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Leia nesta edição Editorial pg. 2

Tema de capa Entrevistas JeanJean----ClaudeClaude Monod: Paulo e a fé como loucura, ruptura e escândalo pg. 3 Rémi Brague: A crise do Cristianismo e da Modernidade pg. 11 Hartwig Bischof: A utopia política de Paulo pg. 17 Emilio BritoBrito:: Nietzsche, Paulo e o Cristianismo pg. 20 Júlio ZabatieroZabatiero:: Paulo e Lutero pg. 24 Álvaro VallsValls:: Paulo e Kierkegaard pg. 27

Brasil em Foco Fernando Cardim Carvalho: As conseqüências de governar para o mercado pg. 34

Destaques da semana

Entrevistas da Semana: Alain Touraine: A crise social francesa pg. 38 Emmanuel Todd: França. Pocesso de deslegitimação da elite pg. 40 Richard Sennett: “A França na pré-estréia” pg. 42 Axel Honneth: “O CPE ataca as expectativas de reconhecimento do trabalhador” pg. 43

Filme da Semana: A máquina pg. 46 Gilmar Hermes: Por que o filme se chama A Máquina ? pg. 47

Teologia Pública: Luiz Carlos Susin: Fórum Mundial de Teologia e Libertação pg. 48 Paul Alexander Schweitzer: A relação entre fé e ciência pg. 53

IHU em revista Eventos pg. 58 IHU Repórter pg. 68 Sala de Leitura pg. 70 Errata pg. 71

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Paulo de Tarso e a contemporaneidade

Editorial

Paulo de Tarso, para surpresa de muitos, é relido, hoje, por filósofos como Alain Badiou, Giorgio Agamben, Jacob Taubes, Jean-François Lyotard e Slavoj Zizek. O universalismo e a singularidade, o lugar do dom e da sua gratuidade, a substituição da sabedoria pela loucura, entre outros, são aspectos desse debate que supera qualquer confessionalidade.

Neste tempo de Páscoa, convidamos alguns intelectuais a discutirem o legado de Paulo à luz da contemporaneidade. Jean-Claude Monod, Rémi Brague e Hartwig Bischof, entre outros, nos auxiliam a compreender a contribuição de Paulo para a formulação do projeto moderno.

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As imponentes manifestações dos jovens franceses contra a reforma trabalhista suscita muitas questões e interrogações sobre o seu significado. A página web do IHU (www..br/ihu) publica entrevistas de analistas sociais como Alain Touraine, Alex Honneth, Richard Sennett e Emmanuel Todd. Este material reunimos nesta edição para consulta e discussão.

Fernando Cardim de Carvalho, economista da UFRJ, analisa a política econômica do governo Lula, comparando-a com a do governo FHC. Enquanto Flávio Comim, professor de economia da UFRGS, refletindo sobre a obra de Amartya Sen, é categórico: "Temos hoje no Brasil economistas ortodoxos e heterodoxos que rezam pela mesma cartilha, dado que estão todos interessados apenas na promoção do crescimento econômico".

As entrevistas com o matemático Paul Schweitzer, novo membro da Academia Brasileira de Ciências e o teólogo Luiz Carlos Susin, abordam problemas relacionados com a teologia pública.

A todas e todos uma ótima leitura e uma FELIZ PÁSCOA!

Paulo e a fé como loucura, ruptura e escândalo Entrevista com Jean-Claude Monod

O filósofo Jean-Claude Monod é pesquisador em filosofia alemã pós-hegeliana, filosofia política, filosofia contemporânea e ciências humanas nos Arquivos Husserl, de Paris, no Centre National de la Recherche Scientifique (CNRS), École Normale Supérieure. De sua vasta lista de publicações, citamos: La querelle de la sécularisation. De Hegel à Blumenberg . Paris: Vrin, 2002, 320 p. Confira a entrevista que o filósofo concedeu por e-mail à IHU On-On -Line.--Line.

IHU On-Line - Quais foram as centrando a fé cristã em “o evento” da contribuições mais importantes de Cruz e da Ressurreição, uma morte que Paulo ao cristianismo de sua época? deve dar vida, e dando a esta revelação o Como seria o cristianismo sem Paulo? sentido de um acontecimento universal, Jean-Claude Monod - É difícil falar de que deve, portanto, ser levado a todas as “contribuição” de Paulo ao “cristianismo nações. Este apelo a um “Israel Universal” de sua época”: em certo sentido, Paulo , por nascer, implicava em uma contribui para forjar o cristianismo, demarcação em face do antigo Israel e de

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sua revelação particular, como das dissociação do espírito que “vê” (o bem) e religiões “pagãs” do império romano: da vontade carnal que “faz” (o mal): todos Paulo desenvolve um discurso violento, esses temas, tornados clássicos, são outras antitético, que marca tudo o que opõe o tantas contribuições paulinas ao “cristianismo” nascente às formas de pensamento cristão. pensamento greco-helenísticas antigas (filosóficas e religiosas), como à estirpe IHU On-Line- Como seria o judaica da qual ele mesmo saiu. Assim, cristianismo sem Paulo? ele “teoriza” a ruptura, o escândalo, a fé Jean-Claude Monod- Imaginar o como “loucura”, se vista de fora, mas cristianismo sem Paulo é uma capaz, todavia, em Paulo, de argumentar experiência de pensamento igualmente em seu favor e de se defender com um difícil, mas interessante, que foi tentada discurso misto. Este discurso é feito, de por diversas vezes: pode-se sugerir que, um lado, do anúncio do acontecimento e sem Paulo, o cristianismo não teria sido da necessidade de formar comunidades pensado de um modo separado, ele teria de fé na espera escatológica da volta do permanecido uma variante, uma seita (no Cristo, e, de outro lado, de uma sentido de Troeltsch 2) entre outros argumentação constante, polêmica, irada, movimentos judeus messiânicos. Certas que visa fazer entender a subversão da leituras contemporâneas, como a do existência atingida pela fé, que a própria filósofo francês de proveniência marxista, “reviravolta” de Paulo exemplifica (o Alain Badiou 3, insistem nesta “verdade” perseguidor dos cristãos se tornando o que o afetou pessoalmente com um missionário por excelência). acontecimento singular, mas que ele considerou dever ser levado a todas as Pensamento paulino pessoas, homens e mulheres, judeus e A insistência na ressurreição do Cristo e na ressurreição dos corpos, a dialética da 2 Ernst Troeltsch (1865 -1923): Teólogo, historiador e Lei e do pecado (não sendo o pecado filósofo alemão nasceu em 17 de fevereiro, em conhecido a não ser pela lei, e devendo a Augsburg. Aos 19 anos, inicia-se nos estudos lei ser abolida ou “desativada”, como diz teológicos. Como era comum naquela época, Agamben 1, pela fé que “salva” todos os realizou-os em três diferentes universidades: Erlangen, Berlim e Göttingen. Troeltsch associou-se a pecadores que nós “todos” somos), a um grupo que viria a se tornar conhecido como justificação pela fé, antes do que pelas “escola da história da religião”. Com apenas 27 obras (“onde está, então, o direito de se anos, é nomeado professor na Universidade de glorificar? Ele está excluído. Por que Bonn. No ano seguinte, transfere-se para Heidelberg, universidade em que trabalhavam gênero de lei? Aquela das obras? Não, por alguns dos maiores nomes da ciência alemã. Vindo uma lei de fé” (Rom, 3, 27), o carisma do de Freiburg em 1897, o sociólogo Max Weber passa Espírito que “vivifica” lá onde a letra a fazer parte de seu círculo. As famílias de Troeltsch “mata”, a interpretação do corpo como e Weber tornam-se íntimas a ponto de morar por algum tempo na mesma casa. (Nota da IHU OnOn----LineLine ) “templo”, o tema de um combate interior

entre a carne e o espírito, de uma 3 AlaAlaAlain Ala in Badiou (1937): Alain Badiou, filósofo, dramaturgo e romancista, leciona filosofia na Universidade de Paris-VII Vincennes e no Collège 1 Giorgio Agamben (1942): Nasceu em Roma. International de Philosophie. Ele é autor, entre Participou no seminário que Heidegger dirigiu em muitos outros, do livro Saint Paul. La fondation de Le Thor, em 1968, e é o responsável pela edição da l’universalisme . Paris: PUF, 1997. O livro foi várias Einaudi das obras completas de Walter Benjamin. Já reeditado na França e traduzido em diferentes conta com uma extensa listagem de publicações línguas como o inglês e o italiano. (Nota do IHU OnOn---- dentro do género ensaístico. (Nota da IHU OnOn----LineLine ) Line )))

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gregos, etc., instituindo, assim, uma forma Jean-Claude Monod- Esta é uma questão de universalismo novo, uma Igreja sem muito controversa, com base na famosa precedente. O cristianismo sem Paulo passagem de Romanos, 13, 1: “obedecei teria tido esta capacidade de se fazer às pessoas de poder, pois todo poder vem Igreja “mundial”? É uma questão a ser de Deus”. Estas linhas terão servido a levantada. todos, sobretudo para justificar uma cultura da obediência, da autoridade, por A visão de Nietzsche vezes até a desqualificação de toda De seu lado, Nietzsche 4estimava que capacidade de resistência. O próprio Paulo é amplamente aquele que inicia Lutero se apóia nestas passagens, quando um movimento de deturpação do ele apela à mais feroz repressão contra a ensinamento do Cristo, para fazer o revolta dos cidadãos alemães, por ocasião contrário do que este preconizava: um da “guerra dos camponeses”. Entretanto, começo de dogma em lugar de uma há uma outra tradição de leitura, atitude de vida, uma doutrina em lugar notavelmente ilustrada por Karl Barth 5 de uma ética, um ódio da sexualidade em em seu célebre comentário da epístola lugar de uma indiferença benigna (a aos Romanos, que insiste em dois fatos: mulher adúltera) etc. Nietzsche, no fundo, de uma parte, todo o texto se baseia imputa a Paulo a introdução de uma numa distinção entre o interior e o teologia do ressentimento no exterior, o essencial e o não-essencial, e cristianismo, quando Jesus teria numa “reserva” que faz o cristão trabalhado para a destruição do obedecer “em consciência”. De outra ressentimento, numa ruptura com o parte, é preciso estar atento ao contexto judaísmo e sua lógica do talião. Mas de sua passagem, ao que o enquadra, ou pode-se perguntar se Nietzsche não é seja, à questão que encerra o capítulo 12: vítima, ele próprio, então, de uma forma “como vencer o mal?”. A resposta, numa de ressentimento em face de Paulo e do palavra, é que não se deve procurar judaísmo, que se tornam os responsáveis vencê-lo em seu próprio terreno, por seus bem longínquos dos males da cultura meios, e isso visa, em suma,a todos os cristã de seu tempo. meios exteriores, políticos, a guerra, a resistência violenta à força, a sedição, etc. IHU On-Line- Que relações podemos É preciso vencer o mal pelo bem. estabelecer em Paulo entre religião e política? A interpretação de Barth Para Barth, há uma formidável relativização das autoridades temporais, dos poderes estabelecidos, aos quais se 4 Friedrich Nietzsche (1844-1900): filósofo alemão, conhecido por seus polêmicos conceitos “além-do- deve, sem dúvida, pagar o imposto, homem”, transvaloração dos valores, niilismo, obedecer etc., mas, para preservar o vontade de poder e eterno retorno. Entre suas obras essencial: de uma parte, o aguardo da figuram como as mais importantes Assim Falou salvação e da segunda vinda do Cristo, ZaratustraZaratustra. 9. ed. : Civilização Brasileira, 1998 ; O AnticristoAnticristo. Lisboa: Guimarães, em glória, pensada por Paulo como 1916; A Genealogia da Moral. 5. ed. São Paulo: iminente; de outra parte, o amor, de que Centauro, 2004 . Escreveu até 1888, quando foi acometido por um colapso nervoso que nunca o abandonou, até o dia de sua morte. A Nietzsche foi 5 Karl Barth (1886-1968): De 1911 a 1921 foi pastor. dedicado o tema de capa da edição número 127 da Mais tarde foi professor de Teologia em Bonn, na IHU OnOn----LineLine , de 13 de dezembro de 2004. (Nota da Alemanha. Escreveu entre outros livros: Introdução IHU OnOn----LineLineLine) à Teologia Evangélica , São Leopoldo, RS: Sinodal, 1981. (Nota do IHU On-Line )))

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se é devedor sem medida. Há, pois, uma subordinada a uma ordem mais essencial recusa de que o objeto da fé seja que deve ser observada sem medida. misturado às lutas políticas, que as lutas sociais ou as guerras sejam conduzidas IHU On-Line - De que forma o em nome de Deus etc. (Barth reagia, pensamento paulino sofreu assim, notadamente ao “Gott mit uns”, transformações em seu contato com o “Deus conosco”, gravado no capacete dos Ocidente? soldados alemães, durante a Primeira Jean-Claude Monod - Todos os Guerra mundial. Não, Deus não está comentadores sublinharam o encontro e “com” ninguém na guerra, ele é o a tensão dos discursos em Paulo, ou seja, “totalmente Outro” em relação aos a confrontação entre uma retórica grega, negócios mundanos, estima Barth, nutrida notadamente pela tradição da fazendo eco a Paulo). diatribe e da prática das antíteses polêmicas, uma inscrição no império A despolitização política de Paulo romano que relaciona povos distintos e Esta despolitização, porém, era ela seus múltiplos deuses sob a égide de uma própria política, nacional, nacionalista do única lei, e um messianismo judeu cristianismo (como Barth notará ainda, subvertido pelo anúncio da vinda, da opondo-se aos “Cristãos Alemães” ligados morte e da Ressurreição do “rei dos a Hitler). Esta dimensão comunica, então, judeus”. Pode-se dizer que Paulo funde com a dimensão mais freqüentemente numa só essas tradições culturais, mas, designada como a essencial contribuição também que ele as faz todas explodir: ele de Paulo: a proclamação do universal, fala a língua grega dos filósofos para que tem inevitavelmente um alcance sublinhar o abismo entre a “sabedoria do político em sua própria recusa das mundo” (a filosofia) e a “loucura” da divisões e das fronteiras políticas e Cruz; ele fala a língua do evento sociais. “Não há mais nem judeu nem messiânico, mas para “escandalizar” os gentio, nem homem nem mulher, nem judeus pelo anúncio da morte do Cristo e escravo nem homem livre.” Paulo é tudo de seu retorno próximo, ele reverte as isso ao mesmo tempo e, forças de todas essas línguas contra elas contraditoriamente: um risco de mesmas. A principal característica absolutização da obediência, uma retirada do contato com as estratégias relativização da política, uma abertura ao argumentativas “ocidentais”, grega e universal, uma recordação da origem latina, é precisamente esta capacidade de divina de toda instituição que pode dar a entender o inaudito e o desembocar no conservadorismo puro, inconcebível pelas antíteses e pelos mas que pode, também, ser paradoxos, a constituição de uma teologia compreendida de modo escatológico, cristã – por vozes se disse de Paulo que quase revolucionário, como Jacob ele era, falando em sentido próprio, um Taubes 6 sugeriu – toda ordem política é primeiro teólogo cristão, o primeiro a fazer falar o cristianismo na língua filosófica grega, para fazer resultar uma 6 Jacob TaTaubesubes (1923 - 1987): Taubes foi sociólogo da religião, filósofo e especialista em judaísmo. Taubes antifilosofia, uma anti-sabedoria, que nasceu dentro de uma antiga família de rabinos. Ele seria mais que a sabedoria, numa palavra obteve seu título de doutor em 1946 com a tese Abendländische Eschatologie e inicialmente ensinou estudos religiosos e estudos judeus nos Estados Theologie des Paulus. Vorträge gehalten an der Unidos. A partir de 1965 foi Professor de Estudos Forschungsstätte der evangelischen Judeus e Hermenêuticos da Universidade Livre de Studiengemeinschaft in Heidelberg , 23.-27. Februar Berlim. Ele é autor da importante obra Die politische 1987. (Nota da IHU OnOn----LineLine )

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fulgurante, mas que denuncia a letra para igualmente, que a democracia moderna, glorificar o espírito. se ela herdou um conteúdo “cristão” secularizado pela idéia dos direitos do IHU On-Line - Podemos afirmar que a homem, também implicou desencadear modernidade surgiu de um princípio de construção do fundamentalmente do cristianismo e coletivo na única base da razão – que o pensamento de Paulo tem um lembremos, por exemplo, que Grotius lugar fundamental na geração de constrói uma teoria do pacto social que todo o estilo de vida moderna? deve ser válido, “mesmo se Deus não Jean-Claude Monod - Eu não penso que existe”. se possa afirmar simplesmente que a modernidade saiu do cristianismo, Obediência fundada na autonomia mesmo se toda uma tradição filosófica e O lugar de Paulo é tipicamente teológica o sustentam, a começar por “universalista” (“não há mais nem judeu, Hegel: nos princípios da filosofia do nem gentio, nem grego, nem bárbaro, direito, o “princípio moderno” de nem homem, nem mulher...”) segundo a afirmação dos “direitos infinitos da lógica universalista da modernidade subjetividade”, tal como ele se realizaria (cosmo)política, ou segundo a no Estado de direito pós-revolucionário, é mundialização que Derrida 8 chamava, diretamente relacionado por Hegel ao com uma ponta de humor, a “princípio cristão”, afirmado “mundialatinização”. Entretanto, de um abstratamente pelo Cristo, do valor outro lado, é em parte contra a temática infinito de cada individualidade, e da “paulina” da obediência devida às igualdade de todos “em Deus”. Neste autoridades (o “todo o poder provém de sentido muito genérico, pode-se pensar Deus”) que a filosofia política moderna evidentemente que o cristianismo tentou construir uma idéia da obediência contribuiu para moldar o Ocidente fundada na autonomia (Rousseau 9, no moderno e é um dos componentes do Contrato Social, toma explicitamente por “conteúdo normativo da modernidade”, alvo o “todo poder provém de Deus”... como diz Habermas. Entretanto, as teses toda doença também, acrescentará ele, e demasiado “continuístas” me parecem ser será por isso que eu deva deixá-la carentes dos acontecimentos irredutíveis ao autodesenrolar de uma “lógica” cristã: 7 como o sublinhou Hans Blumenberg 8 Sobre o autor a IHU On-Line entrevistou o filósofo (em Die Legitimität der Neuzeit [A e professor da PUC-Rio, Rafael Haddock-Lobo na legitimidade da modernidade], uma obra edição 168 e o psicanalista e professor do curso de Psicologia da Unisinos, Charles Lang, na edição 150. traduzida para o inglês e para o francês), (Nota da IHU OnOn----LineLine ) não se daria conta da modernidade sem 9 Jean Jacques Rousseau (1712-1778): Filósofo franco- evocar, por exemplo, a reabilitação, suíço, escritor, teórico político e um compositor parcialmente anticristã, da curiosidade musical autodidata nascido em Genebra. Uma das teórica que preparou a revolução figuras marcantes do Iluminismo francês, Rousseau é também um precursor do romantismo. As idéias científica moderna; pode-se dizer, iluministas de Rousseau, Montesquieu e Diderot, que defendiam a igualdade de todos perante a lei, a tolerância religiosa e a livre expressão do 7 Hans Blumenberg (1920-1996) : A obra Die pensamento, influenciaram a Revolução Francesa. Legitimät der Neuzeit é de 1966 e foi Contra a sociedade de ordens e de privilégios do sucessivamente reeditada pela Suhrkamp Verlag. Ela Antigo Regime, os iluministas sugeriam um governo foi traduzida, em 1999, para o francês sob o título La monárquico ou republicano, constitucional e légitimité des Temps ModernesModernes. (Nota do IHU OnOn---- parlamentar. (Nota da IHU OnOn----LineLine ). Line )))

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prosperar em meu organismo?). A notadamente pelo cristianismo. A determinação mais profunda que tenha modernidade não me parece deixado Paulo sobre nossos estilos de intrinsecamente “niilista”, ela tem vida é, sem dúvida, através da Igreja, sua recursos internos de sentido e de concepção das relações entre os sexos, da contestação das dominações que ela qual o mínimo que se possa dizer é que engendra, embora exista um risco de ela não é tipicamente “moderna”. niilismo e de cinismo remanescentes nas condições criadas pela economia IHU On-Line- Como se encontra o industrial capitalista mundial. Max Weber cristianismo no Ocidente diante da falava do capitalismo como da crise da modernidade? “dominação mundial da não- Jean-Claude Monod- É uma questão fraternidade”, e ele via nisto um fruto demasiado ampla para mim. Seria preciso incognoscível do calvinismo puritano, em definir o que se entende por “crise da oposição completa com a ética original modernidade”. Trata-se da crise dum da fraternidade evangélica e sua programa de controle da natureza pela orientação “antieconômica” inicial. ciência e pela técnica? Do fracasso duma Parece-me que o cristianismo pode e perspectiva de emancipação dos deve continuar a fazer escutar a voz dominados, ou de construção duma obstinada, “desatualizada”, desta ética da humanidade pacificada? Certos aspectos fraternidade e de sua oposição à deste programa me parecem sempre exaltação do único “sucesso” do “poder” atuais, mas, é claro que uma forma de econômico (ou de outro poder), e pode e progressismo confiante no “movimento deve sempre pleitear pelos “últimos”, real das coisas”, como dizia Marx, hoje esquecidos ou vítimas de uma forma de não vem mais ao caso. Há crise do futuro, modernidade que tende a glorificar e crise da “legitimação para o futuro”, que unicamente o sucesso material. era uma instância da modernidade. De onde, de um lado, há um interesse IHU On-Line- Quais são os principais renovado por formas de pensamento que problemas e controvérsias da querela o progressismo tendia a apresentar como da secularização? “passadas” e ultrapassadas, quer se Jean-Claude Monod - O livro ao qual tratasse de tradições não-ocidentais ou de você faz alusão, A querela da religiões, entre as quais o cristianismo, secularização 10 , que saiu nas edições Vrin, em relação às quais se vê bem que elas na coleção “Problemas e controvérsias”, ainda suscitam imensas adesões e que trata, de fato, amplamente da questão elas fornecem recursos de sentido, de colocada logo abaixo, sobre as relações interpretação e de orientação no mundo, entre cristianismo e modernidade, em em particular no plano ético. particular aqueles que foram abordados pela filosofia alemã, de Hegel a A modernidade não esgotou suas Blumenberg, passando por Marx, promessas Nietzsche, Max Weber, Karl Löwith 11 ou Entretanto, eu não compartilho da idéia, correntemente avançada, que a 10 O livro, no original francês, tem o título : La modernidade teria esgotado suas querelle de la sécularisation. De Hegel a promessas e que, na situação “pós- BluBluBlumenbergBlu menbergmenberg. Paris : 2002. (Nota do IHU OnOn----LineLine ) moderna” em que nós viveríamos, os 11 Karl Löwith (1897-1973): Karl Löwith nasceu em únicos recursos de sentido disponíveis Munique e foi um filósofo alemão-judeu e estudante da Heidelberg. Deixou a Alemanha durante o seriam aqueles fornecidos pelas religiões, nazismo e retornou em 1952 como professor da filosofia da Heidelberg, (Nota da IHU OnOn----LineLine )

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Carl Schmitt 12 . A “querela” conduz para a “proveniência” cristã, como o cuidado questão de saber se é possível estimar dos fracos, a igualdade reconhecida entre que os tempos modernos são uma época todos os homens...; inversamente, a de ruptura com o cristianismo, ou se eles secularização-transferência pode operam antes uma retomada e uma produzir uma percepção radicalmente transformação dos esquemas, dos ideais, antimoderna e antiliberal da história, que dos valores, dos conceitos cristãos. acaba por diabolizar tudo o que afasta os Podem se discernir dali duas grandes tempos modernos de uma sociedade interpretações da secularização: uma, que unificada sob uma Igreja. nela vê uma ruptura com a religião e uma refundação da sociedade sobre uma IHU On-Line- O senhor escreveu um base racional e secular, e cujo horizonte artigo com o título Destino do pode ser uma sociedade inteiramente paulinismo político: Barth, Schmitt e pós-religiosa, uma secularização “total”; a Taubes, publicado na revista Esprit, outra, que concebe a secularização como em fevereiro de 2003. Como descreve um movimento de “transferência”, de aí o paulinismo político? transformação, no qual o cristianismo Jean-Claude Monod - Este artigo tomava (mas também o judaísmo, por vezes, a em consideração interpretações Gnose) continuam determinando particulares de Paulo: interpretações “em secretamente nossas maneiras de pensar crise”, provenientes de intelectuais de e de ver o mundo, o tempo, a história, língua alemã, respectivamente etc., mesmo quando nós nos cremos e protestante, católica e judaica. nós nos queremos inteiramente “Paulinismo político” era o nome de um “secularizados”. Eu propus que se problema, de um paradoxo, antes do que nomeasse a primeira visão de de uma “linha” política inencontrável: secularização-liquidação, e a segunda de como se pode deduzir um pensamento secularização-transferência. Cada político, ou uma “teologia política”, de interpretação levanta problemas um pensamento também voltado complexos, cada uma comporta seus resolutamente para o acontecimento riscos; em síntese, a secularização- salvífico e que também se afasta liquidação corre o risco de desconhecer ostensivamente da esfera política (é heranças, de sucumbir a um mito de verdade, é preciso pagar o imposto, “começo absoluto” da modernidade, ou obedecer etc., mas, precisamente por que da “autofundação” a partir do nada; a isso não tem nenhuma importância )? O secularização-transferência tende a paulinismo político seria um modo de desconhecer as rupturas, a dar lugar ao situar o político sob tensão escatológica, que Blumenberg chama de um seja relativizando-lhe o sentido (como “substancialismo histórico”, acabando na Karl Barth), seja correndo o risco de negação de toda novidade. No plano absolutizá-lo (como Carl Schmitt), seja prático e político, cada visão tem também desfrutando do efeito revolucionário da seus riscos: a secularização-liquidação escatologia, para dotar o discurso de uma pode ir até a vontade de destruição “urgência” que lhe permita subverter autoritária da crença religiosa, até a todas as categorias consensuais, a paz da liquidação de todos os valores de ordem, do Nomos [norma] instituído (como é a tentativa de Jacob Taubes).

