UNIVERSIDADE FEDERAL DE MATO GROSSO INSTITUTO DE EDUCAÇÃO PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM EDUCAÇÃO

JOSIANE BROLO ROHDEN

MEMÓRIAS CRIANCEIRAS E SEUS DESPROPÓSITOS: UMA INVESTIGAÇÃO HISTÓRICO-POÉTICA DO BRINCAR – BRICOLEUR DE MENINOS E MENINAS DO/NO m/MATO

CUIABÁ – MT 2019

Foto: Valmir Cordasso, 2015.

JOSIANE BROLO ROHDEN

MEMÓRIAS CRIANCEIRAS E SEUS DESPROPÓSITOS:

UMA INVESTIGAÇÃO HISTÓRICO-POÉTICA DO BRINCAR –BRICOLEUR DE MENINOS E MENINAS DO/NO m/MATO

Tese apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Educação no Instituto de Educação da Universidade Federal de Mato Grosso como requisito para obtenção do título de Doutora em Educação na área de Concentração Movimentos Sociais e Educação, Linha de Pesquisa Movimentos Sociais, Política e Educação Popular.

Orientador: Prof. Dr. Luiz Augusto Passos Coorientador: Prof. Dr. Josivaldo Constantino dos Santos Orientador do Doutorado Sanduíche: Prof. Dr. Noah W. Sobe

CUIABÁ - MT 2019

Foto: Valmir Cordasso, 2013.

Casa de madeira, sem tintura. As velas e o lampião Iluminavam a casa escura. [...] Frestas que se via tudo do lado de dentro e de fora. Eu gostava de espiar, Haviam mistérios por entre as frestas. [...]

A casa era sem o teto, Apenas umas míseras telhas. A noite se enxergava as estrelas por entre o pouco coberto. Eu as contava.

Tinha uma em especial, Era a do meu mano que tinha ido morar com Deus. Conversávamos todas as noites. Ele me respondia: Piscava uma vez: respondia sim, Duas era pra dizer não.

O pai quis vir para o Mato Grosso Para esquecer do acontecido: Para não sofrer a morte do mano. De nada adiantou. A estrela estava lá, todas as noites.

Eu e minha estrela conversávamos pelo olhar, Ela não descuidava de mim. Estava tão perto, Que eu sentia até seus suspiros, quais se confundiam com os meus.

E quando caía no sono, brincávamos: De polícia e ladrão.

Ele, a estrela, sempre era a polícia. E eu era quem roubava.

Era um sono de corre-corre, Polícia e ladrão. Acordava até cansada. Só queria roubar Dedico ao meu irmão Ricardo Antônio Aquela estrela Brolo (in memoriam). Sua breve Seria minha, existência me fez aprender a poetizar a Pra sempre! vida e a fazer dela um pleno estado de (JOSI ROHDEN, 2013) infância.

Eu tenho um ermo enorme dentro do olho. Por motivo do ermo não fui um menino peralta. Agora tenho saudade do que não fui. Acho que o que faço agora é o que não pude fazer na infância. Faço outro tipo de peraltagem.

Quando eu era criança eu deveria pular muro do vizinho para catar goiaba. Mas não havia vizinho. Em vez de peraltagem eu fazia solidão. Brincava de fingir que pedra era lagarto. Que lata era navio. Que sabugo era um serzinho mal resolvido e igual a um filhote de gafanhoto.

Cresci brincando no chão, entre formigas. De uma infância livre e sem comparamentos. Eu tinha mais comunhão com as coisas do que comparação.

Porque se a gente fala a partir de ser criança, a gente faz comunhão: de um orvalho e sua aranha, de uma tarde e suas garças, de um pássaro e sua árvore. Então eu trago das minhas raízes crianceiras a visão comungante e oblíqua das coisas. Eu sei dizer sem pudor que o escuro me ilumina. É um paradoxo que ajuda a poesia e que eu falo sem pudor. Eu tenho que essa visão oblíqua vem de eu ter sido criança em algum lugar perdido onde havia transfusão da natureza e comunhão com ela. Era o menino e os bichinhos. Era o menino e o sol. O menino e o rio. Era Homenageio os migrantes desta pesquisa: o menino e as árvores. meninos e meninas do/no M/mato.

Manoel de Barros

A andorinha. Site PNGTREE.

Deixei uma ave me amanhecer. Manoel de Barros

Sopros de Gratidão

Pássaros da Amazônia anunciam a manhã que se achega,

o dia que se vai embora. pássaros da Amazônia, são poeminhas de asas, são sons aveludados ao entardecer. pássaros da Amazônia são manhãs ensolaradas, são pousos rasantes nos riachos da mata. pássaros da Amazônia cantam para agradecer. A gratidão é um dom de aves.

(Josi Rohden, 2019)

E assim, o ...

Sete-cores-da-Amazônia canta...

Ao querido orientador e “pai” Prof. Dr. Luiz Augusto Passos pela sapiência, generosidade e amorosidade ao comungar de forma tão bela seus saberes comigo e com todos.

Uirapuru-estrela canta... Ao meu coorientador e amigo Prof. Dr. Josivaldo Constantino dos Santos pela cumplicidade, pelo cuidado, pela poesia da partilha das angústias e das alegrias na construção desse trabalho.

Anambé-de-peito-roxo canta...

Ao orientador do Doutorado Sanduíche Prof. Dr. Noah W. Sobe por sua dedicação e zelo para com minha pesquisa e pelo acolhimento fraterno na Loyola University em Chicago, USA.

Udu-de-coroa-azul canta... Aos membros da banca de qualificação e defesa: Professores e Professoras: Dra. Solange Terezinha de Lima Guimarães, Dr. Danilo Romeu Streck, Dra. Michèle Tomoko Sato, Dra. Márcia dos Santos Ferreira, Dr. Carlos Edinei de Oliveira, Dra. Ozerina Victor de Oliveira, pelas riqueza das contribuições, pelo trato com esse trabalho, pela disposição da leitura atenta, pelos diferentes olhares que se fizeram presentes nessa travessia.

Sabiá-barranco canta... Aos professores do Doutorado Profa. Dra. Ozerina Victor de Oliveira, Profa. Dra. Filomena Monteiro, Prof. Dr. Luiz Augusto Passos, Profa. Dra. Michèle Tomoko Sato, pelos ensinamentos para a liberdade do voo.

Assobiador-do-castanhal canta... À coordenadora do PPGE/UFMT, Profa. Dra. Rute Cristina Domingos da Palma, por todo auxílio, toda disponibilidade em todos os momentos que necessitei, especialmente no período em que estive em intercâmbio de estudos nos Estados Unidos.

Bentivizinho-do-brejo canta... Aos queridos e queridas que movimentam os trabalhos do PPGE, à Marisa C. Voltarelli, Luiza M. Teixeira S. Santos, Marcos London, Nilson B. Duarte Junior, pela atenção, pelo cuidado, pelo atendimento humano e amoroso que recebi em todas as ocasiões solicitadas.

Guarda-Várzea canta... À CAPES, pela oportunidade de estudos na Loyola University, por todo suporte de garantia de estudos e pesquisa fora do país.

Saíra-do-bando canta... Ao Grupo de Pesquisa GPMSE, pelos saberes compartilhados, pela acolhida no ninho no meio da travessia.

Rendadinho canta... À Reitoria e Pró-Reitoria de Pesquisa da UNIR, à Direção do Campus de Vilhena e aos colegas do DACIE por todos os esforços para a minha liberação para a qualificação, pelo companheirismo e compromisso para com minha formação docente.

No chão da água luava um pássaro por sobre espumas de haver estrelas

A água escorria por entre as pedras um chão sabendo a aroma de ninhos. Manoel de Barros, 2010.

Fotos: Valmir Cordasso, 2013.

Há muitos ainda para agradecer que voaram junto, que compartilharam do sonho, que vivenciaram dos risos e das lágrimas, das alegrias e das dores dessa travessia. Para eles também, todo canto em formato de amor, em sopros de gratidão...

“Dentro da mata no entardecer o canto dos pássaros é sinfônico”

Manoel de Barros, 2010

Assim, que toda a sinfonia da mata, se faça cantos...

Ao Matheus, meu filho, canto do sentido da vida e do mais puro amor; À minha irmã Franciane Brolo, meu cunhado Fernando Zamignan, minha prima Francieli Formigoni, canto de apoio e acolhimento familiar; Aos meus sobrinhos Otávio, Leonardo, Helena e Alice, canto de alegria que enche a casa; À Alessandra Abdala, Catiane Peron e Helen Arantes, canto do amor da irmandade e da mais pura cumplicidade. Canto do colo, do ninho, da extensão do meu lar; Ao Valmir Cordasso, canto do olhar-passarinho pela sensibilidade de suas lentes fotográficas que embelezam toda essa escritura; Aos colegas da Turma do Doutorado 2015/2019, canto de partilha e de admiração construída; Às professoras Elizabeth Madureira Siqueira, Marlene Gonçalves, Nilse Vieira. C. Ferreira, cantos do ensinar e aprender amar a história; Ao professor Silas Borges Monteiro, cantos de devir-criação pelo primeiro “sim” no que viria a tornar-se a minha constituição acadêmica; Aos migrantes, sujeitos dessa pesquisa, canto das mais belas memórias crianceiras; À Mel, cantos de doçura e lealdade; Ao meu pai Nelsi Brolo, in memoriam, canto do colo além-vida, canto de amor e saudades; Ao Deus que em mim habita, canto de toda inspiração de vida nessa composição. Que os sabiás da manhã, Que têm brilho na voz. Recitem meu agradecer... PARTITURA (SUMÁRIO)

ASSOBIO/RESUMO/14

AFINAÇÃO/16

CANTO 1 – DO UIRAPURU: ENTRE CACOS DE MEMÓRIAS/37

1.1. ENTRELACE DE MEMÓRIAS: EU-O OUTRO-O MUNDO) /38

1.2. EXPERIENCIAMENTO DE PRESENÇAS “NOSSA! QUANTAS MEMÓRIAS ME VEIO!!” /50 1.3. MEMÓRIAS EM ESTÁGIO DE ÁRVORES: “CADA UM TINHA UMA ÁRVORE PRÓPRIA/70 CANTO 2– DO BEIJA-FLOR: POR UM TRATADO DE PÁSSARO/111 2.1. ENTRE CANTOS E GRITOS DA TERRA/112 2.2 AMAZÔNIA: ENTRE ÁGUAS E SANGUE/121 2.3. NA FRONTEIRA AMAZÔNICA: ENTRE O SONHO, A ESPERANÇA E A AMBIÇÃO/136 2.4. SINOP-MT: “UM PASSO DE CONQUISTA NA AMAZÔNIA” /152 CANTO 3 – DO BEM-TE-VI: DAS GRANDEZAS DO BRINCAR DE MENINOS E MENINAS NO/DO m/MATO /183 3.1. BRINCAR DE FAZER COMUNHÃO COM AS COISAS: “TUDO ERA TRANSFORMADO EM ALGUMA COISA DE FAZ-DE-CONTA” /184 3.2. BRINCADEIRAS DE INVENCIONÁTICA: DE CRIANÇAS- NATUREZA E DE RESTOS/202

3.3 BRINCAR SOB O ‘TIC-TAC’ DA ESCOLA: “TOCAVA O SINO ERA UMA DEBANDADA PORTA AFORA” /225 ECOS: MEMÓRIAS DO CARACOL/258 RESTOS NUMA TESE-NINHO: CANTOS DO AMANHECER/272 ELENCO DE FIGURAS/290 NOTAS DE SIGLAS/292 VOOS COM/293 HÁ- NEXOS/308 14

ASSOBIO (RESUMO)

Esta é uma composição de cantos de memórias, uma escritura de percepções singulares, uma junção de muitas travessias, um ensaio de experimentações que anseia uma Tese, qual se apresenta como possibilidade de sentir-pensar os fragmentos nas narrativas de memórias crianceiras de adultos que viveram a infância, deslocando nosso olhar para as lembranças do brincar bricoleur em meio à Floresta Amazônica no processo de colonização da cidade de Sinop- MT, historicamente entre os anos de 1973 a 1983. Neste processo, entendo a pesquisa como acontecimento e experiência que fenomenologicamente está ligada a tudo, a todos. Nesse sentido, nesta escritura, ciência e arte, humano e natureza são indissociáveis, convidando-nos a adentrar o passado, ressignificado no presente que acena para o futuro. Memórias que brilham no tempo, reinterpretadas por adultos no agora e que portanto, cada um deles constroem suas paisagens de memórias, de forma única, que carnalmente são tocados, afetados pelo tempo e espaços do mesmo modo que ao narrar suas vivências, tocam, afetam, sensibilizam outros corpos como potência inventiva, bricoleur de criação que provocam uma multiplicidade de encontros, de saberes, de desconstrução de certezas, de devires, de inquietações, de lacunas para que o leitor possa imaginar, sentir, fantasticar, elaborar outras próprias composições. Diante disso, experimentando as múltiplas formas de se fazer história, seria possível narrar as experiências da infância, em especial do brincar, a partir das memórias de adultos numa investigação histórico-poética, onde diferentes linguagens de saberes se entrecruzam, numa perspectiva fenomenológica? Como era o brincar bricoleur de sujeitos que viveram suas infâncias em Sinop-MT, em meio à floresta amazônica entre os anos de 1973 a 1983? Cada canto desta composição-tese, é marcado por encontros em especial, com Merleau Ponty (1991; 1994; 1996; 2014), Michel de Certeau (1982; 1998), Agamben (2005), Deleuze e Guattari (1992; 1995; 1997), Benjamin (1987, 1994), combinados nas diferentes linguagens da arte: fotografia, artes plástica, música, na poesia de Manoel de Barros (2010) e outros poetas, em travessias que me provocaram durante todo o caminho desconstruindo certezas, me levando a experimentar outros trajetos, transformando, deformando, refazendo, construindo outros olhares, insistentemente provocando afectos para sobretudo, viver a pesquisa. Palavras-chave: Memórias. Brincar. Histórico-Poético. Fenomenologia. Sinop-MT. Colonização.

Foto: Valmir Cordasso, 2015.

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WHISTLE (ABSTRACT)

This is a composition of memories chants, a scripture of

singular perceptions, a junction of many crossings, an experimentation essay that longs for a Thesis, which presents

itself as a possibility to feel-think the fragments in the narratives of children memories of adults who have lived childhood, shifting our gaze to the memories of bricoleur playing amidst the Amazon Forest in the process of colonization of the city of Sinop-MT, historically between

1973 and 1983. In this process, I understand the research as an event and experience that is phenomenologically bound to everything, to all. In this sense, in this scripture, science and art, human and nature are inseparable, inviting us to enter the past, reinterpreted in the present that beckons for the future. Memories that shine in time, reinterpreted by adults in the now and that, therefore, each one of them constructs their landscapes of memories, in a unique way, that carnally they are touched, affected by the time and spaces in the same way that in narrating their experiences, touch, affect , sensitize other bodies as a power inventive, bricoleur of creation that provoke a multiplicity of encounters, knowledge, deconstruction of certainties, transformations, becoming, anxieties, gaps so that the reader can imagine, feel, ‘fantasticar’, elaborate other own compositions. In view of this, by experimenting with the multiple ways of making history, would it be possible to narrate childhood experiences, especially at play, from the adult memories in a poetic-

historical investigation, where different languages of knowledge intersect in a phenomenological perspective? How was it like to bricoleur play of the of guys who lived their childhoods in Sinop-MT, amid the Amazon rainforest between the years 1973 and 1983? Each chant of this thesis-

composition is produced by singular encounters with Merleau Foto: Valmir Cordasso, 2015. Ponty (1991, 1994, 1996, 2014), Michel de Certeau (1982, 1998), Agamben (2005), Deleuze and Guattari (1992, 1995, 1997 ), Benjamin (1987, 1994), combined in the different languages of art: photography, plastic arts, music, in the poetry of Manoel de Barros (2010) and other poets in crossings that provoked me all along the way deconstructing certainties, to try other paths, transforming, deforming, remaking, constructing other glances, insistently provoking affections for above all, to live the research. Keywords: Memories. Play. Poetic-Historical. Phenomenology. Sinop-MT. Colonization.

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AFINAÇÃO

“Quem elegeu a busca, não pode recusar a travessia...” Guimarães Rosa

o início dessa travessia, muitas dúvidas caminhavam comigo, as quais das muitas ainda possuo, talvez agora elas se tornaram outras, N diferentes...porém, tais incertezas eram regidas por uma pequena confiança que me impulsionava: a de que queria ser vida em uma tese. É fato de que não deixamos de viver num processo de pesquisa, mas a vida da qual falo nesse experenciamento de presenças não se resume ao pulsar, mas da alegria do pulsar, qual transformasse posteriori numa escrita dançante, crianceira, volitante, viva. Não sabia bem como faria isso1, tinha apenas algumas intuições, inquietações e uma forte sensação de potência, qual me provocava a “desfazer a norma” (Cf. BARROS, 2010), a tentar ousar entrecruzar caminhos repletos de curvas, já que tinha em mim que a “reta é uma curva que não sonha” (BARROS, 2010, p.346). Tal potência, me inquietava, falava aos meus ouvidos de forma gritante, ecoava dentro de mim. Era a voz do meu eu, simplesmente eu e toda a minha relação com o mundo, com o outro (Cf. FREIRE,1987), que insistentemente queria viver toda caminhada de pesquisa de forma intensa, amorosa, num encontro entre eu e muitos mundos: mundos de tantas gentes diferentes, de tantas histórias e memórias, de tantos cantos, de tantas sobras, de tantas dobras, de tantas percepções, de tantas experiências, de tantas volúpias, de tantas possibilidades. Foi então, que encontrei no poema “Lembrança Alada” de (2015, p. 23) a resposta do que eu procurava para começar a tecer essa composição:

Guardo memória de paisagens espraiadas e de escarpas em voo rasante.

E sinto em meus pés

1 Não que eu ainda não tenha dúvidas se consegui ou não alcançar tal objetivo.

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o consolo de um pouso soberano na mais alta copa da floresta. Liga-me à terra uma nuvem e seu desleixo de brancura.

Vivo a golpes com coração de asa e tombo como um relâmpago faminto de terra.

Guardo a pluma que resta dentro do peito como um homem guarda o seu nome no travesseiro do tempo.

Em alguma ave fui vida.

Era isso! Era aquele pequeno senso de solidez que existia e que tomava todo o meu ser: - Eu queria ser vida em uma tese, como o poeta foi vida em alguma ave. Queria então, também viver uma tese-ave. Queria voar mundo afora, queria sentir a minha conexão entre o céu e a terra, trazer as minhas memórias espraiadas de infância também na floresta amazônica, em meio aos cantos dos pássaros, aos banhos de rio, às imensas poças d’água, ao subir nas árvores bem lá no alto da copa para chupar caju, manga, ingá, pois era quando quase conseguia tocar com os dedos as nuvens e seus desleixos de brancura, desejava ouvir as memórias de outras pessoas que viveram uma infância muito semelhante à minha e sentir a golpes com o coração de asa, as minhas memórias nas paisagens das delas2, foi então que o poema me mostrou que eu podia me fazer uma pesquisadora-ave. Ave de voos rasantes quando pousei nos muitos lares para construir com os migrantes suas narrativas de memórias, quando arriei em muitas das aulas do doutorado da turma 2015/2019 do PPGE/UFMT, onde nos fazíamos pássaros aprendizes juntamente com nossos mestres, quais nos instigavam a voar, a não temer a liberdade do voo, do passarinhar com/no mundo. Ave que alçou voo pra

2 No mestrado finalizado em 2012, eu já havia pesquisado a história da educação de Sinop no processo de colonização, porém, no Doutorado, queria dar seguimento à pesquisa de modo com que ela apresentasse a educação não apenas institucionalizada, mas, nos espaços cotidianos, onde as crianças construíam entre si e com todos que conviviam a cultura infantil. Desde modo, dizer que a Educação não se restringe ao espaço escolar.

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longe, quando experienciei o estágio doutoral na Loyola University em Chicago, nos Estados Unidos. Ave que voou pra longe e pra perto, que construiu ninhos por onde passou e que estão todos presos em minhas memórias, em meu corpo, em toda minha carnalidade. Assim, essa escritura é um ensaio de uma tese-ave que se apresenta orquestrada por cantos: de pássaros, de mata, de artes, de ciência, de gentes numa só sinfonia onde ouço do canto do uirapuru até as harmonias dos contrapontos de Bach, num lócus de floresta, onde os sujeitos são nomeado como árvores, longe de qualquer hipótese de terem raízes pivotantes, mas simplesmente e metaforicamente porquê “assim, enquanto, eu escutando na folha da orelha, as minúcias recontadas: as passadas dos companheiros, no corredor, o assoviar e o dar de balas – que nem um saco de milho despejado” (ROSA, 2015, p. 269), assim nasceria essa escrita, uma testemunha imortal, das folhas das gentes que eu ouvi recontando suas histórias, singularmente dos mundos vividos de memórias despejadas. É nesse sentido que a partitura começa a se compor. Nessa travessia, muitos questionamentos surgiram, fui, voltei, experimentei alguns caminhos e refiz todo o trajeto até me encontrar fenomenologicamente como vida nesse ensaio, no corpo dessa tese-ave. Na verdade, a gente só encontra com o que desejamos pesquisar na travessia, aí ajustamos aqui, desfazemos alguns nós e construímos outros e para não perder o fio, fazemos alguns alinhavos ali, outros lá e assim, experienciamos, vivemos a intensidade da pesquisa, é aquilo que Riobaldo já enunciava no Grande Sertão Veredas: “Digo: o real não está na saída nem na chegada: ele se dispõe para a gente é no meio da travessia (ROSA, 2015, p. 80)”. E nessa travessia, experimentando as múltiplas formas de se fazer história, alguns questionamentos entre tantos outros me inquietavam um pouco mais: seria possível narrar as experiências da infância, em especial do brincar, a partir das memórias de adultos numa investigação histórico-poética, onde diferentes linguagens de saberes se entrecruzam, numa perspectiva fenomenológica? Como era o brincar bricoleur de sujeitos3 que viveram suas infâncias em Sinop-MT, em meio à floresta amazônica entre os anos de 1973 a 1983? Contudo, não trago respostas prontas numa composição estruturada, não almejo fluxos fixos, uma vez que nessa escritura, nada se faz finalizado, tudo se faz entre como na relação de quiasma merleaupontyano. Trago apenas trechos, cacos, restos, de experienciamento de

3 O título desse trabalho faz referência aos sujeitos migrantes participantes dessa pesquisa: meninos e meninas do/no m/Mato

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presenças e memórias que brilham no agora (Cf. CERTEAU, 1998), então, com elas, faço bricolagens fenomenológicas, a partir daquilo que vivi, que experimentei. Bricolagens como linhas de fugas, quais se fazem dobras e que entre elas, respiro para sentir os afetos (Cf. DELEUZE E GUATARRI,1992) e então, poder dizer daquilo que meu corpo ouviu, sentiu e deseja contar.

Para tanto, intento mover uma investigação histórico-poética, qual toma como intenção o fato de analisar a história constituindo-se por diversos olhares: histórico, filosófico, artístico, estético, cultural, poético, o processo de pesquisa. Histórico-poético no sentido grego de poiesis, que se refere à criação, nesse âmbito, à criação humana e histórica dos acontecimentos, da vida. Diante disso, “nada fica estabelecido a priori, portanto, não há representatividade, tudo decorre da experienciação, tudo é por vir, tudo é caminho a atravessar ou travessia” (ALBERNAZ, 2009, p. 17).

Martha Barros, Novos caminhos - 156cm x 86cm - 2007

Escolhi construir um olhar histórico-poético para buscar um caminho novo ou um outro caminho, ou mesmo uma nova travessia, ou uma travessia outra, para abordar a pesquisa, de forma a concordar com Foucault (1998, p. 13) quando nos diz que “existem

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momentos na vida onde a questão de saber se pode pensar diferentemente do que pensa e perceber diferentemente do que se vê é indispensável para continuar a refletir.” É deste processo de “descaminhos, mas também de trilhas seguidas” como sugere Bujes (2007, p. 14), que inquietei o meu ‘querer-fazer’ de pesquisadora-ave. Nestes processo de descaminhos e de trilhas seguidas o ensejo é suscitar a histórico- poética como um movimento de investigação em relação a analisar a pesquisa historiográfica de forma que discuta e amplie os campos epistemológico e empírico, como também artístico e poético da vida. A aspiração contorna as margens de uma análise investigativa que promovam e provoquem “leituras sensíveis do tempo” (Cf. PESAVENTO, 1997). Trata-se de discutir um processo de análise da História Oral4, de forma constantemente aberta, em construção, não fixa, mas, modificável, que ao mesmo tempo instiga mudanças, transforma o próprio historiador e seus sujeitos participantes. Deste modo, se faz e perfaz uma proposta de interpretações da pesquisa onde não há origem ou verdades inquestionáveis, não permite uma escrita de equações mas, uma versão da história ou uma história-ficção (Cf. CERTEAU, 1982), construída de forma onde “não existem significados originários, e sim constituição de interferências: a metáfora atravessa a língua, da mesma maneira que o afeto é relacionado ao conceito, no confeto" como explica Gauthier (2003, p. 301) em relação ao pensamento de Deleuze e Guattari que configura a proposta de pesquisa Sociopoética (GAUTHIER, 2003). A histórico-poética do ponto de vista epistemológico foi criada de modo a apresentar as peculiaridades no fazer a história oral, todavia, faz-se relevante pontuar que esta se inspira a priori na terminologia de pesquisa da ‘sociopoética’, proposta por Jacques Gauthier, citada anteriormente, qual trabalha com metodologias interligadas à arte e à criatividade, produzindo uma poesia crítica que se movimenta, se modifica, cresce ou definha no próprio processo de pesquisa, no momento em que as ideias são discutidas, expostas, assimiladas ou rejeitadas (GAUTHIER, 2003).

4 Lang (2005), sugere que a história oral tem a especificidade de compreender também uma postura, na medida em que seu objetivo não se limita à ampliação de conhecimentos sobre o passado recente, mas visa conhecê-lo através das pessoas que o viveram, captada no diálogo entre o pesquisador e o narrador. Os relatos orais, de acordo cm os estudos de Thompson (1998), podem preencher as lacunas deixadas pelas fontes tradicionais, uma vez que a história oral é algo tão grandioso que suas implicações transbordam da história para outras áreas de atuação humana. Desse modo, importou-me como enfatizado por Benjamin (1987), atribuir a relevância da narração como possibilidade de preservar a memória daqueles que não tiveram destaque nos manuais da história oficial; de conservar seus testemunhos e depoimentos, construindo uma nova história (Cf. ROHDEN, 2016).

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A histórico-poética, intenta provocar nas narrativas orais um olhar múltiplo, sem um centro fixo, mas, um fluxo contínuo onde o ensejo é propor uma “desterritorialização” da história, o que implica à problemática de uma história menor5, de modo a construir a história não contada6, camuflada, a história das minorias, desviando assim, do padrão, extrapolando os critérios de medidas já conhecidos, quais são anunciados pela história oficial. No entanto, desterritorializar a história, numa perspectiva histórico-poética, é acompanhar o processo de como algo novo é produzido, é perceber o diferente, qual impera a ausência de tradições balizadoras com a qual o autor tenha de exclusivamente dialogar entre seus pares do campo histórico, rompe com a ideia de que o historiador deva privativamente teorizar e historicizar somente com sua própria área de conhecimento, dificultando cruzar olhares díspares que juntos possuem algo em comum, contornado pela diferença, fazendo emergir deste modo, outras e novas discussões que possam contemplar novas e outras perspectivas, inseridas num debate fundamentado, inovador, mas, sempre permeado por lacunas, brechas, por olhares quiasmáticos que permitam o inacabamento de um estudo histórico e promovam a intensidade dos acontecimentos. Contudo, diferentes áreas do conhecimento veem utilizando a expressão ‘poética’ para designar seus movimentos de pesquisa. Além da sociopoética, outro exemplo é a geopoética, que vem buscando caminhos que ressignifiquem os modos de mobilidade como instância criadora de sentidos, “do fazer artísticos colaborativos que se configuram no âmbito de uma geopolítica líquida” (AMARAL, 2013, p.3626). Diante disto, ‘poético’ neste trabalho não se delimita à ‘arte de escrever em versos’, não restringe seu significado apenas na literatura, mas, perpassa as diferentes áreas do

5 História menor, aqui inspirada na terminologia empregada por Deleuze e Guattari em Kafka: Por Uma Literatura menor (1996), qual pressupõe uma dimensão baseada na noção central de “desterritorialização”. A ação de desterritorializar associa-se à problemática da literatura “menor”, pois implica um deslocamento provocado por uma descaracterização cultural, em função do espaço e da língua, operada por grupos ou subgrupos étnicos, raciais ou culturais que, em dado momento histórico, acham-se submetidos a um processo de marginalização. Construir a consciência de minoria é desviar do padrão, extrapolar o critério de medida já conhecido. É criar o novo, em que impera a ausência de talentos, de cânones ou de qualquer tradição balizadora com a qual o escritor tenha de dialogar (Cf. TEDESCHI, 2017). Este é, para Gilles Deleuze e Guattari (1996), o significado político de toda arte. Nesse sentido, afirma ele, a minoridade representa a parte de variação, de diferença e de infração. São estes valores, segundo Gilles Deleuze, que se tornam imperativos para a produtividade do “menor”; assim, pela desterritorialização, toda a problemática social e política penetra no campo literário e imprime uma feição própria à estética dos “menores” (DELEUZE, 1996, p. 155) 6 Faz-se necessário pontuar que esse fazer história tem seus movimentos atrelados à Nova História Cultural (NHC) qual foi precursora para o entendimento também dos estudos que englobam a história das culturas. A NHC constitui uma história que se detém nas particularidades, nas culturas de modo minucioso e singular (Cf. ROHDEN, 2016).

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conhecimento, assumindo o significado de ‘criação’, do fazer e do sentir humano, de reconhecer na história, o espírito poético da vida – daquilo que as fontes históricas podem enunciar, seja da dor, seja do belo, numa perspectiva histórico-fenomenológica. A análise histórico-poética intenta dizer de um passado incapaz de ‘ressurgir’, um passado que não se modifica, que nos escapa, mas, que se é possível ressignificá-lo no presente de modo com que “ao interpretar nossas próprias experiências, em distintos momentos da vida, ressignificamos as percepções do vivido e das vivências” (Cf. GUIMARÃES, 2017) colocando todas as nossas sensibilidades em nossas ressignificações. Nesse âmbito, essa escritura na intenção histórico-poético apresentada, manifesta o desejo de mostrar que “o mundo é muito mais do que conseguimos captar e expressar em nosso clássico e muitas vezes empobrecido monolinguismo acadêmico” (STRECK, 2017, p.1). Finalmente, para se compor essa escritura plural, para se aproximar do objetivo primeiro de narrar as memórias de adultos que vivenciaram suas infâncias, com um olhar especial para o brincar e o inventar brinquedos em meio à floresta amazônica, durante o processo de formação e colonização de uma cidade na década de 1970 e meados de 1980 numa investigação histórico-poética, alguns passos metodológicos nessa travessia que de alguma forma combinassem com a análise histórico-poética que intento realizar nessa tese- ave, foram adotados. Como inspiração ‘metodológica’ da pesquisa, Manoel de Barros (2010, p. 298), me mostra as pistas para construir algo que creio fundamental para e com a pesquisa: desenvolver uma visão de pássaro, pois:

Por viver muitos anos dentro do mato - Moda ave, O menino pegou um olhar de pássaro - Contraiu visão Fontana. Por forma que ele enxergava as coisas por igual: como os pássaros enxergam.

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Martha Barros, Olhar de pássaro - 41cm x 27cm – 2007.

Pegar um olhar de pássaro. Contrair visão Fontana. Olhar para prender a visão no pequeno, naquilo que não costumamos ver, que muitas vezes nos passa despercebidos. Olhar para os detalhes, para as coisas aparentemente banais. Educar o olhar – sensibilizá-lo. Enxergar as coisas como pássaros, talvez este seja um dos grandes desafios de um pesquisador-ave. Olhar amplo e ao mesmo tempo minucioso. Olhar que vê algo a mais, em singularidades, não em verdades. Deste modo, um caminho metodológico não se restringe apenas a visão cartesiana de métodos, amostras, dados, análises, resultados, etc. Mas, também de olhares. Olhares-aves! Olhares binômios! Olhares-azuis!7 Uma vez que “As coisas não querem mais ser vistas por pessoas razoáveis. Elas desejam ser olhadas de azul – Que nem uma criança que você olha de ave” (BARROS, 2010, p.302) Nessa construção de educar um olhar azul, deparo-me com a necessidade fenomenológica de ter uma atitude de pesquisadora que não se isenta, não se afasta do mundo, mas, que se integra, se interliga junto aos sujeitos da pesquisa em comunhão com os mesmos e com o lócus de pesquisa (Cf. SANTOS, 2017), porque sinto-me pertencida umbilicalmente a todo esse processo, a toda experiência que vivi na minha infância e de todas as memórias que eu ouvi das folhas dos meus sujeitos.

7 Referência aos versos de Manoel de Barros (2010).

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Deste modo, esta é uma composição de memórias que sugerem uma das muitas possibilidades de se narrar a história, corroborando com o que sugere Pesavento (1994, p. 117), quando diz que:

A clássica maneira de ser da história – construção de um saber como estatuto de ciência e objetivando a verdade – é substituída por outra, na qual as fontes, matéria prima da história, são consideradas como “indiciárias” daquilo que podia ter sido e com as quais o historiador constrói a sua versão. Neste caso, a história, se reveste de uma função de criação, ao selecionar documentos, compor um enredo, desvendar uma intriga, recuperar significados.

Contudo, os muitos descaminhos e as trilhas percorridas repletas de curvas, se fizeram em algumas fases: A princípio fiz um pré-levantamento bibliográfico sobre memórias, experiências, infância, sobre o brincar, como também sobre os estudos do processo de colonização do lócus investigado. As bibliografias me acompanharam em toda a travessia e quando estive no estágio doutoral no exterior, pude ter acesso à outras obras ainda não traduzidas no Brasil. O trabalho com as fontes históricas foi me permitindo delinear melhor o movimento da investigação histórico-poética que eu pretendia elaborar. Com isto, os testemunhos orais8 foram construídos “no momento da entrevista, no diálogo estabelecido entre entrevistado e entrevistador. Para tal, se faz produto da interação destes dois sujeitos que emerge como conteúdo a ser, posteriormente, analisado pelo historiador” (VIDAL, 1990, p. 80). Um roteiro de perguntas semiestruturadas (HÁ-NEXO 1) foi elaborado apenas para minha orientação, uma vez que não pretendia ficar “presa” ao roteiro pois, tinha como propósito que os sujeitos pudessem narrar suas memórias do brincar na infância de forma livre, apenas com interrupções quando se fizessem necessárias, como Alberti (1990), alerta para que o roteiro da entrevista, não se tornasse uma “camisa de força” que viesse a amordaçar o livre depoimento do entrevistado. Antes dos pousos rasantes nos lares dos meus sujeitos que seriam entrevistados, me deparei com a Tese de Francisco Emílio de Medeiros “As dimensões lúdicas da experiência

8 Durante o Mestrado (2011-2012), eu já havia conseguido entre os sujeitos entrevistados da época outros nomes que poderiam me conceder entrevistas para pesquisas futuras. Quando iniciei o trabalho das construções das narrativas no Doutorado, entrei em contato com alguns nomes que possuía então, na realização das entrevistas, os próprios sujeitos sugeriam outros nomes, me passavam contatos, o que facilitou o encontro com os participantes.

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de infância: entre os registros de brinquedos e brincadeiras da obra de Franklin Cascaes e a memória de infância de velhos moradores da Ilha de Santa Catarina e de velhos açorianos de "Além-Mar", defendida na Universidade Federal de Santa Catarina – UFSC em 2011. Tal trabalho me inspirou em diversos momentos, em especial ao que o pesquisador utilizou para auxiliar as lembranças das infâncias dos velhos entrevistados: Uma sacola de palha, utensílio típico dos velhos moradores da Ilha de Florianópolis, qual transportava todo o material utilizado no ato de cada entrevista realizada, como também fotografias de brinquedos e as brincadeiras registrados por Franklin Cascaes; além de brinquedos tradicionais artesanais como: pião, bilboquê, bolinhas de vidro, boneca de pano, trapezista ou mané bobo, ioiô, pandorga, peteca e cinco-marias. Esse trabalho me inspirou a criar alguns elementos que eu intuía ser interessante para também auxiliar nas rememorações dos meus sujeitos entrevistados como para tornar a entrevista mais acolhedora, informal, afetuosa, trazendo objetos que fizeram parte de suas infâncias e ainda ser uma forma poética de criação, na construção das narrativas. Foi assim que surgiu a “Caixa de Histórias”, feita artesanalmente de madeira reaproveitada, trazendo em sua parte superior fotos da infância e da colonização de Sinop. A Caixa trazia em seu interior réplicas de brinquedos da época (confeccionados por artesãos de Sinop, como também pedrinhas, gravetos, restos de madeira, etc.). Na Caixa de Histórias havia também um álbum de fotografias de brincadeiras e brinquedos da época coletadas na internet, e uma casca do fruto da Castanha do Pará9, qual batizei de “Fruto da Infância,” que trazia em seu interior o que chamei de “Versos-Sementeiros” (HÁ-NEXO 2), papeizinhos- sementes, com escritos de alguns poemas do poeta mato-grossense Manoel de Barros, outros de minha autoria e assim, caso o entrevistado (a) quisesse, ao final da entrevista era convidado (a) a sortear ou mesmo ler quantos versos quisesse do “Fruto da Infância” e se sentisse à vontade comentasse algo que os versos lhe tivessem tocado. Na ocasião da visita aos sujeitos que foram entrevistados, eu levava a Caixa de Memória e o Fruto da Infância como ferramentas para auxiliar na construção das narrativas. A princípio, foi pensado nestes artifícios para “quebrar o gelo” inicial da entrevista, entretanto, eu percebia que a entrevista fluía mais com os tais artefatos. Houve adulto que sentou no chão, pegou o caminhãozinho de madeira e começou a falar de suas memórias sem se

9 Fruto típico da cidade de Sinop-MT e de regiões da floresta Amazônica.

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perceber por um instante de novo menino, brincando enquanto narrava. Houve outros que as pedrinhas, os restos de madeira foram motivos de chamar os filhos no momento da entrevista para ensinar a brincar de cinco-marias ou para montar cidadezinhas com os bloquinhos de madeira dizendo: “- olha, a mãe/o pai brincava assim na idade de vocês” e então, não pude deixar de notar a emoção nos olhos de cada um, nos gestos, no quanto ficavam surpresos ao ver fotografias de brincadeiras e de brinquedos da época. Me emocionei em cada entrevista e me emociono nesse momento novamente em recordar de como foi essa travessia de construção das narrativas. A sensibilidade faz pesquisa, como assinala Pesavento (2005, p. 02, grifos meu):

Principiemos pelo entendimento da sensibilidade como uma outra forma de apreensão do mundo para além do conhecimento científico. As sensibilidades corresponderiam a este núcleo primário de percepção e tradução da experiência humana que se encontra no âmago da construção de um imaginário social. O conhecimento sensível opera como uma forma de reconhecimento e tradução da realidade que brota não do racional ou das construções mentais mais elaboradas, mas dos sentidos, que vêm do íntimo de cada indivíduo.

CAIXA DE HISTÓRIAS

FIGURA 1: CAIXA DE HISTÓRIA (FECHADA)

ROHDEN, 2016.

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FIGURA 2: CAIXA DE HISTÓRIA (INTERIOR DA CAIXA)

ROHDEN, 2016.

Também, a utilização com poesias em meio às narrativas se constituíram como elementos essenciais para “tocar” de modo sensível o passado no presente, contribuindo para auxiliar às memórias da infância e das brincadeiras, uma vez que os Versos-Sementeiros, traziam em seu conteúdo semelhanças ao contexto natural histórico que os adultos de hoje, crianças-migrantes, vivenciaram sua infância. Após a leitura de alguns versos surgiram comentários como: “É verdade, o pó-de-serra era uma montanha na nossa cabeça de criança, não tínhamos noção do perigo e nem do que estava por trás, éramos apenas crianças que em tudo víamos coisas para brincar” (INGÁ, 2016), ou também “nossa, esse verso me fez sentir até o cheiro da manga” (AÇUCENA, 2016), “olha, que legal esse verso... tem sapo igual na época da chuva em Sinop, que era chamada de Sapolândia” (ANDIROBA, 2016), “Esse verso me fez lembrar a minha mãe gritando já noite, para eu e meus irmãos ir tomar banho e jantar, porquê se deixasse a gente não dormia, a gente só brincaria” (SERIGUELA, 2016), entre outros comentários a partir dos versos que tocaram a alma, as memórias que se faziam no agora por um instante tocar o passado transfigurado, mas, ainda vivo dentro de cada um, de

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cada uma.

Creio que esses elementos utilizados nas entrevistas foram capazes de germinar ainda mais as sensibilidades para revisitar a memória de infâncias dos meninos e meninas “do/no M/mato”10, que como diz o poeta que por viver muitos anos dentro do mato – Moda ave, pegaram um olhar de pássaro.11 E, são as memórias Moda ave, que eu desejava conhecer das muitas crianças hoje adultas, que brincaram, que viveram num espaço onde fabricavam os próprios brinquedos: eram boizinhos de osso, bolas de meia, automóveis de lata12, espaço este onde criação e invenção são vistos nessa tese-ave pelas lentes das artes de fazer (CERTEAU, 1998).

FRUTO DA INFÂNCIA

FIGURA 3:FRUTO DA CASTANHA TRANSFORMADO EM ARTESANATO

ROHDEN, 2016.

10 As expressões no/do m/Mato é para ressaltar o mato enquanto espaço de floresta e Mato enquanto estado de Mato Grosso 11 Referência aos versos de Manoel de Barros 12 Palavras retiradas do poema Sobre Sucata, de Manoel de Barros.

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FIGURA 5:FRUTO DA INFÂNCIA FECHADO COM OS FIGURA 4: INTERIOR DOS FRUTOS COM VERSOS- VERSOS SEMENTEIROS SEMENTEIROS

ROHDEN, 2016. ROHDEN, 2016.

Contudo, ressalvo que não pretendo aqui apresentar um receituário ou um mapa de uma abordagem metodológica a ser seguida, tão menos existe a pretensão de engendrar saberes e sustentá-los “permanentemente pela produção onipresente de um saber que o garante” (BUJES, 2007, p. 16), ao contrário, o desejo é de apresentar as fissuras, as inquietações, os anseios, os “novos ‘lances’ ou ‘sacações’" (BUJES, 2007, p.16, grifo da autora) vivenciados na experiência de uma abordagem analítica-perceptiva. histórico-poética, em constante voos e pousos. Nesse sentido, para compor as reflexões, as percepções que ensaio aqui, busquei um proceder que se aproximasse o máximo possível do tatear, do visualizar, do ouvir, do degustar, dos cheiros, de toda a sinestesia que me afeta e que cada um de nós traz de forma singular em nossas memórias de infância, como modo que posterior pudesse ser experimento para uma escrita: porque não infante, brincante, que vai se fazendo, vai se moldando como argila nas mãos de cada leitor, como massinha de modelar nas mãos de uma criança, convidando-a para brincar? “Uma escrita que é um convite ao pensamento, um convite à

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experimentação, um convite a afastar a uma pretensão de saber, a distanciar dos efeitos dos sentidos dados” (CHISTÉ, 2015, p. 11). Com isso, uma escrita num ensaio infante, brincante, tem como premissa afirmar a vida. Entretanto, no ato de afirmar a vida, nos deparamos com suas contradições, com a multiplicidade, com a pluralidade dos sentidos, das percepções, das infinitas linhas entrecruzadas, rizomáticas. Narrar memórias é dizer de vidas mas, também dizer da morte. Nessa travessia “Tudo é e não é” (ROSA, 2015, p. 27). Vida e morte. Memória e esquecimento. Belo e terror. Amor e ódio. Cantos e gritos. Alegrias e Tristezas. Cidade e Floresta. Con-tradições que se mostram e se ocultam e que ao mesmo tempo são díspares, se completam, não se separam. Tudo se pertence. Nesse sentido, num viés sincrônico e diacrônico, no que se refere à adultos narrando suas memórias de infância, vale ressaltar o presente dessa atividade, a qual implica a identidade do agora, a identidade construída ao longo do tempo, ou seja, memória e identidade cruzam-se nas narrativas. Para Candau (2011) no que concerne a relação entre memória e identidade é importante entender a questão da identidade como um estado construído socialmente “de certa maneira sempre acontecendo no quadro de uma relação dialógica com Outro” (CANDAU, 2011, p. 09). Trata-se, portanto, de uma elaboração social contínua e permanente criada a partir do contato fundado com a alteridade. Nesse âmbito, Candau (2011) classifica a memória em três momentos, sendo um deles, a metamemória, que trata da “representação que cada indivíduo faz de sua própria memória, o conhecimento que tem dela, e de outro lado, o que diz dela, dimensões que remetem ao modo de afiliação de um indivíduo ao seu passado” (CANDAU, 2011, p. 23). Trata-se assim de uma representação conectada à faculdade da memória, como uma “construção explicita da identidade” (2011, p. 23). É nessa representação que os marcos sociais atuam, situando o sujeito em relação à sociedade, pois “se a memória é geradora de identidade, no sentido que participa de sua construção, essa identidade, por outro lado, molda predisposições que vão levar os indivíduos a “incorporar” certos aspectos particulares do passado a fazer escolhas memoriais, como as de Proust na Busca de um tempo perdido, que dependem da representação que ele faz de sua própria identidade, construída “no interior de uma lembrança” (CANDAU, 2011, p. 19, grifos do autor).

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Em outras palavras, entendo nessa escritura que as narrativas de infância dos adultos- migrantes dessa pesquisa demonstram uma representação daquilo que eles se tornaram, da identidade do tempo presente, daquilo também que lhes contaram, dos seus papeis na sociedade. São memórias crianceiras que como Sutherland (2002) explica, ora brotam de si, ora brota da família, das vozes que lhes contaram. Além disso, numa ótica merleaupontyana, repleta de ambiguidades, memória e identidade não se excluem, o que também é colocado por Candau (2011, p.19) “memória e identidade se entrecruzam indissociáveis, se reforçam mutualmente desde o momento de sua emergência até sua inevitável dissolução. Não há busca identitária sem memória e, inversamente a busca memorial é sempre acompanhada de um sentimento de identidade, pelo menos individualmente”. Deste modo, entendo que quando adultos narram suas histórias, nas entrelinhas de suas memórias de infância, será possível o leitor identificar para além da criança que brincava, que estudava, que inventava mil e uma artes de fazer, também a identidade de quem são eles agora, revelando desse modo, o futuro do passado, isto é, o presente é o futuro daquilo que se passou e de que hoje sabemos o que aconteceu (Cf. SANTOS, 2017) e, nessas narrativas será interessante o leitor perceber a partir de suas próprias interpretações do mundo, as contradições nas narrativas: ao tempo que muitos migrantes narram sua conexão com a natureza, de forma biófita, também narram um discurso impregnado de colonialidade, do civilizador, do colonizador. Assim, a partir de todas essas ambivalências que essa escritura traz consigo, ‘ajuntei’ os sons de tudo que percebi nessa travessia e intentei ousar uma partitura da floresta para dizer de três cantos, os quais vêm das memórias dos sujeitos que ouvi, do meu próprio mundo vivido, das orientações de Passos, Josivaldo e Noah, dos dizeres dos membros da Banca de qualificação, dos professores e amigos e amigas do doutorado, de tantos autores lidos e relidos pelo caminho que foram deixando suas marcas em mim, “me afetando, me tocando, mobilizando, violentando o pensamento”(CHISTÉ, 2015, p. 13). No primeiro Canto, do Uirapuru, intento dizer de um entrelace de memórias, onde eu- o outro-o mundo nos fazemos uno e múltiplos em um rizoma de vivências, de experiências, de memórias. Nesse canto, busco trazer os principais teóricos que me acompanham pela travessia no sentido de com eles provocar o pensamento, sugerir outras, novas e diferentes leituras e interpretações, percepções, sensações daquilo que experimentei com o meu corpo,

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provocando, tocando, sensibilizando outros corpos que farão outras leituras dessa travessia diferentes da minha e por isso se faz performática, fenomenológica, experimentadora, causa embriaguez no sentir-pensar em cada leitura-ave de quem se propor a voar por aqui, sem destino fixo, mas infindável de possibilidades, como uma obra:

[...] gênese de mundo e homem, em harmonia e coalescência, gerados por intervenção amorosa; e simultaneamente, geração do próprio artista criador, assim como dos seus intérpretes-leitores, seus críticos e, como numa teia, seus ascendentes, sua descendência e seus correlatos. Nesse surgimento, o que brota não se mostra imediatamente, mas traz em si sua trajetória, seu percurso de aparecimento, e dele não se desvencilha; ao contrário, no que é travessia se define (ALBERNAZ, 2009, p. 17).

Diante disso, também nesse Canto, são apresentados os meus sujeitos pesquisados em estágio de árvore, uma vez que para o poeta-inspirador dessa tese-ave, Manoel de Barros, “a poesia não é para compreender, mas para incorporar. Quem entende é parede, é preciso ser árvore” (BARROS, 2010, p. 124) e aqui, nesse ensaio, a poesia é tão importante quanto a ciência, ela se faz numa escrita multidimensional, e portanto, uma “poética stricto-sensu” (Cf. STRECK, 2017). Sobrevoando o segundo Canto, do Beija-flor, intento dizer entre gritos e cantos da Floresta Amazônica, lócus dessa pesquisa-ave, apontando a dimensão biótica e a necrófita numa perspectiva de linhas abissais (SANTOS, 2007). Contudo, uma Amazônia entre águas e sangue pulsa vida e morte e nela o sonho, a esperança e a ambição com-vivem juntas, proporcionando-nos olhares múltiplos sobre o processo de colonização de Sinop, sobre a travessia dos migrantes que saíram de seus lugares de origem para viver num lugar diferente, e, nesse lugar crianças participaram da história de constituição de uma cidade como coautoras, produtoras de culturas, inventoras de brincadeiras, criadoras de experiências. Esse segundo canto, voa de conjecturas da história nacional à uma história singular, vivida, experienciada de modo singular por cada um/uma que a vivenciou, mas que não tem seus nomes, seus rostos mostrados pela história oficial e nisso, se propõe uma história menor, uma história a contrapelo, como dito por Benjamin (1987), dos heróis sem brasões como dito por Certeau (1987). Tal canto, me fazendo parte de tal espaço, intento instigar um lugar de fazer comunhão com as coisas, regido por um tratado de pássaro, num lugar compreendido e vivido na dimensão do Cuidado e ao mesmo tempo num lugar na dimensão da apropriação, da posse,

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dos domínios, de exploração ilimitada do humano que não se reconhece com íntima relação com a Mãe T/terra e com todos os seres vivos. Um lugar de experienciamentos do belo e do terror, do amor e do ódio... e talvez Riobaldo13 repetiria nessa outra travessia da floresta:

O diabo existe e não existe? Dou o dito. Abrenúncio. Essas melancolias. O senhor vê: existe cachoeira; e pois? Mas cachoeira é barranco de chão, e água caindo por ele, retombando; o senhor consome essa água, ou desfaz o barranco, sobra cachoeira alguma? Viver é negócio muito perigoso. (ROSA, 2015, p. 26).

Contudo, num bricoleur de invencionática14 convido o/a leitor/a a pairar o terceiro Canto, do Bem-te-vi, e se sentir em suas próprias memórias crianceiras a partir das grandezas do brincar de meninos e meninas do/no M/mato a também sentir em seu corpo as lembranças dos banhos de chuva, do sujar-se na lama e acompanhar seu barquinho de papel enxurrada abaixo, a puxar seu carrinho de latas tristes15, a subir no pé da sua árvore, já que todo mundo já teve um dia a sua árvore própria. Convido a fazer peraltices infantes e brincar de roda, pegar seus caderninhos e voltar para os bancos da sua sala de aula e ver também nas suas astúcias já embaralhadas, o passado no presente trazer entre meio de memórias e esquecimentos a sua infância que relampeja no tempo. Convido a se fantasticar16 com os brinquedos inventados com os restos, as sobras, os cacos, os pedaços, com a vida. Convido a sentir no baú de histórias que habita em seus corpos, as experiências vividas e nelas tatuadas as “memórias amadas: nelas ainda vivem animadamente as pessoas queridas, as aventuras de crianças, as traquinagens” (Cf. GUIMARÃES, 2017). Convido a movimentar o pensamento para as culturas infantis, para a criação e invenção da infância, seja no ‘mato’, seja na metrópole. Tudo isso, envolto à uma leitura sensível do tempo, fazendo bricoleurs com o mesmo.

Nesse canto, também cito alguns depoimentos de narrativas orais de adultos

13 Riobaldo, narrador em primeira pessoa da obra Grande Sertão Veredas de Guimarães Rosa. A personagem faz um relato de fatos diversos e aparentemente desconexos entre si, que versam sobre suas inquietações sobre a vida. Os temas giram em torno das clássicas questões filosóficas ocidentais, tais como a origem do homem, reflexões sobre a vida, o bem e o mal, deus e o diabo. Fonte: https://guiadoestudante.abril.com.br/estudo/grande- sertao-veredas-resumo-da-obra-de-guimaraes-rosa/ Acesso em: 26 jan. 2019. Riobaldo será convidado em alguns momentos a se pronunciar nessa travessia. 14 Referência aos versos de Manoel de Barros, 2010. 15 Idem, 2010. 16 Idem, 2010.

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americanos, as quais tive acesso durante minha experiência de estudos nos Estados Unidos, com a intenção de fomentar a discussão de que independente de tempo e espaço, a criança brinca, aprende a brincar no encontro com o outro, inventa, cria esconderijos e castelos também na neve, no porão, na colina, pertinho das nuvens, faz do brincar o verbo do seu viver, em qualquer que seja a estação climática, o espaço geográfico. E assim, quando brincam, criam seus próprios mundos, suas culturas infantis, são autores e autoras das próprias histórias.

Contudo creio ser relevante considerar esse conjunto de textos: acadêmico, o poético stricto sensu e o pictórico fotográfico como um propósito “de convidar a Academia a se desinstalar e ousar mais em termos de linguagem” (Cf. STRECK, 2017). A imagem, a fotografia, as pinturas, a poesia, enfim, toda manifestação da arte é uma tradução da vida, por isso me refugio à elas. A ciência por si, não dá conta de dizer sozinha da vida, daquilo que pulsou e que pulsa. A vida é arte, criação, potência e "como fenômeno estético a existência ainda nos é suportável, e por meio da arte nos são dados olhos e mãos e, sobretudo, boa consciência, para poder fazer de nós mesmos um tal fenômeno” (NIETZSCHE, 2001, p. 132), sem que a gente precise dar muitas explicações, mesmo porquê assim como Riobaldo nessa travessia: “[...] Eu quase que nada não sei. Mas desconfio de muita coisa” (ROSA, 2015, p. 31). E assim, também pelas fotografias encontrei refúgios de poeticamente dizer com imagens aquilo que sinto, que me provocam interpretações, me afetam a pensar analogias, metáforas, com aquilo que estudo, que crio, que escrevo. As imagens aqui utilizadas sejam elas históricas ou com os propósitos de suscitar uma estética da realidade, também dizem muitas coisas e o olhar de quem as enxergam nesse ensaio, carrega o mundo de cada um, assim, diferentes percepções são possíveis, pois, como sugere Kossoy (2002, p. 38) “A realidade da fotografia reside nas múltiplas interpretações, nas diferentes leituras que cada receptor dela faz num dado momento; tratamos, pois, de uma expressão peculiar que suscita inúmeras interpretações”.

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Contudo, as pinturas, as canções e os poemas que fomentam a vida como obra de arte [...] da mão que pinta (Cf. DIAS, 2011) nesse ensaio de da garganta que canta experimentações, contribuem para – onde foram cárceres nasça o espaço o que Nietzsche nos traz em comunal da paz relação a criação e arte para um compartilhada – da arte: gesto (pintura) ou (poema) fala: fazer que não se esgota, mas que que se comparte. produz continuamente a vida. A Haroldo Campos vontade criadora, privilegia assim a vontade de potência, o que implica a afirmação da vida, condição necessária do devir (Cf. DIAS, 2011):

A vida é um conjunto de experimentações que o ser humano vivência. Por essência, ela é criação generosa de formas; é artista e, como acontece em toda atividade artística, não visa a nada fora da própria atividade. Tal como o pintor que pinta por pintar e o músico que toca por tocar, a vida vive por viver. É preciso viver de tal modo que viver não tenha nenhum sentido — e é justamente isso que dá sentido à vida (DIAS, 2011, p. 14).

Viver, simplesmente viver! Viver a pesquisa, com toda a intensidade das interpretações do mundo que somos, que criamos, que percebemos. Viver as artistagens das nossas criações, dos nossos devaneios, dos nossos sonhos, da infância que habita em cada um de nós. Pesquisar sob diferentes óticas que se integrem à vida, que afirmem a existência, que reconheça que o mundo é fruto das interpretações, das percepções que fazemos dele. Sentir a história pulsar no presente, ser sensível ao tempo que não é exterior à nós, mas que se faz em nós próprios, ligado à tudo e a todos (Cf. MERLEAU-PONTY, 1994). Tudo isso faz com que nos reconheçamos não apenas parte, mas a própria pesquisa, as próprias interpretações e nisso, “interpretar o mundo não é conhecê-lo, mas criá-lo. É criando o nosso mundo que nos tornamos cocriadores do mundo, porque sem nós, sem nossa interpretação, esse mundo que é nosso não poderia existir” (DIAS, 2011, p. 16-17). Assim, “[...] não há como estar sobre o mundo, como se fosse possível estar fora dele para se sobrepor a ele. Estamos sempre imersos na paisagem. Nós somos o próprio mundo” (CÔRREA, 2019, p. 118).

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Finalmente, este é um convite para criar mundos, para sentir, para imaginar, para brincar com as memórias crianceiras, para voar, para viver, apenas viver, isso dá sentido à vida, dá sentido à essa escritura, à essa travessia.

Nas páginas que se seguem, convido os leitores e leitoras para viverem os cantos, para cantar e gritar juntos, para sentir o jorrar das águas e do sangue, para sentir os tempos em si, para criar e recriar seus mundos, para viver em estágio de árvore, para fazer comunhão com as coisas, para viver a travessia, para pesquisar e interpretar por suas próprias lentes de suas vivências, para ser também vida nessa partitura e dar voz à essa composição. Sugiro um voo por essa tese-ave inventivo, criativo, crianceiro, que permita fazer moradas, ninhos bricoleurs...

Bricouleurs que pulsam...

Bricouleurs que vivem...

Meus desejos é de que quem leia esse ensaio, seja vida em alguma ave...

Foto: Valmir Cordasso, 2014.

