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Os heróis do ensaio de Euclides da Cunha

Carvalho, Ricardo Souza de

Resumo A partir de menções esparsas que Euclides da Cunha fez ao escritor britânico Thomas Carlyle, entre 1894 e 1903, propõe-se uma concepção do gênero ensaio que orienta as obras Os Sertões e Contrastes e confrontos. Carlyle teria oferecido a Euclides uma representação da História emocionante como a literatura e baseada na figura paradigmática do herói. No entanto, o autor brasileiro modifica essa matriz devido às determinações do meio brasileiro.

Palavras-chave: Euclides da Cunha – Thomas Carlyle – Ensaio – Herói.

Abstract From Euclides da Cunha’s mentions about the British writer Thomas Carlyle, between 1894 and 1903, proposes a discussion about essay genre in the works Rebellion in the Backlands and Contrastes e confrontos. Carlyle would have of- fered to Euclides a representation of the history as literature, based on the paradigmatic figure of the hero. However, the Brazilian author modifies this perspective due to the Brazilian context.

Keywords: Euclides da Cunha – Thomas Carlyle – Essay – Hero.

Ao que se saiba, Euclides da Cunha nunca uti- do Recife”, a exemplo dos livros Ensaios e estudos de lizou a palavra ensaio para designar sua obra em Filosofia e crítica (1875), de e Ensaio prosa não ficcional,Os Sertões (1902) e as coletâne- sobre a Filosofia do Direito (1895), de Silvio Romero. as que reúnem parte de sua produção jornalística, Os títulos geralmente trazem outros termos para re- Contrastes e confrontos (1907) e À margem da His- alizações que podem ser entendidas como ensaio, tória (1909). Essa ausência da denominação ensaio a exemplo dos livros Aspectos da Literatura Colonial não seria exclusividade de Euclides, pois no Brasil Brasileira (1896), de Oliveira Lima, e Escritos e dis- não havia um uso extensivo como na Europa do cursos literários (1901), de . século 19. Tomando apenas os títulos das obras, a Contudo, a fortuna crítica euclidiana tem se palavra estaria circunscrita ao estudo de uma área valido do termo ensaio com certa frequência para mais específica e de viés cientificista, propostos sin- caracterizar textos que transitam entre a literatura e tomaticamente pelos membros da chamada “Escola outros campos do conhecimento, em consonância