12 Carl Schmitt (1888-1985): controverso intelectual católico alemão e teórico da ideologia nazista. (Nota Novos paulinismos políticos da IHU OnOn----LineLine )

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Mais recentemente, viram-se aparecer progressista do tempo e da História, novas interpretações de Paulo e, caso se em proveito de um evento decisivo queira, de novos “paulinismos políticos”: que pode ocorrer a cada instante, uma na França, Alain Badiou insiste na afirmação de universalidade que fundação do universal com base num desencadeia o "todo" das condições conteúdo incrível (a “fábula” da particulares que são feitas a cada um ressurreição, mas levada por uma “fidelidade ao evento”, que implique que no mundo. ele valha “para todos”, segundo uma espécie de “teorema do militante”. Esta interpretação, provocante também porque ela emana de um filósofo que se diz sempre “maoísta” (!), tem sido contestada na medida em que ela parece valorizar sobretudo o gesto pelo qual são Paulo “escapa à empresa comunitária”, e, em primeiro lugar, ao judaísmo (e se faz acompanhar, além disso, de uma visão muito negativa de toda afirmação judaica nacional – mas isso nos envolve em outros debates políticos, por vezes na retaguarda das releituras contemporâneas de Paul). Giorgio Agamen opôs a isso (na sua própria leitura de Paulo 13 uma visão do universal, não como abolição das diferenças, porém como o que impede as identidades de coincidir inteiramente com elas mesmas, cada “parte” não podendo ser tomada pelo “todo”, nem por “todos”, quando o “todos” enquadra o discurso de Paulo – todos pecadores em Adão, todos resgatados no Cristo.

Não há, por conseguinte, "um" paulinismo político, mas diferentes grandes tipos de atitudes que podem ser encontradas e que realçam formas de paulinismo político: uma submissão destacada ao político, que se considera, todavia, como sendo "o mal", um sentimento de urgência que arruina toda percepção "confiante" e

13 Trata-se do livro de Giorgio Agamben. Il tempo che resta. Un commento alla Lettera ai Romani . Torino :Bollati Boringhieri, 2000. Para conhecer mais sobre Agamben conferir a revista IHU On-Line edição 164. (Nota da IHU On-Line)

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A crise do Cristianismo e da Modernidade

Entrevista com Rémi Brague

De acordo com o filósofo e historiador francês Rémi Brague, “vários dos grandes slogans do projeto moderno vêm de são Paulo”. Em sua opinião, “o papel do cristianismo e dos cristãos nos próximos anos é simplesmente fazer de modo que haja próximos anos. O que será seu conteúdo é preciso deixá-lo à liberdade daqueles que nos sucederão – supondo, bem entendido, que eles existam!” A afirmação foi feita em entrevista por e-mail à IHU OnOnOn-On ---Line.Line.

Brague leciona na Universidade Paris I, Sorbonne, na França. É autor de; Europe, la voie romaine , Paris, Critérion:1992 e A Sabedoria do Mundo . Lisboa: Edições Piaget, 2002, entre outros. No ano passado publicou o livro La Loi de Dieu. Histoire philosophique dd’’’’uneune alliancealliance. Paris: Gallimard, 2005.

IHU On-Line - Que características importante de intercessor. Por sua vez, o poderia assinalar na recepção que São Islã se apercebeu muito rapidamente que Paulo teve no Ocidente e no Oriente? sua mensagem era incompatível com A que se devem estas diferenças? aquela do Antigo e do Novo Testamento. Rémi Brague - Habitualmente, “Oriente” Ele supõe, com efeito, que o conteúdo da pode querer dizer três cosias: (a) o Antiga e da Nova Aliança deve ser, não Extremo-Oriente, por oposição ao espaço como na primeira, uma história da coberto pelo cristianismo e pelo salvação, ou, como na segunda, uma islamismo; (b) o Islã, por oposição à pessoa, a qual, aliás, concentra esta cristandade, e (c) o cristianismo grego, história em si, mas antes um livro análogo ortodoxo, por oposição ao cristianismo ao Alcorão. Ele supôs, então, que o texto latino, católico. Em sua questão, eu da revelação feita a Moisés (a Tora) e a suponho que queira falar do que distingue Jesus (o Evangelho – no singular) havia o cristianismo do Islã. sido negociado por aqueles a quem ele Ora, a figura de São Paulo é interessante havia sido confiado, os judeus para a Tora, porque ela não é recebida no Islã. Como os cristãos para o Evangelho. E, é aqui que se sabe, o Alcorão contém o nome das vamos encontrar Paulo, mas, desta vez no principais figuras da Bíblia, de Adão a papel de “traidor”. Jesus, passando por Noé, Abraão, Moisés e outros. No islamismo posterior, certos Paulo, traidor? místicos deram a Jesus um papel

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Para certos autores muçulmanos, com esquecer o passado (Filipenses, 3, 13), na efeito, é Paulo quem teria corrompido a qual se pode reconhecer uma prefiguração mensagem confiada a Jesus. Esta idéia trai, da idéia de progresso. talvez, uma influência sobre o Islã nascendo de certos meios judaico-cristãos. Universaiidade: anunciar ao mundo Em todo o caso, ela existe até nossos dias, inteiro por exemplo, em algumas passagens Além disso, além das doutrinas de São alucinantes do tratado, no entanto Paulo, há sua atitude fundamental, que pretendidamente “moderno”, de teologia consiste em anunciar a mensagem ao islâmica de H. Boubakeur 14 (Paris, 1985). mundo inteiro. A modernidade retomou este programa sob a forma da propaganda. IHU On-Line – Que relações diretas As Luzes radicais, rompendo com a poderia haver entre cristianismo e tradição elitista dos filósofos antigos, modernidade e qual seria o lugar do supõem que é sempre bom dizer toda a pensamento paulino nessas relações? verdade a todo o mundo. A missão cristã Rémi Brague - É preciso distinguir entre devia anunciar a boa nova da Ressurreição a época moderna como período da do Cristo e da remissão dos pecados. Ela história e o projeto moderno. A época se tornou o dever de vulgarizar a ciência; a moderna trouxe bens consideráveis. Ela tarefa de propagar a fé se tornou a realizou a unidade do mundo com as propaganda. De onde a palavra de grandes descobertas. Ela aumentou os Diderot 15 : “Apressemo-nos em tornar a nossos conhecimentos em todos os filosofia popular”. As outras palavras- domínios do saber. Ela permitiu a chave de Paulo foram também retomadas passagem dos regimes políticos de pelo projeto moderno, mas, uma vez autoridade a formas em que a soberania cortadas de sua origem, elas só podem se vem do povo. perverter. O que eu chamo aqui de projeto moderno consiste em querer se destacar do passado IHU On-Line - De que modo os valores histórico (nomeado, para a ocasião, de paulinos de liberdade e universalidade Idade Média), e depois, de todo o foram sendo apropriados pela condicionamento natural, tomando o modernidade? controle da natureza, enfim, de toda Rémi Brague - Esta apropriação se fez de relação com uma transcendência, maneira perversa. E o primeiro passo rejeitando Deus. consiste, talvez, em considerar a liberdade Curiosamente, vários dos grandes slogans e a universalidade como “valores”. Para do projeto moderno vêm de são Paulo. Em Paulo, elas não são valores. Elas são fatos. primeiro lugar, a idéia segundo a qual a Mais precisamente, elas são o resultado de humanidade chegou à idade adulta e deve, uma ação de Deus. É Deus que liberta seu então, se emancipar do que a guiava até então, de seus “preceptores” (Gálatas, 3, 25; 4, 2-3); em seguida, a idéia de uma 15 Denis Diderot (1713-1784): filósofo e escritor autonomia do homem (Romanos, 2, 14); francês. A primeira peça importante da sua carreira literária é Lettres sur les aveugles à l’usage de ceux enfim, a idéia de uma tensão constante qui voient , em que resume a evolução do seu para o futuro ( epektasis ) que obriga a pensamento desde o deísmo até ao cepticismo e o materialismo ateu, o que o leva à prisão. Mas a obra da sua vida é a edição da Encyclopédie (1750-1772), 14 Hamza Boubakeur: um dos maiores teólogos que leva a cabo com empenho e entusiasmo apesar islâmicos do século XX. Publicou o livro Traite de alguma oposição da Igreja Católica e dos Moderne De Theologie Islamique, 2003. (Nota do poderes estabelecidos. (Nota da IHU OnOn----LineLine ) IHU OnOn----LineLineLine)

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povo. Ele o fizera uma primeira vez, do que o bem do homem, porque Ele o libertando Israel do Egito, da escravidão. ama. E, da mesma forma, quando nós É, aliás, assim que o Deus bíblico se faz “obedecemos” ao que Ele “exige”, o que conhecer como aquele que ele é, quando nós fazemos, em realidade, é permitir ao ele se apresenta, no início do Decálogo amor de Deus, que quer nosso bem, de (Êxodo, 20). Para Paulo, há uma segunda obter seu resultado. libertação, definitiva esta, que se cumpriu no Cristo: “o Cristo nos livrou para a IHU On-Line - Com a crise da liberdade” (Gálatas, 5, 1). O que nós modernidade, entra em crise o chamamos de universalidade, é o fato de cristianismo? Qual é e pode ser seu que Deus, Criador de todas as coisas e de papel nos próximos anos? todos os homens, não faz diferença entre Rémi Brague - Eu aprecio que você homem e mulher, patrão e escravo, judeu comece sublinhando o fato de que a e não-judeu (Paulo diz: “grego”) (Gálatas, modernidade está também ela em crise. 3, 28). É o que Paulo chama de o mistério Não seria correto imaginar que o do desígnio divino, de englobar também cristianismo estaria enfermo no meio de os não-judeus em seu plano de salvação. um mundo em plena saúde. Eu me A autonomia consiste, para Paulo, em que pergunto, por vezes, se, em longo prazo, o homem é capaz de descobrir por si não seria o inverso. O mundo moderno é mesmo, se ele escutar sua consciência que uma experiência, um arriscar, uma é nele a voz de Deus, o que é bom para aventura. É na Europa que a experiência ele. Isso não quer dizer que o homem foi tentada pela primeira vez, e é lá que pudesse decretar ele mesmo o que é o ela foi impelida para mais longe. Ora, Bem ou o Mal e se imaginar “criar” os estranhamente, a modernidade jamais “valores”. Isso também não quer dizer que concebeu que a experiência pudesse o homem seria capaz, por suas próprias fracassar. Ela ainda acreditava numa forças, de fazer o que é bom para ele. Ao espécie de providência secularizada. contrário, a constatação da qual parte É preciso ter a coragem de colocar a Paulo é, antes, que nós podemos muito questão: e se a experiência fracassara? A bem saber o que nós deveríamos fazer, Europa está doente, e sua doença corre mas que nós não chegamos totalmente sós alto risco de ser mortal. Nós temos um a fazê-lo (Romanos, 7, 15-21). Por certo, sinal do qual quase ninguém fala, mas Paulo é a fonte última da fórmula que que, no entanto, é inequívoco: nenhum tanto chocou em Dostoiévski 16 : “tudo é dos países que a compõem é capaz de permitido”. Mas, ele acrescenta: “mas nem renovar sua população. Todos precisam tudo é construtivo” (1 Coríntios, 6, 12). importar de fora. Como os grandes Isso quer dizer: o bem não é bem porque enfermos, a Europa vive sua perfusão. O ele é exigido, o mal não é mal porque ele problema não é a língua ou a “raça” é interdito. É o contrário: Deus exige o daqueles que chegam. O verdadeiro bem porque o mesmo constrói o homem: problema é, ao contrário, o modo de vida ele interdita o mal porque o mesmo daqueles que já estão lá. O modo de vida destrói o homem. Deus nada mais quer europeu talvez seja agradável. Ele o é, sem dúvida, para alguns, os mais fortes, os mais ricos, os mais instruídos. Veja nossas 16 Fiódor Mikhailovich Dostoiévski (1821-1881): um jovens elites: elas se agitam, viajam, dos maiores escritores russos e tido como um dos mudam de parceiro, criam toda espécie de fundadores do existencialismo. De sua vasta obra, destacamos Crime e castigo, O Idiota, Os Demônios riquezas, mesmo as mais nobres, sociais e Os Irmãos Karamázov. (Nota da IHU OnOn----LineLine ) ou culturais. Mas, sobretudo, nada de

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filhos, que os pregam no chão, que os conteúdo é preciso deixá-lo à liberdade ligam a um cônjuge, que lhes custam daqueles que nos sucederão – supondo, tempo e dinheiro. Em último caso, bem entendido, que eles existam! compraremos um na Ásia, quando tivermos 50 anos. Este modo de vida tem IHU On-Line - De que modo a filosofia apenas um inconveniente: ele leva ao procurou ou procura uma síntese desaparecimento os povos que o adotam. entre cristianismo e modernidade? Seria Levinas quem melhor conseguiu O papel do cristianismo fazer essa leitura? Os cristãos vivem no mesmo mundo que Rémi Brague - Eu estou um pouco os outros. Eles aí encontram os mesmos surpreso ao ver a influência de Levinas 18 problemas. Eles procuram resolvê-los por sobre os cristãos de hoje. E mais ainda ao processos técnicos, econômicos, políticos, ver que ela é bem menor com os judeus. etc., dos quais nem a origem, nem a Levinas não é delicado com o eficácia são dadas por Deus. Sua fé não os cristianismo. Ele pensava ser um filósofo ajuda diretamente a encontrar as boas puro e, enquanto tal, ele disse coisas soluções. Em troca, ela lhes dá uma muito profundas. Mas, são os cristãos tão certeza fundamental: a vida é a criação de pobres em pensamento que eles devam um Deus bom; ela é, pois, boa em seu tomar emprestado de outro lugar? Teriam fundo, é bom transmiti-la, é bom defendê- eles esgotado Agostinho 19 , Tomás de la, é bom expandi-la, procurando Aquino 20 , João da Cruz 21 , Pascal 22 , justamente encontrar as boas soluções aos Newman 23 etc.? nossos problemas. Sem esta convicção, procurar-se-á, pelo menos reduzir as fricções entre os homens que já estão a 18 Emmanuel LevinasLevinas: filósofo e comentador caminho. Isso já não está mal, mas isso talmúdico, nasceu em 1906, na Lituânia e faleceu em 1995, na França. Desde 1930, era naturalizado não permite continuar a chamar à vida francês. Foi aluno de Husserl e conheceu Heidegger aqueles que ainda não nasceram. cuja obra Ser e tempotempo, de 1927, o influenciou muito. O cristianismo diz que a vida é boa, “A ética precede a ontologia” é uma frase que porque ela tem um futuro , porque ela não caracteriza o pensamento de Levinas. Ele é autor se acaba com a morte, mas desemboca na Totalité et infini. Essai sur l’extériorité , livro que o consagrou e que foi traduzido para o português com alegria eterna em Deus, pois, caso o titulo Totalidade e Infinito , Lisboa: Edições 70, contrário, por que chamar um ente à vida, 2000. No Brasil, a Editora Perspectiva publicou se isso é também condená-lo à morte, se Quatro leituras talmúdicas , em 2003 e a Editora “a vida é um negócio que não cobre os Vozes, De Deus que vem a idéia, em 2002. (Nota da IHU OnOn----LineLine ). seus custos” (Schopenhauer 17 )? Um ateu

verdadeiramente conseqüente, que iria até 19 Agostinho (354-430): Conhecido como Agostinho o fim de seu ateísmo, e que seria pai de de Hipona ou Santo Agostinho, bispo católico, família, é um criminoso. Então, o papel do teólogo e filósofo. É considerado santo pelos cristianismo e dos cristãos nos próximos católicos e doutor da doutrina da Igreja. (Nota da anos é simplesmente fazer de modo que IHU OnOn----LineLineLine) haja próximos anos. O que será seu 20 Tomás de Aquino (1227-1274): frade dominicano e teólogo. Um de seus maiores méritos foi introduzir o aristotelismo na escolástica anterior. A partir de 17 Arthur Schopenhauer (1788-1860): filósofo alemão. São Tomás, a Igreja tem uma teologia (fundada na Sua obra principal é O mundo como vontade e revelação) e uma filosofia (baseada no exercício da representação, embora o seu livro Parerga e razão humana) que se fundem numa síntese Paraliponema (1815) seja o mais conhecido. definitiva: fé e razão. Nascido numa família nobre, Schopenhauer ficou conhecido por seu pessimismo estudou filosofia em Nápoles e depois foi para Paris, e entendia o budismo como uma confirmação dessa onde se dedicou ao ensino e ao estudo de questões visão. (Nota da IHU OnOn----LineLine ) filosóficas e teológicas. Sua obra mais famosa e

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Dito isso, o problema é verdadeiramente o judeu, escrevia: “a democracia é de de realizar a síntese entre cristianismo e essência evangélica”. Quanto ao que modernidade? Pôr o problema desta chamei de projeto moderno, o de um maneira supõe que os dois são exteriores humanismo ateu, ele é incompatível com um ao outro. Ora, o cristianismo é o cristianismo. Mas, é preciso ver o que o também um fator decisivo de cristianismo lhe incrimina. Não é o fato de modernização. Eu falei mais acima dos se opor a ele. Da mesma forma como benefícios trazidos pelos Tempos Deus não procura seu próprio interesse, o Modernos. Ora, esses bens vieram em cristianismo não é seu próprio fim. O que grande parte da herança bíblica, judaica e ele incrimina ao projeto moderno é de ele cristã; e eles foram realizados destruir em longo prazo a humanidade do concretamente com mais freqüência por ser humano, ou seja, de destruir o homem. cristãos. Eu já falei da universalidade. As É de privar o homem do que o torna grandes descobertas são resultados de humano, ou mesmo privá-lo cristãos, e ademais de católicos, da simplesmente da vida. América do Sul às Filipinas. A ciência matematizada da natureza foi tornada IHU On-Line - Quais são as derivações possível pela desmitificação da natureza, do pensamento paulino que mais realizada pelos profetas do Antigo poderiam nos interessar no cenário Testamento. político atual? Rémi Brague - O ensinamento de Paulo Democracia e Evangelho em matéria política é bastante simples. Ele O que distingue nossas democracias permanece, de fato, atual: é preciso que a modernas da democracia grega, que era, sociedade seja organizada e que aqueles de fato, um clube de machos possuindo que necessitam ser protegidos, o sejam; o escravos, é a idéia da igual dignidade de poder do Estado é, pois, em si, um bem. todo ser humano. É a idéia do valor divino Mas, ele não está acima das regras morais. da consciência de cada homem, no As guerras atuais, sejam elas ruidosas sentido do provérbio: vox populi, vox Dei. como no Iraque, no Afeganistão, ou Por causa disso, o filósofo francês H. silenciosas como no Sudão, nas Filipinas, Bérgson 24 (em 1941), que também era etc., opõem elas realmente o Oriente e o 25 Ocidente? Quando Samuel Huntington importante é a Suma Teológica. (Nota da IHU OnOn---- falou de um O choque de civilizações e a Line )

21 João da Cruz (1542-1591): doutor em teologia francês, com os quais tenta elaborar uma original mística e fundador das Carmelitas Descalças (com simbiose. Definitivamente, o que busca é uma Santa Teresa de Ávila). (Nota da IHU OnOn----LineLine ) superação do positivismo. Num clima positivista, de aparecimento da crítica científica, de polêmica 22 Blaise Pascal (1623-1662): filósofo, físico e espiritualista, de neokantismo, tudo isso matemático francês de curta existência, que criou condicionado pelo auge da ciência, Bergson aborda uma das afirmações mais repetidas pela o problema da relação sistemática do conhecimento humanidade nos séculos posteriores. (Nota da IHU científico e a metafísica. (Nota da IHU OnOn----LineLine ) OnOnOn-On ---LineLine ) 23 John Henry Newman (1801 – 1890): Ministro 25 Samuel Phillips Huntington (1927): cientista anglicano inglês, convertido ao catolicismo foi político, conhecido pela análise do relacionamento posteriormente nomeado cardeal. (Nota da IHU OnOn---- entre os militares e o governo civil, além da tese de Line ) que os atores políticos centrais do século XXI serão 24 Henri Bérgson: filósofo e escritor francês (1859- as civilizações, ao invés dos estados –nação. (Nota 1941). A sua filosofia está em estreita relação com o da IHU OnOn----LineLine ) positivismo do século XIX e com o espiritualismo

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recomposição da ordem mundial 26 , apresento um certo número de conceitos interpretou-se a palavra choque que ajudam a pensar sua singularidade, significando, não um embate repentino e para não dizer sua bizarrice. Eu não falei direto, porém um conflito. E a gente se do que agora se chama com certa apressou em lhe negar a realidade. Há facilidade de União Européia. A Europa algo de verdadeiro nesta atitude prudente. como cultura nada pode fazer, ela não é É preciso também pôr um certo número um sujeito político. A União Européia, esta de questões ao Ocidente: sua influência, sim, poderia fazer alguma coisa. Ainda seu poder, não podem eles ser percebidos seria preciso que ela o quisesse e que ela pelos povos que lhe são exteriores como se desse os meios de exercer uma uma agressão, por vezes discreta, mas influência. Esta é uma questão para os sempre pesada? E o modelo que vocês politólogos, e, portanto, fora da minha propõem ao resto do mundo é atrativo? É competência. Eu me pergunto, aliás, se a capaz de fazer viver? primeira questão a colocar é realmente o que a Europa deve fazer. Antes de “fazer” O mundo islâmico o que quer que seja, seria preciso desde já Mas, há também questões a ser postas ao que a Europa queira ser ela mesma. E é aí Islã. E, em primeiro lugar: a paz, como que a Europa como cultura pode exercer também a guerra, é um jogo que se joga a uma função. E é também aí que o dois. Ora, segundo a dogmática islâmica cristianismo tem algo a dizer. No meu tradicional, o mundo está dividido em livro, eu procuro mostrar que não é um dois “domínios”, o “domínio da paz”, na dos conteúdos da cultura européia que se qual o Islã está no poder, e o “domínio da poderia opor a outros elementos (pagão, guerra”, onde ele ainda não o está. O que celta, germânico etc.). Para mim, o se chama de “Ocidente” faz parte deste cristianismo é, antes, a forma desta. Esta domínio, como também a China, as Índias forma marca a maneira muito particular etc. É assim que os “islamitas” vêem o pela qual a Europa se relaciona com o que mundo ainda hoje em dia. Se os lhe é anterior (a Antigüidade greco-latina), muçulmanos rejeitarem claramente esta mas também com o que lhe é exterior (as maneira de ver, a paz será possível. Se não, outras civilizações), que tem algo a lhe mesmo se o Ocidente fosse um dia ensinar. É o que eu chamo de a perfeito (pode-se sonhar), o Islã “secundariedade”: a Europa sente que ela permaneceria em guerra com ele. vem após a Grécia e após Israel, que são seus verdadeiros fundamentos. IHU On-Line - Qual deve ser o lugar da Europa no cenário contemporâneo? E Reencontrar a “via romana” nela, que papel deveria desempenhar O que eu almejo dos europeus? Que eles o cristianismo? Quais as mudanças deixem de ser surdos. Os três principais pelas quais ambos devem passar? “outros”, aos quais eles pensam, sobretudo Rémi Brague - Vocês sabem que eu neste momento, têm cada um algo a lhe escrevi, faz mais de dez anos, um livro que dizer. Os Estados Unidos lhe dizem: “não se chama Europoa, la via romana . Madrid : creiais que vós não tendes inimigos”; a Gredos, 1995 no qual eu procuro China lhes diz: “não creiais que vós haveis caracterizar a essência da cultura européia de viver sem trabalhar”; o Islã lhes diz: como fonte da civilização ocidental. Eu “não creiais que vós continuareis a existir, se vós não tendes filhos”. Os europeus lhes respondem com muita freqüência: “vós 26 The Clash of Civilizations and the Remaking of World Order . New York: Simon & Schuster, 1996. sois, uns, cowboys , os outros, formigas, os (Nota da IHU OOnnnn----LineLine )

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outros, fanáticos; nós temos razão, nós velha de dois mil anos. Ela quer dizer: somos os mais belos, nós somos os mais tornar-se mais cristão, compreender gentis, nós não temos nada a aprender de melhor no que implica a fé em Cristo, vós, portanto, calai-vos!” Romper com esta apropriar-se melhor de seu próprio atitude imbecil, seria reencontrar o que eu cristianismo. Além disso, não me parece chamo de a “via romana”. que o cristianismo como tal tenha que De seu lado, os cristãos devem tornar-se mudar, pois o que se chama de o melhores, isto é, mais caridosos, mas cristianismo não é uma doutrina, uma também mais inteligentes. Esta é uma “mensagem” ou como se quiser dizê-lo. tarefa que, aliás, nada tem de novo: ela é Ele é uma pessoa, infinita, inesgotável.

A utopia política de Paulo

Entrevista com Hartwig Bischof

“Paulo é o elo de ligação para todos aqueles que não interpretam Jesus a partir de sua própria tradição, ou seja, da judaica, mas provêm de outras raízes culturais”, afirma Hartwig Bischof, professor na Escola Superior de Liechtenstein. Bischof é doutor em teologia pela Universidade de Graz, com a tese Ein Revolutionär und Traditionalist. Eine theologische Biographie Von Marie-Alain Couturier OP. Possui título de mestre em Teologia, Filosofia e Artes. É gerente cultural do Centro Internacional para Cultura e Gerenciamento, de Salzburgo, e da Universidade de Economia de Linz e também membro da Sociedade Vienense para Filosofia intercultural. Bischof concedeu a entrevista que segue por e-mail à redação da revista IHU OnOn----LineLine .