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CANTO 1 – DO UIRAPURU

ENTRE CACOS DE MEMÓRIAS

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CANTO 1- DO UIRAPURU: ENTRE CACOS DE MEMÓRIAS

1.1. Entrelace de memórias: eu-o outro-o mundo

[...] Chegamos à um limite da longa estrada, Paramos num pequeno vilarejo Rodeado por muito mato, e coaxos de sapos.

Uma imensidão de floresta, Com rios de poças d’água, E cantos orquestrados por pássaros.

Aquele seria meu novo lar: Onde viveria toda uma infância. Bem-vindos ao Mato Grosso. Fiquei feliz! A mãe chorou.

(Josi Rohden, 2013)

ntre. Fragmentos. Composições. Sensações. Estranhamentos. Sussurros. Ranhaduras. Barulhos. Silêncios. Cirandas. Risos. Choros. Floresta. Terra. E Água. Cheiros. Paisagens. Gostos. Ouvidos. Sonhos. Desejos. Lembranças. Medos. Corpos. Experiências. Curvas. Fogo. Potências. Ar. Memórias. Tempo. Eu. Outro. Mundo. Poiesis. Vida. En-Cantos.

Eis que na tessitura da escrita deste Primeiro Canto, que se faz e perfaz, que se inscreve e escreve, que se conta e não diz, que se brota e se mirra, sou tomada por todas estas palavras supracitadas e por outras tantas mais que habitam meu corpo, assim como pelas despalavras17, e nesta relação “[...] eu não comando as minhas palavras. Elas que gostam [...] das coisas desimportantes. As palavras me elaboram” (BARROS, 2010, p. 125). Sou tomada pelas palavras e despalavras, pelas vozes dos migrantes18, sujeitos desta pesquisa, como numa

17 As despalavras na poesia de Manoel de Barros nasce do canto-desde os pássaros, não tem pronúncias, são ágrafas, são incapazes de ocupar o lugar de uma imagem. “O antesmente verbal: a despalavra mesmo” (BARROS, 2010). 18 Denominados como meninos e meninas no/do m/Mato.

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composição feita de muitos corpos. Uma composição não estruturada, mas composta de fragmentos, experienciamentos, de bricolagens (Cf. CERTEAU, 1998), que se abre em infinidades de possibilidades, quais instigam “experimentar seus limites” (LARROSA, 2010, p. 52-53).

Toda esta composição que se faz harmônica e ao mesmo tempo em dissonâncias são agrupadas por linhas, quais se fazem dobras e, como numa arte da des-dobra, consigo nela respirar para viver, já que não são linhas que apontam um caminho certo, este não existe. São nos afectos19, nas volúpias, nos sentimentos que consigo dizer daquilo que meu corpo ouviu, sentiu, viveu, São nas dobras destas muitas linhas, no entre elas, que consigo me curvar para viver na linha da vida, para fazer dela no tempo em que me for possível uma arte de viver, como bem colocado por Deleuze (1992, p. 138):

Essa linha é mortal, violenta demais e demasiado rápida, arrastando-nos para uma atmosfera irrespirável. Ela destrói todo pensamento [...]. Seria preciso ao mesmo tempo transpor a linha e torná-la vivível, praticável, pensável. Fazer dela tanto quanto possível, e pelo tempo que for possível, uma arte de viver. Como se salvar, como se conservar enquanto se enfrenta a linha? [...]. Curvar a linha para conseguir viver sobre ela: questão de vida ou morte.

Neste curvar a linha para poder compor, criar, sou tomada por um movimento bricoleur20, no ensaio de construir artesanalmente um texto de brechas, com sobras, fragmentos, restos, cacos, peças, um texto onde há trechos de muitos outros textos, pedaços de mim e pedaços do outro, dos outros, do mundo. Leio, re-vejo, sinto, corto, tiro, coloco, excluo, imagino, retiro, re-encaixo, redistribuo, paragrafeio, re-tomo possibilidades, faço, refaço, escrevo, re-escrevo. Escrevo–me, Inscrevo-me, juntando “[...] pedaços de quebra- cabeça que não são do mesmo, mas de diferentes quebra-cabeças, violentamente inseridos uns nos outros, sempre locais e nunca específicos, e com suas bordas discordantes, sempre forçadas, profanadas, imbricadas umas nas outras, e sempre com restos” (DELEUZE e GUATTARI 2010, p. 63).

19 Para Deleuze (1992, p. 213) “os afectos não são mais sentimentos ou afecções, transbordam a força daqueles que são atravessados por eles.” 20 De acordo com Certeau (1998) a bricolagem é feita de modos para driblar as táticas do consumo com inovação e criatividade, para fazer algo novo e de maneira improvisada utilizando-se do que se tem no momento. É manifestação tanto da astúcia do homem ordinário– do que não exerce poder e é passível de controle - como manifestação da improvisação, do não previamente planejado, do que é adaptativo e contextual.

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Escrita-brincante em arte-crianceira de recortar, colar, pintar, amassar, enrolar papelzinho nas pontas dos dedos, moldar argila, construir ‘castelo’ de areia, compor. Com- posição de palavras, invenção de poéticas, fluxos desejantes de experimentação. Experimentar, experienciar, viver com todo o meu corpo, com a minha carne este movimento de bricolagem - de compor e descompor uma escritura.

Assim, neste movimentar bricoleur, concebo nesta escrita o corpo como minha ‘própria razão e minha melhor sabedoria’ como diria Nietzsche e, entendo com Merleau- Ponty que não é nos polos, mas no entre, na interposição, nas dobras, que o corpo busca possibilidades dos sentidos das coisas, uma vez que:

[...] o mundo é inseparável do sujeito, mas de um sujeito que não é senão projeto do mundo, e o sujeito é inseparável do mundo, mas de um mundo que ele mesmo projeta. O sujeito é ser-no-mundo, e o mundo permanece ‘subjetivo’, já que sua textura e suas articulações são desenhadas pelo movimento de transcendência do sujeito (MERLEAU-PONTY 1994, p. 576).

Diante do exposto, posso inferir que o corpo apreende, percebe e é simultaneamente apreendido, percebido. O corpo se faz nosso “[...] ancoradouro no mundo” (MERLEAU- PONTY, 1994, p. 200). O corpo não é um receptor estável e passivo das coisas que o cercam, é um dinamismo, um movimento inesgotável, a própria autopoiesis,21 que se comunica com o mundo, que se faz mundo sem o possuí-lo, uma vez que “[...] o mundo é não aquilo que eu penso, mas aquilo que eu vivo; eu estou aberto ao mundo, comunico-me indubitavelmente com ele, mas não o possuo, ele é inesgotável” (MERLEAU-PONTY, 1994, p. 14).

21 Poiesis vem do grego, se refere à criação, produção. Autopoiese seria então, autoprodução, autoconstrução. A palavra inicialmente foi empregada na literatura internacional em 1974, num artigo publicado por Varela, Maturana e Uribe, para conceber os seres vivos como sistemas que produzem e criam continuamente a si mesmos, autorecompondo-se, autorecriando-se.

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Martha Barros, Invento para me conhecer - 107cm x 52cm - 2010

Nesta escritura que se ensaia, nada se faz concluso, mas, tudo se faz entre. Numa relação de quiasma merleaupontyano22 que interliga as minhas experiências às experiências vividas do outro, ou melhor – dos outros e outras, numa intercorporeidade, assim como se une ao lócus pesquisado e às vozes dos teóricos e do poeta com quem elegi construir uma escrita a partir daquilo que deles ouvi, experimentei. Tudo, todos e todas estão em mim e eu estou neles. E, meu corpo sabe dizer disto porque essencialmente vivi e reconheço este território, este tempo, esta interlocução de experiências vividas e então, posso assim dizer que “meu corpo é a mesma carne do mundo” (MERLEAU- PONTY, 2014, p. 156).

É no tatear deste quiasma que este experienciamento de presenças que ao mesmo tempo também se faz de ausências, que intento escrever, reconhecendo os meus limites e buscando na estética narrar as memórias e histórias do outro, na condição primeira de reafirmar a vida. Corroboro com Passos e Sato (2012, p. 30), quando enfatizam que:

É pela estética que experienciamos a nós próprios e nos reencontramos pela nossa carnalidade, mediante um reencontro com nossas próprias origens com a carne do mundo que em nós inexoravelmente circula. Pela cinestesia, ser e temor se pareiam em um diálogo de pulsação da vida no universo, sob a forma de êxtase.

22 Para Merleau Ponty (2014, p. 157) “Nós nos colocamos tal como homem natural, em nós e no outro, no ponto onde, uma espécie de quiasma, tornamo-nos os outros e tornamo-nos mundo”.

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Então, como uma escriba humana, as pulsões, os êxtases que me provocam à estética da poiesis da vida, que me movimentam, me inquietam, me afetam, me atravessam e me carregam para um processo de vida e morte na escrita desta teia de ressonâncias, qual chamarei de ‘experienciamento de presenças’, ecoam do meu próprio corpo:

Escrevo com o corpo, Com as sensações, Como quem experimenta, Como quem exala sentimentos, Devires e desejos.

Preciso sentir para escrever Pensar causa ausência das palavras... As distinções entre pensar e sentir São maiores do que trazem os seus signos, Há instintos distintos Distintos instintos. [...] (ROHDEN, 2013, p. 65).

Neste sentido, escrevo movida pelo que vivi, os experienciamentos das presenças das histórias e memórias que ouvi, dos agenciamentos deleuzianos do encontro que estão em mim, me atravessam em linhas desejantes e vibram no meu corpo e na dobra faz pulsar o desejo da pesquisa como acontecimento23, qual ignora os ‘grandes acontecimentos’, aqueles que harmonizam o infinito-finito, o abstrato-concreto, “O acontecimento não se presta à dualidade ideal-real ou universal-particular” (CARDOSO JR, 2005, p. 111), no qual o tempo é sempre entendido como a superação de uma contradição. O acontecimento nesta pesquisa é entendido num:´

[...] tempo das multiplicidades, [...], é compreendido como singularidade, como um acontecimento onde o que se observa é a amplitude e a qualidade das forças que se apoderam de uma coisa. Não há aí contradição que prepare a reconciliação, há pluralidade, naturalmente mais pródiga que qualquer oposição (CARDOSO JR, 2005, p. 111).

Diante disto, a escrita deste ensaio não anseia por sínteses, tampouco é a expressão de uma pronúncia apenas minha, mas é também discurso do outro, dos/as outros/as, é comungado com todos os corpos que se inscrevem vidas e se fazem poiesis neste

23 Para Deleuze o acontecimento é “sempre qualquer coisa que acabou de passar ou que vai se passar, simultaneamente, jamais qualquer coisa que se passa” (DELEUZE, 1969, p. 79),

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experienciamento histórico-poético, numa ótica de intercorporeidade com tudo e com todos/as.

Neste contexto, a poiesis em Nietzsche dá conta de dizer da vida como criação, pois “nossa existência é em si mesma um contínuo ato artístico. Portanto, a criação do artista é uma imitação da natureza no mais profundo sentido” (NIETZSCHE, 1999, p. 213). Assim, sendo nós natureza, somos vidas criadoras, que inventam, reinventam a partir da nossa capacidade poiética.

Mari Bueno, Renovação. Óleo sobre tela, 2015.

Doravante, os versos iniciais deste Canto se remetem à minha corporeidade, à uma profunda imitação da natureza por mim experienciada, à um ato artístico da existência, atrelado às experiências das memórias que ouvi dos sujeitos pesquisados, quais fazem jus ressaltar que “é legítima a impressão que o vivido de outrem sempre escapa a nosso olhar” (FONTES FILHO, 2006, p. 15, grifo do autor), “uma vez que não vemos o mundo como eles é, mas como nós somos, por isso, alguns aspectos nos escapam, não temos as chaves interpretativas para decodificar o outro e suas culturas, consequentemente, modos de viver suas próprias mundivivências” (Cf. GUIMARÃES, 2017).

Deste modo, como explica Fontes Filho (2006), em Merleau Ponty é fato que há algo da vida do outro que sempre me escapará, assim como é através do outro que compreendo que há algo de minha própria vida que sempre me escapará, “razão porque Merleau-Ponty entende a imbricação intersubjetiva não como intersecção entre duas positividades, mas como uma “junção à distância”, modo de se encontrar em algum lugar, no invisível” (FONTES FILHO, 2006, p. 15).

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Ainda, embora a vida do outro e a minha própria, sempre me escapa, é inegável a fascinação pela lei do quiasma no cruzamento ou não dos olhares, dito por Derrida (2010):

[...] somos tanto mais cegos ao olho do outro quando este se mostra capaz de ver e podemos trocar com ele um olhar. Lei do quiasma no cruzamento ou não-cruzamento dos olhares: a fascinação pela vista do outro é irredutível à fascinação pelo olho do outro, mesmo incompatível com ela. Esse quiasma não exclui, ao contrário, ele convoca a obsessão de uma fascinação pelo outro” (DERRIDA, 2010, p. 39).

Neste sentido, Passos (2013, p. 5) acrescenta neste quiasma entre o meu e o em si do outro que:

O em si do outro e o nosso traz as marcas da mútua constituição de todos por todos, nós com eles, e deles conosco. Não há um fora ou um dentro impíssimo. Há o ser que é relação expresso na carnalidade universal que a todos e todas não deixamos de únicos, enquanto corpo próprio. Não há polaridades e binarismos contrapostos: corpo/alma; universal/particular; objeto/sujeito; eu/outro: toda a matéria tem um princípio unificador que expressa silêncio interior de logos. O Ser é movimento e criação.

Deste modo, o que há é uma relação de carnalidade que nos une: eu-outro-o mundo – “Encarnação inacabada sempre em curso – Para além do corpo objetivo como o sentido do quadro está para além da tela” (MERLEAU-PONTY, 2014, p.196). Desta forma, encarnação inacabada como pontua Merleau-Ponty, sujeitos inacabados como dizia , emergindo nosso inacabamento no movimento constante de sujeitos-devir, de nos fazermos humanos, humanidade. “O senhor... Mire veja: o mais importante e bonito, do mundo, é isto: que as pessoas não estão sempre iguais, ainda não foram terminadas - mas que elas vão sempre mudando. Afinam ou desafinam. Verdade maior” (ROSA, 2015, p. 39).

Etimologicamente, a palavra humanidade, do latim humanus, é relativo ao ‘homem’, derivado de homo, ‘homem’, relacionado a humus, ‘terra’, pela noção de ‘seres da Terra.’24 O sufixo –dade também do Latim -tatis, um formador de substantivos abstratos, empresta a ideia de movimento, de algo a mais que se emprega à palavra-primeira, poderíamos então dizer: humano em movimento, em construção, sujeitos em processo de humani-dade – “O ser é vida em movimento e criação” (PASSOS, 2013, p.05).

24 Fonte: http://origemdapalavra.com.br/site/palavras/humanidade/ Acesso em 11 mar. 2017.

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E neste âmbito, faz-se necessário “reconhecer que a humanidade é um palco de conflitos e tensões que não deve ser resolvido pela eliminação das diferenças, mas pela redução das desigualdades, cujo maior desafio se ancora na difícil tarefa da convivência mútua” (PASSOS; SATO, 2012, p. 18).

Desta forma, reconheço a fragilidade do que está posto, entendendo que:

Outrem nunca se apresenta de frente, ele cerca-me, envolve-me, rodeia-me, sua presença permanece difusa como uma obsessão. Sendo ele mesmo um ‘aqui’, reflui para meu ‘aqui’, ele é uma ‘presença’; ele habita o mundo, nele irradia, investe-o por todos lados, sempre para além do ponto onde eu o fixo, ‘quase’ no mundo, coisa iminente. Ele é esse ‘duplo errante’, a um tempo próximo e afastado, que vem descentrar minha perspectiva sobre o mundo. Ele está sempre um pouco mais longe do lugar onde olho [...]” (MERLEAU- PONTY, 1996, p.189).

Contudo, é no espaço da Amazônia, que se faz o cenário vivo desta pesquisa, que volto para dentro de mim, como um retorno do vivido, numa ótica histórico-fenomenológica e compreendo que para além de um trabalho científico, estes escritos refletem também fragmentos, cacos das minhas próprias experiências de infância, entrelaçadas aos estilhaços das memórias dos/as outros/as, na percepção de que a um ‘tempo próximo e afastado’ (Cf. MERLEAU PONTY, 1996), elas me escapam e me constituem.

Portanto, reafirmo que para falar cientificamente de fragmentos das memórias de outras infâncias, preciso dizer também dos cacos das minhas e, por isto tais versos iniciais dizem e ao mesmo tempo são indizíveis sobre aquilo que experienciei, daquilo que senti, daquilo que vivi, uma vez que encontro em Merleau Ponty (1994) o entendimento de que sendo a ciência empírica, ela se baseia na experiência humana, e a experiência humana é a dos seres humanos envolvidos com o mundo “enquanto nele vivem e não enquanto teorizam sobre ele” (MATTHEWS, 2011, p.27, grifos do autor). Deste modo, “devemos voltar a experiência vivida, voltar ‘as próprias coisas’, se quisermos inclusive entender o papel que a ciência desempenha em nossas vidas” (MATTHEWS, 2011, p.27), para tanto, esta pesquisa reflete à uma dimensão de uma “experiência do sensível.” Neste sentido, “a experiência do sensível tem a ver primeiramente com as significações com as quais o mundo é vivido, já que este último não se dá outramente” (LE BRETON, 2016, p. 13).

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Desta forma, intento descrever de um experienciamento de presenças, de uma história- ficção, como ensina Certeau (1982) no sentido de criação, a história de muitos adultos de hoje, crianças de ontem, num tempo que não é linear, mas que se comunica, cujas memórias se inscrevem neste trabalho sob uma leitura ‘sensível do tempo’ (Cf. PESAVENTO, 1997).

Tais cacos de memórias, como já mencionado, se entrecruzam às minhas, fazendo tecer um diálogo do eu com o outro, fazendo emergir de novo o primeiro som que ouvi quando cheguei no lócus de investigação no ano de 1987 – o canto suave e gritante do uirapuru25, que parecia dar boas-vindas àquela criança, cheia de sonhos e de imaginação que ali estava. Lembro-me que eu nunca conseguia ver com os meus olhos aquele pássaro, soube do nome por que meu pai se informou para contentar minha insistente curiosidade infantil. “Eu esperava pelo uirapuru todos os fins de tarde, mas ele só aparecia pelo canto. Eu sentia vontade de tê-lo em minhas mãos, e assim o tinha: eu o tocava e acariciava-o com os ouvidos” (ROHDEN, 2013, [s.p.]). Este acontecimento é presença forte em meus trapos de memórias e ainda hoje, “eu escuto a cor dos passarinhos” (BARROS, 2010, p.301).

Foto: Valmir Cordasso, 2016.

25 O uirapuru-verdadeiro é um passeriforme da família Troglodytidae. Também conhecido como corneta, músico, músico-da-mata, irapuru, uira-puru e uirapuru. O uirapuru é mencionado em diversas lendas amazônicas, canções folclóricas, populares e eruditas. O ilustre maestro e compositor brasileiro Heitor Villa- Lobos compôs, em 1917, uma sinfonia intitulada “Uirapuru”, inspirada no canto dessa ave, cuja sonoridade pode ser percebida ao longo de toda a obra musical, e especialmente nos solos de violino (4:35-5:10 min), flauta (7:28-8:23 min), oboé (12:00-12:21 min) e clarinete (16:07-16:19 min), como se observa no seguinte link: http://www.youtube.com/watch?v=Wgh8CzHPKok. Fonte: http://www.wikiaves.com.br/uirapuru- verdadeiro. Acesso em 15/11/2016.

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Deste modo, busco descrever o experimentar das memórias fracionadas da infância de migrantes de Sinop, Mato Grosso, que também se fazem minhas, como uma pesquisadora num “labirinto em busca de um improvável centro” (LE BRETON, 2016, p. 13). Num labirinto de memórias [quem dera ter o fio de Ariadne para conduzir-me] de uma infância que se constituía em “mil maneiras de fazer com”, de “bricolagens” da vida, do cotidiano (CERTEAU, 1998), quiasma do mundo (MERLEAU PONTY, 1994). Infância esta que entendo como essencialmente corporal enquanto condição humana, cósmica, terrestre e, “os sentidos como pensamento do mundo” (LE BRETON, 2016, p.24), no qual são marcados por diferentes cheiros, texturas, densidades e espessuras de objetos e lugares plenos de experiências corporais, numa sinestesia sensorial. Contudo:

Dos sons, imagens, cheiros, sabores: mistérios, tudo era tátil, na floresta. (ROHDEN, 2014, [s.p.])

Neste sentido, “as percepções sensoriais arremessam fisicamente o homem no mundo, e do mesmo modo no âmago de um mundo de significações: elas não o limitam, o suscitam” (LE BRETON, 2016, p. 23), uma vez que o conhecimento do espaço se dá de forma sinestésica, misturando-se a totalidade da sensorialidade a todo instante (Cf. LE BRETON, 2016).

Com isto, “o mundo do homem é um mundo da carne [...]” e sendo o corpo a condição humana do mundo, ele é “[...] este lugar onde o fluxo incessante das coisas se detém em significações precisas ou ambiências, metamorfoseia-se em imagens, em sons, em odores, em texturas, em cores, em paisagens, etc.” (LE BRETON, 2016, p. 13).

Assim, enfatizo com Merleau Ponty (1994, p. 178, grifo meu) que:

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Os sentidos e, em geral, o corpo próprio apresentam o mistério de um conjunto que, sem abandonar sua ecceidade e sua particularidade, emite, para além de si mesmo, significações capazes de fornecer sua armação a toda uma série de pensamentos e de experiências.

Contudo, é neste mistério expresso por significações tecidas por cada um dos sujeitos pesquisados e por esta pesquisadora, no e com o mundo e nas relações uns com os outros que intento narrar as experiências no âmago das coisas em que me faço mundo26, fazendo-as carne, na tentativa não de apresentar respostas, ou versões conclusas, mas, quiçá oferecer uma Hipercrítica como propõem Merleau Ponty em que:

[...] a cada achado, debruçava‐se outra vez a perguntar pelo “fundo de silêncio que recorta as palavras”. Cultiva teimosia quase obsessiva de voltar sempre ao início, de fazer perguntas instigantes e de promover tremores de terra nas áreas já pacificadas, na suspeita de que é necessário uma hipercrítica (PASSOS, 2011, p. 02).

Assim, é desta forma que ensejo a poiesis desta escritura, sem as tradicionais pretensões científicas de apontar sínteses ou quaisquer soluções, tampouco elencá-la em uma área de conhecimento isolada, mesmo porquê a experiência da pesquisa, o que vivi, me escapa à entendimentos fixos e acabados. A sensação é de fluxo que encontra potências nas memórias ‘móveis’ de infâncias. Um convite para deslocar o olhar de um tempo presente, que toca o passado, para pensar a infância, o brincar, a partir das ressonâncias de vozes que querem ser ouvidas: vozes que ressoam memórias que transitam em diferentes temporalidades num mesmo tempo.

O que sinto desde início nesta pesquisa menor27, é um processo de inacabamento, que se faz criação, que se faz múltipla e singular numa oscilação entre desterritorialização e

26 De acordo com Buber (1995) em sua obra Eu e Tu, o aspecto da relação em que me faço mundo, me faço o outro, está marcado no diálogo, na reciprocidade, quando o olhar o outro é enxergar a si mesmo para além das singularidades, onde o humano é capaz de compreender-se, não apenas enquanto Eu, mas também como parte do Tu que ao mesmo tempo o compõe. Nas palavras do autor “Não resta dúvida que, em todos os tempos, foi intuído que a essencial relação recíproca entre dois seres humanos representa a primigênia oportunidade de realização como ser humano [...]; que dessa forma o dizer Tu pelo Eu está na origem de todo singular vir-a-ser humano" (BUBER, 1995, p. 28). Disponível em: https://books.google.com.br/books?hl=pt- BR&lr=&id=2bx8QYMlCIsC&oi=fnd&pg=PA7&dq=martin+buber&ots=a75Zl6QwDS&sig=jU137WswkskNu KU_jorzrmCMWsw#v=onepage&q=martin%20buber&f=false 27Numa pesquisa menor, o devir, a heterogeneidade, a multiplicidade são concebidos como referência, trata-se de observar os estados intensivos, incorporais da matéria, que ao mesmo tempo afetam a ‘corporeidade da matéria’

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reterritorialização28 incessante, contornadas pela estética do visível e do invisível. Penso que este relato que me proponho a fazer se distancia de apresentar ‘resultados de pesquisa’, particularmente, entendo que esteja voltado para apresentar os encontros e desencontros de corpos, entre os cacos das memórias permeados pelos relances dos esquecimentos, ou ainda, entrelaces de memórias: eu-outro-mundo, marcados pela estética criativa de vida e de morte que um texto traz em seu íntimo quando se oferece aos seus leitores.

Foto: Valmir Cordasso, 2015.

submetendo-a a uma ‘variação contínua’ que tem como apoio a temporalidade do acontecimento. Diferente de uma ciência que propõe a linearidade, a solidez das coisas, uma pesquisa entendida como ‘ciência menor’ o espaço é aberto, ele se confunde com a distribuição dos fluxos que o percorrem (DELEUZE, 1995, pp. 446-447). 28Deleuze e Guattari (1997, p. 224) como mencionado anteriormente, explicam que a desterritorialização é o movimento pelo qual se desloca do território, “é a operação da linha de fuga” e a reterritorialização é o movimento de construção do território. No primeiro movimento, os agenciamentos se desterritorializam e no segundo eles se reterritorializam como novos agenciamentos maquinímicos de corpos e coletivos de enunciação. Os autores completam que a desterritorialização e a reterritorialização são processos indissociáveis. Se há um movimento de desterritorialização, haverá também um movimento de reterritorialização.

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1.2. Experienciamento de presenças “Nossa! Quantas memórias me veio!!”29

Há histórias tão verdadeiras que às vezes parece que são inventadas.

Manoel de Barros

A história que me proponho a narrar está distante de ser o real ou de apresentar qualquer absolutismo de um passado. Entendo com Certeau (1982) que os historiadores não fazem a história, àqueles e àquelas que se propõem a estudar o passado, fazem história. História feita nas margens, nos limites entre as fronteiras do passado e de uma práxis presente, e que portanto, não se pode falar de uma história absoluta, de um ´real apreendido’, de ‘verdades pretéritas’, mas de resquícios frágeis do passado, subjugados aos limites das pesquisas históricas e influenciadas pelo presente do historiador, quais remetem à uma prática historiográfica:

A história está, pois, em jogo nessas fronteiras [entre um objeto passado e uma práxis presente] que articulam uma sociedade com o seu passado e o ato de distinguir-se dele; nessas linhas que traçam a imagem de uma atualidade, demarcando-a de seu outro, mas que atenua ou modifica, continuamente, o retorno do “passado”. (CERTEAU, 1982, p. 48).

Diferente do historicismo, qual marcou a história moderna ocidental separando e diferenciando o passado do presente, o eu e o outro, o sujeito e a natureza (Cf. CERTEAU, 1982), nesta narrativa os tempos se comunicam - o passado está de mão dada com o presente, que acenam para o futuro, num propósito de problematizar a história e de reafirmar a vida: daquilo que pulsou, daquilo que pulsa permeado por manifestações rizomáticas30 do porvir, e então, de temporalidades múltiplas, de corpos, de vidas, de fronteiras, onde o tempo das memórias se faz no presente que toca com o corpo inteiro um passado já desconfigurado.

29 Pronúncias de uma migrante, sujeito da pesquisa. 30 Conceito criado por Deleuze e Guattari para propor uma teoria das multiplicidades - Um platô está sempre no meio, nem início nem fim. Um rizoma é feito de platôs. (DELEUZE e GUATARRI, 1997, p. 33).

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Foto: Valmir Cordasso, 2013.

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Os tempos deste texto podem ser percebidos nas narrativas dos migrantes sobre seus tempos de infâncias, como também em outras fontes históricas (fotografias, cadernos, documentos, etc.) no convite fenomenológico de pensar o tempo com Merleau-Ponty e Passos, nos escritos de fazer histórias das práticas e da arte de sua escrita com Certeau, no tempo de uma história concebida como ciência menor e portanto, uma história menor, nos ensinamentos de Deleuze, no tempo da poesia de Manoel de Barros combinada à outros poetas, aos meus próprios experimentos de poesia, no tempo das imagens fotográficas da poética da Amazônia capturadas pelas lentes de Valmir Cordasso31, no tempo das artes que compõem este texto (pinturas, músicas, literatura, etc.), no tempo desta escritura, no tempo de minha própria experiência, no tempo do meu próprio corpo. Multiplicidade de tempos que para percebê-los é necessário como nos explica Scudder (2013, p. 2):

[...] ter o corpo afeito à fugas, preparado para surpresas, pois todos os personagens que aqui se apresentam passeiam pelos acontecimentos marcados na memória sem se prenderem à convenções cronológicas, cíclicas. Aqui, presente, passado e futuro criam brechas para invadirem os eventos uns dos outros, misturarem-se e confundirem-se.

Tempos que se misturam, que se confundem, que se tencionam e se complementam, que não são opostos ou divisíveis, mas que estão juntos, se relacionam, não são exterior ao sujeito. Tempos estes que a Ciência, a História Moderna sempre os negou, a fim de dividi-los em sucessões de ‘fatos’, de separá-los bruscamente da vida e expô-los na parede enquadrados em folhinhas de calendários. História esta que se dizia capaz de ‘contar’ do passado e de como ele ‘exatamente’ foi erguendo seus monumentos, ditando ‘heróis’, cronometrando ‘fatos’ e negando radicalmente a experiência subjetiva, a corporeidade, toda carnalidade, afastando o diálogo entre as disciplinas, privilegiando deste modo o status quo. Diante do exposto, o que o historicismo sempre intentou foi construir uma escrita duvidosa, equivocada da história, uma vez que se faz refém de uma só classe [a burguesa] e ao mesmo tempo de ‘fatos’ escolhidos para ‘descrever’ o passado, além de atribuir uma ‘pureza’, uma ‘inocência’ à tudo e ao modo como tais fatos aconteceram. Diante disto, vale- nos ouvir a voz de Nietzsche (2005, p. 29):

31 A arte fotográfica de Valmir Cordasso compõe também a estética deste trabalho e foi devidamente autorizada pelo autor (HÁ-NEXO 3).

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[...] os fatos não se deixam capturar totalmente deles, só podemos imaginar o que eles seriam. Todas as ligações que são construídas entre eles são arbitrárias, redutoras e simplificadoras, e por isso não se pode estabelecer uma explicação histórica [...]. Qualquer mudança histórica traz consigo uma mudança das imagens com as quais vemos o passado, de maneira que o passado é sempre novo para quem olha para ele, de acordo com os lugares que ocupa e os momentos em que vive.

Deste modo, ao tecer críticas sobre esta maneira de se ‘fazer a história’ (Cf. CERTEAU, 1982), os escritos de Nietzsche sugerem que temos necessidade de história, mas que esta deveria servir a vida:

[...] temos necessidade de história, mas, ao contrário, não temos necessidade dela do modo como tem o ocioso refinado dos jardins do saber, por mais que este olhe com altaneiro desdém os nossos infortúnios e as nossas privações prosaicas e sem atrativo. Temos necessidade dela para viver e para agir, não nos afastamos comodamente da vida e da ação e ainda menos para enfeitar uma vida egoísta e as ações desprezíveis e funestas. Não queremos servir à história senão na medida em que ela serve à vida. Mas, logo que se abusa da história ou lhe atribuímos muito valor, a vida se estiola e degenera (NIETZSCHE, 2005, p. 68).

Diante do pronunciamento de Nietzsche, expresso que os fluxos pretendidos neste trabalho são de produzir uma historiografia como prática que resulta em uma escrita, qual não tem qualquer pretensão de atribuir maior significância às datas, ou aos ‘heróis de brasões’ (Cf. CERTEAU, 1982), às entidades ou aos fatos ditos como ‘grandes feitos’, mas de dizer do singular e ao mesmo tempo dos múltiplos eventos históricos produzidos pelos sujeitos cuja história moderna não os citava enquanto autores de suas próprias histórias (Cf. CERTEAU, 1982). Neste sentido, a história:

Como prática (e não como os discursos que são o seu resultado), ela simboliza uma sociedade capaz de gerir o espaço que ela, se dá, de substituir a obscuridade do corpo vivido pelo enunciado de um "querer saber" ou de um "querer dominar" o corpo, de transformar a tradição recebida em texto produzido, finalmente de constituir-se página em branco que ela mesma possa escrever. Prática ambiciosa, móvel, utópica também, ligada à incansável instauração de campos "próprios" onde inscrever um querer em termos de razão. Ela tem valor de modelo científico. Não se interessa por

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uma "verdade" escondida que seria necessário encontrar; ela constituiu símbolo pela própria relação entre um espaço novo, recortado no tempo e um modus operandi que fabrica "cenários" susceptíveis de organizar práticas num discurso hoje inteligível – aquilo que é propriamente "fazer história”. (CERTEAU, 1982, p. 16-17, grifos do autor).

Esta prática ambiciosa que Certeau se refere qual se constitui ao fazer história, “é por uma espécie de ficção” (CERTEAU, 1982, p. 18) e o mesmo acrescenta, apresentando-nos a ambivalência historiográfica, qual é “fundada sobre o corte entre um passado, que é seu objeto, e um presente, que é o lugar de sua prática, a história não para de encontrar o presente no seu objeto, e o passado, nas suas práticas. Ela é habitada pela estranheza que procura, e impõe sua lei às regiões longínquas que conquista, acreditando dar-lhes a vida” (CERTEAU, 1982, p. 46). Assim, entre o passado o presente, entre o objeto histórico e o lugar da práxis do historiador se faz história de acordo com Certeau, num movimento em que tempos e lugar se interligam, numa “estranha situação, ao mesmo tempo crítica e fictícia” (CERTEAU, 1982, p.18, grifos meus). Assim, entendo com Certeau (1982) que para fazer história [que sirva à vida como postulado por Nietzsche e que não tenha pretensões de apresentar um passado como ‘verdade’] é necessário compreendê-la nas margens, nas bordas, nas desdobras de seus limites. E, concebê-la como resultado de um movimento inverso – onde o historiador desloca o olhar para o passado a partir de seu lugar presente, fazendo ‘recortes temporais’ de seus estudos históricos que apenas servem para estabelecer uma “relação necessária com um "começo" que não é nada, ou que não tem outro papel senão o de ser um limite” (CERTEAU, 1982, p. 97, grifos meus), como também recorta “uma unidade geográfica (regional ou nacional) para que se manifeste aquilo que, de todo lado, lhe escapa” (CERTEAU, 1982, p. 104, grifos meus). Contudo, “esta é a história. Um jogo da vida e da morte prossegue no calmo desdobramento de um relato, ressurgência e denegação da origem, desvelamento de um passado morto e resultado de uma prática presente” (CERTEAU, 1982, p. 57). Deste modo, neste movimento inverso da escrita da história o passado morto ‘ressurge’ de modo ressignificado, reinterpretado, cada vez que ele é tocado pelo olho do presente. – uma espécie ilusória, fictícia de ‘presentificação do passado’, como dito por (1992, p. 29) “o diálogo com o passado, torna-o presente. O pretérito passa a

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existir de novo. Ouvir a voz do outro é caminhar para a constituição de uma subjetividade própria”.

Por isto as temporalidades neste ensaio, ocupam o mesmo tempo [passado-presente- futuro estão sempre interligados ao presente pela minha subjetividade] então, “dizemos que o tempo é alguém, quer dizer que as dimensões temporais, enquanto se recobrem perpetuamente, confirmam uma à outra, só explicitam o que estava implicado em cada uma, exprimem todas um único estouro ou um único impulso que é a própria subjetividade.” (MERLEAU-PONTY, 1994, p. 425) E deste modo, me “empresto ao tempo, por minha subjetividade, sua temporeidade, temporalizando-o” (PASSOS, 2003, p.172).

Martha Barros, O tempo - 28cm x 13cm [s.d.]

Contudo, a escrita da história na qual me empresto ao tempo por minha experiência subjetiva e então temporalizo-o, requer localizar na história linhas de fuga que seu próprio movimento circular esconde e simultaneamente sugere, de modo a agenciar novos fluxos, percebendo as subjetividades dos atores e também dos momentos (Cf. SCUDDER, 2013) momentos estes concebidos como acontecimento significados pelos sujeitos

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Assim, destaco o quiasma entre tempos: passado-presente-futuro que se interligam e, reitero que durante as narrativas dos migrantes que vivenciaram sua infância na colonização de Sinop, as memórias não obedeceram à uma cronologia ou uma linearidade, ao contrário, se movimentam no sentido de não reconhecer “fronteiras temporais, nem limites espaciais. Assim sendo, eventos, pessoas, lugares, são trazidos do passado na ordem em que os afetos os fazem se manifestarem em seus corpos, do mesmo modo como sonhos, desejos e esperanças nos projetam para o futuro” (SCUDDER, 2013, p. 23). Mesmo porque - “mais urgente que a determinação das datas é para o conhecimento da intimidade, a localização nos espaços de nossa intimidade” (BACHELARD, 1993, p, 203). E então,

Mesmo quando esses espaços estão para sempre riscados do presente, estranhos a todas as promessas de futuro, mesmo quando não se tem mais nenhum sótão, mesmo quando a água furtada desapareceu, ficará para sempre o fato de termos amado um sótão, de termos vivido numa água- furtada (BACHELARD, 1993, p, 203).

Neste sentido, Merleau-Ponty (1994, p. 551) faz uma observação metafórica, qual vale a leitura para que possamos conceber o tempo como não separado do sujeito, mas, qual sua existência se vale a partir da subjetividade deste:

Diz-se que o tempo passa ou se escoa. Fala-se do curso do tempo. A água que vejo passar preparou-se, há alguns dias, nas montanhas, quando a geleira derreteu; no presente ela está diante de mim, ela vai em direção ao mar onde se lançará. Se o tempo é semelhante a um rio, ele escoa do passado em direção ao presente e ao futuro. O presente é a consequência do passado, e o futuro a consequência do presente.

Entretanto, tal linguagem figurada colocada por Merleau-Ponty, se faz necessária para compreendermos que na sequência o filósofo percebe o tempo diferente de um riacho, não como um curso, ou um processo do real, mas como a existência a partir de um observador finito, qual recorta os ‘acontecimentos’ (Cf. MERLEAU-PONTY, 1994, p.550), fazendo-se então, que o tempo exista devido a minha relação com as coisas, com o outro, com o mundo. Para que haja tempo, é preciso ter um sujeito que o viva, o próprio sujeito é o tempo, é ele o seu curso da vida. Nas palavras de Merleau-Ponty (1994, p. 551-552, grifos meus):

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Os “acontecimentos” são recortados, por um observador finito, na totalidade espaço-temporal do mundo objetivo. Mas, se considero este próprio mundo, só há um único ser indivisível e que não muda. A mudança supõe um certo posto onde eu me coloco e de onde vejo as coisas desfilarem; não há acontecimento sem alguém a quem eles advenham, e do qual a perspectiva finita funda sua individualidade. O tempo supõe uma visão sobre o tempo. Portanto, ele não é como um riacho, ele não é uma substância fluente. [...] Ora, a partir do momento em que introduzo o observador, quer ele siga o curso do riacho ou quer, da margem do rio, ele constate sua passagem, as relações do tempo se invertem. [...] Não é o passado que empurra o presente nem o presente que empurra o futuro para o ser; o porvir não é preparado atrás do observador, ele se premedita em frente dele, como a tempestade no horizonte. [...] Portanto, o tempo não é um processo real, uma sucessão efetiva que eu me limitaria a registrar. Ele nasce de minha relação com as coisas. Nas próprias coisas, o porvir e o passado estão em uma espécie de preexistência e de sobrevivência eternas; [...] Aquilo que para mim é passado ou futuro está presente no mundo. Frequentemente se diz que, nas próprias coisas, o porvir ainda não é, o passado não é mais, e o presente, rigorosamente, é apenas um limite, de forma que o tempo desmorona.

Assim, compreendo com Passos (2003) que o tempo e as temporalidades quais Merleau-Ponty discorre é o da experiência humana vivida e fenomenologicamente percebida, e então, configura-se uma versão interpretativa de tais experiências existenciais. Para o autor “o tempo não é um acessório, ou uma situação externa à subjetividade, é (para a pessoa humana) sua condição de possibilidade; sua vestimenta histórica, assumida ou não. Tal condição de temporalidade diz respeito a finitude do sujeito porque o tempo testemunha a mim mesmo que não posso ser eterno” (PASSOS, 2003, p. 157). Neste contexto, concebendo o tempo como minha vestimenta histórica, nascido na minha própria existência e na minha relação com o mundo, com os outros e compreendendo o fazer história enquanto uma ‘operação’ limitada, frágil, feita nas margens, nas dobras, assim como o um experienciamento de afectos, de encontros agenciados, escolhi dizer das memórias do outro, da infância experienciada num passado que se faz no presente das narrativas ouvidas. Escolhi discutir o brincar enquanto espaço de aprendizagens, enquanto produção histórica, social e cultural da infância. Escolhi deslocar meu olhar para os diferentes brincar de um passado-presente: o brincar na escola, com tempo demarcado, cronometrado, antropocêntrico, arbitrado por um ‘lugar da ordem’ (Cf. CERTEAU, 1998) e o brincar livre, onde a criança mantinha uma interconexão viva com a natureza, com os outros, com o mundo, vivendo o tempo, vivendo o espaço, num campo de experimentações, de bricolagens, de

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invenção e reinvenção, de poiesis-vida. ‘Brincares’ ambivalentes, que se tencionam no tempo, na história e que se conflitam e se complementam vivamente neste trabalho. No entanto, não sou pretenciosa - tenho ciência de que dificilmente haverá palavras que possam dizer da experiência, das experiências singulares de histórias micro inseridas numa história macro (Cf. BENJAMIN, 1994). “Nenhuma representação dá plena conta do representado” (PASSOS, 2013, p. 153). Por este motivo me permitir alguns devaneios, algumas brechas, algumas linhas de fugas por entre insights poéticos no sentido daquilo que as palavras não conseguem explicar. As palavras me escapam. A experiência vivida, comunicada, comungada, extrapola qualquer conceito, qualquer filosofia. No que concerne à experiência, para Benjamin (1994) há na Modernidade um empobrecimento dela, uma ausência cada vez maior de estarmos atentos aos acontecimentos que nos tocam, que nos afetam, de sentirmos as experiências [degustando-as, digerindo-as, vivendo-as intensamente] e deste modo, permitir que os acontecimentos se tornem experiências intercambiáveis, que sejam comunicadas pela arte da narração ao outro – “o homem de hoje não cultiva o que não pode ser abreviado (BENJAMIN, 1994, p. 201). O homem moderno, para Benjamin, não anseia por novas experiências, ao contrário, aspiram libertar-se delas – das experiências do encontro, do diálogo, do ouvir o outro, do narrar o espírito poético da vida, o que resulta segundo o filósofo num mundo de ostentação tão pura e clara de uma pobreza externa e interna (Cf. BENJAMIN, 1994). Neste sentido “ficamos pobres. Abandonamos uma depois da outra todas as peças do patrimônio humano [...]” (BENJAMIN, p.1933). A impressão é de que a ausência de experiências dociliza nossos corpos, emoldura nossos pensamentos, tornando-nos apáticos, estagnados diante da vida, dificultando nossa intercorporeidade com todos e todas. Nos tornamos reféns das abreviações, do pragmatismo, de um acelerado processo de vida violentamente cronometrada –aceitamos a exterioridade do tempo como se fôssemos ser engolidos por ele. Separamos o tempo de nós mesmos, não vivemos nossa temporalidade encarnada. A experiência neste sentido entra em coma, sua morte se conta nos segundos de um tempo moderno cruel. Diante disto, Benjamin (1994) e contemporaneamente Larrosa (2002) nos provocam e nos desafiam a viver a experiência, no gesto de seu instante, o que requer uma interrupção do cronometrado, requer momentos de ociosidade, requer uma relação não utilitarista da vida,

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requer que nos voltemos a nós mesmos, olhamos o outro, vejamos microscopicamente os acontecimentos que nos cercam, sentimos a vida no seu mais intenso pulsar, transvendo-a como diria o poeta32. Nas palavras de Larrosa (2002, p. 24):

A experiência, a possibilidade de que algo nos aconteça ou nos toque, requer um gesto de interrupção, um gesto que é quase impossível nos tempos que correm: requer parar para pensar, parar para olhar, parar para escutar, pensar mais devagar, olhar mais devagar, e escutar mais devagar; parar para sentir, sentir mais devagar, demorar-se nos detalhes, suspender a opinião, suspender o juízo, suspender a vontade, suspender o automatismo da ação, cultivar a atenção e a delicadeza, abrir os olhos e os ouvidos, falar sobre o que nos acontece, aprender a lentidão, escutar aos outros, cultivar a arte do encontro, calar muito, ter paciência e dar-se tempo e espaço.

Ainda, Ortega y Gasset (1962), adverte acerca das contradições e dos ricos do reducionismo matematizante do mundo, capaz de nos persuadir com suas verdades absolutas, condição essa atribuída pela Filosofia Tradicional, que limita, restringe a vivência de uma experiência livre e humana de pensamento e então, deixamos de sentir a paisagem do nosso entorno, de interiorizá-la, cedendo muitas vezes a condição de “despaisagizados”. Deste modo, o autor enfatiza que “viver é sentir-se fatalmente forçado a exercitar a liberdade, a decidir o que vamos ser neste mundo” (ORTEGA Y GASSET, 1962, p. 102, grifo do autor). Com isso, a liberdade para o autor, se dá numa perspectiva criadora, numa multiplicidade de possibilidades de viver, de experimentação da vida.

Deste modo, concordo com Guimarães (2002) quando se refere às experiências das paisagens de memórias como fragmentos, quais envolvem todas as percepções do corpo e do espírito e ainda:

Experiências por espaços e lugares marcadamente concretos, impregnados de subjetividades a delimitar e construir os territórios do real e do imaginário de cada ser humano, segmentando a realidade em significados diversos, envolvendo o senso e a presença de mundo: gestos, palavras, toques, mensagens, memórias... Composição de imagens, ícones de nossa paisagem vivida (GUIMARÃES, 2002, p. 126).

32 É preciso transver o mundo, diz Manoel de Barros.

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Nesse sentido, é de uma experiência primal, vivida, sentida, contemplada e narrada que os autores chamam nossa atenção. Uma experiência que se constrói na minha relação com os outros e com o mundo, como apontaria Merleau-Ponty, uma experiência de simultaneidade sensória, uma ‘experiência do sensível’, daquilo que meu corpo possa expressar nas suas mais diferentes formas de narrar, uma vez que “é por meu corpo que compreendo o outro, assim como é por meu corpo que percebo ‘coisas’” (MERLEAU-PONTY, 1994 p, 253).

Neste sentido que reitero que não há palavras que possam dizer do valor da experiência. Para tanto, a experiência de ouvir as memórias dos migrantes neste trabalho, de permitir que os meus ouvidos se doassem com todo o meu corpo à arte da narração do outro, foi marcada pelo encontro, foi um fazer de experimentação, grifado pelas volúpias, pelos afectos. Presenciar lágrimas, risos, gritos internos que vinham com as lembranças do passado, sentir os olhos distantes de homens e mulheres que pareciam buscar suas histórias no mais íntimo de si foram sem dúvida momentos de experiência construída, sentida. Entre silêncios, sussurros, voz trêmula, tom maior, tom menor, senti com todo o meu corpo cada narração, que permanecem em mim, ressignificadas e assim, tenciono narrá-las, compreendendo com Benjamin (1994) que narrar não é transmitir o ‘puro em si’ da coisa narrada como um relatório, mas mergulhar a coisa na vida do próprio narrador para em seguida retirar dele, imprimindo na narrativa “a marca do narrador, como a mão do oleiro na argila do vaso” (BENJAMIN, 1994, p. 200).

Foto: Valmir Cordasso, 2013.

61 Para Certeau (1998) a narração é

uma arte que representa também o seu

outro, com a descrição historiográfica e lhe modifica a lei sem substituir por outra. Nas

palavras do autor (CERTEAU, 1998, p. 154) a narração “não se diz a si mesma.

Pratica o não lugar: fort? da? Ali e não ali. Finge que se eclipsa por trás da erudição ou das taxinomias que no entanto manipula,

Dançarino disfarçado em arquivista. O riso de Nietzsche perpassa o texto do

historiador”.

Foto: Valmir Cordasso, 2016.

Deste modo, a narração deste experienciamento de presenças, deste fazer história e experimentá-la tem necessidade de um recorte de tempo e espaço, que como dito por Certeau (1982) não significa nada, apenas de dizer que o ofício do trabalho de quem faz da história uma práxis, se faz no seu limite, nas suas margens. Eis então, que surgem os historiadores de si: migrantes que vivenciaram a infância em Sinop-MT, num momento marcado pela colonização entre os anos de 1973 a 1983. Tal recorte é só um recorte, é um limite. Tudo se faz num mesmo tempo, num mesmo espaço, que apontam para os des-limites de nossa “mundaneidade temporal” (PASSOS, 2003, p. 155).

Tal recorte necessário à prática historiográfica é própria de “uma relação entre um espaço novo, recortado no tempo e um modus operandi33 que fabrica "cenários" susceptíveis de organizar práticas num discurso hoje inteligível (CERTEAU, 1982, p. 17, grifos do autor), tal modus operandi neste trabalho propõe um convite de pensar o passado considerando que “o tempo não é uma linha, mas uma rede de intencionalidades” (MERLEAU-PONTY, 1994, p.558). Assim sendo, digo a partir do meu pequeno mundo de compreensão historiográfica: é também um ‘recorte de intencionalidades’.

33 Conceito utilizado por Certeau (1982) para se referir à escrita da história como uma operação historiográfica.

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Assim, neste recorte de intencionalidades ‘o coração deste trabalho’ (Cf. PASSOS, 2003) está entre os cacos, os despedaços de memórias crianceiras e seus despropósitos34 e neste corpo desfigurado do passado, falamos das memórias a partir da nossa experiência subjetiva, carnal, do lugar de onde estamos - do presente de mãos dadas com o passado, que abana para o futuro, pois “o passado e o porvir existem em demasia no mundo, eles existem no presente, e aquilo que falta ao próprio ser para ser temporal é o não-ser do alhures, do outrora e do amanhã. O mundo objetivo é excessivamente pleno para que nele haja tempo” (MERLEAU-PONTY, 1994 p. 552).

Contudo, Merleau-Ponty entende a memória como recordações conservadas ‘no inconsciente’, ou seja, para o autor, “a presença do passado na consciência permanece uma simples presença de fato” (1999, p. 553). Deste modo Merleau- Ponty é enfático ao explicar que se encontramos algo que nos remete à acontecimentos anteriores é porque possuímos o sentido do passado, é porque trazemos em nós essa significação. Assim, reitera o autor, se o cérebro conserva os traços do processo corporal que nos acompanharam uma de nossas percepções, e se o influxo nervoso passa outra vez por esses caminhos já percorridos, nossas percepções reaparecem, teremos então nova percepção, enfraquecida e irreal, mas em caso algum essa percepção, que é presente, poderá nos indicar um acontecimento passado a menos que sobre tal passado o sujeito tenha uma outra visão que lhe permita reconhecê-la como recordação (Cf. MERLEAU-PONTY, 1994, p. 553).

Neste sentido, para Merleau-Ponty, uma percepção conservada do passado, continua sendo uma percepção, “ela continua a existir, ela está sempre no presente, ela não abre atrás de nós essa dimensão de fuga e de ausência que é o passado; um fragmento conservado do passado vivido no máximo só pode ser uma ocasião de pensar no passado,” (MERLEAU- PONTY, 1994, p. 554).

Em Certeau (1998), compreendo que a memória é um saber. Saber que se faz de muitos momentos e de coisas heterogêneas. A memória para Certeau:

Não tem enunciado geral e abstrato, nem lugar próprio. É uma memória, cujos conhecimentos não se podem separar dos tempos de sua aquisição e vão desfiando as suas singularidades. Instruída por muitos acontecimentos onde circula sem possuí-los (cada um deles é passado, perda de lugar, mas

34 Em referência ao título desta pesquisa, inspirada na poesia de Manoel de Barros.

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brilho de tempo), ela suputa e prevê também ‘as vias múltiplas do futuro’ combinando as particularidades antecedentes ou possíveis (CERTEAU, 1998, p. 157-158, grifos do autor)

Ainda, tendo Certeau como referência, entendo que a memória acontece na ‘ocasião’ e então é ‘aproveitada’ e não criada, fornecida como por um bom golpe que consegue reconhecer o sentido de um passado. Tanto em Merleau-Ponty quanto em Certeau a memória é um reconhecimento de acontecimentos passados no momento presente (Cf. MERLEAU- PONTY, 199), que se desloca, é uma arte análoga no tempo, que se aproveita de uma ocasião para “estar sempre no lugar do outro mas sem apossar-se dele, e tirar partido dessa alteração mas sem se perder aí” (CERTEAU, 1998, p. 163). Assim, “longe de ser o relicário de lata de lixo do passado, a memória vive de crer nos possíveis, e de esperá-los, vigilante, à espreita” (CERTEAU, 1998, p. 163).

Neste sentido, “quando evoco um passado distante, eu reabro o tempo, me recoloco em um momento em que ele ainda comportava um horizonte de porvir hoje fechado, um horizonte de passado próximo hoje distante” (MERLEAU-PONTY, 1994, p. 557). Deste modo, tudo me reenvia “ao campo de presença como à experiência originária em que o tempo e suas dimensões aparecem em pessoa, sem distância interposta e em uma evidência última” (MERLEAU-PONTY, 1994, p. 557).

‘Este ‘reabrir o tempo’ qual comporta um horizonte de passado, que de qualquer modo me remete ao campo de presença, Certeau (1998) chamará de rememoração. Para o autor, o modo de rememoração é conforme o modo de inscrição. Nesta ótica, Certeau dirá que a memória talvez seja apenas rememoração de escrituras invisíveis que são claramente lembradas por novas circunstâncias, tal rememoração ou ‘chamamento pelo outro’, “cuja impressão se traçaria como em sobrecarga sobre um corpo há muito tempo alterado jamais sem o saber” (CERTEAU, 1998, p. 163). E reitera – “essa escritura originária e secreta ‘sairia’ aos poucos, onde fosse atingida pelos toques. Seja como for, a memória é tocada pelas circunstâncias, como o piano que ‘produz’ sons ao toque das mãos. Ela é sentido do outro” (CERTEAU, 1998, grifos do autor).

“Nossa, quanta memória me veio!” diz uma migrante em sua narrativa – ela então, ‘reabre o tempo’, uma nova percepção de sentidos, de acontecimentos passados no campo de

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uma presença, se faz: no presente. Memórias heterogêneas de um não-lugar próprio, que se aproveitam da ocasião, abrem brechas, para se fazer bons golpes na arte de um saber que apesar de ter enfraquecido, brilha no tempo, reiterando o que Certeau (1998) nos ensina. A fala da migrante admirada com as memórias brilhando no presente sobre sua infância e o gesto das mãos sobre a cabeça admirada como uma criança que vibra frente ao encantamento de algo que lhe parece novo, fez-me lembrar do poeta Mia Couto, quando menciona que:

A infância não é um tempo, não é uma idade, uma coleção de memórias. A infância é quando ainda não é demasiado tarde. É quando estamos disponíveis para nos surpreendermos, para nos deixarmos encantar. Quase tudo se adquire nesse tempo em que aprendemos o próprio sentimento do Tempo (COUTO, 2011, p.37).

É no sentido da poesia de Mia Couto que expresso o meu experienciamento de presenças das infâncias minha e dos outros, infâncias que ainda são, que continuam sendo quando aprendemos o próprio sentimento do tempo. O tempo é a minha infância, é a infância de cada um, tatuada em nosso corpo que ganha mais cor, ganha mais destaque toda vez que nos permitimos nos encantar com tudo, com todos, com a vida.

Então, é neste ‘experienciamento de presenças’ que também se faz no experimentar uma infância que ainda é, no sentido de que o passado se faz no campo do presente, que vale ressaltar o que Certeau (1998, p. 165) nos alerta que a coisa mais estranha é a mobilidade dessa memória onde “os detalhes não são nunca o que são: nem objetos, pois escapam como tais, nem fragmentos, pois oferecem também o conjunto que esquecem, nem totalidades, pois não se bastam; nem estáveis, pois cada lembrança os altera.

Durante os meses em que estive na Loyola University em Chicago, participando do Programa Doutorado Sanduíche no Exterior35, um dos autores que me fora apresentado foi Sutherland (2002)36, na obra Growing up: childhood in English Canada from the great war to the age of television, qual aborda as memórias de infância em um momento em que o Canadá vivia uma rápida transformação industrial e urbana. Sutherland um questionamento

35 O estágio doutoral financiado pela Capes foi de quatro meses de 01 de setembro de 2017 a 31 de dezembro de 2017. 36 A interpretação da obra descrita nesse trabalho, é tradução minha.

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provocantes em seu texto, apontando como uma problemática metodológica a questão de se poderia algum adulto utilizar suas memórias para recriar seus mundos internos da infância.

Desse modo, o autor sugere que as recordações da infância podem se dar especialmente em duas maneiras37. Para Sutherland, adultos descrevem como eles ou outros criaram suas memórias. Ou seja, o adulto que narra sua história pode dizer de sentimentos, incidentes, experiências que recriam seus mundos de infância ou que outros lhe contaram sobre suas infâncias, nesse caso, em especial as famílias possuem um grande papel nas memórias de infância. Há a presença da voz do outro em nossas memórias de infância.

No entanto, para o autor ambos os caminhos de lembranças em especial das memórias da primeira infância, criam questões sobre a veracidade do que é produto da própria memória ou da que fora criada pela famíla. No decorrer de suas discussões, o que o autor pretende sugerir é que “memória não é somente falível, é também ocasionada pelas circunstâncias que são instigadas [...] cada história de vida é contada ou escrita de um ponto de vista, e é designado para expressar uma mensagem, para o presente” (SUTHERLAND, 2002, p. 5-6, tradução minha).

Contudo, para o autor, a memória seria realmente um reconstrução do que está sendo lembrado e não uma reprodução de como o evento ocorreu no passado. Assim, podemos entender com os autores citados, que as memórias sempre nos escapam, são criadas, aproveitadas na ocasião em que são relembradas. Além disso, é preciso considerar que dizer de memórias pressupõe o conjunto de esquecimentos as que permeiam, como dito por Certeau (1982). E, entendendo que eu sempre escrevo para um outro, preciso ponderar que tal escrita não deve ser consequência esgotante de uma investida pelos campos da pesquisa, teoria e metodologias, mas um modo de comunicar-me com possíveis leitores.

Com isto, elegi aproximar campos de saberes entre filosofia, história, educação, antropologia, e tantas outras vozes acadêmico-polissêmicas que permeiam este trabalho.

37 O autor sugere que as memórias da infância ocorrem de forma pessoal e situacional. As memórias pessoais estão inseridas nas situacionais, por exemplo quando os adultos narram suas lembranças pessoais dentro das rotinas que viviam: escola, família, grupo de amigos, em eventos especiais, etc., ou seja, são memórias singulares, mas ao mesmo tempo ocorridas em momentos com um outro. Contudo, para Sutherland (2002) são memórias reconstruídas pela própria lembrança do passado do adulto, ou contadas por seus familiares, por pessoas que participaram das memórias situacionais e que o adulto internaliza como sendo sua.