145 revistafaac, Bauru, v. 2, n. 2, p. 145-150, out. 2012/mar. 2013. Carvalho, Ricardo Souza de. Os heróis do ensaio de Euclides da Cunha com um gênero variável na forma e nas intenções. primeira coletânea de seus textos jornalísticos, em Além disso, tal abordagem vincula-se mais a uma carta de 31 de dezembro de 1906 ao amigo Escobar: tradição ensaística do pensamento brasileiro, em detrimento das relações dos escritos de Euclides Um editor português (com a mania do suicídio) com uma prática literária que se consolidava na reuniu uns vinte artigos meus, pespegou-lhe o título Europa do século 19. Contrastes e confrontos, pediu um prefácio ao Bruno A imprensa promoveu a expansão do que se – o fantástico Pereira de Sampaio – e arranjou um pode chamar ensaio.1 Como indício de seu reco- livro que dentro de 15 dias aqui chegará. Não será bem um livro – mas agradeço ao Joaquim Leitão nhecimento literário, os ensaios poderiam ser pu- (o tal descabeçado) o pensamento. Tais artigos são blicados em livro, formando uma obra coesa ou uma espécie de filhos naturais do espírito, mais des- uma coletânea. Mas, ao que tudo indica, Euclides cuidados, talvez, porém às vezes dignos do nosso desconfiava da relevância do livro que nascia das amor (Galvão; Galotti, 1997, p.322). páginas efêmeras dos jornais. Em grande parte, os textos produzidos para o jornal representavam para Por um lado, existe um esforço em desqualificar ele uma espécie de esboço para uma obra mais bem uma publicação que não chega a ser um livro e se acabada. Dessa maneira, a série “ (diário eximir de qualquer responsabilidade: os textos são de uma expedição)”, que enviou como correspon- minimizados como “uns vinte artigos” publicados dente de guerra a O Estado de São Paulo, entre agos- por um terceiro longínquo e não confiável. Por ou- to e outubro de 1897, é uma preparação – ou ain- tro, contraditoriamente, Euclides releva a falta do da ensaio – para Os Sertões. Aliás, o próprio jornal “descabeçado” editor português, ao confessar certo anunciara que, além das reportagens, também faria sentimento para com esses “filhos naturais do espí- estudos para “escrever um trabalho de fôlego”, um rito, mais descuidados, talvez, porém às vezes dig- “valioso documento para a história nacional” (An- nos do nosso amor”. Embora não se trate do livro drade, 2002, p.130). Cioso quanto ao impacto que “vingador” e bem planejado de 1902, tal linguagem sua obra de estreia causaria, o escritor apenas se familiar, não usual em Euclides, pode trair uma permitiu divulgar um “Excerto de um livro inédi- ilustre filiação. Na advertência ao Leitor, Michel de to”, em 19 de janeiro de 1898, referente ao capítulo Montaigne, que em 1595 lançara o gênero ensaio re- III da parte O Homem. Talvez a percepção de uma verenciado pelos séculos seguintes, apresentava-se literatura fácil e fragmentária tenha afastado Eucli- sem pretensões: “[...] eu não me propus a nenhum des da divulgação jornalística e do termo ensaio, fim, a não ser doméstico e privado [...] Eu quero preferindo a dignidade do livro inédito, ancorado que me vejam em minha maneira simples, natu- na ciência e na historiografia. ral e ordinária, sem estudo e artifício. [...] Assim, Por esses motivos, não seria de se estranhar um Leitor, sou eu mesmo a matéria de meu livro [...].” aparente desprezo com que Euclides comentou a (Montaigne, 2001, p.53). Tal perspectiva subjetiva da tradição do ensaio pode justificar a inclusão em 1 Alexandre Eulalio (1992, p.50) comentou a inter- Contrastes e confrontos do texto inédito “A Esfinge”, dependência entre ensaísmo e jornalismo no Brasil: que traz a indicação “De um diário da revolta” e a “[...] Sinônimos imperfeitos, articulismo e ensaís- data de 8 de fevereiro de 1894. Em meio ao nar- mo são obrigados a coincidir de todo nas condi- ções do Brasil; [...] Daí a importância das seções rador da história e do analista da política interna- fixas ou da colaboração constante em jornais e re- cional, predominantes nos demais ensaios, surge o vistas, coletadas mais tarde em volume. [...] Muito próprio Euclides aos 28 anos registrando o encon- mais corrente em nossa literatura pode parecer ao tro furtivo na calada da noite com o presidente Flo- primeiro momento, e por isso aceita como irreme- riano Peixoto, quando dirigia as obras de fortifica- diável, o universal da prática fez com que o arti- ção em plena Revolta da Armada, deflagrada no ano culismo de ensaio fosse com o tempo considerado anterior. Em lugar do discurso sobre um momento a forma mesma da expressão do gênero, votando crucial para o regime republicano ao feitio do jor- a uma irrecorrível efemeridade mesmo aquilo que nalista militante, o diário estimula o experimento de mais importante pudesse aparecer debaixo des- sa forma. Sem ter sido o único, Sílvio Romero foi o do narrador que faz as vezes de um ficcionista em ensaísta que de maneira mais veemente se recusou torno da tensão das tarefas em terra firme, da ame- a esse fragmentarismo consagrado, preferindo sec- aça dos navios ancorados na baía mergulhada na cionar, revistas e folhas afora, seus estudos quase escuridão e de suas conjecturas. Não se sabe se “A todos eles de dimensões ponderáveis”. Esfinge” seria a recuperação de um diário da juven-