IHU On-Line - Qual é a importância foi temporalmente anterior e, da figura e do pensamento naturalmente Paulo é o grão mestre desta paulino nos inícios do forma. Assim, ele é o maior parteiro cristianismo? daquilo que mais tarde se designará Hartwig Bischof - O Novo Testamento como teologia. Em oposição aos demais fala-nos, grosso modo, em duas formas apóstolos, que puderam ter como ponto lingüísticas. Primeiro, numa forma antes de partida o Jesus terrestre, a Paulo narrativa, como nos Evangelhos, nos Atos somente o Jesus celeste se dá a conhecer: dos Apóstolos e no Apocalipse de João. com isto, Paulo, na primeira hora do Mas, ao lado desta, também numa forma cristianismo, já se encontra na situação antes discursiva, como literatura epistolar. de todas as gerações subseqüentes, como O interessante é que esta segunda forma ponto de partida essencial para nós hoje.

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Paulo também é o elo de ligação para “calculamos” (ou computamos) o mundo; todos aqueles que não interpretam Jesus por isso ele se dispõe a uma com base em sua própria tradição, ou transformação da Lei, que novamente seja, na judaica, mas provém de outras culmina numa profissão de fé. A raízes culturais. Simultaneamente, profissão de fé forma um ancoradouro contudo, Paulo também intermedeia a que, no entanto, não conduz a nenhuma missão de conhecer não apenas a própria solução dialética. Paulo vê em Jesus a lei tradição, mas, pelo menos em princípio, universal, ele é uma Lei situada além da poder pensar conjuntamente a base lei escrita, é resultado de uma relação judaica das palavras e ações de Jesus. pessoal, uma relação de amor. Naturalmente transparece aí, em Paulo, IHU On-Line - Como poderia ser que experimentou tantas rupturas em sua caracterizado o legado teológico, vida, uma certa saudade por harmonia; filosófico e político de Paulo? porém aqui não se pode esquecer que – Hartwig Bischof - Talvez se possa para permanecer no jogo de palavras caracterizar Paulo como alguém que, helenístico – a harmonia, como irmã de constantemente e sempre de novo Marte e Vênus, sempre precisa ser colocou um início, sem que, com isso, simultaneamente dura e branda. tivesse permanecido como um principiante. Ele vivencia Deus como IHU On-Line - O que destacaria das alguém que simplesmente irrompe em diversas cartas de Paulo? Que conceitos- sua vida (vivência de Damasco); sua vida chave constituiriam o pensamento se biparte, no Saulo e no Paulo. Mas, a paulino? ruptura em sua vida também irrompe na Hartwig Bischof - Das cartas não se pode história, seu testemunho lhe permite um destacar nada, embora saibamos hoje, pelo livre trânsito com o tempo e o mundo. A menos em algumas passagens, que elas fé na morte e ressurreição de Jesus é não provêm de Paulo. Nós devemos promessa de uma salvação múltipla: esforçar-nos em favor da consciência de como ato político, ela põe ante os olhos a que a coisa de fato se desenrola assim, provisoriedade do poder temporal (como mas isso também demonstra uma força conceito negativo), mas também da dos escritos bíblicos, no sentido de que autoridade temporal (como conceito eles não caíram simplesmente desta forma positivo, no sentido de um esforço de do céu, porém foram redigidas por tornar o mundo mais humano). A “homens inspirados”. Assim, também salvação brota de um escândalo, de um podemos considerar Paulo um filho de disparate; assim, segundo Badiou, Paulo seu tempo, e a tarefa de continuar deve ser designado como antifilósofo, ele escrevendo o texto com o leitor, já está argumenta com loucura, escândalo e radicalmente presente e não é nenhuma fraqueza. Paulo, porém, “argumenta”, correção posterior do curso. “Cada texto é não fala simplesmente coisas sem nexo, um tecido, que simultaneamente descobre ele se esforça por uma terminologia e cobre” (Sarah Kofmann). Assim, helenística para poder ser entendido. permanece para nós a tarefa de estudar, Entretanto, a profissão de fé o conduz num ato de fidelidade ao texto, o que se também ao individual, a uma descobre, mas, de outra parte também interrupção, também aqui ocorre um significa avaliar de uma nova maneira o constante recomeço. Paulo sabe, por encoberto. Se simplesmente riscássemos experiência própria, que Deus é algumas partes, porque elas não nos incalculável, no sentido em que hoje nós servem ou porque elas realmente só

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tinham validade para uma situação implantados à revelia do cristianismo outrora concreta, nós nos privaríamos dos institucionalizado como Igreja. Pode-se, acenos que, em sentido próprio, tanto pois, dizer tranqüilamente que o mais estimulam nossa leitura. Vale, cristianismo foi esclarecido de fora sobre também aqui, que nem tudo se deixa seus próprios valores. Aqui transparece, harmonizar facilmente ou reunir numa por exemplo, uma passagem frágil em dialética barata. O escândalo permanece. Paulo: “Se tu foste chamado como escravo, isso não te deve oprimir; mesmo que tu possas tornar-te livre, prefere continuar IHU On-Line - Como definiria a vivendo como escravo” (1 Cor 7, 21). O espiritualidade paulina? Como está no que aqui foi proposto como regra interina cristianismo de hoje presente ou para um tempo ainda bem curto, não ausente essa espiritualidade? pode pretender nenhuma validez Hartwig Bischof - Do modo como Paulo universal. E, se cristãos podiam reverter se apresenta em suas cartas, ele isso, sob relações feudais, para a certamente foi um esforçado legitimidade da servidão, resulta que os contemporâneo: radical, conseqüente, impulsos iluministas ajudaram aqui os munido de uma incrível capacidade de cristãos, a partir de fora, para continuarem resistência. Apesar disso, ou precisamente a escrever os seus textos. Como, aliás, já o por isso, ele nunca decai para a dureza de fizera Paulo: “Mas, porque vós sois filhos, coração ou a obstinação. Sua profissão de Deus enviou o Espírito de seu Filho, que fé na lei da viva relação de amor com clama: Aba, Pai! Portanto, tu não és mais Deus também lhe permitiu utopias escravo, porém filho” (Gal 4, 6-7). políticas, que até hoje não encontraram nenhuma localização adequada. A IHU On-Line - Qual tem sido a crise combinação de uma sólida formação com fundamental do cristianismo nos últimos um envolvimento combativo pelos anos e qual é o seu lugar no século XXI? interesses da fé e uma profundeza Hartwig Bischof - A crise da espiritual era, e é bastante difícil de ser modernidade é uma crise do cristianismo. encontrada. Hoje em dia, sobressai Enquanto isso, o potencial de a freqüentemente o discurso nivelador com modernidade se corrigir está ruindo. A a cultura secularizada e a assim chamada modernidade, de maneira semelhante ao esperteza e diplomacia política se impõem próprio cristianismo, reivindicou para si como doce tibieza, contra a qual, no um status de validade universal, ela estava entanto, combate o Evangelho. Aí Paulo convencida de que sua regulamentação certamente tem preparados para nós pode ser adotada. Na momentânea crise se alguns impulsos. O cristianismo, na dissolvem muitas evidências, pontos de continuidade da tradição judaica, auxiliou convergência convencionais se cindem em o indivíduo nos seus direitos como pessoa. sistemas semelhantes à Via Láctea: em Seja o que for que, além disso, ainda se princípio, recentemente só ocorre aqui o quisesse subsumir sob o conceito da que cristãos já vivenciaram em suas mais modernidade, esta valorização de cada ousadas experiências de Deus, a saber, de indivíduo me parece ser sempre central. que este último ponto de convergência De maneira paradoxal, todavia, o próprio sempre é apenas o começo de um novo cristianismo teve dificuldades com isso. começo. Intermediadas pela crise da Finalmente, estes valores, que só foram modernidade, as próprias conquistados politicamente na Europa no regulamentações atingem até mesmo o decurso do Iluminismo, foram cristianismo e o pulverizam novamente

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num complexo entrelaçado. Entretanto, lhe parecem importantes para seus uma vez que esta crise não é um poder próprios esforços de novamente solucionador provindo de fora, porém fundamentar uma teoria do sujeito, e apenas o “cumprimento” das próprias como Giorgio Agamben reassume o estruturações, vem ao caso dar-se conta messianismo, para novamente transformar desta chance. Talvez isto signifique agora, o ser humano de um número numa de maneira semelhante como em Paulo, pessoa, ou como Slavoj Zizek, estimulado viver por um tempo no “deserto”, para de por idéias cristãs, introduz novamente a novo ver mais claramente a própria dimensão religiosa no discurso filosófico Mensagem. Quando se observa a maneira contemporâneo, é de se esperar que o pela qual um filósofo ateu como Alain cristianismo também continue sendo o sal Badiou lê os textos de Paulo, porque eles da terra.

Nietzsche, Paulo e o Cristianismo

Entrevista com Emilio Brito

“Paulo colocou em primeiro plano a noção de culpabilidade e de pecado e uma nova fé: a crença numa metamorfose milagrosa. Inspirou-se no paganismo e tomou dele um elemento tão antijudeu como a crença na imortalidade. Realizou uma seleção totalmente arbitrária de certos aspectos da vida e da morte de Cristo (e ocultou os outros). Adaptou o cristianismo às religiões da massa inferior. Inicialmente, o cristianismo era uma espécie de movimento pacifista. Paulo o transformou numa doutrina de mistérios, capaz de entender-se com a organização do Estado. Essas são, grosso modo, as razões pelas quais Nietzsche pensa que Paulo perverteu a mensagem de Jesus”. A análise é do jesuíta cubano Emilio Brito, em entrevista por e-mail à IHU OnOn----Line.Line. Autor do ensaio Les motifs de la critique nietzschéenne du christianisme , publicado na revista Ephemerides Theologicae Lovanienses (Volume 80, de Dezembro de 2004), da Universidade de Louvain-La- Neuve, na Bélgica, onde leciona, Brito pondera que, apesar de impressionante, as críticas de Nietzsche ao cristianismo não podem ser consideradas indubitáveis, mas podem auxiliar os cristãos a tornarem-se mais próximos de “uma visão mais pura de sua fé”.

É autor de, entre outros, La Christologie de Hegel: Verbum Crucis . Paris: Beauchesne, 1983, Dieu et l'être d'après Thomas d'Aquin et HegelHegel.. Paris: PUF, 1991,

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Filosofia della religione . Milano: Jaca book, 1993, Heidegger et l'hymne du sacré ... Leuven : Leuven University Press, Louvain-la-Neuve: Peeters, 1999, Philosophie eett théologie dans l’œuvre de Schelling (Philosophie et théologie). Paris, Cerf, 2000.

IHU On-Line - Poderia indicar as foi inventada para desorientar os principais criticas de Nietzsche ao instintos, para fazer da desconfiança cristianismo? diante do instinto uma espécie de Emilio Brito - Nietzsche opõe ao "segunda natureza". cristianismo quatro críticas principais: 1) Os moralistas cristãos consideram a o cristianismo de raiz paulina exalta tudo saúde como uma doença, e tratam de o que é vil; 2) o cristianismo de Jesus se substituí-la pela “salvação da alma", que mostra incapaz de resistir; 3) a oscila entre as convulsões da penitência e consciência cristã do pecado é mórbida; a histeria da redenção. Eles veriam um 4) o ideal ascético que propõem os obstáculo nas condições duma vida forte sacerdotes cristãos representa uma e transbordante. Por isso tratam de voltar inversão de valores. ao homem inofensivo, humildemente prosternado. Esforçam-se em produzir o IHU On-Line - Em particular, como tipo de “pecador". Nietzsche descreve o mecanismo psicológico do pecado no Interiorização do instinto de cristianismo? crueldade Emilio Brito - Segundo Nietzsche, o O mecanismo psicológico seria o cristianismo explora sistematicamente o seguinte. A gente tem sempre a tendência sentimento de culpabilidade. Ele a sentir-se descontente de si mesmo. denuncia os teólogos que continuam a Facilmente pensamos que esse infestar a inocência do devir com a noção sentimento é conseqüência de suas faltas, de “pecado". Nietzsche se esforça em de seus pecados. Quando se sente desmascarar a consciência cristã da falta. aliviado dessa angústia, o “pecador" Para perpetuar-se, pensa Nietzsche, a conclui que Deus lhe perdoou os Igreja tem criado mil artifícios, em pecados. Para suscitar o sentimento de particular a consciência pecaminosa. O pecado, para fomentar contrições, “pecado" teria sido inventado, diz ele, observa Nietzsche, convém maltratar o para que o ser humano tenha corpo, colocando-o em estado enfermiço. necessidade a cada instante de acudir ao A interiorização do instinto de crueldade sacerdote. O sacerdócio reina graças à e a consciência das faltas ajudam também invenção do pecado. Mas esse reino, a preparar o sentimento de culpabilidade. estima Nietzsche, torna impossível a Mas este último, no sentido estrito, cultura, a ciência, toda a nobreza implica a relação à origem; é sentimento humana. Nesse ponto, Nietzsche constata de uma dívida para com a divindade. Em um contraste nítido entre a Igreja e Jesus. si mesma a culpabilidade pode ser um Segundo ele, as noções de falta e de sentimento “amorfo". Mas a interpretação castigo estão ausentes do “Evangelho". A sacerdotal lhe dá “forma", designando-o “Boa Nova" é a abolição do pecado, e de como “pecado". todo o sentimento de distância entre o Para Nietzsche, ver nesse sentimento homem e Deus. A imagem que Nietzsche doloroso um efeito do pecado não é mais propõe de Jesus é certamente discutível. que uma interpretação falsa. A pessoa Nietzsche estima que a noção de pecado que sofre busca instintivamente uma

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razão de seu sofrimento. O sacerdote uma nova fé: a crença numa metamorfose ascético trata de convencê-la de que a milagrosa. Inspirou-se no paganismo e "causa" de seu sofrer reside nas faltas que tomou dele um elemento tão antijudeu cometeu. A causa do mal está identificada como a crença na imortalidade. Realizou assim com o “culpável" mesmo. O uma seleção totalmente arbitrária de diagnóstico sacerdotal redobra a certos aspectos da vida e da morte de culpabilidade. Do seu jeito, o cristianismo Cristo (e ocultou os outros). Adaptou o dá sentido ao sofrimento, inculcando aos cristianismo às religiões da massa seres humanos que o sofrimento é um inferior. Inicialmente, o cristianismo era castigo e que pode ser redentor. Mas ao uma espécie de movimento pacifista. transformar o homem em “pecador", Paulo o transformou numa doutrina de objeta Nietzsche, faz sua enfermidade mistérios, capaz de entender-se com a piorar. Obviamente, o esforço de organização do Estado. Essas são, grosso Nietzsche por substituir uma explicação - modo, as razões pelas quais Nietzsche uma causa - por outra, não é invulnerável pensa que Paulo perverteu a mensagem à crítica. de Jesus.

IHU On-Line - Por que Nietzsche acusa IHU On-Line - Por que Nietzsche Paulo de ter pervertido a mensagem afirma que o Cristianismo de Paulo é de Jesus? uma radicalização do judaísmo? Em Emilio Brito - Segundo Nietzsche, Paulo que sentido Nietzsche considera de Tarso compreendeu que, a partir do Paulo como o inventor do pequeno movimento sectário cristão 27 , se Cristianismo? podia ascender um incêndio universal. Emilio Brito - Segundo Nietzsche, o Paulo entendeu que, graças ao símbolo cristianismo só podia nascer sobre o do “Deus crucificado", era possível reunir terreno do judaísmo. O cristianismo não em uma força imensa todo o que havia é um movimento de reação contra o sido oprimido. Paulo viu no cristianismo instinto judeu, senão a última a fórmula que permitia superar e conseqüência da terrível lógica do absorver todos os cultos “subterrâneos" judaísmo. Nietzsche considera o da Antigüidade. Cristianismo como uma repetição do Paulo colocou em primeiro plano a instinto sacerdotal do judaísmo. A noção de culpabilidade e de pecado, e invenção do cristianismo deve muito ao gênio de Paulo, que se situa na tradição do sacerdócio judeu (ao mesmo tempo 27 Aqui o entrevistado refere-se aos essênios, grupo que a nega). Mais do que ninguém, Paulo ou seita judaica ascética que teve existência desde ajudou a encontrar uma formulação mais ou menos o ano 150 a.C. até o ano de 70 d. C. Estavam relacionados com outros grupos religioso- paradoxal que aparentemente refuta o políticos, como os zadoquitas. Durante o domínio da judaísmo e em realidade o confirma. Dinastia Hasmónea, os essênios foram perseguidos. Nietzsche estima que os primeiros Retiraram-se para o deserto, vivendo em discípulos não compreenderam o sentido comunidade em estrito cumprimento da lei mosaica. Eram, portanto, um grupo de separatistas, a partir do que Jesus queria dar à sua morte. qual alguns formaram uma comunidade monástica Tentaram, pois, se vingar do judaísmo, ascética que se isolou no deserto. Na Bíblia não há elaborando a doutrina do sacrifício do menção sobre eles. Sabemos a seu respeito por Filho. Paulo, em particular, substitui a Josefo e por Fílon de Alexandria (filósofo judeu). O boa nova de Jesus pela mensagem da historiador Flávio Josefo relata a divisão dos judeus do Segundo Templo em três grupos: saduceus, cruz, que significa em definitivo a fariseus e essênios. (Nota da IHU OnOn----LineLine )

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vingança de Israel, a vitória do ideal Mas, pelo menos, Nietzsche se abstém de judeu. negar o gênio extraordinário (que ele Para Nietzsche, nada é menos evangélico considera, no entanto, nefasto) do que o sacrifício de expiação, o bárbaro Apóstolo dos Gentis, cuja obra contribui castigo do inocente pelos pecados dos como poucas a conferir ao cristianismo culpáveis. Paulo tem pregado ao sua enorme influência histórica. Redentor sobre “sua" cruz. Em Paulo, e Para concluir, eu diria que a crítica que em seu Dysangelio , se encarnaria assim o Nietzsche opõe ao cristianismo é tipo oposto ao “mensageiro da boa nova". certamente impressionante, mas seria O cristianismo de Paulo oferece ao velho ingênuo considerá-la indubitável. Ela ressentimento judeu o modo de tende demasiado a confundir o sobreviver. Segundo Nietzsche, o Deus cristianismo com suas deformações e a cristão, mistério de extremada crueldade, ver em sua história unicamente um agrava a fealdade do Deus judeu. Através processo degenerativo. A apresentação do “redentor" proclamado por Paulo, que que Nietzsche oferece do sacerdócio parecia, à primeira vista, opor-se a Israel, cristão à luz exclusiva do paulinismo - Israel conseguiu, pensa Nietzsche, a interpretado com muito pouca eqüidade - última meta de seu rancor. é sobremaneira estreita, incapaz de reconhecer a diversidade polifônica das O triunfo da vingança de Israel tradições cristãs. Em Nietzsche, a negação O judaísmo elevou sobre a cruz - como se da culpabilidade mórbida tende a se tratasse de um inimigo - o “redentor" que converter em negação da era, na realidade, o instrumento de sua responsabilidade. É evidente que a crítica vingança, oferecendo, assim, ao mundo elaborada por ele não tem sido concebida inteiro o mais perigoso e irresistível como uma contribuição positiva à "anzol". Pela cruz, tal como Paulo a renovação do cristianismo. Mas pode apresenta, a vingança de Israel e sua favorecê-la, na medida em que o cristão, inversão de todos os valores havia discernindo os limites da polêmica de triunfado, observa Nietzsche, sobre todo Nietzsche, mas também as deformações outro ideal. Poucos conhecedores do pseudocristãs, se aproximam a uma visão pensamento de Paulo se deixaram mais pura de sua fé. convencer pela interpretação excessiva que Nietzsche propõe do paulinismo.

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Paulo e Lutero

Entrevista com Júlio Zabatiero

“Não consigo imaginar o cristianismo sem Paulo. Sem a sua contribuição, muito provavelmente o cristianismo teria permanecido uma facção do judaísmo e, possivelmente desapareceria de cena. Não foi apenas Paulo, é claro, mas a tradição paulina do cristianismo nascente que trouxe a abertura para o mundo gentílico, a tradução dos principais conceitos e noções da fé judaico-cristã para o pensamento helênico, a possibilidade de um amplo diálogo com o pensamento ocidental, e as bases teológicas para a organização institucional das igrejas cristãs”. É o que afirma o teólogo Júlio Zabatiero em entrevista por e-mail à IHU OnOn----Line.Line. Ainda segundo ele, há uma crise na leitura “moderna” do pensamento paulino.

Zabatiero é graduado em Teologia pela Faculdade Teológica Batista de São Paulo, mestre e doutor na mesma área pela Escola Superior de Teologia (EST), onde atualmente leciona, com a tese Tempo e Espaço Sagrados em Deuteronômio 12,1- 17,13. Uma leitura sêmio-discursiva, publicada pela editora FTSA, de Londrina, em 2001. Possui, ainda as seguintes publicações: Miquéias: a voz dos semsem----terra.terra. Petrópolis: Vozes, 1996, Liberdade e paixão. Missiologia latinolatino----americanaamericana e o Antigo Testamento . Londrina: Descoberta, 2000 e Fundamentos da Teologia Prática .. São Paulo: Editora Mundo Cristão, 2005. Confira a íntegra da entrevista a seguir.

IHU On-Line - Quais considera os liberdade que é um dos temas cruciais da elementos mais importantes do modernidade; (2) a necessidade de pensamento paulino que geraram a decisão individual para chegar à salvação modernidade no ocidente? - o que contribuiu para o Júlio Zabatiero - Alguns aspectos do desenvolvimento da noção moderna de pensamento paulino, especialmente indivíduo; (3) a valorização ética da conforme interpretado por Santo família e especialmente do trabalho, com Agostinho, que foi reinterpretado pelos a afirmação da importância de primeiros reformadores, contribuíram obediência às autoridades - que para o surgimento da modernidade (eu contribuíram para a ética protestante que, não diria que “geraram", pois há várias segundo Weber 28 , foi um elemento fontes do surgimento da modernidade). Penso que os principais são: (1) a noção 28 Maximillion Weber (1864-1920): sociólogo alemão, da salvação como entrada na liberdade - considerado um dos fundadores da Sociologia. Ética

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simbólico importante na modernidade, e compreensão da salvação como uma que também ajudaram na formação do realidade pessoal, uma experiência entre estado moderno, conforme Quentin a pessoa e Deus, que não precisa da Skinner 29 , historiador que discutiu a mediação da instituição eclesiástica. contribuição dos reformadores para a Segundo, pela importância da formação dos estados modernos. confessionalidade firmemente fundada na Escritura, que contrabalança a força IHU On-Line - Como Lutero lia Paulo? da individualidade na experiência de Júlio Zabatiero - Lutero lia Paulo salvação. A instituição eclesiástica, assim, predominantemente de duas chaves reassume a sua importância, não mais hermenêuticas: (1) a chave da experiência como o espaço salvífico exclusivo, mas pessoal de libertação da necessidade de como a garantidora da confessionalidade boas obras pessoais para alcançar a verdadeira em fidelidade à Escritura salvação, o que se realiza apenas Sagrada. mediante a fé, a confiança na graça de Deus que recebe gratuitamente o pecador IHU On-Line - Quais são os principais com base nos méritos de Cristo; e (2) a pontos de convergência e de chave doutrinária da suficiência da divergência nas Escritura para fundamentar a doutrina e leituras de Paulo feitas por luteranos a experiência cristã. Assim, Paulo e católicos? interpretou a justificação pela graça Júlio Zabatiero - Nas primeiras décadas mediante a fé como o fundamento de sua da polêmica entre as igrejas católica e crítica ao que ele considerava ser uma luterana, os salvação « por obras" presente na principais pontos de divergência em doutrina católica de seu tempo. Essas relação à leitura de Paulo se situavam na duas chaves hermenêuticas foram chave hermenêutica confessional; fundamentais para a construção da enquanto as principais convergências se identidade luterana. Primeiro em sua situavam no viés agostiniano da interpretação dos textos paulinos. Com os protestante e o espírito do capitalismo é uma das diálogos eclesiásticos oficiais e suas mais conhecidas e importantes obras. A edição acadêmicos entre católicos e luteranos, brasileira mais recente foi publicada em 2004, pela tem se diluído a polêmica confessional Companhia das Letras, Rio de Janeiro. Com o título institucional. Não desapareceram, é claro, Max Weber: a ética protestante e o “espírito” do capitalismo. Cem anos depois , a IHU OnOn----LineLine as diferenças de compreensão dedicou-lhe a sua 101ª edição,de 17-05-2004. De eclesiológica, mas estas foram abrandadas Max Weber o IHU publicou o Cadernos IHU em em função da concepção da Igreja como Formação nº 3, 2005, chamado Max Weber ––– o povo de Deus no Vaticano II. No geral, espírito do capitalismocapitalismo. Em 10 de novembro de 2005, o professor Antônio Flávio Pierucci ministrou a porém, as interpretações contemporâneas conferência de encerramento do I Ciclo de Estudos de Paulo por luteranos e católicos são Repensando os Clássicos da EconomiaEconomia, promovido primariamente convergentes, pelo IHU, intitulada Relações e implicações da ética especialmente com o uso dos métodos protestante para o capitalismo . (Nota da IHU OnOn---- Line ) histórico-críticos.