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Também, elegi me aproximar da arte, da literatura como diálogos possíveis. Entendo que a arte dá maior conta de dizer da vida, de dizer da experiência vivida, de dizer daquilo que é sentido. Minha narração antes de ser qualquer coisa enquadrada pela academia do conhecimento científico é sentida, é vivida com todo o meu corpo, temporalizando-me. A rede de intencionalidades no recorte de tempo resulta a priori da academia da vida, da academia do sentir e posteriori intenta fazer interlocuções teórico-metodológicas. Quero sobretudo, um trabalho de gentes, de vidas, de sentir cada pulsar em cada história ouvida, em cada experiência comungada. É um trabalho para e com a vida, com os corpos, com os fluxos e desejos de viver numa teia de ressonâncias, de vozes, de estranhamentos, de ambivalências que se inscrevem, que se tatuam no meu corpo-pesquisadora, em minha alma-poetizante como dito por Bachelard (2009, p. 55) há de ligar ao humano aquilo que se separa do humano - unir a poética do devaneio ao prosaísmo da vida.”

Por isto, Manoel de Barros apadrinha toda esta escritura, como um pássaro- mensageiro que vem dizer-me apenas para que por nenhum instante eu me esqueça: as melhores histórias são as inventadas e de tão boas por serem inventadas, até parecem serem verdadeiras – as histórias e memórias crianceiras deste trabalho, são concebidas pela ótica do bricoleur. Enunciado por Brasil (2008, p. 15):

O bricoleur é filho de Kairós, ele que se move pelas situações, atento às ocasiões, não se submete a um projeto rígido e compõe conjuntos abertos. Como reapropriação astuta e negligente daquilo que nos é constantemente expropriado, a bricolagem nos religa a uma infância sempre presente.

Deste modo, o poeta-passarinho com quem escolhi também dialogar, é um poeta da bricolagem unida à uma infância sempre presente, cuja poesia nasce dos restos, das coisinhas

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do chão, dos insetos, das aves, da comunhão infantil com o mundo. Assim, “a literatura é aqui diretamente atuante. Sem ela tudo se extingue, os fatos perdem a auréola dos seus valores” (BACHELARD, 2009, p. 69).

Neste sentido, a literatura de Manoel de Barros nesta pesquisa, me auxilia a exorcizar qualquer resquício de uma ciência que intenta ser prepotente, que se proponha a ‘dar conta’ de dizer de um ‘real’ vivido, de um passado feito de ‘heróis de brasões’, de datas demarcadas como solenidades máximas, de ‘fatos’ escolhidos para dizer de uma só categoria sociocultural. Quero manter distância destes fantasmas e lobos do historicismo, quero bem menos: “O mundo meu é pequeno, Senhor. Tem um rio e um pouco de árvores” (BARROS, 2010. p. 315) e neste mundo pequeno, minha escritura se faz de uma experimentação de uma história menor, de uma ciência menor, pois:

A ciência pode classificar e nomear os órgãos de um sabiá mas não pode medir seus encantos.

a ciência não pode calcular quantos cavalos de força existem nos encantos de um sabiá. quem acumula muita informação perde o condão de

adivinhar: divinare. os sabiás divinam.

(MANOEL DE BARROS)

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Foto: Valmir Cordasso, 2016.

Escolho os sabiás. Escolho o divinare de não acumular muita informação, escolho o divinar do encantamento. En-canto e cantos que me fazem ‘fantasticar’38 com as miudezas da história, com as singularidades e multiplicidades das ‘memórias inventadas e de seus despropósitos’. Escolho me fantasticar com o desver, com a despalavra, com tudo aquilo que me escapa. Está ai o divinare de fazer ciência: compreender a dimensão de que tudo me escapa e que então, o prefixo ‘des’ dos versos de Manoel, ganha espaço e potência nesta ciência menor, por não ter que comprometer-se com algo que nunca possuirei: a verdade.

E neste encontro, entre uma história menor e a poesia de Manoel de Barros, o poeta me fornece percepções que não são humanas, e que então me permitem tornar esta ciência 'coisal', quando o humano finalmente se percebe, a própria natureza.

38 Termo utilizado por Scudder (2013) em sua Tese de Doutorado.

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Ainda, em meu universo particular de compreensão entendo com Silveira e Axt (2015, p. 176) que a literatura de Manoel de Barros, por sua vez, se configura um ‘cronotopo’, afirmando uma visão de mundo e de sujeito no embate entre sentidos e valores. Para as autoras, os poemas de Barros possuem uma estética particular e é “regida por uma relação espaço-temporal que trabalha com a infância associada à criação, envolvendo o espaço-tempo do inútil e da contemplação, o rebaixamento do olhar, o renascimento e a produção de vizinhanças entre elementos heterogêneos”.

Assim sendo, na perspectiva de fazer uma história menor, permeada por ecos das diferentes áreas do conhecimento, da arte, sobretudo, da poesia, corroboro com Albuquerque

Jr (2005) quando associa o ofício do historiador à poética de Manoel de Barros, enunciando que quem faz história, precisa entender que as fontes e os registros das coisas e das pessoas do passado nos chegam aos pedaços, feito coisas miúdas, despedaçadas, sem pudor, e que essas coisas e pessoas são andarilhos que nunca estão onde as palavras se acham; que do lugar onde estamos sempre já foram embora; pois as palavras mais escondem do que desvelam; as histórias mais verdadeiras são as que mais parecem inventadas. E então, precisam ser montadas e remontadas pelo historiador, como num quebra-cabeça sempre sem encaixes fixos, pois é sua tarefa abrir as palavras que chegam do passado desfazendo a norma e então atribuir à elas outros e novos sentidos, para conviver no presente, é ofício do historiador contrair visão Fontana, e tentar enxergar como os pássaros enxergam, é oficio do historiador procurar por achadouros de outros passados que se apresentam no presente, escavando a memória já petrificada e percebendo nela seus despropósitos39.

Os historiadores talvez precisem se inspirar na poesia de Manoel de Barros para escovar a história, igual os arqueólogos escovam ossos, os poetas escovam as palavras. Penso que se poderia produzir história livre das amarras positivistas que ainda imperam na academia sem deixar de ter o seu valor, a sua academicidade. Sinto que então, a história seria feita por um olhar-azul, que daria vontade de escovar seus resquícios de passado até o dia envelhecer outra vez e então a mãe gritar lá do fundo do quintal: “Meus filhos o dia já envelheceu, entrem pra dentro! (BARROS, 2010, p.332)”.

39 As palavras em itálico fazem referência aos versos de Manoel de Barros, tal enunciação pode ser encontrada no texto de Albuquerque Junior (2005) e foram reinterpretadas por mim a partir das minhas leituras da poesia de Manoel de Barros.

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1.3. Memórias em estágio de Árvores: “cada um tinha uma árvore própria”40

Cipó era balanço, Os meninos achavam ser Tarzan, As meninas pensavam estar, Num palco como bailarinas.

Não sei de onde vinha tanta destreza Para fazer de um cipó, Lugar de embalar sonhos.

(Josi Rohden, 2013)

“A gente saía da escola e ia num lugar onde tinha uns morrinhos com muita mata e cipós, a gente se pendurava naqueles cipós e ia [...], voava alto [...] pra nós era balanço, cada um tinha o seu cipó”. É a partir das memórias de um dos migrantes entrevistados a quem denominarei aqui de “Jacarandá” que inicio esta seção para dizer dos sujeitos da pesquisa, historiadores de si mesmos. Em meio à mata virgem da floresta amazônica, aquelas crianças que habitavam tal recorte de espaço em estudo, mantinha com a natureza uma viva conexão, numa relação fundada criança-natureza e esta, fornecia elementos e matéria-prima para que os corpos- infantis se fizessem histórias crianceiras, abastadas de despropósitos, e os cipós naquele contexto mais que balanços, imperavam em toda sua extensão, fazendo a natureza sorrir cada vez que desabrochava a flor. E então, alegravam-se os seres, pois desta forma mantinha seguros os fios de ligação entre os mundos (Cf. FLORAIS DA MATA, 2016). Assim, entre os cipós da mata que ‘voavam alto’, estão inseridos os sujeitos da pesquisa, metaforicamente ligados enquanto crianças à natureza umbilicalmente pelos ramos dos cipós. E então, como nos versos de Manoel de Barros (2004, p. 39), podiam se afirmar, dizendo: “Eu combino melhor com árvores”. Ou seja, “As árvores tinham o dom de laçar os meninos e meninas pelos cipós” (ROHDEN, 2013, [s.p]).

40 Pronúncias de uma migrante, sujeito da pesquisa.

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Deste modo, no intuito de preservar suas identidades41, escolhi nomear com nomes de árvores e plantas os sujeitos que narraram suas memórias da infância no processo de colonização de Sinop- MT. A escolha por nomes que simbolizam grandes árvores, arbustos, subarbustos, epífitas, árvores cultivadas e frutíferas da floresta amazônica se justifica a priori por compreender a floresta numa dimensão ancestral, cósmica, pela leitura histórica de vida que ela nos proporciona e qual nos possibilita associar à nossa própria vida, de forma a pronunciar que tudo está ligado à tudo, uma vez que:

A Mata Virgem manifesta com fidelidade genuína a matriz original da vida terrena. Nela podemos ler a história da evolução dos reinos (mineral, vegetal e animal e os reinos intermediários) e neles espelhar-nos no resgate da nossa própria matriz. As forças que interagem dentro da floresta são direcionadas por um instinto muito primitivo e por eles regem esse reinado, onde muitos seres nascem, crescem e morrem, nas contínuas experimentações da ciência divina da formação das almas. É como se esses santuários fossem laboratórios onde os seres divinos trabalham amparados pelo poderoso campo energético criado pelas infinitas formas de vida que o habitam, bem como pelas irradiações cósmicas que são atraídas por esse campo. E ali mesmo interagem, se desdobram e se transmutam, elementos e elementais que estão ligados com tudo que se processa sobre o planeta e sua humanidade. (FLORAIS DA AMAZÔNIA, 2016)42

Foto: Valmir Cordasso, 2016.

41 Esta pesquisa foi submetida ao Comitê de Ética em Pesquisa e encontra-se em situação Aprovada, sob CAAE: 54769416.2.0000.5690. Desta forma, a pesquisadora comprometeu-se em seguir as normas da Resolução 466/2012. 42Disponível em: http://www.floraisdaamazonia.com.br/pt/?page_id=147 Acesso em 25/02/2016.

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Deste modo, as características comuns entre os sujeitos de pesquisas e às árvores e plantas da floresta amazônica estão especialmente na sabedoria, na sensibilidade, nos sinais do passado na capacidade de suportar as transformações, na cosmologia que os envolvem, que encontro tanto na floresta quanto nas pessoas com as quais compartilhei experiências desta pesquisa. Neste sentido, aprendi com Manoel que “pertenço de fazer imagens. Opero por semelhanças. Retiro semelhanças de pessoas com árvores” (BARROS, 2010, p. 340).

São dez as semelhanças que retirei das árvores e plantas que se assemelham os sujeitos de pesquisa que compõem esta investigação de uma ciência-poética: Jacarandá, Andiroba, Copaíba, Seriguela, Vitória Régia Amazônica, Bromélia, Açucena, Ingá, Ipê amarelo, Castanheira.

Este zelo que assumo com os meus sujeitos da pesquisa, concebendo-os como árvores e plantas da Amazônia, não se restringe a cumprir formalidades éticas, mas também é a forma que encontrei de poder de modo poético e singelo perceber nestas plantas e em suas flores ‘toda a sabedoria vegetal’ (Cf. BARROS, 2010, p. 340), tudo aquilo que elas oferecem aos que as contemplam, aos que as cuidam. Deste modo, é um “cuidado de boticário” que assumo enquanto pesquisadora, que nas palavras de Santos (2013, p. 52-53) se configura como:

Um cuidado de boticário: de captar o perfume (essência) das flores com sua maestria, delicadeza, sensibilidade e o transformar em agradável fragrância. O cuidado em ratar os sujeitos da pesquisa como flores. Com a consciência, porém, de que nem sempre essas flores estavam abertas para oferecer sua essência! Procurei abri-las com sutileza, destreza e, principalmente, com a habilidade do boticário. Se, para lidar com flores, a sensibilidade é fundamental, para lidar com gente-flor não é diferente.

Neste sentido, estas gentes-flor que compõem o ‘quintal maior que o mundo’ (Cf. BARROS, 2010) desta pesquisadora-boticário assumem como nos versos do poeta43 o pertencimento à uma árvore. Estão pertencidos.

43 No poema Árvore Manoel de Barros (2010, p. 394-395) inspira quando pertence Bernardo à uma árvore e então, no estágio de ser árvore ele aprende sobre todas as coisas mais do que na escola, aprende pela natureza o perfume de Deus, a permanência em árvores fez Bernardo inclusive, fazer amizade com muitas borboletas.

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Martha Barros, Período de árvore - 146cm x 59cm – 2010.

No “Glossário de Transnominações em que não se explicam algumas delas (nenhumas) ou menos” de Manoel de Barros (2010, p. 183-184), encontro as seguintes des- explicações para o verbete do substantivo árvore:

Árvore, s.f.

Gente que despetala Possessão de insetos Aquilo que ensina de chão Diz-se de alguém com resina e falenas Algumas pessoas em que o desejo é capaz de irromper sobre o lábio como se fosse a raiz de seu canto.

Creio que o pertencimento a uma árvore ou mesmo, ‘atravessar um período de árvore’ (Cf. BARROS, 2010) é um estágio que todos nós devíamos passar, para aprender com o chão, com o céu, com os insetos, com os passarinhos, com as borboletas, com a natureza o valor das coisas ‘desimportantes’ e então ‘delirar e deixar-se seduzir com o gorjeio das aves’ (BARROS, 2010), pois mais tarde “as flores destas árvores nascerão mais perfumadas” (BARROS, 2010, p. 380).

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Discorrerei brevemente sobre a história de cada uma destas árvores e plantas, para que se possa melhor conhecê-las, sentir o perfume de suas flores, para então, perceber como se veem em relação ao espaço onde teceram suas vidas, suas experiências de infância, e consequentemente, como se percebem inseridas na história, no e com o mundo. “Hoje eu desenho o cheiro das árvores” (BARROS, 2010, p.301). Eis as árvores e plantas pertencidas:

Jacarandá

Andiroba Eu queria aprender Copaíba O idioma das árvores Seriguela Saber as canções do vento Vitória-Régia Nas folhas da tarde Bromélia

Açucena Eu queria apalpar os perfumes do sol.

Ingá (BARROS, 2010, p. 482).

Ipê-Amarelo

Castanheira

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JACARANDÁ

Fonte: http://omeupomar.blogspot.com/2013/03/o- jacaranda.html

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Jacarandá

Natural da cidade de Concórdia - SC, reside em Sinop há 44 anos. Chegou no lócus investigado com quase 6 anos, juntamente com seus pais e mais outros sete irmãos, vindos da cidade de Palotina-PR. Pontua que seu pai chegou em Sinop no ano de 1972 e assim que construiu uma casinha voltou para buscar a família. Vieram todos num mesmo caminhão, embaixo da lona, junto com mais outra família que tinha outros quatro filhos. Lembra que a viagem demorou dias e que no caminhão além das famílias e dos poucos móveis, trouxeram também alguns animais e aves como cachorros, coelhos, galinhas, codornas.

Sua família veio para Sinop em busca de um futuro melhor. Seu pai era mecânico e sua mãe era a parteira da cidade. Todos os filhos, com exceção dos menores de seis anos, trabalhavam desde cedo para ajudar a família.

Ela conta que sua família era muito humilde e carente, que passaram muitas dificuldades quando chegaram em Sinop, mas que para as crianças tudo parecia ser uma festa, naquele lugar livre para brincar, correr, subir em árvores. No entanto, sentia que talvez não fosse uma festa para todos, pois muitas vezes via sua mãe chorar e não entendia o motivo – “a gente dizia: não chora mãe, não chora! A gente não sabia porquê ela chorava” (JACARANDÁ, Depoimento 2017).

Jacarandá conta sua infância com muito entusiasmo, narra suas experiências de infância com íntima relação com a natureza em especial com os cipós, com a mata, com os rios, com as árvores quais gostava de subir ora para brincar, ora para ficar quietinha ouvindo os pássaros.

Sonhava em ter uma ‘boneca com cabelos’ quando criança, mas conta que a família não tinha condições financeiras na época para comprar, mesmo porque eram em muitos irmãos e se os pais dessem brinquedos para um precisavam dar a todos e também, nem havia como ou onde comprar.

Contou que foi uma criança que gostava muito de brincar, disse ter sido muito levada, mas que compensava em estudar, já que uma das coisas que mais gostava era ir para a escola,

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porém, precisou deixar os estudos na 7ª série para trabalhar e ajudar no sustento da família. Acredita que se seus pais na época tivessem permitido que ela estudasse, hoje ela seria uma advogada (que era sua vontade) e que então, sua vida teria sido muito diferente, no entanto, não culpa os pais por não ter permitido continuar os estudos, visto que acredita que era um pensamento comum entre as famílias mais pobres na época.

No início da entrevista comentou que não lembrava de muita coisa e que há muito tempo não parava para pensar sobre os primeiros tempos em Sinop, sobre sua infância e que pensava que talvez não iria conseguir lembrar de muita coisa. Entretanto, ao término da entrevista ela sorriu, porém, seus olhos pareciam estar cheios de lágrimas e emocionada ela diz “Nossa! Quantas memórias me veio! Eu relembrei muita coisa que nem imaginava mais que eu ia me lembrar. Eu estou muito feliz por dentro! Por relembra coisas que eu vivi, a minha história, sabe? [...]. Foi muito bom mesmo esta experiência, estas lembranças de tudo” (JACARANDÁ, Depoimento 2017).

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ANDIROBA

Fonte: http://www.amazoniadeaaz.com.br/cidades/o-que-e- arvore-da-andiroba/

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Andiroba

Nascido em Palotina-PR no ano de 1969, veio para Sinop com 5 anos em 1974. Irmão caçula de uma família de 8 filhos, recorda que vieram para o Norte de Mato Grosso em cima de um caminhão com mais outras duas famílias “não sei dizer o número certo de crianças das três famílias em cima do caminhão, só lembro que eram muitas, uma criançada” (ANDIROBA, Depoimento 2017).

Também como a maioria dos migrantes vindos do Sul do país, vieram para o Mato Grosso porquê os pais foram atraídos pelas propagandas de um futuro mais promissor, uma vida melhor, diferente da vida que levavam no Sul do país. Ele conta em sua entrevista que os migrantes não voltavam para seus lugares de origem porquê não tinham dinheiro para voltar, pois a vontade existia, mas haviam gasto o que tinham para poder vir, então, o jeito era ficar. Ele diz que os migrantes atraídos foram de certa forma vítimas de uma propaganda que não era verídica, pois quando chegaram a realidade era muito cruel e quem realmente enriqueceu foram ‘meia dúzia de pessoas’ pois “a maioria continuou pobre e trabalhando para deixar aquela meia dúzia de pessoas ainda mais ricas”.

Pontua em sua entrevista que quando chegaram em Sinop não havia nada, que só tinha mato “muito mato e mais nada” [...] e acrescenta: “só tinha umas casas, o resto era tudo floresta, mas floresta mesmo, como se você fosse no meio da floresta morar com os bichos, com as árvores, a gente ficou meio que parecendo perdidos na mata, mas era legal para nós crianças, parecia que a gente era da pré-história” (ANDIROBA, Depoimento 2017).

Diz em sua narrativa que inventavam brinquedos com os restos de latas que encontravam na vizinhança, com objetos da oficina mecânica do seu pai e que brincavam muito na mata, nos rios com os irmãos, primos e amigos.

Relata que suas lembranças da escola são de uma metodologia de ensino tradicional, rígido e voltado aos valores cristãos e do que o Regime Militar pedia na época.

Precisou parar seus estudos na 5ª série para trabalhar e ajudar a família – “porquê pobre não tinha escolha ou trabalhava ou trabalhava para ajudar no sustento da família”

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(ANDIROBA, Depoimento 2017). No entanto, após 38 anos, voltou para a escola, terminou os estudos e fez faculdade. Orgulhoso de ter conseguido dar seguimento aos estudos já que no passado não pôde, ele nos conta que “terminei os estudos e fiz até uma faculdade, finalizei em 2015, é recente!”

Em sua narrativa, de forma tímida e calma se lembra das muitas dificuldades que enfrentaram em Sinop durante os primeiros anos da colonização, recorda com saudosismo da infância, dos pais já falecidos e do tempo em que a família estava todos próximos um do outro. Relembra que muitas foram as vezes que ia no lixo deixado por um mercadinho da época e juntava as cebolas, batatas e outros legumes que haviam sido descartados e que então os limpava e os levava para a sua mãe poder fazer comida para toda a família.

Suas lembranças estão muito ligadas à família, à escola, à Igreja Católica, que foram muito influentes na sua formação.

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COPAÍBA

Fonte: https://www.beneficiosdasplantas.com.br/copaiba-

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Copaíba

Natural do Sul do país, vinda do Paraná, chegou em Sinop com 7 anos de idade no ano de 1973. Ela nos conta que “era família de italianos, aquela família grande [...], que vem todo mundo junto. Então viemos todos juntos de caminhão, vieram muitos primos, tios, todo mundo” (COPAÍBA, Depoimento 2012).

Narra que sua família, tios, primos, moraram em barracos de lona logo que chegaram em Sinop até que a casa fosse construída.

Ela foi uma das alunas da primeira escola construída pelos próprios migrantes, uma salinha de chão batido que pertencia à Escola da cidade de Vera, N. Sra. Do Perpétuo Socorro44.

De pouca fala, mas de ricos detalhes sobre suas memórias de infância, a entrevistada diz muito sobre os primeiros anos de Sinop, sobre como era a escola e as práticas educativas, o cotidiano escolar e também conta sobre as experiências do brincar, de inventar e criar brinquedos com aquilo que tinha disponível.

Suas memórias apresentam-se à esta pesquisadora de forma atenta em refletir em sua família hoje aquilo que aprendeu enquanto criança, seja no seio da família, seja na escola ou na Igreja.

As experiências do brincar em suas memórias se constitui como momentos marcados pela criação, invenção de construir brinquedos e brincadeiras, isto é enfatizado em diversos momentos da entrevista.

Pontua que foi muito participativa na escola e na igreja e que até hoje mantém estes aprendizados, atuando na Igreja Católica e também trabalhando como professora em uma escola.

44 Mais sobre a ‘Escola dos Migrantes’ ver Rohden (2016).

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SERIGUELA

Fonte: http://flores.culturamix.com/dicas/seriguela- spondias-purpurea

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Seriguela

Natural do sul do país, do Paraná como a maioria dos migrantes, Seriguela veio com sua família de caminhão para Sinop no ano de 1972: “a gente revezava – cada um ia um pouco dentro da boleia do caminhão, senão tinha que dividir a carroceria com a pouca mudança e com alguns animais que trouxemos juntos”.

Ela recorda que quando chegou em Sinop não havia escola, mas seus pais tinham vindo porque nas propagandas que a colonizadora fez dizia que “tanto a terra era boa, quanto a escola também”, entretanto quando se deparam com a realidade entenderam que “eram só propagandas, pois a terra não dava nada e nem escola tinha” (SERIGUELA, Depoimento 2017).

No entanto, seu pai foi um dos migrantes a juntar-se com outros e erguer com as próprias mãos uma salinha de chão batido para que as crianças do vilarejo pudessem estudar, “tudo bem simples, sem materiais, apenas com as carteiras de duas pessoas que os pais construíram, um quadro pequeno para a professora escrever e mais nada” (SERIGUELA, Depoimento 2017).

Recorda suas experiências de infância de forma muito emocionada, por lembrar-se do pai já falecido, das dificuldades passadas, como também dos momentos felizes que viveu em sua infância – “Desculpe, não tem como conter as lágrimas” (SERIGUELA, Depoimento 2017).

Em sua narrativa conta que moravam inicialmente em barracões de lona, feitos provisoriamente até a família conseguir construir uma casa “Lembro-me de tomar banho ao ar livre com balde pendurado numa madeira, cheio de furinhos que era comum na época, os pais que faziam, a gente achava que era um chuveiro diferente” (SERIGUELA, Depoimento 2017).

Também pontua que a alimentação vinha principalmente da natureza “os homens pescavam, caçavam, no sul eles não tinham este costume, pelo menos meu pai não porquê ele era colono, criava galinhas, porco, a gente comia carne que não era da mata, foi uma

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experiência diferente, mas eu até gostava da carne de paca” (SERIGUELA, Depoimento 2017). Ainda em relação à alimentação recorda que “tinha muitas frutas porquê haviam muitas árvores frutíferas, então as mães inventavam muitos doces para a criançada” (SERIGUELA, Depoimento 2017). E completa “a minha árvore preferida era a seriguela, porquê nunca tinha visto esta fruta no Paraná, era muito diferente de tudo o que eu já tinha experimentado. Levava seriguela pra escola direto, todo mundo levava (risos)” (SERIGUELA, Depoimento 2017).

Seriguela conta em sua narrativa uma relação íntima com a natureza: com os rios, com a mata, com as árvores “era nosso espaço para brincar, nós crianças não tínhamos nenhum medo de que algo ruim pudesse acontecer, mas as mães tinham medo, não deixavam a gente ir muito longe, mas, a gente ia sem elas saberem” (SERIGUELA, Depoimento 2017).

Seriguela narra que na escola brincavam na hora do recreio, mas um tanto escondido das irmãs católicas que não queriam que as crianças suassem ou se sujassem: “a gente corria escondido, mas, na verdade não era escondido, a gente só achava que elas não viam, mas depois vinha os sermões porque ficávamos suados de correr de pega-pega no recreio, elas não gostavam nenhum pouco, mas, não conseguiam segurar a criançada” (SERIGUELA, Depoimento 2017).

Seriguela recorda de um ensino muito rígido na escola e também no lar, porquê segundo a mesma tanto a escola, quanto a família eram rígidas “o pai olhava de atravessado, a gente tremia, ninguém dava um ‘pio’” (SERIGUELA, Depoimento 2017).

Seriguela conta que sua infância foi muito boa e que mesmo diante das dificuldades passadas “tudo era muito bom, muito puro, muito natural, talvez na época fosse mais sofrido também, mas a gente só procura lembrar do tempo bom, tempo ruim foi feito para esquecer”, relata Seriguela (Depoimento 2017).

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VITÓRIA-RÉGIA

Fonte: Valmir Cordasso,2016.

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Vitória Régia

Natural de Curitiba-PR, chegou em Sinop com apenas 03 anos de idade no ano de 1976. Viveu praticamente toda a sua vida no lócus investigado. Filha única veio com seus pais para Sinop para cuidar das terras que haviam sido adquiridas pelos seus avós e que estavam sendo invadidas por grileiros.

Diferente da maioria das outras árvores e plantas, o motivo que a trouxe para Sinop não era a busca de um futuro mais promissor, já que no Sul ela possuía um bom poder aquisitivo. No entanto, apresenta em sua narrativa que reaprendeu outro modo de vida diferente daquele que estava acostumada. Viveu em meio à muitos animais, pois tanto ela quanto seus pais gostavam de ter em casa, já que na época não havia fiscalização e então, podiam ter diversos animais silvestres, no entanto, segundo Vitória Régia, todos os animais viviam livres no seu quintal e ela amava cada um deles, cuidando, zelando por cada um.

Disse que mesmo diante das dificuldades encontradas para sobreviver, dos perigos da florestas, das muitas doenças tropicais que mataram muitas pessoas, da falta de alimentos e da pouca infraestrutura que a cidade fornecia, viveu uma infância de modo muito feliz. Segundo ela, as coisas que faltavam nunca foram motivos para entristecer e que para as crianças estar naquele descampado da floresta amazônica era tudo uma festa – “Eu lembro que eu tomava banho de bacia com canequinha, era tudo muito ‘homens das cavernas’”. Sorri muito das lembranças que a vida lhe traz durante a entrevista.

Vitória Régia se mostrou calma, de voz serena e doce em toda a sua entrevista. Disse em vários momentos o quanto estava feliz em relembrar sobre a infância, sobre os amigos e amigas que pôde conviver, sobre o quanto foi feliz na escola em que estudou e que mais tarde voltou para então ser professora, mesmo que por pouco tempo.

Trata-se de uma narrativa em que expressa toda conexão que a criança tinha com a floresta, com os rios, com os pássaros, com os animais. Uma relação de pureza criança- natureza – “Lembro-me que cada um tinha uma própria árvore”, a gente dava a elas o nosso

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nome – “esta é a árvore Maria, aquela é a árvore Solange, aquela outra é João” e assim sucessivamente – “passávamos horas em cima das nossas árvores, ninguém via o dia passar” (VITÓRIA RÉGIA, Depoimento 2016).

Em seu depoimento o brincar e o estudar são presenças significativas. O brincar livre em especial toma conta da narrativa, disse em diversos momentos que o que mais gostava era brincar na rua com os amigos e amigas da vizinhança e da escola e que estar com eles era a melhor coisa do dia: “tinha muita criança aquele tempo a gente brincava na rua juntos, a gente fazia tudo juntos, estudava juntos, brincava juntos e até roubava goiabas dos vizinhos juntos (risos)” (VITÓRIA RÉGIA, Depoimento 2016).

Também, outra percepção de suas memórias está em relação aos cheiros, gostos, sons, suas recordações sensoriais se apresentam muito vinculadas à natureza – “quando fala a palavra manga eu lembro automaticamente da minha infância. O cheiro, o gosto, vem na hora a sensação de estar chupando uma manga” (VITÓRIA RÉGIA, Depoimento 2016).

Escolhi chamá-la de Vitória Régia da Amazônia por conta de seu contato com as águas na infância: sejam dos banhos de rio, dos banhos de chuva, das brincadeiras nas poças d’água acompanhadas de barquinhos de papeis. A relação com as águas e com os animais marcam muito a narrativa da entrevistada “não sei se eu era meio girino, meio peixinho, só sei que vivia dentro das águas e olha que na época era o que mais tinha” (VITÓRIA RÉGIA, Depoimento 2016).

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BROMÉLIA

Fonte: https://ciclovivo.com.br

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Bromélia

Nascida em Cianorte-PR e do mesmo lugar a família de Bromélia decidiu migrar para Sinop no ano de 1977. Lembra ela que o pai veio primeiro no ano de 1974 e somente em 1977 toda família se deslocou para o Mato Grosso. Ela tinha 05 anos quando chegou em Sinop.

A razão de migrar para Sinop, conta ela, foi a forte propaganda que se fazia no sul do país para atrair os migrantes – “[...] meu pai veio para cá atraído pela propaganda que tinha do Mato Grosso [...] ele ouvindo falar que aqui ganhava-se muito dinheiro, que era muito bom e tal, que a terra era promissora [...] então, vamos arrumar as malas e ir embora para o Mato Grosso” (BROMÉLIA, Depoimento 2012).

Quando chegou em Sinop a família precisou morar na serraria que o pai havia montado “a serraria era coberta com lona, tudo bem simples, tinha um barracão ao lado que era coberto com Eternit e era de madeira, foi ali que colocamos a mudança e ficamos até construir a casa” (BROMÉLIA, Depoimento 2012).

Foi uma entrevista muito produtiva, onde a migrante conta uma riqueza de detalhes da cidade, dos modos de viver, da escola, da infância. Além disso, a entrevistada possuía um acervo particular com fotografias da época, cadernos escolares, jornais da época, que trazem vestígios de sua história e da história da cidade, da escola. Ela nos conta que adorava estudar e que sempre se dedicou muito aos estudos. Lembra também que sua mãe a incentiva muito com os estudos.

Em relação ao brincar, foi uma criança que pode brincar muito e que entre suas brincadeiras favoritas estavam a possibilidade de construir cidadezinhas com restos de madeira da serraria do seu pai e brincar de escolinha com sua irmã, momento este em que as duas imitavam o que acontecia na escola – “Minha irmã falava assim: Silêeenciooo! Mas era só eu que era a aluninha dela e eu já era quietinha, acho que era para imitar as professoras e a diretora que era muito braba, a Irmã Editha”. (BROMÉLIA, depoimento 2012).

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No final de sua entrevista ela pontua que mesmo tendo sido uma excelente aluna, uma filha obediente, hoje ela consegue perceber que uma educação tão rígida a fez ter dificuldades de falar em público, de se expressar - “nós não fomos educados para expor nossas ideias, ao contrário, nós fomos ensinados na época a ficar calados”, e continua “era uma educação do silêncio, seja em casa, seja na escola”, relata Bromélia.

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AÇUCENA

https://www.coisasdaroca.com/plantas- medicinais/acucena.html

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Açucena

Foi da pequena cidade de Itaguaí- SP que Açucena partiu rumo à Sinop com sua família no ano de 1975. Seu pai veio antes para conhecer o local e depois voltou para trazer a família. Tinha 07 anos quando chegou no Norte de Mato Grosso. Lembra que quando chegaram em Sinop não tinham casa para morar e então “moramos numa casa de madeira que faltava porta, janela, tudo... parecia a casa da música do Vinícius de Moraes” (AÇUCENA, Depoimento 2012).

De acordo com sua entrevista os motivos que trouxeram sua família foi também a possibilidade de melhorar de vida e que seu pai arriscou tudo o que tinha para tentar a sorte em Sinop, uma vez que segundo ela o pai “não queria continuar naquela vidinha que nós tínhamos e quando ele veio para cá ele achou realmente que aqui era o futuro” (AÇUCENA, Depoimento 2012).

Em seu relato conta que apesar das dificuldades encontradas nos primeiros tempos, ela prefere lembrar que teve a oportunidade de viver em meio à natureza, em meio à muitas árvores, cipós, que gostava muito da liberdade de vivenciar uma infância desprovida de qualquer luxo, puramente natural. Sua narrativa é marcada fortemente pela relação criança- natureza, traz uma riqueza de detalhes do cotidiano escolar, da família e em especial do brincar, algo em que a depoente coloca com muito saudosismo. Recorda de inúmeras brincadeiras, de cantigas de roda e cirandas, de jogos na rua com a vizinhança e com os colegas da escola.

Apresenta também as diferenças entre o brincar na escola, marcado pela vigilância e pelo pouco ou quase nada de tempo e o brincar livre, nas poças d’água em que a criançada podia se sujar de lama, tomar banho de chuva e brincar de tudo com todos, sem distinção de gênero ou classe social, mesmo porquê segundo a entrevistada todos se conheciam no vilarejo, e independente de quem podia ter um pouco mais de condições financeiras, entre as

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crianças não existia qualquer distinção. “A regra para a criança naquele espaço de floresta era brincar – nós éramos um tanto Tarzans da floresta” (AÇUCENA, Depoimento 2012).

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INGÁ

http://www.florestaaguadonorte.com.br

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Ingá

Também natural do Paraná, chegou em Sinop em 1977. Conta em seu relato que a princípio a família ficou morando na zona rural de Sinop e que em 1979 vieram para a cidade para que ele e seus irmãos pudessem estudar, pois no sítio em que viviam ficava muito distante da escola rural, precisavam andar quase 8 quilômetros para ir e para voltar, e “quando não era muita lama era muita poeira, era bem difícil para estudar” (INGÁ, Depoimento 2017).

Ingá recorda que vieram em três famílias num mesmo caminhão para o Mato Grosso “lá no sul não tinha mais como viver, meus pais eram colonos e todos os filhos trabalhavam na lavoura de café, mas não conseguíamos ter a nossa terrinha, imagina: pobres e negros, quando que no sul a gente ia ter alguma chance?” (INGÁ, Depoimento 2017).

Deste modo, o migrante relata que ouviram dizer que muita gente estava vindo para o norte de Mato Grosso porquê estava começando, porque iria ter terra pra plantar, “porquê todo mundo que vinha não voltava de tão bom que era” (INGÁ, Depoimento 2017).

Ingá e sua família foram mais umas das tantas famílias atraídas pelo ‘Eldorado” de terra para plantar, colher e ter uma vida melhor. No entanto, como veremos a diante, estas pessoas foram em sua maioria vítimas do capital, colocadas para vir para ‘ocupar os espaços’ ditos vazios da Amazônia e deste modo resolver conflitos agrários que aconteciam em tal década em estudo.

Este migrante em suas recordações narra que estudava pela manhã com muita dificuldade e trabalhava na terra com o pai e irmãos no restante do dia. “A gente estudava porquê meus pais queriam que a gente tivesse um futuro diferente do deles, mas eram tantas as dificuldades que estudei só até a 6ª série e só bem mais tarde voltei para a escola, terminei o 2° grau, para poder dar exemplo para os meus filhos” (INGÁ, Depoimento 2017). Seu relato é marcado por muita miséria, por trabalho, por muito suor. Conta que quase não tinha tempo para brincar, mas quando podiam, perdiam as horas brincando “quando dava final de semana,

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a gente jogava bets, jogava futebol com bola de meia, a gente perdia as horas de tanto jogar”. Também diz que brinquedos eram os que eles mesmos faziam utilizando objetos descartados, coisas da natureza, assim como aproveitavam os rios, as árvores para poder brincar, sempre que podiam.

Na narrativa de Ingá, o mesmo diz que quando veio para a cidade e estudou na primeira escola de Sinop, era um dos poucos negros “no meio daquela alemãozada, mas a gente já era acostumado porquê lá no sul também não tinha espaço para o negro e eu até tinha sorte de poder estudar, no sul era bem pior” (INGÁ, Depoimento 2017)45.

Ingá conta que o brincar na escola era bem limitado, que não se lembra de momentos específicos para isto, que era mais nas aulas de Educação Física que acontecia alguns momentos recreativos – “eu era bom no futebol e também corria bem, então todo mundo me queria no time”.

Entre suas lembranças, marca-se a relação com a terra, com as árvores e pássaros “A gente era ‘bicho da terra’, ‘bicho do mato mesmo’. Era uma coisa linda de se ver aquelas araras que vinham nas árvores da casa da gente, parecia que já eram da família, ninguém estranhava bicho, pássaro perto da casa, junto com a gente, claro, menos onça, porquê daí a gente tinha um pouco de medo” (INGÁ, Depoimento 2017).

Também fala de suas brincadeiras no quintal de casa “eu e meus irmãos vivia em cima dos pés de manga, do ingazeiro, que era o que eu mais gostava, a gente dividia espaço com os macacos, pensa nuns bichinhos atrevidos, eles roubavam nossas mangas, e até os ingás, não dava pra dar bobeira” (INGÁ, Depoimento 2017).

A narrativa de Ingá é marcada por muitos risos, por olhos que buscam se olhar para dentro de si e então contar da sua relação com o trabalho, mas também com suas peraltices de crianças.

45 Na narrativa de Ingá é notável o discurso e as ações que imperava de preconceito, discriminação racial, social contra o negro, o pobre tanto no Sul de onde viera, quanto posteriormente em Sinop. Ainda hoje, há um discurso predominante da história oficial de que a cidade de Sinop fora colonizada apenas por brancos sulistas, desconsiderando a presença do negro no processo de colonização, entretanto, fontes históricas como fotografias, registros de matrículas escolares, mostram a presença do negro principalmente nas áreas rurais da cidade, trabalhando a princípio com a terra e posteriormente na mata ou nas laminadoras da cidade. Tais fontes iconográficas podem ser encontradas tanto no Museu Histórico de Sinop, quanto na Empresa Colonizadora. Outra questão relevante, que poderia suscitar outro estudo se refere ao trabalho infantil, que na época, era “comum” crianças trabalharem para ajudar no sustento da família, percebemos isso nas narrativas de quase todos os migrantes entrevistados.

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IPÊ-AMARELO

Fonte: Valmir Cordasso,2016.

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Ipê amarelo

Natural de Quilombo-SC, viveu até os 6 anos nesta cidade. Em 1981, com 7 anos deixa sua terra natal e juntamente com seus pais, irmãos, tios, primos, decidem migrar para Sinop-MT.

Seu pai adquiriu terras em Sinop, buscando ampliar os negócios da família, porém, por algumas razões e somado à crise que o país também vivia na época (crise do petróleo, inflação estourada), os negócios fracassaram, fazendo com que a família tivesse de reaprender a viver com menos, ou quase nada, como conta o entrevistado: “Eles vieram pra cá e o sonho deu tudo errado: eles empobreceram, [...] Eles vieram atrás do sonho do Eldorado, de uma vida melhor, mas deu tudo errado” (IPÊ AMARELO, depoimento 2016).

Ipê Amarelo já possuía um forte arquivo de memórias do local de origem, assim, em sua entrevista pontua as diferenças de vida de um local para o outro. Conta em seu relato que ouvia dizer ainda criança, que Sinop fora vendida como projeto de cidade da modernidade, mas o que acontecia de fato não era mostrado: “a gente sabe que as notícias eram de pessoas morrendo de fome, porque não chegava comida, pessoas morrendo de malária e o desastre de todo o projeto da agroquímica anunciado pela colonizadora e pelos governos estadual e federal” (IPÊ AMARELO, depoimento 2016).

Foi uma criança que gostava muito de inventar, de criar brinquedos, de brincar de cientista. Gostava muito de ler e de participar de teatros na escola. Uma das coisas que mais sentiu falta logo que chegou na escola foram de livros, que praticamente não haviam.

Brincou muito mais solitário em suas lembranças, porém, gostava também de brincar em coletivo, em especial de empinar pipa na rua com os amigos. Pontua em seu relato que “na escola não havia tempo destinado para o brincar, na verdade nem os pais tinham a preocupação de que os filhos precisavam brincar, era uma educação voltada para ensinar a trabalhar, éramos crianças que deviam aprender a ser um trabalhador e mais nada” (IPÊ AMARELO, depoimento, 2016).

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Relata que seu pai o colocou para ajudar na madeireira ainda criança, pré-adolescente e que quando percebia ao invés de estar trabalhando estava em cima de alguma tora de madeira fingindo estar sobre um barco navegando nas imensas poças d’água que tinham aos redores. Disse fazer de todo trabalho uma forma de brincar: até mesmo ao ajuntar frutos ou folhas das árvores quando sua mãe pedia, “sempre fazia de conta que estava brincando de alguma coisa, mesmo que era um trabalho, talvez era uma forma de nem perceber que era trabalho” (IPÊ AMARELO, depoimento, 2016).

Seu relato traz diferentes tipos de brincar: inventando brinquedos com potes, latas, qualquer resto de objetos que encontrava, o brincar com a natureza, em especial com as formigas e com os frutos das sete-copas. Também relata que gostava de ir nos rios com os colegas e atravessar a mata de bicicleta.

Sua entrevista traz muitos detalhes sobre a escola, o brincar, os primeiros tempos em Sinop. Sua narrativa também é marcada por diferentes memórias sensoriais, como cheiros, sons, sabores, espessuras, como no momento em que se lembra de um cheiro que marcou sua infância: “o cheiro de terra subindo na chuva do caju, era um cheiro muito especifico. [...] o cheiro do maracujá, na nossa primeira casa - tinha um pé de maracujá e aquelas flores tinham um cheiro muito forte e quando abria aquela fruta, inundava tudo, era um cheiro que não tem como apagar da memória, é um cheiro de infância” (IPÊ AMARELO, Depoimento 2016).

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CASTANHEIRA

Fonte: http://meioambiente.culturamix.com

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Castanheira

Em 1981 de Sergipe – NE, com 11 anos de idade juntamente com sua família: pais, irmãos, avós e mais 4 famílias dos seus tios, inicia-se a travessia para o Mato Grosso de mais um dos migrantes entrevistados.

O entrevistado conta que um dos seus tios tinha um caminhão para trazer a mudança das 5 famílias enquanto o restante veio de ônibus “E nós todos viemos de ônibus para o Mato Grosso, saímos de Sergipe, fizemos toda esta travessia para chegar até Cuiabá. Ao chegar em Cuiabá não tinha ônibus porquê era época da chuva [...] Aí nós tivemos que ficar um dia, pousar uma noite lá em Cuiabá, para no outro dia embarcar e aí chegar aqui” (CASTANHEIRA, Depoimento 2016).

Conta que seus avós e uma das tias moravam numa pequena chácara e que a família dele e de mais dois tios ficaram na cidade, todos morando numa mesma casa – “Nossa casa não tinha porta, não tinha janela, não tinha banheiro, era uma casinha lá fora para fazer as necessidades. Era uma casa de chão batido e nós ficamos 3 meses nesta situação” (CASTANHEIRA, Depoimento 2016).

Sua infância foi bastante carente, desde cedo ele e seus irmãos precisaram trabalhar para ajudar no sustento da família. Em sua narrativa ele conta que estudava um período e no outro trabalhava desde pequeno. Foi engraxate, vendeu frutas, mais tarde quando chegou energia elétrica movida por motores na cidade vendeu picolés, e assim foi a vida deste entrevistado – marcado por muito suor de trabalho.

Poucas são as lembranças do brincar que aparecem em sua narrativa, apesar de ter brincado como qualquer criança nos momentos em que não estava estudando ou trabalhando, porém, são as memórias do trabalho que se sobrepõe em sua entrevista.

Conta que se divertia vendo os outros brincarem, ou quando ia vender frutas ou picolé às margens do campo de futebol quando haviam pequenos campeonatos promovidos pelos moradores da cidade em formação.

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Relata que andava quilômetros entre a cidade e as madeireiras para vender suas frutas ou picolé e com a comissão do que vendia “entregava tudo para minha mãe. E, era com este dinheirinho que ela conseguia comprar alguma mistura, alguma carne, uma verdura, porque não tinha de onde tirar. Não passamos fome, tínhamos o básico, mas era tudo com muitas dificuldades” (CASTANHEIRA, Depoimento 2016).

A árvore relembra em sua entrevista que mesmo diante de todas as adversidades ele estudava muito, se dedicava aos estudos e foi por meio do estudo que conseguiu mudar a sua história de vida. Em sua narrativa é muito marcante as lembranças da família, do trabalho, da escola e de uma infância sofrida. Entre os sons, imagens e cheiros que se recorda estão os cheiros das frutas que vendia na rua e tem como imagem inesquecível a castanheira, pois ficava impressionado com o tamanho dela e foi no Mato Grosso que conheceu tal árvore.

Uma das razões que me fez chamá-lo de Castanheira foi tanto por ser a imagem marcante de sua infância, como o fato de eu percebê-lo em sua história de vida tão grande quanto esta árvore. Na entrevista ele diz “sempre fui ‘mirradinho’, e as outras crianças às vezes tiravam sarro de mim, hoje chamam de bulling” (CASTANHEIRA, Depoimento 2016), de pouca altura, mas de sonhos grandes, este entrevistado conseguiu mudar seu destino através dos estudos. Sua história de vida diz que ele se fez tão grande quanto uma castanheira.

ÁRVORE

Um passarinho pediu a meu irmão para ser uma árvore. Meu irmão aceitou de ser a árvore daquele passarinho. No estágio de ser essa árvore, meu irmão aprendeu de sol, de céu e de lua mais do que na escola. No estágio de ser árvore meu irmão aprendeu para santo mais do que os padres lhes ensinavam no internato. Aprendeu com a natureza o perfume de Deus. Seu olho no estágio de ser árvore aprendeu melhor o azul. E descobriu que uma casa vazia de cigarra, esquecida no tronco das árvores só serve para poesia. No estágio de ser árvore meu irmão descobriu que as árvores são vaidosas. Que justamente aquela árvore na qual meu irmão se transformara, envaidecia-se quando era nomeada para o entardecer dos pássaros e tinha ciúmes da brancura que os lírios deixavam nos brejos. Meu irmão agradecia a Deus aquela permanência em árvore Porquê fez amizade com as borboletas.

MANOEL DE BARROS

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Arte: Aquarela de Flávio Ribeiro, 2018 Disponível em: https://www.flavioribeiroartes.com.br/

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Foto: Valmir Cordasso, 2015.

Como se pode perceber, a maioria dos migrantes que vieram para Sinop eram originários do Sul do país. Tal processo migratório mostra que o principal fator da atração para deixarem suas terras de origem, foi a forte propaganda de uma ‘Terra Prometida”, de um novo ‘Eldorado’ que se constituía na última grande fronteira do país.

Nos estudos que realizei por ocasião do mestrado46, foi possível compreender que a atração de colonos do sul do país, se dava principalmente pela tradição destes no trabalho com a terra. De acordo com Guimarães Neto (2002) os sulistas, em sua maioria descendente de europeus e com experiência na agricultura, eram os que melhor atenderiam ao ‘perfil’ proposto pelos militares para que o projeto de colonização tivesse êxito. Na concepção de Barrozo (2008) o governo preferia ocupar a Amazônia com agricultores do sul, que tivessem

46 Em Rohden (2012).

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“vocação para a agricultura” e que melhor atendessem às expectativas do projeto de interiorização e ocupação econômica da última grande fronteira agrícola do país. Entretanto, discutiremos mais sobre esta questão no próximo momento destinado à exposição do lócus investigado.

Em relação às memórias dos migrantes que vivenciaram suas infâncias em Sinop no processo de colonização, pode-se inferir que para a maioria deles a lembrança dos tempos difíceis, dos momentos marcados por sofrimentos e enfrentamentos de suas famílias é silenciada, sobrepondo o discurso do mito do progresso, das conquistas individuais e coletivas no tempo presente. Diante disso, pode-se compreender com Guimarães Neto (2002, p. 81) que:

O suporte material das lembranças da chegada não mais existe, a imagem da cidade, sob o impacto da velocidade das realizações materiais, substituiu a paisagem que ali haviam encontrado. A “nova terra” não mais se interessa pelo sofrimento passado, a história presente é a do triunfo. Ela vem celebrada pelo fervor do progresso.

Diante do exposto, comumente as recordações boas se sobrepõe as lembranças negativas, não que isto se configure de fato um esquecimento, entretanto é o desejo daqueles que se utilizam da imagem presente do progresso – forçar um ‘esquecimento’, e este, como explica Le Goff (1996), é um dos diversos “mecanismos de manipulação da memória coletiva”. Deste modo, diante das circunstâncias que interessam a certos grupos, tal esquecimento se torna um meio, uma ferramenta efetiva para amenizar os tempos de dificuldades, dos sofrimentos do passado, atrelando ao discurso prepotente do progresso. Ainda, faz-se interessante as pontuações de Candau (2011), sobre a memória coletiva, que segundo o autor se dá enquanto uma representação de memória entendida como “um enunciado que membros de um grupo vão produzir a respeito de uma memória supostamente comum a todos os membros do grupo” (CANDAU, 2011, p. 24), Porém, de acordo com o autor, a “existência de atos de memória coletiva não é suficiente para atestar a realidade de uma memória coletiva. Por exemplo, “um grupo pode ter os mesmos marcos memoriais sem que por isso compartilhe as mesmas representações do passado” (CANDAU, 2011, p. 35). Entretanto, os fundeadouros de memória são relevantes para “delimitar uma área de circulação das lembranças” (CANDAU, 2011, p. 35).

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No entanto, uma vez que as memórias se aproveitam da ocasião para ‘brilharem’ no presente (Cf. CERTEAU, 1998), o momento atual de superação, de conquistas mediante o decorrer dos acontecimentos da vida de cada um, contribuem para que o ‘esquecimento’ daquilo que tenha sido sofrimento, ou seja, contribui para fazer uma “triagem” do que se “pode lembrar” e do que “se deve esquecer” (Cf. CERTEAU, 1982), como por exemplo, o que foi dito por uma das migrantes “[...] a gente só procura lembrar do tempo bom, tempo ruim foi feito para esquecer” (SERIGUELA, Depoimento 2017). Este depoimento, instiga a refletir o quanto a memória é seletiva e o quanto o conjunto de esquecimentos são indissociáveis à memória como Certeau (1982) enuncia em sua obra. Assim, a morte da memória para Certeau, seria o esquecimento. O passado é um morto (Cf. CERTEAU, 1982) no sentido filosófico, metafórico de compreender o quiasma entre um passado e a prática de um fazer história no presente, entre a lembrança e o esquecimento:

Por sua vez, cada tempo "novo" deu lugar a um discurso que considera "morto" "aquilo que o precedeu, recebendo um “passado” já marcado pelas rupturas anteriores. Logo, o corte é o postulado da interpretação (que se constrói a partir de um presente) e seu objeto (as divisões organizam as representações a serem reinterpretadas). O trabalho determinado por este corte é voluntarista. No passado, do qual se distingue, ele faz uma triagem entre o que pode ser "compreendido" e o que deve ser “esquecido” para obter a representação de uma inteligibilidade presente (CERTEAU, 1982, p. 15-16)

Foto: Valmir Cordasso, 2016.

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Assim, podemos inferir de que “esta é a história. Um jogo da vida e da morte prossegue no calmo desdobramento de um relato, ressurgência e denegação da origem, desvelamento de um passado morto e resultado de uma prática presente” (CERTEAU, 1982, p. 57). Contudo, nos próximos momentos retomarei com mais precisão estas questões da memória, do discurso do mito do progresso que imperou e ainda impera no lócus em estudos, de modo a interligar as intenções deste trabalho de discutir os diferentes brincar narrados pelos migrantes que vivenciaram uma infância em meio à natureza e em meio à um processo também de destruição dela, promovido a princípio pelas frentes de expansão e na sequência pelas frentes pioneiras no processo de colonização.

Neste momento, quero convidar o leitor para que nas páginas que se seguem possam sentir aos seus modos, daquilo que eu ouvi das vidas que narraram suas histórias e que se fazem aqui autonomamente ‘historiadores de si’, também os convido à adentrar num espaço marcado, tencionado por linhas biófitas como também necrófitas para que então sintam a pulsação da terra, da natureza, da vida numa dimensão ancestral, terrestre, cósmica e tirem suas impressões pelas denúncias, renúncias e anúncios expostos. Convido-os também a seguir pela minha poética daquilo que vivi enquanto também criança-migrante. O convite se estende para que percorram as lacunas deixadas no texto e se alimentem da arte, das imagens fotográficas, da poesia, da estética como um todo para permitir que sua própria poeisis recrie, se mova, encontre brechas para se manifestar aos modos bricoleur.

Foto: Valmir Cordasso, 2016.

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Todo este convite é para que em especial, observem, sintam e experimentem uma história menor, nos limites, nas bordas e possam então, fazer suas próprias inferências sobre a infância, sobre o brincar, sobre a educação de um tempo passado que se faz no presente pelas memórias em ‘estágios de árvores’. Permitindo-se ouvir o texto como ‘crianças que ainda são’ a partir também de suas próprias memórias, permitindo-se assim, ‘fazer comunhão com as coisas’ que é o que acontece ‘quando a gente fala, sente a partir de ser criança’, como já dizia os versos de Manoel de Barros. Por fim, convido-os a viver esta escritura permitindo-se ter seus devaneios aos modos de infância, uma vez que estes são “devaneios tão profundos, devaneios que nos ajudam a descer tão profundamente em nós mesmos que nos desembaraçam da nossa história. Libertam-nos do nosso nome. Devolvem-nos essas solidões de hoje, às solidões primeiras” (BACHELARD, 2009, 94).

Estão convidados, sem pretensão de convencê-los à conclusões ou às mesmas impressões, percepções e experiências que eu tive, apenas de ‘persuadi-los’ a viver suas próprias memórias de um passado-criança tocado pelo presente, a viver seus devaneios em estado de infância, em estágio de crianças, uma vez que como provocado por Bachelard (2009, p. 100) “[...] todos os nossos devaneios de crianças merecem ser recomeçados”

Re-Começamos! Modo on- Bricoleur, acrescentando os nossos devaneios de crianças.

Foto: Valmir Cordasso, 2013.

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Foto: Valmir Cordasso, 2013.

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Foto: Valmir Cordasso, 2016.

CANTO 2 – DO BEIJA-FLOR

POR UM TRATADO DE PÁSSARO

pela Terra- pela Amazônia- por Sinop – entre a vida

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CANTO 2 – DO BEIJA-FLOR: POR UM TRATADO DE PÁSSARO - pela Terra- pela Amazônia- por Sinop – entre a vida

2.1. Entre cantos e gritos da Terra

Um Beija-Flor Quando beija a flor, Toma a Terra pra si. Em gesto de puro amor. Talvez ele ajude o homem A fazer as pazes com a Terra: O segredo está num beijo.

Josi Rohden, 2017

esaprendemos a ouvir a Terra. Não escutamos nem seus cantos e fingimos não ouvir seus gritos. Somos a Terra, somos feitos de terra D( húmus) no entanto, não escutamos nossas próprias vozes. É urgente fazer as pazes conosco, estamos esquecidos de nós. ‘Precisamos que um beija-flor nos tome com um beijo’. Neste sentido, Boff (2007) nos convida a pensar que o fato de termos esquecido nossa união com a Terra abriu espaço para antropocentrismo se inserir em nossas vidas, na ilusão de que ao pensarmos a Terra distante de nós, podemos nos sobrepor à ela “para dominá-la e para dela dispor ao nosso bel-prazer” (BOFF, 2007, p. 76). É necessário nos sentirmos filhos e filhas da Terra, compreendê-la e vivê-la em toda sua generosidade e acolhimento de mãe, pois “ela é um princípio generativo. Representa o feminino que concebe, gesta, e dá luz. Emerge assim o arquétipo da Terra como Grande Mãe, Pacha Mama47 e Nana48. Da mesma forma que tudo gera e entrega à vida, ela também tudo

47 Pachamama significa Mãe Terra. A palavra é de origem quéchua, uma língua antiga dos povos andinos anterior aos Inkas. “Pacha” significa solo, terra ou mundo, já “Mama” significa Mãe ou senhora. Mãe Terra, a Pachamama, nos ensina como nós somos merecedores da dádiva da vida, porque somos as crianças da Mãe

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acolhe e tudo recolhe em seu seio” (BOFF, 2007, p. 76). Diante disto, ‘seria este um saber primordial?’ Pergunta-se Manoel de Barros (2010) em seus versos, pode ser que sim, tenho tão poucas respostas e tantas perguntas, no entanto, o que sei e que aprendi com o poeta diante do sentir-se Terra é que “também das percepções primárias que nascem arpejos e canções e gorjeios” (BARROS, 2010, p. 450). Deste modo, Morin (2002) oferece alguns de seus ensinamentos, salientando que a Terra autoproduziu-se e auto-organizou-se acoplando-se ao Sol e deste modo, constituiu em complexo biofísico desde que se desenvolveu a biosfera. Neste sentido, “somos a um só tempo seres cósmicos e terrestres” (MORIN, 2002, p. 50). Assim como seres vivos deste planeta, sendo o próprio planeta, necessitamos vitalmente da biosfera terrestre, contudo “devemos reconhecer nossa identidade terrena, física e biológica” (MORIN, 2002, p. 50). Este reconhecimento exige cuidado, implica como na poesia de Manoel de Barros ‘um tratado de pássaro’:

Compêndio para uso dos pássaros Para compor um tratado de passarinhos É preciso por primeiro que haja um rio com árvores e palmeiras nas margens. E dentro dos quintais das casas que haja pelo menos goiabeiras. E que haja por perto brejos e iguarias de brejos. É preciso que haja insetos para os passarinhos. Insetos de pau sobretudo que são os mais palatáveis. A presença de libélulas seria uma boa. O azul é muito importante na vida dos passarinhos Porque os passarinhos precisam antes de belos ser eternos. Eternos que nem uma fuga de Bach.