146 revistafaac, Bauru, v. 2, n. 2, p. 145-150, out. 2012/mar. 2013. Carvalho, Ricardo Souza de. Os heróis do ensaio de Euclides da Cunha tude não preservado, reconstrução da memória ou narrativa: “A História do mundo nada mais é que até mesmo uma interseção dos dois; o que importa a biografia dos grandes homens” (Dosse, 2009, é considerá-la peça seminal para a compreensão do p.163). Muitas vezes, a forma do ensaio, em livres ensaio de Euclides. pinceladas, criava um quadro ou um perfil da per- Ainda no começo, ele expõe o dilema entre as sonagem histórica tomada como um herói superior atribulações da profissão de engenheiro e a dedi- a todos e condutor dos acontecimentos. Ao con- cação às letras, que marcaria sua trajetória. Diante trário do distanciamento entre o autor e seu objeto da mudança das obras de fortificação do morro da exigidos pela história científica, Carlyle ansiava por Saúde para as Docas Nacionais, uma afeição literária uma interpenetração entre as partes: “Não basta jul- o redimiria de uma situação tão adversa às suas in- gar o herói, é preciso também transfundir nele o clinações: “Acompanhei-os; e não esqueci um ado- próprio eu” (Dosse, 2009, p.164). rável companheiro e mestre, Thomas Carlyle, em O autor britânico idealizou uma tipologia de cujas páginas nobremente revolucionárias me pe- heróis em seis categorias representadas por figuras nitencio do uso desta espada inútil, deste heroísmo proeminentes: o herói como divindade (Odin, da à força e desta engenharia mal-traçada...” (Cunha, mitologia e do paganismo escandinavos); profeta 1995, p.200). A menção tão destacada ao escritor (Maomé); poeta (Dante e Shakespeare); predicador britânico Thomas Carlyle (1795-1881) pode expli- (Lutero e John Knox); homem de letras (Rousseau, car alguns parâmetros da obra euclidiana. Johnson e Burns); e soberano (Cromwell e Napo- Muito lido e discutido no século 19, Carlyle, leão). Este último encarnaria um espírito revolu- assim como Euclides, enveredou-se pela prosa não cionário, que reuniria em si as possibilidades da ficcional, mas com estreitos vínculos literários. Na perfeição política: “Que em todos os países encon- melhor tradição de um gênero que nesse momento tremos o homem que, que o elevemos ao patamar tinha a Inglaterra como principal modelo, publicou supremo da nação e que o tratemos com a mais leal inúmeros ensaios sobre os mais variados assuntos deferência: eis o único meio de instaurar um gover- em periódicos como o prestigioso Edinburgh Re- no perfeito” (Dosse, 2009, p.165). view, que depois comporiam uma série de volumes. Ao acreditar na nobre concepção de herói pro- A história é um de seus maiores interesses nos en- posta por Carlyle, o jovem Euclides não a reconhe- saios e em obras de maior fôlego, sendo French Re- ceria em seu entorno, a começar pelo seu “heroísmo volution: a History (1837) uma das mais conhecidas. à força”. E, acima de todos, Floriano Peixoto de- O elogio das “páginas nobremente revolucionárias”, cepcionaria esse ideal. Como se fosse uma aparição feito por Euclides, talvez se refira a esse livro, uma fantasmagórica, o presidente surge sorrateira e ano- vez que a Revolução Francesa estimulara os ideais nimamente apenas no fecho do ensaio. O narrador republicanos de sua poesia de juventude. se fixa em sua fisionomia, cujo desenho esboça em Portanto, em 1894, quando Euclides ainda se traços incisivos um parecer sobre a personagem: “A dividia entre a poesia e os textos jornalísticos como meia penumbra da claridade em bruxuleios, lobri- forma de expressão, a leitura de Carlyle pode ter guei um rosto imóvel, rígido e embaciado, de bron- sido reveladora de uma maneira empolgante e ex- ze; o olhar sem brilho e fixo, coando serenidade pressiva de se escrever sobre o que ocorreu, seme- tremenda, e a boca ligeiramente refegada num ríc- lhante à de um poema épico ou de um romance. tus indefinível – um busto de duende em relevo na Enquanto na Europa, nesse final de século 19, a imprimidura da noite, e diluindo-se no escuro feito história se afastara da literatura para se especializar a visão de um pesadelo.” A derradeira frase reduz a como disciplina legitimada pela ciência, tal recuo alusão mitológica à constatação prosaica: “... e a Es- de Euclides a um escritor anterior à consolidação finge, quebrando a imobilidade da pedra, veste um desse processo indica uma estratégia frente às con- paletot burguês e vem – desconfiadamente confian- dições de produção de conhecimento no Brasil ain- te – rondar os lutadores...” (Cunha, 1995, p.204). da não propícias a essa separação. Além disso, por Dez anos depois, Euclides voltaria a Floriano mais que se encarasse como homem de ciência, não no ensaio “O Marechal de Ferro”, divulgado ini- se livrava de uma sensibilidade romântica que o fa- cialmente em O Estado de São Paulo, e recolhido zia se identificar com autores e obras dos anos de em Contraste e confrontos. Mesmo sem citá-lo di- 1830 e 1840. retamente, Euclides ainda considerava o tipo do A biografia foi o gênero por excelência escolhi- “herói-soberano” de Carlyle. Ao contrário da fama do por Carlyle para combinar a história e a ficção de Floriano em seu tempo, o atributo não lhe cor-