29 Quentin SkinnerSkinner: historiador britânico. Ele se dizia não-marxista e defendia o pensamento de Marx IHU On-Line – Com base como crítica às injustiças do capitalismo. É professor especialmente no pensamento de de Ciência Política na Universidade de Cambridge. Marx Weber, haveria uma influencia Escreveu, entre outros, As fundações do direta do pensamento de Lutero na pensamento político moderno . S. Paulo: Cia. das Letras, 2003; Maquiavel. São Paulo: Brasiliense, 1988. ( Nota da IHU OnOn----Line)Line)

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constituição da modernidade em e relêem a temática paulina da liberdade. ocidente? Entre protestantes, devemos destacar o Júlio Zabatiero - Se entendo Max Weber, trabalho de Elsa Tamez 33 , que releu a a resposta deveria ser negativa. A noção paulina de justificação pela fé com contribuição da Reforma Protestante é base em postulados essenciais da teologia vista de forma indireta, em primeiro da libertação. lugar pelo apoio religioso que deu à separação entre Igreja e Estado e, em IHU On-Line - Como teria sido o segundo lugar, pela ética protestante do cristianismo sem a figura do apóstolo trabalho, que ajudou a legitimar Paulo? O que ele trouxe para a simbolicamente o capitalismo ocidental. religião nascente? Júlio Zabatiero - Não consigo imaginar o IHU On-Line - Com a crise da cristianismo sem Paulo. Sem a sua modernidade, entra em crise o contribuição, pensamento paulino ou precisa de muito provavelmente o cristianismo teria uma nova leitura? permanecido uma facção do judaísmo e, Júlio Zabatiero - Penso que entrou em possivelmente desapareceria de cena. crise a leitura “moderna" do pensamento Não foi apenas Paulo, é claro, mas a paulino. Há várias novas leituras do tradição paulina do cristianismo nascente pensamento paulino, que destacam a sua trouxe a abertura para o mundo gentílico, relevância para os nossos tempos. No a tradução dos principais conceitos e âmbito de estudiosos latino-americanos, noções da fé judaico-cristã para o apenas poderia mencionar como pensamento helênico, a possibilidade de exemplos os trabalhos de Joseph um amplo diálogo com o pensamento Comblin 30 (seus comentários a textos ocidental, e as bases teológicas para a paulinos na série Comentário Bíblico, e organização institucional das igrejas vários de seus livros mais recentes sobre cristãs. o cristianismo e a Igreja) por um lado, e Ana Flora Anderson 31 e Gilberto IHU On-Line - Quais são os principais Gorgulho 32 , por outro; os quais destacam desafios da teologia hoje e como o pensamento paulino pode trazer alguma perspectiva nesse sentido? 30 Joseph Comblin: padre belga, teólogo, trabalha no Júlio Zabatiero - Penso que a teologia nordeste brasileiro. Foi expulso do Brasil pela hoje tem como desafios mais importantes ditadura. Escreveu, entre outros, A ideologia da seguranca nacional: O poder militar na América (1) reconfigurar o seu espaço de Latina . 3. ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, relevância pública - ética, científica e 1980; A liberdade cristã . Rio de Janeiro: Vozes, 1977. política - na nova situação de (Nota da IHU OnOn----LineLine ) globalização em que nos encontramos; e (2) reimaginar a fé cristã para uma 31 Ana Flora Anderson: professora da Escola Dominicana de Teologia, em São Paulo, autora de, entre outros A História da Palavra II (Nova Aliança)Aliança), Nazaré (A compaixão de Deus) . São Paulo: Art-Color, Coleção Teologia Bíblica 3. São Paulo 2005. Com o 2001; A Justiça dos Pobres , 2. ed. Paulus, 1996 e Não frei Gilberto Gorgulho é uma das entusiastas da tenham Medo . 8. ed. Paulus, 1995. (Nota da IHU OnOn---- versão ecumênica da Bíblia na Internet. (Nota da Line ) IHU OnOn----LineLine ) 33 Elza Tamez: teóloga mexicana, metodista, 32 Gilberto Gorgulho: frei dominicano e historiador professora da Universidade Bíblica Latino-Americana do cristianismo, mestre em História do Cristianismo da Costa Rica, com vários livros traduzidos para o Primitivo, mestre e doutor em Exegese Bíblica português. (Nota da IHU OnOn----LineLine ). Judaico-Cristã. É autor de, entre outros, Jesus de

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religiosidade cada vez mais pós- amor" (Gl 5,6); e (b) a sua concepção confessional e pós-institucional. carismaticamente dinâmica da Considero que uma das contribuições comunidade de fé, como constituída por significativas do pensamento paulino pessoas que, em Cristo, podem construir para lidar com esses desafios sejam (a) sua identidade na relação pessoal com a sua noção da eficácia da fé centrada nas Deus e com os irmãos e irmãs, boas-obras de amor – mais importante do manifestada especialmente pelos que a doutrina e do que a experiência carismas mediante os quais a individual com Deus, é a vivência pública comunidade cristã serve a Deus servindo da experiência de fé "que opera pelo a si mesma e ao mundo amado por Deus.

Paulo e Kierkegaard

Entrevista com Álvaro Valls

O amor ao próximo como “verdadeira resposta para o egoísmo, o niilismo, o cinismo, a ironia, a hipocrisia, o ceticismo e o indiferentismo da sociedade atual”. Esse é um dos pontos em comum que podem ser apontados entre Paulo e Kierkegaard, avalia o filósofo Álvaro Valls. O professor faz, ainda, ponderações entre Kierkegaard com diversos outros autores, como Nietzsche e Dostoiévski. As declarações foram feitas por e-mail à IHU OnOn----Line.Line.

Doutor e mestre em Filosofia pela Universität Heidelberg, da Alemanha, com a tese O conceito de história nos escritos de Soeren Kierkegaard, Valls é professor e pesquisador no PPG em Filosofia da Unisinos. É autor dos livros O que é éticaética. São Paulo: Brasiliense, 1986; Da ética à bioética. Petrópolis: Vozes, 2004. É o tradutor e organizador da obra Do Desespero Silencioso ao Elogio do Amor Desinteressado --- Aforismos, novelas e discursos, de Sören Kierkegaard . Porto Alegre: Escritos, 2004, da qual a edição 123 da IHU OnOn----LineLine , de 16 de novembro de 2004, publicou a orelha do livro. A obra foi apresentada no Sala de Leitura de 16 de novembro daquele ano.

IHU On-Line - Como foi a recepção do Álvaro Valls - Paulo é certamente o autor pensamento paulino no Ocidente? mais influente no cristianismo primitivo. Quais as correntes filosóficas mais Existem até certos livros sobre moral cristã influenciadas por esse pensamento? divididos em duas partes, a primeira para os ensinamentos de Jesus, a segunda para

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os de Paulo, - o que parece de fato um de Paulo em Roma, era chamado pelos tanto abusivo, ou ao menos impertinente. cristãos saepe noster . Por essas e outras decerto é que Nietzsche 34 chamou Paulo de “o inventor do IHU On-Line - Que relações podemos cristianismo”, isto é, seu sistematizador e encontrar entre Paulo e Kierkegaard? grande divulgador (Nietzsche queria dizer Álvaro Valls - Kierkegaard 37 é filósofo, também: seu deturpador, corruptor, é teólogo, psicólogo e literato, se quisermos verdade). A influência de Paulo de Tarso na utilizar estas categorias e especializações. teologia é absolutamente central, mas na Mas ele mesmo se definiu como um filosofia em geral ele influencia todos os “escritor religioso”. Metade de sua pensadores de linhagem cristã. Há quem produção, principalmente os Discursos diga que, ao contrário do que se supõe, o edificantes e os Discursos cristãos , costuma cristianismo não foi marcado tanto pelo usar alguma citação bíblica como mote de platonismo quanto pelo estoicismo, e Tarso um desenvolvimento filosófico. E aí então era de uma região onde o estoicismo as passagens do Novo Testamento imperava, com Zenão 35 . Daí talvez certas preponderam, com um equilíbrio entre idéias como da conflagração universal no citações dos evangelhos e das epístolas. De cristianismo, o fim do mundo pelo fogo... resto, Paulo é citado a toda hora e por toda Parece que o grande filósofo estóico parte. Quase todas as cartas que foram Sêneca 36 , que pode ter sido contemporâneo atribuídas de um jeito ou de outro a Paulo são citadas nas passagens mais conhecidas. Há, contudo, uma passagem muito especial, 34 Friedrich Nietzsche (1844-1900): filósofo alemão, conhecido por seus polêmicos conceitos “além-do- nos Discursos em vários espíritos , quando, homem”, transvaloração dos valores, niilismo, vontade com uma ironia matreira e uma incrível de poder e eterno retorno. Entre suas obras figuram mistura de seriedade e graça, o escritor como as mais importantes Assim Falou ZaratustraZaratustra. 9. dinamarquês monta uma verdadeira “prova ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1998 ; O AnticristoAnticristo. Lisboa: Guimarães, 1916; A Genealogia da da ressurreição”, argumentando que: se Moral. 5. ed. São Paulo: Centauro, 2004 . Escreveu até uma outra vida depois dessa não existisse, 1888, quando foi acometido por um colapso nervoso precisaria ser inventada, pois caso contrário que nunca o abandonou, até o dia de sua morte. A São Paulo seria, conforme suas próprias Nietzsche foi dedicado o tema de capa da edição palavras, a mais lamentável das criaturas. O número 127 da IHU OnOn----LineLine , de 13 de dezembro de 2004. (Nota da IHU OnOn----LineLineLine)

da razão pela paixão. Essas peças influenciaram 35 Zenão de Eléia (495 a. C. – 430 a. C.): filósofo nascido bastante a tragédia na Itália, na França e na Inglaterra em Eléia, hoje Vélia, Itália. Foi discípulo de Parmêndies elisabetana. Sua filosofia moral, inspirada na doutrina e defendeu de modo apaixonado a filosofia do estóica, está expressa nos diálogos, tratados e cartas, mestre. Seu método consistia na elaboração de Epístolas morais a Lucílio , que escreveu. As tragédias paradoxos. Desse modo, não pretendia refutar Medéia, As troianas, Agamenon, Fedra , são, diretamente as teses que combatia, mas sim mostrar geralmente, atribuídas a Sêneca .(Nota da IHU On-Line ) os absurdos daquelas teses (e, portanto, sua falsidade). Acredita-se que Zenão tenha criado cerca de quarenta destes paradoxos, todos contra a 37 Soren Kierkegaard (1813-1855): filósofo dinamarquês multiplicidade, a divisibilidade e o movimento (que existencialista. Filosoficamente, faz uma ponte entre a nada mais são que ilusões, segundo a escola eleática). filosofia de Hegel e aquilo que viria a ser o (Nota da IHU OnOn----LineLine ) existencialismo. Kierkegaard negou tanto a filosofia 36 Sêneca (4 a.C. – 65d.C.): estadista, escritor e filósofo hegeliana de seu tempo, bem como aquilo que estóico romano. De suas obras, restam 12 ensaios classificava como as formalidades vazias da Igreja filosóficos, 124 cartas, um ensaio meteorológico, uma dinamarquesa. Boa parte de sua obra dedica-se à sátira e nove tragédias. Suas tragédias têm por tema discussão de questões religiosas como a natureza da assuntos explorados por dramaturgos gregos, mas são fé, a instituição da Igreja cristã, a ética cristã e a melodramas intensos e violentos, fixando-se na crença teologia. (Nota da IHIHIHUIH U OnOn----LineLine ) estóica de que a catástrofe é resultado da destruição

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que, é claro, não poderia ser o caso! Assim, Fichte 39 , Schelling 40 , Hegel 41 (com seus a prova viva de que há uma outra vida seria o próprio Apóstolo... Nietzsche arrancaria Emmanuel Kant - Razão, liberdade, lógica e ética . Os os bigodes, furioso com uma demonstração Cadernos IHU em formação estão disponíveis para tão pouco racional, e afirmaria que a fé só download na página www.unisinos.br/ihu do Instituto prova a si mesma, pois é mais ou menos o Humanitas Unisinos – IHU. (Nota da IHU OnOn----LineLine ) que Kierkegaard tem em mente! 39 Johann Gottlieb Fichte (1762-1814): filósofo alemão. Exerceu forte influência sobre os representantes do IHU On-Line - Como é o conceito de nacionalismo alemão, assim como sobre as teorias liberdade em cada um deles e que filosóficas de Schelling, Hegel e Schopenhauer. Fichte relações pode ter com o conceito de decidiu devotar sua vida à filosofia depois de ler as autonomia tão presente na três Críticas de Immanuel Kant, publicadas em 1781, 1788 e 1790. Sua investigação de uma crítica de toda a modernidade? revelação obteve a aprovação de Kant, que pediu a Álvaro Valls - Não conheço bem o seu próprio editor para publicar o manuscrito. O livro conceito paulino de liberdade, talvez a dos surgiu em 1792, sem o nome e o prefácio do autor, e filhos de Deus, salvos pela graça de Cristo, foi saudado amplamente como uma nova obra de de tal modo que para os puros tudo é puro; Kant. Quando Kant esclareceu o equívoco, Fichte tornou-se famoso do dia para a noite e foi convidado a mas em Kierkegaard ele aparece mais lecionar na Universidade de Jena. Fichte foi um desenvolvido em O Conceito Angústia , de conferencista popular, mas suas obras teóricas são 1844, na perspectiva antropológica de um difíceis. Acusado de ateísmo, perdeu o emprego e homem que realiza sua síntese do corpóreo mudou-se para Berlim. Seus Discursos à nação alemã são sua obra mais conhecida. (Nota da IHU OnOn----LineLine ) e do psíquico no espírito, e do tempo e da 40 Friedrich Wilhelm Joseph von Schelling (1775-1854):: eternidade no “instante”. Decide, então, filósofo alemão. Suas primeiras obras são geralmente numa escolha de valor infinito e absoluto, vistas como um elo importante entre Kant e Fichte, de sobre a significação eterna de sua um lado, e Hegel, de outro. Essas obras são existência. Mas esta liberdade humana se representativas do idealismo e do romantismo alemães. Criticou a filosofia de Hegel como «filosofia enreda na angústia, e se afirma (na hora da negativa». Schelling tentou desenvolver uma «filosofia graça) ou fracassa ante a possibilidade do positiva», que influenciou o existencialismo. Entrou pecado, as tentações e as provações. A para o seminário teológico de Tubingen aos 16 anos. leitura de Agostinho é inegável, mas Kant 38 , (Nota da IHU OnOn----LineLine )

41 Friedrich Hegel (1770-1831): filósofo alemão. Foi um 38 Immanuel Kant (1724-1804): Filósofo prussiano, dos pensadores mais influentes dos tempos recentes. geralmente considerado como o último grande Como Aristóteles e Santo Tomás de Aquino, Hegel filósofo dos princípios da era moderna, representante tentou desenvolver um sistema filosófico no qual do Iluminismo, indiscutivelmente um dos seus estivessem integradas todas as contribuições de seus pensadores mais influentes da Filosofia. Kant causou principais predecessores. Sua primeira obra, A um grande impacto no Romantismo alemão e nas fenomenologia do espírito , tornou-se a favorita dos filosofias idealistas do século XIX, tendo esta faceta hegelianos da Europa continental no séc. XX. Nesse idealista sido um ponto de partida para Hegel. Kant livro, Hegel considerava uma variedade tão grande de estabeleceu uma distinção entre os fenômenos e a concepções quanto os diversos estados da mente, e as coisa-em-si (que chamou noumenon ), isto é, entre o encarava como estágios no desenvolvimento do que nos aparece e o que existiria em si mesmo. A espírito em direção a uma maior maturidade. Sua coisa-em-si ( noumenon ) não poderia, segundo Kant, segunda obra, A Ciência da Lógica , tenta fazer uma ser objeto de conhecimento científico, como até então análise sistemática dos conceitos. Sua Enciclopédia das pretendera a metafísica clássica. A ciência se ciências filosóficas contém todo o seu sistema de uma restringiria, assim, ao mundo dos fenômenos, e seria forma condensada. O último livro de Hegel foi A constituída pelas formas a priori da sensibilidade filosofia do direitodireito. Depois de sua morte, seus alunos (espaço e tempo) e pelas categorias do entendimento. publicaram suas conferências sobre filosofia da A IHU OnOn----LineLine número 93, de 22 de março de 2004, história, da religião e da arte, e sobre história da dedicou sua matéria de capa à vida e à obra do filosofia, usando principalmente suas anotações. (Nota pensador. Também sobre Kant foi publicado este ano da IHU OnOn----LineLine ) o Cadernos IHU em formação número 2, intitulado

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intérpretes dinamarqueses, como Heiberg e sobre Schelling). Esta outra vertente Adler) e Schleiermacher 42 também ajudam filosófica altera bastante o conceito de a compor o quadro. De resto, o conceito de liberdade, fato que nem sempre é levado autonomia, como se pode ver no belo livro em conta. De qualquer modo, como não há de J. B. Schneewind 43 , A Invenção da uma autonomia vazia, abstrata, podemos Autonomia:Autonomia : uma história da filosofiafi losofia moral falar da liberdade perguntando-nos “o que moderna ... São Leopoldo: Unisinos, 2001, fazer daquilo que é feito de nós”. Aí então floresce com Kant, e se afirma na vale a pena ler os pensadores da perspectiva da Aufklärung 44 . Finalmente se hermenêutica, a começar por Gadamer 46 e radicaliza em Fichte, que é decerto um dos outros mais contemporâneos. mestres de Kierkegaard, mas não esqueçamos as importantíssimas IHU On-Line - Que aspectos podemos investigações de Schelling (outro de seus encontrar em comum no conceito de mestres) Sobre a essência da liberdade amor em Kierkegaard e em Paulo? humana (de 1809, que foram tão bem Como seria uma filosofia do amor, valorizadas por Heidegger 45 na sua Preleção influenciada por ambos? Álvaro Valls - De um modo especial, Kierkegaard desenvolve, à luz da primeira 42 Friedrich Daniel Ernst Schleiermacher (1768-1834): teólogo, filósofo e pedagogo alemão. Foi co- carta aos Coríntios, sua reflexão sobre o responsável pela aparição da teologia liberal, negando amor cristão, acompanhando o chamado a historicidade dos milagres e a autoridade literal das Hino à caridade ... Isso ocupa a segunda Escrituras. (Nota da IHU OnOn----LineLine ) parte do livro de 1847, As Obras do Amor , 43 Jerome B. Schneewind: filósofo, professor de filosofia cuja primeira parte comenta o moral na Universidade de Baltimore e professor emérito de filosofia na Universidade John Hopkins, mandamento evangélico do amor. O amor ambas nos EUA. (Nota da IHU OnOn----LineLine ) cristão, neste livro, contrasta com o 44 Aufklärung: Em português, Esclarecimento, ou ainda, platônico (Eros) e o aristotélico (Filia). mais corretamente, Iluminismo - movimento Kierkegaard distingue as características intelectual surgido na segunda metade do século XVIII “crísticas” (isto é, essenciais do (o chamado "século das luzes") que enfatizava a razão e a ciência como formas de explicar o universo. Foi um cristianismo) das pagãs, e interpreta as dos movimentos impulsionadores do capitalismo e da formas pagãs de amor como formas de sociedade moderna. Foi um movimento que obteve egoísmo, amor de si. Nesse livro, ele não grande dinâmica nos países protestantes e lenta porém gradual influência nos países católicos. O nome se explica porque os filósofos da época acreditavam um "ser-para-a-morte". Aceitar esta situação é o sinal estar iluminando as mentes das pessoas. É, de certo da autenticidade, para o homem. Colocar a modo, um pensamento herdeiro da tradição do autenticidade, para o homem, é levantar as diferentes Renascimento e do Humanismo por defender a maneiras de ser: facticidade, derrelição, historicidade. valorização do homem e da razão. Os iluministas São os temas fundamentais que Heidegger aborda na acreditavam que a razão seria a explicação para todas sua obra máxima, O ser e o tempo (1927). A as coisas no universo, e se contrapunham à fé. (Nota problemática heideggeriana é ampliada em Que é da IHU OnOn----LineLine ) Metafísica? (1929), Cartas sobre o humanismo (1947), Introdução à metafísica (1953). Sobre Heidegger, a 45 Martin Heidegger de Messkirch (1889-1976): filósofo IHU OnOn----LineLine publicou na edição 139, de 2 de maio de alemão. Doutorou-se em Filosofia sob a orientação de 2005, o artigo O pensamento jurídico-político de Edmund Husserl. Em 1933, acontecimentos políticos Heidegger e Carl Schmitt. A fascinação por noções levaram-no a aderir ao partido nazista e assumir a fundadoras do nazismo. (Nota da IHU OnOn----LineLine ) reitoria da Universidade de Friburgo, cargo do qual se demitiu alguns meses depois. A seus olhos, o que 46 HansHans- ---GeorgGeorg GadamerGadamer: filósofo alemão, autor do define a ontologia e sua história é o esquecimento do importante livro Verdade e método . Petrópolis: Vozes, ser como lugar de questionamento. Ora, o ser como 1997. faleceu no dia 13 de março de 2002, aos 102 questão define um ente particular, que é o ser-aí, o anos. Por essa razão, dedicamos a ele a matéria de Dasein. Este Dasein é o homem. Ora, o ser-aí é aquele capa da IHU OnOn----LineLine número 9, de 18 de março de que pode ao mesmo tempo existir e saber, a todo 2002. (Nota do IHU On-Line ) momento e ao mesmo tempo, que deixar de existir: é

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está interessado, como o fazia o autor uma liberdade supracorpórea, outros afinal pseudônimo da segunda parte de A a negaram, alinhando-se a múltiplas formas Alternativa , em 1843, em mostrar como o de determinismos. O conflito já está elemento erótico do amor pode escancarado entre Spinoza 48 e Leibniz 49 , harmonizar-se com o aspecto ético. Em mas pode ser depois acompanhado em parte, talvez, é isso o que o Papa atual, Darwin 50 , em Marx e em Freud 51 , ou hoje Bento XVI, tenta fazer na sua recente encíclica Deus é amor , com seu esforço por 48 Baruch de Espinosa (1632-1677): filósofo holandês, reintegrar o Eros em Ágape. Mas o fato é pertencente a uma família judia originária de Portugal. que Kierkegaard enfrentava em sua época Ainda jovem apaixona-se pelos estudos e aprende o (da “morte de Deus”, e da crítica à religião hebraico e as línguas clássicas. Lê Descartes com institucionalizada como fundamento da avidez, um dos seus filósofos favoritos. Cedo suas idéias tornam-se conhecidas, e os judeus consideram- crítica política e de todas as demais críticas, nas heréticas. Por isso é expulso da sinagoga. Em 47 conforme Marx ) um outro desafio: 1656, é vítima de uma tentativa de assassinato. Para radicalizar o amor cristão, como amor ao evitar que se torne um perseguido, retira-se para próximo, para mostrar como este é a Leyden e para Rynsverg e ganha a vida polindo lentes verdadeira resposta para o egoísmo, o para telescópios e microscópios. Publica um Tratado Político (Tractus Tehologico-Politicus), e a Ética e deixa niilismo, o cinismo, a ironia, a hipocrisia, o várias obras inéditas, que são publicadas em 1677 com ceticismo e o indiferentismo da sociedade o título de Opera Posthuma . (Nota da IHU On-Line ) atual. De qualquer modo, o conceito 49 Gottfried Wilhelm von Leibniz ((164616461646----1716)1716)1716): filósofo, central aí é o do “próximo”, que pode valer cientista, matemático, diplomata e bibliotecário para qualquer um, e por isso exclui os alemão. A ele é creditada a criação do termo “função” (1694), que usou para descrever uma quantidade exclusivismos. Também é fundamental a relacionada a uma curva. Geralmente, juntamente com expressão evangélica “como a si mesmo”, Newton, é creditado a Leibniz o desenvolvimento do que impede as tergiversações, ou ainda, o cálculo moderno; em particular por seu “como eu vos amei” (de João, 13, 34), desenvolvimento da Integral e da Regra do Produto. (Nota da IHU OnOn----LineLine ) provocando a gratuidade. 50 Charles Robert Darwin (1809-1882): naturalista britânico, propositor da Teoria da Seleção natural e da IHU On-Line - Quais são as principais base da Teoria da Evolução no livro A Origem das questões em debate ao pensarmos o Espécies. Teve suas principais idéias em uma visita ao rumo que o conceito de liberdade foi arquipélago de Galápagos, quando percebeu que tomando na modernidade e depois na pássaros da mesma espécie possuíam características morfológicas diferentes, o que estava relacionado com contemporaneidade? o ambiente em que viviam. Em 30 de novembro de Álvaro Valls - O conceito de liberdade 2005, a Prof.ª Dr.ª Anna Carolina Krebs Pereira Regner sofreu bastante, nos tempos modernos, apresentou a obra Sobre a origem das espécies devido às dicotomias em vários pensadores através da seleção natural ou a preservação de raças favorecidas na luta pela vida, de Charles Darwin, no entre corpo e alma. Uns então enfatizaram evento Abrindo o Livro ,,, do Instituto Humanitas Unisinos. A respeito do assunto ela concedeu entrevista à IHU OnOn----LineLine 166, de 28 de novembro de 2005. (Nota da IHU OnOn----LineLine ) 47 Karl Heinrich Marx (1818 – 1883): filósofo, cientista social, economista, historiador e revolucionário alemão, um dos pensadores que exerceram maior 51 Sigmund Freud (1856-1939): neurologista e fundador influência sobre o pensamento social e sobre os da Psicanálise. Interessou-se, inicialmente, pela destinos da humanidade no século XX. Marx foi histeria e, tendo como método a hipnose, estudava estudado no Ciclo de Estudos Repensando os ClássicosClássicos pessoas que apresentavam esse quadro. Mais tarde, da Economia . A palestra A Utopia de um novo interessado pelo inconsciente e pelas pulsões, foi paradigma para a economia foi proferida pela Prof.ª influenciado por Charcot e Leibniz, abandonando a Dr.ª Leda Maria Paulani, no último dia 23 de junho. O hipnose em favor da associação livre. Estes elementos Caderno IHU Idéias , edição número 41, teve como tornaram-se bases da Psicanálise. Freud, além de ter tema A (anti)filosofia de Karl Marx , com artigo de sido um grande cientista e escritor, realizou, assim autoria da mesma professora. (Nota da IHU OnOn----LineLine ) como Darwin e Copérnico, uma revolução no âmbito

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nos pensadores da física e da biologia, “Christlichkeit”, que não é nem entre os quais alguns com prêmio Nobel, e “Christentum” e nem “Christenheit”). Um que não sabem o que fazer com a filósofo que passou pela escola da ironia liberdade. A visão do homem como ser precisa, é claro, de um conceito abstrato, do espiritual deveria refletir sobre a integração tipo dos adjetivos substantivados entre o somático e o psíquico, chegando a platônicos, para poder questionar se este uma teoria mais complexa do que seja o senhor que entra na igreja no domingo e se espírito. É significativo que o velho Hegel, diz cristão é “verdadeiramente” cristão. em geral tão pouco dado à poesia, Como saber se ele o é? Somente se considere que o estar-junto-a-si-no-outro utilizarmos um conceito, para comparar o seja a fórmula não só da liberdade, mas fenômeno e a essência, ou a essência e a também, acentuando o outro elemento, a aparência. (Aliás, isso lembra de longe o fórmula do amor. Michael Theunissen, em título da obra de Feuerbach: A Essência do Heidelberg, lembrava que a concepção Cristianismo, de 1841.) Mas não podemos liberal da liberdade não satisfazia, pois se nos descuidar com a ironia, pois é possível vemos o outro como limite de nossa que todo este discurso tenha muito de liberdade, esta não se responsabiliza pelo teatral, como ocorreu na Dinamarca de outro. 1855, com Kierkegaard, vestido a caráter, produzindo a “catástrofe”, na polêmica IHU On-Line - Que relações podemos contra a Igreja estabelecida, a que acusa de estabelecer entre o cristianismo como mundanizada. Contra esta Igreja, que teria mensagem e o cristianismo como supostamente traído o cristianismo, fenômeno social, geográfico vendendo-o com desconto, mas afirmando instituição? passá-lo por seu valor real, Kierkegaard Álvaro Valls - A tradição cristã possuía, de utiliza um “bordão”, no sentido jornalístico: resto, outra distinção, quando falava de “o cristianismo do Novo Testamento”. igreja militante, padecente e triunfante. A Trata-se de um bordão com finalidades comunhão dos santos, em todo o caso, não polêmicas, brandido por um “Mestre da é um fenômeno empírico, visível sem mais. ironia”, mas inclui, supostamente, a Kierkegaard, além dos dois conceitos realidade dos Evangelhos, dos Atos, e a citados (cristianismo e cristandade) mentalidade expressa nas Epístolas. Neste desenvolveu ainda o de “cristicidade” (tal caso, Paulo é uma das autoridades maiores como Nietzsche e Adorno 52 falaram de chamadas à colação.