(BARROS, 2010, p.401).

Terra, independente de raça, religião, ou de cultura. A natureza nos faz viver em unidade com todas as coisas, e é esta unidade que nos coloca em equilíbrio e em paz com tudo. Fonte: http://www.xamanismo.com/universo%20xamanico/pachamama/ Acesso em 11 mar. 2017. 48 Nanã é um importante orixá feminino relacionado com a origem do homem na Terra. O seu domínio se relaciona com as águas paradas, os pântanos e a terra úmida. Sua relação com o barro, mistura de água e terra, coloca esse orixá nos domínios existentes entre a vida e a morte. Isso porque a água é o elemento que se liga à vida e a terra, à morte. Fonte: http://brasilescola.uol.com.br/religiao/nana.htm Acesso em 11 mar. 2017.

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Tal compêndio poético para uso dos passarinhos nos ensina sentirmos-pensarmos o tratado que precisamos ter com a Terra, e, então nos eternizarmos como uma fuga de Bach, não no sentido de ‘viver o eterno’, mas o ‘presente eterno’ das coisas, no entendimento de uma relação subjetiva e corpórea do tempo - ‘viver o instante eterno’, intenso e fugaz como a beleza e a potência de uma fuga de Bach49, numa composição apolínea e dionisíaca de um tratado com a Terra, sentindo-se Terra, reaprendendo então, nossa condição humana, cósmica, física, terrestre – fazendo-se Homo Sapiens e Homo demens, alcançando paroxismos de vida em êxtases e na embriaguez, fervendo de ardores orgiásticos e orgásmicos (Cf. MORIN, 2002, p. 52). Contudo, “conhecer o humano é, antes de mais nada, situá-lo no Universo e não separá-lo dele” (MORIN, 2002, p. 47), reconhecendo “nosso duplo enraizamento no cosmo físico e na esfera viva e, ao mesmo tempo nosso desenraizamento propriamente humano” (MORIN, 2002, p. 48), percebendo a vida a partir da relação vida, morte e vida, e da ambivalência complementar entre a Terra e o céu, natureza e cultura, sujeito e objeto, cuja interconexão, em afinidade com o mundo natural, nos poderia permitir “escutar e traduzir as mensagens advindas do murmúrio da natureza e aprender com ela os caminhos da paciência, da arte de saber viver e construir saberes” (LIMA, 2008, p. 02). Tudo isto requer nos sentirmos Terra, requer ‘um tratado’ com nós mesmos, um compêndio para uso humano, como assinalado pelo poeta ao compêndio para o uso das aves. Nesse tratado, os estatutos do humano já são anunciados na poesia de Thiago de Mello (2011)50, que nos devolve em cada decreto o verbo esperançar e, por um instante, nos faz mais uma vez e sempre tanto, acreditar na existência do ser humano, no reconhecimento de pertencimento com a t/Terra, com o outro, com toda a vida...

49 Bach trabalhava a harmonia dos contrapontos de maneira exímia, o que nos traz ressonâncias inconfundíveis, desta maneira também construímos as paisagens da memória (Cf. GUIMARÃES, 2017). 50 De acordo com a Tese de Doutorado de Cássia Maria Bezerra do Nascimento (2014), Os Estatutos do Homem, de Thiago de Mello, é poema cujo transbordamento ocorreu em 1º de abril de 1964, no Chile, no calor da notícia do golpe militar no Brasil.

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Os Estatutos do Homem (Ato Institucional Permanente) Thiago de Mello

Artigo I Artigo VIII Fica decretado que agora vale a verdade. Fica decretado que a maior dor sempre foi e será agora vale a vida, e de mãos dadas, sempre não poder dar-se amor a quem se ama marcharemos todos pela vida verdadeira. e saber que é a água que dá à planta o milagre da flor.

Artigo II Artigo IX Fica decretado que todos os dias da semana, inclusive Fica permitido que o pão de cada dia

as terças-feiras mais cinzentas, têm direito a tenha no homem o sinal de seu suor. converter -se em manhãs de domingo. Mas que sobretudo tenha sempre o quente sabor da ternura. Artigo III Fica decretado que, a partir deste instante, haverá Artigo X girassóis em todas as janelas, que os girassóis terão Fica permitido a qualquer pessoa, direito a abrir-se dentro da sombra; e que as janelas qualquer hora da vida, devem permanecer, o dia inteiro, abertas para o verde uso do traje branco. onde cresce a esperança. Artigo XI Artigo IV Fica decretado, por definição, Fica decretado que o homem não precisará nunca que o homem é um animal que ama mais duvidar do homem. e que por isso é belo, Que o homem confiará no homem muito mais belo que a estrela da manhã. como a palmeira confia no vento, como o vento confia no ar, Artigo XII como o ar confia no campo azul do céu. Decreta-se que nada será obrigado nem proibido, tudo será permitido,

Parágrafo único: inclusive brincar com os rinocerontes O homem, confiará no homem e caminhar pelas tardes como um menino confia em outro menino. com uma imensa begônia na lapela.

Artigo V Parágrafo único: Fica decretado que os homens estão livres do jugo da Só uma coisa fica proibida: mentira. amar sem amor. Nunca mais será preciso usar a couraça do silêncio nem a armadura de palavras. Artigo XIII O homem se sentará à mesa com seu olhar limpo Fica decretado que o dinheiro não poderá nunca mais porque a verdade passará a ser servida antes da comprar o sol das manhãs vindouras. sobremesa. Expulso do grande baú do medo, o dinheiro se transformará em uma espada fraternal Artigo VI para defender o direito de cantar Fica estabelecida, durante dez séculos, e a festa do dia que chegou. a prática sonhada pelo profeta Isaías, e o lobo e o cordeiro pastarão juntos Artigo Final. e a comida de ambos terá o mesmo gosto de aurora. Fica proibido o uso da palavra liberdade, a qual será suprimida dos dicionários Artigo VII e do pântano enganoso das bocas. Por decreto irrevogável fica estabelecido A partir deste instante o reinado permanente da justiça e da claridade, a liberdade será algo vivo e transparente e a alegria será uma bandeira generosa como um fogo ou um rio,e a sua morada será sempre para sempre desfraldada na alma do povo. o coração do homem.

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Assim, diante dos decretos de bem-viver51 na complexidade proposta pelo ´homem- poeta’52 a liberdade teria sempre como morada o coração do homem, assim, o sentimento de pertencimento à todo cosmo, à toda natureza e à todos os seres, seria o sentir-se a própria Terra, o que implicaria uma relação de amorosidade, de atenção, de cuidado. O cuidado, sugere Boff (2007) a partir da “Fábula-Mito do Cuidado” ou “a fábula de Higino”53 é tão fundamental que é anterior ao ‘espírito’ infundido por Júpiter e ao ‘corpo’ fornecido pela Terra – “a fábula diz: “o cuidado foi quem primeiro moldou o ser humano”. Daí a importância de cuidarmos daquilo que somos, daquilo que temos uma relação una e múltipla, no sentido de que tudo está ligado a tudo e a todos/as – “Humanidade e Terra formamos uma única realidade esplêndida, reluzente e ao mesmo tempo, frágil e cheia de vigor” (BOFF, 2007, p. 72). Importa-nos uma reconciliação com a Terra, com o cosmo a fim de “recuperar o equilíbrio dinâmico que perdemos ao voltar-nos de forma desenfreada, à cultura da produção e do consumo” (GUTIÉRREZ; PRADO, 2008, p. 31). Assim como os nossos ancestrais, necessitamos nos voltar para nós mesmos para que possamos revigorar a harmonia que precisamos ter com a natureza como sujeitos feitos da mesma carne dela. Faz-se necessário uma ‘consciência planetária’ (GUTIÉRREZ; PRADO, 2008, p. 31). Diante disto: A recuperação harmônica supõe uma nova maneira de ver, focalizar e viver nossas relações com o planeta Terra e com tudo o que essa consciência planetária supõe: tolerância, equidade social, igualdade de gêneros, aceitação da biodiversidade e promoção de uma cultura da vida a partir da dimensão ética (GUTIÉRREZ; PRADO, 2008, p. 31).

51 Gostaria de reforçar aqui o que meu colega de Doutorado Júlio Rezende D. Duarte Côrrea deposita em esperança em sua Tese, qual corroboro quanto à um Tratado de bem-viver que me parece um tanto utópico diante de tantas violências que a natureza vem sofrendo pela ganância do homem, como por exemplo os casos trágicos de crime ambiental e extermínio humano e de toda a fauna e flora como a de Mariana e Brumadinho, cometidos pela Mineradora Vale. Quanto ao que sinto em relação à um bem-viver entre humano-t/Terra, quero também reiterar que: “Sou otimista quanto ao futuro da humanidade. Acho que conseguiremos, a partir de muito trabalho e colaboração, transformar a terra num jardim equilibrado ambientalmente, justo socialmente, democrático e pacífico. Não estabeleço, no entanto, um prazo para este horizonte utópico. Proponho-me a caminhar em direção a ele, mesmo que permaneça sempre no horizonte [...] Compartilho da luta de minha família, meus amigos, colegas e professores em busca desta utopia” (CÔRREA, 2019, p. 67). 52 Os estudos de Nascimento (2014) pressupõe no poema de Thiago de Mello uma ambiguidade que compreende a coexistência de uma na outra: uma relação indissociável entre o homem-poeta. 53 O texto original da fábula de Higino pode ser encontrado em Ser e Tempo, de Heidegger, vol. I, Editora Vozes, 1989, p. 263. Na versão de Boff (2007) segue um caminho próprio com algumas variações da que consta em Heidegger.

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Corroboro com Gadotti (2000, p. 178) quando infere que a consciência ecológica, planetária “emergirá espontaneamente quando o sentido da unidade for tocado, ou seja, quando cada criatura sentir-se verdadeiramente vinculada à todas as formas de vida [...]. Contudo, o movimento por uma ‘ecopedagogia’ (GUTIÉRREZ; PRADO, 2008), por uma ‘Pedagogia da Terra’ (GADOTTI, 2000) implicam “uma série de mudanças profundas em nossa percepção do papel que deve desempenhar o ser humano no ecossistema planetário”. Como explica Morin (2002, p. 67) “cada parte do mundo faz, mais e mais, parte do mundo e o mundo, como um todo, está cada vez mais presente em cada uma de suas partes”. Deste modo: [...] é necessário aprender a “estar aqui’ no planeta. Aprender a estar aqui significa: aprender a viver, a dividir, a comungar, é o que se aprende somente nas – e por meio das culturas singulares. Precisamos doravante aprender a ser, viver, dividir e comunicar como humanos do planeta Terra, não mais somente pertencer a uma cultura, mas também ser terrenos (MORIN, 2002, p. 76).

Sentir-se terrenos como nos ensinam a ancestralidade dos povos da floresta, os povos da terra, cujas histórias presentificadas pelo mundo natural são ouvidas por uma postura de comunicação intrínseca entre natureza e cultura. E são reconstruídas por uma arte permeada “pela “lógica do sensível”, cuja dinâmica é promovida ao mesmo tempo em que promove um encontro entre a realidade que está ali, entregando-se a eles, ao seu toque, ao seu olfato, ao seu olhar que a sente captando-a lentamente, insistentemente e criativamente” (LIMA, 2008, p. 02). Deste modo, é preciso que reconheçamos que ao cuidar da Terra, estamos cuidando de nós mesmos, estamos nos voltando às nossas dimensões ancestrais telúricas, de amor e zelo com todos e todas e com tudo que nos une – ou seja, o novo paradigma de convivência com a Terra necessita ser marcado pelo sentimento, pela empatia, pelo cuidado, pela comunhão com a diferença, ou seja, precisa ser destacado pelo pathos e não apenas pelo logos. (Cf. BOFF, 2007), sem nos esquecermos que vivemos em condições de harmonia e conflito, com a ordem e a desordem, “de morte e de vida e demais pares binários tomados como antagônicos, mas que são complementares” (PASSOS; SATO, 2012, p 24).

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Com isto, faz-se necessário pontuar a existência de um tratado – a Carta da Terra (CT), declaração dos princípios fundamentais para a construção de uma sociedade global no século XXI, mais justa, sustentável e pacífica (Cf. BINACIONAL, 2004). De acordo com Passos e Sato (2012, p.18) A Carta da Terra “é um movimento internacional que nasceu no bojo da sociedade civil organizada, durante a formação da Comissão Internacional de Meio Ambiente e Desenvolvimento”. Seus princípios estão ancorados em quatro seções e estão relacionados com: a) Respeito e Cuidado da Comunidade de Vida; b) Integridade ecológica; c) justiça social e econômica; d) democracia, paz e não violência (PASSOS; SATO, 2012, p. 18).

O movimento da Carta da Terra imbui o seu discurso de ser a “expressão de esperança e um chamado a contribuir para a criação de uma sociedade global no âmbito de uma conjuntura histórico-crítica” (BINACIONAL, 2004, p. 06). Ainda, se justifica que: A Carta expressa a confiança na capacidade regenerativa do Planeta e na responsabilidade compartida dos seres humanos de aprenderem a amar e a cuidar do Lar comum. Só assim garantiremos um futuro comum e alcançaremos a paz tão ansiada, entendida como “a plenitude criada por relações corretas consigo mesmo, com outras pessoas, outras culturas, outras vidas, com a Terra e com a totalidade maior da qual fazemos parte (BOFF, 2004, p. 30).

Foto: Valmir Cordasso, 2013.

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Contudo, retornando ao que expressa o subtítulo desta seção, estamos entre cantos e gritos da Terra. Linhas tencionadas entre o canto biófito e o grito necrófito, este último de tão ensurdecedora vibração, silencia o canto primeiro. Canto que por meio de todos os sons que a Terra emite (seja no canto dos pássaros, no barulho das águas, das chuvas, das cachoeiras, barulhos de todos os seus animais, de todos os seres vivos, ecos de todos os seus povos, etc.) estão ameaçados. E é por isso que a Terra grita, em defesa de seus cantos. Grita insistentemente por todos os seus poros, para que a ouçamos, para que tomemos atitudes para com a re-afirmação da vida. No entanto, tais linhas aqui concebidas como linhas abissais como nos explica Souza (2007) continua forte e insistentemente a operar na perspectiva do pensamento moderno ocidental, linhas estas que “separam o mundo humano do mundo subumano, de tal modo que princípios de humanidade não são postos em causa por práticas desumanas” (SOUZA, 2007 p.76).

Esta discussão emerge para quiçá contribuir [reconhecendo suas limitações!] para que nossa condição humana, terrestre, cósmica, eleja uma ‘consciência planetária’ pela ‘escuta do sensível’. “[...] a escuta do sensível vagueia, deleita-se, escuta a si mesma e ao outro, evoca outros domínios, outros estados, cria, faz os “arremessos idílicos” produzindo arte, a arte do fazer o saber, a sua cultura, que não é incompatível com o sentimento” (LIMA, 2008, p. 03, grifo da autora). E nesta escuta que reconhece o corpo como possibilidade de conhecimento, pautado numa ‘lógica do sensível’, ou seja, “o conhecimento que nasce e faz-se sensível em sua corporeidade” (ESPÓSITO, 2016, p.4) declarando-se nos movimentos dos gestos, da linguagem, dos pensamentos, das ações, dos silêncios, compreendo que para me sentir Terra necessito voltar aos ensinamentos dos povos que habitam as florestas, uma vez que: [...] os povos da floresta não compartimentam nem categorizam o pensamento em componentes distintos, razão e emoção, mas fazem deles uma união para melhor entender a melodia dos pássaros, dos ventos, das águas escuras dos braços de rios [...] e de todas as matas e florestas; ou para compreender o jogo misterioso entre a fauna e a flora que, na sua cadência, forma a cadeia ambiental da vida (LIMA, 2008, p. 03).

Neste contexto da floresta, dos saberes constituídos pelos povos que nela habitam, é que intentei discorrer sobre a Terra, sobre a vida, sobre a nossa interconexão de tudo e com todos/as a fim de consequentemente inferir sobre o lócus desta pesquisa, que é o mesmo lócus

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das minhas memórias de infância e das memórias do outro, das crianças migrantes que viviam em ‘estágio de árvore’ e se faziam o mesmo corpo da floresta – da floresta amazônica, que como também pulsação da Terra, estava (e está!) entre cantos e gritos, entre vida e morte – e que então, ouço nos versos do poeta os clamores da floresta e comungo deles, pois, “no meu morrer tem uma dor de árvore” (BARROS, 2010, p. 323).

Foto: Valmir Cordasso, 2015.

Borboletas me convidaram a elas. [...] Por certo eu iria ter uma visão diferente dos homens e das coisas. [...] Daquele ponto de vista: Vi que as árvores são mais competentes em auroras do que em homens. Vi que as tardes são mais aproveitadas pelas garças do que pelos homens. Vi que as águas tem mais qualidade para a paz do que os homens. Vi que as andorinhas sabem mais de chuvas do que os cientistas. Poderia narrar muitas coisas ainda que pude ver do ponto de vista de uma borboleta. Ali até o fascínio era azul. (BARROS, 2010, p. 393)

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2.2 Amazônia: entre águas e sangue

Há pássaros-mensageiros na Amazônia, Eles cantam a vida e anunciam a morte. Tudo é eco na floresta. Há vidas que já nascem sob a pena de morte. Há mortes-vertentes pelas vivas águas da floresta. Das vidas atingidas jorram água, Que brotam sangue, Que jorram água, que brotam sangue. Amazônia crucificada, Quisera ela ressuscitar ao terceiro dia. ‘Quem tem ouvidos ouçam’: Tudo é eco, Deixa ecos No silêncio gritante e palpável da floresta. Pássaros cantam e gritam: Um silêncio audível.

Josi Rohden, 2017

Conflitos. Vida que pulsa. Vida que sangra. Fontes que jorram água. Corpos que jorram sangue. Território de vida e morte configura a Amazônia. Neste cenário, a fronteira amazônica é como sugere Martins (2016) incisivamente espaço/lugar do conflito:

A fronteira só deixa de existir quando o conflito desaparece, quando os tempos se fundem, quando a alteridade original e mortal dá lugar à alteridade política, quando o outro se torna a parte antagônica de nós, quando a história passa a ser a nossa história, a história da nossa diversidade e pluralidade, e nós já não somos nós mesmos porque somos antropofagicamente nós e o outro que devoramos e nos devorou (MATINS, 2016, p.134).

Neste sentido, este viver na fronteira enquanto existe o conflito, é marcado por um processo plural, de forças ambivalentes que com-vivem no limite. E, nesta paisagem, faz-se importante ressaltar que na paz oferecida pelo barulho das águas, pelos cantos dos pássaros, pelo verde da mata, se insere também uma guerra sem tréguas em meio a floresta. Cenário de paz e de guerra, de vida e de morte.

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A guerra se faz pela cobiça do homem pelas terras e pelas riquezas da floresta, qual produziu no passado e continua a produzir no presente o confronto entre os povos originários, os pequenos seringueiros, os posseiros que resistem em nome da dimensão biótica de conceber e lidar com a T/terra e os grandes latifundiários, as grandes empresas que brigam e não poupam esforços para o domínio, para a exploração de tudo e de todos, fazendo aludir cada vez mais alto o grito necrófito de um sistema voltado apenas para o lucro, para a produção econômica.

Se direcionarmos um olhar para ao longo da história, podemos analisar que desde a época do ‘descobrimento’ do Brasil inúmeros genocídios indígenas foram cometidos pelo ‘homem branco’ pela posse de terras, sendo que muitos de tais extermínios nem ao menos chegaram e ainda não chegam a ser registrados e apresentados pela história, e lamentavelmente, a maioria da população brasileira se quer são informadas, são conscientizadas sobre tais acontecimentos.

Diante de tal percepção, o cenário para a tomada, pelo domínio de terras a todo custo, não foi diferente quando iniciou-se o processo de ocupação territorial da Amazônia, em especial no momento da tomada do governo pelos militares em 196454, quando o movimento tomou forças e diversos massacres aos povos da floresta foram cometidos, casos em que chegou-se a exterminar tribos inteiras, como exemplo o Massacre do Paralelo 1155 na região de Aripuanã-MT, quando uma tribo dos Cinta-Larga fora totalmente exterminada em 1963 por empresários seringalistas que exploravam o local onde a tribo estava instalada.

54 De acordo com Picoli (2005a, p. 13-14) o território da Amazônia até a ditadura militar era pouco explorado economicamente e então, após o Golpe de 1964 tal espaço passa a ser área de expansão dos projetos econômicos nacionais e internacionais de maneira projetada e organizada. Neste cenário, o projeto articulado pelo Estado passou a expulsar os povos originários do seu habitat da floresta, na intencionalidade de promover a expansão de grupos econômicos na região. O objetivo era instalar grandes complexos agropecuários e de extrativismo tanto no setor mineral como florestal. Então, com tal estratégia grandes empreendimentos se instalaram em terras adquiridas legalmente e griladas através da expropriação e da violência. Neste cenário, os indígenas foram as grandes vítimas da expansão da última grande fronteira. 55 Tal discussão do genocídio deste depoimento em destaque, pode-se ser encontrado em diferentes obras de antropólogos, sociólogos e historiadores brasileiros e internacionais, como também pode ser visualizado no filme “Avaeté, a semente da vingança” de Zelito Viana, estreado no ano de 1985. O filme mesmo que de forma fictícia e certamente com alguns momentos censurados, apresenta um verdadeiro cenário de guerra do que foi o Massacre dos Cinta-Larga em Mato Grosso. Filme Avaeté: a semente da vingança, 1985 – Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=tHhV3B3Phf0 Acesso em 09 abr. 2017.

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Tal genocídio indígena assim como tantos outros também são narrados no Relatório Figueiredo reencontrado em 2012 após um longo período ‘dito’ como não mais existente.56 O acervo documental foi produzido pela Comissão de Inquérito, que segundo Guimarães (2015) teve como base para suas investigações as conclusões da Comissão Parlamentar de Inquérito de 1963. Após sua divulgação em 1968, o relatório gerou grande comoção na opinião pública por apresentar denúncias de massacres, torturas e crimes contra os índios e o patrimônio indígena no período da Ditadura Militar (Cf. GUIMARÃES, 2015)57. E nessa travessia, Riobaldo nos lembra “O senhor não duvide - tem gente, nesse aborrecido mundo, que matam só para ver alguém fazer careta [...] (2015, p. 28)”.

Tais inferências iniciais se fazem necessário, para que se possa pontuar que a ocupação territorial da Amazônia e neste processo se inclui Sinop, lócus desta pesquisa, foi um processo violento, de degradação, de morte, de sangue, em outras palavras, ela se consolidou e ainda se configura na “fronteira: da degradação do outro nos confins do humano”, como salienta Martins (2016) em sua obra.

Diante do exposto, é importante mencionar que os conflitos pela terra pós Golpe Militar em 1964 se intensificaram na Amazônia e “ganharam contornos dramáticos, sobretudo ao longo dos eixos rodoviários” (GONÇALVES, 2001, p. 54). Neste cenário, “as principais vítimas dos conflitos de terras são indígenas e posseiros58, ao passo que os beneficiários são os grileiros, latifundiários e empresas” (IANNI, 1986, p. 143).

Deste modo, é possível compreender que neste cenário de luta pela posse da terra, não apenas os índios da fronteira foram envolvidos na luta violenta pela terra. De acordo com Martins (2016, p. 1133):

56De acordo com Guimarães (2015), a princípio o relatório recebeu este nome por se tratar do relatório conclusivo da Comissão de Inquérito, instaurada em 1967, pelo Ministro do Interior, General Afonso Albuquerque Lima, e presidida pelo Procurador Jáder de Figueiredo Correia, para investigar as irregularidades e crimes cometidos por agentes do extinto Serviço de Proteção aos Índios (SPI). 57 Na época de sua divulgação foi considerado como o “escândalo do século”, recebendo repercussão internacional. A documentação com toda comprobação dos crimes cometidos contra os indígenas foram tidos como perdidos em 1967, no incêndio57 que destruiu grande parte da documentação do então SPI, e, somente foram localizados e identificados em 2012 pelo vice-diretor do Tortura Nunca Mais/SP, nos arquivos transferidos de Brasília para o Museu do Índio em 2008, recebendo divulgação em 2013, no âmbito das investigações da Comissão Nacional da Verdade (CF. GUIMARÃES, 2015). 58 De acordo com Martins (2016, p. 104) os posseiros “são trabalhadores privados do direito legal sobre a terra que ocupam”.

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Também os camponeses da região, moradores antigos ou recentemente migrados, foram alcançados pela violência dos grandes proprietários de terra, pelos assassinatos, pelas expulsões, pela destruição de casas e povoados. Entre 1964 a 1985 quase seiscentos camponeses foram assassinados em conflitos da região amazônica, por ordem de proprietários que disputavam com eles o direito à terra.

Contudo, para o autor supracitado o que há de sociologicamente mais interessante para definir e caracterizar a fronteira no Brasil é certamente a questão do conflito social. E, isso, para Martins (2016) é o aspecto mais negligenciado entre os pesquisadores que tem tentado conceituá-la. Para o autor, “neste conflito, a fronteira é essencialmente o lugar da alteridade” (MARTINS, 2016, p. 133, grifos do autor)

Neste sentido, reiterando a questão enfatizada no Primeiro Canto deste trabalho: de que tudo está ligado à tudo, à todos e à todas, neste cenário, a cidade de Sinop59, uma das cidades da Amazônia Mato-grossense, originária da abertura feita pelas frentes de expansão60 da fronteira, frentes estas, que não mediram esforços tendo como aliado o próprio Estado, para ‘exterminar’ tudo e todos que os impedissem de ‘executar’ seus interesses políticos e econômicos “das áreas onde são mais agudos e sérios os conflitos entre índios e a sociedade nacional, especialmente na região amazônica e em certas partes do sul de Mato Grosso” (GUIMARÃES, 2015, p. 87).

59A história do lócus de pesquisa será retomada com mais ênfase ainda neste Segundo Canto. 60 De acordo com Martins (2016) a frente de expansão não deve ser concebida como sendo apenas o deslocamento de agricultores empreendedores, comerciantes, cidades, instituições políticas e jurídicas, mas também a inclusão neste movimento das populações pobres, rotineiras, não indígenas ou mestiças, como os garimpeiros, os vaqueiros, os seringueiros, castanheiros, pequenos agricultores que praticam uma agricultura de roça antiquada e no limite do mercado. Para o autor frentes de expansão e frentes pioneiras não são propriamente conceitos, mas designações de pesquisadores que reconhecem que estão em face dos diferentes modos como os civilizados se expandem territorialmente. Para o autor as distintas designações entre frente de expansão e frente pioneiras, são perspectivas desencontradas de se dizer a mesma coisa. Para Martins (2016, p. 135) “a frente pioneira é a situação espacial e social que convida ou induz à modernização, à formulação de novas concepções de vida, à mudança social. Ela constitui o ambiente oposto ao das regiões antigas, esvaziadas de população, rotineiras, tradicionais e mortas”. Contudo, para o autor, ambas: frente de expansão e frentes pioneiras, são faces momentos distintos da mesma expansão.

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Os genocídios indígenas que ocorreram anterior à ‘ocupação territorial’ pelas frentes HUMANO-ANIMAL pioneiras estão diretamente ligadas entre si, Quando o humano se une ao mesmo que o trabalhador sem-terra do Nordeste, natural que o colono pobre do Sul do país não saibam Em gesto puro de amor, O resultado se traduz disto, uma vez que também foram vítimas de No movimento da vida, uma tentativa governamental de ‘resolver’ os Na suavidade da alma, Na candura da flora, conflitos agrários existentes em tal momento no No grito da fauna, nordeste do país, como também no sul a No seio da mãe-índia, expansão dos grandes latifundiários que No apego de uma criança, No humano-animal. impossibilitava a sobrevivência da agricultura Tão demasiado humano, familiar, mesmo assim, é pontual a ligação entre Tão simplesmente animal. o processo de migração da Amazônia com todo (Ah, quão seria benévolo se os um processo avassalador de destruição das homens entendessem a tão florestas, de espécies raras da fauna e da flora da simples linguagem natural do amor! ) Amazônia, assim como o extermínio de inúmeras etnias indígenas e de inúmeros (Josi Rohden, 2013) assassinatos dos posseiros e camponeses.

O ‘homem sem terra’ do nordeste, trazido como mão de obra para a Amazônia para a construção das estradas e rodovias, o colono pobre trazido do sul para trabalhar, para fazer o solo produzir, para manejar as terras para o cultivo de diversas culturas61, mantém em suas doces memórias e ilusões a promessa de um futuro de enfim poder ter um pedaço de terra, ter um futuro diferente - mais promissor, de possuir finalmente, “uma terrinha para colher e para plantar e então viver em paz” (MIGRANTE A62, Depoimento 2012). Indígenas, caboclos,

61 A partir de 1964 os governos militares, visando integrar a Amazônia à economia nacional, sob o lema de “integrar para não entregar”, e com o intuito de atenuar a crise na economia rural que se acentuava principalmente na região sul e resolver o problema da grande seca do Nordeste, em 1970, para não ter de se responsabilizar com uma possível reforma agrária, voltam-se para a ampliação de políticas públicas que pudessem concretizar o processo de ocupação territorial, contudo, sob os mesmos discursos dos governos anteriores que propagavam a ideia de povoar os espaços vazios, proteger e proporcionar a segurança nacional e, finalmente, promover as novas fronteiras agrícolas como os locais propícios para um futuro mais promissor. 62 Irei me referir a Depoimento de Migrante A, B, C e assim sucessivamente, aos testemunhos históricos de migrantes de Sinop que foram publicados ora por outros pesquisadores, ora por acervos de veículos de comunicação que tive acesso, ora construídos por mim na ocasião da pesquisa de Mestrado (2012). Optei por denominá-los assim para se diferenciarem dos sujeitos principais desta pesquisa de doutorado (migrantes que

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quilombolas, ribeirinhos, pequenos seringueiros, castanheiros, migrantes colonos, trabalhadores de diversos locais do país, são autores de uma história, cujo seus nomes não são inclusos. São historiadores de si, cujas histórias não recebem visibilidade. São autores de todo um processo interligado, qual envolve dor, sofrimento, sangue de muitas vidas, vidas estas que não possuem vez nem voz na história contada nos livros que chegam às nossas escolas, na história perpetuada de geração para geração pelas ‘flores’ do progresso.

Mari Bueno, Amazônia, óleo sobre tela.

vivenciaram a infância em tal espaço investigado, que serão mencionados por nomes de árvores e plantas da Amazônia, como explicado no Primeiro Canto deste trabalho).

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Os papeis principais são destinados aos ‘desbravadores’, que dispunham de uma ‘tradição bandeirante’, dos chamados ‘homens corajosos’ que enfrentaram os perigos da floresta para ‘abrir cidades’, com a missão de que as “‘terras sem homens’ fossem ‘dadas’ aos homens sem terra”. Os ‘heróis da história’ são os “atores de nome próprio e de brasões sociais” e não dos “figurantes, da multidão de heróis quantificados que perdem nomes e rostos tornando-se a linguagem móvel de cálculos e racionalidades que não pertencem a ninguém” (CERTEAU, 1998, p. 57-58). A história contada é dos ‘grandes homens’ que recebem condecorações por terem sido os “semeadores de cidades”63, sob um discurso de brasilidade, de patriotismo, de ‘”integrar para não entregar”64, discursos estes que se reforçam nas temporalidades fundados no mito do progresso, que como sabido, é a forma como a Modernidade concebe a história “como acumulação, a partir daí articula a ideia de progresso, que pressupõe como ingrediente principal uma continuidade que tem se travestido de linearismo e continuísmo” (PASSOS, 2003, p. 137).

Diante da questão de como a Modernidade concebe a história vinculada a ideia de progresso, recordo-me dos ensinamentos de Walter Benjamin em Sobre o Conceito de História (1987), que anterior ao movimento da História Nova, já tecia críticas ao modo como a história concebia o passado - numa linearidade temporal, enfatizando uma história homogênea. A crítica do filósofo ao historicista neste caso, se dava também pelo fato da história construir a imagem ‘eterna do passado’, ao invés de apresentar o passado como uma experiência única. O historicismo apresentava um passado da história dos vencedores, uma história cuja voz que impera é a do progresso. Diante de tais críticas, o filósofo propõe de forma metafórica como seria a ‘face’ do anjo da história ao comparar como o passado sob a

63 Assim são chamados os colonizadores de empresas privadas que fundaram cidades no norte de Mato Grosso, ver Santos (2011). 64 De acordo com Boni (2010, p. 9), “integrar” em tese, seria fixar o trabalhador em espaços considerados “vazios”. A iniciativa pretendia povoar o interior e tornar estes espaços produtivos para impulsionar a economia do mercado. “Com isto, a expectativa era que o Brasil conquistasse maior autonomia econômica e não dependesse totalmente do mercado externo”. Os slogans “integrar para não entregar” juntamente com “uma terra sem homens para homens sem terra” foram cunhados e propagados durante o governo militar brasileiro, tendo à frente o presidente Médici.

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ótica do progresso era concebido pelo historicismo com um quadro nomeado Anjo da História do artista Paul Klee65:

Há um quadro de Klee que se chama Angelus Novus. Representa um anjo que parece querer afastar-se de algo que ele encara fixamente. Seus olhos estão escancarados, sua boca dilatada, suas asas abertas. O anjo da história deve ter esse aspecto. Seu rosto está dirigido para o passado. Onde nós vemos uma cadeia de acontecimentos, ele vê uma catástrofe única, que acumula incansavelmente ruína sobre ruína e as dispersa a nossos pés. Ele gostaria de deter-se para acordar os mortos e juntar os fragmentos. Mas uma tempestade sopra do paraíso e prende-se em suas asas com tanta força que ele não pode mais fechá-las. Essa tempestade o impele irresistivelmente para o futuro, ao qual ele vira as costas, enquanto o amontoado de ruínas cresce até o céu. Essa tempestade é o que chamamos progresso (BENJAMIN,1987, p.226)

Paul Klee. Angelus Novus, 1920. Óleo e aquarela sobre papel. 31.8 x 24.2 cm.

De acordo com Benjamin, a história é objeto de uma construção cujo lugar não é o tempo homogêneo e vazio, mas um tempo impregnado de ‘agoras’. Assim, a história comparada com a imagem do anjo, possibilita refletir sobre uma série de acontecimentos quais não se esgotam no passado, mas que alcançam o presente e se lançam para o futuro. Benjamin deixa indícios de ser o progresso o precursor, o proclamador da barbárie da humanidade.

Tais considerações de Benjamin sobre a história, o progresso, são importantes neste momento para associarmos o quanto esta ‘tempestade’ qual chamamos de ‘progresso’ se faz

65 Paul Klee foi um pintor suíço de nacionalidade alemã. Nasceu na cidade suíça de Münchenbuchsee em 18 de dezembro de 1879. É considerado um dos grandes pintores europeus do início do século XX, pois suas obras de arte estão situadas em três importantes movimentos artísticos (surrealismo, cubismo e expressionismo). Paul Klee faleceu na cidade de Muralto (Suíça) em 20 de junho de 1940. Disponível em: http://www.suapesquisa.com/quemfoi/paul_klee.htm

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presente em relação ao que apresentamos sobre todo o processo de “depredação da natureza e exploração do homem pelo homem” (SANTOS, 1998, p. 239) onde “’a ordem capitalista não interessa na cessação ou des-continuidade do tempo cotidiano e sim no seu avanço, sem perturbações, na linha de continuidade do movimento uniforme e linear” (PASSOS, 2003, p. 100).

Contudo, a proposta destes dois primeiros itens desta sessão é de apresentar os modos ambivalentes de se conceber a Terra, a Amazônia, a floresta, o lócus da pesquisa. O primeiro modo numa perspectiva ecológica de sentir-se como parte integrante desse espaço, sentindo- se o mesmo corpo, e para tal, compreender e viver esse espaço na dimensão do cuidado, do zelo, do afeto, do pathos, qual nos remete à preservação e ao reconhecimento de nossa íntima relação com a Terra enquanto Mãe e particularmente nesse espaço singular onde este trabalho se insere: a Floresta Amazônica (Cf. SANTOS, 2017). O outro modo na perspectiva de posse, de domínio, encontrado até mesmo biblicamente em Gênesis, 1, 2866, de exploração ilimitada da natureza, cujos recursos são limitados, do sentimento de não-pertencimento de ligação entre Homem-Terra/terra67 (Cf. SANTOS, 2017).

E, deste modo, diante dos modos ambivalentes de se conceber nossa dimensão telúrica, corroboro com Passos (2003, p. 83) quando sugere que:

Face à ambivalência destas forças transcendentes, o ser humano estará sempre desprotegido. Podendo gozar, contudo, das mesmas possibilidades onipresentes que habitam os segredos de uma ordem oculta, acessível a alguns iniciados, que as dominam de um modo profundo. Trata-se de dois lados - não excludentes -, com necessidades diferenciadas e com destinos opostos. Cabe, a partir da visão mágica - de por ao livre arbítrio humano, tantas vezes restringido pela fatalidade das forças que o transcendem, a decisão de viver um destino bastante trágico - em que sua opção por um dos lados, acarretará perseguição pelo outro.

66 E Deus os abençoou, e Deus lhes disse: Frutificai e multiplicai-vos, e enchei a terra, e sujeitai-a; e dominai sobre os peixes do mar e sobre as aves dos céus, e sobre todo o animal que se move sobre a terra (GÊNESIS, 1, 28, grifos meus). 67 A Terra apenas como lócus de exploração e apropriação pelo homem. Lê-se Terra com T para a Terra enquanto Planeta que nos acolhe a todos como Mãe, e, terra com t para a fração que dela brota, os espaços singulares que os distintos grupos humanos habitam (Cf. SANTOS, 2017).

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Diante do exposto, a canção de Vital Farias68 parece traduzir em sentimentos, em voz, em som, em canto as feridas deixadas na Amazônia pela ‘tempestade’ do progresso, pela ganância voraz do capital. Vale ouvi-la, senti-la:

Saga da Amazônia Composição: Vital Farias

Era uma vez na Amazônia a mais bonita floresta mata verde, céu azul, a mais imensa floresta no fundo d'água as Iaras, caboclo lendas e mágoas e os rios puxando as águas

Papagaios, periquitos, cuidavam de suas cores os peixes singrando os rios, curumins cheios de amores sorria o jurupari, uirapuru, seu porvir era: fauna, flora, frutos e flores

Toda mata tem caipora para a mata vigiar veio caipora de fora para a mata definhar e trouxe dragão-de-ferro, prá comer muita madeira e trouxe em estilo gigante, prá acabar com acapoeira

Fizeram logo o projeto sem ninguém testemunhar prá o dragão cortar madeira e toda mata derrubar: se a floresta meu amigo, tivesse pé prá andar eu garanto, meu amigo, com o perigo não tinha ficado lá

O que se corta em segundos gasta tempo prá vingar e o fruto que dá no cacho prá gente se alimentar? depois tem o passarinho, tem o ninho, tem o ar igarapé, rio abaixo, tem riacho e esse rio que é um mar

Mas o dragão continua a floresta devorar e quem habita essa mata, prá onde vai se mudar??? corre índio, seringueiro, preguiça, tamanduá tartaruga: pé ligeiro, corre-corre tribo dos Kamaiura

68 Letra e música disponível em: https://www.vagalume.com.br/vital-farias/saga-da-amazonia.html Acesso em 08/04/2017.

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No lugar que havia mata, hoje há perseguição grileiro mata posseiro só prá lhe roubar seu chão castanheiro, seringueiro já viraram até peão afora os que já morreram como ave-de-arribação Zé de Nana tá de prova, naquele lugar tem cova gente enterrada no chão:

Pois mataram índio que matou grileiro que matou posseiro disse um castanheiro para um seringueiro que um estrangeiro roubou seu lugar

Foi então que um violeiro chegando na região ficou tão penalizado que escreveu essa canção e talvez, desesperado com tanta devastação pegou a primeira estrada, sem rumo, sem direção com os olhos cheios de água, sumiu levando essa mágoa dentro do seu coração

Aqui termina essa história para gente de valor prá gente que tem memória, muita crença, muito amor prá defender o que ainda resta, sem rodeio, sem aresta era uma vez uma floresta na Linha do Equador...

A canção de Vital Farias traz a reflexão sobre a Linha Abissal que Santos (2007) se refere em suas discussões, quando explica os lados opostos como abismos que se tencionam continuamente, onde de um lado se tem a dimensão biótica, da vida, da valoração e coparticipação entre todos os seres, de integração, de cumplicidade e amor com a Mãe Terra e com todos os seres vivos enquanto do lado oposto da linha temos a dimensão necrófita, da destruição, de domínio, de antropocentrismo, de exploração da natureza, de morte. As linhas abissais também estão juntas no sentido de quiasma, elas caracterizam uma presença que são terrenos daquilo que Martins (2016) chama de ‘liminaridade’, os limites que se tocam – “Refiro-me [...] à liminaridade própria desta situação, a um modo de viver no limite, na fronteira, e às ambiguidades que dela decorrem” (MARTINS, 2016, p. 10).

Para Santos (2007, p. 79) as Linhas abissais:

[...] são traçadas tanto no sentido literal quanto no metafórico. No sentido literal, são linhas que demarcam fronteiras como vedações e campos de morte; dividem cidades em zonas civilizadas (condomínios fechados em profusão) e zonas selvagens, e distinguem prisões como locais de detenção legal e à margem da lei.

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Deste modo está também traçada a Amazônia, como na canção de Vital Farias – entre ‘a vida e a morte’, entre ‘o caipora da mata e o caipora de fora’, entre a ‘floresta que se oferece em vida’ e o ‘dragão de ferro que provoca a morte’ em outras palavras, como se refere Martins (2016, p.10) está traçada enquanto “fronteira da alteridade e a particular visibilidade do outro, daquele que ainda não se confunde conosco nem é reconhecido pelos diferentes grupos sociais como constitutivo de nós” (MARTINS, 2016, p. 9-10). Para o autor:

[...] a fronteira é sobretudo, no que se refere aos diferentes grupos dos chamados civilizados que se situam ‘do lado de cá’, um cenário de intolerância, ambição e morte. É também, lugar de elaboração de uma residual concepção de esperança, atravessada pelo mileniarismo da espera no advento do tempo novo, um tempo de redenção, justiça, alegria e fartura. [...], a fronteira é na verdade, ponto limite de territórios que se redefinem continuamente, disputados de diferentes modos por diferentes grupos humanos (MARTINS, 2016, p. 10).

De acordo com Martins (2016) a Amazônia, principalmente a faixa integrante do território brasileiro, se caracteriza como a última grande fronteira da América Latina. E, de acordo com o autor desde o início da ‘conquista’ foi ela objeto de diferentes movimentos de penetração: na caça e na escravização do índio, na busca de plantas conhecidas como ‘drogas do sertão’, na extração do látex e da castanha, na ocupação massiva territorial (violenta e rápida) pós Golpe Militar de 1964.

Picoli (2005b) pontua os nove estados que compõe a Amazônia brasileira também chamada de Amazônia Legal: Acre, Rondônia, Amazonas, Pará, Mato Grosso, Roraima, Amapá, Tocantins e a porção a Oeste do meridiano 44° W do estado do Maranhão. Segundo o autor, além do grande complexo brasileiro, A Amazônia sul-americana é formada por mais oito países: Bolívia, Peru, Equador, Colômbia, Venezuela, Guiana, Suriname e Guiana Francesa.

Foto: Valmir Cordasso, 2016.

Foto: Valmir Cordasso, 2016.

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No entanto, é interessante a colocação de Martins (2016) quando enfatiza que o espaço da Amazônia enquanto fronteira de modo algum se reduz e se resume à fronteira geográfica: “Ela é a fronteira de muitas e diferentes coisas: fronteira da civilização (demarcada pela barbárie que nela se oculta), fronteira espacial, fronteira de culturas e visões de mundo, fronteira de etnias, fronteira da história e da historicidade do homem. E, sobretudo, fronteira do humano” (MARTINS, 2016, p.11, grifo do autor).

Neste sentido, é preciso compreender o espaço da Amazônia, da floresta, desta fronteira do humano, na dimensão da carnalidade que pontua Merleau-Ponty, que fundamentalmente é a ligação de tudo com tudo, ontologicamente de tudo com tudo. E, que então, este cenário que discutimos, não deve ser concebido como um espaço prévio, fixo, pronto, estabelecido, ao contrário, tal espaço foi construído pelos primeiros grupos ancestrais que produziram a floresta, não é um fenomeno pré-existente na Terra, é um fenomeno como uma forma de organização de busca, permanência, de riqueza, de abundancia, de cuidado, que foi feito civilizatoriamente. A Amazônia, a floresta, não é um fenômeno meramente natural, ela é sobretudo, um fenômeno social, dos grupos ancestrais (Cf.PASSOS, 2017).

Deste modo, compreender esta dimensão ancestral, se faz fundamental, para que possamos entender que estamos destruindo algo como se fosse uma coisa como se ela não

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fosse de ninguém, ou seja, estamos tirando os requícios daquelas pessoas que compreendem esta dimensão e que mantiveram por muito tempo esta compreensão e esta experiência ecológica de sobrevivência, de reprodução desta mata, e que então passa a ter um nível contrário de destruição desta floresta. Tal entendimento necessário, possibilita que realçemos um carater importante de Merleau-Ponty que é a importância biocêntrica destas comunidades que são movidas pela terra, pela ecologia, pela ancestralidade, por tudo aquilo que é também a dimensão poética no sentido de Poiesis, no sentido de criação (Cf. PASSOS, 2017).

Para tanto, assumimos o entendimento deste espaço ancestral da Amazônia enquanto território em que tudo está na liminaridade, nas linhas abissais, tudo está entre, na perspectiva

Para tanto, assumimos o entendimento deste espaço ancestral da Amazônia enquanto território em que tudo está na liminaridade, nas linhas abissais, tudo está entre, na perspectiva do quiasma merleaupontiano e, que tudo ligado à tudo e a todos e todas se tensiona, se movimenta inquietantemente nos limites que se tocam em relação à nossa própria condição

Para tanto, assumimos o entendimento deste espaço ancestral da Amazônia enquanto território em que tudo está na liminaridade, nas linhas abissais, tudo está entre, na perspectiva do quiasma merleaupontiano e, que tudo ligado à tudo e a todos e todas se tensiona, se movimenta inquietantemente nos limites que se tocam em relação à nossa própria condição humana. Então, é possível reafirmar que “é na fronteira que encontramos o humano no seu limite histórico. É nela que nos defrontamos [...] com as dificuldades antropológicas do que é fazer história, a história das ações que superam necessidades sociais, transformam relações sociais e deste modo fundam e criam a humanidade do homem” (MARTINS, 2016, p. 11).

Contudo, vivemos a fronteira, entre as linhas tensionadas que não se excluem, na liminaridade de viver no limite e quisera talvez, que o ensejo de um ‘tratado de pássaro’ ainda seja possível de acreditar que possa vir a existir entre o eu e o outro – quiçá um tanto utópico, mas, meu corpo-poeta e fenomenológico necessita também do sonho, da esperança, enquanto alimento para poetizar a vida, afinal só “a reta é uma curva que não sonha” (BARROS, 2010, p. 116). Sou curva-sonhante que para sentir a existência preciso dos passarinhos, preciso do lilás das flores, do cheiro do alecrim, preciso inclusive sentir e perceber no outro a minha própria existência, a minha própria carnalidade como diria Merleau-Ponty (1994).

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Deste modo, corroboro com Passos (2011, p.1) quando salienta que: Não será possível a felicidade humana, sem que se afirme a esperança na vida em face da dissociação de nossa condição de seres políticos e voltados à comunicação e à comunhão, encarnado em estruturas políticas. Singulares e únicos, particulares como membros de comunidades específicas, universais não apenas enquanto gênero humano, somos seres planetários em comunhão através de uma relação inextrincável de todos/as com tudo e todos/as com todas as criaturas animadas e inanimadas do universo.

Assim, pode-se dizer que ao evocar o passado, ao se tentar fazer história menor, uma história viva no limite, na fronteira, no entre corpos-mundo, no entre floresta-homem, na esperança da vida em face nossa condição humana em comunhão com tudo e todos/todas comumente “acrescentamos valores de sonho; nunca somos verdadeiros historiadores, somos sempre um pouco poetas e nossa emoção traduz apenas, quem sabe, a poesia perdida” (BACHELARD, 1993, p. 201, grifos meus).

Acrescentamos modo bricoleur – valores de sonhos.

Foto: Valmir Cordasso, 2013.

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2.3. Na fronteira amazônica: entre o sonho, a esperança e a ambição

O sonho é o olho da vida.

Mia Couto

O sonho. O caminho. O olho. A vida. Os valores que encontrei nas narrativas que ouvi, que se tatuaram em minha corporeidade de modo a incorporá-las com as minhas próprias memórias, foram certamente valores de sonhos, como já anunciava Bachelard (1993). Sonhos que encontrei nas lembranças dos sujeitos que entrevistei nesta pesquisa, sonhos que já havia encontrado nas entrevistas realizadas com professores migrantes ainda na ocasião do mestrado, sonhos que percebo nas fotografias - nos olhares congelados na história, daqueles que migraram para a fronteira, lócus de investigação, em busca de algo melhor para suas vidas – o sonho que havia no meio delas. O sonho era como diz o poeta o olho que desejava. O olho da vida.

Falo em sonhos porque eles se entrelaçam às esperanças, as vontades, ao que está guardado no mais íntimo de cada um e de cada uma, que deixara seus lugares de origem para migrar para a fronteira amazônica – “Meu pai quando ele veio para cá ele achou realmente que aqui era o futuro” (AÇUCENA, Depoimento 2012). “[...] eles (os pais) vieram atrás do sonho de ter uma vida melhor” (IPÊ AMARELO, Depoimento 2016). “O sonho, a esperança era ter um pedaço de terra para plantar e colher, sem as geadas que acabavam com tudo igual lá no Sul” (MIGRANTE B, Depoimento 2012). “[...] meu vô era encantado por terra. Chegando em Sergipe de novo, ele veio e falou: Vamos para o Mato Grosso, lá tem muita terra” (CASTANHEIRA, Depoimento 2016). “Meus pais sonhavam com um futuro pra gente, um futuro que os filhos pudessem estudar para ser alguém na vida” (SERIGUELA, Depoimento 2017). “Pobre naquela época não tinha muito direito de sonhar, então, ter uma terrinha era a possibilidade de ter um sonho realizado” (MIGRANTE A, depoimento 2012).

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Como orienta Martins (2016) não havia futuro no lugar antigo, havia muita gente e terra insuficiente. Tal insuficiência de terra foi agravando-se na época por problemas como a grande estiagem no nordeste e as geadas no sul. “Adversidades quase que unanimemente mencionadas e responsabilizadas pela destruição dos frutos do trabalho antes que pudessem ser aproveitadas pelo homem. Ou, então, ervas daninha e pedras, que os obrigavam a trabalhar muito para colher pouco (MARTINS, 2016, p. 109).” Deste modo, o futuro revelava-se um sonho. A possibilidade da migração se constituía fios de esperança, o olho que buscava vida.

Diante do exposto, há na fronteira uma distância entre os sonhos dos colonos, dos pequenos produtores que migraram para a região da fronteira amazônica e neste caso em especial, para Sinop e a ambição dos colonizadores, das empresas e do Estado - Os sonhos dos colonos migrantes se davam em torno de futuro, este concebido em termos de valores, relações sociais, família, possibilidades de trabalho, sobretudo, de manter no primado do trabalho – o primado da família e nisto, “o afã do trabalho não deve ser tomado como afã de enriquecimento” (Cf. MARTINS, 2016, p. 111). Diferente da ambição, aqui entendido em termos de ganância, da ambição voraz dos empreendedores que viam a colonização como um negócio, como lucro, como um possível acúmulo do capital e que então, se instituíam de um discurso ‘conquistador’ e legitimador que vislumbrava o ensejo de ‘desbravar’, de ‘ocupar’ de ‘semear cidades no coração da Amazônia’69, mas, que na verdade, a intencionalidade ‘oculta’ era de enriquecer, de alimentar o sistema capitalista, de expandir a economia nacional como pretendido pelos militares, nem que para isso vidas fosse o preço a ser pago para o êxito do projeto, como no caso, as vidas dos povos que habitavam a região em tal momento histórico, a vida da floresta e de todos os seres que nela viviam, como retratado no subtítulo anterior.

Neste contexto, posso inferir que sonho e ambição são opostos, são ambiguidades que não se excluem, mas que se conflitam na fronteira. A ambição, a ganância tem sua marca registrada na história ‘oficial’ pelo êxito do projeto de colonização, retratada em forma de ‘progresso’. Os sonhos não são contados. Muitos deles, nem mesmo deram certo – “Eles vieram pra cá e o sonho deu tudo errado, [...]. Eles (os pais) vieram atrás do sonho do Eldorado, de uma vida melhor, mas deu tudo errado” (IPÊ AMARELO, Depoimento 2016).

69 Ênio Pipino, um dos empresários colonizadores de Sinop, era chamado de “O semeador de cidades” (Cf. SANTOS, 2011). Há também revistas e jornais da época que fazem alusão à Sinop – uma cidade semeada no coração da Amazônia, de acordo com fontes históricas compulsados nos Acervos da Colonizadora Sinop e no Museu Histórico de Sinop.

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Deste modo, corroboro com Martins (2016, p. 132) quando sugere que “A história do recente deslocamento da fronteira é uma história de destruição. Explico ao senhor: o Mas é também uma história de resistência, de revolta, diabo vige dentro do de protesto, de sonho, de esperança.” Neste sentido, homem, os crespos do este trabalho “se move no território dessa contradição” (MARTINS, 2016, p. 132). É sobre este território, que homem - ou é o homem pretendo discorrer, sobre um caminho, que ao seu meio arruinado, ou o homem havia um sonho, ou muitos sonhos, mas que também dos avessos (ROSA, havia a ambição, talvez esta fosse também a ‘pedra’ do 2015, p. 26). caminho70 da floresta, a pedra até os dias de hoje do caminho por um ‘tratado de pássaro’ do Manoel Barros.

E, neste caminhar da vida, naquilo que se constituía sonho, era ela ‘a esperança’ que direcionava o trajeto, a esperança do sonho no olho da vida - A esperança vinha à frente!71 Tal esperança que movia os desejos dos corpos de centenas de trabalhadores me põe a refletir, e recordar-me das minhas próprias memórias, das esperanças dos meus pais quando deixaram o lugar em que vivíamos no Sul do país. Desta reflexão, que de certa forma me faz sofrer, ora me vejo nas recordações do outro, ora escrevo, ora me entristeço, ora sinto, sinto com todo o meu corpo o meu mais profundo silêncio.

E no mais turbulento silêncio que me assombra de vozes e sons – de todos os tipos: que vem da floresta, das águas, do choro da criança- índia, do barulho dos tratores e motosserras, do ruído das armas de fogo, do canto dos pássaros que me acompanham, do choro da minha mãe ainda presos nas memórias de infância, intento, assim como Passos (2003) escrever do meu silêncio, daquilo que o meu grito primal clama para ser ouvido, uma vez que “de meu silêncio ainda mais pesado, havia (há) um grito primal! Afinal de contas o silêncio nunca é o vazio: o silêncio transcende a ideia de se abster de falar [...]” (PASSOS, 2003, p. 137). Neste sentido, “O silêncio é ‘assim ‘respiração’ (ou arquejo) da significação; um lugar de retrocesso necessário para que se possa significar, para que o sentido tenha sentido. Reduto do possível, do múltiplo” (D RUETTA: 1998, apud PASSOS, 2003, p. 137).

70 Em referência ao poema No meio do Caminho de Carlos Drumond de Andrade (2013). 71 Em referência ao subtítulo da Dissertação de mestrado de Oliveira (1983).

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Silencio e então compreendo que “com as palavras se podem multiplicar os silêncios” (BARROS, 2010, p. 477), e nesta multiplicação de silêncios, neste reduto do possível que o silêncio me permite ressignificar a minha experiência, as palavras surgem e assim, falo daquilo que vi, que experimentei, dos saberes que construí e que por eles já não sou mais a mesma e que por eles, sei que daqui a pouco já serei outra vez diferente, transformada por potências, por fluxos, pelo devir. E então, como Scudder (2013) intento escrever:

[...] sobre o que experiencio e experimento. Sinto, saboreio, ouço, vejo, toco os territórios pretéritos e presentes que acesso, que ora me invadem e ora são por mim invadidos. Territórios que invoco a partir do lugar e do ritual da memória, que traz corpos, palavras, conceitos, subjetividades, que até agora, há poucos instantes, jaziam em paz em tumbas escriturais à ressurreição, ao tempo do agora, à atualidade. (SCUDDER, 2013, p. 4)

E destes novos agenciamentos, dos fluxos contínuos e mutantes que me permito, nasce à entrega, o querer-dizer do que não é agradável face à vida. Alma de poeta sofre com as dores do mundo, com as dores da vida. É processo de aprendizagem e de desconstrução contínua - dizer do belo e do horror, dizer do que faz viver e do que faz morrer. É estar entre, experimentar da doçura e da amargura. É viver na fronteira, compreender o solo e o múltiplo de uma linha abissal, é estar na liminaridade de um mundo que se faz mundo justamente pelas ambivalências que com-vivem harmo e desarmonicamente. Estética da vida, poiesis da existência. Vida que pulsa.

E como sugere Guimarães Neto (2002, p. 21):

Nesse cenário apreendido, qualquer um de nós poderia ser preso ou roubado pelo tempo da dor, da alegria, da esperança; do sentimento de revolta do colono, da mulher, da criança. E sobretudo da sua resistência. Difícil foi, e continua sendo, passar para a linguagem escrita a significação da experiência de todas as coisas vistas e sentidas. É como se as palavras não fossem feitas para representar tragédias anunciadas. Mas o artifício da linguagem guarda inúmeras surpresas, mesmo quando remete ao desafio de escrever sobre o aviltamento humano.