147 revistafaac, Bauru, v. 2, n. 2, p. 145-150, out. 2012/mar. 2013. Carvalho, Ricardo Souza de. Os heróis do ensaio de Euclides da Cunha responderia sob um exame recuado, tornando-se Segundo Euclides, o poeta satírico teria se sobres- uma espécie de “herói negativo”, uma vez que seu saído por ser o fruto mais expressivo de um Brasil crescimento pressupunha a queda do país: em formação:

O herói, que foi um enigma para os seus con- Mais do que o homem, biologicamente falando, temporâneos pela circunstância claríssima de ser Gregório de Matos foi um admirável órgão social um excêntrico entre eles, será para a posteridade um quase passivo, feito uma alavanca, cuja força eram problema insolúvel pela inópia completa de atos que as próprias forças coletivas: uma máquina simples justifiquem tão elevado renome. É um dos raros ca- em que se corporizaram muitas tendências da raça sos de grande homem que não subiu, pelo condensar nova que surgia. Foi “herói” na alta significação no âmbito estreito da vida pessoal as energias dis- dada à palavra pelo dramático Carlyle: prefigurou, persas de um povo. Na nossa translação acelerada fundindo-se na sua individualidade isolada, muitos para o novo regímen ele não foi uma resultante de aspectos de um povo. forças, foi uma componente nova e inesperada que E passou pela vida obedecendo à fatalidade me- torceu por algum tempo os nossos destinos. cânica de uma resultante intorcível: incorrigível, Assim considerado, é expressivo. Traduz de rebelde sempre à visão estreita dos que pensavam modo admirável, ao invés de sua robustez, a nossa morigerá-la, como se houvesse preconceitos ou re- fraqueza. gras para estes avant-coureurs das nacionalidades, O seu valor absoluto e individual reflete na histó- títeres privilegiados, arrebatados pelas leis desco- ria a anomalia algébrica das quantidades negativas: nhecidas da história. Foi um grande sacrificado o cresceu, prodigiosamente, à medida que prodigio- desenvolto folgazão! E maior que os seus êmulos, de samente diminuiu a energia nacional. Subiu, sem se Juvenal a Bocage, a sua sátira, em que pese ao tom elevar – porque se lhe operara em torno uma depres- ferocíssimo e maligno, pertence-lhe menos do que são profunda. Destacou-se à frente de um país, sem às rebeldias nascentes e relaxamentos inevitáveis de avançar – porque era o Brasil quem recuava, aban- uma sociedade em que se chocavam os vícios de um donando o traçado das suas tradições... (Cunha, povo velho, agravados pela “bebedeira tropical” e os 1995, p.129). instintos inferiores de duas raças bárbaras. Desta alquimia horrorosa, tendo como reagen- Euclides, no entanto, vislumbrou no período tes o deslumbramento solar, a canícula mordente e a colonial alguns “heróis” na acepção de Carlyle em terra fecunda, só podia surgir naquela retorta duas figuras antípodas. A primeira delas seria “An- desmedida aquele precipitado. chieta”, matéria do ensaio publicado em O Estado Foi tão natural e espontâneo que ainda não se de São Paulo, em 9 de junho de 1897, por ocasião extinguiu. Difundiu-se em dois séculos, e aí está, das comemorações do quarto centenário da morte impressionante, nesta adorável capadoçagem nacio- nal que atenua em boa hora a nossa melancolia de do jesuíta, e reunido em Contrastes e confrontos. A semibárbaros... (Cunha, 1997, p.155). “missão evangelizadora” com os indígenas faria de Anchieta “síntese de uma época”, uma espécie de Insinuaria Euclides uma categoria brasileira, a “herói-predicador”: um “Grande homem, segundo a do “herói-capadócio”? De todos os modos, uma ou- definição profunda de Carlyle, a sua história abran- tra Bahia, a dos sertões, obrigara Euclides a ampliar ge um largo trecho da nossa própria história nacio- a tipologia dos heróis de Carlyle, a do “herói-pelo nal” (Cunha, 1995, p.145). avesso”. A reportagem de 23 de agosto de 1897 en- Mais tarde, entusiasmado com o “perfil literário” viada a O Estado de São Paulo, como muitas outras, sobre Gregório de Matos escrito por Araripe Junior, configura-se na forma de ensaio para o livro em ges- remontou mais uma vez a Carlyle, à luz das condi- tação. O retrato do líder dos canudenses, Antonio ções do meio brasileiro, trocando a “Providência di- Conselheiro, oscila entre a ojeriza do “monstro” e o vina” pela “fatalidade biológica”. A carta ao amigo, fascínio pelo “herói-profeta” que liderava uma mul- de 12 de março de 1903, expande-se em um ensaio, tidão de fanáticos: cuja forma, mais livre do que os textos publicados, é percebida e interrompida pelo próprio Euclides: [...] “Mas noto a tempo o desgarrão que me desorien- À medida que nos avantajamos no passado apa- ta, escrevendo, rápido, estas linhas, tomando-lhe o recem de um modo altamente expressivo as diversas tempo e expondo aí, desalinhadas e em flagrante, fases da existência desse homem extraordinário – a impressão ou antes uma das impressões que me fases diversas, mas crescentes e sempre numa suces- deixou seu belo livro.” (Cunha, 1997, p.155-156). são harmônica, lógicas nas suas mais bizarras ma-