IHU On-Line - Por que o cristianismo

teria tido outra recepção em Oriente? humano: a idéia de que somos movidos pelo inconsciente. Freud, suas teorias, e seu tratamento Qual é o principal desafio do com seus pacientes foram controversos na Viena do cristianismo hoje? século XIX, e continuam muito debatidos hoje. (Nota Álvaro Valls - Para falar do Oriente, falta- da IHU OnOn----LineLine ) me competência, mas posso dar um exemplo atual do que venho fazendo nas 52 Theodor Wiesengrund Adorno (1903-1969): um dos pesquisas que desenvolvo como bolsista do mais importantes intelectuais alemães do século XX. Sociólogo, filósofo, musicólogo e compositor, ele CNPq. Em meu projeto de aproximação e definiu o perfil do pensamento alemão das últimas comparação entre Kierkegaard e Nietzsche, décadas. Adorno ficou conhecido no mundo há um terceiro elemento, extremamente intelectual, em todos os países, em especial pelo seu clássico, Dialética do Iluminismo , escrito com Max Horkheimer, seu inseparável parceiro e primeiro conhecemos hoje como Escola de Frankfurt (Nota da diretor do Instituto de Pesquisa Social, que deu origem IHU OnOn----LineLine ). ao movimento de idéias em filosofia e sociologia que

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enriquecedor. Refiro-me a Dostoiévski, não ofende e até ajuda a entender muita contemporâneo dos dois, embora sem ter coisa: de fato, Jesus, como depois Dom conhecido nenhum deles. Nosso escritor Quixote, vive em sua própria realidade, russo, como sabemos todos, esforça-se para maior que a dos outros, e tem sua lógica viver e pensar conforme o cristianismo própria, sua linguagem particular (“e quem ortodoxo, o que o aproxima incrivelmente puder compreender que compreenda”...). do luterano dinamarquês Kierkegaard, o O que lhe interessa - e neste ponto qual, aliás, dizia que não devemos defender Nietzsche pode ter muita razão - é que o cristianismo (e principalmente não Jesus veio para transmitir-nos uma defendê-lo dando descontos, fazendo “prática”, uma maneira de existir, mais do liquidação), mas talvez defender a que qualquer crença como um teórico e humanidade diante das exigências tão altas abstrato “ter-algo-por-verdadeiro”. Neste do verdadeiro cristianismo. O autor russo ponto, Kierkegaard, com toda a sua concordaria em muitos pontos com o formação paulina, não deixaria de dar os dinamarquês, assim como o alemão parabéns a Nietzsche pela felicidade de sua Nietzsche aproveitou tanto das descrições formulação: o que interessa é a prática! O psicossociais do grande romancista russo, que, de resto, o quarto Evangelho confirma: em especial as análises do niilismo. Crime “Nisto todos conhecerão que sois meus e Castigo , Os Demônios ou Os Irmãos discípulos, se vos amardes uns aos outros” Karamázov apresentam um riquíssimo (Jo 13, 35). E o versículo anterior do painel de nossa realidade atual, com todo o mesmo Evangelho responde à segunda cinismo profetizado por Ivan Karamazov, parte da pergunta acima: Qual é o principal na frase “Se Deus não existe, tudo é desafio do cristianismo hoje? Resposta: permitido”. Até assassinar o próprio pai? Viver de acordo com Jo 13, 34: “Dou-vos Por que não, perguntarão hoje alguns um novo mandamento: Amai-vos uns aos jovens drogados, bem próximos de nós. E outros. Como eu vos tenho amado, assim na política também? Por que não? Mas, também vós deveis amar-vos uns aos bem entendido, somente se Deus não outros”. Este é o principal desafio, ainda existe... Enfim, para retornar do Oriente nos dias de hoje. Se obedecermos a este para o Ocidente, o romance O Idiota foi mandamento, não precisaremos desesperar outra obra de Dostoievski com enorme nem com o terrorismo, nem com o penetração psicológica e fundo religioso, cinismo, nem com o fundamentalismo, que produziu tal impacto no ateu pois este é um fundamento que não exclui, combativo Nietzsche, que este descreve o mas inclui a todos. E o cinismo, a longo perfil psicológico de Jesus com a expressão prazo, não resiste ao amor, a única força “idiota”. Bem compreendida, esta expressão capaz de movê-lo.

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Brasil em foco

As conseqüências de governar para o mercado

Entrevista com Fernando Cardim Carvalho

O governo de Lula herdou um programa econômico desenhado pelo Fundo Monetário Internacional. Esse é o pensamento do economista Fernando Jose Cardim de Carvalho, professor titular no Instituto de Economia da Universidade Federal do Rio de Janeiro, concedida por e-mail à IHU OnOn----Line,Line, avaliou a atual situação política e econômica do País. Doutor em economia pela Universidade de Nova Jersey escreveu um capítulo no livro Adeus ao Desenvolvimento: A Opção do Governo Lula. Belo Horizonte, 2005, organizado por J. A. de Paula intitulado, FHC, Lula e a desconstrução da esquerda....

No texto, o professor diz que nem PSDB, nem PT deram qualquer ênfase real aos objetivos da esquerda democrática. Ambos governaram para o mercado e nos estreitos limites fixados por ele.

IHU On-Line - O modelo político investimentos, aumentar a produção, econômico do governo Lula expandir o mercado de trabalho etc. Na desgastou-se ou já começou mal? prática, o pagamento de taxas de juros, Fernando Cardim Carvalho - O governo excepcionalmente altas, a dívida pública Lula deu continuidade a um programa e a priorização absoluta das despesas econômico herdado do segundo governo financeiras sobre todas as outras na de Fernando Henrique Cardoso e que alocação orçamentária ganham a tinha sido desenhado, em suas linhas confiança dos mercados financeiros. gerais, pelo Fundo Monetário Tem-se assim uma combinação de Internacional, quando concedeu políticas monetária e fiscal altamente financiamento ao Brasil para que perversas e com impactos perversos sobre atravessasse a crise cambial de 1999. Este a taxa de câmbio também do ponto de programa consiste na conquista da vista do crescimento. Nos governos FHC, confiança dos « mercados", palavra que a postura liberal deixou o País à mercê de designa os mercados financeiros locais e movimentos desestabilizantes de capitais internacionais, na expectativa de que a financeiros, como durante a crise aprovação do governo pelos mercados mexicana, as crises asiáticas e depois a estimule empresas produtivas a fazer

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crise russa, até o colapso de 1999 53 . No considerando-se que Serra foi ministro de governo Lula, essa mesma postura fez o FHC, abrisse a possibilidade de discussão Brasil crescer as menores taxas do mundo de alternativas efetivas de política. Serra, em um período em que a economia afinal, foi um crítico público das políticas internacional esteve excepcionalmente econômicas de FHC, mesmo na favorável. qualidade de ministro da Saúde. A escolha do PSDB, no entanto, parece ter IHU On-Line - Em às divergências sido pela reafirmação de sua face mais entre o grupo do ex-ministro Antonio conservadora. Alckmin é uma incógnita Palocci e o do ministro da Justiça, fora de São Paulo, mas os sinais que dá, Márcio Thomaz Bastos. Qual sua de aproximação com a equipe de FHC, avaliação? promete o pior. O ex-presidente Itamar Fernando Cardim Carvalho - A queda Franco está sendo cogitado, mas parece de Palocci não se deveu à sua política pouco provável que consiga a indicação econômica, já que o próprio presidente de um partido fragmentado como o insiste que não conhece outra, mas a PMDB. De qualquer modo, não há ainda escândalos de corrupção, favorecimentos qualquer indicação do que seria seu e, ao final, de abuso de poder no episódio possível programa de governo. Apesar de da violação do sigilo bancário do caseiro. sua personalidade mercurial, seu curto É exasperante como neste país grupos governo não foi ruim, sendo responsável que se alimentam por anos a fio da pelo plano de estabilização que FHC retórica moralizante entregam-se aos espertamente tratou de dar seu nome. vícios de sempre quando chega sua vez. Garotinho seria, muito provavelmente, Mas, francamente, mais exasperante um enorme desastre. O estado em que ainda é a falta de idéias substantivas para está o Rio de Janeiro é prova viva da o futuro do País. É difícil imaginar uma capacidade administrativa da família quebra de confiança mais grave do que Garotinho. Alem disso, o governo de sua ver o próprio presidente referir-se ao seu esposa tem patrocinado desastres próprio discurso de vinte anos como inacreditáveis, como o ensino da visão « bravatas ». FHC pediu que esquecessem criacionista nas escolas do Estado. Só não o que escreveu. Lula simplesmente nos tornamos uma piada mundial como afirmou que o que disse antes era no caso de Kansas porque poucos “balela”. prestam atenção no que faz o governo do Rio. Seria inimaginável o que estas pessoas fariam com um ministério da IHU On-Line - Muitos nomes estão educação nas mãos. sendo anunciados para a candidatura à Presidência da República. Que IHU On-Line - Com toda essa crise propostas econômicas podemos política o mercado brasileiro parece esperar deles? inalterado. É verdade? Fernando Cardim Carvalho - Havia Fernando Cardim Carvalho - Até agora, grande expectativa de que uma sim. As alternativas eleitorais que candidatura do José Serra, por mais apareceram não representam nenhuma paradoxal que isso possa soar, ameaça à continuidade das políticas implementadas nesses últimos doze anos. Com Lula ou com Alckmin o mercado 53 Colapso do Real. Houve uma alta na dívida pública está tranqüilo. Com Itamar, quem sabe? e nos juros. (Nota da IHU OnOn----LineLine ).

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Com Garotinho seria além da Venezuela e Bolívia potencializando imaginação. diversas fontes energéticas? Fernando Cardim Carvalho - As IHU On-Line – Aparentemente, na relações com a Bolívia são sempre muito América Latina as políticas delicadas devido às diferenças de econômicas de esquerda e direita não desenvolvimento e poder político entre apresentam grandes diferenças. Brasil e Bolívia, um dos mais pobres Exemplo disso é Lula no Brasil, países do continente. O conflito atual Vázquez no Uruguai e Bachelet no com a Petrobrás, por exemplo, parece de Chile. O senhor concorda? O que difícil solução, porque do lado brasileiro aconteceu com a esquerda? o problema do gás é principalmente Fernando Cardim de Carvalho - comercial, enquanto do lado boliviano é Bachelet acabou de assumir, é difícil de soberania nacional. É possível que se dizer o que será seu governo. Mas há chegue a uma solução aceitável para diferenças importantes como, por ambos, mas alianças com países de exemplo, o caso do Presidente Kirchner, desenvolvimento similar, como a na Argentina, para não falar de Argentina, mesmo que fora da região, experiências populistas como a de como no caso da Índia e da África do Sul, Chávez. Eu tenho a impressão de que o são muito mais promissoras. contraste entre Kirchner e Lula é mais interessante que a similaridade deste com IHU On-Line - O senhor escreveu um Vázquez. O Uruguai não tem muito artigo intitulado FHC, Lula e a espaço de decisão autônoma, prensado desconstrução da esquerda . Quais as pela convivência com dois vizinhos idéias fundamentais? enormes, como o Brasil e a Argentina. Já Fernando Cardim Carvalho - O PSDB e a Argentina se confrontou com o FMI, por o PT apareceram como propostas de exemplo, e impôs seu ponto de vista. renovação da esquerda, substituindo a Manteve as políticas de juros que achou sua tradição revolucionária por uma melhores e com isso conseguiu uma tradição democrática. Assim, apesar do disciplina fiscal semelhante à do Brasil PT não gostar do rótulo, ambos nasceram sem sacrificar seu crescimento. Suas com planos próximos ao do socialismo e políticas sociais têm uma natureza mais da social-democracia européias. de apoio ao emprego do que a de Lula, Incidentalmente, ambos também mais abertamente assistencialista. No nasceram com ambições éticas mais aspecto político, de forma ainda mais notáveis, o PSDB de um grupo do PMDB visível, Kirchner tem sido muito mais que rejeitava o « quercismo », e o PT afirmativo no trato com seu próprio rejeitando toda a política partidária do passado. Na Argentina de hoje, é Brasil. Como alternativas socialistas (no impensável que o comandante do sentido europeu) e social-democratas, a Exército lançasse uma nota como a retórica de ambos os partidos deveria lançada aqui em 31 de março, privilegiar o pleno emprego, o expressando orgulho pelo golpe militar. crescimento e a distribuição de renda e riqueza, por meios estruturais e não IHU On-Line - A América Latina está apenas assistenciais, como, por exemplo, vivendo um momento de mudanças. pela reforma tributária que desse efetiva O que podemos esperar de, por progressividade aos impostos. Chegados exemplo Evo Morales? Haveria uma ao poder, no entanto, nem PSDB, nem PT possibilidade de alianças entre Brasil, deram qualquer ênfase real aos objetivos

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da esquerda democrática. Ambos os porque chega desprovida de idéias e governos governaram para os mercados e propostas. Deste revés, a esquerda nos estreitos limites fixados pelos democrática (porque aos poucos, é mercados. A esquerda brasileira chega verdade, remanescentes da esquerda falida em meados da primeira década do revolucionária dirão que a democracia milênio não porque se mostrou tão ou "burguesa" é inócua) brasileira não se mais corrupta que todos os outros, por recuperará tão cedo. mais grave que isso possa ser, mas

destaques da semana

Entrevistas da SSSemanaSemana pg. 383838 Filme da Semana pg. 464646 Teologia Pública pg. 484848

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Entrevistas da semana

Confira a seguir quatro entrevistas conjunturais sobre a França e os recentes acontecimentos sócio-políticos nesse país. Trata-se de entrevistas com o sociólogo francês Alain Touraine, com o demógrafo e historiador francês Emmanuel Todd, ambas publicadas no jornal La Reppublica, com o sociólogo norte-americano Richard Sennet, originalmente veiculada pelo Liberátion e com o filósofo e sociólogo Axel Honneth, realizada pelo Le Monde.

As entrevistas foram traduzidas pelos colegas do Centro de Pesquisa e Apoio aos Trabalhadores (CEPAT).

A crise social francesa

Entrevista com Alain Touraine

"Um recém-formado tem perspectivas piores do que os seus pais. É uma mudança epocal", constata Alain Touraine.

"Os jovens que se manifestam têm medo. Vêem as suas perspectivas de vida em queda livre. E eles têm razão. Também eu temo pelo futuro. O protesto tem tudo para aumentar cada vez mais". A afirmação é de Alain Touraine, sociólogo francês, em entrevista publicada, ontem, dia 5-4-06, no jornal italiano La Repubblica .

Agora todos sustentam que na França é impossível fazer reformas. Estive entre os primeiros a denunciar a incapacidade dos franceses em negociar. Mas neste caso dou razão aos manifestantes. Não agüento mais as críticas que chovem sobre o nosso país.

Alain Touraine, especialista em movimentos sociais, tem criticado muitas vezes os sindicatos e as corporações como sendo um freio para a evolução da França. A

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novidade agora é que o famoso sociólogo simpatiza com os rapazes que vão para as ruas contra o Contrato do Primeiro Emprego (CPE).

Por que pensa que esta lei está da economia não é uma fatalidade. O errada? Estado deve defender o seu papel. Na realidade, me parece que é um bode expiatório. A lei não me parece pior que A França já tem uma forte tradição os outros contratos destinados aos jovens. estatal. A maior parte das novas contratações já Há um setor público - refiro-me aos são precárias. É evidente que a atual crise dependentes do Estado - que é tem raízes mais profundas. ultraprotegido e representa a nossa fraqueza. Quando falo do papel do O medo do futuro. Não é estranho Estado compreendo as instituições que que um jovem de vinte anos esteja podem fixar regras e princípios para a tão assustado com o futuro? economia. É muito mais que estranho. Para mim é algo chocante. Atualmente um jovem Não lhe parece uma contradição dos formado tem perspectivas de trabalho tempos em que existe uma aguda inferiores às que seu pai tinha. Ele sabe concorrência mundial? que está arriscado a viver pior que os Oponho-me à ideologia segundo a qual seus pais mesmo tendo estudado muito devemos alinhar-nos com o mercado de mais que eles. É um fenômeno epocal trabalho chinês. Há muito mais empresas que vai contra a lei da natureza. Isso não francesas que migram para a Espanha acontece há muitas gerações. que para a China. Creio que fixar uma ordem superior não vá contra a É por isso que vemos nas competitividade. manifestações muitos pais desfilarem ao lado dos seus filhos? Pode-se comparar com o Maio de Este movimento social goza de um vasto 1968? consenso. É uma tomada de consciência Absolutamente não. Não está em questão geral, que perpassa as classes sociais e as o desencontro entre gerações, mas um categorias de trabalhadores. Já quando as protesto contra o sistema. periferias se manifestaram foi feita uma primeira discussão sobre o nosso modelo. Está preocupado com a situação Os estudantes não estão isolados porque social? está em jogo algo que vai além da CPE: Temo que o desencontro com as trata-se de compreender o seguinte: em instituições aumentará cada vez mais. Por que país queremos viver? outro lado, a nossa democracia não é mais verdadeiramente representativa. Os Em que país o senhor gostaria de eleitos se comportam como pequenos viver? acionistas desconectados da realidade. Estou confiante. A França poderá crescer apesar da crise atual. Este movimento A violência continuará? pode ser a ocasião para abrir para um Não excluo que há uma radicalização dos real espaço público no qual se possa protestos. Muita gente está no limite e discutir uma alternativa ao pode passar para o lado dos casseurs . neoliberalismo dominante. O predomínio Chirac estendeu a mão aos

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manifestantes. As negociações sistema. Agora se encontra no papel poderão fazer sair o país deste beco de mediador? escuro? Ele se move muito bem. Em Dominique de Villepin jogou todas as compensação a esquerda não se moveu suas chances de candidato a presidente e para nada. No partido socialista, há um a França está pagando o preço social silêncio espantoso. Podem gozar: sem deste jogo de azar. O vencedor, no fim, é terem uma idéia sequer, estão ganhando Nicolas Sarkozy. consensos. Unicamente recolhendo os frutos deste enorme "basta!" ao sistema. Mas Sarkozy era, até recentemente, o homem da "ruptura" com o velho

França. Processo de deslegitimação da elite Entrevista com Emmanuel Todd

O demógrafo e historiador francês Emmanuel Todd, bastante conhecido no Brasil pelo seu livro Depois do Império . Rio de Janeiro: Record, 2003, faz uma leitura heterodoxa daquilo que está acontecendo na França. Para ele, em entrevista ao jornal italiano La Repubblica,,,, 02-04-06, a crise francesa revela o descolamento entre a elite e os cidadãos, entre a oligarquia dominante e o resto da sociedade.

La Repubblica - Cada vez que se e a esfera política. Diz-se que a França propõe uma reforma, a França se não é capaz de adaptar-se a globalização. bloqueia, vai para rua, reage. Em É verdade: a França nega certo tipo de nenhum outro país se assiste a crises adaptação liberal, mas eu considero isso como esta dessas semanas: é o um sinal de vitalidade. sintoma de um país doente? Emmanuel Todd - Esta é a visão que se La Repubblica - Em que sentido? tem. Podemos até elencar os sintomas Emmanuel Todd - Se busca ensinar aos políticos dessa "doença": a incrível franceses que modernidade é o ultra- reeleição de Chirac em 2002 com a liberalismo, mas está claro que eles não extrema direita no desempate, as querem isso. E entram em conflito frontal regionais de 2004 com estrondosa vitória contra este modelo, mais do que os da esquerda, o não à constituição outros países. Porque a França é um país européia em 29 de maio passado, a vivo. Falo como demógrafo: não se pode revolta das banlieues em novembro e dizer que o único grande país europeu agora a luta contra o CPE. Fica claro que seguro de seu futuro demográfico com há um tipo de divórcio entre a sociedade uma progressão dos nascimentos

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superior a 50% em relação à Itália e mesmo de Villepin e dos outros. É este Alemanha, seja doente. Se os jovens se contraste entre o discurso e a prática revoltam na França, ao menos em parte, é liberal-masoquista que leva às explosões. porque são mais numerosos e porque são As opiniões e as preferências dos homens os primeiros a sentir a pressão de políticos não pesam grande coisa diante determinado mercado de trabalho de um consenso ideológico nas classes mundial. Demograficamente, os jovens superiores da sociedade. A crise, enfim, se são somente trabalho e o capital pertence pode resumir no confronto entre o aos velhos. Em um sistema no qual se sistema de idéias das classes dominantes privilegia o capital a despeito do trabalho, e as aspirações da população. Nesse caso, os jovens são particularmente atingidos. A qualquer sistema político seria instável. França encarna a verdadeira modernidade. La Repubblica - Uma crise de regime, como sustentam alguns? La Repubblica - O que têm em comum Emmanuel Todd - Estamos diante de um a crise atual e as sublevações nas processo de deslegitimação da elite. Não banlieues ? se pode falar de situação revolucionária, Emmanuel Todd - Os jovens são os porque a revolução é associada à idéia de protagonistas. O livre comércio e a violência, enquanto a França permanece concorrência global pesam uma sociedade muito rica e tranqüila. fundamentalmente sobre eles. A ameaça Mas há uma semelhança com as para os filhos dos imigrantes é o situações pré-revolucionárias: o desprezo desemprego; os estudantes encontrarão dos governados pelas classes governantes. um trabalho, mas menos bem pago e instável. O fato mais significativo destas La Repubblica - País tranqüilo quando crises, em minha opinião, é que os jovens se viu em todo o mundo os carros em estão se tornando a classe explorada. É a chamas nas banlieues , os confrontes revolta de uma geração que percebe esta na rua com a policia? transformação. Emmanuel Todd - O primeiro ato violento foi a evacuação da Sorbonne. O La Repubblica - As raízes do conflito sistema em si mesmo é violento: são mais profundas daquilo que se flexibilidade, estagnação dos salários, pensa, vão além da precariedade? explosão dos lucros. A sociedade está Emmanuel Todd - Ampliemos a análise: cada vez mais polarizada, as classes esta crise está ligada à nova natureza médias estão passando classes populares. oligárquica das sociedades desenvolvidas. O crescimento da violência se faz Os 20% que estão em cima não têm mais presente, mas há somente alguns os mesmos valores e as mesmas escolhas incidentes, não existem mortos. Estamos de gestão econômica e social dos 80% ainda no modelo 68, do qual se imita a que estão em baixo. Sublinhou-se muito a violência. O fato de que tanta desordem contradição de Chirac: discursos e não produza nenhum morto demonstra o programas muito à esquerda, uma prática quanto é forte o autocontrole dos liberal clássica. Poder-se-ia dizer o indivíduos na sociedade.

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“A França na pré-estréia” Entrevista com Richard Sennett

Richard Sennett é sociólogo norte-americano, professor honorário da London School of Economics e preside o Conselho Americano do Trabalho. Acaba de publicar A cultura do novo capitalismo . Rio de Janeiro: Record, 2006, no qual trabalha longamente as questões da flexibilidade. A IHU On-On -Line--Line edição 170, de 6 de março de 2006 publicou entrevista com o sociólogo, juntamente com resenha do jornalista José Castello. O material foi publicado, ainda, nas Notícias Diárias da página do IHU, www.unisinos.br/ihu, em 2 de março. Sennet está sendo convidado pela Unisinos para uma conferência a ser proferida em 2007, no Simpósio Internacional organizado pelo Instituto Humanitas Unisinos - IHU. É também autor de A corrosão do caráter . Rio de Janeiro: Record, 1999.