Contudo, desafiando-me a escrever este Canto em que discorro sobre o aviltamento humano, o que posso afirmar é que ele não me agrada como ser humano, que sente, que ama. No entanto, creio que não se pode escrever em uma pesquisa somente do que nos faz sentirmos bem. Nem a vida, nem a pesquisa são constituídas apenas da beleza humana, o

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velho ditado popular de que ‘nem tudo é um mar de rosas’, vale também para o processo de pesquisar e de escrever sobre o que se pesquisou, seria negligenciar o olhar-ave do pesquisador. Exposto isto, pontuo sobre o ‘mar turbulento e sem rosas’ do movimento territorial da Amazônia tendo a frente políticas pensadas e executadas para ações de transformá-la na maior fronteira agrícola da América Latina (Cf. MARTINS, 2016). Políticas estas executadas por procedimentos que dizimaram vidas, que destruíram fauna, flora, na qual a ambição e ganância imperavam - castigando, torturando tudo e todos que viessem ‘atrapalhar’ o ‘empreendimento’ de ocupar os espaços ditos ‘vazios’ demograficamente na floresta amazônica. Diante disso é interessante reforçar que a história da dinâmica da ocupação Amazônica brasileira é marcada por diversas fases72 ocorridas em momentos históricos distintos, porém simultâneos.73 Entretanto, discorrerei sobre a fase mencionada - de transformação da Amazônia em uma fronteira agrícola, espaço e tempo que minha pesquisa se localiza, a fim de como ensina Certeau (1982) trabalhar historicamente em um limite, reconhecendo toda a fragilidade de se fazer história, e sobretudo, uma história menor. Na chamada Era Vargas74, houve o início de uma política pública voltada para a ocupação territorial da Amazônia, a chamada ‘Marcha para Oeste,75’ qual tinha como objetivo principal promover a expansão econômica e o tão ambicionado ‘progresso’ do país. Para Vargas, o significado da Marcha para o Oeste representava: “O verdadeiro sentido de brasilidade [...]” (VARGAS, 1943).

Em um dos seus discurso de campanha para o seu segundo governo, Vargas fala sobre a ‘necessidade de povoar a Amazônia, retratando tudo o que viria a ser o processo de

72 De acordo com Picoli (2005b), a ocupação do território amazônico teve início no século XVI, sem, no entanto, apossar efetivamente da região, sendo uma descoberta espanhola e uma conquista portuguesa, no intuito de aproveitar o grande potencial de recursos florestais e minerais. 73 De acordo com Picoli (2005b, p. 56), dentre as fases de ocupação da Amazônia, destaca-se o período da mineração do ouro, desencadeando um movimento acentuado de ocupação devido às descobertas auríferas; o tempo do extrativismo, principalmente do látex, cujo produto passou a projetar a Amazônia brasileira ao mercado mundial, no momento conhecido como ciclo da borracha73, tendo este um contínuo aumento desde 1827 e estendendo-se significativamente até 191273. Outra fase refere-se ao governo anteriormente citado, de Getúlio Vargas, com o projeto que viria a transformar a Amazônia numa grande fronteira agrícola. 74 A era Vargas é assim conhecida pelo fato do Presidente Getúlio Dorneles Vargas ter governado o país entre os anos de 1930 a 1945 e posteriormente retornado em um segundo mandato (1950-1954). 75 A Marcha para Oeste foi uma política do governo de Vargas, nascida em 1943 e que incentivava a migração para a região central do Brasil, na perspectiva de ocupar os “espaços vazios", garantindo a segurança das fronteiras e gerando riquezas, de acordo com o discurso político em voga.

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‘ocupação’ para agregar o ‘progresso’ da Pátria e, nas entrelinhas do seu discurso, é possível identificar quem pagaria o preço por tal ‘tempestade’, como chamaria Walter Benjamin em ‘O anjo da história’. Elenco alguns trechos do discurso proferido pelo então Presidente da República Getúlio Vargas em Manaus, no dia 20 de agosto de 195076, onde o mesmo instiga sobre a ‘necessidade’ de povoar os ‘espaços vazios’ da Amazônia:

Povo do Amazonas, trabalhadores do Brasil,

Aqui me tendes de novo, pronto a lutar pelo vosso bem-estar e vosso progresso. Grandiosa e quase despovoada hoje, a Amazônia há de ser um dia o nosso maior celeiro. Estou convencido de que um ônus da grandeza é, precisamente, o de despertar invejas, acender cobiças e insuflar ambições. Num mundo tão vasto, ainda há dois séculos escassamente habitado, mas cuja população cresce em progressão nunca dantes vista, o vale amazônico constitui, atualmente, a maior reserva em bloco ainda por povoar e explorar. [...] Em vez da Amazônia internacionalizada, que pretendem alguns poucos brasileiros mal orientados, levarei avante a ideia antiga de uma Amazônia bem brasileira, interessando às nações fronteiriças e promovendo a integração econômica e social da bacia do grande rio. Não é com europeus ou povos de outras latitudes que domaremos o caudal gigantesco e o séquito dos seus poderosos afluentes. Será entre nós, com os brasileiros de todo o país, gente adaptada ao solo e à natureza peculiar da linha equatorial, que dividiremos os encargos atuais. Estabeleceremos facilidades comerciais e um estatuto especial para possibilitar o esforço comum na reabilitação da região prodigiosa. Esse é o meu programa, essa a minha ideia para revigoração do nosso vale sem igual. [...] Nas outras questões que dizem respeito, administrativamente, ao vosso estado, quero

76 Discurso pronunciado durante a campanha eleitoral, que teve início em nove de agosto em Porto Alegre e levou Vargas a vários estados do país. In: CÂMARA DOS DEPUTADOS. Getúlio Vargas (organização, Maria Celina D’Araujo). — Brasília: Câmara dos Deputados, Edições Câmara, 2011.793 p. – (Série perfis parlamentares; n. 62). p. 654-657. Disponível em:bd.camara.gov.br/bd/bitstream/handle/bdcamara/7264/getulio_vargas.pdf Acesso em 21 abr. 2017 (grifos meus).

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reafirmar-vos que persisto nos planos antigos. O grande inimigo da vossa prosperidade é, sem dúvida, o deserto, é a fraqueza dos índices demográficos. A grande lei do progresso é a lei da divisão do trabalho. E só nos organismos complexos é possível o aproveitamento rápido do potencial econômico. O homem só, isolado como Robinson Crusoé, é o homem perdido. Vivemos socialmente, progredimos em sociedade. Assim, o que necessitamos é evitar a dispersão e promover o aglutinamento das populações em pontos estudados previamente e aos quais seja possível dar assistência de toda ordem [...] Instituir-se-ão núcleos de colonização em locais adequados, em que os trabalhadores receberão assistência médica e técnica, além do fornecimento gratuito das terras devolutas e das ferramentas necessárias ao seu labor. Povo do Amazonas, revendo a Amazônia, sinto fortalecida a convicção de que a grandeza futura do Brasil está guardada nas suas terras fertilíssimas, cobertas de vastas florestas e regadas por caudalosos rios. Não sou homem de vãs promessas. Por isso mesmo vos afirmo: se voltar ao supremo posto de chefe da nação continuarei a impulsionar, sem tréguas, o progresso da Amazônia, certo de trabalhar pelo engrandecimento de todo o Brasil.

Tal discurso abre margens para grandes e profundas discussões, entretanto, pontuarei algumas questões na intenção de associar tal discurso as questões retratadas no início desta seção a toda devastação da Amazônia, aos modos de relação com a Terra até então no sentido biófito para o então estilo necrófito de concebê-la, aos genocídios indígenas apresentados no Relatório Figueiredo, à todo processo violento que fora a ‘ocupação’ territorial da Amazônia para transformá-la num imenso celeiro. A ambição-daninha que me refiro, ou a pedra no caminho ‘por um tratado de pássaro’, surgia a priori das convicções governamentais de que era preciso transformar a Amazônia numa grande fronteira agrícola, era preciso romper com o cenário de uma ‘floresta da contemplação,’ para um ‘cenário de exploração racional, objetivo, produtivo’ em nome do ‘engrandecimento da Pátria.’ Diante disto, Vargas convoca os brasileiros, em especial àqueles que fossem adaptados ao trabalho com o solo para povoar os espaços ditos ‘vazios demograficamente’, e com isto

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‘dá’ ao povo uma ‘nobre’ missão – a missão de povoar tal região, para vencer o inimigo que impedia o progresso da região: o deserto, que em seu ideário estava na fraqueza dos índices demográficos. Neste cenário, Getúlio Vargas “jogando o peso de tal missão nos ombros dos trabalhadores [...], convocava a nação a participar do esforço heroico da conquista da Amazônia - ressuscitando-se o ‘espírito do bandeirante’ no corpo do trabalhador brasileiro” (GUIMARÃES NETO, 2002, p. 49). Assim, para Vargas “povoar e ocupar o território eram questões de soberania da aurora República. Mas, para isso se concretizar, era necessário atrair os nascentes cidadãos republicanos e democráticos para os distantes lados deste berço esplêndido Brasil” (TOMÉ, 2006, p. 5), Faz-se relevante pontuar que outras tentativas de ocupação territorial na Amazônia promovida de forma estatal, não haviam tido êxito na Era Vargas e nem anterior aos seus governos, no entanto, era ‘questão de Estado’ povoar para agregar o que viria a ser a produção capital de tal região à economia nacional. Neste cenário, Vargas remete novos esforços para então ‘enfrentar’ o inimigo do progresso amazônico: ‘a falta de povoação’. E, estrategicamente iniciou-se uma forte campanha para atrair colonos principalmente do sul do país que tinham uma tradição de imigrantes europeus no trabalho com o cultivo de lavouras e de diferentes culturas. Tudo fora minuciosamente planejado, repleto de estratégias, inclusive de quem seriam os novos ‘escolhidos’ para migrar para a ocupação da nova fronteira agrícola, no sentido de ‘garantir’ finalmente o sucesso do empreendimento político-econômico. Segundo Siqueira et al (1990, p. 255):

O projeto getulista impunha o estabelecimento de trabalhadores ‘civilizados’, ou seja, desejosos de progredirem. Para isso deveriam trabalhar de maneira produtiva, ordeira e sem conflitos. Os colonos preferidos foram os migrantes da região Sul do Brasil, pois possuíam de acordo com a visão reformista de Vargas, uma mentalidade empresarial, europeia e, sobretudo, porque estes migrantes, além da experiência que possuíam no trato com a terra, traziam, quase sempre, um pecúlio que os auxiliariam na organização inicial do empreendimento.

Neste contexto, como explica Barrozo (2008) a partir da década de 1960, dando continuidade ao projeto de ocupação territorial de Vargas, os militares também preferiam

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ocupar a Amazônia com agricultores do sul, que tivessem ‘vocação para a agricultura’ e que melhor atendessem às suas expectativas. Deste modo, quando os nordestinos migraram na mesma época para a região da fronteira amazônica, alguns foram assentados em projetos do INCRA, ao longo da rodovia Transamazônica, quase todos no trecho da estrada entre Marabá e Itaituba e no território federal de Rondônia, entre Vilhena e Ji-Paraná. De acordo com os estudos sobre o processo de integração da Amazônia, os nordestinos foram chamados a trabalhar nas construções de estradas, rodovias, enquanto aos colonos sulistas foi atribuída a ‘missão’ de preparar as terras da floresta para o cultivo de lavouras. Trata-se de um processo de colonização seletivo e excludente, repleto de estratégias e intencionalidades para atender um projeto maior que era o projeto do regime militar. Martins (2016) explica que o governo militar socializou os custos da ocupação capitalista na Amazônia, transferindo desta forma, para toda a sociedade o preço de uma não- realização de uma reforma agrária, reivindicada nas pressões sociais que antecederam o Golpe de Estado – “Golpe que fora dado para conter uma suposta revolução agrária, de orientação comunista, levada a cabo por camponeses pobres, sobretudo do Nordeste do Brasil” (MARTINS, 2016, p. 76) Contudo, Barrozo (2008, p. 22), pontua que é possível inferir que “apenas dois anos depois da criação do INCRA, o Governo Federal permitiu à iniciativa privada ‘complementar a ação do INCRA, desenvolvendo projetos de colonização privada na Amazônia”. Em Mato Grosso, por exemplo, em poucos anos, as empresas de colonização privada se apossaram de milhões de hectares de terras devolutas. Embora tivesse sido planejado pelo governo federal e ainda que o território dispusesse de milhões de hectares de terras devolutas, a (re) ocupação de Mato Grosso, através da colonização foi executada principalmente por empresas de colonização privada (BARROZO, 2008, p. 22). Assim, a realidade foi diferente do discurso político em voga, uma vez que o que fora propagado até então é que as extensas terras da Amazônia que deveriam, assim como as políticas públicas implantadas para tal atender os pequenos agricultores do sul, excedentes populacionais daquela região expulsos pela modernização dos latifúndios, nas décadas de 1960 e 1970, e os flagelados da grande seca do Nordeste, de 1970, tiveram outro destino, sendo estas fornecidas pelo próprio INCRA, responsável pela reforma agrária no Brasil, às grandes empresas nacionais e internacionais, que passaram a investir na região através de

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projetos colonizadores, industriais, agropecuários e de mineração. O que Ianni (1979) denomina de um movimento de uma “Contrarreforma agrária”. Não apenas grandes extensões de terras foram concedidas às iniciativas privadas como toda uma estrutura fora criada para favorecer o empresariado a investir e desenvolver o ‘progresso’ na região. De acordo com Souza (2006) foram criados órgãos específicos para direcionar a instalação e implantação de projetos que visavam a expansão da região, dentre eles: Superintendência para o Desenvolvimento do Centro-Oeste (SUDECO), Superintendência para o Desenvolvimento da Amazônia (SUDAN), Banco de Crédito da Amazônia, (BASA), Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (INCRA) e por outros órgãos liderados pelo Governo Federal, que incentivavam a aquisição de terras, promovendo o deslocamento de grande número de trabalhadores migrantes e da iniciativa privada, sendo que esta seria beneficiada por terras devolutas do Estado por investirem na região. Como explica Barrozo (2008) a SUDAM e o BASA, através de incentivos fiscais e crédito subsidiado, ofereceram vantagens irrecusáveis para os empresários do sul-sudeste se instalarem na Amazônia. Nas palavras do autor, “centenas de empresas, atraídas pelos “incentivos fiscais”, pelas terras abundantes e de baixo custo, e pelo crédito farto e barato, apresentaram projetos à SUDAM, dos quais muitos foram aprovados”. (BARROZO, 2008, p. 20). Por outro lado, os trabalhadores – colonos do sudeste e em especial do sul, vendiam o pouco que tinham para poder se deslocar de suas terras de origem, atraídos pelas propagandas de terras férteis e pelo deslumbramento dos incentivos fiscais financeiros de enfim ter uma pelo suor do trabalho. Guimarães Neto (2002, p. 88) relata que, sob o discurso da necessidade de “ocupação nacional do espaço amazônico, o empresariado iria apropriar-se de grandes extensões de terras, assim como usufruir dos benefícios financeiros”. Com isso, a estratégia política para o controle das terras favorecia a colonização particular, responsabilizada por “desenvolver a região”. No âmbito dessa política, as regras estavam dadas: a colonização não deveria limitar- se à ação governamental (GUIMARÃES NETO, 2002). Ainda, há que se dizer das campanhas publicitárias produzidas para atrair pessoas para migrar para a Amazônia, quais contribuíram para o êxito de todo projeto. A figura a seguir, trata-se de um cartaz utilizado pela SUDAM para propagar o “Eldorado Amazônico”, no qual

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oferecia créditos ‘facilitados’ para a aquisição de terras nos estados que formavam a Amazônia brasileira. O slogan “Chega de lendas, vamos faturar!” propagava um discurso ufanista do progresso, do enriquecimento certo, de um ‘tesouro à sua espera’, qual de forma convidativa dizia: “Aproveite. Fature. Enriqueça junto com o Brasil”.

FIGURA 6:CARTAZ DE DIVULGAÇÃO DA AMAZÔNIA, PUBLICADO EM 30 DE DEZEMBRO DE 1970

FONTE: REVISTA VEJA, ACERVO PARTICULAR, 2017.

Além disso, para que o projeto entre Estado e Empresas pudesse ter êxito foram necessários planos estruturais como por exemplo, as condições básicas de infraestrutura criadas pelos militares. Foram criados projetos desenvolvimentistas, como o Plano de Integração Nacional (PIN) que permitiu a construção das rodovias Cuiabá-Santarém, a Perimetral Norte, a Transamazônica, além do oferecimento de grandes incentivos fiscais à indústria e à agricultura, viabilizando “a continuidade do processo de ocupação das terras e a

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expansão da agricultura em Mato Grosso, estreitando as ligações deste Estados com os demais estados da Federação”. (SOUZA, 2006, p. 40). Em resumo, é possível discernir que a partir de 1964 com a Ditadura Militar a fase de integração da Amazônia se intensificou no que se refere ao movimento de interiorização do país, de modo a ocasionar transformações significativas na sociedade brasileira, principalmente devido à expansão e modernização fundiária, entretanto, o que há de ser considerado e destacado é que não foi um processo nada pacífico, ao contrário, todo movimento para que tal projeto tivesse êxito custou o desmatamento desenfreado da floresta, a extinção de centenas de espécies da fauna e da flora, as vidas de tribos indígenas inteiras. Na Amazônia neste processo, surgiam novos tipos de moradias e ao mesmo tempo era povoada de milhares de covas no ‘anonimato’. A transformação da Amazônia numa grande fronteira agrícola se tornou também passível de recepção de grande parte da população excedente de outras regiões do país, expulsa pela economia rural (Cf. SOUZA, 2006). Deste modo, era destinado à novos bandeirantes a ‘missão’ de desbravar a Amazônia, o olhar militar lançava-se então, para a população excedente do sul do país que como mencionado no início desta subseção, teriam, na convicção dos militares a tradição e a experiência do trato com a terra. Sobre isto, Guimarães Neto (2002, p. 52) enfatiza ainda que:

O governo militar nesta perspectiva, se apresenta como o guia maior dos “modernos bandeirantes” para a efetiva incorporação da Amazônia ao território nacional, na realização de um “Brasil Grande”. A “vocação de grandeza”, estigmatizada no governo Médici, “o compromisso com o desenvolvimento”, a “missão nacional” da qual estava imbuído o regime militar, exigia, afinal, que todo cidadão assumisse a sua “brasilidade”.

As razões que levariam esse excedente populacional a migrar para Mato Grosso, e outros estados da Amazônia brasileira foram similares, relacionados ao cultivo agrícola, como explica Barrozo (2008), por exemplo, no Rio Grande do Sul, em especial nas áreas de colonização com imigrantes italianos e alemães, onde os problemas principais eram o minifúndio e o esgotamento da fertilidade do solo. Com isto, para modernizar a agricultura na região, o governo propôs na época a saída de milhares de agricultores, oferecendo-lhes lotes de 100 a 200 hectares, disponíveis nos estados de Mato Grosso e no território federal de

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Rondônia. Ainda, o autor enfatiza que com a saída desses minifundiários as pequenas propriedades foram reagrupadas, viabilizando a mecanização, uma das condições para a modernização das culturas de trigo e soja. Já no estado do Paraná, como explica Barrozo (2008), o problema foi a superprodução do café, cujos preços estavam caindo no mercado internacional devido ser a oferta superior à demanda. Finalmente, Barrozo (1992, p. 45) ressalta que na Amazônia mato-grossense como sabido e anunciado neste Canto, não havia o tal vazio demográfico tão salientado nos discursos governamentais desde Vargas aos militares, ao contrário, ali habitava e trabalhava uma população nativa que foi expulsa, expropriada. Segundo o autor, no caso das populações indígenas, muitas foram dizimadas e tomadas suas terras e até mesmo massacradas. O que houve foi um total processo de expropriação, violento e fatal, qual exterminou tribos inteiras, sacrificou inúmeras vidas de pequenos seringueiros, castanheiros, caboclos, posseiros e tantos outros que podiam ‘atrapalhar’ o êxito do projeto de ‘ocupação territorial da Amazônia, ocupação em termos de economia, de enriquecimento de poucos e de empobrecimento, dor e morte de muitos. Diante das análises que fiz a partir dos estudos de historiadores, antropólogos, sociólogos, é possível inferir que os povos indígenas teriam sido grandes alvos e talvez os mais massacrados pelo regime militar e toda a violência e barbárie cometida teria sido motivada primordialmente pela tomada das terras destes povos.

FIGURA 7: MAUS TRATOS AOS POVOS INDÍGENAS DURANTE A DITADURA MILITAR

FONTE: GREEN ME77, ACERVO PARTICULAR, 2017.

77 Matéria sobre - Comissão Da Verdade: A Ditadura Militar incidiu também sobre os povos indígenas. Disponível em: https://www.greenme.com.br/informar-se/biodiversidade/973-comissao-da-verdade-a-ditadura- militar-incidiu-tambem-sobre-os-povos-indigenas Acesso em: 23 abr. 2017.

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Contudo, as vidas daqueles que habitavam a região foram desrespeitadas, violentadas, sacrificadas. Os espaços estavam vazios de produção econômica, mas já estavam ocupados por outros povos, o discurso de ‘ocupação’, é um discurso totalmente infundado, qual desconsidera qualquer outra forma de vida na floresta que não seja o das frentes pioneiras, do movimento de interiorização, como explicam Carvalho et al (1990, p. 259):

Ocupar os ‘espaços vazios’ existentes na região Amazônica seria uma boa solução para minimizar os sérios conflitos urbanos e rurais que explodiam em diferentes pontos do território nacional. Como sabemos, os espaços estavam vazios, pois neles nada se produzia, porém eles já possuíam donos.

Neste contexto, fica muito esclarecido como explica Guimarães Neto (2002) que no âmbito das práticas de controle do espaço da Amazônia seja pelo Estado, seja pela iniciativa privada que a questão do domínio da terra passa fundamentalmente pelo conflito social. Nas palavras da autora:

O poder dos setores sociais privilegiados se exerce pelo poder econômico e político, que se utiliza, na maioria das vezes, do poder de expulsão, através de grilagens, cerceamentos de terras etc., do poder de corrupção, mediante titulação falsa e outros instrumentos jurídicos, e do poder sobre os trabalhadores, pressionando-os a se fixarem em um quadro produtivo ou tornando-os sempre disponíveis, sem incluí-los (GUIMARÃES NETO, 2002, p. 159, grifos da autora).

Foto: Valmir Cordasso, 2015.

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Tais domínios pontuados por Guimarães Neto vêm sempre acompanhado de um discurso que também possui um poder – o poder de legitimação de toda ação. Neste caso, o discurso político em voga era de atribuir aos trabalhadores à ‘colonização como missão’, imbuir o espírito bandeirante, conquistador, guerreiro nos corpos daquelas pessoas. Então, o migrante trabalhador, ressignificava para si o discurso do outro (CERTEAU, 1982). O colono tomava para si o que o outro lhe outorgava: se tornar o novo bandeirante. Assim, aos ‘novos bandeirantes’, aos colonos trabalhadores primordialmente do sul do país era jogado em seus ombros a ‘missão’ de atender à Pátria, uma vez que era preciso construir o ‘grande Brasil amazônico’ sob versos de um hino em que ‘um filho teu não foge à luta’, e que para tanto, era preciso que os homens ordinários (Cf. CERTEAU, 1998), se revestissem com seu manto desbravador, com coragem, com amor à família, fé em Deus, obediência e servilidade à Pátria e deste modo, adentrassem para a ‘conquistar’ a floresta. Neste sentido, sob tal discurso o processo de integração na Amazônia se revestia e persuadia homens, mulheres e crianças a deixar seus locais de origem rumo ao chamado ‘mundo desconhecido,’ ao novo ‘Brasil amazônico’. Famílias inteiras vinham em sua maioria imaginando, sonhando em encontrar o ‘Eldorado’, a ‘Terra Prometida’, um futuro promissor em que a família junta, unida no trabalho, conseguiria ter uma vida diferente daquela em que a pobreza, a miséria imperava no sul. Na bagagem, algumas modestas mobílias, alguns animais domésticos, alguns animais de produção para a sobrevivência, alguns “trapos de lembranças” (GUIMARÃES NETO, 2002) e muitos sonhos. Sonhos carregados de muita esperança. Como sugere Oliveira (1983, p. 74), a nova fronteira surgia como “esperança viva ao camponês de poder continuar trabalhando e vivendo a terra, isto é, a esperança vem na frente”. O sonho era o olho da vida, como anunciou Mia Couto e acrescento aqui, a ambição era o olho da morte. No entanto, quero acreditar que há sempre espaço para o sonho, para a esperança, que há sempre muito espaço para o amor. Há de haver sempre uma chama viva em nós de resistência, de luta por tudo e por todos e todas. Quisera nós um dia alcançarmos a sabedoria dos pássaros e seguir o exemplo de um ‘Compêndio para o uso humano’. A esperança continuará vindo à frente, enquanto acreditarmos que a humanidade ainda é possível, enquanto concebermos fenomenologicamente a vida, o outro, o mundo - “Um coração

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sensível gosta de valores frágeis. Comungam com os valores que lutam, portanto, com a luz fraca que luta contra as trevas (BACHELARD, 1989, p. 14). Acrescentamos modo bricoleur: valores de luta, valores de amor, valores de esperança.

Foto: Valmir Cordasso, 2013.

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2.4 Sinop-MT: “um passo de conquista na Amazônia”78

O abandono do lugar me abraçou de com força. E atingiu meu olhar para toda a vida. O abandono do lugar me abraçou de com força. E atingiu meu olhar para toda a vida. Tudo o que conheci depois veio carregado de abandono. Não havia no lugar nenhum caminho de fugir.

Manoel de Barros

“Não havia no lugar nenhum caminho de fugir”. Este verso de Manoel me remete à vários testemunhos que ouvi durante alguns anos em que pesquiso o mesmo território, a mesma temporalidade histórica da pesquisa, tal verso me soou diversas vezes diante de depoimentos como este:

Você pode perguntar para os pioneiros que 90% deles só não voltaram embora não por que viram que aqui teriam oportunidades e que aqui seria uma cidade do futuro, é por que eles não tinham condições de voltar de onde vieram, gastaram tudo o que tinham pra vir e depois não tinham como voltar, além da distância imensa (ANDIROBA, Depoimento 2017).

Assim, “o jeito era encarar o novo lugar que era bem diferente daquele que a gente imaginava nas propagandas” (MIGRANTE C, Depoimento 2012). Diante dessa memória Yi- Fu Tuan (1983, p. 3) nos diz que “espaço e lugar são termos familiares que indicam experiências comuns. Vivemos no espaço [...]. O lugar é segurança e o espaço é liberdade: estamos ligados ao primeiro e desejamos o outro. Não há lugar como o lar. O que é o lar? É a velha casa, o velho bairro, a velha cidade ou a pátria”

Nesse contexto, o lar, a nossa morada “se conecta ao ato de preservar, para muito além da dimensão positiva, e a casa é a imagem primeira dos devaneios poéticos, um lugar

78 Subtítulo faz menção à um jornal da época, Folha de Londrina, publicado em 06/11/1974, na cidade de Londrina, estado do Paraná, que trazia como título de capa: “Gleba Celeste: um passo de conquista na Amazônia.”

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primitivo de acolhimento e de intimidade entre a poética e o leitor” (SATO, 2016, p.17). Deste modo:

A casa é, evidentemente, um ser privilegiado; isso é claro, desde que a consideremos ao mesmo tempo em sua unidade e em sua complexidade, tentando integrar todos os seus valores particulares em um valor fundamental. A casa nos fornecerá simultaneamente imagens dispersas e um corpo de imagens. Em ambos os casos, provaremos que a imaginação aumenta os valores da realidade (BACHELARD, 2003, p. 23).

Deste modo, refletindo sobre as narrativas é possível imaginar a dimensão das situações pelas quais muitos migrantes passaram no novo lugar diante daquilo que haviam deixado: suas casas e daquilo que haviam planejado - muitos dos sonhos que se tornaram desilusões quando em Sinop: “cidade-semente do coração da Amazônia”79 chegaram e, não tendo meios, condições para voltar para os lugares onde viviam, o jeito era se adaptar no novo espaço, deixar-se que mesmo diante de todas as adversidades, o abandono do lugar os abraçasse com força, pois não havia nenhum caminho de fugir. Sinop seria então, o lugar do abandono que atingiria seus olhares para toda a vida. Reinventaram vias artes de fazer (Cf. CERTEAU, 1998), modos de se viver, de se abandonar no olho de toda uma vida, transformando tal espaço – um lugar praticado80 (Cf. CERTEAU, 1998). Mesmo porque, tal espaço se consistiria na expressão das suas existências (Cf. MERLEAU-PONTY, 1999), para tanto, era necessário vivê-lo.

Neste sentido, saliento que, para Certeau (1998), tanto as noções de lugar (espaço próprio), como de espaço (lugar praticado) participam de um mesmo processo. Um lugar é, para o autor uma configuração de posição que ao mesmo tempo, também é espaço, carregando consigo as relações entre os sujeitos que ali convivem, que ali criam suas táticas

79 Faz menção à uma fotografia que ilustra uma faixa exposta nas ruas de Sinop no dia de sua fundação em 14 de setembro de 1974, onde traz a mensagem: “Sinop, a cidade-semente no coração da Amazônia saúda todos os visitantes.” 80 Certeau (1998) nos propõe as diferenças entre espaço e lugar. Importa-nos ouvi-lo: “Um lugar é uma ordem (seja qual for) segundo a qual se distribuem elementos nas relações de coexistência”. Aí se acha, portanto, excluída a possibilidade, para duas coisas, de ocuparem o mesmo lugar. Aí impera a lei do ‘próprio’: os elementos considerados se acham uns ao lado dos outros, cada situado num lugar ‘próprio’ e distinto que o define. [...] O espaço é o cruzamento de móveis. É de certo modo animado pelo conjunto dos movimentos que aí se desdobram. Espaço é o efeito produzido pelas operações que o orientam, o circunstanciam, o temporalizam e o levam a funcionar em unidade polivalente de programas conflituais ou de proximidades contratuais. (CERTEAU, 1998, p. 201-202)

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para jogar, para driblar as estratégias81 de uma ordem, fazendo deste modo que o espaço seja um lugar praticado. E, em Merleau-Ponty encontro fundamentos para dizer de que tempo e espaço se configuram simultaneamente como a manifestação da existência – da nossa própria existência interligada à existência do outro face ao mundo.

François Dosse (2004, p. 88) em faz uma importante consideração em relação a noção de lugar e espaço pelos autores que discuto aqui quando observa que “Certeau se apoiava na tradição fenomenológica, tal como a expressa Merleau-Ponty, quando distingue um espaço antropológico de um espaço geométrico. Desta forma, a noção de espaço remete a uma relação singular no mundo, à dimensão existencial de um lugar habitado”.

Diante disto, neste ‘lugar que ao mesmo tempo é espaço’ e neste tempo em estudo que ao mesmo tempo é espacialidade e então, manifestação da existência’, de relação com o mundo, a cidade de Sinop-MT se constituía.

Nota-se que para que se construísse uma cidade, fora necessário a intervenção humana. Então, para que isso fosse possível, para que a construção da cidade de Sinop pudesse ser consolidada, houve todo o processo apresentado anteriormente pelas frentes de expansão ou ainda frentes pioneiras como sugere Martins (2016) por se tratarem de faces da mesma expansão em momentos históricos distintos, fizessem todo o processo de abertura de estradas, de infraestrutura, de deixar a terra pronta para receber à colonização, fazendo todo o ‘trabalho’ prévio de reconhecimento, de abertura da mata, ‘retirando’ os povos que em tal espaço habitavam como os índios, seringueiros, possíveis posseiros, que não eram desejados na região por estas frentes, para que então, a ocupação territorial fosse efetivada e com isto, em sequência a economia se instalasse e se agregasse à produção do capital nacional.

81 Para Michel de Certeau (1998, p. 99), o conceito de estratégia propõe uma ação que presume a existência de um lugar próprio, “como algo próprio a ser a base de onde se podem gerir as relações com uma exterioridade de alvos ou ameaças”. Neste sentido, Certeau (1998, p. 100) explica que as estratégias exprimem um direcionamento ao que é exterior a este lugar próprio. Contudo, ao que chama de tática, esta leva à expressão de uma interioridade, uma vez que se define como: “[...] a ação calculada que é determinada pela ausência de um próprio. Então nenhuma delimitação de fora lhe fornece a condição de autonomia. A tática não tem por lugar senão o do outro. E por isso deve jogar com o terreno que lhe é imposto tal como o organiza a lei de uma força estranha”. No entanto, a distinção entre os dois conceitos se dá principalmente no modo de intervenção que se pode executar. Enquanto as estratégias são as formas capazes de produzir e impor, as táticas só admitem utilizar, manipular e transformar algo; são como: “[...] trilhas heterogêneas aos sistemas onde se infiltram e onde esboçam astúcias de interesses e desejos diferentes. “Elas circulam, vão e vem, saem da linha e derivam num relevo imposto, ondulações espumantes de um mar que se insinua entre os rochedos e os dédalos de uma ordem estabelecida”(CERTEAU, 1998, p. 97).

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FIGURA 8:VISTA AÉREA DE SINOP, 1974.

FONTE: COLONIZADORA SINOP, ACERVO PESSOAL, 2017.

Deste modo, a cidade de Sinop, lócus desta investigação, assim como suas cidades- irmãs da Gleba Celeste82, também é fruto da política de integração nacional da fronteira amazônica na década de 1970, pontuada no subtítulo anterior. A cidade nasceu a partir de um projeto de colonização privada83 pela empresa Colonizadora SINOP S.A.84, proprietária de uma extensa área na região norte de Mato Grosso denominada Gleba Celeste, localizada a 500 km da capital Cuiabá, na época pertencente ao município de Chapada dos Guimarães, conforme Portaria do INCRA Nº 1.553/197285.

82 A empresa colonizadora, em 1972, colocou à venda loteamentos da Gleba Celeste, primeiramente nas cidades de Vera e Sinop e, posteriormente, onde seriam instaladas as cidades de Santa Carmem e Cláudia. Estas cidades foram chamadas pelos colonizadores de ‘cidades-irmãs’ por terem sido fundadas na mesma época [uma sucessivamente à outra] e pela mesma empresa colonizadora. 83 De acordo com Clairay (2000, p. 13) “A colonização particular se realiza por intermédio de pessoa física ou jurídica, incluindo-se cooperativas de colonização, registradas como empresas de colonização no INCRA e que apresentem projetos para tanto. [...] a colonização pressupõe a criação de uma infraestrutura agrária, da qual o “Núcleo de Colonização” é a unidade fundamental para o estabelecimento de agricultura, caracterizada por um conjunto de lotes rurais e urbanos, integrados por uma sede administrativa, serviços técnicos e comunitários (Decreto n. 59. 428, de 27/9/66. art. 8º)”. 84 SINOP – Sociedade Imobiliária do Noroeste do Paraná. 85 Conforme Panosso Netto, 2000.

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Segundo Souza (2006, p. 112), “as terras da Gleba Celeste foram compradas pela Sinop Terras S.A. em 1971, ano em que o INCRA aprovou o projeto”. Entretanto, pontua Moreno (1999, p. 19, grifo do autor) que as terras foram compradas de terceiros, pois o governo de Mato Grosso já as havia “vendido”, e a atuação do órgão oficial de colonização foi, por isso, muito restrita. Para que o processo de colonização da Gleba Celeste fosse consolidado, este contou com dois grandes planos nacionais criados para este fim: o primeiro I PND (1972-1974) e o segundo, o II PND, lançado em dezembro de 1974, pelo presidente General Ernesto Geisel (1974-1979). Na ocasião do lançamento do programa governamental o presidente Geisel ressaltou que “o objetivo maior de todo o planejamento nacional é o homem brasileiro, nas suas diferentes dimensões e aspirações.” (O Estado do Paraná, 15 maio 1975, p. 8). Deste modo, atendendo às aspirações dos discursos militares de ocupação e integração da Amazônia como prova de amor à Pátria, a empresa colonizadora SINOP S.A., aliada ao Governo Federal e Estadual assumiu a responsabilidade de ‘sua parte’ na parceria firmada, assumindo todo o empreendimento na Gleba Celeste, como as obras de infraestrutura, medição e demarcação das terras, abertura de estradas vicinais, implantação de núcleos urbanos, instalações de serviço de saúde, educação, ações sociais e comerciais. Em contrapartida, os governos federais e estaduais ofereceram a partir dos órgãos e políticas criadas para tal finalidade, o compromisso de construção de rodovias, estradas, incentivos fiscais e políticas públicas criadas especificamente para a integração da Amazônia (Cf. TOMÉ; ROHDEN, 2017). Em referência ao subtítulo desta seção, trago para a discussão um trecho da matéria publicada no Jornal Folha de Londrina de 06/11/197486, que trazia como título de capa: “Gleba Celeste: um passo de conquista na Amazônia”. Dentre algumas informações que esse periódico oferecia aos seus leitores, elenco algumas que considero interessantes, nas quais descrevem a parceria firmada entre a empresa SINOP S.A. e governo federal para que o projeto de colonização da Gleba Celeste fosse consolidado:

A integração da Amazônia na dinâmica brasileira está hoje colocada em termos de imperativo exigido pela consciência nacional e estimulada pelos interesses dos poderes públicos. A partir deste consenso impôs-se sempre a

86 Também apresentado em minha Dissertação de Mestrado defendida em 2012 e publicada em 2016.

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busca de fórmulas para atingir-se o objetivo daquela vastidão. No imenso esforço, procurou-se observar a liberdade da iniciativa pioneira apoiada por forte complexo de estímulos gerados pelo Governo Federal, através da construção de infraestrutura de obras e de serviços, que já estão se constituindo – em garantias do êxito dessa dominação territorial. O decreto estadual do Governo de Mato Grosso, nº 2320, de 20 de Janeiro de 1956, permitiu a SINOP S.A. adquirir de particulares 369 mil e 17 hectares em região de florestas do norte mato-grossense. Um pedaço de papel, com timbre oficial, significava convite à colonizadora para participar de excitante empreitada. Começou assim a história do maior empreendimento já visto na imensidão do universo amazônico. [...] A partir desta verdade, a Sinop87 começou a sentir que na presença do Governo Federal com obras como a Rodovia Cuiabá-Santarém, a tarefa que se impunha abria uma clareira de perspectivas animadoras para os seus propósitos. No feixe de alternativas de colonização, a Sinop S.A. entendeu como válida a opção de desenvolver projetos de colonização ao longo daquela rodovia. Com sua experiência, conhecimento da terra e dos múltiplos valores que deveriam ser tabulados para que houvesse sucesso- igual a tantos outros – nesse empreendimento a que se lançava, adquiriu extensão territorial nas proximidades do quilômetro 500 da Cuiabá-Santarém. Dando nome de Gleba Celeste àquela área, cuidou desde logo de elaborar e apresentar ao Incra um projeto específico de Colonização [...] que haveria de permitir o acesso a propriedade por parte de pessoas de pequenas posses, ou então de grandes empresários. (FOLHA DE LONDRINA, 06/11/1974, p.1-3).

Neste cenário, é possível pontuar que o êxito da ocupação territorial da área se deu fundamentalmente entre o acordo firmado entre empresa-governos, efetivando deste modo, uma das áreas da fronteira amazônica, que de acordo com Teixeira (2006, p. 13, grifo da autora) tal expansão da fronteira:

[...] se constituía, para o Estado, num meio de garantir a posse do território e de controlar sua população. Desse modo, ao longo de toda a história do Brasil, o processo de ocupação se deu por etapas que “obedeciam” um movimento de leste para oeste, impulsionado pela produção de matérias- primas voltadas para o mercado externo.

Ainda, segundo a autora, tal processo de ocupação da região norte de Mato Grosso trouxe, por um lado, um significativo crescimento econômico no local, porém, à custa de impactos sociais e ambientais desastrosos, não só na área de seu entorno, como também na dinâmica econômica de outros estados do país.

87 Empresa Sinop S.A.

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E, como exposto no subtítulo anterior para conduzir todo o processo de colonização de Sinop o Governo Federal preferiu firmar a parceria com a empresa sulista, devido à experiência do chamado ‘colonizador’ Ênio Pipino em fundar cidades no sul, organizar o translado e a fixação de trabalhadores que conheciam o cultivo da terra (Cf. TOMÉ; ROHDEN, 2017).

Arruda (1997, p. 36): pontua que:

Os empresários do Centro-Sul [...] foram efetivamente os escolhidos pelo regime militar para reencarnar o espírito bandeirante, conhecedor e explorador dos sertões, a fim de levar adiante o projeto de colonização privada, ressuscitando dessa forma o projeto que tinha o propósito de ocupar e desenvolver os “espaços vazios” da Amazônia, como pontos avançados de desenvolvimento econômico e social, irradiando progresso para a região. Desta forma, fora muito pontuado e propagado a presença dos sulistas na nova cidade que surgia. Tanto nas narrativas dos migrantes entrevistados quanto em fotografias e material publicitário utilizado na época para atrair os migrantes, tais mensagens proliferam um discurso de um novo ‘sul’ do país transportado geograficamente para a floresta amazônica, no norte de Mato Grosso. A fotografia a seguir que registra o dia da fundação de Sinop (14 de setembro de 1974) exprime a mensagem da presença sulistas em terras do norte de Mato Grosso:

FIGURA 9: FAIXA EXPOSTA NA OCASIÃO DA FUNDAÇÃO DE SINOP, 1974.

FONTE: COLONIZADORA SINOP, ACERVO PESSOAL, 2017.

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Utilizando de um forte investimento publicitário, a empresa colonizadora iniciou simultaneamente ao processo de fundação da cidade, todo um processo de propagandas a fim de atrair colonos da Região Sul do país, que como mencionado, na concepção governamental em voga, tinham o perfil para colonizar tal espaço, uma vez que contavam com a experiência prévia em colonização, para migrarem e trabalharem com o cultivo de terras, inicialmente com a cafeicultura.

Deste modo, muitos migrantes - colonos, investidores individuais ou empresariais, estimulados pelas propagandas da empresa colonizadora e pelos incentivos do Governo Federal se voltaram para a conquista de novos territórios na busca de um futuro economicamente mais promissor. A grande parte desses migrantes vindos do Paraná, vieram principalmente “atraídos pelo baixo valor das terras e pela publicidade “Em terra livre de geada”88, uma típica referência ao clima inóspito da Região Sul do Brasil, onde a geada matinal queimava plantações inteiras sem que o agricultor tivesse meios de uma proteção mais eficaz” (TOMÉ; ROHDEN, 2017, p. 318). Diante deste movimento publicitário, os migrantes recordam-se muito das propagandas que eram veiculadas. Uma das migrantes entrevistadas lembra-se de um comercial que ouvia todas as manhãs em uma rádio no Paraná: “Eis que na rodovia Cuiabá- Santarém, surge a Gleba Celeste! Terra livre de geada, própria para o plantio do arroz, para o plantio do café, onde tudo que se planta colhe” (MIGRANTE A, Depoimento 2011).

O movimento publicitário fora todo muito planejado e articulado para atrair os migrantes. Comerciais em rádio, panfletos, revistas criadas para divulgar a Gleba Celeste quais traziam imagens de uma terra fértil, imbuídas de mensagens pontuadas no trabalho, na fé, na pátria, no futuro e sobretudo, na esperança. Na esperança ‘que vinha à frente’ - “Era uma terra de sonho de toda gente, onde se poderia até enricar, seria só ter força de vontade, fé em Deus e mãos à obra, mãe, pai, filho, que todas as dificuldades seriam superadas”. (GUIMARÃES NETO, 2002, p. 29, Grifo da autora).

A forte propaganda possuía a marca do progresso, idealizavam um ‘Eldorado’ cuja esperança tomava forças, os sonhos se projetavam e os desejos de futuro se reafirmavam.

88 COLONIZADORA SINOP S.A. Panfleto Publicitário. Década de setenta e oitenta.

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Como, explica Guimarães Neto (2002, p. 149), tais discursos pontuados no progresso apresentados nas propagandas “era uma marca indelével, presente em todos os lugares por onde se passava, direcionando condutas humanas, projetando a esperança no amanhã, refazendo a todo o momento o mito do possível".

“Meu pai ouvindo falar que aqui (Sinop) ganhava-se muito dinheiro, que era muito bom e tal, que a terra era promissora... então, ele disse: vamos arrumar as malas e ir embora para o Mato Grosso” (BROMÉLIA, Depoimento 2012), “Havia muita propaganda de que Sinop era o futuro e todo mundo estava vindo para cá, então nossa família veio também” (AÇUCENA, Depoimento 2012) Estes e outros depoimentos comumente aparecem nas narrativas construídas. A maioria dos migrantes concebiam nas propagandas a oportunidade de enfim ter a própria terra e viver dela:

Aí Seu Ênio Pipino, o colonizador, teve esta ideia de comprar esta terra aqui no Mato Grosso, então, meu pai com 8 filhos homens pequenos e 4 mulheres já adultas, ele comentava: a idade está chegando logo estes meninos serão adultos e eu ainda estou trabalhando de boia- fria para os outros. Aí, a única coisa que ele tinha era uma casinha, ele pôs a venda pensando em comprar um pedaço de terra maior em Mato Grosso [...]. Então, ele ficou todo entusiasmado com uma mata desta, para quem desbravou o Paraná, quem chegou no Paraná na época do mato, ficou todo entusiasmado, por que lá ele não tinha a terra dele, lá a terra era muito cara. Imagina, ele vendeu uma casa lá e comprou 50 alqueires aqui! (MIGRANTE A, Depoimento 2012).

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FIGURA 11: ABERTURA DE SINOP, 1973.

FONTE: COLONIZADORA SINOP, ACERVO PESSOAL, 2017.

FIGURA 10: DERRUBADA DA MATA, 1973.

FONTE: COLONIZADORA SINOP, ACERVO PESSOAL, 2017

No ano de 1972, a empresa Colonizadora publicou na revista VEJA uma matéria sobre o seu projeto de colonização em que descrevia todos os benefícios e garantias que estavam sendo preparados para a chegada dos migrantes, quais assumiriam os papeis de futuros trabalhadores da terra. Em tal reportagem, se destaca vantagens como: financiamento de material agrícola, uma cooperativa agrícola e comercialização dos produtos. Desta forma, O “sonho de enricar” (Cf. GUIMARÃES NETO, 2002) se tornava um sonho possível para o migrante que lia matérias, que escutava os anúncios, com este teor de notícias promissoras. Então, “a indecisão deixava de ser a regra e a identificação com o projeto do Governo Federal de integração nacional passava a ser visto como uma segurança de emprego garantido e melhoria do padrão de vida” (Cf. TOMÉ, ROHDEN, 2017, p. 321). Abaixo, selecionei um trecho da matéria citada, onde pontua as garantias que os colonos que migrassem para a Gleba Celeste iriam receber da empresa colonizadora:

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FIGURA 12: MATÉRIA PUBLICITÁRIA DA COLONIZADORA SINOP S.A.

FONTE: VEJA, SÃO PAULO, N. 205, 9 AGO. 1972.

Oferecida as ‘condições’ de financiamentos para a aquisição de lotes na Gleba Celeste e diante das garantias de sobrevivência, os colonos iniciavam a saga rumo ao encontro da concretização do sonho, consequentemente, muitos vendiam o pouco que tinham nos lugares de origem e com toda a família tomada de esperanças e muita fé iniciavam o trajeto até as terras da Gleba Celeste, em especial neste trabalho, à cidade de Sinop. A viagem levava em média dez dias da cidade de origem à Sinop. Muitas das narrativas descrevem o cansaço da travessia frente às situações de dificuldades como falta de alimentos durante a viagem, além dos receios diante do que poderiam encontrar frente ao desconhecido. A maioria dos migrantes utilizavam como meio de transporte o caminhão, como relata Andiroba (Depoimento 2017): “Vinha todo mundo em cima do caminhão, um monte de criança debaixo da lona, dias e dias na estrada e ainda estrada de chão” e o mesmo acrescenta: [...] eram muitos dias de viagem [...], não tinha comércio na estrada e também não tinha dinheiro para comprar nada. Viemos com cara e coragem. No caminhão tinha de tudo, além das famílias, dos poucos móveis, tinha de tudo – tinha galinha, cachorro, os animais que tinha pra trazer vieram por que aqui não ia ter mesmo” (ANDIROBA, Depoimento 2017).

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FIGURA 13: MUDANÇA DE UMA FAMÍLIA OU FAMÍLIAS CHEGANDO EM SINOP, 1973

FONTE: COLONIZADORA SINOP, ACERVO PESSOAL, 2017.

Diante do que fora o processo de colonização de Sinop, é interessante propor uma analogia à alguns acontecimentos da ocasião do ‘descobrimento’ e da colonização do Brasil, uma vez que muitas das ações são semelhantes e possibilita tal alusão de acontecimentos. De acordo com os estudos de Straub (2015) a primeira cidade da Gleba Celeste foi Vera, que recebeu este nome como forma de homenagear o primeiro topônimo pátrio, indicado por Pedro Álvares Cabral, ‘Terra de Vera Cruz’89. Ainda, segundo a autora que entrevistou funcionários da Empresa Colonizadora, os colonizadores da região, tendo à frente o Ênio Pipino, pretendiam homenagear as cidades fundadas com nomes de mulheres, Santa Carmem e Cláudia, excluindo-se Sinop, que é a sigla da empresa - Sociedade Imobiliária Noroeste do Paraná. Segundo os registros encontrados por Straub (2015) o colonizador Ênio Pepino, deixou escritos que demonstravam sua inspiração nas mulheres: “As mulheres dentro

89 Forma original da carta de Pero Vaz de Caminha

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da pureza de sua criação, são fontes de vitalidade na organização do bem familiar, contribuem, dão significado e tornam possível a visão de um futuro de paz e progresso”90. O progresso – palavra esta quase sempre proclamada nos discursos do colonizador Ênio Pipino e nos escritos de seus poemas. Em um de seus poemas escritos em 1979, para divulgar a Gleba Celeste em uma Revista produzida para tal finalidade, o colonizador discorre de forma ‘poética’ sobre o progresso que avançava em uma floresta que ‘dormia’, esperando ‘solitariamente’ para ser ‘descoberta’ para que então, abrissem em suas matas virgens clareiras e picadas para que fosse possível o ‘aceno das riquezas e da civilização’:

A Gleba Celeste era um mundo verde, dormindo, na solidão da Amazônia. Transformamos o seu rosto, abrindo clareiras e picadas na mata virgem. E nasceram os primeiros povoados, esperançosas cidades de hoje, crianças ainda, mas correndo, céleres, para o progresso. E lavradores enfeitaram de roças novas as terras. E templos de fé passaram a glorificar a Deus. E o comércio se tornou forte e a indústria já anuncia rolos de fumaça nas chaminés e gritos de sirenes acordando a distância. E neste novo mundo, esperançoso e feliz, crianças aprendem as suas primeiras letras e os jovens conquistam bancos colegiais. Como é bom alargar fronteiras de nossa Pátria! Como é dadivoso o ideal que se enfeita de realizações! Agora, a Gleba Celeste acena para o Brasil como novo mundo de riquezas e civilização – prêmio maior ao nosso ideal de plantar cidades, vendo a terra abrir-se em floradas e anunciar milagres da colheita. (ENIO PIPINO, 1979)

E deste modo as propagandas, os discursos se faziam: pontuados no progresso, na promessa da terra, na expansão da agricultura, do comércio, da indústria, no compromisso com os estudos dos filhos dos colonos, nos milagres da colheita. Promessas entrelaçadas à fé em Deus e tecidos na responsabilidade de como filhos da nação era preciso ‘alargar as

90 Poema de Ênio Pipino citado por Straub (2015).

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fronteiras da Pátria.’ As propagandas se apresentavam ao colono como um “novo mundo, esperançoso e feliz” (PIPINO, 1979) à espera do suor do seu trabalho. Outro fato curioso se dá ao dia da fundação oficial de Sinop em 14 de setembro de 1974, que para manter as tradições da época do ‘descobrimento’ do país, “repetindo o ritual do processo de ocupação do território brasileiro, a fundação da cidade foi marcada pela celebração da primeira missa” (SOUZA, 2006, p. 20).

FIGURA 14: MISSA DE FUNDAÇÃO DE SINOP PELO BISPO DOM HENRIQUE FROELICH, 1974

FONTE: COLONIZADORA SINOP, ACERVO PESSOAL.

É importante ressaltar também a figura de Ênio Pipino, o ‘colonizador’ em todo este processo. E, neste âmbito o termo ‘colonizador’ também relacionado à denominação concedida aos ‘colonizadores europeus no Brasil de 1500 se destinava ao empresário dos anos de 1970. No entanto, o termo colonizador, juntou-se à outro sentido também da história do país – ao sentido de um ‘moderno bandeirante’ em pleno século XX. De acordo com os estudos de Tomé e Rohden (2017), o Sr. Ênio era filho de imigrantes italianos chegados ao Brasil no final do século XIX, e apesar de residir, quando adulto, no estado do Paraná e ter uma grande experiência naquela região em ‘construir

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cidades’, era de origem paulista, o que possibilita uma analogia aos bandeirantes do Brasil colonial do século XVII e XVIII. Guimarães Neto (2002, p. 84) enfatiza que “os empresários paulistas e o capital estrangeiro foram, efetivamente, os eleitos pelo regime militar para reencarnar o autêntico espírito ‘bandeirante’ – conhecedor e explorador dos sertões -, com o fim de levar adiante os projetos de colonização privada”. Não fora diferente com o processo de colonização de Sinop e, na figura do Colonizador Ênio Pipino estava depositado pelas autoridades da época o espírito do ‘moderno bandeirante’ paulista, desbravador e corajoso. Deste modo, os sentidos pronunciados pelo discurso desbravador das bandeiras no período colonial foram retomados pelas empresas colonizadoras, em especial a SINOP S.A (Cf. TOMÉ; ROHDEN, 2017). Exemplo disto é um discurso proferido na época pelo Ministro da Agricultura de 1975, Alysson Paulinelli quando referiu-se ao “moderno bandeirante” ao Colonizador Enio Pipino, o ‘bandeirante’ que abria picadas nas selvas desconhecidas semeando civilização e progresso, conforme reportagem publicada no jornal O Estado do Paraná (15 maio 1975, p. 8).

FIGURA 15: ENIO PIPINO: O MODERNO BANDEIRANTE

FONTE: O ESTADO DO PARANÁ, 15 MAIO 1975.

Contudo, tais sentidos sobre este moderno bandeirante passaram a se fazer presentes nas falas dos colonos que chegaram e se identificaram com a proposta de integrar as áreas “semeando civilização e progresso” (Cf. TOMÉ; ROHDEN, 2017, grifos das autoras). Neste contexto, a imagem do progresso, se sobrepõe as dificuldades do passados, e desta forma, o progresso enunciado como um ideal conquistado pelos colonos e suas famílias, sujeitos que participaram do crescimento econômico da cidade, é enfático em suas memórias (Cf. TOMÉ; ROHDEN, 2017). “O sujeito migrante, que é apresentado como o novo bandeirante do século

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XX, superou todas as dificuldades encontradas no início da colonização para desfrutar de uma cidade que ele próprio ajudou a fundar” (Cf. TOMÉ; ROHDEN, 2017), tal discurso parece querer ‘convencer’ o migrante a conceber a história desta forma: vitoriosa. Todavia, na história oficial sobre os primeiros anos de colonização de Sinop, os acontecimentos estão associados ao sucesso, às histórias gloriosas, triunfantes que perpassam décadas, fomentando o discurso do progresso do hoje em virtude do espírito do moderno bandeirante de ontem, dos homens corajosos e desbravadores e colonizadores do passado. Os colonos, suas famílias, suas crianças são figurantes de uma história, onde não há lugar para os sofrimentos, para dizer da vida miserável que muitos levavam, da fome que muitos passaram, das dores que muitos carregaram por toda uma vida, abandonados à própria sorte, e neste abandono, não havia no lugar nenhum caminho de fugir, como dito pelo poeta. Deste modo, as muitas dificuldades encontradas pelos colonos quando em Sinop chegaram não aparecem como feitos da história. Eis a necessidade de como sugere Benjamin (1987) “escovar a história a contrapelo”, uma vez que muitas histórias são negligenciadas. A história de Sinop é mostrada à todos como uma história do progresso, uma história onde não aparecem negros, apenas de alguns descendentes de brancos europeus que progrediram em Sinop, a história que se configura é uma história dos ‘vencedores’ (Cf. BENJAMIM, 1987), a história apenas ‘vista de cima’ como dito por Peter Burker (2005). No entanto, como nos ensina Certeau (1998, p. 77), “a vida não se reduz àquilo que se vê”, deste modo, o cotidiano de homens, mulheres, crianças no momento do processo de colonização de Sinop não podem ser reduzidos ‘àquilo que se vê’, daquilo que se tem como história absoluta, narrada pela história oficial. Dentre as muitas narrativas construídas com os migrantes há pontos muito semelhantes em seus testemunhos históricos: as propagandas que atraíram suas famílias, o sonho da conquista de um pedaço de terra para plantar, o sacrifício da longa jornada na estrada para chegar até Sinop, as instalações precárias em que viviam no início como barracos de lona, a falta de alimentos, além dos perigos e doenças às quais estavam expostos ao meio da floresta, como exemplo a malária que era uma constante e as muitas mortes que ocorriam em meio à mata durante a extração da madeira, uma vez que as propagandas divulgavam a terra, entretanto, ela não era propícia naquele início para o plantio, o que fez com que muitos

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agricultores iniciassem o trabalho na mata, na extração desordenada da madeira. No entanto, os colonos: [...] sabiam que para fazer parte de uma obra “daquela grandeza” teriam que enfrentar as adversidades que a floresta oferecia, as doenças e a fome. Haviam se despojado de tudo e, quando identificavam o fim da jornada, colocavam toda a sua determinação em ficar e trabalhar... trabalhar com muita fé. (GUIMARÃES NETO, 2002, p. 72, grifo da autora)

FIGURA 16: MORADIAS DE FAMÍLIAS EM BARRACÕES DE LONA, 1973 FIGURA 17: CRIANÇAS DE UMA FAMÍL IA EM SINOP, (DÉC. 70).

FONTE: COLONIZADORA SINOP, 2011 FONTE: COLONIZADORA SINOP , 2011 F FONTEONTE: :C COLONIZADORAOLONIZADORA S SINOPINOP, ,2011 2011

FIGURA 18: COTIDIANO DOS TRABALHADORES EM SINOP, (1970) FIGURA 19:- BR 163 QUE LIGA SINOP-CUIABÁ NO PERÍODO CHUVOSO

FONTE: COLONIZADORA SINOP, 2011 FONTE: COLONIZADORA SINOP, 2011

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Além das dificuldades já citadas, há ainda que se pontuar a ausência de meios de comunicação, das estradas intransitáveis na época chuvosa91 que impedia qualquer possibilidade de saída de Sinop por meio terrestre. Nas lembranças dos migrantes “[...] ficávamos completamente fora do mundo” (MIGRANTE A, Depoimento 2011). As pessoas que habitavam Sinop nos primeiros tempos de colonização, muitas vezes ficavam literalmente isoladas do mundo. Sem comunicação com os familiares que ficaram nos locais de origem, sem caminhos e sem condições financeiras para voltar. Como dito, as estradas ficavam intransitáveis no período chuvoso. Sobre isto, Santos (2011) comenta que:

O movimento crescente de veículos, principalmente de caminhões, em pouco tempo, deixaram a rodovia em péssimas condições, principalmente na época das chuvas, quando ficava intransitável, ocasionando o isolamento e a falta de alimentos e combustível na região, como ocorreu no final de 1979 e início de 1980, quando o Governo Federal foi obrigado a socorrer a população por via aérea para atenuar o quadro desolador então existente, várias vezes aviões da FAB – Força Aérea Brasileira pousaram no antigo aeroporto de Sinop com produtos de primeira necessidade para atender seus habitantes (SANTOS, 2011, p. 17).

