira; uma realidade cultural, identificada por costumes, crenças, linguagem e ritmo temporal próprios, e uma realidade metafísica, os abismos insondáveis do “homem humano”. Esse sertão que está em toda parte, que é dentro e fora da voz que o narra, só pode ser compreendido em sua totalidade se considerado como o que é – um conceito. É como conceito que o sertão de Rosa sintetiza todos os retratos do sertão que o antecederam e vai além deles, na representação de um sertão símbolo de regiões nunca antes exploradas por seus antecessores. Antes, porém, dos sertões do grande sertão de Rosa, lembremos uma reflexão do autor sobre a relação entre ficção e história, em Tutaméia (1976, p. 3):

A estória não quer ser história. A estória, em rigor, deve ser contra a

História. A estória, às vezes, quer-se um pouco parecida à anedota.

[...]. Não é o chiste rasa coisa ordinária; tanto seja porque escancha

os planos da lógica, propondo-nos realidade superior e dimensões

para mágicos novos sistemas de pensamento.

Com essa reflexão do escritor retomamos o fio da lição primeira, a do filósofo. Em comum com ambas, a afirmação de que a literatura permite-se vôos de imaginação que a distanciam da história, pelo rigor dos métodos desta na investigação da realidade. A postura contrária a esse rigor traduz-se, na obra de Guimarães Rosa numa “absoluta confiança na liberdade de inventar” (CANDIDO, 1991, p. 294). E é exatamente dessa liberdade de inventar que Rosa lança mão para criar o seu grande sertão. Nele, cabem o pacto com o 10 senhor dos infernos e a travessia do Liso, “raso pior havente”; cabem o julgamento de Zé

Bebelo, o idealizador do projeto de um sertão incorporado pelo Brasil civilizado, e o

“sobregoverno” dos coronéis e jagunços; cabem os povos catrumanos, “reperdidos sem salvação” nos ocos do sertão, cabe ainda muita poesia, nos versos da canção de Siruiz, na imensidão do Rio São Francisco, nos olhos de Diadorim, que ensinaram Riobaldo a ver as belezas do sertão; Cabe a experiência maior da vida: a travessia humana rumo ao conhecimento. Cabe, por fim, a síntese das estórias do sertão que escreveram um século de história da Literatura brasileira e contaram momentos decisivos da História do Brasil.

Referências

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CANDIDO, Antonio. O homem dos avessos. In: Afrânio Coutinho (dir.). Guimarães Rosa.

(Coleção fortuna crítica, nº 6). Rio de Janeiro: Civilização brasileira, 1991.

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PAZ, Octávio. Signos em rotação. São Paulo: Perspectiva, 1972.

RAMOS, Graciliano. Vidas secas. Rio de Janeiro/São Paulo: Record, 1996.

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______. Tutaméia: terceiras histórias. 4ª ed. Rio de Janeiro: José Olympio, 1976.

SEVCENKO, Nicolau. História e literatura. In: _____. Literatura como missão: tensões sociais e criação cultural na primeira República. São Paulo: Brasiliense, 1983, p.238-248. 11

VERÍSSIMO, José. Campanha de Canudos. In: _____. Estudos de literatura brasileira. São

Paulo: EDUSP, 1977. p. 45-53.