Libération - A França é um país Libération - Que estratégia adotar impossível de reformar ou um país então? que resiste? Richard Sennett - Eu não tenho Richard Sennett - A imprensa britânica saudades do capitalismo dos anos 1970. vos faz aparecer como um país que está Considere que alguns aspectos dessas atrasado no movimento. Do meu ponto mudanças, especialmente as evoluções de vista, a França está, ao contrário, a tecnológicas, são bons. O desafio é ponto de começar a dar uma resposta ao aprender a gerir dinâmicas novas em novo capitalismo. É uma pré-estréia que, nome do interesse geral e não para o bem penso eu, vai se estender a outros países. de poucos. Não é uma questão de recusa, A questão, mais que esses discursos sobre mas uma questão de análise estratégica um país rígido, o que é proposto aos sobre o que neste sistema pode ser jovens por esse novo contrato, é somente gerado de maneira humana e como. Eu um aperitivo do que virá no futuro. Esta tenho o sentimento de que vocês têm, na noção que pode colocar um fim a uma França, sindicatos muito conservadores relação de trabalho sem justificativa é que têm poucas idéias para gerir esta uma etapa a mais para o capitalismo que transição. E que estão ancorados no eu descrevi em Trabalho sem qualidades passado. Eles estão na defensiva, mas a e em meu novo livro. A economia muito defensiva não é um programa para tomar globalizada e tecnológica faz a riqueza o controle das coisas. Em numerosos ser partilhada por um grupo de paíse, há experimentações sociais trabalhadores cada vez menor. É o acontecendo que tendem a controlar as espectro da inutilidade que está para condições da precariedade, a controlar as tornar-se uma realidade. condições de seu próprio trabalho, mesmo num mundo mais globalizado. Eu

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sou talvez injusto, mas eu não vejo isso do Front National em 2002 e a revolta acontecer na esquerda francesa. dos subúrbios estão ligados a esta -Por quê? questão. Os outsiders , os imigrantes, os Richard Sennett - A herança do precários, são aqueles que suportam o marxismo, a luta dos trabalhadores peso da perda de valores culturais contra o patronato, bloco contra bloco, comuns. Essas pessoas mais frágeis da não funciona mais. A classe dominante sociedade são estigmatizadas: nós do novo capitalismo não forma mais um censuramos as vítimas. As redes sociais bloco sólido. Não há mais patronato no tornam-se antes mais frágeis do que sentido que se dava a essa palavra. Os fortes. Minha profunda convicção é que, administradores com as maiores para responder a este mal-estar, nós responsabilidades são uma classe muito temos necessidade de uma esquerda nova flexível que muda de posição e que não que deve encontrar os meios de gerir esta está mais ligada às organizações que eles insegurança mais do que tentar combatê- administram. O poder econômico tornou- la, de não mais permanecer no homo se fluido. A esquerda deve, portanto, faber , mas inventar. tornar-se mais inventiva. O crescimento

“O CPE ataca as expectativas de reconhecimento do trabalhador”

Entrevista com Axel Honneth

Axel Honneth é filósofo e sociólogo. Sucede a Habermas na direção, desde 2001, do Instituto de Pesquisa Social da Universidade de Frankfurt. É autor de Luta por reconhecimento. A gramática moral dos conflitos sociais . São Paulo: Editora 34, 2003. Le Monde , 01-4-06.

Le Monde – O senhor colocou no acontecimentos de março na França, o centro de sua obra a noção de espanto é, primeiramente, que um grande reconhecimento, “ato moral ancorado movimento social desse tipo seja no mundo social”, que consiste na simplesmente possível. Apesar das “afirmação de qualidades positivas de semelhanças entre nossas duas sujeitos humanos ou de grupos”. sociedades, a diferença é enorme entre os Como esse quadro conceitual lhe níveis de mobilização política. Nos permite pensar crises como a que últimos anos, a Alemanha não conheceu suscita a precariedade do Contrato nada que seja comparável. Entre nós, Primeiro Emprego (CPE)? uma manifestação sobre esse assunto Axel Honneth - Para um intelectual reuniria no máximo umas vinte mil alemão, que acaba de viver os pessoas. É o resultado de um vasto

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processo de despolitização e de qualquer reforma, como o Programa privatização da existência. Hartz-IV (nome do ex-responsável pelos Devemos explicar esta diferença voltando recursos humanos da Volkswagen, Peter à velha idéia de Marx segundo a qual os Hartz. O plano Hartz-IV remodelou o franceses saberiam fazer uma revolução, sistema de seguro-desemprego, enquanto que os alemães se contentariam abrandando as condições de em pensá-la? Sem dúvida é preciso ir indenização). Em suma, a pretendida mais longe que as variações entre as cultura da negociação apenas dissimula o tradições nacionais. Na realidade, eu fato de que o sofrimento e a revolta, tenho a impressão de que a revolta dos ainda que silenciosos, são, na minha subúrbios teve um papel decisivo no opinião, os mesmos que na França. atual movimento de protestos contra o CPE, no sentido de que ela permitiu aos Le Monde - O senhor pensa que seja estudantes chegar à consciência de que impossível reformar o direito do eles ainda podiam mudar as coisas. A trabalho pela lei? tomada de consciência de que um Axel Honneth - Este tipo de reforma, a movimento social pode ter um certo do CPE especialmente, contém um poder, motivou, sem dúvida, o elemento de provocação na medida em desencadeamento da crise. Na Alemanha, que ela viola formas já estabelecidas de nós não conhecemos nada assim, nem reconhecimento social: essas que foram nos subúrbios nem em nossas postas em prática pelo Estado social. Ela universidades. ataca as expectativas de reconhecimento do trabalhador como sujeito de direito. É Le Monde - Não obstante, alguns o que o sociólogo Robert Castel descreve lamentam, ao contrário, que a cultura com o nome de “estatuto”: trabalhar é do consenso e da negociação “ao estreitamente conectado com a fruição de estilo alemão” seja tão pouco alguns direitos, entre outros, o direito à desenvolvida na França... estabilidade. Axel Honneth - Eu não creio que isso seja totalmente verdadeiro. Talvez o grau Le Monde - Por que, na sua opinião, de integração social seja mais elevado nos os estudantes e os jovens estão na subúrbios alemães, mesmo se nós temos dianteira desses movimentos de concentrações de populações protestos? desfavorecidas em Berlim, em Frankfurt Axel Honneth - Porque, diferentemente etc. Talvez encontremos uma melhor do que estava em curso há vinte anos, mistura social e talvez o trabalho social quando a maioria dos estudantes vivia da no setor obtenha relativamente mais ajuda de seus pais ou de bolsas, eles sucesso. Do mesmo modo, o sucesso na dependem hoje de rendas externas. De integração escolar é ligeiramente quinze anos para cá, os estudantes estão, superior. Entretanto, há traços de revolta pois, bem mais expostos, ao longo de sua na Alemanha, mas elas se exprimem carreira universitária, à insegurança que sobretudo na vida cotidiana e não na prepondera no mundo do trabalho. forma de um movimento social. A situação não pode ser comparada De resto, no que diz respeito às àquela de há vinte ou quarenta anos universidades, eu posso lhe dizer que esta porque a vulnerabilidade dos estudantes cultura do consenso ou da negociação aumentou consideravelmente. A rede deu num verdadeiro desastre porque ela social que define a vida estudantil se tem por efeito tetanizar a resistência a rompe em toda as partes. Na minha

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opinião, é o conjunto do sistema boa coisa que o problema seja ao menos educativo que está minado. E devo dizer articulado. que, na minha opinião, isso torna esse movimento social completamente Le Monde – O senhor está vivamente legítimo. interessado no pensamento político norte-americano. O senhor acredita Le Monde - Contudo, as grandes que sua reflexão sobre as noções de figuras da Escola de Frankfurt que o comunidades, de identidades e de senhor dirige, os filósofos Theodor multiculturalismo possa ser útil para Adorno e Jürgen Habermas, foram, pensar a atual crise? muitas vezes, hostis ao movimento de Axel Honneth - Eu não creio que o 1968. Não há, nos incêndios de resultado desta velha discussão possa ser escolas fora da crise dos subúrbios aplicado à situação presente porque os ou na ocupação do prédio da Escola problemas são de outra natureza ou de Altos Estudos em Ciências Sociais, apenas destacam um baixíssimo grau de elementos que poderiam suscitar de multiculturalismo. Diz respeito ao nível sua parte críticas similares às deles? de reconhecimento que convém atribuir Axel Honneth - Mais uma vez, a situação aos direitos culturais das minorias, mas não é a mesma. Adorno e Habermas as crises nos subúrbios da França ou nos reagiram a formas de violência física que bairros desfavorecidos da Alemanha emanava de estudantes cujo estatuto acentuam principalmente o social era então relativamente empobrecimento econômico e social. É privilegiado. Os grupos radicais, julgavam uma questão de direitos sociais. eles, a praticavam na esperança de De maneira mais geral, como os Estados suscitar uma faísca que fosse desencadear Unidos nunca conheceram, num período uma espécie de revolução social. Para de quase cinqüenta anos, um Estado eles, tratava-se de um desconhecimento social que, como na França e na maior da situação real da República Alemanha, tenha desenvolvido um Federal da Alemanha daquela época. elevado nível de expectativas, não No caso da revolta dos subúrbios ou do representam em nenhum caso um movimento contra o CPE, não se pode modelo de regulação a seguir. Ninguém dizer que se trata de um erro de análise, se sujeita a conhecer o estilo de de um mal-entendido ou de uma desintegração que caracteriza as cidades incompreensão de si por parte dos atores. americanas... É absurdo acreditar que se A maioria dos revoltosos se rebela porque podem satisfazer as reivindicações não vê outra maneira de manifestar sua daqueles que moram nos subúrbios vulnerabilidade. Eles recorrem a meios concedendo-lhes direitos culturais sem certamente criticáveis com o objetivo de lhes fornecer uma razoável esperança de repor na ordem do dia alguns problemas segurança econômica e social. políticos. Não devemos nos espantar que pessoas que vivem no contexto social no Le Monde - Ao avançar, na sua obra, a qual se encontram, sem futuro, importância do reconhecimento, o naufraguem no vandalismo. Quando senhor dava um conteúdo positivo a visito algumas regiões dos Estados esta noção. Hoje, a análise do que há Unidos de hoje eu estou surpreso em de ideológico no processo de constatar que o grau de revolta e de reconhecimento na era neoliberal vandalismo seja tão baixo. É, pois, uma ocupa mais lugar. O senhor afirma recear que ela não possa, às vezes, ter por função a manutenção da

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dominação. O senhor se tornou mais numa espécie de promessa ilusória, cético em relação às suas virtudes semelhante àquelas que a indústria emancipadoras? publicitária veicula. Axel Honneth - Não. Eu ainda tenho a profunda convicção de que no longo Le Monde - Que função o senhor prazo a emancipação social se opera atribui, neste contexto, à teoria crítica mediante a luta pelo reconhecimento. praticada desde a origem pela Escola Entretanto, nos últimos dez anos, eu me de Frankfurt? De atirar uma “garrafa tornei mais atento aos fenômenos aos no mar”, segundo a expressão de quais Michel Foucault tinha sido sensível Adorno? quando falava das formas brandas de Axel Honneth - Não, não! Esta velha poder ( soft power ), operando não pelo metáfora valia para um período marcado constrangimento, mas por meio de uma pelo totalitarismo. O que as revoltas, das espécie de promessa. Eu observei, no quais somos testemunhas, solicitam à final dos anos 1990, alguns teoria crítica é uma dupla tarefa: por um deslocamentos na linguagem política, que lado, concentrar-se sobre o que era se passou a adotar o discurso do recentemente qualificado de crítica da reconhecimento social e da realização de ideologia e que parecia passado de moda si como o tinha feito, antes dele, o mundo nos últimos vinte anos; por outro lado, do negócio. Nesse caso, o reformular questões normativas, isto é, reconhecimento torna-se ao mesmo perguntar-se em que medida as tempo um fator de crescimento da exigências de reconhecimento são produtividade e uma legitimação satisfeitas e fazer-se o advogado daqueles ideológica do sistema. Ele se transforma que dele são excluídos.

Filme da Semana

Os filmes comentados nesta edição foram vistos por algum colega do IHU.

A Máquina Ficha Técnica: Cor filmagem: Colorida Origem: Brasil Ano produção: 2005 Gênero: Comédia – Romance Duração: 85 min Classificação: 12 anos Direção: João Falcão Elenco: Gustavo Falcão, Mariana Ximenes, Paulo Autran, , Lázaro Ramos

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Sinopse: Na cidade de Nordestina, Antônio (Gustavo Falcão) é apaixonado por Karina (Mariana Ximenes). Quando a moça quer ir embora, ele promete trazer o mundo para ela. Recorrendo a um poder que esconde dos outros, Antônio vai tentar mudar o rumo do tempo.

Por que o filme se chama A Máquina ? Por Gilmar Hermes

O comentário do filme que destacamos na edição desta semana é de autoria do jornalista e professor na Unisinos, Gilmar Hermes. Gilmar é mestre em Artes Visuais pela UFRGS e doutor em Comunicação pela Unisinos, com a tese intitulada As ilustrações de jornais diários impressos: explorando fronteirasfronteir as entre jornalismo, produção e arte . Na Unisinos, é professor de História da Arte, Estética e Comunicação, e Comunicação e Filosofia. Agradecemos ao professor Gilmar pela colaboração.

A aparição de Paulo Autran dá o tom Aos poucos, o espectador é apresentado teatral do filme A Máquina , com direção de para o contexto da cidade Nordestina e João Falcão, que está em cartaz nos seus dilemas, entendendo, inclusive, o que cinemas de Porto Alegre. Apesar do levou à construção da máquina. Todos colorido e do clima fantasioso das imagens, estão indo embora, e o grande chamado é grande parte da produção está feito pelas antenas parabólicas, que fundamentada na capacidade dos atores de prometem a possibilidade de existir, ao ser lidarem com as palavras e seu poder projetado na tela brilhante. evocador. Os atores globais têm uma Mas a grande figura da história é a aparência diferente nas telas do cinema. temporalidade. O tempo é irreversível, mas Parecem menos maquiados. Podemos existe como uma forma de constituição da perceber a textura da sua pele de uma consciência e ação humanas sobre a maneira como ela não se mostra na TV. E o realidade. O contar dos relógios e dos título intriga desde o início, antes mesmo calendários não volta, mas permite que a gente veja o filme. Por que chamá-lo demarcar e saber. O aspecto trágico da de A Máquina ? Será um filme brasileiro de consciência é que ela se configura com o ficção científica? tempo, mas não pode voltar a vivenciar Como um espetáculo circense, o início do esse mesmo tempo, sabendo-o como uma filme promete o desafio à morte, como se sucessão de acontecimentos. Essa fosse possível convidá-la ou enganá-la para temporalidade é o pano de fundo de uma o seu momento crucial. Uma verdadeira história que mescla elementos da cultura máquina mortal é apresentada ao nordestina com a onipresença dos meios espectador. O público é guiado por essa de comunicação hoje. Permanece, contudo, situação angustiante de testemunhar uma a pergunta: Por que chamá-lo de A possível destruição do ser humano, a Máquina? mesma expectativa que vai mover os próprios personagens da história.

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Teologia Pública

Fórum Mundial de Teologia e Libertação

Entrevista com Luiz Carlos Susin

O capuchinho gaúcho frei Luiz Carlos Susin, secretário executivo do Fórum Mundial de Teologia e Libertação (FMTL), realizou uma viagem de 21 de fevereiro a 12 de março de 2006 à Holanda, à Bélgica,à França, à Itália e ao Quênia (África Oriental). Sua missão foi a realização de atividades em preparação ao segundo Fórum Mundial de Teologia e Libertação, que será realizado em Nairobi, capital do Quênia, em janeiro de 2007. Frei Susin foi o coordenador do primeiro Fórum Mundial de Teologia e Libertação, realizado em Porto Alegre, em 2005, às vésperas do Fórum Social Mundial.

IHU OnOn----LineLine conversou dia 6 deste mês, por telefone, com frei Susin, propondo- lhe algumas questões no intuito de repercutir uma entrevista concedida pelo teólogo espanhol José Maria Vigil, que critica o primeiro Fórum Mundial de Teologia e Libertação e tece comentários sobre o Fórum Social Mundial de Caracas, realizado em janeiro deste ano. A entrevista que inspirou a conversa foi publicada na página do Instituto Humanitas Unisinos – IHU, endereço www.unisinos.br/ihu, no dia 15 de março de 2006.

Luiz Carlos Susin é professor da Pós-Graduação em Teologia da PUCRS. É teólogo pela PUCRS e mestre e doutor em Teologia pela Pontifícia Universidade Gregoriana (PUG), Itália.

IHU On-Line - Qual sua avaliação geral radicalidade em termos de paradigma, de das opiniões de José Maria Vigil sobre força, e que devem ser avaliadas nesse o Fórum Social Mundial e o Fórum quadro pessoal. O Fórum Social Mundial, Mundial de Teologia e Libertação? segundo ele, tem boa saúde, vai bastante Luiz Carlos Susin - Sou companheiro e bem. Ele está respondendo bem a toda a amigo de José Maria Vigil. As opiniões sociedade. Nós, da Igreja e da Teologia, que ele emite são no estilo da sua estamos menos bem, não estamos nem à personalidade: sempre com muita altura do Fórum Social Mundial. A

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avaliação de Vigil parte de um sonho ajudou muito na formulação do projeto. radical e de uma inconformidade, que Ele sempre coloca horizontes radicais tem um pouco de sabor profético, que para a realização. O fato é que nós devemos respeitar. Mas a minha posição ficamos com o trabalho, não só com os é um pouco mais matizada. Não vejo o projetos, mas com a realização do projeto. Fórum Social Mundial com todo o Fomos nós que carregamos o piano e otimismo de Vigil. Ele está com alguns sabemos o peso dele. Tivemos que problemas de dispersão, com dificuldade moderar e maneirar o tamanho da de manter uma palavra mais eficaz do realização conforme as possibilidades ponto de vista da unidade em todos os reais das respostas, das participações dos movimentos. Foi exatamente isso que se teólogos. Preferimos, nessa primeira discutiu em Caracas: a necessidade de edição, fazer uma espécie de pré-fórum. tomar algumas medidas mais unificadas e Ele não chegou a ser um fórum no práticas, o que seria de caráter bastante sentido pleno da palavra. A idéia foi político. reunir teólogos somente por meio de O Fórum de Teologia e a própria convites, o que já o tornou muito Teologia não podem se pensar como diferente de um fórum, com inscrições presenças fortes". A idéia de usar a abertas. Fizemos isso para que tivesse palavra "forte" nos remete à compreensão uma representação significativa, de que tudo o que é forte hoje é como o controlada, dos diversos continentes. O carvalho que, no meio da tempestade, objetivo era fazer o exame de um quebra. Hoje é preciso ser como um processo que poderia ser feito no futuro. caniço, que sabe resistir, sempre com E nós alcançamos isso. O primeiro fórum flexibilidade, com uma voz um pouco na realidade, que terá mais fisionomia de mais matizada, mais suave, aceitando ser fórum, conforme o Fórum Social apenas uma voz no conjunto. Isso é mais Mundial, será o próximo, e não aquele. adequado do que querer ser uma voz Na abertura daquele fórum, eu o chamei marcante e forte. Esse clima de ser forte de pré-fórum, dizendo que ele seria uma tem um pouco do messianismo das espécie de reunião constituinte de fórum. ideologias modernas, que se mostrou Estávamos partindo do nada, de um apenas como a secularização de uma "grupinho de iluminados", com vários pretensão eclesiástica que quisemos limites. superar. Uma presença mais suave, porém não mais fraca, dos teólogos no Pontos a melhorar Fórum Social Mundial é mais adequada. É claro que temos que crescer. Na revisão do Fórum Mundial de Teologia, IHU On-Line - Vigil disse que "o Fórum observamos que ele precisava superar a Mundial de Teologia e Libertação de tendência academicista. Não podemos 2005 não expressou uma palavra que mais fazer um fórum com convite, pudesse ser escutada pelo Fórum fechado, com números limitados. Temos Social Mundial, nem soube articulá-la que nos aproximar do Fórum Social e pronunciá-la para a sociedade". Mundial, com um fórum aberto, por Como o senhor sente essa crítica feita delegados. Isso vai modificar muito. Não por ele? tivemos fôlego prático para que os Luiz Carlos Susin - Eu sou o secretário participantes do Fórum de Teologia executivo do Fórum Mundial de Teologia, fizessem workshops e oficinas no Fórum mas, na equipe executiva, o próprio Vigil Social Mundial. Conseguimos, pelo foi uma presença importante, que nos menos, com que esses teólogos

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permanecessem em Porto Alegre para não sendo teólogo de profissão, sendo de participar e conhecer o Fórum Social movimentos de base, de organizações Mundial, que quase ninguém conhecia. O não-governamentais, é bem-vindo, desde Fórum Social Mundial é tão grande que, que tenham o espírito do Fórum Social quando queremos unir forças para dar Mundial e que tenham uma reflexão na uma palavra lá dentro, ela se transforma linha da espiritualidade e da teologia. em uma palavrinha no meio de um Também vamos incentivar para que esses monte de palavrinhas. Não podemos mesmos workshops tenham uma segunda sonhar em querer dizer uma frase fase dentro do Fórum Social Mundial. marcante, como se fôssemos uma Seria exatamente para satisfazer essa justa personalidade carismática que, de crítica do Vigil, de que é preciso ligar repente, parasse o Fórum Social Mundial. mais um Fórum ao outro. Isso não existe. Existem teólogos que têm uma certa presença. Por exemplo, IHU On-Line - Em que direção o , que faz parte do nosso senhor acha que o Fórum Social Fórum, junto com alguns outros, encheu Mundial deve continuar? o Gigantinho. Luiz Carlos Susin - Na sua entrevista, Vigil diz que os fóruns policêntricos IHU On-Line - O senhor acaba de tiveram uma vantagem sobre os outros voltar de um encontro na África, no concentrados aqui em Porto Alegre, que qual houve preparativos para o foi a de permitir mais participação nas próximo Fórum Mundial de Teologia. regiões. Mas, segundo alguns Quais as principais decisões e coordenadores, se eles permanecessem perspectivas para esse evento? apenas policêntricos, perderiam muito o Luiz Carlos Susin - Temos uma lado simbólico da grande unidade, da expectativa interessante do ponto de vista marcha comum que se faz pelo mundo da fisionomia do Fórum Mundial de todo. É necessário termos também fóruns Teologia e Libertação. O fato de ele concentrados. É isso que vamos ter em acontecer na África nos faz imaginar, Nairobi. Nos fóruns policêntricos, tivemos planejar e trabalhar para que nele haja boa participação. No caso de Caracas, uma presença africana bastante marcante, tivemos uma participação razoável. Já o como na América Latina, que houve, do Paquistão deixou muito a desejar em naturalmente, uma presença maior de termos de participação 54 . Ele foi tão latino-americanos. Isso será muito restrito, que acabou sendo um fórum interessante, porque teremos mais quase só nacional, nem mesmo regional. visibilidade da África, teremos um espaço Precisamos ter momentos de maior para que a África se manifeste, concentração e descentralização. Outro para que a reflexão africana, seus elemento importante é de que ele recursos, sua espiritualidade e os seus continue sendo uma expressão da sofrimentos também se manifestem. Há diversidade e da afinidade de muitos um privilégio para a África nesse sentido. movimentos ao redor do mundo, e que se Do ponto de vista metodológico, vamos mantenha não só democrático, mas realmente ter no Fórum Mundial de Teologia e Libertação essa nova estrutura de workshops , onde as pessoas podem se 54 Para uma avaliaçao deste fórum confira o artigo de inscrever livremente, por delegação. Tariq Ali condensado na editoria Notícias do Dia , do sítio do IHU, www.unisinos.br/ihu , sob o título Entre Quem puder enviar delegados ou quem os generais e os islâmicos. Terminou o Fórum Social quiser participar individualmente, mesmo Mundial no Paquistão. (Nota da IHU OnOn----LineLine )