Ainda, há que se referenciar as decepções e desilusões que os migrantes tiveram diante da terra que não produzia, a terra era totalmente diferente das propagandas veiculadas no Sul, não era fértil e precisava de estudos, investimentos, para que pudesse efetivar o plantio e a colheita. Além disso, outra decepção fora as dívidas contraídas pelos colonos no processo de produção agrícola da terra adquirida, a partir de uma das recordações de uma migrante, pode- se entender que o que fora prometido nas propagandas divergia na realidade que os colonos enfrentavam: [...] eles (os pais) vieram confiando no financiamento que o pessoal prometia nas propagandas, mas o financiamento, depois eles foram saber que primeiro você tem que apresentar uma parcela do trabalho pronto, um tanto de alqueires derrubado e eles não tinham, pois estavam acabando de chegar [...] então, fizeram barracos de lona para as três famílias e para mais uma irmã casada que veio junto, então eram 4 famílias, se instalaram debaixo daqueles barracos por que o financiamento só saia depois de uma etapa de mata

91 O clima ao Norte de Mato Grosso é dividido em dois momentos: seco e chuvoso, a “estação seca” é conhecida popularmente como ‘época da poeira’, devido ao grande período de estiagem, provocando muito pó e baixa umidade do ar, a ‘estação seca’ que ocorre entre final do mês de abril estendendo-se até início de outubro (Cf. ROHDEN, 2016).

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derrubada [...] aí eles precisavam derrubar o mato com machado para cumprir o tanto de alqueires para poder sair o primeiro financiamento para começar a plantar [...]. (MIGRANTE A, Depoimento 2011).

Terra infértil para o plantio, dívidas do financiamento da compra da terra, dificuldades de sobrevivência, exposição à doenças, aos perigos que a floresta oferecia, somados ainda a saudade dos familiares que ficaram nos locais de origem, como também ao enfrentamento das diferenças climáticas, principalmente marcadas pelo calor excessivo no período de estiagem, qual não estavam acostumados, faziam com que os migrantes se apresentassem constantemente desesperançosos, muitos deles se alimentavam das lembranças da vida que deixaram para trás. Diante disto, Guimarães Neto (2002, p. 65) pontua que “os colonos quando venderam o pouco que tinham, ou simplesmente largaram para trás coisas que possuíam, lá deixaram partes de si mesmos. As poucas que vinham consigo eram como lembranças soltas, ou talvez, trapos de lembranças!”

Foto: Valmir Cordasso, 2013.

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Neste contexto, como pontuado as condições eram mínimas para sobrevivência e estas não foram iguais para todos, uma vez que aqueles com um pouco mais de condições financeiras podiam encomendar produtos alimentícios que vinham do Paraná, muitas vezes trazidas no avião da empresa colonizadora, conforme demonstram alguns depoimentos orais construídos no processo de pesquisa. Deste modo, a pouca comida que chegava a Sinop era distribuída entre todos que no vilarejo habitava. A venda dos produtos alimentícios na maioria das vezes era racionada ou eram eles contados por número de integrantes da família, além de serem muito caros para a época, uma vez que pequenas mercearias locais elevavam os preços devido à sua escassez (Cf. ROHDEN, 2016). A opção era, então, esperar pelas mercadorias trazidas pelos famosos aviões búfalos92, distribuídas no armazém da COBAL93. No trabalho de Lando (2002), encontrei um depoimento de um migrante que muito sensibiliza:

E, nós por exemplo, pobres, nós tínhamos direito de uma lata de azeite, um quilo de farinha de trigo, um quilo de feijão, um macarrão, tudo um quilo, dava mais ou menos uns doze quilos, mais ou menos, que podia levar; mais nada! [...] eles te pediam: quem tu era? quem era teus filhos? Faziam um tipo de cadastro, pra você não mandar um filho logo depois ou a mulher pra pegar mais. Mas, cada dia eu chegava em casa e os filhos pediam: ‘pai, eu quero pão’. Mas não tinha farinha pra fazer. (MODANESE, depoimento apud LANDO, 2002).

Ainda, entre as narrativas construídas pelos sujeitos da pesquisa, seleciono alguns que remente à dimensão das dificuldades alimentícias que os migrantes passaram no processo de colonização de Sinop: Quando eu cheguei aqui só tinha uns mercadinhos, mas os preços eram muito altos, não tinha nada, às vezes não tinha nem leite em pó para dar para os filhos. [...] aí construíram a Cobal e mandavam as coisas básicas, mas faltavam porque vinha comerciantes até de barco para cá e compravam estoque grande para revender, aí quando faltava os alimentos eles vendiam pelo preço que eles queriam [...] Teve época que eles racionavam o óleo, o leite, cada um tinha direito a uma determinada quantidade (MIGRANTE A, Depoimento 2011).

Era muita dificuldade de vida, pois, como era tudo estrada de chão, tinha época que nas estradas não passavam nada, ficava 20, 30 dias sem ninguém entrar ou sair, acabava comida, aí o exército mandava aqueles aviões búfalos para abastecer a Cobal, durante este tempo, a gente não tinha nem o que

92 Aviões da Força Aérea Brasileira – FAB. 93 Companhia Brasileira de Alimentos implantada em Sinop em 1975.

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comer, a gente se mantinha com o que tinha, na época nossa família era muito pobre, tinha um monte de filhos para alimentar, eu cansei de ir onde era o Mercado Machado, por que eles jogavam restos de batata, cebola, legumes quase estragados, ai eu juntava e levava pra mãe, a mãe limpava bem pra fazer de comida, por que na época nós não tínhamos o que comer mesmo (ANDIROBA, Depoimento, 2017).

E, neste cenário, marcado por inúmeras dificuldades os migrantes eram constantemente movidos por discursos seja do colonizador, seja nas homilias do padre na igreja, seja pelas autoridades que vinham até Sinop trazidos pelo colonizador, quais reforçavam os sentimentos de esperança, renovando a promessa de dias melhores. Em uma das visitas mais ‘ilustres’ de autoridades à Sinop, foi a primeira94 vinda do Presidente João Figueiredo em 03 de julho de 1980, onde toda a Gleba Celeste foi chamada a participar, crianças das escolas da Gleba foram convocadas a desfilar e ficar por horas em posição de sentido em recepção e condolências ao Presidente. Trazer autoridades políticas em visitas à Sinop era uma ação constante do colonizador Ênio Pipino que tinha muito acesso aos poderes públicos. De acordo com um depoimento de um migrante95, encontrado também no trabalho de Lando (2002), é possível inferir que naquele cenário de dificuldades o povo necessitava constantemente receber ‘injeções de ânimo” para continuar acreditando, para não perder a fé e a esperança de dias melhores:

Então, curiosamente, era uma cidade de muita esperança e de muita desesperança, que vivia de momentos de injeção de ânimo do colonizador, de autoridades que lá vinham, prometiam [...]. Mas havia uma desesperança muito grande, aí de vez em quando; quando a coisa estava muito brava, vinha o colonizador, dava uma injeção de ânimo. “Não, vocês se acalmem, que daqui uns tempos vai vir, que mês que vem eu vou trazer ministro, vou trazer presidente da república”. Então lá se torcia pra tudo: torcia pra chegar uma televisão; torcia pra ter água encanada; torcia pra ter energia; torcia pra ter a ponte do Teles Pires; torcia pra um dia ter asfalto; torcia pra vir mais uma serraria, pra dar emprego; torcia pra descobrir uma variedade de semente que produzisse, [...]. E, vivia-se de novas injeções psicológicas, o povo precisava ser constantemente alimentado por uma nova, uma nova ideia que viesse salvá-los de uma situação difícil. (ROVERI, depoimento apud LANDO, 2002).

94 O presidente João Figueiredo visitou Sinop duas vezes: a primeira visita aconteceu em 03 de julho de 1980 e a segunda em 06 de dezembro de 1984. 95 Cf. Depoimento concedido a Lando (2002).

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Na ocasião da primeira visita do Presidente Figueiredo à Sinop, o discurso96 presidencial se baseia em parabenizar as pessoas que ali estavam, que confiantes no futuro do país, o fato de estarem ali, naquele lugar, seria também para beneficiar toda a nação brasileira. Além disso, o então presidente reforça em suas palavras o crescimento futuro que tal comunidade iria em breve usufruir a partir da agricultura e agradece ao povo por confiarem no processo de tal colonização, reforçando deste modo as esperanças, renovando os sonhos de futuro de um povo já tão sofrido:

Eu devo agradecer ao bom Deus por haver me induzido à decisão de visitar esta área e conhecer de perto o que um punhado de brasileiros, confiantes no futuro de nossa Pátria, estão realizando em benefício de todo o Brasil. E devo agradecer, principalmente, não apenas pelas palavras do Senhor Governador e do Sr. Ênio Pepino, mas também pelo estímulo que esta visita me dá, na certeza de que a minha decisão inicial de dar prioridade à agricultura, no meu Governo, estava certa.[...] Dizia eu que a prioridade à agricultura iria permitir o que estou vendo aqui, não apenas um movimento de integração nacional, mas principalmente a ocupação do nosso território e o seu aproveitamento. [...] Hoje, vejo aqui, com a maior satisfação, que a terra está dada aos que trabalham nela e nela produzem. Hoje estou vendo aqui nascer uma comunidade. Eu quisera viver quinze anos mais para aqui voltar e testemunhar o que será esta comunidade. De tudo o que já me foi dado sentir, a estes poucos instantes que aqui estive, devo ressaltar, principalmente, a confiança com que os senhores estão depositando na orientação que está sendo dada à colonização da área. [...] (FIGUEIREDO, 1981, p. 163-165).

No dia da visita de Figueiredo, há uma imagem fotografada muito divulgada pela Colonizadora, qual nos mostra rostos de trabalhadores cansados mas, esperançosos, ouvindo o discurso presidencial. Como enfatizado no depoimento do migrante “o povo precisava ser constantemente alimentado por uma nova ideia que viesse salvá-los de uma situação difícil” (ROVERI, depoimento apud Lando (2002)). Assim, a esperança continuava a vir na frente. E, de acordo com as narrativas que ouvi, a esperança no futuro e a fé era certamente o que nutria aquele povo em permanecer em meio à tantas adversidades - “[...] num processo de colonização supõe-se um desejo e uma esperança. O desejo é socialmente produzido e a

96 Discurso de improviso na Sede da Agroquímica ao visitar a cidade de Sinop – MT. In: FIGUEIREDO, João, Presidente do Brasil. Discursos 1980. Brasília: Presidência da República, Secretaria de Imprensa e Divulgação, 1981, v.2. p. 163-165. Disponível em: www.biblioteca.presidencia.gov.br/.../figueiredo/discursos...1980/.../Discursos%20v2%2. Acesso em: 30 abr. 2017.

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esperança é posta à prova dia a dia [...] (SANTOS, 1993, p. 200). Riobaldo acrescenta “Com Deus existindo, tudo dá esperança: sempre um milagre é possível, o mundo se resolve” (ROSA, 2015, p. 76), e, era o pensamento da fé, da esperança que movia o desejo do milagre possível na vida daqueles migrantes. Abaixo, selecionei o registro fotográfico mencionado, que juntamente com o contexto que os migrantes estavam inseridos de trabalho árduo, de dificuldades de sobrevivência, me faz propor uma analogia ao quadro Operários, pintado em 1933 por Tarsila do Amaral, no qual retrata o trabalho nas fábricas que começavam a surgir no momento em que o país na década de 1930 passou a se industrializar e então, os operários começaram a surgir. O quadro de Tarsila assim como a fotografia histórica dos trabalhadores de Sinop na ocasião da visita do Presidente Figueiredo, embora em contexto geográfico, político e social totalmente diferentes, possuem em comum a presença da diversidade cultural que constitui o povo brasileiro, porém, embora os rostos apresentem traços todos diferentes, eles confundem- se na multidão, fazendo parecer que todos possuem uma mesma expressão, qual reflete a situação vivida por trabalhadores em uma sociedade que concebe a vida do outro objetivando- a, a partir de um sistema que se faz injusto e violento diante do trabalho humano, do trabalho do colono migrante, diante do trabalho dos ‘operários’ de Tarsila.

FIGURA 20: POVO ASSISTINDO AO DISCURSO DO PRESIDENTE FIGUEIREDO EM SINOP

FONTE: COLONIZADORA SINOP, ACERVO PESSOAL.

175

FIGURA 21:TARSILA DO AMARAL, OPERÁRIOS, ÓLEO SOBRE TELA 150 CM X 205 CM, 1933

ROHDEN, 201797

Contudo, tal processo de migração para o Centro-Oeste, explicado por Joanoni Neto (2012, p. 6), foi, para muitos lavradores, uma peregrinação em busca da terra prometida, eles idealizavam nas propagandas que os atraíram a solução para seus problemas. Nas palavras do autor “sua chegada ao novo destino foi o ingresso ao lugar do sonho, da utopia, constituído dos anseios que carregavam: possuir a terra, trabalhar para si, fugir da proletarização, mas a propaganda que afirmava serem esses os locais onde a concretização desse sonho seria possível”.

97 Durante a minha estadia em Chicago, pude visitar a Mostra Especial “Tarsila do Amaral Inventing Modern Art in ” no Art Institute of Chicago.

No Verde vivo da mata, havia um ar fresco vindo176 dos rios, Na imensa floresta,

Rostos cansados, sentimentos feridos, frustrações, repleta de bichos, pássaros e feras. desilusões pareciam afastar a cada dia os sonhos do

“Eldorado” na nova terra. As propagandas idealizadas Num descampado na Amazônia, uma cidade se constituía. transformavam-se em ‘trapos de lembranças’ e a cada dia Meados de 1970, se distanciavam mais num ‘tempo perdido’ que uma clareira na selva. cronologicamente se fazia antropocêntrico e aparecia como Faltava tudo, duração daquilo que se transformava em progresso da não tinha nada, Poucas ruas, algumas casas, cidade. tudo ainda era sonho, Desse modo, as experiências vividas pelos ‘homens um sonho que se construía. ordinários’98, o enfrentamento com o desconhecido e A cada novo dia, diante das estratégias que lhes foram fabricadas fizeram famílias chegavam todo momento, com que aquelas pessoas: Trazendo na bagagem não só a mudança, mas seus sonhos, [...] aos seus modos incorporassem e muitas esperanças. práticas, manipulassem táticas, transformassem o meio, se adaptassem à realidade, culminando, muitas vezes, Um futuro promissor, na criação de novas regras, de novos era o que sentiam, meios de convivência com o outro, de aqueles que no vilarejo novas maneiras que possibilitassem a chegavam. sobrevivência a partir de uma perspectiva comum e coletiva A ‘Terra Prometida’, (ROHDEN, 2016, p.73). a garantia do ‘ouro do café’ Santo Deus! Era só ter força, vontade e fé.

Diante disto, como orienta (CERTEAU, 1998, p. Decepções, desilusões, 82, grifos do autor) “algo essencial se joga nesta muitas vidas foram levadas, O progresso apaga as marcas, historicidade cotidiana, indissociável da existência dos mas não as feridas da história. sujeitos que são os atores e autores de operações Era a ‘Terra de toda gente’ conjunturais”. Ou seja, tais sujeitos deste processo de só precisava trabalhar, colonização de Sinop na historicidade de tal cotidiano, Mas foi preciso encontrar na madeira, reafirmam conjuntamente o que Merleau-Ponty (1991), Uma nova maneira de se pontua: o fato de que somos ‘relação’ até o fim, e que sustentar. então: Pai e mãe acordavam cedo, nas lembranças o cheiro do café

98 O Termo ordinário se refere, para Certeau, ao homem comum. ou a água fervendo para o chimarrão. A mãe preparava tudo, para no ‘mato’ o pai trabalhar.

As crianças viam mães chorar escondidas, E os velhos pais se preocupar com a comida.

Mas a solidariedade177 naquela vila era grande, Todos se ajudavam, E, a mata era a garantia.

Não existe mundo sociológico, o ser De lá vinha a vida - o transita no todo. Não há um exterior sustento de cada dia. hegeliano. Não há um fora que não se refira também a um dentro, Da castanha até o óleo se movimento revulsivo entre a carne, o tirava. estofo meu e do mundo. E, todas as Manga, caju, carambola, coisas escondem um olhar do mundo e Eram os doces da criançada. a carne das coisas me toma como delas, e eu me deixo tomar por sendo Pular tábua, inventar delas, também é meu (PASSOS, 2013, brinquedos. p. 4-5). Era a diversão da meninada,

O melhor mesmo era a

montanha, Contudo, o sonho de um colono migrante, era Que o pó de cerra formava. sonho do outro; as dificuldades daquele eram também as E, aquele cipó, lá na mata, dificuldades do outro, o que os unia era a ‘relação’, uma que balançava bem alto, a criança encostava seus vez que “o em si do outro e o nosso trás as marcas da dedos no céu, mútua constituição de todos por todos, nós com eles, e De tão alto que sua imaginação chegava. deles conosco” (PASSOS, 2013, p. 5). E como dito por esta pesquisadora em outra ocasião: Tratores eram comuns nas ruas da cidade,

Tinha também a ‘tobata’ [...] seus desejos eram simples e as Tá-ra’tá tá tá tá esperanças grandes. Desejavam algo E a ‘Kombi’ que traziam os comum, num contexto social em alunos, construção - um pedaço de terra, poder Que na chuvarada encalhava. plantar e poder colher. E, assim seguiam, mesmo diante das adversidades - recriavam os modos de Todos se conheciam, viver na tentativa de escapar das teias Formavam uma só família, da conformação, da ordem Do Seu Zé, da Dona Maria, estabelecida. Inventavam, Do Seu Tonho, da Dona transformavam a realidade pela via das Rose, artes de fazer. Seus sonhos não eram o somatório de sonhos individuais, mas E todos aqueles que constantemente refeitos em meio às chegavam, relações sociais no convívio com o Logo se ‘achegavam’ outro (ROHDEN, 2016, p. 83, grifos Eram acolhidos na pequena da autora). vila

Que tinha como coração

uma castanheira Bem no centro, Hoje já não mais existente, Mas, imortalizada Nesta história.

(JOSI ROHDEN, 2012 [s.p])

178

E nesta RELAÇÃO, de estratégias versus táticas, neste convívio entre conceber a terra seja pelo ‘canto’ (biófito) seja pelo ‘grito’ (necrófito) de uma linha abissal, de viver na liminaridade, no conflito, na tensão e na composição da fronteira, a vida se constituía. A existência se manifestava emergindo tempo e espaço. A vida fazendo-se história, sublinhada na corporeidade dos sujeitos: entre o eu- o outro- o mundo.

E deste modo, face dos desafios de sobreviver e da expressão na direção do ser mais, tais sujeitos, historiadores de si, como obras abertas e incompletas procuravam:

sentidos construídos por nós (por eles) que suleiam (suleiavam)99 direções na expressão e criação de formas adequadas aos desafios de se relacionar e se comunicar para agir na direção da sobrevivência e da completude provisória que se expresse no prazer, na felicidade e no amor (PASSOS, 2013, p. 5).

Nesta relação que a vida se faz, nesta ambiguidade que se confrontava ao mesmo tempo que se constituía, o espaço e tempo se manifestava pelo próprio ser, e há ao fundo desta manifestação da existência o som das vozes atemporais das crianças, que ainda cantam “ciranda, cirandinha, vamos todos cirandar [...]” (JACARANDÁ, Depoimento 2017), há uma infância vivida em meio à tudo que se foi discutido.

Foto: Valmir Cordasso, 2013.

99 As palavras entre parênteses foram adicionadas por esta pesquisadora a fim de corresponder à escrita da temporalidade passada.

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E nesse terreno de contradições cabe uma analogia do que Guimarães Rosa nos traz no Grande Sertão Veredas: “Levo o sertão dentro de mim e o mundo no qual vivo é também o sertão” (ROSA, 2015, p.49), ou seja, nessa travessia do processo de colonização o homem se faz na floresta, como a floresta se faz no homem. São ambiguidades que não se excluem, numa mútua apropriação, é um abrir de possibilidades, uma vez que “Não existe sertão sem homem, nem homem fora do sertão, “[...] o interior e o exterior já não podem ser separados” (ROSA, 2015, p.50). Deste modo, “[...] o sertão é a alma dos seus homens” (ROSA, 2015 p.33), nesse contexto, a floresta é a alma dos seus homens, parafraseando o poeta. “Daí, provém a necessidade de cantá-la através das estórias” (ALBERNAZ, 2009, p.20). Pois, “o mundo é literatura bela, verdadeira, real.” (ROSA, 2015, p.34)100

E nesse mundo que se faz uma literatura bela, elas (as crianças) estavam e participaram do processo de colonização, elas eram levadas às ruas para recepcionar autoridades, para se apresentar em eventos culturais, em desfiles cívicos, carregando inclusive mensagens que culminavam com as propagandas que divulgavam a cidade “Sinop: um passo da conquista na Amazônia”, e neste sentido, justifico também o subtítulo deste item. Além disso, eram nas crianças que a esperança de futuro estava depositada.

FIGURA 22: DESFILE CÍVICO, 1978.

FONTE: COLONIZADORA SINOP, ACERVO PESSOAL, 2017.

100 Inspirado na Tese de Doutorado de Albernaz (2009).

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Entretanto, a percepção apresentada pela história oficial é de que as crianças eram figurantes de uma história, de uma sociedade e não produtoras de cultura e da própria história. Não há uma visibilidade justa da infância enquanto sujeitos participantes de todo um processo de constituição de uma cidade.

Diante do exposto, nesta composição que traz as amarguras das formas violentas contra a vida no processo de ocupação territorial da fronteira, em especial da colonização de Sinop, há também a doçura na presença das crianças que fizeram o passado, e que aos seus modos primais e brincantes de produzir ‘artistagens’ (Cf. CORAZZA, 2008) na floresta, compunham a história, se faziam autoras de suas próprias vidas nas relações com seus pares, com os adultos e com o mundo que construíam – fazendo –se mundo, sendo o próprio mundo. Nas palavras de Walter Benjamin (2002, p.104):

As crianças formam o seu próprio mundo de coisas, um pequeno mundo inserido no grande. Dever-se-ia ter sempre em vista as normas desse pequeno mundo quando se deseja criar premeditadamente para crianças e não se prefere deixar que a própria atividade – com tudo aquilo que é nela requisito e instrumento – encontre por si mesma o caminho até elas.

Deste modo, a fim de encontrar neste pequeno grande mundo das crianças, diante do cenário histórico em que esta pesquisa se insere, convido o leitor a se permitir sentir a partir das narrativas de ‘meninos’ e meninas ‘do mato’ (Cf. BARROS, 2010) as memórias ‘crianceiras e seus despropósitos’ (Cf. BARROS, 2010) sobre a produção cultural, social do brincar na dimensão da educação não institucional como também institucionalizada.

Ressalto que ao se permitir ‘sentir’ estas memórias que podem se entrelaçar as nossas próprias lembranças, é possível ainda ouvir os ecos de um tempo distante que habita em cada um de nós, cujas vozes desta infância parecem nos convidar exclamando: - “vamos empinar pipa na rua!” (Cf. IPÊ AMARELO, Depoimento 2016), ou ainda nos convocar em suas recordações para tomarmos banho de chuva, se sujar de lama, tomar banho de rio e até mesmo pescar nas poças d’água pelas ruas da cidade na época, pois se você leitor não acredita, Vitória Régia (Depoimento 2017) pode te mostrar e repetir mesmo que agora criança crescida, que “inclusive tem uma foto do primeiro peixinho que ela pegou, bem pequenininho!”.

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O convite para se inserir e se deixar des-ver no brincar desta infância está proposto no modo singelo Manoelês de um universo de ser criança em territórios desabitados por coisas grandes. Para aceitar o convite, é preciso apenas imaginar. Destacando que como explica Bachelard (2009, p. 10, grifos do autor) “a imaginação é uma faculdade tão atual que suscita “variações” até nas nossas lembranças de infância” mesmo porque “a imaginação é uma louca esperança de ver sem limite (BACHELARD, 2009, p. 14).”

Acrescentamos modo bricoleur: imaginação e variações de lembranças sem limites. O bricoleur dos restos, dos ciscos, das latas, dos quintais da infância. O bricoleur em valores de inventar e de brincar de uma ‘infancionática’. O bricoleur- brincante. O bricoleur de pique-esconde.

Assunto este para um próximo Canto...

“Quem chegar por último é mulher do padre! Corre!” (SERIGUELA, Depoimento 2017).

Foto: Valmir Cordasso, 2013.

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Foto:Foto: Valmir Valmir Cordasso, Cordasso, 2013. 2013.

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CANTO 3 – DO BEM-TE-VI

DAS GRANDEZAS DO BRINCAR DE MENINOS E MENINAS DO/NO m/MATO

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CANTO 3 – DO BEM-TE-VI: DAS GRANDEZAS DO BRINCAR DE MENINOS E MENINAS DO/NO m/MATO

3.1 Brincar de fazer comunhão com as coisas: “tudo era transformado em alguma coisa de faz-de-conta” 101

Porque se a gente fala a partir de ser criança, a gente faz comunhão: de um orvalho e sua aranha, de uma tarde e suas garças, de um pássaro e sua árvore. (Manoel de Barros, 2010).

alar a partir de ser criança e deste modo, fazer comunhão com as coisas. Comungar de um tempo que ainda somos: presente e passado coexistem no Finstante das memórias ‘que brilham na ocasião’ (Cf. CERTEAU, 1998). Lembrando Passos (2003, p. 172), referindo-se a Merleau-Ponty “Eu sou o tempo e a passagem de um tempo a outro, eu a faço, não a penso, não a contemplo; eu a efetuo”. Somos o tempo e comungamos dele, o efetuamos e, portanto, como também na poesia de Manoel de Barros é possível perceber a conciliação entre passado e presente sob imagens poéticas, e, de forma simultânea sentir que aquilo que fomos ainda habita em nós, pois, “Na casa da memória a gente está quem foi antes” [BARROS apud MÜLLER102, 2010, p.135, grifos meus].

Ao iniciar este Canto e refletir, intuir, sobre como este precisaria ser escrito, a voz do poeta sussurrava aos meus ouvidos: “- fale a partir de ser criança, porque então, você faz comunhão com todas as coisas”. COMUNHÃO, a palavra que remete numa perspectiva histórico-poética a minha corporeidade com todas as coisas. Deste modo, comungo neste trabalho com as memórias que ouvi, com as experiências passadas do outro, entrelaçada à minha carne, à minhas próprias experiências vividas, comungo com a infância que habita em

101 Inspirado no Depoimento de Ipê Amarelo (2016). 102 Entrevista de Manoel de Barros concedida à Muller, (2010).

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cada um que se faz composição nesta escritura, infância esta de um tempo não denominado de Chrónos, qual “indica uma duração objetiva, uma quantidade mensurável [...] do tempo” (AGAMBEN, 2005, p. 89), mas, por Aión103, que se faz “o tempo em seu caráter originário, [...] como uma criança que joga dados” (AGAMBEN, 2005, p. 88), qual sugere “a força vital, na medida em que esta é percebida, no ser vivo, como essência temporalizante do vivente” (AGAMBEN, 2005, p. 89, grifos do autor). O tempo essência da infância, que não é exterior a nenhum de nós, mas que se faz vivo e pulsante cada vez que o presente toca o passado, cada vez que as memórias se movem em um não-lugar (Cf. CERTEAU, 1998), de uma “metis que, aproveitando as ocasiões, não cessa de restaurar nos lugares onde os poderes se distribuem a insólita pertinência do tempo” (CERTEAU, 1998, p. 165).

Neste sentido, como uma criança que joga dados, como uma pesquisadora-brincante com ‘memórias que se aproveitam de ocasiões’, ‘falo a partir de ser criança’ assim, o amor- crianceiro ressurge como se concordasse com Riobaldo: “- Amor vem de amor” (ROSA, 2015, p. 40) e deste modo, amorosamente consigo alcançar o que talvez a ciência isolada da vida não consiga: ter “mais comunhão com as coisas do que comparação” (BARROS, 2010, p. 377). E ao assumir tal posicionamento acriançador, como num retorno do vivido, aceito o convite que Seriguela (Depoimento 2017) me faz: “Tá com você... corre! Um, dois, três pra mim”, e, brinco com ela num jogo de ‘pique-esconde’, onde o meu ‘achadouro’ e o achadouro do outro se revela “a gota de essência do ser humano” (BARROS apud MÜLLER, 2010, p. 133), sob a tensão entre revelar-esconder, faces todas as potências ambivalentes já discutidas ao longo desta escritura, neste jogo do visível e do invisível (Cf. MERLEAU-PONTY, 2014). Assim, é nesta dimensão de quiasma do brincar da infância em uma temporalidade histórica que percebo a nossa fonte de vida primal, a nossa ligação cósmica, a nossa relação telúrica, a nossa ‘experiência possível de tradução’ como diria Benjamim (1987).

103 Agamben (2005, p. 89) nos orienta sobre Chrónos e Aión: “Platão apresenta a relação entre chrónos e aión como relação entre cópia e modelo, entre tempo cíclico medido pelo movimento dos astros e temporalidade imóvel e sincrônica. O que aqui nos interessa não é tanto o fato de que, no curso de uma tradição ainda viva, aión seja identificado com a eternidade e chrónos com o tempo diacrônico, mas que a nossa cultura conheça, desde a origem, uma cisão entre duas diferentes noções de tempo, correlatas e opostas.”

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Diante do exposto, se insere como dito no I Canto,  um das questões que envolvem essa pesquisa: conceber os diferentes brincar de um passado-presente: o brincar na Viver de infância escola vigilante e controlador onde imperava o jogo das Tão bom fingir de adulto e viver estratégias versus táticas (Cf. CERTEAU, 1998), e o brincar de infância. livre, numa relação de cumplicidade criança-natureza. Tão bom ainda sentir as gotas dos ‘Brincares’ antagônicos direcionados ora por Chrónos ora banhos de chuva molhar o rosto, a lembrança do sujar-se na lama de por Aión. tanto escorregar pelo chão.

No entanto, não tenho a pretensão de classificar os Tão bom ainda ouvir o barulho modos de brincar, apontando graus de superioridade e dos saltos nas águas do rio: tchibum! Com os gritos da mãe inferioridade entre um e outro, mas, de apresentar, discutir dizendo: - Cuidado, é fundo! tais ambiguidades e pluralidades, sem excluí-las, pois, “a Tão bom ser adulto, mas, ter a brincadeira é, entre outras coisas, um meio de a criança viver semente da infância viva dentro a cultura que a cerca, tal como ela é verdadeiramente, e não de mim. como ela deveria ser” (BROUGÉRE, 2008, p. 59). Deste (JOSI ROHDEN, 2013, p. 31) modo, reforço que estes brincares investigados são concebidos a partir das memórias, nas quais articulam entre  si infância, estética e experiência (Cf. BENJAMIN, 2002).

É interessante pontuar, que os narradores de suas histórias – meninos e meninas do/no m/Mato, sujeitos desta pesquisa104, ao narrar suas experiências nos trazem de modo singular e peculiar suas experiências formativas, assim como suas memórias de um universo infantil repleto de imaginação, de invenção, de construção, de artes de fazer (Cf. CERTEAU, 1998), de bricolagens feitas a partir das suas relações com o outro, com a natureza, com os restos, com os sonhos de infância. As narrativas soam como gestos de libertação, de fluidez da vida que pulsa, da infância não linear, não

104 Em alguns momentos desse Canto, citarei em notas de rodapé, também alguns depoimentos de narrativas orais realizadas pela Universidade do Colorado - USA, as quais tive acesso durante experiência dos quatro meses do estágio do Doutorado Sanduíche nos Estados Unidos na Loyola University Chicago. Selecionei dez entrevistas da Coleção de Julie Jones-Eddy, realizadas na década de 1980, com sujeitos que narram suas memórias de infância, os quais possuiam na época das entrevistas uma media de idade entre 75 a 80 anos, ou seja, viveram suas infâncias entre os anos de 1930 a 1940. A intenção é reforçar a tese de que não importa o lugar, ou o tempo: a criança ao brincar, inventa “mil artes de fazer” (Cf. CERTEAU, 1998), e, ao brincar, produzem cultura, são autoras de suas próprias histórias.

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cronometrada por um tempo exterior ao sujeito, deste modo, cada migrante ao narrar suas experiências “ia até a infância e voltava” (BARROS, 2010, p. 42). Diante do exposto, Benjamin (2002, p. 101) nos diz que “o adulto, ao narrar uma experiência, alivia o seu coração dos horrores, goza duplamente uma felicidade. A criança volta a criar para si todo o fato vivido, começa mais uma vez do início.”

Deste modo, é sempre um recordar de um brincar mais uma vez e outra vez, como se não quiséssemos obedecer a ordem dos pais quando nos mandavam dormir quando criança, pois queríamos continuar brincando. É um fingir-criança, cuja imagem das memórias de acompanhar um barquinho feito de papel atravessar uma rua inteira na gigantesca poça d’água se faz atemporal. “A gente fazia muito barquinho de papel, então a gente soltava ele no começo da poça d’água e ia acompanhando ele pela rua inteira até lá no final da rua, as poças eram imensas!” (VITÓRIA RÉGIA, Depoimento 2016). Nas similaridades da infância dos versos de Manoel eram “barquinhos de papel na água suja das sarjetas...” (BARROS, 2010, p. 81). Traduções das experiências que perpassam as temporalidades, entrelaçando-as umas às outras. Traduções daquilo que para Benjamin (1987) é propriamente narrar o sentido da poiesis da vida. Traduções das experiências de adultos que cultivam talvez, sem se dar conta do que chamo de fingir-criança.

MARTHA BARROS, Memorias afetivas - 142 cm x 55 cm - 2013

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Em Bachelard (1988) encontro pistas deste ‘fingir-criança’ cultivado pelo adulto ao relembrar suas memórias de infância quando o autor nos diz que “há uma infância potencial que habita em nós. Quando vamos reencontrá-la nos nossos devaneios, mais ainda que na sua realidade, nós a revivemos em suas possibilidades. Sonhamos tudo o que ela poderia ter sido, sonhamos no limite da história e da lenda”  (BACHELARD, 2009, p. 85). Remexo com um pedacinho de Neste sentido, como enfatizado nos versos do arame nas minhas memórias fósseis. poeta “o menino de ontem me plange” (BARROS, Tem por lá um menino a brincar no 2010, p. 331) ou seja, somos habitados pela criança que terreiro: entre conchas, osso de fomos, fruto da experiência vivida possível de ser arara, pedaços de pote, sabugos, asas de caçarolas etc. narrada a partir de nossas memórias, e portanto, toda vez que passeamos por nossa história que se faz E tem um carrinho de bruços no meio do terreiro. inversa, no instante do presente (Cf. CERTEAU, 1982), [...] O menino é hoje um homem reaparece como um ‘enigma’ o “menino que resta de douto que trata com física quântica. nós” (BARROS apud MÜLLER, 2010, p. 145), Mas tem nostalgia das latas. guardado como em um baú de brinquedos em nossos Tem saudades de puxar por um corpos, em que vamos soprando a poeira, para melhor barbante sujo, umas latas tristes. percebê-lo, para sentir toda a potência histórica que ele (BARROS, 2010, p. 367) carrega, pois ele está cheio das nossas experiências vividas. O nosso corpo é o baú vivo105 da nossa história  em sincronia e diacronia (Cf. AGAMBEN, 2005) com

o tempo, com o mundo:

Eu não amava que botassem data na minha existência. A gente usava mais era encher o tempo. Nossa data maior era o quando. O quando mandava em nós [...] hoje eu estou quando infante. Eu resolvi voltar quando infante por um gosto de voltar. Como quem aprecia ir às origens de uma coisa ou de um ser. Então agora eu estou quando infante (BARROS, 2008, p. 113, grifos meus).

Deste modo, nos meninos e meninas que restam em cada um dos sujeitos de pesquisa quando ao narrar suas infâncias no/do m/Mato, o brincar surge “ali, pertinho” (BARROS,

105 Utilizei uma linguagem figurada para expressar neste caso um baú pulsante que guarda toda a nossa história enquanto humanos e que se abre toda vez que o buscamos.

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2010, p. 162) como se o ‘tempo estivesse sido amarrado no poste’ (BARROS, 2010, p. 162) e então todo o resto ‘fosse só distância’ (BARROS, 2010, p. 162), uma distância que chamam de saudade, “O senhor sabe? Já tenteou sofrido o ar que é saudade? Diz-se que tem saudade de ideia e saudade de coração” (ROSA, 2015, p. 43). Assim, Sob essa ótica de memórias também saudosas, os brincares pesquisados transitam neste trabalho em vias duplas: numa dimensão histórico-educacional, discutindo a formação da criança, o espaço de aprendizagens oferecidos pelo brincar, na perspectiva da produção histórica, social e cultural da infância e numa dimensão filosófica, qual concebe o brincar enquanto experiência humana, enquanto retorno do vivido, “no limite da história e da lenda” (BACHELARD, 2009, p. 85). No entanto, na composição desta história menor, faz-se importante salientar que os nossos meninos e meninas do mato, aqui concebidos em ‘estágio de árvores’ trazem em suas narrativas imagens de uma história-ficção (Cf. CERTEAU, 1982), uma história que é impossível de se retornar ao modo como exatamente aconteceu, mas, possível de se remexer num território de pertencimento e de desterritorialização do ser106, através do movimento trazidos pelas “memórias fósseis” (Cf. BARROS, 2010). Memórias que como mencionadas, se aproveitam da ocasião (Cf. CERTEAU, 1998). “A ocasião é um nó [...]. Não é um fato destacável de volta que o produz” (CERTEAU, 1998, p. 159). “A ocasião é aproveitada, não criada” (CERTEAU, 1998, p. 162). Deste modo, as memórias fósseis de Manoel de Barros assim como as nossas próprias memórias, se aproveitam de um “momento equilibrista e tático, o instante da arte” (CERTEAU, 1998, p. 162).

Contudo, para dizer das memórias fósseis do brincar, que surgem de momentos equilibristas e táticos narrados pelas árvores e plantas pertencidas nesta pesquisa (nossos migrantes – crianças de ontem), é interessante refletirmos sobre algumas questões, quais considero relevantes para relacionarmos aos objetivos propostos em relação aos ‘brincares- tempos’ investigados.

Assim, diante do que sugere Brougére (2008, p. 89) “é necessário convir que em relação à brincadeira, estamos longe de nos situar num campo de certezas” e neste cenário, a

106 Deleuze em entrevista “Abecedário de Deleuze”, enfatiza: “[...] Precisamos às vezes inventar uma palavra bárbara para dar conta de uma noção com pretensão nova. A noção com pretensão nova é que não há território sem um vetor de saída do território, e não há saída do território, ou seja, desterritorialização, sem, ao mesmo tempo, um esforço para se reterritorializar em outra parte. [...]” Disponível em: http://stoa.usp.br/prodsubjeduc/files/262/1015/Abecedario+G.+Deleuze.pdf Acesso em 13 mai. 2017.

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intenção que infere nesta pesquisa não é de ficar justificando a valoração ou não da brincadeira, na tentativa de persuasão do leitor, ou mesmo de seguir a tendência de “fazer da brincadeira a panaceia do desenvolvimento” (BROUGÉRE, 2008, p.95), pois como nos diz Brougére (2008, p. 89) “a brincadeira é boa porque a natureza pura representada pela criança é boa.” Ainda, se faz relevante mencionar que a brincadeira não é uma ação inata do homem, ela pressupõe uma aprendizagem social, ou seja, aprende-se a brincar (Cf. BROUGÉRE, 2008).

A inserção da criança no brincar é iniciado a priori pelas pessoas que cuidam dela, em especial no primeiro momento pela sua mãe. Como demonstram os estudos do autor supracitado na inserção progressiva no brincar iniciada junto a mãe, a criança “aprende a compreender, dominar e depois produzir uma situação específica, distinta de outras situações” (BROUGÉRE, 2008, p. 98).

Para Maturana e Verden-Zõller (2004 p. 232) numa sociedade matricial107, à criança amplia a autoconsciência e a consciência social quando vive desde o início “a relação com sua mãe na intimidade da completa aceitação e confiança de seu encontro corporal com ela no brincar”. Deste modo, a este ato de ampliar nosso domínio cognitivo reflexivo que sempre implica uma experiência é que podemos chegar a ver o outro como igual, ato este que os autores se referem ao amor. Assim, “[...] tudo o que nos permite perceber que o amor ou [...] a aceitação do outro junto a nós na convivência, é o fundamento biológico do fenômeno social. Sem amor, sem aceitação do outro junto a nós, não há socialização, e sem esta não há humanidade” (MATURANA; VARELA 2001, p. 269).

Neste sentido, pode-se compreender com Maturana e Verden-Zõller (2004) que a experiência do brincar está infundida com a experiência do amar, do emocionar, do “linguajar” de doar-se em relação de cumplicidade à natureza, ao outro, elementos estes, que os autores consideram essencialmente como fundamentos esquecidos do humano, sentidos estes que se fazem na experiência da convivência humana pela linguagem, “todo conhecer

107 Para Maturana e Verden-Zõller (2004) a cultura patriarcal surgiu como uma alteração na configuração do emocionar que constituía o fundamento relacional da cultura matrística pré- existente. Daí resultou uma mudança no modo de pensar, degustar, ouvir, ver, temer, desejar, relacionar-se. Na cultura matricial, o homem assim como a mulher também se sente mãe, sua relação com o outro é de cumplicidade, não há distinções entre os sexos e hierarquia entre um e outro. A cultura matrícial era a característica da organização de nossos ancestrais que viviam uma dimensão Poiética com tudo e com todos.

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humano [...] é sempre vivido numa tradição cultural” (MATURANA, VARELA 2001, p. 265). Deste modo, “só temos o mundo que criamos com o outro” (MATURANA, VARELA 2001, p. 268).

Em Walter Benjamin (2002), é possível compreender que a condição da ausência da linguagem que caracteriza o ser humano ao nascer, se traduz como imagem alegórica da infância do homem, onde a ausência busca pela condição de falante, não de forma cronológica, estruturada, pré-determinada, mas como alguém que cada vez mais se faz sujeito, que transforma o meio, que produz cultura, que se lança a vida, às possibilidades da experiência. E, neste sentido, Agamben (2005, p. 59) sobre os escritos de Benjamin, nos convida a pensar que:

A ideia de uma infância como uma <> pré-subjetiva revela-se então um mito, como aquela de um sujeito pré-linguístico, e infância e linguagem parecem assim remeter uma à outra em um círculo no qual a infância é a origem da linguagem e a linguagem a origem da infância. Mas talvez seja justamente neste círculo que devemos procurar o lugar da experiência enquanto infância do homem. Pois a experiência, a infância que aqui está em questão, não pode ser simplesmente algo que precede cronologicamente a linguagem e que, a uma certa altura, cessa de existir para versar-se na palavra, não é um paraíso que, em um determinado momento, abandonamos para sempre a fim de falar, mas coexiste originalmente com a linguagem, constitui-se aliás ela mesma na expropriação que a linguagem dela efetua (AGAMBEN, 2005, p. 59, grifos meus).

Martha Barros, Oficina de transfazer natureza - 130cm x 70cm - 2016

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Ainda, para Agamben (2005, p. 62) “como infância do homem, a experiência é a simples diferença entre humano e linguístico. Que o homem não seja sempre já falante, que ele tenha sido e seja ainda in-fante, isto é a experiência”.

Neste sentido, prosseguindo nesta reflexão diante da linguagem, Agamben (2005) menciona que “é um homem falante que nós encontramos no mundo, um homem que fala a um outro homem” (AGAMBEN, 2005, p. 60). Deste modo, em Fenomenologia da Percepção, Merleau-Ponty (1994) recorre ao gesto para inferir sobre a comunicação pela palavra, trazendo a concepção de que é no corpo que está a compreensão da linguagem, mas também na expressão dele. De acordo com o autor, há um modo similar e simultâneo de apreensão sensível no esteio da compreensão da fala e do gesto corporal. Diante disto, aprendemos o sentido da palavra, da fala assim como o sentido de um gesto: “A fala é um verdadeiro gesto e contém seu sentido, assim como o gesto contém o seu. É isso que torna possível a comunicação” (MERLEAU-PONTY, 1994, p. 249).

Neste contexto, a brincadeira também pressupõe uma comunicação, uma expressão, uma fala, um gesto e ela acontece fundamentalmente num espaço social. Como sugere Brougére (2008) para que uma brincadeira aconteça, é necessário uma comunicação específica entre os pares, uma ‘metacomunicação’, cujos conteúdos desta metacomunicação mostram que se trata de uma ação do brincar. Segundo o autor, “o simples gesto de estender um brinquedo pode servir de metacomunicação suficiente e deflagar a brincadeira, espaço específico onde as atividades vão ter um outro valor” (BROUGÉRE, 2008, p. 99). Deste modo, o ato de brincar supõe uma comunicação e uma interpretação pelo sujeito que brinca e neste cenário, “a brincadeira é uma mutação de sentido, da realidade: as coisas aí se tornam outras” (BROUGÉRE, 2008, p.99).

Nas brincadeiras as coisas se transformam, um mundo de significados próprios se forma, oferecendo-nos pressupostos para nos auxiliar perceber a criança ao longo da história como produtora de cultura, de conhecimentos, de sentidos. Neste âmbito, conceber a criança em conexão com o mundo e o que está a sua volta, possibilita o entendimento de que ela “debita ao mundo seus sonhos assim como suas percepções”, pois ela “acredita que o sonho se passa no quarto, ao pé de sua cama, e só é visível para aqueles que dormem”. Neste primeiro momento, “o mundo é ainda o lugar vago de todas as experiências” (MERLEAU-

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PONTY, 1994, p. 464). Experiências estas que se fazem “ao relacionar-se com o mundo, com as coisas guiadas pela percepção” (DIAS, 2006, p. 968) e deste modo, “a criança experimenta, também, a inerência de sua consciência ao seu corpo e ao de outra consciência perceptiva, como um ser no mundo” (DIAS, 2006, p. 968).

Diante do exposto, acrescenta-se com Benjamin (2002) que as crianças não constituem nenhuma comunidade isolada, mas antes fazem parte da comunidade a qual pertencem, da mesma forma que seus brinquedos108 testemunham uma vida autônoma que se faz em um mundo de diálogo de sinais entre a criança e as pessoas que convivem com ela. O brincar se constitui desta forma, como uma cultura específica produzida pela criança e seus pares, uma vez que estas interpretam de modo criativo, aos seus modos a cultura dos adultos, reinventando-a, atribuindo outros e novos significados e que portanto, não deve ser considerada como uma mera imitação (Cf. BENJAMIN, 2002).

Desta forma na cultura lúdica de acordo com Brougére (2008) integram-se elementos externos que influenciam a brincadeira, como atitudes, capacidades, cultura e meio social. Neste contexto, os brinquedos se inserem e, “para tornar um verdadeiro objeto de brincadeira, tal objeto deve encontrar o seu lugar, cavar seu espaço na cultura lúdica da criança. Por esta inserção o brinquedo é, então, objeto de uma apropriação” (BROUGÉRE, 2008, p. 51).

Na narrativa de Vitória Régia (Depoimento, 2016), entre suas brincadeiras narradas, ela traz uma recordação, que demonstra a capacidade inventiva de brincar com os restos109 que encontrava, uma vez que eram os materiais que dispunham para brincar, mas, tal brincadeira era um modo criativo, transformador de ‘aparentemente’ imitar a vida adulta:

[...] a gente brincava muito de casinha, de fazer comidinha de verdade. A gente pegava tijolo ou alguma coisa de apoio, pegava algum pedaço de Eternit110 para a tampa e fazia fogueirinha embaixo, aí fazíamos comidinha de verdade, eu tinha umas panelinhas que pareciam de verdade que foi trazido do Paraná, e a gente fazia comidinha de verdade e comíamos, era uma delícia.

108 Ampliaremos o debate sobre o brinquedo no próximo subtítulo desta sessão. 109 Discutiremos mais no próximo momento sobre o brincar com os restos, com os materiais descartados. 110 Marca de um tipo de telha ondula, feita de fibrocimento, utilizada para cobertura de casas, etc.

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Em outro depoimento, encontro mais modos da capacidade mimética (Cf. BENJAMIN, 2002) das crianças do passado:

Lembro que eu, meus irmãos, meus primos, tínhamos que trabalhar na terra para ajudar os pais111. Ai a gente fazia que ao roçar, nós estávamos brincando, por que a gente imitava nosso pai, nossos tios. A gente falava que ia trabalhar para comprar um trator, uma casa maior, mas era tudo de brincadeira, por que a gente fazia de conta que era os nossos pais, a gente até engrossava a voz. (INGÁ, Depoimento, 2017).

Nestes exemplos de memórias do brincar de modo a imitar a vida adulta, faz-se necessário enfatizar que “a brincadeira é antes de tudo, uma confrontação com a cultura” (BROUGÉRE, 2008, p. 76). Deste modo, “na brincadeira, a criança se relaciona com os conteúdos culturais que ela reproduz e transforma, dos quais ela se apropria e lhes dá uma significação” (BROUGÉRE, 2008, p. 77). Neste sentido, é importante salientar que toda brincadeira por mais que aos olhos de quem contempla se apresenta meramente como uma imitação adulta, da cultura qual a criança está inserida, para quem brinca é uma apropriação de tal cultura, a brincadeira passa por um universo de sentidos para a criança, qual dá sempre um novo e outro significado para a ação do brincar. Vitória Régia e Ingá, não reproduziam meramente ações da vida adulta, da cultura que estavam inseridos, mas, apropriavam-se dela, transformavam-na aos modos da criança em tal espaço e tempo histórico, criavam e

111 Como já mencionado, o trabalho infantil se faz presente em muitas das narrativas construídas, no entanto, mesmo não destinando-se o foco dessa pesquisa à este objeto de análise, a qual penso que sugere outros e novos estudos, não poderia deixar de trazer alguns apontamentos sobre essa problemática à nível nacional. De acordo com Portugal (2007) em sua dissertação de Mestrado, na década de 1970, o governo federal preocupado frente aos problemas sociais que a situação da infância poderia gerar como a criminalidade, violência nas grandes cidades, prejuízo para o turismo, etc., enfatizava a estratégia de encaminhamento de crianças e adolescentes ao mercado de trabalho precocemente. Assim, de acordo com a autora, a partir do Decreto n. 66.280, de 27 de fevereiro de 1970, o qual dispunha sobre as condições para o trabalho de menores de 12 a 14 anos, considerava- se serviços de natureza leve os prestados em atividades não exercidas nos ramos das indústrias e de transportes terrestre e marítimo, com isso, legitimava na época o trabalho infantil com a realização de convênios com o SENAC e SENAI. Diante disso, todos os esforços eram empregados para manter as crianças e adolescentes ocupadas ou para ocultá-las em internatos. Ainda, segundo a autora citada, no governo do general Ernesto Geisel (1974 a 1979), a situação socioeconômica da população brasileira se agrava, enfrentando o seu governo a insatisfação popular com as altas taxas de inflação. Com isso, a situação de miséria abrangia principalmente a parte considerada mais vulnerável, que era a das crianças e jovens. Essa situação segundo Portugal (2007) se ecoava nos dados alarmantes referentes à incidência do trabalho infantil, quando “18% das crianças com menos de 14 anos estavam inseridas no mercado de trabalho” (PILOTTI; RIZZINI, 1995, p.81). Disponível em: https://www.maxwell.vrac.puc-rio.br/11515/11515_3.PDF Acesso em 12/02/2019.

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recriavam, de modo a produzir novos significados para as brincadeiras, constituindo-se como sujeitos históricos, sociais, culturais.

Benjamin contribui para estes apontamentos, quando nos proporciona a reflexão de que:

As crianças são inclinadas de modo especial a buscarem todo e qualquer local de trabalho onde visualmente transcorre a atividade sobre as coisas. Sentem-se irresistivelmente atraídas pelos resíduos de construções, no trabalho de jardinagem, ou doméstico, na costura ou na marcenaria. Em produtos residuais reconhecem o rosto que o mundo das coisas volta exatamente para elas, e para elas unicamente. Neles, elas menos imitam as obras dos adultos do que põem materiais de espécie muito diferentes, através daquilo que com elas aprontam no brinquedo, em uma nova, brusca relação entre si. Com isso as crianças formam para si seu mundo de coisas, [...] (BENJAMIN, 1987, p. 16, grifos meus).

Diante do exposto, Gagnebim (1993, p. 80), nos orienta diante das inferências de Benjamin, dizendo que o filósofo nesta discussão, “distingue dois momentos principais da atividade mimética especialmente humana: não apenas reconhecer, mas produzir semelhanças. Essa produção mimética caracteriza a maior parte dos jogos, das brincadeiras infantis”.

Martha Barros, Canto e arrebol - 146cm x 95cm - 2012

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Contudo, a ação mimética em tal contexto histórico estudado, permitia que a criança manipulasse elementos construindo um aprendizado próprio, de um modo que também lhe era próprio, atribuindo sons (como por exemplo engrossar a voz no caso de Ingá), construindo valores e juízos, habilidades, desejos. “A criança quer puxar alguma coisa e tornar-se cavalo, quer brincar com areia e tornar-se padeiro, quer esconder-se e torna-se bandido ou guarda” (BENJAMIN, 2002, p. 93). Era isto que a criança da época fazia e queria fazer e neste ponto, “não há dúvidas que brincar significa sempre libertação. Rodeadas por um mundo de gigantes, as crianças criam para si, brincando, o pequeno mundo próprio” (BENJAMIN, 2002, p. 85).

Neste cenário, Vitória Régia, Ingá e seus amigos e amigas não brincavam somente de atividades consideradas humanas, uma vez que à imitação não se restringe à representação fixa e pontual de um adulto, ao contrário, “a atividade mimética sempre é uma mediação simbólica, ela nunca se reduz a uma imitação” (GAGNEBIN, 1993, p. 80). Neste contexto, ouço a voz de Jacarandá (Depoimento 2017) quando relata “Eu ficava em cima das árvores por horas escutando os passarinhos, eu brincava que eu era um bem-te-vi, pra mim até hoje é o canto mais lindo”. Assim, na ação mimética do brincar, a criança no passado, no presente assim como a criança dos versos de Manoel de Barros brinca que é pedra, que é boi, que é cachorro, que é uma cadeira, que é peixe, que é um lindo bem-te-vi, cuja sonoridade do canto adentra por um instante este texto: bem-te-vi, bem-te-vi, bem-te-vi...

Um Bem-te-vi

O leve e macio raio de sol se põe no rio. faz arrebol...

Da árvore evola amarelo, do alto bem-te-vi- e, de um salto

Pousa envergado no bebedouro a banhar seu louro

pelo enramado... de arrepio, na cerca

Já se abriu, e seca.

(MANOEL DE BARROS, 2010, p. 107)

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Contudo, “a brincadeira dá testemunho da abertura e da invenção do possível, do qual ela é o espaço potencial do surgimento” (BROUGÉRE, 2008, p. 106). Neste sentido, o brincar constitui propriamente o espaço para a criatividade, a curiosidade, a invenção. Pelo brincar a criança comunga de um território de possibilidades, de fluxos, de potências. Ela comunga da presença do outro, elabora relações com o meio, percebe o mundo e se projeta à ele; a criança ao brincar faz ‘comunhão com as coisas’. Comunhão esta que indica de acordo com Merleau- Ponty (1999) os modos do corpo de se apropriar do mundo, e consequentemente, transformá- lo em mundo humano.

Ainda, é interessante pontuar que a apropriação do mundo pelo corpo se oferece em condições para a elaboração do conhecimento sensível, qual amplia-se sem cessar pela experiência acumulada ou pela aprendizagem (Cf. LE BRETON, 2016, p. 32). E, de acordo com o autor tal conhecimento sensível se manifesta como uma “celebração sensorial”, que de forma sinestésica o sujeito apreende, percebe e se faz corpo do mundo (Cf. MERLEAU- PONTY, 1999). Analisando os depoimentos históricos das crianças do passado que compõe a tessitura desta pesquisa, é possível dizer que quando elas brincavam, o seu corpo todo experimentava dos mais diferentes sentimentos, todo sistema sensorial participava da brincadeira, toda uma relação consigo e com o outro era construída, aprendizagens se elaboravam, regras eram estabelecidas na própria auto-organização das crianças, o conhecimento sensível se abria diante de um futuro aberto de imprevisibilidades, uma vez que a brincadeira acontecia naquele momento do presente, vivia-se o agora do brincar.

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FIGURA 23: CRIANÇA BRINCANDO NUM BALANÇO CONSTRUÍDO PELO PAI, 1997.

FONTE: BROMÉLIA, ACERVO PESSOAL, 2012.

Há também que se assinalar as características que pulsam no brincar entre aquilo que se tem entre o sagrado e o profano, “brincando, o homem desprende-se do tempo sagrado e o esquece no tempo” (AGAMBEN, 2005, p. 85). Nas narrativas construídas, as memórias nos trazem analogias a esta afirmação de Agamben, “A gente perdia a noção do tempo, a gente acordava na rua e dormia na rua, de tanto que a gente brincava!” (JACARANDÁ, Depoimento, 2017).

Benjamin (1987), ao relatar suas memórias de infância, apresenta a relação que a criança elabora entre o ‘sagrado’ que exercia um poder e o ‘profano’ aquilo que desativava

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tais dispositivos controladores, oferecendo-se a criança como algo que ela podia transformar em objeto de suas vontades, de seus desejos.

Para Agamben (2007, p. 71), “profanar significa restituir ao uso comum o que havia sido separado na esfera do sagrado”. No entanto, “não significa simplesmente abolir e cancelar as separações, mas fazer delas um uso novo, a brincar com elas” (Agamben, 2007, p. 75). “Imagina se as irmãs112 pegassem a gente lendo gibis? Mas, a gente trocava muito gibi na escola embora fosse proibido.” (AÇUCENA, Depoimento 2012). Deste modo, o gibi levado para o ambiente ‘sagrado’ da escola também se fazia um modo de brincadeira, de troca de coleções, algo que as crianças gostavam de fazer, mas que entretanto, eram impedidas de levar, de ler, de fazer suas trocas, uma vez que “os gibis desvirtuavam da Língua Portuguesa, ou ensinavam fazer peraltices na cabeça das Irmãs” (AÇUCENA, Depoimento 2012). Contudo, as crianças atribuíam Você não é de bugre? — ele outro uso à eles, de troca, de brincadeira, mesmo que continuou. escondidas, o “desvio” apontava para um jogo, para Que sim, eu respondi. Veja que bugre só pega por uma experiência lúdica (Cf. BENJAMIN, 1987). Para desvios, não anda em estradas Benjamin o desvio de uma prática pré-determinada — demonstra como a relação entre a adaptação de uma Pois é nos desvios que encontra realidade e a autonomia pode auxiliar para constituir o as melhores surpresas e os ser humano no âmbito da experiência da modernidade ariticuns maduros. (BARROS, 2010, p. 319, grifos (Cf. GAGNEBIN, 2005). meus) Tais desvios do brincar, em especial no espaço da escola113, configuravam um território onde as crianças subvertiam a ordem do ‘não poder’ do ‘não dever’, havia um jogo como pontua Certeau (1998) entre o ‘fraco’ e o forte’, um jogo onde as crianças encontravam a partir de táticas ‘mil maneiras’ para brincar, driblando as estratégias do lugar (Cf. CERTEAU, 1998), do poder.