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nifestações, como períodos sucessivos da evolução Mesmo não sendo a Arábia, Euclides escreveu espantosa de um monstro. um “capítulo fulgurante” sobre Antonio Conselhei- Diante de tudo isto, é singular a teimosia dos ro ao estilo de Carlyle, o capítulo IV da parte “O que de algum modo o querem nobilitar, alteando- Homem” d’Os Sertões. O gênero biográfico delimi- -o ao nível de simples mediocridade agitada ou ta a personagem como súmula de toda uma cole- maníaco imbecil, quase inofensivo – arrancando-o, tividade: “A sua biografia compendia e resume a erguendo-o da profunda depressão em que jaz como homem fatal, tendo diametralmente invertidos to- existência da sociedade sertaneja.” (Cunha, 2001, dos os atributos que caracterizam os verdadeiros p.257). E assim como os heróis positivos de Carly- grandes homens. le, mas no sentido inverso, Antonio Conselheiro ao Tudo é relativo; considerá-lo um fanático vulgar mesmo tempo conduz a todos e é conduzido por é de algum modo enobrecê-lo. uma força maior: A matemática oferece-nos neste sentido uma apreciação perfeita: Antonio Conselheiro não é um O evangelizador surgiu, monstruoso, mas autô- nulo, é ainda menos, tem um valor que aumenta se- nomo. Aquele dominador foi um títere. Agiu passi- gundo o valor absoluto da sua insânia formidável. vo, como uma sombra. Mas esta condensava o obs- Chamei-lhe por isto, em artigo anterior – grande curantismo de três raças. homem pelo avesso. E cresceu tanto que se projetou na História. Gravita para o minimum de uma curva por onde (Cunha, 2001, p.268). passaram todos os grandes aleijões de todas as so- ciedades. Mas está em evidência; não se perde no Parcimonioso em revelar suas fontes, Euclides anonimato da mediocridade coletiva de que nos fala não menciona Carlyle em Os Sertões como fizera Stuart Mill, embora seja inferior ao mais insignifi- nos ensaios esparsos. Contudo, para Joaquim Na- cante dos seres que a constituem. (Cunha, 2000, buco, leitor familiarizado com o ensaio inglês, era p.122-123). fácil detectar a sombra de Carlyle em Euclides. A rejeição d’Os Sertões, externada em carta a Graça Desta vez, as imposições do meio seriam mui- Aranha de 1903, relaciona-se a uma diversa recep- to mais perversas do que no caso de Gregório de ção de Euclides e Nabuco do ensaio inglês do sé- Matos; mas subsistiria em Antonio Conselheiro um culo 19: valor que poderia ter florescido em um ambiente mais favorável: [...] Não é o caso somente de empregar a expres- são tão expressiva Les arbres empêchent de voir la forêt; Além disto, as condições mesológicas nas quais aqui a floresta impede também de ver as árvores. devemos acreditar, excluídos os exageros de Mon- É um imenso cipoal; a pena do escritor parece-me tesquieu e Buckle, firmando um nexo inegável entre mesmo um cipó dos mais rijos e dos mais enrosca- o temperamento moral dos homens e as condições dos. Tudo isso precisa ser arranjado por outro, ou de físicas ambientes, deviam formar, profundamente outra forma. Eu nunca pude me afeiçoar a Carlyle, obscura e bárbara, uma alma que num outro meio e este tinha o gênio por si! Esse livro caberia em talvez vibrasse no lirismo de Savonarala, ou qual- poucas boas páginas. Não fico esperando nada do quer outro místico arrebatado numa idealização que se anuncia. Decerto, talento há nele, e muito, imensa. Porque, afinal, impressiona realmente essa mas o talento, quando não é acompanhado da or- tenacidade inquebrantável e essa escravização a dem necessária para o desenvolver e apresentar, há uma ideia fixa, persistente, constante, nunca aban- alguma coisa em mim que me faz fugir dele. Como donada. lhe digo, falta-me a compreensão do cipoal (Nabuco, Que diferença existe entre ele e os grandes me- 2006, p.527). neurs de peuples de que nos fala a história? Um meio mais resumido e um cenário mais estreito apenas. Nabuco leu com atenção os Ensaios, de Fran- Dominando há tanto tempo, irresistivelmente, as cis Bacon, fundador do gênero entre os britânicos massas que cegamente lhe obedecem, sua influência por volta do final do século 16 e começo do 17. estranha avolumou-se, cresceu sempre numa conti- Uma edição de 1896 em dois volumes que lhe per- nuidade perfeita e veio bater de encontro à civilização. Se recuássemos alguns séculos e o sertão de Ca- tenceu integra hoje o acervo da Fundação Joaquim nudos tivesse a amplitude da Árabia, por que razão Nabuco, em Recife, trazendo destaques e notas em não acreditar que o seu nome pudesse aparecer, alguns ensaios. Vale lembrar que, em 1896, o es- hoje, dentro de um capítulo fulgurante de Thomas critor esteve imerso na realização do monumental Carlyle? (Cunha, 2000, p.123-124). Um estadista do Império e, portanto, a tradição do