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pluralista. Ele precisa ter elementos de que nos dar um pouco esse tempo de unidade, de unificação, de sintonia, que escutar mais do que falar, de acompanhar precisam ser acentuados. Um dos mais do que liderar. desafios é que ele não caia na dispersão. IHU On-Line - O senhor também vê IHU On-Line - Qual sua opinião sobre que a presença dos temas religiosos a afirmação de Vigil "Não estiveram à no FSM de Caracas tenha estado altura da Teologia da Libertação os ligada praticamente apenas ao teólogos e as teólogas latino- cristianismo, no sentido de que a americanas que, após cinco edições presença de outras religiões tenha do Fórum, ainda não souberam sido muito restrita? organizar-se para articular uma Luiz Carlos Susin - De fato, as outras presença unida e forte em condições tradições religiosas estavam bem menos de pronunciar uma palavra diante de presentes do que a tradição cristã. Mas um Fórum deste gênero"? isso tem uma explicação cultural e Luiz Carlos Susin - Temos que matizar continental muito fácil de entender. um pouco a palavra "forte" e a expressão Tivemos um grande aumento da "não estar à altura". Nessa mudança de presença indígena nesse Fórum de paradigmas que tivemos, um deles é Caracas, porque na área bolivariana as mudar nossas mentalidades fortes por organizações indígenas são muito mais mentalidades mais flexíveis, que podem fortes do que no Brasil. Sempre contamos ser mais fecundas e justas do que as com a presença de indígenas em Porto mentalidades fortes. A palavra "forte" está Alegre, mas lá eles estavam mais sob suspeita, porque faz parte de um presentes. Claro que os indígenas paradigma de estruturas fortes, de carregam uma tradição espiritual muito doutrinas fortes, que foram as ideologias mais própria. Além disso, as tradições do passado. Precisamos agora costurar, de orientais do budismo, do hinduísmo e do maneira muito mais afável, mais islamismo estavam menos presentes, atenciosa e mais soft as nossas justamente porque pessoas muçulmanas mentalidades com a pluralidade e as e hindus estavam menos presentes. Não diferenças. Quando queremos ser fortes vejo nenhum problema nisso. demais, acabamos sendo hegemônicos, IHU On-Line - Como o senhor vê a nos impondo sobre os outros. Tudo isso prospectiva da superação da "religião" aprendemos com bastante sofrimento. através da espiritualidade? Desde o primeiro Fórum Social Mundial, Luiz Carlos Susin - Se pensarmos em muitos teólogos latino-americanos religião como estruturas institucionais, estiveram presentes e em crescimento, no que têm suas medidas internas de ritos, meio das multidões. Precisamos ter a doutrinas, expressões comunitárias, humildade de reconhecer que, de fato, códigos de mandamentos e não temos receitas. Estamos buscando, comportamentos, de fato, também pesquisando e esperando que outros nos estamos passando, assim como a teologia, ajudem. Não podemos ter um caráter por uma situação de crise, de superação messiânico, mas de aprendizado de de certos paradigmas e, portanto, uma outras expressões dentro do Fórum. crise de religiões institucionais. Temos Talvez isso venda a imagem de que uma religiosidade ou espiritualidade estamos desarticulados, omissos. Mas não difusa, que desborda as paredes das estamos omissos. Como não podemos religiões. Estamos em uma época de mais repetir esquemas do passado, temos bastante espiritualidade e pouca religião

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institucional. Isso não é difícil de da política. A política estava se afogando compreender. Entretanto, essa crise tem nas discussões sobre a corrupção, e a um lado positivo, porque ela nos permite economia seguiu sem grandes oscilações, ser muito criativos. Permite-nos expressar o que mostrou que a política não está em novas formas religiosas as grandes governando a economia. Isso é tradições da espiritualidade. Essa é uma extremamente perigoso e grave. O que tendência que vemos presente no Fórum deve ser questionado é esse fato. Em Social Mundial e até mesmo no interior segundo lugar, o final bastante das igrejas: valorizar mais a melancólico deste mandato de Lula, por espiritualidade e colocar no seu devido causa das CPIs, ajudou muito na tomada lugar o lado mais institucional da religião. de consciência da população. Mas também há uma parcela muito grande IHU On-Line - O senhor concorda com que está arriscando um desencanto Vigil quando ele afirma que Lula não enorme, ficando mais com a palavra do era a pessoa adequada para realizar medo do que da esperança. Isso também politicamente a utopia popular que é delicado. de fato lhe fora confiada? Luiz Carlos Susin - Lula pode não ser a O lado positivo da crise pessoa ideal, mas era a pessoa mais viável De qualquer forma, a consciência e a naquele momento. Temos que ser verdade do que é fato e não pode ser realistas. Ele não tem todas as qualidades respondido, foi um ganho, pois mostra de um grande estadista. Se tivéssemos um que não é apenas por causa das pessoas Lula melhor do que esse que temos, que estão no governo que existe a podíamos ter pensado diferente. Há corrupção, mas que a corrupção faz parte muito de idealismo nesse pensamento. de um sistema que já existe há tempo. Que ele não esteja realizando tudo o que Isso faz a consciência brasileira se sonhava, é fato; que ele pudesse dimensionar as verdadeiras razões da realizar tudo o que se sonhava também é corrupção. É provavelmente por isso que, uma realidade. Mas não tínhamos alguém apesar de tudo, também na área da melhor. política, em termos populares, Lula ainda tenha uma boa aceitação. Isso mostra um IHU On-Line - Como o senhor avalia a certo amadurecimento do julgamento situação política e econômica do popular. Nas circunstâncias atuais, eu Brasil hoje? Quais suas expectativas posso abrir meu voto. Não tenho outra para as próximas eleições? pessoa para votar se não o Lula. Se ele Luiz Carlos Susin - Estamos hoje em ganhar, eu espero que, ao menos, no uma situação bastante delicada, porque segundo mandato, ele responda às houve uma erosão da autoridade do principais críticas recebidas. É preciso governo, que não prejudicou tanto a decididamente dar uma ênfase mais forte direção da economia, porque ela está no lado social. atrelada a uma lógica que não depende

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A relação entre fé e ciência

Entrevista com Paul Alexander Schweitzer

Paul Alexander Schweitzer é um padre jesuíta americano, naturalizado brasileiro, que vive há quase 35 anos no Brasil. Atualmente é professor de Matemática na PUC-Rio. Ele acaba de ser eleito para a Academia Brasileira de Ciências. Esse foi o tema que nos levou a uma conversa realizada com ele, por telefone, nesta semana. Aproveitamos e perguntamos para ele diversos aspectos de sua trajetória e sobre a forma como ele administra a vida de matemático e cientista com a fé cristã. Graduado em Teologia e Matemática e mestre em Filosofia, o pesquisador é doutor em Matemática pela Universidade de Princeton, nos Estados Unidos e pós- doutor pelo Instituto de Estudos Avançados, na mesma universidade. Paul Schweitzer ministrou a oficina A dimensão espiritual da realidade do cosmos. Uma leitura a partir de Einstein e Teilhard de Chardin , no dia 17 de maio de 2005, durante o Simpósio Internacional Terra Habitável: um desafio para a humanidade , promovido pelo Instituto Humanitas Unisinos.

Na entrevista que segue, ele afirma que espera poder contribuir no cenário da ciência nacional para a aproximação entre ciência e fé. "Para mim, ser jesuíta e matemático é uma combinação muito natural. O meu trabalho como matemático tem uma dimensão divina". E sobre a escolha de ter o céu brasileiro como teto, ele enfatiza: "Foi o dedo de Deus que me trouxe para o Brasil. A minha missão e a minha vida é estar aqui no Brasil". A entrevista foi publicada no sítio do IHU no dia 7 de abril de 2006.

IHU On-Line - O senhor acaba de ser obstáculo para se ter uma fé e uma eleito para a Academia Brasileira de prática religiosa. Isso é pura ficção. Ciências. Como sente esse fato? Qual Espero que a minha presença possa a importância disso para o senhor? contribuir para superar esse equívoco e Paul Schweitzer - Eu me sinto muito para aumentar o diálogo entre ciência e honrado em ser membro da Academia fé, como o Papa João Paulo II pediu. Brasileira de Ciências, sem duvida. Eu, como jesuíta, padre e cientista, espero IHU On-Line - Quais as maiores poder contribuir nesse cenário novidades atuais sobre os estudos de importante da ciência nacional, para a matemática? aproximação entre ciência e fé. Há uma Paul Schweitzer- A matemática vai idéia falsa de que ser cientista é um sempre se proliferando e encontrando

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novos campos. Na atualidade, a influência grande missionário na China, foi aceito do computador tem sido uma grande naquele país como um grande sábio, por fonte de novas idéias e novos problemas causa dos conhecimentos científicos e da matemática. Não tanto porque o matemáticos aprendidos com Clavius. computador é usado para calcular, mas Para mim, ser jesuíta e matemático é uma pela possibilidade de fazer contas que combinação muito natural. antigamente seriam totalmente impossíveis. Por exemplo, a área de IHU On-Line - Em quem o senhor se computação gráfica permite a elaboração espelha? de imagens antes inimagináveis. Essas Paul Schweitzer - Gosto enormemente imagens de certos processos e estruturas de Teilhard de Chardin 56 , um grande matemáticas apresentam novas idéias. A pensador que, como cientista e pessoa de questão dos fractais seria um aspecto fé, buscava encontrar as razões também importante nesse sentido. Outra fundamentais para as coisas da vida. Ele, questão que vem da computação são as para mim, é certamente um modelo, uma discussões teóricas sobre a grande figura. Esses jesuítas do passado, computabilidade. que trabalharam com a ciência, como o próprio padre Clavius, são um incentivo IHU On-Line - O que significa, para o para continuar o meu trabalho. Temos senhor, ser jesuíta e matemático? um grupo internacional de matemáticos Como se dá essa relação? Como esses católicos, cujo nome é "Grupo Clavius de dois pontos se complementam? Matemática", que se reúne todo ano. Paul Schweitzer - Deus está presente em Além da pesquisa que fazemos na área da todas as atividades humanas. O meu matemática, temos momentos de trabalho como matemático tem uma encontro sobre fé e sobre a interação dimensão divina. Estamos descobrindo entre religião e ciência. Einstein também aspectos do universo pela matemática. era uma pessoa que procurava definir e Não vejo contradição, nem conflito nisso. tocar nas perguntas mais fundamentais Evidentemente há uma dificuldade em sobre a vida, buscando atingir um grande função do tempo disponível. Mas ideal, embora eu esteja novamente qualquer pessoa tem que encontrar uma distante desse ideal. Ele procurava maneira de dividir o tempo entre a entender os aspectos fundamentais da profissão e a vida pessoal. Isso não é natureza, e isso motiva a gente. diferente para mim. Os jesuítas têm uma tradição longa na ciência. O padre IHU On-Line - Quais os motivos que o Cristóvão Clavius 55 , no século XVI, fez as fizeram vir para o Brasil? Como contas para a mudança do calendário e matemático, o senhor não teria mais defendeu a transformação para o oportunidade nos EUA? calendário gregoriano, que é Paul Schweitzer - Vim para o Brasil, em extremamente precisa. Ele também 1971, convidado por um colega brasileiro formou uma geração de cientistas que eu conheci quando ele estava jesuítas. Por exemplo, Mateu Ricci, 56 Pierre Teilhard de Chardin (1881-1955): paleontólogo, teólogo, filósofo e jesuíta, que 55 Christopher Clavius (1538 ou 1537-1612): jesuíta rompeu fronteiras entre a ciência e a fé com sua que foi um matemático e astrônomo alemão, teoria evolucionista. O cinqüentenário de sua morte considerado o principal arquiteto do calendário foi lembrado no Simpósio Internacional Terra gregoriano moderno. Nos últimos anos da sua vida, Habitável: um desafio para a humanidade, foi o astrônomo mais respeitado na Europa. (Nota promovido pelo Instituto Humanitas Unisinos, de 16 da IHU OnOn----LineLine ). a 19 de maio de 2005. (Nota da IHU On-Line ).

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fazendo o doutorado em Chicago: o João Paul Schweitzer - O homem de todos os Bosco Pitombeira de Carvalho, professor tempos e sociedades sempre buscou o da PUC-Rio. Foi o dedo de Deus que me sentido profundo da vida e acabava trouxe para cá. Na verdade, houve uma encontrando-o numa relação pessoal com convergência de três motivos. Primeiro: Deus. Hoje em dia, há uma idéia errada, os jesuítas do nordeste dos EUA, a minha mas bastante divulgada, de que uma província jesuítica de origem, tinham pessoa que tem uma atitude científica uma missão no Brasil, principalmente em não poderia ter, ao mesmo tempo, uma Salvador da Bahia. Em segundo lugar, eu postura de fé. Essa idéia é totalmente estava terminando meus estudos e equivocada, mas é muito comum. Por pensava em ter uma experiência fora dos isso, é importante que cientistas que EUA. Finalmente, veio esse convite do tenham fé estejam presentes e que essa professor Pitombeira. Vim para ficar um presença mostre a compatibilidade entre ano, e vi que teria possibilidade de dar ciência e fé. As maravilhas que a ciência uma contribuição importante. atual vai descobrindo, as origens do cosmos, a astronomia, para mim, falam Uma importante transição da grandeza de Deus. Não que Deus Acredito que o Brasil está em um tenha feito tudo passo a passo, como o momento de transição entre uma relojoeiro incompetente que tinha que sociedade tradicionalmente cristã e voltar constantemente à sua obra. Mas católica e uma sociedade muito Deus criou o mundo com essas grandes secularizada. Nisso, o papel do cientista possibilidades que, com a passagem do com fé me parece extremamente tempo, vão evoluindo e produzindo as importante. Por isso, fico muito contente estruturas maravilhosas, a presença da de estar aqui, podendo contribuir para vida e do próprio ser humano. Essas que, nessa transição, a ciência não seja descobertas e observações da ciência, obstáculo para a vivência religiosa, mas para mim, são motivo de encontro com antes seja uma fonte de reconhecer as Deus. maravilhas que Deus fez e motivo para louvar e reverenciar a Deus. É verdade IHU On-Line - Quais são suas que no exterior, nos EUA, eu teria atividades atuais na PUC-Rio? maiores condições para ter contato com Paul Schweitzer - Sou professor titular outros matemáticos. Mas ao longo dos de Matemática e oriento teses de anos aqui eu tenho mantido contato com mestrado e doutorado. Atuo também pesquisadores no exterior, tenho como jesuíta e como pessoa de fé. Estou participado de congressos no exterior e envolvido na questão da identidade e da organizado congressos aqui no Brasil. missão da universidade católica. Temos Esse intercâmbio é possível. Hoje em dia, um grupo de professores na PUC-Rio, é cada vez mais possível em função da chamado "Grupo de Identidade e Internet e da capacidade de me Missão", que se reúne uma ou duas vezes comunicar imediatamente via e-mail. A por mês, para tratar da missão da minha missão e a minha vida é estar aqui universidade católica no mundo atual, no no Brasil. Brasil de hoje, e também ver o que nós podemos fazer para contribuir com a IHU On-Line - E qual o papel da realização plena dessa missão. religião e da fé nessa fase de transição da sociedade cristã para IHU On-Line - Como o senhor vê a uma sociedade secularizada?

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missão de uma universidade católica procuram viver e transmitir esses valores na sociedade contemporânea? humanos. Paul Schweitzer- Essa é uma questão difícil de entender, porque a universidade IHU On-Line - O senhor esteve católica tem que ser universidade e, ao conosco, aqui no IHU, no simpósio mesmo tempo, ser católica e cristã. A Terra Habitável, realizado no ano própria palavra universidade significa passado. Como o senhor vê o IHU e a pluralismo, abre para um leque grande Unisinos? de posições e atitudes. Temos que Paul Schweitzer - A Unisinos tem a reconhecer e aceitar na comunidade grande felicidade de ter o Instituto acadêmica pessoas que têm visões bem Humanitas. O que o IHU está fazendo, diferentes, como agnósticos, ateus ou de investigando os valores e pontos de outras religiões. Ao mesmo tempo, contato entre a vida acadêmica e as queremos que a instituição tenha, em dimensões de fé religiosa e cristã, é uma certo sentido, um compromisso de fé, de contribuição extremamente importante. atuação religiosa. Essa interação é uma Vejo o IHU como um dos pontos mais questão muito delicada. O ponto de positivos e fortes da atuação da Unisinos. encontro entre as pessoas que não Ele é o modelo e um incentivo para compartilham a fé cristã, e a missão da tentarmos fazer algo semelhante aqui na universidade católica pode ser Universidade Católica do Rio de Janeiro. encontrado em valores humanos que são Temos o Centro Loyola de Fé e Cultura, comuns a pessoas de boa vontade, que trabalha nesse sentido. Mas o mesmo sem fé religiosa. Os bons Instituto Humanitas está fazendo um princípios éticos e humanísticos têm a trabalho excelente nos valores humanos, fonte na pessoa de Jesus de Nazaré, o que são ponte entre a fé religiosa e a Cristo. Esses princípios éticos, como a vivência de todas as pessoas de boa visão da dignidade de cada ser humano, a vontade. É muito importante na formação importância de se ter um mundo em que dos jovens, dos alunos universitários, que todos possam ter uma vida digna, a eles encontrem, em primeiro lugar, os preservação do meio ambiente, a justiça, valores humanos, éticos, da dignidade a fraternidade, em grande parte, vêm de humana, do valor do serviço e da Jesus, mas são parte do patrimônio da fraternidade e, ao mesmo tempo, que humanidade. Nesses princípios, percebam a fonte desses valores, que vêm encontramos a ponte entre o de Deus e da pessoa de Jesus Cristo. compromisso oficial da universidade, Desejo muito êxito a vocês nesse como católica, e a participação de trabalho. pessoas que não tenham e não partilham a fé, mas que têm bons princípios, que

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IHU em revista

EEEventosEventos pg. 585858 IHU RRRepórterRepórter pg. 70 Sala de Leitura pg. 73 Errata pg. 74

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Quarta com Cultura Unisinos

No dia 12 de abril, no Ciclo Repensando os ClássicosClássicos da Economia, integrante do Quarta com Cultura Unisinos, o prof. Dr. Flávio Comim apresentará o tema Amartya Sen e suas principais obras . A atividade, que acontece na Livraria Cultura, em Porto Alegre, no Bourbon Shopping, inicia às 19h30min e se estende até as 21h30min, com entrada franca. O mesmo tema será debatido em 2 de agosto de 2006 na Unisinos, na Sala 1G119 do IHU, das 19h30min às 22h, dando continuidade ao II Ciclo de Estudos Repensando os ClássicosClássicos da EconEconomia.omia. Confira a entrevista que segue.

Amartya Sen e uma nova ética para a economia

Entrevista com Flávio Comim

Em conversa por telefone com IHU OnOn----LineLine a respeito do pensamento do economista indiano Amartya Sen, o Prof. Dr. Flávio Comim afirma que “a questão principal, de acordo com Sen, não é se economia é compatível com ética. A questão é qual ética deve ser usada na economia. O que ele critica é que a economia vem usando a ética equivocada, errada, porque não reconhece a importância do desenvolvimento humano, tem uma indiferença distributiva grande, não reconhece os aspectos qualitativos que envolvem na caracterização do ser humano, como a questão de levarmos em consideração algumas atitudes que não podem ser reduzidas apenas a utilidades, conseqüências. O que ele propõe, no fundo, é uma nova ética”. Além disso, frisa Comim, de acordo com as idéias de Sen, “o crescimento econômico não deve ser perseguido per se , mas deve estar a serviço da promoção de uma coesão social e estruturas minimamente justas na sociedade”.

Comim é economista graduado pela UFRGS, mestre na mesma área pela USP, e mestre, doutor e pós-doutor pela University of Cambridge, Inglaterra também em Economia.

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IHU On-Line - Em quais aspectos de desenvolvimento por meio dos reside a atualidade do fins. O que são os fins? É como as pensamento de Amartya Sen? pessoas estão efetivamente, ou seja, na Flávio Comim – A atualidade da obra saúde,na educação e nas demais de Sen 57 reside na sua ênfase à dimensões de seu bem-estar (Sen questão do desenvolvimento humano chama a isso de ‘funcionamentos’). e à valorização da questão ética no Funcionamentos são aquelas coisas tratamento dos problemas que as pessoas podem ser e fazer. Ao econômicos. A conceitualização de invés de julgar o desempenho de uma desenvolvimento é fundamental, sociedade apenas pelo crescimento porque é comum encontrarmos as econômico, julgamos o seu pessoas usando a expressão desempenho por uma avaliação de desenvolvimento, significando, na como as pessoas realmente estão. Essa maioria das vezes, crescimento. Esse é é uma primeira resposta, sob o um significado tão estabelecido no aspecto de atualidade que tem a ver discurso social e político que vemos com a conceitualização do as pessoas falarem em desenvolvimento, mas também tem a desenvolvimento sustentável, que ver com o entendimento de como o deveria envolver aspectos ambientais, setor público e o mercado podem referindo-se, contudo, a crescimento trabalhar juntos. continuado, à estabilidade. O Durante muito tempo, vivemos uma principal aspecto da obra de Sen ao ideologia muito forte ou pró-mercado, conceitualizar desenvolvimento é ou pró-estado, na qual se perdeu a entendê-lo como um processo que oportunidade de pensar sinergias deve ser avaliado em relação a fins entre os dois, e mesmo de como as que as pessoas são capazes de deficiências de mercado devem ser realizar. Isso porque ele coloca uma superadas pelo Estado, e vice-versa. distinção importante, que é uma Parece algo estranho, mas isso, na distinção aristotélica entre meios e verdade, é desenvolvido por um fins, na qual crescimento econômico é pragmatismo teórico de Sen, que é apenas um meio para atingirmos o muito atual também. Esses são os dois desenvolvimento, e ele qualifica aspectos fundamentais que destaco. desenvolvimento como desenvolvimento humano. Nessa IHU On-Line - O que suas idéias perspectiva de desenvolvimento podem contribuir para repensar a humano, a contribuição dele é muito economia brasileira? atual porque faz acadêmicos, governo, Flávio Comim – Para Sen, a economia sociedade civil pensarem o processo deve ficar no seu lugar. Ela não deve ser o “mestre”. A economia é um bom “serviçal”, mas um mau mestre. Isso 57 Alguns de seus livros disponíveis em português são Desenvolvimento como Liberdade . São Paulo: porque não podemos usar a economia Companhia das Letras, 2000, Desigualdade para determinar as regras de Reexaminada . Rio de Janeiro: Record, 2001 e Sobre ética e economia. São Paulo: Companhia das Letras, funcionamento da sociedade. Pelo 1999. (Nota da IHU OnOn----LineLine ) contrário, são as regras de

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funcionamento da sociedade que IHU On-Line - Por que o devem determinar o tipo de economia pensamento de Sen continua que devemos ter. Mais pouco conhecido no Brasil? especificamente, o crescimento Flávio Comim – São várias as razões. econômico não deve ser perseguido Primeiro, vivemos sob o signo do per se , mas deve estar a serviço da crescimento econômico como promoção de uma coesão social e principal motor do desenvolvimento. estruturas minimamente justas na As idéias de Sen, críticas ao sociedade. crescimento como um fim em sí mesmo, são nesse contexto, pouco IHU On-Line - Podemos dizer, atraentes. Segundo, o trabalho de Sen então, que há uma inversão de é de uma certa complexidade e papéis, com a economia ocupando contempla a união de várias áreas do posição central? saber, como filosofia, economia, Flávio Comim – Exatamente, ela virou política, educação etc. A nossa o centro da questão, quando ela não o estrutura acadêmica segmentada é. A questão principal é a da dificulta a apreciação de suas idéias. organização social. Em função da Finalmente, poderíamos mencionar a organização social, escolhemos qual o falta de interesse institucional em dar tipo de economia mais condizente, suporte às idéias dele, como existe na mais compatível com isso, e não Comunidade Européia ou nas Nações primeiro definir a economia e fazer a Unidas. sociedade se organizar da maneira que pode. No fundo, existe um IHU On-Line - Em relação às suas binômino que, muitas vezes, não é três principais obras, quais as reconciliável, entre eficiência e idéias que destaca como mais eqüidade. A economia reza para o importantes? deus da eficiência, mas não reza para Flávio Comim – Na realidade, o que o deus da eqüidade, necessariamente. irei falar no evento vai além desses Mercado produz eficiência alocativa, trabalhos principais. Eles apenas mas o mercado não produz, servem como âncora porque são automaticamente, eqüidade. Uma trabalhos muito conhecidos. Eu questão importante é como a gostaria de mencionar que a principal sociedade pensa esse binômio, contribuição do Sen para o que se eficiência e eqüidade e como, com entende hoje como desenvolvimento base nisso, podemos reestruturar a está relacionada à abordagem das sociedade. No Brasil, nós vivemos capacitações. Os principais pilares da uma ideologia completamente abordagem são, primeiro, a distinção contrária, e é muito difícil convencer entre meios e fins, que vê o as pessoas de que a economia tem o desenvolvimento humano como fim, e seu lugar e que esse lugar não é no caracteriza o humano em função de centro, mas subjacente. capacitações. Segundo, a definição de capacitações, que são liberdades, nas quais a pobreza é vista como privação

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de capacitações básicas. Assim, uma caracteriza como preferências pessoa pobre o é não porque não adaptativas (isto é, as próprias tenha renda, mas sim porque não tem condições objetivas das pessoas capacitações consideradas influenciam a avaliação que elas têm fundamentais, aquelas liberdades de suas próprias vidas). Então é centrais. comum falarmos com uma pessoa muito pobre e perguntar “como vão Bem-estar humano em sua as coisas” e ela responder “tudo bem, multidimensionalidade nunca estiveram melhores e eu estou Um outro item fundamental da obra muito feliz”. Se perguntamos a ela, de Sen é que, na caracterização do classificando de um a dez, como ela bem-estar human, temos que ver o ser está, ela responderá “20”! Isso chama humano na sua a atenção para um problema que é multidimensionalidade, isso porque muito relevante na obra de Sen, se a renda não é um indicador porque, para ele, desenvolvimento perfeito de bem-estar, como ele deve ser conduzido de baixo para mostra, não basta olharmos para a cima, e não de cima para baixo. Essa dimensão renda que estaria estratégia, que chamamos de bottom- correlacionada com as demais. Temos up , é fundamental para a que ver o resultado. Muitas vezes, implementação do pensar sobre o uma pessoa possui renda acima de desenvolvimento. Não é o governo um determinado mínimo, mas com federal ter um bom plano e baixos níveis de educação, e por conta implementá-lo. É construirmos os disso os níveis de saúde dela e de sua planos com base na homogeneização família podem ser muito baixos. Ao da sociedade, de uma discussão invés de olhar para a renda para pública, mas não em bases subjetivas. avaliar se uma pessoa está bem ou A idéia de discussão pública e não, porque não olhamos diretamente democracia é fundamental na obra de para o bem-estar dela?. Quanto à Sen. Na abordagem das capacitações, abordagem das capacitações, são não vale unicamente ter uma lista de várias as características difíceis de quais capacitações são centrais. A resumir. O livro de 1992, chamado autora Martha Nussbaum faz isso. Ela Desigualdade reexaminada. Rio de elege as capacitações básicas centrais. Janeiro:: Record, 2001. trata única e Sen discorda disso, porque para ele, exclusivamente sobre isso. Ele vai essa lista de capacitações que a definir qual é o problema geral que sociedade deveria promover e usar existe, de que o fundamento filosófico para avaliar seu bem-estar, tem que da economia, chamado de ser construída com a discussão utilitarismo, tem várias falhas, entre as pública. quais cabe destacar duas:. a primeira é usar recursos como indicadores de IHU On-Line - Como a fome e a bem-estar, a questão da opulência. A desigualdade são apontadas pelo segunda é a distorção da métrica economista? subjetiva. Isso é importante, e Sen