112 Em referência às Irmãs Católicas da Congregação Santo Nome de Maria, que vieram do Colégio Santo Inácio da cidade de Maringá-PR, trazidas pelo colonizador Ênio Pipino para direcionar todos os trabalhos educacionais e sociais da Gleba Celeste no período da colonização. As irmãs direcionavam as escolas da Gleba, assim como também exerciam à docência na única escola de Sinop no período em estudo – Escola Nilza de Oliveira Pipino. 113 Discutiremos mais sobre o brincar na escola no próximo subtítulo deste Canto.

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Infância. Brincar. História. Experiência. Desvios, Mistérios. Palavras que me tomam no instante desta escrita, fazendo-me corpo da minha própria escritura, possibilitando-me sentir, refletir sobre os tempos dos brincares desta pesquisa, sobre a dimensão educativa e a experiência humana da infância. Neste sentido:

Experienciar significa necessariamente, [...] reentrar na infância como pátria transcendental da história. O mistério que a infância institui para o homem pode de fato ser solucionado somente na história, assim como a experiência, enquanto infância e pátria do homem é algo de onde ele desde sempre se encontra no ato de cair na linguagem e na palavra. Por isso a história não pode ser o progresso contínuo da humanidade falante ao longo do tempo linear, mas é, na sua essência, intervalo, descontinuidade, epoché. Aquilo que tem na infância a sua pátria originária, rumo à infância e através da infância, deve manter-se em viagem (AGAMBEN, 2005, p. 65).

Martha Barros, No quintal - 92cm x 63cm - 2017

Tomando-me do vocabulário Manoelês, creio que o mistério da infância do homem, da mulher, não está em ‘revisitar’ o seu passado, em ‘ver’ suas memórias, ‘pensar’ a sua história, a sua infância. O passado, a experiência, a infância estão em nós, não se fazem exterior, como

“quisera uma linguagem que obedecesse a desordem das falas infantis do que as ordens gramaticais.201 Desfazer o normal há de ser uma norma. (BARROS, 2008, p.97)

algo que ficou perdido num tempo-espaço das nossas vidas, ao contrário, são fundamentos que nos compõe, são experiências traduzíveis e expressas em nosso corpo. Talvez o segredo não esteja no ver, mas, no ‘transver,’ pois, “o olho vê, a lembrança revê, e a imaginação transvê. É preciso transver o mundo. Deus deu a forma. Os artistas desformam. É preciso desformar o mundo [...].” (BARROS, 2010, p. 350).

É preciso desformar a história, é preciso desformar a educação. É preciso transver a infância, é preciso transver a experiência que nos fez e nos faz homens e mulheres no e com o mundo. Acrescentamos modo Bricoleur: Des-formação à norma e olhares de transver a infância e o brincar.

Bricoleur-Infante. Bricoleur-Desviante Bricoleur-‘Transversante’

Foto: Valmir Cordasso, 2016.

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3.2 Brincadeiras de Invencionática114: de crianças- natureza e de restos

Você tem que brincar com as coisas que você tem, se você não tem, você inventa, era isto que a gente fazia!

(IPÊ AMARELO, Depoimento 2017)

Meu quintal é maior do que o mundo. Sou um apanhador de desperdícios: Amo os restos como as boas moscas. Queria que a minha voz tivesse um formato de canto. Porque eu não sou da informática: eu sou da invencionática.

(Manoel de Barros)

Restos. Sobras. Latas. Cordas. Gravetos. Pedrinhas. Pedaços: de pau, de ferro, de pano. Trapos. Elásticos. Fios. Barbantes. Madeira. Barro. Penas. Espigas. Pó-de-serra. Retalhos. Sucatas. Estes e outros tantos outros elementos configuravam o brincar do cotidiano dos meninos e meninas do/no m/Mato, nossas árvores pertencidas neste trabalho. Qualquer sobra, qualquer resto de alguma coisa se tornava um brinquedo. Com pedacinhos de madeira se construía “grandes cidades”115. Com espigas de milho e pedaços de pano se fazia bonecas “com vestidos triunfantes”116. Com pedacinhos de tijolos e uma placa de alumínio um fogãozinho surgia para “fazer comidinha de verdade.117” Com um pedaço de barbante e duas latas amarradas em cada ponta, era possível “telefonar para os amigos”. Galhos de árvores se

114 Termo criado por Manoel de Barros 115 Depoimento Bromélia (2012) 116 Depoimento Jacarandá (2017) 117 Depoimento Vitória Régia (2016)

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transformavam em “casa da árvore” porque “[...] a gente fazia de conta que tinha uma casinha na árvore, mas não tinha, era só de imaginação”, Poças d’água se tornavam grandes rios pois, “para nós crianças eram tão grandes que pareciam rios, hoje eu vejo que nem eram tão enormes assim, mas na cabeça da gente quando criança, as coisas pareciam que era tudo muito maior!” 118 Estes são alguns dos exemplos de ‘Invencionática’ que faziam das maneiras de brincar, modos de aprender e de experienciar a infância. Nas mãos das crianças da temporalidade em estudo, qualquer coisa artesanalmente se tornava, e logo depois se tornava outra coisa: devir-brinquedos. Seus quintais eram maiores que o mundo, “num espaço onde as ações se desdobravam, onde criação e invenção eram nomes próprios, vistos pela ótica das artes de fazer” (ROHDEN, 2016, p.84), tudo se criava, se improvisava - bricoleurs infantes, saltitantes, peraltas. Bricolagens de uma ‘Invencionática’ – na arte de infancionar no chão, nos rios, na floresta: “Eu lembro que a gente gostava de pegar restos de fios das construções para brincar de fazer artesanatos” (IPÊ AMARELO, Depoimento 2016). “A gente pegava a lama e brincava de moldar artesanato” (VITÓRIA RÉGIA, Depoimento 2016).

Martha Barros, Sobre importâncias – 47cm x 38cm - 2015

Nesta arte de invencionar, o brinquedo-bricoleur produzido pelas crianças, podem ser caracterizados segundo Brougére (2008) de dois modos em peculiar: um primeiro em relação

118 Depoimento Açucena (2012)

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à brincadeira e o segundo modo em uma representação social que o brinquedo produz. Para o autor: No primeiro caso, o brinquedo é aquilo que é utilizado como suporte numa brincadeira; pode ser um objeto manufaturado, um objeto fabricado por aquele que brinca, uma sucata, efêmera, que só tenha valor para o tempo da brincadeira, um objeto adaptado. Tudo, nesse sentido, pode se tornar um brinquedo e o sentido de objeto lúdico só lhe é dado por aquele que brinca enquanto a brincadeira perdura. No segundo caso, o brinquedo é um objeto industrial ou artesanal, reconhecido como tal pelo consumidor em potencial, em função de traços intrínsecos (aspecto, função) e do lugar que lhe é destinado no sistema social de distribuição dos objetos (BROUGÉRE, 2008, p. 62-63).

Embora nas narrativas construídas haja a presença de brinquedos industrializados como por exemplo bicicleta, bonecas, bolas, estes aparecem em menor grau uma vez que no contexto pesquisado, as crianças criavam seus brinquedos a partir dos materiais que dispunham, transformavam objetos em brinquedos e davam-lhe sentidos próprios. “[...] no começo nós tínhamos os brinquedos trazidos do Paraná, mas com o tempo estes brinquedos foram estragando, ficando velhos, então nós inventávamos nossos brinquedos” (BROMÉLIA, Depoimento 2012). Tais brinquedos criados pelas crianças forneciam apoio às brincadeiras, uma vez que “a brincadeira está além do brinquedo, modificando, muitas vezes, seu sentido” (BROUGÉRE, 2008, p. 86) ou seja, o brinquedo no imaginário infantil não necessariamente precisa ser um objeto tateável, a criança ao brincar é todo corpo e o brinquedo pode ser o prolongamento deste corpo, por exemplo: dois dedos são suficientes para fazer um revolver em que crianças utilizam para brincar na mimética do mundo adulto, inclusive da violência que os cercam (Cf. BROUGÉRE, 2008).

Em um dos exemplos encontrados a partir das narrativas construídas, está o depoimento de Bromélia (Depoimento 2012), quando a mesma diz “as ruas eram de terra, [...] com água dos dois lados, porque quando chovia, escorria [...], quando chovia tinha de pular, e criança adora pular em poças” ou seja, a criança não precisava de um momento específico para fazer uma brincadeira, além disso, ela utilizava o seu corpo como instrumento para brincar, uma vez que não necessariamente precisasse possuir um brinquedo para tal. A ação de ‘pular’ para a criança se configurava uma brincadeira, uma diversão na qual todo o seu corpo participava.

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Também, vale ressaltar o enunciado de Benjamin (2002, p. 93) em relação a ser a brincadeira que ocupa com maior potência o imaginário da criança e não o brinquedo: “hoje talvez se possa esperar uma superação efetiva daquele equívoco básico que acreditava ser a brincadeira da criança determinada pelo conteúdo imaginário do brinquedo, quando na verdade dá-se ao contrário,” o filósofo acrescenta ainda: “[...] quanto mais atraentes, no sentido corrente, são os brinquedos, mais se distanciam dos instrumentos de brincar; quanto mais ilimitadamente a imitação se manifesta neles, tanto mais se desviam da brincadeira viva” (BENJAMIN, 2002, p. 93).

O que Benjamin enfatiza em suas colocações é que a criança brinca, cria, inventa principalmente diante de uma ação de ‘desfazer a norma’, de modificar o sentido daquilo que supostamente é dado como algo pronto, de um brinquedo produzido pelo olhar de um adulto e que por isto tem um significado, uma simbologia oferecida à criança em “forma de culto, os quais só mais tarde, e certamente graças à força da imaginação infantil, transformaram-se em brinquedos” (BENJAMIN, 2002, p.96). Neste sentido, a criança que brinca, ‘transvê’, desfaz a norma do brinquedo ‘feito’, ‘pronto’, é a autonomia do brincar que se faz pelo desvio, como salienta o filósofo em seus estudos. Deste modo, a brincadeira se faz o espaço para transver o sentido do brinquedo, o significado único do momento do brincar que somente a criança consegue atribuir, e que se dá a partir da mimese, da repetição e do desvio119, práticas estas que sempre se modificam e jamais acontecem de forma linear:

[...] eu lembro que uma vez, eu devia ter uns sete anos [...] eu ganhei um caminhãozinho de uma tia que veio do Paraná para nos visitar. Era um caminhão daqueles que se vendia, bem simples, mas eu nunca tinha ganhado nenhum brinquedo comprado. Então, eu acho que eu devia ser curioso e desmontei todo caminhão, tirei as rodas, a carroceria e misturei com outras pedaços de outro caminhão de madeira, fiquei com dois caminhões, achei que estava no lucro (risos) mas, minha mãe não gostou que eu tinha destruído o presente da tia e levei uma tunda120. (INGÁ, Depoimento, 2017).

Neste depoimento, é possível inferir que a criança ao desmontar um brinquedo pronto, ao praticar o que vamos chamar de ‘arte do desvio’, deixava impressas suas marcas de autoria.

119 Tais conceitos enunciados nos ensaios de Benjamin (2002), explorarei em todo este Canto de forma que se entrelace às narrativas históricas e a fundamentação teórica adotada. 120 Em consulta à um dicionário de Língua Portuguesa, a palavra ‘tunda’ s.f. significa o mesmo que levar uma surra. Na linguagem figurativa, significa uma repreensão ríspida, severa. Disponível em: http://www.aulete.com.br/tunda acesso em 02 mai. 2017.

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O desmontar e o reconstruir com outras ‘peças’ é a essência do que venho chamando em todo este trabalho, fundamentada em Certeau (1998) de bricoleur. Os novos encaixes, os diferentes olhares que a criança construía diante de qualquer elemento se fazia uma construção cultural de seus fazeres, saberes e artes cotidianas. O bricoleur, o devir-brinquedo lhe trazia prazer, lhe abria outras e novas possibilidades de conhecer o mundo e de fazer seu próprio mundo, dando sentido próprio à brincadeira.

MARTHA BARROS, Pedrinhas no nosso quintal - 145cm x 86cm - 2010

Diante do exposto, a não linearidade dos acontecimentos e o estado quase ‘anárquico’ dos desmontes, dos restos reaproveitados, dos novos ‘encaixes’ sem conter os traços clássicos de um objeto feito pelo mundo adulto, se fazia um universo de ideias, de devires, de fluxos, de agenciamentos, que eram oferecidos pela brincadeira, qual permitiam que a criança construísse “vivências infantis situações de resistência e autonomia frente à vida administrada” (SANCHES, 2017, p.7). Entretanto, a intenção aqui não é a de retirar qualquer valor do brinquedo, mas, enfatizar que “a função do brinquedo é a brincadeira” (BROUGÉRE, 2008, p. 13). Ou seja, o brinquedo é uma ferramenta da ação do brincar e,

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neste sentido, o que caracteriza essencialmente a brincadeira é que “ela pode fabricar seus objetos, em especial, desviando do seu uso habitual os objetos que cercam a criança; além do mais é uma atividade livre, que não pode ser delimitada” (BROUGÉRE, 2008, p. 14).

Deste modo, o brinquedo instiga a brincadeira ao abrir possibilidades de criação, de invenção. Para Agamben (2005) o brinquedo contém uma essência histórica, há nele uma materialização da historicidade contida nos objetos, qual é possível de se extrair a partir de sua manipulação. Para o autor o brinquedo desmembrando e distorcendo o passado ou miniaturizando o presente, joga tanto com a diacronia quanto com a sincronia e então, “presentifica e torna tangível a temporalidade humana em si, o puro resíduo diferencial entre o uma vez e o agora não mais” (AGAMBEN, 2005, p.87, grifos do autor).

Neste cenário, o brinquedo concebido por sua essência histórica, jogando de forma diacrônica e sincrônica, apresenta de acordo com Agamben (2005) uma analogia com o bricolage que Lévi-Strauss, se utiliza em alguns momentos da sua obra para apresentar o pensamento mítico. De acordo com Agamben (2005, p. 87), “tal como o bricolage, também o brinquedo serve-se de fragmentos (bricole) e de peças (pezzi) pertencentes a outros conjuntos estruturais (ou em todo caso, de conjuntos estruturais modificados), também o brinquedo transforma assim antigos significados em significantes e vice-versa”.

Certeau em “A invenção do cotidiano” (1998) concebe a bricolagem a partir dos modos que os sujeitos criam para driblar as táticas de um lugar, com inovação, pluralidade, criatividade, quais surgem do improviso utilizando-se de meios que se dispõe para que o sujeito ‘aproveite-se’ da ocasião. Para Certeau o bricoleur é a própria manifestação da astúcia humana, que foge à regra, que se aproveita de qualquer elemento para fazer surgir suas artes cotidianas. Então:

[...] ficamos a brincar brincadeiras e brincadeiras. Porque a gente não queria informar acontecimentos. Nem contar episódios. Nem fazer histórias. A gente só gostasse de fazer-de-conta. De inventar as coisas que aumentasse o nada. A gente não gostasse de fazer nada que não fosse brinquedo [...] As palavras mais faceiras gostam de inventar travessuras. (BARROS, 2008, p.133).

É deste modo bricoleur tão mencionado nesta pesquisa, de fazer travessuras nesta escritura, que percebemos que as crianças no tempo-espaço investigado se aproveitavam para

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manifestar suas artes de fazer, inventando, criando, dando forma aos mais diferentes materiais para criar ocasiões de brincar, seja inventando brinquedos, seja na brincadeira fundada nos desvios, na repetição, na mimese. E, neste contexto, faz-se importante mencionar que a natureza oferecia todas as condições para que a brincadeira acontecesse: seja pelos elementos naturais, seja pela matéria-prima.

A criança e a natureza estavam intimamente ligadas, a cultura infantil se manifestava neste fazer criança-natureza. E, sobre o chão onde as linhas abissais se tencionavam, a liminiaridade dos conflitos da fronteira aconteciam, haviam crianças que contribuíram para compor esta história: ora na escola, ora nos eventos socioculturais promovidos na cidade, ora no trabalho (uma vez que muitos trabalhavam para ajudar a família), ora no brincar – momento peculiar para se constituir uma cultura específica entre seus pares.

Benjamin em relação aos modos de brincar nos traz algumas inferências importantes, que me permitem relacioná-los às narrativas que ouvi das memórias em ‘estágio árvores’, dentre elas – a possibilidade da criança criar brinquedos a partir dos materiais mais diferenciados (o que venho chamando de brincar-bricoleur) e o fato destes materiais muitas vezes descartados representar o vínculo entre pais e filhos quando o brinquedo era construído por esta ligação que os unia. Importa-nos ouvir o autor:

Se [...] fizermos uma reflexão sobre a criança que brinca, poderemos falar então de uma relação antinômica. De um lado, o fato apresenta-se da seguinte forma: nada é mais adequado à criança do que irmanar em suas construções os materiais mais heterogêneos –pedras, plastilina, uma pinha ou uma pedrinha reúnem na solidez, no monolitismo de sua matéria, uma exuberância das mais diferentes figuras. [...]. Madeira, ossos, tecidos, argila, representam nesse microcosmo os materiais mais importantes, e todos eles já eram utilizados em tempos patriarcais, quando o brinquedo era ainda a peça do processo que ligava pais e filhos. (BENJAMIN, 2002, p. 93).

Neste sentido, alguns trechos das narrativas construídas podem ajudar a refletir sobre tais inferências tanto de Benjamin, quanto de outros teóricos já mencionados em relação a capacidade de criação da criança na brincadeira, como deste vínculo primeiro entre pais e filhos. Penso que o cenário de floresta, a relação mútua criança-natureza, a dificuldade de acesso aos produtos industrializados que na época iniciava-se um auge no país, a ausência de

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meios de comunicação, foram fatores que contribuíram para que este brincar existisse no contexto pesquisado, em plenas décadas de 1970-1980, do século XX.

No universo do brincar, em especial no mundo da criança que brincava, no contexto historicamente em investigação, se aproximavam e misturavam-se os mais diferentes artefatos: madeira, latas, pedrinhas, papel, tecidos, elásticos, plásticos, vidro, madeira, pó de cerra, metais, areia, osso, barro, gravetos. Estes materiais eram “mimetizados e transformados em brinquedos numa relação de entrega, emancipação, contemplação e supremacia em relação ao objeto, Isto porque a gente foi criada resistência à banalização, criação e repetição" (ALVES, em lugar onde não tinha SILVA; et. al., 2015, p. 50). Descrevo então, alguns brinquedo fabricado. Isto depoimentos que selecionei, quais associo à discussão porque a gente havia de proposta: inventar os nossos brinquedos: eram boizinhos de [...] eu tinha que inventar meus brinquedos. Eu pegava coisas velhas ou restos de coisas que sobravam por exemplo, osso, bolas de meia, caixinhas, potes de plástico, e eu cortava e modelava meus brinquedos. Então, eu construía navio, carrinhos, eu lembro que automóveis de lata. Também a com uma garrafa de amaciante eu fiz a Kombi do Scubby 121 gente fazia de conta que sapo Doo . Então eu criava meus brinquedos, e eu brincava muito, eu gostava de brincar de misturar as cores de anilina eu as fazia era boi de cela e viajava de cair no mesmo lugar e as cores se misturavam (IPÊ AMARELO, Depoimento 2016). sapo (BARROS, 2008, p. 63).

121 Trata-se de um desenho animado estadunidense produzido pela Hanna-Barbera, e criado no ano de 1969 por Iwao Takamoto. Tal desenho era transmitido pela televisão brasileira e famoso entre as crianças nas décadas de 1967, 80 e 90. Faz-se necessário pontuar que no depoimento deste sujeito de pesquisa o mesmo conhecia o desenho e provavelmente assistia quando residia no sul do país, visto que chegou em Sinop com 7 anos de idade e na época que chegou ainda não havia transmissão televisiva.

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FIGURA 24: CRIANÇA BRINCANDO COM RESTOS DE MADEIRA E DE OUTROS RESÍDUOS, 1981.

FONTE: IPÊ AMARELO, ACERVO PESSOAL, 1981.

Eu adorava pular tábua: quanto mais alto, melhor [...], tinha as tábuas especiais para pular e os toquinhos que achávamos nas serrarias, eram restos, mas para a criançada era um tesouro! (AÇUCENA, Depoimento 2011).

A gente construía brinquedos, fazia bola de meia para arremessar no palhaço, era a criatividade mesmo! Usávamos latas de azeite para jogar bets122, fazíamos de restos de madeira os tacos. Reunia todas as crianças da rua para jogar bets a tarde toda. Era tudo nós que construíamos, que organizávamos os pares, as regras. Não precisava de adulto, a gente se ajeitava sozinhos. (COPAÍBA, Depoimento 2011).

Naquele momento não existia televisão, ou internet, ou qualquer brinquedo destes de hoje, era só inventar mesmo. A gente catava nos lixos latas fazia furos nelas, amarrava uma lata na outra, pegava uns pedaços de madeira e montava uns tratores e saía puxando, a diversão estava mais em montar do que em ficar puxando depois. Porque a gente ficava dias catando os restos de

122Bets ou Jogo de Tacos é um esporte que descende do "cricket" britânico. O objetivo principal do jogo é fazer corridas extremamente com a bola lançada pelo jogador adversário, sendo que durante o tempo em que o adversário corre atrás da bola, a dupla que rebateu deve cruzar os bets, no centro do campo, fazendo assim dois pontos cada vez que cruzam os tacos.

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latas, madeiras, potes, na vizinhança e depois fazia todo um projeto de montar tratorzinhos com eles (ANDIROBA, Depoimento 2017).

Contextualizando os testemunhos orais com os escritos de Walter Benjamin (2002) e a poesia de Manoel de Barros, pode-se inferir que tanto nos pressupostos teóricos do filósofo quanto nas memórias das ‘arvores pertencidas’, quanto na poética de Barros que as brincadeiras aparecem como uma forma em que a criança explora o mundo, atribuindo significados próprios. Os brinquedos da ‘invencionática’ surgiam como espelhos da autonomia daquelas crianças, é na t/Terra que estava os “mais incomparáveis objetos de atenção e da ação das crianças” (BENJAMIN, 2002, p. 103), e portanto, as crianças criavam, imaginam, inventam, formulam, faziam, refaziam, construíam, reconstruíam123 - “É assim que as crianças formam seu próprio mundo das coisas, com um pequeno universo inserido em um maior: imitam e criam, fazem de novo, com novos arranjos e interpretações, a partir daquilo que têm de modelo” (ALVES; SILVA et. al. 2015, p. 54).

MARTHA BARROS, Caminho de fugir - 45cm x 22cm - 2011

123 Acrescento um dos depoimentos que tive acesso na Coleção de História Oral da Universidade de Colorado – USA, que reforça a discussão das crianças aproveitarem de qualquer espaço, material, para brincar, para inventar brincadeiras: “os meninos cavaram um buraco no porão […] era um lugar maravilhoso pra gente brincar […]. . Na primavera, se enchia o buraco com água e nós flutuávamos barquinhos. No inverno, nós fazíamos uma rampa na parte traseira desse buraco, então fazíamos de conta que estávamos aprendendo a esquiar e brincar de trenó lá em baixo. Aquele lugar que nós inventamos, era um maravilhoso parque infantil! Não é engraçado? E todas as crianças do bairro vinham para brincar. Creator: Jones-Eddy, Julie. Date Created: 1984-09-27 Place: Colorado Springs, Colorado. Disponível em: https://digitalccbeta.coloradocollege.edu/pid/coccc:2478 (Tradução minha).

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Ainda, no que se refere na construção de brinquedos entre pais e filhos, na participação dos adultos nas brincadeiras, cito também alguns trechos de narrativas:

[...] eu ganhei uma casinha de madeira pra mim, que foi construída do lado da minha casa. Era bem pequenina [...] meu pai que fez e eu lembro que ajudei ele a pintar com a tinta que veio do Paraná. (VITÓRIA RÉGIA, Depoimento 2016).

FIGURA 25: CASINHA DE BRINCAR FEITA PELO PAI DE VITÓRIA RÉGIA, 1978.

FONTE: VITÓRIA RÉGIA, ACERVO PARTICULAR, 1978.

[...] meu pai quando podia ajudava eu e meus irmãos a construir caminhãozinho de madeira, estilingue, até peteca eu lembro que uma vez meu pai ajudou a gente fazer e depois minha mãe colocou um paninho em volta dela. (INGÁ, Depoimento 2017) [...] eu queria uma boneca com cabelo, mas, eu nunca consegui ter uma. Então, como a gente fazia: a gente pegava a espiga de milho, minha mãe arrumava a boneca, fazia uma roupinha com algum resto de tecido velho e arrumava os cabelinhos da espiga de milho para fazer de conta que era uma boneca. A gente brincava com as bonecas de milho, mas meu sonho mesmo era ter tido uma boneca de verdade com cabelos. (JACARANDÁ, Depoimento 2017). [...] não existia aquela preocupação dos pais que brincar era importante. Eles não sabiam disso, acho que era natural, não precisava mandar a gente brincar

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[...]. Mas, acho que de alguma forma eles devia saber disto [...], eu lembro que uma vez a minha mãe cortou um tapete velho e deu os pedaços para nós, então a gente brincava de casinha com estes pedaços em cima da árvore [...]. E a gente levava os brinquedos que tivessem pra cima da árvore, ficávamos horas lá em cima brincando em cima desta árvore, era uma mangueira (VITÓRIA RÉGIA, Depoimento 2017). [...] eu lembro que a gente fazia brincadeiras a noite também, até ir dormir. Ás vezes tinha alguém que sabia tocar violão e ficava tocando, as crianças cantando, ai alguns jogos bem antigos de dados ou dominó, a gente se reunia para brincar a noite não só as crianças, os adultos também vinham para jogar com a gente, misturava todo mundo junto (VITÓRIA RÉGIA, Depoimento 2017).

MARTHA BARROS, Brinquedos - 130cm x 90cm - 2012

De acordo com os trechos acima elencados, se constituía a forma artesanal como os brinquedos eram produzidos por pais e filhos124, assim como participação dos adultos em

124 Em outra narrativa da coleção da Universidade de Colorado, encontrei semelhanças também ao brincar e inventar brinquedos ou brincadeiras junto aos pais: “Os invernos não eram tão maus, exceto que nós sempre queríamos ficar ao ar livre e brinca, e muitas vezes não conseguimos ir ao ar livre e brincar no inverno pois a neve ficava muito profunda, então fazíamos nossos próprios brinquedos em casa. A mãe tinha coleção de cartões postais, então, construímos casas com eles, palácios e depois destruíamos para construiu mais. Além disso, não tínhamos bonecas, então fazíamos de papel. Eu cortei muito papel para fazer bonecas”. Creator: Jones-Eddy, Julie. Date Created: 1984-06-02. Place: Colorado Springs, Colorado Disponível em: https://digitalccbeta.coloradocollege.edu/pid/coccc:2476 (Tradução minha).

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alguns jogos junto à criança, sem pretensões pedagógicas, mas essencialmente lúdicas, atividades estas que nos ensaios de Benjamin (2002) são enfatizadas antes do processo de industrialização dos brinquedos, quando existia um fazer brinquedo de forma artesanal e único125, constituindo de elementos simples, que revelavam arte, quando ainda segundo o autor, “a arte popular e a concepção infantil do mundo desejavam ser compreendidas como configurações coletivas” (BENJAMIN, 2002, p. 96).

Outra característica do brincar na obra de Benjamin (2002) é a repetição, qual “proporciona à criança uma temporalidade que a permite incorporar a experiência numa autonomia progressiva” (SANCHES, 2017, p. 8). De acordo com Benjamin (2002, p.102) “A essência do brincar não é um “fazer como se”, mas um “fazer sempre de novo”, transformação da experiência comovente em hábito. O autor convida-nos a pensar que para a criança, acima de todas as regras e ritmos particulares do jogo, da brincadeira, rege a totalidade da ‘Lei da Repetição’, que nas palavras do filósofo:

Sabemos que para a criança ela é a alma do jogo; que nada a torna mais feliz do que o “mais uma vez”. A obscura compulsão por repetição não é aqui no jogo menos poderosa, menos manhosa do que o impulso sexual no amor. E não foi por acaso que Freud acreditou ter descoberto um “além do princípio do prazer” nesta compulsão. E, de fato, toda e qualquer experiência mais profunda deseja insaciavelmente, até o final de todas as coisas, repetição e retorno, restabelecimento da situação primordial da qual ela tomou o impulso inicial (BENJAMIN, 2002, p. 101)

Deste modo, é a lei do ‘mais uma vez’ que convida a criança ao desejo de brincar novamente, da mesma brincadeira, no entanto, exprimindo a cada nova vez um significado diferente, como um “saborear, sempre de novo e de maneira mais intensa, os triunfos e as vitórias” (BENJAMIN, 2002, p. 101). Para o autor, o repetir provoca o hábito como o vestir, o lavar-se, comer, dormir, que devem ser inseridos na vida da criança de forma lúdica, pois segundo o filósofo o “hábito entra na vida como brincadeira, e nele, mesmo em suas formas

125 De acordo com Benjamim a cultura do brincar, ou seja, o interesse pelos brinquedos como a materialização da atividade em si, teve sua origem na Alemanha, em lugares não especializados, como oficinas de entalhadores de madeiras ou de fundidores de estanho (Benjamin, 2002, p. 89). Foi somente a partir de meados do século XVIII que os brinquedos passaram a revelar-se no competitivo mercado de fabricantes especializados. A partir desse período, as indústrias manufatureiras, que anteriormente tinham sua produção de brinquedos posta em segundo plano e eram restritas à fabricação apenas daquilo cujo ramo lhes competia, passaram a dividir entre si as tarefas distintas que culminariam na produção do brinquedo a ser vendido sob altos custos como mercadoria (idem, ibidem. p. 90).

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mais enrijecidas, sobrevive até o final um restinho da brincadeira – “Repetir, repetir – até ficar diferente.” “Repetir é um dom do estilo” “. (BARROS, 2010, p. 300). Neste sentido, brincar é não apenas um “fazer de conta”, mas essencialmente, um “fazer de novo”, de “transformar a experiência mais comovente em hábito” (BENJAMIN, 2002, p. 101):

Todos os dias a gente saia da escola e ia num lugar onde tinha uns morrinhos com muita mata e cipós, a gente se pendurava naqueles cipós e ia... para nós era balanço, cada um tinha um cipó, e eu sempre era muito danada e me estrepava. A gente corria muito, não parava, parecia que tinha trocado as pilhas [...] A gente atravessava um matinho para chegar até em casa e não tinha jeito era achar um cipó a gente ia embalado no cipó, era muito bom atravessar aquela mata e se pendurar nos cipós, não era uma vez ou outra, a gente perdia a conta de quantas vezes fazia isto. (JACARANDÁ, Depoimento 2017).

A gente tinha um vizinho que tinha um cachorro [...]. E a gente ia muito à casa deste vizinho porque lá a gente brincava de casinha, um era o papai, tinha a mamãe, os filhinhos, a gente reproduzia as ações dos adultos, fazia almoço, tinha a cozinha, tudo improvisado. Mas, o que mais me marcou foi que no final toda a vez a gente sempre brincava de fugir do cachorro. O menino segurava o cachorro, a gente corria dele e subia em alguma coisa e tinha que ficar lá porque daí ele soltava o cachorro que ficava latindo pra gente descer, a gente ficava horas lá rindo do cachorro tentando pegar a gente. Provavelmente o cachorro era bonzinho, nem mordia, mas na cabeça da gente ele era um monstro que queria pegar a gente (risos) (IPÊ AMARELO, Depoimento 2016).

De acordo com Santos (2015, p.130) “A diferença entre a repetição e a criação no jogo está nos limites entre conhecer o mundo e recriá-lo à maneira do sujeito que o experimenta, pois a criação revela uma atitude positiva de resposta frente ao mundo”. Diante disto, é possível perceber nas narrativas que tal repetição dos jogos, das brincadeiras, da manipulação dos mesmos brinquedos, enfim, que tais ações não se davam da mesma maneira, como uma forma reprodutiva de brincar, mas, de manifestar ações muitas vezes pela mimese do mundo adulto, mas de forma sempre diferente, criativa, onde a criança era cercada por experimentações de ‘um fazer de novo’ em uma dimensão na “relação de compreensão do mundo e do sentido de uma experiência vivida” (SANTOS, 2015, p. 130).

Outro ponto relevante das análises realizadas se refere ao brincar tendo a natureza como corpo da própria criança que brincava. A relação criança-natureza naquele contexto

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histórico se fazia relação de encontro, de reciprocidade, de amor, de aprendizagens, elementos do brincar e consequentemente, território de aprendizagens.

Conforme alguns trechos elencados, é possível compreender a dimensão desta relação126:

[...] eu achava lindo aquela natureza! Tive oportunidade de viver uma infância em meio à natureza, tive toda a liberdade de mexer com barro, tomar banho de chuva, subir em arvore (risos) a coisa mais fácil era achar uma árvore com cipó, era puro Tarzan mesmo! Passar com cipó pelas poças d’água grande, que agora vejo que não eram tão grandes, mas quando crianças pareciam rios, imaginava maior ainda. [...] nosso mundo era aqui [...]. (AÇUCENA, Depoimento 2012).

A gente brincava muito em árvores, em rios, Sinop era um rio, porque era um brejão, nós não precisávamos ir em rios, se chovia um pouquinho era só lagoa, as poças d’água eram imensas, ai nós fazíamos a festa – eu lembro que a gente brincava na chuva em frente de casa, ficava tudo embarrado, uma lama só! Haviam muitas árvores, era tudo árvores do lado da gente, Sinop era puro árvores, uma floresta mesmo! Só tinha umas ruas, o restante era tudo árvores, mata mesmo. A gente vivia em cima das árvores brincando com os macaquinhos. (JACARANDÁ, Depoimento 2017).

Eu gostava de brincar com as formigas (risos). A gente brincava muito com animais: em casa tinha papagaio, tinha uma arara. [...] Usava as sementes de sete-copa como arminhas. Eu acho que a gente acaba brincando mais com os restos das madeireiras, restinhos de madeiras para construir casinhas, cidadezinhas. A gente também brincava muito nos rios. Eu lembro que a gente pegava as bicicletinhas e íamos para os rios, tinha o rio Shalon, e pra lá da Tarumãs (uma das Avenidas de Sinop) não tinha nada, mas tinha uns valetões para escoamento de água e quando chovia aquilo enchia, transbordava, ficava meses cheio na frente das casas, aí a gente brincava de pescar ali, uma vez eu peguei um peixinho e criei ele em casa (IPÊ AMARELO, Depoimento 2016).

126 Ainda, trago outros depoimentos sobre essa questão criança-natureza, diante da Coletânea da Universidade de Colorado – USA: “Durante o verão, sempre que possível, subíamos as montanhas, e colocávamos à sombra para olhar as nuvens e brincávamos de fazer desenhos das nuvens”. Creator: Jones-Eddy, Julie; Date Created: 1984- 06-02, Place: Colorado Springs, Colorado. Disponível em: https://digitalccbeta.coloradocollege.edu/pid/coccc:2476 (Tradução minha). Em outro depoimento, as crianças usavam a neve para brincar: “Costumávamos brincar de raposa e gansos e nós usamos a neve que era tão pesada no inverno para tal brincadeira…lembro também que fazíamos um túnel na neve pra brincar de casinha, sabe… Fazíamos uma casa inteira fora da neve e o túnel nos levava às partes da casa, como para o quarto…” Creator: Jones-Eddy, Julie. Date Created: 1984-06-23; Place: Colorado Springs, Colorado Disponível em: https://digitalccbeta.coloradocollege.edu/pid/coccc:2961 (Tradução minha).

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Tive muito contato com os animais, com a natureza, os que eu mais gostava eram os dois macaquinhos, eles faziam bastante barulho, eram sapecas, principalmente o Macaco prego, o Chiquinho. [...] Eu tinha verdadeiro amor pelos macaquinhos, eram da família. A minha casinha virou a casinha dos macaquinhos. Todos os animais tinham nome. Eu lembro que a gente tinha duas galinhas que era Maria Clara e a Maria Eugenia e tinha o Galo que era o Diogo. Era muito divertido (VITÓRIA RÉGIA, Depoimento 2016).

Martha Barros, Desejo de árvores e aves - 170 cm x 80 cm - 2013

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FIGURA 26: CRIANÇAS BRINCANDO NA MATA EM FINAL DA ESTAÇÃO DA SECA (OUTONO), 1977.

FONTE: BROMÉLIA, ACERVO PESSOAL, 2011.

FIGURA 27: CRIANÇAS EM COMPANHIA DA MÃE E DA ARARA COM QUEM BRINCAVAM, 1978.

FONTE: BROMÉLIA, ACERVO PESSOAL, 2011.

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Arte: Aquarela de Flávio Ribeiro, 2018. Disponível em: https://www.flavioribeiroartes.com.br/

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Sentimento de pertencimento à natureza é o que caracteriza as narrativas dos meninos e meninas do mato, que assumiam a condição enquanto espécie biológica de ser mais um dos fios de tantos outros que formavam a teia da vida, seres vivos como “unidades autônomas” (Cf. MATURANA; VARELA, 2001), capazes de “especificar sua própria legalidade daquilo que lhe é próprio” (MATURANA; VARELA, 2001, p. 55) e portanto, assumiam sua característica autopoiética, qual se afirmava por seus próprios cordões e, se constituía como “diferente do meio por sua própria dinâmica, de tal maneira que ambas as coisas se fizessem inseparáveis” (MATURANA; VARELA, 2001, p. 55).

Deste modo, é possível inferir que toda biodiversidade que cercavam aquelas crianças estava entrelaçada às experiências biológicas constituídas, que perpassam as temporalidades, “feito grandeza cantável, feito entre madrugar e amanhecer” (ROSA, 2015, p. 57), possibilitando que todo o corpo ainda sinta as memórias da experiência vivida. Viver a natureza, estar imerso nela e sentir a experiência acontecer’, se constituíam o ‘eterno do instante’ como uma fuga de Bach, como momentos do brincar em meio à vida que de forma sinestésica, os sentidos despertam toda uma delicadeza, uma sensibilidade, uma amorosidade com o meio, com o outro, capaz de transformar uma conexão primal entre sujeito-natureza de forma que:

A compreensão mais profunda que o sensível nos possibilita humanizar a reflexão, precisamente porque se trata de uma sensibilidade como organização de nosso campo perceptivo (permitindo a reversibilidade entre todos os sentidos: visão, olfato, paladar, audição, cinestesia, intuição, etc.); ou seja, num determinado estilo de configuração simbólica que nos permite ter acesso, pela potência poética imaginante, a determinados estratos de significação e sentidos (SANTOS, 2009, p. 23).

Vivendo a natureza, brincando com ela, as crianças do nosso tempo histórico eram como Aión, como força vital, como “essência temporalizante” que de forma sincrônica brincavam “daquela brincadeira das pedrinhas que a gente jogava pra cima, a gente jogava do lado da mão, jogava pra cima e rapidamente tinha que pegar outra” (CASTANHEIRA, Depoimento 2016). “as cinco-Marias, eu me lembro bem!” (VITÓRIA REGIA, Depoimento 2016), e por não obedecer à um tempo cronometrado, antropocêntrico, perdiam a noção dele, pois, “[...] a gente pensava sempre que o dia de hoje ainda era ontem. A gente se acostumou de enxergar de antigamente” (BARROS, 2010, p. 426), assim:

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[...] a gente acordava brincando e dormia brincando (risos) [...]. Foi uma infância muito boa, era tudo muito simples, tudo muito natural, era tudo muito natural [...]. Era uma infância de simplicidade, de coisas da natureza, de brincar muito, a gente acordava na rua e dormia na rua, de tanto que a gente brincava. (JACARANDÁ, Depoimento 2017).

Deste modo, neste devir-histórico, acontecia o que Merleau-Ponty chama de um “acasalamento entre os corpos e as coisas.” Nas palavras do autor:

A coisa nunca pode ser separada de alguém que a perceba, nunca pode ser efetivamente em si, porque suas articulações são as mesmas de nossa existência, e porque ela se põe na extremidade de um olhar ou ao termo de uma investigação sensorial que a investe de humanidade. Nesse medida, toda percepção é uma comunicação ou uma comunhão, a retomada ou o acabamento, por nós, de uma intenção alheia ou, inversamente, a realização, no exterior, de nossas potências perceptivas e como um acasalamento de nosso corpo com as coisas (MERLEAU-PONTY, 1994, p. 429).

Neste contexto toda essa comunhão das percepções vividas pelos corpos aqui concebidos como ‘árvores pertencidas’ ocasionava a decodificação do mundo ao mesmo tempo em que o transformava em um tecido familiar (Cf. LE BRETON, 2016) Assim, “o homem vê, ouve, sente, saboreia, toca, experimenta [...], percebe o murmúrio interior de seu corpo, e assim faz do mundo uma medida de sua experiência, o torna comunicável aos outros, imersos como ele no centro do mesmo sistema de referências sociais e culturais” (LE BRETON, 2016, p. 16).

Finalmente, diante deste brincar livre onde havia mais ‘comunhão com as coisas do que comparação’, onde as crianças aprendiam a ‘gostar das coisinhas do chão antes mesmo das coisas celestiais’, ainda me servindo da poética de Manoel de Barros em consonância com a historicidade em estudo, posso afirmar que “nada havia mais prestante em nós senão a infância. O mundo começa ali” (BARROS, 2008, p.119, grifo meu).

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Este mundo ainda cheira maracujá, manga, caju, carambola, tem cheiro de pão quentinho saindo do forno Tem manga, 127 tem goiaba, de barro e do café passado na hora . tem seriguela, Este mundo ainda tem gosto dos e jabuticaba. docinhos da infância: “do doce de Tem árvores de todas as frutas, tem até jaca e mangaba. abóbora em formato de coração, do tem meninos nos galhos delas... doce de mamão feito pela mãe” Neste mato não falta nada. (SERIGUELA, Depoimento 2017), “do (Josi Rohden, 2016). suspiro, daqueles sorvetes-secos que dava uma vontade de comer”

(JACARANDÁ, Depoimento 2017). Tal mundo ainda tem o “barulho dos macaquinhos” (VITÓRIA RÉGIA, Depoimento 2016), tem o som dos passarinhos e a lembrança do grito da mãe: “eu gostava muito de pássaros, eu sempre desde criança acordava muito cedo e aqueles sons dos passarinhos...eu me concentrava nos sons dos passarinhos, aí escutava os gritos da mãe me chamar por que eu estava atrasada, e eu estava lá, pendurada num pé de árvore, escutando os passarinhos” (JACARANDÁ, Depoimento 2017).

Lembrar da infância tem cheiro, sabor, sons, paisagens, texturas. Lembrar da infância é sentir o passado que caminha com o presente, de mãos dadas como se o mundo começasse de novo ali, no mesmo lugar, na repetição de uma brincadeira que não cessa de querer ‘fazer outra vez’, pois, “eu não via a hora de chegar o outro dia para brincar de novo” (COPAÍBA, Depoimento 2012). E tinha um canto até para brincar de novo que era bem assim: “Quem quer brincar coloca o dedo aqui, que já vai fechar o abacaxi” (SERIGUELA, Depoimento 2017).

Diante disto, “toda nossa infância está por ser reimaginada" (BACHELARD, 2009, p. 94), seja pelas nossas próprias recriações das memórias dela, seja pelas vozes das nossas famílias que recontam, reimaginando nossas histórias de infância. E ao reimaginar nossa infância, temos a possibilidade de reencontrá-la na própria vida dos nossos devaneios de

127 Conforme os cheiros que nossos sujeitos de pesquisa narram a partir de suas memórias

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criança [...]. (BACHELARD, 2009, p. 94). Deste modo, “o devaneio voltado para a infância nos restitui à beleza das imagens primeiras” (BACHELARD, 2009, p. 97), como nas imagens do poeta-menino que cava buracos no seu quintal e consegue achar ali, na sua intimidade crianceira, o começo de tudo: dos meninos e meninas que fomos.

Acho que o quintal onde a gente brincou é maior do que a cidade. A gente só descobre isso depois de grande. A gente descobre que o tamanho das coisas há que ser medido pela intimidade que temos com as coisas. Há de ser como acontece com o amor. Assim, as pedrinhas do nosso quintal são sempre maiores do que as outras pedras do mundo. Justo pelo motivo da intimidade. [...]. Se a gente cavar um buraco ao pé da goiabeira do quintal, lá estará um guri ensaiando subir na goiabeira. Se a gente cavar um buraco ao pé do galinheiro, lá estará um guri tentando agarrar no rabo de uma lagartixa. Sou hoje um caçador de achadouros da infância. Vou meio dementado e enxada às costas cavar no meu quintal vestígios dos meninos que fomos [...] (BARROS, 2008, p. 59).

Acrescentamos modo bricoleur: achadouros da infância Bricoleur-escavador Bricoleur- explorador ... dos joelhos ralados

Porque “a gente explorava os terrenos baldios, subia nos pedaços de raízes das árvores, íamos para o rio [...], a gente fazia estas explorações” (CASTANHEIRA, Depoimento 2016).

Então, “a gente vivia de joelho ralado, machucados de tanto brincar” (VITÓRIA RÉGIA, Depoimento 2016).

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Martha Barros, Floresta Lúdica - 130cm x 90cm - 2008

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3.3 Brincar sob o ‘tic-tac’ da escola: “tocava o sino era uma debandada porta afora” 128

Eram só quinze minutinhos, mas a gente aproveitava muito para brincar. (BROMÉLIA, 2011).

Quando crianças a gente brincava com o tempo e ele brincava com a gente. Os adultos não entendiam que o sinal do tic-tac era só um código secreto. Achavam que o relógio mandava na gente.

Na verdade, o tic-tac do relógio era só pra dizer se a gente estava frio ou quente na brincadeira de achar as coisas escondidas.

O pai, a mãe, a professora por não brincarem de esconderijos, entendiam que era hora de começar, de terminar, de dormir. Colocavam hora pra tudo.

Crianças e tempo eram então, interrompidas de brincar. A gente devia ter contado pra eles sobre o código secreto. Mas, era secreto!

(Josi Rohden, 2017)

Não seria justo dizer neste item que as crianças não brincavam na escola. O brincar estava presente mesmo que ‘ficticiamente controlado’, mesmo que com tempo demarcado no momento do recreio, mesmo que Chrónos acreditava ser ele o ‘dono do tempo’ e então, as sinetas estabelecessem hora de estudar e hora de brincar, hora de começar, hora de terminar. Havia hora para tudo. Mas mesmo assim, as crianças brincavam. E brincavam, justamente porque sabiam como ninguém jogar com as estratégias de um lugar (Cf. CERTEAU, 1998), brincavam porque não precisavam de ‘tempo determinado’ para que a brincadeira acontecesse – fazer um aviãozinho de papel e jogar escondido do professor na sala de aula ou rabiscar um

128 Em referência ao Depoimento de Ipê Amarelo (2016).

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livro no momento em que a professora não estivesse vendo129, se

configuravam modos de subverter a ordem, mas também de se tornarem

A VOZ E O CANTO momentos de divertimento, de ‘brincadeira desviada’, mesmo que isto A voz que diz, ocasionasse uma possível punição. Tais exemplos do brincar no interior A voz que canta, da sala de aula, lugar com estatuto de sagrado, se instaurava também o A voz que grita, profano, em modos sutis em que a criança mostrava sua mobilidade A voz que encanta. tática de deixar marcas de sua autoria, de sua existência diante daquele A voz e o canto lugar, pois como salienta Certeau (1998, p. 94), “uma criança ainda De crianças A sabiás. rabisca e suja o livro escolar; mesmo que receba um castigo por este Dos que falam, crime, a criança ganha um espaço, assina aí sua existência de autor”. Dos que cantam, No contexto pesquisado, assim como na maioria das escolas da A voz compõe a cena época, havia-se a preocupação incessante de organizar o tempo-espaço E, acena. Quer manter-se suprema, escolar, uma vez que isto se configura como um dos muitos artefatos Tenta impor-se no caos e na próprios da cultura escolar, que de acordo com Passos (2003, p. 234): folia A escola longe de ser reprodução da cultura da sociedade, pura e simplesmente, Desdobramentos, e, portanto comportar-se como uma variável dependente, uma instituição Linhas de fugas, reprodutiva, não criativa, na verdade ela, a seu modo, elabora com certa Composições de silêncios, autonomia, artefactos sociais e culturais, significantes próprios e específicos, Já não há mais primazia. que acabam por gerar uma cultura própria e singular, tornando-a anfíbia.

Na escola, ouvidos cansados, Deste modo, em referência à organização do tempo escolar, Faria A voz do professor tenta, Filho e Vidal (2000, p. 33) nos orientam que historicamente: Intenta, planeja, pretende. Não mais alcança,

Escorrega. Silencia. A distribuição do tempo escolar em aulas, períodos, anos e cursos indica também uma concepção sucessiva e parcelada do ensino. Segmentados, os conhecimentos se acumulam, sem necessariamente se relacionar. O tempo Quiçá a voz tem de escolar se associa às horas em que se permanece na escola, contabilizadas em reaprender, sinetas, recreios, cadernos, da mesma maneira que nos ponteiros do relógio. O Com os sabiás que se faz durante esse tempo é o objeto em disputa. Como se gasta ou usa o A Ser canto, tempo de estada no espaço escolar é o que cada vez mais se põe em xeque à Aceno de aula- encanto. medida que se alteram as demandas sociais.

Josi Rohden, 2013 No entanto, faz-se necessário pontuar que tal demarcação

129 Estes são alguns dos exemplos que os sujeitos desta pesquisa narram em referência ao cotidiano escolar.

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temporal escolar se fazia em tal momento histórico marcado por um currículo escolar formulado para atender o cenário que o país vivia: ditadura militar, crescimento econômico ocasionado pela indústria, presença dos Estados Unidos numa tentativa de ‘americanizar’ o país. E para tal, a organização curricular se dava em convergência com a Lei Federal n.º 5.692/71, resultado das reformas educacionais que marcaram as décadas de 1960 e 1970, e da criação de convênios de cooperação e apoio técnico entre o Ministério da Educação e Cultura do Brasil e a Agency for International Development dos Estados Unidos, identificados pelas siglas MEC-USAID130. Dessa forma, no que se refere à organização educacional, de acordo com o discurso nacional em voga, este se sustentava numa escola que formasse seus estudantes para atender as necessidades da Pátria: instrumentalizar, preparar tecnicamente desde a infância os cidadãos para que se tornassem futuros trabalhadores habilitados a receber um país em acelerado crescimento econômico/industrial que dependeria de muita ‘mão de obra’. No entanto, faço uma ressalva de que sendo a escola produtora de uma cultura própria, não é justo também dizer que ela reproduz exatamente os reflexos da sociedade e das imposições que lhe são fabricadas (Cf. CERTEAU, 1998). Há as intenções claras para que isto se consolide, ora pelo currículo, ora pelas práticas escolares, ora pelos discursos presentes na sala de aula, nos livros didáticos, e por tantas outras formas presentes no contexto escolar, entretanto, “a escola está longe de ser mero reflexo das determinações dos processos produtivos existentes” (PASSOS, 2003, p. 234) e, deste modo, o que nos parece haver são “fortes determinantes temporais que parecem se universalizar, e manter vivos, no cotidiano, práticas, concepções, orientações e ‘enfeitiçando-nos’ – no sentido wittgensteiniano - com ritualística opressiva, no interior da escola” (PASSOS, 2003, p. 234). A escola também jogava, pois antes de tudo eram seres humanos quem a constituía. Desta forma, reconhecendo as estratégias de imposição e a lógica do jogo vindo de um lugar, assim como as relações de poder que se configuravam no seu interior, partimos do pressuposto de que, sendo a escola um lugar de produção de uma cultura específica, onde ressoavam as mais diferentes experiências cotidianas, havia algo no interior dela que constituía de maneira singular a experiência da escolarização de cada sujeito, mesmo diante

130 Mais sobre este ponto será pesquisado durante o Doutorado-Sanduíche na Universidade de Loyola, nos Estados Unidos.

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dos discursos ordenadores e reguladores daqueles que detinham o poder, da imposição do silêncio, do controle da disciplina, do aprendizado dos conteúdos difundidos na escola, dentre outras ações que constituíam o conjunto de práticas intenciona lizadas por um lugar próprio (Cf. ROHDEN, 2016). Nesta ótica, reconheço na cultura escolar produzida pelas vidas que faziam a escola a possibilidade de concebermos a história de um cotidiano marcado pela criação, invenção e reinvenção daquilo que os sujeitos faziam com os produtos que lhes eram fabricados, seja no tempo demarcado para estudar, seja no tempo cronometrado para brincar. As estratégias de práticas intencionais estavam em conflito com as táticas de subversão e a escola, bem ou mal, lidava com este processo de tensão, pois não conseguia manter rigorosamente tudo à maneira que lhe convinha, fazendo-se presentes as práticas desviantes que fugiam, escapavam às normas e, muitas vezes, talvez na maioria delas, não eram percebidas, ou simplesmente eram vistas como banais, rotineiras, sem ‘periculosidade’ (Cf. ROHDEN, 2016). Deste modo, a escola se configurava como um lugar praticado onde:

[...] práticas foram inventadas, ou reinventadas, gerando não somente as ações passivas de reprodução das imposições formais dos regulamentos e programas prescritos, mas, sobretudo, desenvolvendo uma relação complexa de astúcias com tais imposições, com tramas de sociabilidades entre os atores e seus pares e com outros sujeitos implicados nas relações mais extensas, seja no seio familiar, comunitário ou outros. Relações amplas de negociações, de conflitos, de burlas, de transgressões, de criação e de resistência, que fazem parte do constituir-se da escola no período que está sendo estudado. (GONÇALVES, 2004, p. 13)

Neste sentido, a cultura escolar pode ser compreendida como:

[...] um grande rizoma. Anastomosadas as ‘raízes’ e nódulos resistentes e disformes, enrolados em si mesmos, sem que se possa distinguir o principal e o secundário; parecem referir-se ao paradigma de uma estética stalinista, cuja finalidade prática ostensiva, demite qualquer padrão combinatório de simetria, harmonia e beleza, em favor da fixação oportunista ao chão onde se encontra, e ali, oh! Maravilha, arrebenta tênue e receptiva a vida. A solidez robusta e a função precípua, resistir! Pode se dar ao luxo de preterir qualquer beleza distributiva. A cultura e seus rizomas retomam e retocam o passado, ressignificam o presente, estabelecendo um elo com processos temporais do ontem com o amanhã (PASSOS, 2003, p. 231-232).

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E, neste grande rizoma entre elos temporais, longe de qualquer neutralidade, uma vez que “o espaço escolar não é neutro, sempre educa”. (VIÑAO FRAGO; ESCOLANO, 2001, p. 75). O modelo panóptico131 de conceber o espaço escolar, onde todos os sujeitos são controlados e vigiados estão sujeitados ao disciplinamento dos corpos, não são suficientes diante da tese que Viñao Frago e Escolano (2001) fomentam de que somente uma concepção da escola, sobretudo, enquanto um espaço limitado, fechado, junto a outras instituições disciplinares de dominação e controle, não contempla as diferentes funções que o espaço escolar desempenha ou deveria desempenhar, pois a escola é um espaço demarcado, porém a análise dele enquanto lugar só é possível a partir da consideração histórica daquelas camadas ou elementos que o configuram e definem (Cf. ROHDEN, 2016). Para tanto, o ‘panóptico’ que se intentava estabelecer diante do brincar dos meninos e meninas da ‘invencionática do/no m/Mato’, não contava que teria de lidar com a maneira incisiva da cultura como pura criação, com as práticas distintas de apropriação de tais modelos pré-estabelecidos, e que então, estes resistiriam sutilmente, ‘dobravam-se sem quebrar’132 e, que assim, reinventavam aos seus modos o sentido de estar naquele meio (Cf. ROHDEN, 2016) – dito por Certeau (1998), podem ser entendidas enquanto táticas, elaboradas por aqueles sujeitos para serem usadas como suas armas de combate – a arte do fraco, que “fingia obediência aos poderes estratégicos, mas não se iniciava uma guerra explícita contra esses”. (AZEVEDO; ARAÚJO, 2011, p. 483):

Eu acho que as irmãs não gostavam que a gente brincasse de qualquer coisa. Realmente eu acho que elas não estimulavam muito. Era uma época assim que a gente era premiado por determinados comportamentos de adultos. [...]. Quando você me pergunta: A escola fazia alguma coisa para brincar? Não, a escola era opressora deste jeito (se referindo à um episódio em que ele e outro foram levados à Irmã Xaveres pelas orelhas e deixados de castigo ajoelhados a manhã toda na sala da irmã fazendo tarefas). Era uma cultura de repressão, onde as crianças tinham que aprender a ser trabalhadoras, tinha que aprender desde cedo a ser mão de obra, elas não tinham que aprender a brincar, mas a gente brincava! A gente brincava mesmo elas não querendo, mesmo a escola não incentivando. Tocava o sino era uma debandada porta afora, todo mundo ia brincar de alguma coisa na hora do recreio, elas não tinham como segurar a gente fora da sala de aula (IPÊ AMARELO, Depoimento 2016).

131 Termo utilizado por Michel Foucault em Vigiar e Punir (2009) para se referir às instituições arquitetônicas vigilantes e punitivas. 132 Cf. Azevedo; Araújo, 2011.

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O horário do recreio era o horário de brincar e comer o lanche. Não era recreio dirigido, então a gente brincava bastante de correr, mas a irmã não gostava muito porque suava, mas o pátio era grande acho que ela nem via que a gente corria. (BROMÉLIA, Depoimento 2012).

A gente brincava na hora do recreio, batia o sino parecia uma boiada (risos) todo mundo dava graças de ficar fora da sala por alguns minutos, ai brincava de pega-pega, polícia e ladrão, esconde-esconde. A gente comia o lanche rápido pra ter mais tempo para brincar. [...] as irmãs davam broncas, chegavam erguer os meninos pelas orelhas, mas no outro dia, fazíamos tudo de novo (ANDIROBA, Depoimento 2017).

Tantos outros exemplos que burlavam a ordem estabelecida, se constituíam em linhas de fuga, quando as crianças aproveitavam quaisquer espaços para brincar. Uma vigilância que não podia conter as táticas que se moviam, ambíguas, sem localização própria, surgidas das contingências da situação, de modo a aproveitar as brechas do lugar, quais eram modo bricoleur - improvisadas, fruto da “inteligibilidade criada no aqui e agora, exigindo inteligência viva, parecendo desprezar modelos preestabelecidos, estando constantemente apreendendo a situação e agindo sobre ela improvisando saídas133:

As irmãs eram bravas, elas queriam manter a ordem, a disciplina. Elas só queriam que a gente brincasse de cirandas ou de coisas que não se sujasse ou não fizessem barulho. As cirandas eram também legal, mas a gente gostava mesmo era de correr, brincar de pega-pega, de esconde-esconde. Elas ensinavam uma coisa e a gente fazia outra, ninguém segurava a gente na hora do recreio. Parecia uma libertação [...]. (SERIGUELA, Depoimento 2017).