149 revistafaac, Bauru, v. 2, n. 2, p. 145-150, out. 2012/mar. 2013. Carvalho, Ricardo Souza de. Os heróis do ensaio de Euclides da Cunha ensaio de Bacon pode ter lhe inspirado, entre ou- na sua principal obra, The History of England (1848- tros. No século 19, o grande modelo de Nabuco 1861), uma das bases dos retratos do pai de Na- foi Thomas Macaulay (1800-1859), enaltecido em buco e dos outros estadistas do Segundo Reinado, Minha formação: “A frase, a eloquência, o retrato e culminando no de D. Pedro II. Por consequência, a encenação histórica de Macaulay foram também os políticos brasileiros são tratados com a mesma uma influência permanente que se imprimiu em deferência de Macaulay pela Monarquia Britânica. meu espírito;” (Nabuco, 2012, p.87-88). Por isso, Já Euclides, como se viu, preferiu o herói na forma ao condenar o estilo d’Os Sertões, Nabuco, de certa vibrante de Carlyle, mas adaptada às determinações forma, estaria opondo Carlyle a Macaulay: de um – ou melhor, imperfeições – do meio brasileiro. O lado, a “frase” e a “eloquência”, entendidas como ensaio entre a reflexão histórica e a ficção literária exemplares; de outro, a linguagem cerrada e retor- de Os Sertões e Contrastes e confrontos constituem cida à maneira de um “imenso cipoal” que compro- uma “galeria subterrânea” da história brasileira: meteria tanto o objeto quanto o talento. assim, haveria o “herói-capadócio” Gregório de O “retrato” de Macaulay alude à reconstituição Matos, o “herói-negativo” Floriano Peixoto ou o dignificante das figuras políticas em seus ensaios e “herói-ao avesso” Antonio Conselheiro.

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Ricardo Souza de Carvalho é professor do Departamento de Letras Clássicas e Vernáculas da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH) da Universidade de São Paulo (USP), atuando no Programa de Literatura Brasileira (FFLCH). E-mail: .

Recebido para avaliação em março de 2013. Aprovado para publicação em abril de 2013.

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