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Flávio Comim – O principal trabalho 2005, ele comenta muitas questões que Sen fez sobre o tema, que foi pessoais, de sua infância, nas quais ele Pobreza e fome generalizada. São viu muitas pessoas serem mortas por Paulo: Companhia das Letras, 1999, sectarismo religioso, principalmente escrito em 1981, não está centralizado durante a independência da Índia, no seu pensamento corrente, mas tem entre muçulmanos e hindus. Essa a ver com o conceito que ele visão de sectarismo levou-o a desenvolveu de intitulamentos. Há, no perceber a questão das liberdades entanto, uma característica que está individuais como um princípio não relacionada com seu trabalho negociável, ou seja, de que até corrente. O aspecto que não está podemos passar fome, mas se relacionado e que ele viu numa passarmos fome, mas tivermos por análise de vários casos de fome onde resolver o problema, existe generalizada em vários países na esperança. Se as próprias liberdades África e na Ásia, não porque não que constituem a organização social existisse nesses países comida. O não permitem nossa ação, ficamos resultado que ele descobriu foi sem recursos, sem ter o que fazer. interessante. O que ele observou foi Sen não relata nenhuma experiência que, em todos países, principalmente pessoal ou mais concreto sobre a no século XX, em que existiu fome fome. Por ter nascido na Índia antes generalizada, não havia governos da Independência, o que eleitos democraticamente. Então, corresponderia hoje a Bangladesh, quando temos uma ditadura, um uma região naturalmente pobre, ele ditador, quando não há uma classe viu a pobreza desde cedo, perto de si. média que forma opinião, não temos Mas a pobreza da Índia é diferente da transparência de informação, não nossa, e isso precisa ser levado em mobilizamos a sociedade para consideração. O que fica evidenciado resolver essas calamidades, que, na em toda sua obra é uma preocupação maior parte das vezes, tem a ver com com a liberdade das pessoas, não secas continuadas. Fundamental para somente com a fome como expressão eliminar a fome, é haver democracia, de subnutrição, mas como expressão discussão, participação pública. de incapacidade das pessoas de fazer o que é melhor para suas vidas. A IHU On-Line - Como aconteceu a fome é uma privação que está fome na trajetória pessoal de relacionada a uma falta de liberdade Amartya Sen? das pessoas fazerem outras coisas. Flávio Comim – Na trajetória pessoal Uma pessoa com fome não pensa em dele, paradoxalmente, a fome não outras coisas, pensa em se alimentar aparece tanto quanto aparece o primeiro. Todo o resto é secundário. sectarismo religioso. Em várias partes, inclusive no último livro que ele IHU On-Line - No caso específico lançou, The argumentative indian: do livro Sobre ética e economia writings on indian history, culture and (On Ethics and Economics . Oxford: identity. New Delhi: Penguin Books,

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Basil Blackwell, 1987), elas podem Temos exemplos diversos na política coexistir? Como? brasileira sobre isso. Mas a categoria é Flávio Comim – A pergunta mais ampla. Veja que interessante que Sen fez nesse livro é tradicionalmente o FMI, quando tem a seguinte: qual é o tipo de ética que uma política de ajustamento está por trás da economia? A sua estrutural, força os governos a ter resposta foi a ética utilitarista. A superávits fiscais, o que, muitas vezes, questão não é uma ética, é qual ética. acaba vindo de redução de gasto de A questão não é apenas igualdade, saúde em educação, demissão de mas igualdade de quê que estamos funcionários públicos em alguns assumindo. Estamos falando de países, privatização de setores como o igualdade de utilidades entre as da água. O próprio entendimento de pessoas, estamos falando de igualdade que existem algumas coisas de que bens primários, de igualdade de não devemos fazer vem não dessa direitos, de igualdade de ética usada na economia, que é a capacitações? Nesse livro de 1987, ele utilitarista. diz que o utilitarismo tem três O que Sen faz é criticar o utilitarismo características. Uma delas se chama como fundamento ético e colocar conseqüencialismo, outra welfarismo , uma ética baseada nas capacitações, e a terceira, somatório. A primeira uma ética liberal, que estimula a característica tem a ver, e é parte da criação de oportunidades. Repetindo: ética da economia, em que damos a questão principal, de acordo com importância apenas àquilo que tem Sen, não é se economia é compatível conseqüências. Coisas que não têm com ética. A questão é qual ética deve conseqüências não teriam ser usada na economia. O que ele importância. A segunda diz que todos critica é que a economia vem usando os aspectos da vida podem ser a ética equivocada, porque não redutíveis em relação à utilidade que reconhece a importância do é gerada. A terceira diz que somamos desenvolvimento humano. Há uma as utilidades totais para avaliar o indiferença distributiva grande, não impacto das conseqüências. Sen reconhece os aspectos qualitativos mostra que, muitas vezes, o melhor que envolvem na caracterização do curso de ação independe da ser humano, como a questão de conseqüência. As pessoas preferem levarmos em consideração algumas fazer uma greve de fome porque é o atitudes que não podem ser reduzidas que elas consideram correto, apesar apenas a utilidades, conseqüências. O de estarem prejudicando o seu bem- que ele propõe, no fundo, é uma nova estar, ou elas decidem tomar uma ética. decisão correta mesmo sabendo que as conseqüências disso serão IHU On-Line - Qual é o mérito da negativas pessoalmente. tentativa de Sen em unir filosofia moral com análise econômica? O Exemplos brasileiros que essa junção pode ensinar às sociedades pós-modernas?

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Flávio Comim – O principal mérito de pensamos que teríamos um novo colocar filosofia moral com economia modelo econômico, permanecemos é que ampliamos a base com o que já havia. Temos, hoje na informacional dos julgamentos sobre América Latina: 1) um modelo a avaliação de bem-estar. O bem-estar assistencialista, que é o da Venezuela, das pessoas é visto não somente como que tem vantagens e desvantagens O uma questão de opulência, mas como assistencialismo, em determinadas caracterização multidimensional de ocasiões, é importante no curto prazo, liberdade das pessoas. Isso leva a mas no longo prazo causa entendermos as pessoas de maneira dependência. Na realidade, ele não multidimensional e, como tal, pensar ensina as pessoas a pescar. Hoje há a política pública de uma maneira uma supremacia muito grande do integrada. Um dos grandes problemas modelo que eu chamaria de 2) que temos no Brasil e no mundo, é globalização, de abertura de que temos um ministério da Saúde, mercados. Eu não chamaria isso de da Educação, que, poucas vezes liberalismo, porque acho que existe conversam entre eles. Eles não vêem muita confusão entre o liberalismo toda a pessoa. A análise do Sen, clássico e o neoliberalismo, usado em porque tem uma base informacional termos políticos, não econômicos. Em mais ampla, convida as pessoas a um modelo de globalização, de pensarem o ser humano como um abertura de mercados, isso existe e todo, e pensarem na relação entre os parece que é o “único show da seres humanos como a verdadeira cidade”, parece que o único modelo riqueza das nações, das sociedades. disponível no momento, com Uma filosofia moral adequada de pequenas tentativas de um modelo acordo com ele é a base para assistencialista. avaliarmos e pensarmos o Se me perguntarmos se acho que, desenvolvimento e sociedade. Se não baseado na obra de Sen esse é o tivermos essa filosofia moral, voltamos melhor modelo ou se esses são os ao economicismo. melhores modelos (incluindo o modelo assistencialista), eu diria que IHU On-Line - Quais são os não. No nosso modelo de abertura de principais modelos econômicos mercados existe um centro de que estão em questão nos gravidade que está na economia e que governos da América Latina, não deveria estar. É difícil falar de um especialmente naqueles que se modelo econômico isolado de outras chamam de esquerda? considerações. Não existe Flávio Comim – O problema que contemporaneamente na América existe hoje na América Latina é que Latina um modelo econômico existem muitos modelos políticos que pensado além do modelo de abertura passam por modelos econômicos, sem de mercado e do assistencialista. Esses haver a constituição de um novo são os dois modelos vigentes. O modelo econômico. No Brasil, quando modelo baseado na abordagem das tivemos um governo de esquerda e capacitações seria o de

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desenvolvimento humano, no qual a livrarmos das velhas idéias e não prioridade seria de enxergarmos as adotar as novas. Temos hoje no Brasil complementaridades que existem no economistas ortodoxos e heterodoxos setor público e no mercado na que rezam pela mesma cartilha, dado promoção das capacitações das que estão todos interessados apenas pessoas. De certo modo, esse modelo na promoção do crescimento social faz parte da história de alguns econômico. O modo de conseguir esse países como a Costa Rica e o crescimento econômico (com taxas de Equador. Na implementação desse juros mais elevadas como é hoje, ou modelo social, a ênfase é dada àqueles taxas de juros mais baixas) parece ser que são os mais pobres entre os o grande foco de debate. Mas isso é pobres, ou seja, àquelas pessoas cujas uma questão irrelevante, porque do capacitações é o mais baixo de todos ponto de vista do desenvolvimento na sociedade. É uma estratégia que humano a questão não é gerar maior chamamos de maxi-min, de quantidade de crescimento. Políticas maximizarmos daqueles que têm de crescimento são o grande menos. Para realizar essa estratégia, instrumento de engenharia social deveríamos repensar o crescimento conservadora no Brasil. Devemos econômico, não do ponto de vista aceitar que a sociedade vem com uma quantitativo, mas do ponto de vista hierarquia imposta, e essa hierarquia qualitativo. social é favorecida pela assimetria de informação causada pelo crescimento. IHU On-Line - A mudança no O crescimento, em princípio, ministro da Fazenda pode beneficia a todos, assim como a prometer alguma modificação no inflação prejudicava a todos. Basta rumo da economia no País? lembrarmos que a inflação que Flávio Comim – Vou tentar relacionar tivemos recentemente de fato não essa pergunta às demais que você fez. prejudicava a todos, e que o Eu acho que não deve mudar. O mais crescimento não beneficia a todos, difícil, como disse Keynes 58 , é nos mas sim o faz de uma maneira bem desigual. Para as pessoas que hoje não estão no mercado de trabalho e que 58 John Maynard Keynes (1883-1946): economista e passam fome, tanto faz ter um financista britânico. Sua Teoria geragerallll dododo emprego, do juro e do dinheiro (1936) é uma das obras mais crescimento econômico de 1% ou importantes da economia. Esse livro transformou a 10%. Para elas não há diferença. teoria e a política econômicas, e ainda hoje serve de base à política econômica da maioria dos países não-comunistas. De Keynes, publicamos um artigo e uma entrevista na 139ª edição da IHU OnOn----LineLine , de 2 de maio de 2005, outra entrevista na 144ª edição, de 6 de junho de 2005, dois artigos na 145ª edição, de 13 de junho de 2005, e oCadernos IHU Idéias nº 37, de 2005, intitulado As concepções teórico- analíticas e as proposições de política econômica de Keynes , de autoria do Prof. Dr. Fernando Ferrari Filho. (Nota da IHU OnOn----LineLine )

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Páscoa 2006. Cultura, arte e esperança

Cantando sonhos e certezas – “Cantos Pascais”

Nesta terça-feira, 11 de abril, das 18h45min às 19h30min, acontecerá, no Espaço Cultural do Instituto Humanitas Unisinos – IHU a atividade Cantando sonhos e certezas – Cantos Pascais. A apresentação será executada por alunos da Escola Sinodal de Educação Profissional (ESEP) e do Instituto Superior de Música (ISM), ambas ligadas à Escola Superior de Teologia (EST). A entrevista que segue foi feita por e-mail, resultado de uma conversa com alguns professores da ESEP e do ISM: Ana Althoff (ESEP), Ruth Kratochvil (ESEP/ISM), Richard Lipke (ESEP), todos entrevistados pela edição 173 da IHU OnOn----LineLine , de 27 de março de 2006 a respeito das atividades que conduziram dentro da programação Páscoa 2006 , e Dermeval Keller (ESEP).

IHU On-Line - Quais serão as canções Ana Althofff - Com essas canções que compõem o repertório dos tentamos dar uma visão geral da história Cantos Pascais a ser apresentado de Cristo. A esperança pela promessa de neste dia 11? um Salvador e a alegria por sua chegada, Ana Althofff - Como seria difícil e, talvez, por sua vida e por seu amor tão poderoso pouco significativo fazer um repertório são “momentaneamente” encobertas pela inteiro dedicado a cantos pascais, tristeza que acompanhou a crucificação. optamos por montar o que chamamos de A Bíblia fala da tristeza deste evento e da Cantata de Páscoa: vamos cantar a reação de pessoas que conheceram Jesus: história de Jesus, desde a profecia que o desespero de Judas, o fracasso da fé de anunciou a vinda do Salvador até sua Pedro, a dor de Maria. Entretanto, a ressurreição. A lista dos cantos pode ser ressurreição e o triunfo de Jesus sobre a conferida a seguir. morte dão lugar a uma grande alegria. Com esta vitória, o poder da tristeza é IHU On-Line - Que reflexões essas destruído e acontece o retorno da canções podem suscitar em função do esperança, que pode ser bem período de renovação que a Páscoa representada pela reconciliação de Pedro representa? com Jesus. Estas canções nos ajudam a compreender melhor a história deste

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novo viver que realmente começou com conhecemos a história da vida de Jesus, uma tumba vazia. com suas alegrias, tristezas e sofrimento. E a música nos ajuda tanto a expressar a IHU On-Line - De que forma a música alegria quanto a dor, permitindo até pode auxiliar no resgate do autêntico mesmo suavizar a opressão. sentido da Páscoa? Ana Althofff - Para os cristãos, a Páscoa é IHU On-Line - Qual é a importância de a celebração da vitória da vida. A música trazer esse tipo de atividade cultural pode nos conduzir a um estado de para a comunidade universitária? meditação ou de reflexão bastante Ana Althofff - Para nós este é um apurado, e junto com seus textos pode ser importante momento de divulgação, mas uma grande protagonista no também de partilha. E também restabelecimento do sentido da Páscoa. consideramos importante a formação do Aqui podemos ver o poder da música: público que pode aproveitar e interagir por meio dela conseguimos celebrar a com culturas que também são suas. vitória de Cristo sobre a morte, através dela somos desafiados a celebrar a vida. Neste caso específico, fica mais fácil valorizar tal celebração quando

Novas publicações do IHU

O Desenvolvimento econômico na visão de Joseph Schumpeter

« As transformações experimentadas pela economia mundial desde a década de 1979 renovaram o interesse por um dos economistas mais brilhantes da profissão: Joseph Alois Schumpeter. A atenção que lhe passou a ser dispensada se deve a que no centro das mudanças então observadas se encontrar um conjunto de inovações que têm, desde então, alterado a paisagem industrial e o modo como o homem reproduz sua vida material », escreve Achyles Barcelos da Costa, economista, professor titular na Unisinos.

O artigo está publicado no n.º 47 dos Cadernos IHU Idéias recém-lançado.

Segundo o prof. Achyles, « o brilhantismo de Josep Schumpeter nao está apenas em ser um pensador original e criativo, mas por manter suas idéias atuais, com conteúdo universal e por ter sido um dos poucos eocnomistas a se aventurar a fazer uma análise da transição social sob o capitalismo ».

Os Cadernos IHU Idéias podem ser adquiridos na Livraria Cultural ou pelo endereço [email protected].

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Religião e elo social na ultramodernidade

Estudar as metamorfoses da relação religião/elo social na sociedade da ultramodernidade na qual vivemos, sociedade que parece ser, hoje, o horizonte provável da mundialização e analisar a possibilidade da recomposição da relação entre religião e elo social, particularmente para o cristianismo, é o tema do artigo Religião e elo social. O caso do cristianismo que acaba de ser publicado nos Cadernos IHU Idéias , n.º 48.

O artigo é de Gerard Donnadieu, doutor em Ciências Físicas, engenheiro de Artes e Ofícios, secretário-geral da Associação Francesa de Ciência dos Sistemas e professor de teologia na École Cathédrale de Paris.

Os CadernosCCCadernos IHU Idéias podem ser adquiridos na Livraria Cultural ou no endereço [email protected].

IHU Repórter

Maria Teresa Anselmo Olinto

A importância dispensada à formação intelectual do indivíduo, trouxe de família. A mãe, professora, sempre se preocupou em escolher a escola que pudesse oferecer a melhor educação, esta sempre foi a prioridade absoluta. O resultado não poderia ser outro, a carreira acadêmica surgiu naturalmente. Mestre em Epidemiologia e doutora em Saúde Coletiva, coordenou a equipe que elaborou o projeto do Programa de Pós-Graduação em Saúde Coletiva, na Unisinos, do qual é coordenadora. Sua maior satisfação é saber que, em cinco anos de trabalho, contribuiu para qualificar a vida profissional e acadêmica de muitas pessoas. Vamos conhecer um pouco mais sobre a professora Maria Teresa Anselmo Olinto.

Família – Nasci em Rio Grande. Sou de uma família grande, de seis irmãos, e muito unida até hoje. Meu pai, Adyr, era formado em Direito e minha mãe, Alba, em Pedagogia. O pai era um dos diretores da Refinaria de Petróleo Ipiranga em Rio Grande. Minha mãe foi

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professora até falecer, aos 38 anos. Ela sempre dizia que a educação deveria estar em primeiro lugar. Outra lembrança forte que trouxe da família são as viagens. Viajamos muito conhecendo todo Rio Grande do Sul, todo o Estado de Santa Cataria e todo o Uruguai. Quando começamos a ficar adolescentes não queríamos mais acompanhar e depois que a mãe faleceu não mantivemos o mesmo ritmo.

Brincadeiras – Posso dizer que realmente eu tive infância. Nós seis sempre fomos muito ligados e morávamos numa casa muito grande. O jardim era todo desenhado com cerca viva, e havia um chafariz no centro. Dizem que meu avô tentou reproduzir a casa que ele tinha na Itália. Era um jardim muito lindo.

Trajetória – Aos 17 anos, ingressei no curso de Engenharia, na FURG (Fundação Universidade Federal do Rio Grande), mas quando casei me mudei para Pelotas. Na FURG, as engenharias eram muito conceituadas e em Pelotas, na época, não havia a mesma tradição, por isso optei fazer cursar Nutrição. Em 1984, formei-me pela UFPel. Trabalhei durante algum tempo como responsável pelo programa de suplementação alimentar na prefeitura de Pelotas, o PSA. Foi nesta época que descobri que gostava de epidemiologia. Decidi me especializar na área e fui fazer um pós na Fundação Oswaldo Cruz. Quando retornei, fui trabalhar no Centro de Pesquisas Epidemiológicas que estava se formando na UFPel e fiz meu mestrado lá. Concluído o mestrado fui passar um ano em Nova York, trabalhei no escritório da UNICEF, avaliando projetos de pesquisa. Depois disso regressei ainda para o Centro de Pesquisas da UFPel e em 1996 entrei no doutorado, na Unicamp, em Saúde Coletiva. Quando terminei já estava começando a trabalhar na Unisinos e fui me desligando aos poucos do Centro de Pesquisas até me mudar para Porto Alegre em 2000 e me dedicar exclusivamente à Unisinos.

Desafio – A criação do Programa de Saúde Coletiva da Unisinos. Começamos em 2002 e hoje já vamos para a quinta turma. Para mim é uma satisfação muito grande estar aqui porque conheço este programa desde o primeiro dia em que tivemos a idéia. Hoje podemos ver nas principais revistas cientificas em Saúde Coletiva do País as dissertações de nossos alunos egressos sendo publicadas. Observo que os egressos do nosso PPG estão sendo muito bem aceitos e procurados por outras universidades.

Autor – Isabel Allende

Livro – Eu acho injusto ter que citar um livro. Sempre leio dois ao mesmo tempo. Terminei agora O caçador de Pipas e estou lendo O Enigma de Vivaldi, de Peter Harris.

Filmes – Sob o Sol da Toscana , de Audrey Wells; O tempero da vida , de Tassos Boulmetis; Como água para Chocolate , de Alfonso Arau e Pão e Tulipas , de Silvio Soldini.

Presente – Um bom livro.

Viagens – Eu viajo muito. Um dos lugares que eu mais gostei de visitar, já como adulta, foi a Costa Malfitana Tornei-me uma apaixonada pelo lugar e também pela região da Provence, na França.

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Meta – Quero fazer o meu pós-doutorado no próximo ano. Terminei o doutorado em 1998 e, como professora do PPG, estou precisando me internacionalizar mais. É provável que faça na área de Epidemiologia e Nutrição, agora juntando as duas áreas Por mim e pelo programa, está na hora de um pós.

Unisinos – Sempre enxergo a Unisinos tentando acertar. Entrei em 1998 e nessa época não havia problemas financeiros. Agora estamos vivendo outra realidade, muito similar àquela das universidades públicas. Mas, como todos sabemos, em momentos de crise é que a criatividade aparece.

Instituto Humanitas Unisinos – Vejo o IHU sempre com trabalhos sérios, de qualidade e com profundidade. Penso que a abrangência de divulgação dos trabalhos deveria ser mais ampla, ainda considero muito restrita a Unisinos.

Sala de Leitura

Neste momento, estou lendo o romance Rumo ao farol.farol ... Publifolha: São Paulo, 2003, de Virginia Woolf, com tradução de Luiza Lobo. O livro narra dois episódios na vida da família Ramsay, cuja casa de veraneio no sul da Inglaterra é palco de uma série de encontros e desencontros entre as mais variadas personagens (o Sr. Ramsay, sua esposa, seus oito filhos e mais alguns hóspedes). O primeiro episódio, que tem como fio condutor a figura intrigante da Sra. Ramsay, versa sobre a possibilidade de um passeio ao farol no dia seguinte àquele em que ocorre a narrativa. O passeio acaba não acontecendo, por força do mau tempo, causando grande frustração a todos. Dez anos depois, no segundo episódio, a Sra. Ramsay está ausente, e o passeio, por fim, acaba se concretizando. A principal característica do livro de Virginia Woolf, centra-se, entretanto, na forma como ela narra a história, utilizando-se do fluxo de consciência, que acabou por se tornar uma das marcas da modernidade na literatura universal.

Prof.ª Dr.ª Márcia Lopes Duarte, professora do curso de Letras da Unisinos

Estou lendo o livro El feminisme.feminisme ... Barcelona: Editorial UOC, 2005, de Margot Pujal, professora do Departamento de Psicologia Social da Universitat Autonoma de Barcelona, UAB. Neste pequeno livro, Margot traça um histórico dos movimentos feministas até as vertentes atuais, como o ecofeminismo. Pujal propõe a desconstrução do binarismo sexo/gênero, cuja lógica dicotômica produz e mantêm hierarquias de desigualdade e aposta no agenciamento de subjetividades fluidas, permeáveis, nômades em um exercício de práticas subversivas e transformadoras.

Profª Dra. Stela Nazareth Meneghel, professora do programa de pós- graduação em Saúde Coletiva

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Errata

1 – Na nota de rodapé n.º 48, da edição 174 da IHU On-On -Line--Line cometemos um erro de informação. Karl Barth (1886-1968) foi um cristão calvinista e não católico, como erroneamente publicamos.

2 – Na entrevista com o Prof. Dr. Martin Dreher faltaram as aspas em « Daí chego à conclusão de que, quando os anjos louvam a Deus, dificilmente executarão músicas de Bach, mas, com toda a certeza, tocarão Mozart e que então Deus os ouvirá com muita atenção ». Esta citação é de Karl Barth e não do professor Martin Dreher como pareceu.

3 – O título correto da tese defendida na Universität München, pelo professor Martin Dreher é Kirche und Deutschtum in der Entwicklung der Evangelischen Kirche Lutherische Bekenntnisses in Brasilien.

EXPEDIENTE IHU OnOn----LineLine é a revista semanal do Instituto Humanitas Unisinos – IHU – Universidade do Vale do Rio dos Sinos - Unisinos. Diretor da Revista IHU OnOn----LineLine : Inácio Neutzling([email protected]). Editora executiva: Sonia Montaño ([email protected]). Redação: Márcia Junges Mtb 9447 ([email protected]) Yordanna Colombo MTB 12039 ([email protected]) e Daiane Evangelista ([email protected]). Revisão: Profª Mardilê Friedrich Fabre ([email protected]). Projeto gráfico: Atelier Design Editorial Ltda. Atualização diária do sítio: Inácio Neutzling, Graziela Wolfart ([email protected]) e Ana Maria Moreira ([email protected]). IHU OnOn----LineLine pode ser acessada às segundas-feiras, no sítio www.unisinos.br/ihu. Sua versão impressa circula às terças-feiras, a partir das 8h, na Unisinos. - Apoio: Comunidade dos Jesuítas- Residência Conceição. Instituto Humanitas UnisinosUnisinos- Diretor: Prof. Dr. Inácio Neutzling ([email protected]). Diretora Adjunta: Profª Dra. Hiliana Reis ([email protected]). Gerente Administrativo: Jacinto Schneider ([email protected]). Endereço: Av. Unisinos, 950 – São Leopoldo, RS. CEP 93022-000 E-mail: [email protected] . Fone: 51 591.1122 – ramal 4128. E-mail do IHU: [email protected] - ramal 4121.

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