A brincadeira do elástico era a preferida, mas teve uma época que as irmãs proibiram porque diziam que era perigoso, mas sempre alguém dava um jeito de levar. Também jogávamos bola apesar das irmãs não gostarem muito para não entrar na sala suados, mas a gente brincava por mais que fosse pouco tempo, aproveitava aquele tempinho para brincar. A gente construía brinquedos, fazia bola de meia para arremessar no palhaço, era sempre a criatividade da gente, porque não tinha outras coisas. (COPAÍBA, depoimento 2012).

133 Cf. Azevedo; Araújo 2011.

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Uma vez um menino da escola ganhou uma bola de plástico e levou a bola escondida pra escola. Na hora do recreio foi aquela criançada toda querendo jogar bola. O recreio era curtinho, ficávamos depois da aula jogando. O menino não deixou de levar a bola escondida até ela furar de vez. (INGÁ, Depoimento, 2017).

FIGURA 28: ALUNOS JOGANDO BOLA EM FRENTE À UMA ESCOLA RURAL DE SINOP, 1978

FONTE: MIGRANTE A, ACERVO PESSOAL, 2011.

Nesses exemplos percebemos que existia, sim, o ‘receio’ da punição, mas em contrapartida se revelava o jogo, que vencia o medo e encontrava nas ‘falhas’ que iam abrindo brechas na vigilância do poder, promovendo “mobilidade, mas numa docilidade aos azares do tempo, para captar, no voo, as possibilidades oferecidas por um instante” (CERTEAU, 1998, p. 100) as astúcias, golpes, artes as artes de malabaristas, equilibristas, se faziam presentes, em micro detalhes. Como diria Certeau (1998, p. 101), “Aí vai caçar. Cria ali surpresas. Consegue estar onde ninguém espera. É astúcia”.

Assim para Certeau (1998), toda atividade humana pode ser considerada cultural, desde que a prática tenha significado para quem a realiza. Deste modo, diante das narrativas, das fotografias, dos registros históricos é possível perceber as ‘fugas’, as diferentes tentativas

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de driblar a ordem para manifestar suas presenças, afirmar a vida, para efetivar suas experiências humanas que hoje podem ser traduzidas ‘a la Benjamin’.

Neste âmbito, era notório a auto-organização dos próprios alunos nos momentos que não estavam sob vigilância, nas palavras de Julia (2001, p. 10) “por cultura escolar é conveniente compreender também, quando é possível as culturas infantis (no sentido antropológico do termo) que se desenvolvem nos pátios de recreio e o afastamento que apresentam em relação às culturas familiares”, por isso, é possível inferir que a cultura produzida na família e na sociedade se difere daquela produzida na escola, pelo fato de haver ideias, símbolos, valores que lhes são próprios:

O horário do recreio era o horário de brincar [...]. [...] gostávamos de brincar de 3 mocinhas da Europa: lembro-me ainda hoje: Somos 3 mocinhas da cidade, O que vieram fazer? Muitas coisas! Então faz para nós ver! Então isto era o que mais nós gostávamos de fazer! [...] Brincávamos muito de roda: de Terezinha de Jesus, passava o recreio rodando, tinha aquela cantiga: A menina que tá na roda: A menina que tá na roda, é uma gata espichada, tem a boca de jacaré e a saia remendada! Depois, trocava, ia outra criança no meio. Fazíamos muita brincadeira de roda, eram momentos maravilhosos! (BROMÉLIA, depoimento 2012).

Eu lembro que a gente brincava de ciranda-cirandinha, nossa! O que eu brincava de ciranda-cirandinha! Eu ainda lembro da musiquinha “Ciranda, cirandinha, vamos todos cirandar, vamos dar a meia volta, volta e meia vamos dar. O anel que tu me destes era vidro e se quebrou, o amor que tu me tinhas era pouco e se acabou. Por isto dona ... faz favor de entrar na roda, diga um verso bem bonito, diga adeus e vá se embora”, nossa! Que lembrança boa essa ciranda! Aí entravamos na roda e tínhamos que dizer um verso, geralmente era “Batatinha quando nasce...” (risos). Brincávamos muito de passa-anel, de pega-pega, de atirei o pau no gato, de esconde- esconde. Gente... que maravilha estas lembranças! (JACARANDÁ, Depoimento 2017).

A gente organizava aquelas brincadeiras com mãos e eu lembro que a gente cantava assim: 'A-do-le-tá/ Le peti/ Le tomá/ Le café com chocolá/ A-do-le-tá' (VITÓRIA RÉGIA, Depoimento 2016).

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FIGURA 29: CRIANÇAS BRINCANDO POSSIVELMENTE DE RODA, 1977 EM UMA ESCOLA RURAL DE SINOP, 1977.

FONTE: MIGRANTE A, ACERVO PESSOAL, 2011.

De acordo com Rohden (2016) é interessante associar que enquanto professores e direção da escola buscavam encontrar formas de devolver a harmonia facilitadora e ‘apaziguadora’ da ordem, os alunos pareciam compreender (e assim se organizavam!)134 que silêncio e barulho conviviam juntos, ordem e desordem não se excluíam,135 trazendo outras possibilidades de mover-se no mesmo espaço, tornando aquele lugar, de fato, num lugar praticado, como uma “arte experimental, performática, vibratória [...]” (COSTA, 2011, p. 281).

Contudo, “o recreio que parecia ser o fim do trabalho pedagógico [...] era o início da auto-organização” (ALBUQUERQUE, 2006, p. 41) para aquelas crianças “era o início da negociação de regras em torno de um objetivo comum, era o começo de uma convivência social qualitativamente superior” (ALBUQUERQUE, 2006, p. 41) daquela imposta em sala

134 Cf. Albuquerque, 2006. 135 Cf. Morin, 2004.

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de aula, ou seja, o que se configurava era uma “ousadia de pensar e de viver a educação semelhante ao modo como um artista pensa e vive sua arte, isto é, com pura indeterminação” (COSTA, 2011, p. 281).

É relevante pontuar que para a organização do tempo escolar, sua divisão em hora-aula e o período para o recreio, foi publicado em 5 de junho de 1973 o Parecer nº 792, pela Câmara de Ensino do 1º e 2º grau do Conselho Federal de Educação, manifestando-se sobre esta questão ausente na Lei nº 5.692/71 e considerando o intervalo como parte do tempo escolar136 (Cf. ROHDEN; TOMÉ, 2016). Ou seja, o recreio também recebia status de hora de trabalho escolar efetivo. Do início ao toque da sineta que indicava para o final da aula, todo tempo era demarcado, controlado, inspecionado, mas também subvertido, repleto de brechas e linhas de fugas para os desvios, as burlas, para que o brincar se fizesse instituir, para que as crianças se construíssem junto ao outro, para que seus corpos não fossem ‘docilizados’ como estrategicamente fora pensado para ser, mas ao contrário, se fizessem corpo do mundo, junto ao mundo, afirmassem a vida.

No cotidiano da cidade se inseria o cotidiano da escola, como um ‘micro-espaço’ social e no cotidiano deste micro-espaço, conforme sugere Araújo (2003, p. 213):

[...] a escola se revela como um espaço de confrontos de interesses entre um sistema oficial que distribui funções determina modelos, define hierarquias, e outro, o dos sujeitos – alunos e alunas, professoras e professoras, funcionários e funcionárias – que não são apenas agentes passivos diante da estrutura. Em seu fazer cotidiano, esses sujeitos por meio de uma complexa

136 De acordo com Rohden e Tomé (2016, p. 7-8) O Parecer nº 792, de 5 de junho de 1973, relatado na então Câmara de Ensino do 1º e 2º grau do Conselho Federal de Educação, tratou especificamente da questão da hora- aula que na Lei nº 5.692/71 não estava claro. O Parecer concluiu que as expressões ‘hora de atividades’ e ‘hora de trabalho escolar efetivo’ são sinônimas e significam hora-aula, como tempo de trabalho escolar efetivo. A dúvida sobre as expressões ‘hora de atividades’ e ‘hora de trabalho escolar efetivo’ devia-se ao empregado destas nos Arts. 18 e 22 da Lei nº 5.692, de 11 de agosto de 1971, que fixavam as diretrizes e bases para o ensino de 1º e 2º grau. Outra dúvida que o Parecer respondeu foi se estaria incluído ‘o recreio’ na hora de atividade ou trabalho escolar efetivo. O Conselheiro Valnir Chagas, Relator do Parecer nº 792/73, discorreu sobre a questão da definição da duração da hora-aula em cinquenta minutos. De acordo com o Relator: “[...] por ser a prática já consagrada, o legislador teve, decerto, como assente, que na hora escolar brasileira se destinam dez minutos aos chamados ‘intervalos’. O elemento consuetudinário mostra-se valioso para a interpretação de leis, como a de nº 5.692/71, que fogem às pormenorizações regulamentares” (PARECER CNE/CES Nº 261/2006, p. 11). O Relator Valnir Chagas enfatizou também o ajuste do esquema de 50 + 10, a cada hora trabalhada, 10 minutos seriam para o intervalo, expressando “[...]que se enraíza no racionalismo pedagógico, a toda uma orientação de flexibilidade que doravante há de presidir à organização das ‘atividades’ escolares. [...] O recreio, portanto, faz parte da atividade educativa e, como tal, se inclui no tempo de trabalho escolar efetivo, isto é, naquele tempo durante o qual o aluno fica sob influência direta da escola” (PARECER CNE/CES Nº 261/2006, p. 11-12, grifo das autoras).

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trama de relações que inclui alianças e conflitos, transgressões e acordos, fazem da escola um processo permanente de construção social.

Diante disto, é necessário ressaltar a contribuição das crianças tanto no cotidiano escolar quanto no macro-espaço social da comunidade que se formava. Eram as crianças que recebiam toda ‘esperança de futuro’, nelas estavam depositadas a possibilidade de mudança, de um futuro diferente daquele que seus pais, na sua maioria colonos, trabalhadores não tiveram acesso à escolarização. As crianças eram levadas para as ruas, desfilavam sob a postura de uma marcha militar e ao som de fanfarras, carregando faixas com mensagens ora à Pátria, ora a cidade que se constituía. Eram as crianças que recepcionavam ‘autoridades políticas’ todas as vezes que vinham em visita à Sinop. As crianças no macro-espaço social tiveram um papel relevante culturalmente, socialmente, mas, que de certa forma são ‘invisíveis’ historicamente, como se estivessem apenas sob os cuidados e companhia dos adultos. A infância em Sinop no processo de colonização aparece em registros fotográficos, em registros escolares, em jornais da época apenas como figurantes, como uma espécie de invisibilidade na história, que a trata como uma categoria inferior em relação ao adulto.

No entanto, é interessante observar que mesmo nas situações em que as crianças eram inseridas pelos adultos em alguma situação relacionada seja de trabalho, seja de eventos cívicos, seja de inserção em atividades promovidos pela igreja, estas aproveitavam-se para se divertir, se apropriavam da situação, transformando-a em momentos inclusive para brincar. “Uma arte surpreendente, onde obrigados a fazer o que não queriam, faziam desfazendo-o”. (ALBULQUERQUE, 2006, p. 43). Elenco alguns trechos das narrativas construídas, onde encontro tais subsídios para dizer desta ‘arte’:

[...] eu lembro que íamos na missa toda a semana. Cada professor juntava sua turma, colocava em fila, ficava um olhando para a cabeça do outro e saíamos da escola para ir à missa, mas eu adorava, era um momento de sair da escola, eu adorava o externo (risos), [...] era um momento de nos divertirmos no trajeto da escola à igreja (AÇUCENA, Depoimento 2012).

Teve um episódio que foi a vinda do Figueiredo pra cá, a cidade se preparou para isto. Nesta preparação a escola nos ensaiou para o desfile, e eu lembro que eles pegaram algumas crianças para servir de decoração chique – foi assim: levaram a gente para a pista de voo e lá, uniformizadinhos, ficávamos paradinhos em posição de sentido, tipo soldadinho esperando o pessoal que ia passar por aquele corredor que era formado por nós paradinhos, ficamos lá

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até todo mundo descer. Depois levaram a gente onde seria a cerimônia do Presidente e nós ficamos atrás dele paradinhos, em posição de sentido, retinhos [...]. Acho que tinha haver com o regime militar, mas o engraçado é que a gente acaba se divertindo, fazendo-de-conta que éramos soldadinhos de chumbo (IPÊ AMARELO, Depoimento 2016).

Eu lembro que eu ia para uma pica-pau137 com meu pai e ajudava com 10, 11 anos a carregar caminhão e tudo mais, aí eu ajudava, trabalhava, mas quando eles paravam de trabalhar, dava um espaço eu corria para brincar, eu costumava subir nestas toras boiando naquelas poças enormes e brincava de barquinho, aí eu imaginava que eu era o almirante ou era um índio que estava na canoa. Eu brincava com estas coisinhas ali. Eu lembro de um cheiro de apodrecimento que era a serragem apodrecendo no meio daquelas lagoas de água, formava uma espécie de lodo, então tem este cheiro forte da madeira [...]. (IPÊ AMARELO, Depoimento 2016)

Os desfiles cívicos por mais cansativos que fossem por que passávamos horas no sol quente, marchando, eram uma alegria. A gente ensaiava meses antes e era o momento do encontro, a gente encontrava todo mundo lá, a gente se divertia de alguma forma. O ruim se tornava bom. A gente esperava por este encontro. (COPAÍBA, Depoimento 2012).

FIGURA 30: DESFILE CÍVICO DE ANIVERSÁRIO DA CIDADE, 1978

FONTE: COLONIZADORA SINOP, 2012.

137 Pica-pau é um nome popular usado para pequenas indústrias que serram madeiras.

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FIGURA 31: CRIANÇAS ACOMPANHADAS DE ADULTOS NA SAÍDA DA MISSA, 1977

FONTE: COLONIZADORA SINOP.

FIGURA 32: CRIANÇAS ORGANIZADAS PARA A CELEBRAÇÃO DA FUNDAÇÃO DE SINOP, 1974.

FONTE: COLONIZADORA SINOP, 1974.

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Era um jogo de possibilidades: “enquanto a ordem via apenas do alto do seu panóptico a disciplina e o silêncio, as crianças utilizavam-se do que lhes era oferecido para recriar a seu modo, o que lhes garantiam a possibilidade de ocupação em terras alheias” (ROHDEN, 2016, p.156) e, portanto, nos momentos de tensão, do que a priori era para ser uma imposição, um momento de obediência, a história agora consegue conceber a presença-infante a partir daquilo que produziam essencialmente no e pelo brincar, vias artes de fazer, vias bricoleur. Nas palavras de Certeau: “Eles metaforizavam a ordem dominante: faziam-na funcionar em outro registro. Permaneciam outros, no interior do sistema que assimilavam e que os assimilava exteriormente. Modificavam-no sem deixá-lo”. (1998, p. 95).

Desta forma, se constituía uma cultura infantil produzida no micro-espaço social da escola, inserida na cultura escolar, na intercorporeidade entre aqueles que formavam tal espaço, no encontro, no desvio, no ‘desfazer a norma’, nos corpos-brincantes, nas práticas “onde imperava o silêncio, mas também sutilmente ressoavam as vozes que cantavam juntas: “Lá vem seu Juca-caca, da perna torta-tata, dançando valsa – sa, sa, com a Maricota-ta ta138” (ROHDEN, 2016, p. 157). Por ‘culturas da infância” entende-se com Sarmento (2003, p.3-4) “a capacidade das crianças em construírem de forma sistematizada modos de significação do mundo e de ação intencional, que são distintos dos modos adultos de significação e ação”. Essa concepção de culturas da infância é oposta às representações que, segundo Ariès (1981), durante muito tempo imperavam, uma vez que a criança, na Idade Média, não ocupava lugar de evidência e era concebida como um ser que poderia ser substituído, possuindo um papel utilitário na sociedade. Deste modo, o momento em que aqueles alunos se viam livres do ‘panóptico’ que lhes era fabricado, o espaço se abria de possibilidades, de novos fluxos, novos agenciamentos para criar, inventar, viver com todo seu corpo a experiência da brincadeira, formular práticas desviantes que promoviam sua autonomia, que deixavam marcas de sua autoria enquanto sujeitos, enquanto corpos que pulsavam na interconexão com tudo e com todos, e então, conseguiam “negociar e lutar por sua felicidade, pelos seus desejos, se apropriando de cada fenda, de cada canto, de cada brecha, se esgueirando, escorregando, deslizando”. (ALBUQUERQUE, 2006, p. 40). Cada corpo, “exercia como ninguém suas artes de se fazer

138 BROMÉLIA (Depoimento 2012).

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sujeito, cada qual com a singularidade que lhe era própria” (ROHDEN, 2016, p. 157) e, isso, “sem sair do lugar onde tem (tinha) que viver e que impõe (impunha) uma lei, ele aí instaura (instaurava) pluralidade e criatividade. Por uma arte de intermediação ele tira (tirava) daí efeitos imprevistos” (CERTEAU, 1998, p. 93).

Assim, muitas histórias que desfaziam a ordem estabelecida compunham o cotidiano da escola em especial pelas crianças que ali frequentavam e portanto, produtoras de culturas infantis naqueles espaços e tempos analisados. E aqui, faz-se necessário um parêntese para enfatizar que “as culturas da infância transportam as marcas dos tempos, exprimem a sociedade nas suas contradições, nos seus estratos e na sua complexidade” (SARMENTO, 2003, p.4). Para tanto, entendemos como peculiar a cultura infantil, percebendo que elas se configuram de acordo com cada tempo e espaço, e, são tecidas dentro de cada sociedade, de modo singular. Contudo, a cultura infantil em análise neste estudo, destaca que mesmo diante da ordem, da disciplina da época, da imposição de valores e normas, havia movimentos que desconfiguravam a ordem dominante, entendida por Certeau como as táticas que moviam os sujeitos nas suas artes de fazer, imprecisas, sem localização exata, surgidas das contingências da situação, de modo a aproveitar as lacunas do lugar da ordem, fruto da “[...] inteligibilidade criada no aqui e agora, exigindo inteligência viva, parecendo desprezar modelos preestabelecidos, estando constantemente apreendendo a situação e agindo sobre ela improvisando saídas" (AZEVEDO; ARAÚJO, 2011, p. 481).

Nesse âmbito, Azevedo e Araújo (2011, p. 481), fazem uma ressalva de que:

O ser humano comum é capaz de inventar táticas buscando escapar das teias da conformação, mesmo enredados no poder do inconsciente – como um “lugar” em nós mesmos que não temos domínio – e no poder das ideologias dominantes – que nos forçam a pensar como pensamos e agir como agimos – os seres humanos ordinários são capazes de criar e recriar maneiras de viver sonhos e realidades indo além da submissão pela via da arte do fazer.

Tantas são as artes de fazer (Cf. CERTEAU, 1998), que até mesmo as práticas, os rituais que a escola efetivava cotidianamente como: formar filas antes de entrar para sala, cantar hinos, silenciar qualquer ‘barulho’ não permitido, serviam para que as crianças

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mimeticamente brincassem e recriassem tais práticas, dando à elas o seu próprio significado. Como nas recordações abaixo:

[...] também brincávamos de escolinha, tínhamos uma lousa pequenininha, minha irmã era professora, eu era aluna e tinha mais um monte de aluna invisível (risos). Aí minha irmã reproduzia muito bem as professoras, ela dizia: Silêeeencio! Ela imitava as professoras (risos). Uma coisa legal quando nós brincávamos de escolinha: antes de entrar para a sala fictícia nós tínhamos que formar a fila, igual na escola de verdade, formar fila, tomar distância, ficar em posição de sentido, cantar o hino, mas só tinha eu na fila, o resto era tudo invisível (risos) mas a minha irmã ficava gritando: “arruma esta fila, que esta fila está torta,” “enquanto não endireitar a fila ninguém entra”, mas só tinha eu na fila! (risos) mas eu ficava lá um tempão... ela fazia igualzinho as irmãs, aí até a fila que só tinha eu precisava ficar reta, depois entrava na sala, limpava a carteira fictícia, colocava a toalhinha em cima da mesa para não sujar nada, tudo em ordem, e a minha irmã reproduzia certinho as professoras, aí minha mãe fazia um lanchinho e chamava; “olha, venham comer o lanche, tá na hora do lanche!!!” Aí [...], corríamos comer, depois voltava para a nossa escolinha. (BROMÉLIA, Depoimento 2012).

Diante desta brincadeira mimética, é interessante os apontamentos que Benjamin faz no ensaio “O corcundinha”, qual integra a obra “Infância berlinense: 1900”, na qual o autor utiliza a personagem do Corcunda simbolicamente para relacionar as ações que aproximam e que ao mesmo tempo se distanciam de si mesmo, características que surgem quando a criança brinca mimeticamente, como sendo um jogo da infância, que deve ser concebida como possibilidade da criança afirmar-se enquanto sujeitos.

Neste sentido, pode-se considerar próprio da ação mimética “a necessidade do esvaziar-se parcial e momentaneamente de si para que a outra substância possa fazer parte de quem realiza o exercício da mimese” (SANCHES, 2017, p. 10). Ou seja, a presença do mimetismo no brincar infantil, necessita que a criança se distancie de si, para se tornar como nas memórias de Bromélia, a professora, a diretora da escola, que exige silêncio, fila reta, e tantas outras ações que eram produzidas para o disciplinamento das crianças, mas que ao brincar mimeticamente elas (Bromélia e sua irmã) recriavam tais ações, ressignificando-as. Deste modo, tal brincadeira de ‘reproduzir’ as práticas da escola, não eram produzidas apenas como mera imitação do mundo adulto, mas como meios de criação, invenção e, desta forma produziam cultura, uma vez que toda brincadeira mimética é um processo criativo de

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reprodução interpretativa e, não meramente uma questão de simples imitação (Cf. CORSARO, 2012).

Corsaro (2012), nos auxilia a compreender que as crianças constroem entre si e com os adultos, sobre o papel social da criança, sobre a participação da mesma na sociedade em que ao mesmo tempo em que é afetada também produz efeitos na sociedade, ou seja, a criança não apenas imita ou reproduz algo, mas cria, recria, reinventa atribuindo novos significados às ações que lhe são apresentadas, no contexto social que estão inseridas. Nas palavras de Corsaro (2011, p. 29): “as crianças não se limitam a internalizar a sociedade e a cultura, mas contribuem ativamente para a produção e mudança culturais”.

Martha Barros, Dança na floresta - 107cm x 40cm - 2011

Diante das narrativas das ‘árvores pertencidas’ nesta pesquisa, é notório perceber inclusive no ambiente escolar, onde o ‘tic-tac’ do relógio determinava todo o tempo, incluindo-se o tempo brincar, que as crianças daquele contexto histórico ao brincar constituíam as ações que Benjamin (2002) nos fala sobre a mimese, a repetição, o desvio. As crianças de tal contexto histórico conheciam cada ‘esconderijo’ da escola, faziam se personagens imaginários, brincavam de ser outros (seres animados como também inanimados), criavam possibilidades de brincar e de inventar brinquedos com os restos, com os detritos, com a natureza que cercava a escola. Como Benjamin pontua, também podemos

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encontrar vestígios deste brincar-transformar, brincar-bricoleur que as crianças se apropriavam e deste modo, elas já conheciam:

[...] todos os esconderijos da casa139 e retorna a eles como a um lar onde se está seguro de encontrar tudo como antes. O coração palpita-lhe, ela prende a respiração. Aqui ela está encerrada no mundo material. Este mundo torna- se extraordinariamente nítido para ela, acerca-se dela em silêncio. [...] Atrás do cortinado, a própria criança transforma-se em algo ondulante e branco, converte-se em fantasma. A mesa de jantar, debaixo da qual ela se pôs de cócoras, a faz transformar-se em ídolo de madeira em um templo onde as pernas talhadas são as quatro colunas. E atrás de uma porta, ela é a própria porta [...] (BENJAMIN, 2002, p.108).

Diante das observações de Benjamin (2002) sobre a imaginação criadora do brincar na infância, pontuo alguns trechos das narrativas, quais observo semelhanças com o que é pontuado pelo filósofo:

Lembro que na escola a gente brincava muito de esconde-esconde. Como era muito grande o pátio e haviam muitas árvores tinha muito esconderijos, mas, a gente era esperta, não tinha onde a gente não procurava, meio que já sabia de todos os lugares onde procurar e olha que era grande hein, por que tinha a mata próximo e apesar das irmãs não permitirem, tinha criança que pulava a cerca da escola para se esconder na mata, a gente não via perigo nisto, pra nós crianças era divertido, só isto. (SERIGUELA, Depoimento 2017).

[...] lá pelo 3° ou 4° ano veio a história da “Mulher de Branco no banheiro”, ai ninguém ia ao banheiro, porque diziam que tinha uma mulher vestida de branco que assombrava os banheiros e quem fosse lá ela pegava e levava embora, ai ninguém ia no banheiro, todo mundo morria de medo (risos), [...] mas, o engraçado é que na hora do recreio a gente brincava que era a mulher de branco, corria atrás um do outro para assustar. (VITÓRIA RÉGIA, Depoimento 2016). As irmãs não gostavam que brincassem muito para não se sujar, mas a gente saía da sala já no pega-pega “tá com você!”, saíamos correndo brincando de pega-pega, numa gritaria, as irmãs ficavam loucas, mas elas sozinhas não conseguiam controlar a molecada toda, era um tempo militar e quando a irmã Editha chegava e olhava a gente fingia, parava tudo e gritava “estátua” (risos) e era só ela sair que a gente continuava o pega-pega. [...] A gente aproveitava para brincar também de estátua, ficávamos paradinhos até ela sair de perto. (JACARANDÁ, Depoimento 2017).

139 Neste caso, os esconderijos da escola.

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Outra brincadeira interessante onde aparecem os aspectos do desvio, da repetição, da mimese, se refere ao momento em que iniciou energia elétrica, por volta de 1981 a base de motor, que permanecia entre 4 a 5 horas por dia na cidade. Com a energia elétrica, chegou também a transmissão da TV de Brasília. Neste momento, o pouco contato com a televisão, fazia com que as crianças imitassem o que assistiam no ambiente escolar, recriando um filme140 que era transmitido em brincadeira:

A gente brincava muito de Steve o homem que derretia, isto é histórico, não tinha televisão até então. Quando começou a TV a partir de 1981 era TV de Brasília e ela não era ao vivo, era transmitido em vídeo tape, era uma reprodução do que se passava. Então quando as fitas chegavam aqui tinha um momento a partir de 1981 que tinha energia elétrica de motor que tinha horário específico, por exemplo das 14:00 às 16:00 quando tinha luz, passava o programa da Tia Leninha, na época era muito legal ver a Tia Leninha ler cartinhas na TV ou a ver contando alguma historinha. Na época era só ela que a gente tinha de referências, depois do Programa da Tia Leninha vinha o Jornal Militar e a novela o Coronel e o Lobisomem e depois disso vinha um programa que era o que tinha disponível. Mas, muitas vezes por causa da chuva não conseguiam receber vídeo tape e eles tinham um filme que passavam frequentemente sempre que não havia os novos vídeos tapes. O filme era chamado Steve o homem que derretia, o nome não é esse, eu não lembro o nome direito141. Mas era assim: a história de um astronauta que ia fazer uma viagem e o foguete chegava muito perto do sol e ele recebia raios solares, aí o foguete voltava pra Terra ele caia e então a pele dele começava a derreter, aí ele derretendo ele ia matando as pessoas. Mas eu morria de medo, nunca consegui assistir ao filme até o final. Mas, na escola a gente brincava de Steve o homem que derretia (risos) de ficar correndo atrás do outro, lembro que a gente brincava todos os dias de Steve o homem que derretia, era um barato brincar de assustar o outro (risos) (IPÊ AMARELO, Depoimento, 2016).

Para Brougére (2008), quer lamentamos ou não a televisão transformou a vida e a cultura da criança, influenciou em particular a cultura lúdica, no entanto, esta cultura lúdica não é fechada em si mesma, ao contrário ela integra elementos externos que fomentam a brincadeira, como por exemplo atitudes e capacidades, cultura e meio social e para que brinquedos e brincadeira tenham de fato apropriação pela criança, estes devem deixar-se

140 Tal filme não era apropriado para crianças, porém era transmitido sempre que o canal de televisão não recebia as fitas de vídeo tape para reprisar os programas da época. 141 O nome do filme qual o sujeito da pesquisa se refere, chama-se “O incrível homem que derreteu” (1977). Disponível em: https://filmow.com/o-incrivel-homem-que-derreteu-t8798/ Acesso em: 28 mai. 2017.

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envolver pela cultura lúdica disponível, além disso precisa ter uma função simbólica, que ofereça suporte às representações. Nas palavras do autor:

Essa cultura lúdica está imersa na cultura geral à qual a criança pertence. Ela retira elementos do repertório de imagens que representa a sociedade e seu conjunto; é preciso que se pense na importância da imitação na brincadeira. A cultura lúdica incorpora, também elementos presentes na televisão, fornecedora generosa de imagens variadas. Seria inverossímil se a brincadeira da criança não se alimentasse da televisão e seus efeitos. (BROUGÉRE, 2008, p.52-53).

Deste modo, o que percebemos é que mesmo com o pouco contato com a televisão e depois de passados muitos anos sem acesso à ela, a criança da época ao ter seu contato com um filme mesmo não sendo apropriado para sua faixa etária, recriava no ambiente escolar a mimética, a imitação da personagem principal do filme e com isto, adicionavam elementos que contribuíam para que no imaginário se criasse uma situação assustadora que não apenas ‘fazia-de-conta’, mas, fazia como mencionado por Benjamin “mais uma vez”, caracterizando a repetição e os desvios do brincar.

Para Benjamin (2002) a criança age segundo a sentença de Goethe: “Tudo a perfeição se aplainasse, se uma segunda chance nos restasse” (GOETHE, apud BENJAMIN, 2002, p. 101). Para o autor tal sentença está em consonância com a criança e o brincar, pois:

Para ela, porém, não bastam duas vezes, mas sim sempre de novo, centena e milhares de vezes. Não se trata apenas de um caminho para assenhorar-se de terríveis experiências primordiais mediante o embotamento, conjuro malicioso ou paródia, mas também de saborear, sempre de novo e da maneira mais intensa, os triunfos e vitórias (BENJAMIN, 2002, p. 101).

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MARTHA BARROS, Algazarra – 57 cm x 57 cm – 2012.

Contudo, mesmo diante do tempo de brincar cronometrado que a escola determinava, por outro lado, as crianças aproveitavam de cada minuto que o relógio marcava, ouviam no tic-tac o sinal que lhe dizia “está quente, está frio” (SERIGUELA, Depoimento 2017), diante da brincadeira do “tesouro escondido” (SERIGUELA, Depoimento 2017). Embora a brincadeira na escola fosse vista somente em virtude de alguma razão específica como nos conta Ipê Amarelo (Depoimento 2017), as crianças não deixavam de brincar e deste modo, recriavam os modos de se viver naquele espaço:

As brincadeiras que tinham na escola era preciso ter justificativas, por exemplo: gincanas – era para arrecadar fundos, concurso de teatro – era por causa das aulas de educação artística ou de Português, tudo o que tinha de diferente era para justificar algo, porque o papel da criança era estar lá, pra crescer, não havia a preocupação do brincar. Era crescer para trabalhar. [...] Mesmo assim, as crianças brincavam muito de pega-pega, bolita, amarelinha. Corrida de saco nas gincanas, pular corda, nas aulas de educação física.

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Arte: Aquarela de Flávio Ribeiro, 2017. Disponível em: https://www.flavioribeiroartes.com.br/

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Neste sentido, mesmo que a escola tentasse ‘pedagogizar’ o brincar, associando sempre algum ‘evento maior’ para que justificasse a presença da brincadeira, de modo contrário, para a criança todo e qualquer momento em que encontravam meios para ‘driblar a vigilância” seja no interior da sala, seja na hora do recreio, eram possibilidades infinitas de brincar, de exercer as mil práticas de fazer (CERTEAU, 1998). Deste modo, havia as ‘normas e regras’ vindas de um lugar, sob o olhar panóptico institucional, mas, do outro lado deste quiasma, havia também “o espaço de fazer, os modos de proceder da criatividade cotidiana, as burlas, as fugas, onde as múltiplas invenções e criações davam espaço para uma infância constantemente reinventada, uma verdadeira arte de fazer e de ser criança” (ROHDEN, 2016, p. 158).

Um ponto que acredito ser relevante é que diante das narrativas, das memórias do brincar-bricoleur que ouvi, a maioria faz referência ao brincar existente na escola, porém, já pensando no final da aula, quando poderiam então, brincar na rua, encontrar com os amigos da vizinhança, jogar bets na rua, ‘roubar’ goiaba em turminhas, fabricar brinquedos com restos, brincar em cima das árvores sem horário para delas descer. É interessante perceber que quando falam do brincar ‘cercado’ da escola, rapidamente, como ‘num passe de mágica’ o brincar já pula a cerca da escola, já vai pra rua e lá encontra uma infinidade de viver, um rizoma de artes de fazer, uma multiplicidade de afectos que pareciam estar à espera da criança para sua felicidade, para a realização dos seus íntimos desejos de infância:

A gente mal saía da escola e já estava brincando. Acho que a gente entrava na escola já pensando na hora da saída para poder brincar a vontade, ficar com os amigos. Brincar na escola também era legal, mas na rua com certeza era melhor. (SERIGUELA, Depoimento 2017).

A gente voltava da escola se pendurando pelas árvores da rua, das goiabeiras... ah, a goiaba, todo lugar tinha goiaba, as vezes a goiaba que tinha no nosso quintal a gente comia, mas a melhor sensação era roubar a goiaba dos vizinhos (risos) a gente ia roubar, na época a gente não tinha noção que era feio ou errado, era muito legal roubar goiaba dos vizinhos (risos). A gente pulava a cerca, a gente era uma galerinha, tinha muita criança aquele tempo que brincava na rua juntos, a gente fazia tudo juntos, estudava, brincava e até roubava goiabas juntos (risos), então íamos lá pra casa comia as goiabas, ia pra casa da outra amiga comia tudo, aí acabava, a gente juntava a turma e pulava a cerca dos vizinhos pra comer goiaba (risos) (VITÓRIA RÉGIA, Depoimento 2016).

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Na rua podia brincar de tudo! [...]. Eu pulava muito amarelinha. Também jogava muito bolita e peteca. Mas, amarelinha, pular tábua, pular elástico, pular saco, era uma molecada... a gente ficava até de noite na rua, na frente da casa brincando. Meus irmãos e toda a criançada da rua. No início era só a gente na rua, porque estava começando Sinop. Mas depois logo chegou mais crianças, aquela molecada toda na rua. A gente gostava mesmo era da liberdade [...] (JACARANDÁ, Depoimento 2017).

Brincar na escola era bem limitado, diferente de brincar fora, com os amigos. [...]. A gente como te falei, fazia os brinquedos com os restos de coisas que a gente encontrava nos lixos dos vizinhos, no meio das construções que surgiam, senão não tinha mesmo. [...] a nossa diversão era a gente que inventava. (ANDIROBA, Depoimento 2017).

Neste contexto, faz-se relevante o alerta que Benjamin (2002) nos faz diante da capacidade exclusiva da criança diante da brincadeira, diante da transformação, da produção do brinquedo:

[...] há algo que não pode ser esquecido: jamais são os adultos que executam a correção mais eficaz dos brinquedos – sejam eles pedagogos, fabricantes ou literatos -, mas as crianças mesmas, no próprio ato de brincar. Uma vez extraviada, quebrada e consertada, mesmo a boneca mais principesca transforma-se numa eficiente camarada proletária na comuna lúdica das crianças (BENJAMIN, 2002, p. 87).

Desse modo, “[...] a ação de criar e recriar nasce dos nossos desejos e muda a face do mundo”. (AZEVEDO; ARAÚJO, 2011, p. 8). As brincadeiras preparadas para as crianças em gincanas da escola, nas aulas de Educação Física ou em algum outro momento em que a escola acreditava ser o ‘tempo’ para justificar a brincadeira cumpriam um outro papel: o de transformação. Pois tudo era reinterpretado pela criança quando se apropriava do brincar, do brinquedo. A autoria deixava sua assinatura em nome próprio de quem produzia a ação de brincar. Para o adulto que planejava, era o cumprimento de um conteúdo programático, de uma ação idealizada, para a criança que brincava era execução de desvios, de transformação aos seus modos de brincar, de produzir novas e diferentes possibilidades que não eram ‘notadas’ pelas estratégias de um lugar. Era banal, sem periculosidade, era ação desviante, de bricolagem, percebidas somente por quem as faziam: as crianças. Mundo plural daquelas

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crianças, espaço-tempo onde criar, inventar e reinventar faziam-se um só corpo, uma só carne. Criança-natureza-escola-família, com-viviam juntos nas suas mais diferentes ambiguidades sem se excluir entre si. Tudo era um mesmo espaço e um só tempo de imaginação, e as crianças com suas mobilidades táticas ‘docilmente’ sabiam lidar com qualquer estratégia de um lugar, meninos e meninas do/no mato possuíam “[...] jeitos de artistas [...]. “Corre, corre o furão: mil maneiras de ‘fazer com’”. (CERTEAU, 1998, p. 91).

Martha Barros, Brincadeira no mato - 33cm x 30cm - 2010

Finalmente, precisamos nos lembrar de que todas estas memórias de um brincar- bricoleur entre tempos vividos ora sincrônico (Aión) ora diacrônico (Chrónos), “é sempre o

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olhar e a reflexão do adulto que, ao recordar, reconstitui a lacunas por meio do prisma do presente, em busca das trilhas ainda não percorridas” (SANCHES, 2017, p.10) como também é a infância destacada como experiência e portanto é história, isto é, “tempo humano” (AGAMBEN, 2005, p.91). “Nesse sentido, a lembrança da infância não é idealização, mas, sim, realização do possível esquecido ou recalcado. A experiência da infância é a experiência daquilo que poderia ter sido diferente, isto é, releitura crítica do presente da vida adulta” (GAGNEBIN, 2005, p. 179), mesmo porquê “ao interpretarmos nossas próprias experiências, em distintos momentos da vida, ressignificamos as percepções do vivido e das vivências” (Cf. GUIMARÃES, 2017).

A experiência da infância só pode ser traduzida por que a vivemos, porque ela está viva em nós. É experiência do ontem, que se presentifica no agora, pois:

Ontem foi um tempo que deveria ter passado. Ora, o passado é tempo, é uma duração. E todo tempo, a seu tempo, nunca é um tempo mau, por si mesmo. De sorte que o grande mérito do passado e de sua cultura, foi o de ter sido o presente, um dia, no antes; e, agora, tendo passado, continuar dialogando, através de testemunhas que o viveram, resquícios lavrados, ou feito imagens que o invocam e o presentificam na vida. Ele servirá no presente para uma grande evocação das multitemporalidades que somos (PASSOS, 2003, p. 232).

Desta forma, é imprescindível conceber a experiência como um passado que pulsa, justamente por em um outro tempo ter sido presente. Ao contrário, “quando o passado se totaliza, persiste assombrando humanos como um oráculo, mimetizando uma animação retrógrada, desreconhecendo e obstaculizando a fecundidade generativa no/do presente. Em sua sede de absolutidade perde o sentido de sua própria identidade temporal: a de ter sido presente, algum dia no passado” (PASSOS, 2003, p. 232).

Neste sentido, se caracteriza a experiência enquanto tempo humano, enquanto devir- histórico, quando não permite conceber o tempo de forma linear, numa vã miragem do progresso contínuo, mas oposto a isto, quando a cada instante, se é “capaz de parar o tempo, pois conserva a lembrança de que a pátria original do homem é o prazer” (AGAMBEN, 2005, p. 126).

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Contudo, diante das ações do brincar estudados, inseridos na cultura escolar de um tempo linear, diacrônico que tentava romper com a criação, com a experiência humana, é possível compreender que ao longo da história:

[...] a cultura escolar brasileira carrega pesadelos adquiridos no éter da cultura da ganância (TER), da prevalência (VALER) e da prepotência (PODER): pesadelos arquitetados por uma temporalidade monádica da série, autocentrada, guerreira e destemporalizante, portanto, solitária, desumanizante e infeliz. Eis porque a Educação escolar senão for amorosa, imanente e transcendente, senão voltar às dimensões ontoantropológicas da humanidade, dialogando com passado, presente e futuro, com suas possibilidades e desejos, seus projetos em diálogo com os processos; senão dialogar com a historicidade que lhe parturiza, faz crescer, desabrochar e ter um fim que se transpõe a cada passo como o horizonte, não poderá nunca esquentar o sonho da nossa humanidade, que busca um equilíbrio instável face ao inédito, à ruptura, à morte, ao sagrado e ao desejo. Somente uma Paidéia com mutações temporais trinitárias (articulação da continuidade diacrônica e sincrônica e de descontinuidade Kairótica) poderá ser fiel à existência empírica, cotidiana, dos seres humanos (PASSOS, 2003, p. 18).

Diante de tal inferência, entendo que o ‘tempo’ de brincar na escola na temporalidade em estudo na ótica da Instituição, se fazia um tempo vazio, contínuo e repleto de traços do historicismo vulgar. A corrida para cumprir todos os conteúdos propostos, ensaiar as crianças para reproduzir gestos, cantos, marchas em datas comemorativas e cívicas eram sempre mais importantes do que o brincar, qual era visto como algo sem importância, um tempo ócio de descanso para o professor enquanto as crianças no pátio em cirandas ou em códigos: “está com você!” (SERIGUELA, Depoimento, 2017), produziam formas de gritar por sua liberdade daquele ‘tempo’ cronometrado. Deste modo, a educação fenomenologicamente, pouco se afirmava “em termos de cultura, como manifestação da existência, da dinâmica do mundo vivido” (DOURADO, 2015, p.02).

Martha Barros Caminhos do mato - 80cm x 140cm - 2010

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Neste ‘tempo’ oco que se intentava impor sobre as crianças, seus corpos eram compreendidos O tamanho e a duração não em partes, na particularidade de suas manifestações e tem importância nenhuma... não como uma unidade, como “um nó de significações São apenas tamanho e duração... vivas” (MERLEAU-PONTY, 1994, p. 210). A cultura O que importa é aquilo que escolar desta forma, mesmo que talvez sem clara dura e tem dimensão (se consciência disto, tentava matar a experiência, verdadeira dimensão é a realidade) ... compartimentando as manifestações dos corpos, Ser real é a coisa mais nobre dificultando o encontro, tornando obscuro o viver do mundo. (Fernando Pessoa, 2006, sujeito-o outro-natureza-cultura. A separação p.125) ocidental de tudo e de todos, tentava a todo custo prevalecer.

Entretanto, as crianças deste passado nos ensina a com-viver com tal imposição cairológica da história, assim como viver entre os opostos: pois elas jogavam sutilmente com a ordem, elas lidavam com os movimentos diacrônico e sincrônico dos brincares-bricoleur, de forma equilibrada, escapavam no espaço sem deixar o local, e portanto o ‘espaço se tornava um lugar praticado’142, elas (as crianças) elaboravam linhas de fuga, formulavam outros e novos agenciamentos (Cf. DELEUZE; GUATARRI, 1997) e então, munidos taticamente lidavam com um brincar-sincrônico e um brincar-diacrônico e deste modo, seus corpos movimentavam-se, como seres sexuados, seres desejantes, seres afetivos. As crianças sem opor-se bruscamente à calendários e relógios, viviam no ‘eterno de um instante’ de um brincar o tempo “pleno, descontínuo, finito e completo do prazer” (AGAMBEN, 2005, p. 126) e deste modo, metaforicamente ‘se eternizavam como uma fuga de Bach’, lembrando as palavras do poeta Manoel de Barros. As crianças desta história afirmavam a vida e sabiam entre elas firmar seus ‘tratados de pássaros’ – “barulhinho vermelho de cajus e o riacho passando nos fundos do quintal...” (BARROS, 2010, p. 114), era o suficiente para compor tais tratados.

Contudo, é certo que a experiência está ligada à corporeidade, a subjetividade – porque sempre será singular, particular para quem a viveu e “somente este poderá falar dela

142 Para Certeau (1998) o lugar é transformado a todo instante em espaços praticados e vice-versa, um lugar que sugere um jogo, uma dinâmica onde seus ‘habitantes’ transformam, criam e recriam os seus modos de viver.

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‘de dentro’, conferindo-lhe um sentido próprio a partir daquilo que o afetou” (PEREIRA, 2012, p. 44, grifo do autor). Todavia, ao ser traduzida, o sentido da experiência se transforma, já que é no outro, na dimensão apreendida como aquele para quem se narra a experiência, que a narrativa brota, toma forma. Neste sentido, “o vivido se ressignifica à medida que é ‘narrado’, uma vez que o narrar não apenas apresenta ao outro uma história vivida, mas reapresenta a quem viveu sua própria experiência” (PEREIRA, 2012, p. 44).

Neste cenário, ao estudar neste Canto os ‘brincares/tempos’ a partir das memórias de infância dos migrantes de Sinop, vivi a pesquisa como experiência, como a minha própria experiência humana, daquilo que me passou, que me tocou, que me afetou, que ainda me toca e me afeta (Cf. DELEUZE; GUATARRI, 1997). Deste modo, como sugere Larrosa (2002) o sujeito da experiência, é um corpo sensível, no qual a experiência é produzida e passível de ser traduzida. De acordo o autor, quem vive a experiência é o corpo como “um território de passagem, algo como uma superfície sensível. Que aquilo que acontece afeta de algum modo, produz alguns afetos, inscreve algumas marcas, deixa alguns vestígios, alguns efeitos” (LARROSA, 2002, p. 24). Assim, se tornam significativas as palavras de Merleau-Ponty quando nos ensina que:

[...] somos experiências, isto é, pensamentos que experimentam, atrás deles, o peso do espaço, do tempo, do próprio Ser que eles pensam, que, portanto, não têm sob o seu olhar um espaço e um tempo serial, nem a pura ideia das séries, tendo, entretanto, em torno de si mesmos um tempo e um espaço de empilhamento, de proliferação, de imbricação, de promiscuidade — perpétua pregnância, parto perpétuo, geratividade e generalidade, essência bruta e existência bruta que são os ventres e os nós da mesma vibração ontológica. (MERLEAU-PONTY, 2014, p.114).

Diante disto, ao pesquisar a experiência do brincar enquanto dimensão educativa e enquanto experiência humana da infância, tentei perceber no corpo adulto de agora, o corpo Eu queria aprender sensível da criança que ali habitava, numa o idioma das árvores. dimensão de um passado presentificado no Saber as canções do vento presente, como tempo humano circunscritos por nas folhas da tarde. Eu queria apalpar os ambiguidades que estão juntas e que a filosofia, perfumes do sol. a história, a ciência ocidental de modo geral, (Manoel de Barros, 2010)

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insiste em separá-las ao invés de encontrar nelas um equilíbrio.

Contudo, na tentativa de um breve fechamento, uma vez que este Canto, assim como esta pesquisa se faz inconclusa, incompleta, repleta de espaços, de lacunas, de muitos anseios, incertezas, questionamentos, como também de muitos afectos e desejos de novos fluxos e de novos bricoleurs-artistas, quero e creio ser necessário ressaltar o que Bachelard (2009, p. 100) me convida a relembrar - “a história de nossa infância não é psiquicamente datada. As datas são respostas a posteriori; vem dos outros, de outro lugar, de um tempo diverso daquele que se viveu. Pertencem exatamente ao tempo em que se conta”. Então, no fluxo-desejante de ‘não datar,’ mas de dizer da história como acontecimento, significada pelos seus sujeitos, por aqueles que a experienciaram é que continuo na pretensão de fazer uma história menor, no limite do historiador, nas bordas e nas fronteiras de um tempo passado, concebendo a história como um tempo invertido como ensina Certeau (1982), e que sobretudo, reafirme a vida e traduza nos seus limites a experiência vivida.

Martha Barros, Formação - Memórias inventadas III (original) - 73cm x 50cm - 2008

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Pesquisar a história como acontecimento, significa sobretudo, como sugere Corazza (2004): [...] pesquisar o Acontecimento requer operações que se movimentem: dos corpos e estados de coisas aos acontecimentos; das misturas às linhas puras; da superfície corporal à metafísica do pensamento puro; do figurativo ao abstrato; da árvore e seu verde ao verdejar; das ações e paixões dos corpos às verdades eternas; do visível ao invisível; das ações cotidianas ao atributo noemático correspondente; do tabuleiro físico ao diagrama lógico; do cosmo ao campo acósmico; do pessoal ao impessoal; do indivíduo ao pré-individual; do sentido ao não-senso [...] para potencializar as forças que ficam entre esses movimentos (CORAZZA, 2004, p. 3).Neste sentido, concebo o passado como força vital, como potência, como acontecimento móvel, que mistura a todo instante as linhas de um ontem com as linhas do agora. O passado é vida que se faz no presente. Acredito nisto e “não desejo cair em sensatez. Não quero a boa razão das coisas. Quero o feitiço das palavras” (BARROS, 2010, p. 370), para que então eu alcance o mais íntimo da experiência vivida “como se fosse a infância da língua” (BARROS, 2010, p. 425), como se fosse a infância da história, a infância em que tudo é tempo-lugar para se tornar uma “didática da invenção” (BARROS, 2010, p. 299).

Martha Barros, Do meu quintal - 43cm x 49cm - 2014

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Acrescentamos novos e futuros bricoleurs invencionáticos pois, “quem não tem ferramentas de pensar, inventa” (BARROS, 2010, p. 473). Desterritorializando-os e reterritorializando-os (Cf. DELEUZE; GUATARRI, 1997) continuamente...

Bricoleurs –Artistas Bricoleurs – Equilibristas Bricoleurs de Meninos e meninas do/no m/Mato. “Imagina chegar num lugar onde era tudo mato e morar numa casa de madeira [...], num lugar cheio de barro, [...], poder andar a vontade na rua, se sujar... era a maior festa! [...] a gente era bem crianças do mato...” (AÇUCENA, Depoimento 2012).

“A gente era ‘bicho da terra’, bicho do mato mesmo” (INGÁ, Depoimento 2017).

MARTHA BARROS, Atravessado de sol - 46cm x 48cm - 2013

MARTHA BARROS, Loucura da infância - 165cm x 85 cm - 2011

Foto: Valmir Cordasso, 2013.

Foto: Valmir Cordasso, 2013.

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Ecos: Memórias do Caracol

Arte: SATO, Michèle, 2018.

Volto-me a Manoel de Barros, meu principal companheiro dessa travessia para dizer das sobras de mim. Para tentar uma despedida olhando para todo esse percurso e então, perceber se mesmo que de forma ínfima, a intenção desse trabalho tenha atingido um grau de azul. A poesia de Manoel de Barros,

[...] trabalha com o reino do pequeno, do ínfimo, do mínimo, fundindo memórias, planos existenciais, reinos diferentes: mineral, vegetal, animal, humano. Partindo de coisas e lembranças simples, vai misturando caramujos, lesmas, pássaros, ciscos, sementes, fezes, ervas, árvores, frutos, compondo um universo próximo do chão, da terra, da fonte (REINER, 2008, p. 47)

Foi assim que tentei numa perspectiva histórico-poética, apreendida pela fenomenologia dizer dessa travessia: não dissociar sujeito-natureza, ciência-arte, humano- poeta, gente-caracol, afinal, “a corporeidade imanente na expressão do olhar, busca e acha suas metáforas no ser vivo, não excluindo nossos parentes mais próximos, os animais” (BOSI, 1988, p. 79), os insetos, os vegetais, toda a flora e a fauna. Deste modo, o quiasma

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Merlopontyano se fez na medida em que o interior e exterior, o eu e o outro não se fizeram inseparáveis, se entrelaçam à uma unidade nas diferenças. Diante disso,

A fenomenologia interpreta sentidos polissêmicos, suscitando as relações entre os humanos, não humanos, coisas e natureza, sem que nada ou ninguém perca a singularidade dos sentidos. Isso não implica que somos seres isolados, pois somos seres conjugados no tecido social que pulsa na respiração planetária. Somos janelas do mundo, espelhos do cosmos: nossos olhares sempre são constituídos de bagagens históricas, experimentações, sensações e sentimentos (SATO, 2016, p. 22).

Nesse sentido, os propósitos e despropósitos nessa escritura se complementaram, nas lembranças e esquecimentos, nas memórias e identidades, nas temporalidades: presente- passado-futuro, no Chrónos e Aión, no sagrado e no profano, na criança e no adulto, na ordem e desordem, no discurso da pureza e no discurso da colonialidade, na beleza e no terror, na vida e na morte, nos cantos e nos gritos, nas águas e no sangue, no biófito e no necrófito, na linhas abissais, no limite, na borda, na dobra, no céu e na terra, nas saudades guardadas todas dentro de uma casa que anda: no caracol que somos, que residimos dentro de uma casa de memórias caminhantes, nela estão arquivadas todas as nossas experiências, todas as nossas travessias, todos que partilharam conosco das nossas histórias. Tudo é e não é como já dito por Riobaldo nesse ensaio e todo esse conjunto de ambivalências e contradições se entrelaçam. Tudo se pertence no místico de todo cosmo.

Ainda sinto todas os meus sujeitos de pesquisa em “estágio de árvore” abrirem suas casas ‘duras’ de caracóis para acessar as lembranças, as memórias, que se aproveitaram da ocasião, para brilharem no tempo, e então, ser criadas no presente, no instante, no agora (Cf. CERTEAU, 1998). Estou certa de que em muitas vezes, foram tomados pelos esquecimentos, ou mesmo escolheram o que queriam dizer (Cf. CANDAU, 2011), no entanto, tentei fazer da experiência de ouvir as memórias do outro bricolagens com elas: com cacos, resíduos, sobras do passado desconfigurado e mergulhei na minha própria experiência para narrar (Cf. BENJAMIN, 1994) as histórias de meninos e meninas do/no m/Mato.

Assim, esses ecos, são apenas para dizer da experiência dessa travessia, daquilo que aprendi/apreendi do narrar memórias da infância, do brincar de meninos em meninas de outrora, hoje adultos. Memórias crianceiras e seus despropósitos, repletos de propósitos de invenção, criação, artes de infancionática e de infancionar com as coisinhas do chão, dos

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restos, das sobras, daquilo que “é bom para o lixo é bom para poesia” (BARROS, 2010, p.135).

E no caracol onde residem as nossas memórias, sinto ainda as palavras que tanto se fizeram presenças. Elas moram em mim, minha ‘casa que anda’ está repleta de vozes, de risos, de lágrimas, de olhares profundos, de desejos daquilo que se era, que se foi e que ressurgem no presente de forma lenta e solitária como a da lesma grudada na pedra da poesia, num “aurorear de todo amor” (ROSA, 2015, p.852). E,

Se encontro um caracol passeando no muro, anoto. [...] Aprecio a solidão de Vivaldi. Inspira-me uma frase encontrada em Guimarães Rosa: “A poesia nasce de modificações das realidades linguísticas”, para o poeta essa frase é uma epifania. [...] No começo era o verbo. O verbo sem sujeito. Depois vieram as borboletas, as prostitutas e as virtudes teologais. [...] Se a arte é o homem acrescentado à Natureza – como escrevia Van Gogh a seu irmão Theo – eu preciso de desreinar também. Preciso de ser de outros reinos: o da água, o das pedras, o do sapo. Tudo isso botava névoa no meu caderno. [...] De repente uma palavra me conhece, me chama, se me oferece. Eu babo nela. Me alimento. Começo a sentir que todos aqueles apontamentos têm a ver comigo. Que saíram de meus estratos míticos. As palavras querem me ser. Dou-lhes à boca o áspero. Tiro-lhes o verniz e os voos metafísicos. Desprezo o real porque ele exclui a fantasia. [...] As nossas particularidades só podem ser universais se comandadas pela linguagem. [...] Acho, por fim, que jamais alcançaremos o veio da criação (BARROS, 1990, p. 332-334).

FIGURA 33: CARACOL DE MEMÓRIAS

ARTE: MATHEUS RICARDO B. ROHDEN, 2019.

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Diante de todas estas e outras palavras ditas, repetidas, ouvidas que habitam no meu ser-caracol, os sons de cada uma delas e de todos os outros sons dessa travessia cortam meu corpo, como se todos os pássaros, barulhos, sopros, cantos, gritos mesmo que já exaustos, quisessem ainda deixar seus ecos na floresta, nas últimas estrofes dessa partitura. Sinto a criança que fui lá no m/Mato gritando o meu próprio nome, só para ouvir o eco dele entre o silêncio das árvores. Meu choro é inesgotável, assim como meu riso. É chegado o momento de se propor um final, não como uma chegada, mas, de onde me vejo, tentando pisar na minha própria sombra, como fazia quando menina. Se tivesse que escolher uma sensação para toda essa caminhada, talvez seria: intensidade. Intensidade com que me entreguei à esse ensaio de uma tese-ave, de memória de caracol. Lembro-me então, do que disse Mia Couto que “só se escreve com intensidade se vivermos intensamente. Não se trata apenas de viver sentimentos mas de ser vivido por sentimentos”. Fui vivida por sentimentos. Nessa escritura, está todo o meu ser, tudo o que sinto, toda a minha entrega, a minha biografia, o meu encontro com todos que partilharam dessa pesquisa, a intensidade do ser que sou no mundo.

Contudo, nessa caminhada meu sentir-pensar, nesse instante, “procede igual ao meu fazer dissertativo, que se permite ser/estar transitório num intenso processo de formação, deformação, transformação e reformação” (SOUZA, 2019, p. 227). Assim, “não tenho a pretensão de redigir conclusões definitivas de minha pesquisa nestas páginas finais. São transitórias, navegam em um vai e vem das águas” (SOUZA, 2019, p. 227). Nesse âmbito, os ecos que ainda transitam, intentam ecoar alguns apontamentos sem pretensões de inferir qualquer verdade, apenas são crianças que gritam para ouvir suas vozes lá onde os pássaros cantam, as águas fazem barulho, os macacos brincam, os caracóis se grudam nas pedras.

Num lócus muito parecido do descrito acima, ressurgiram as memórias do que se viveu e transcriá-las em narrativas, foi sem dúvida um reaprender olhar, um reeducar dos ouvidos, um pronunciamento na escrita, aqui entendido com a mesma valoração da fala, que se difere do logos metafísico, mas que pela ausência, se faz a inscrição da diferença, ou seja, a

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escritura é inscrição de uma diferença (Cf. DERRIDA, 2008, p.125-172)143. Essa narração escrita é então, uma inscrição marcada pela diferença.

Narração. Transcriar o dizer do outro. Difícil dizer das memórias que não são as nossas, mas, que nos encontramos ao meio delas, recriando as nossas. Mundo de cada um, que se faz mundo reinventado junto ao nosso. Percepções singulares, experiência tem nome próprio: o nome de cada um que a viveu. Seria muita ousadia dizer que narrei as memórias dos sujeitos que participaram dessa travessia. Narrei aquilo que mergulhou em mim e deixo as marcas das minhas próprias experiências quando narro o vivido do outro (Cf. BENJAMIN. 1987). Narrar expressa assim, nas palavras de Riobaldo, o jagunço caminhante do sertão, um “segundo ganho” uma vez que, ao narrar as experiências vividas, “o narrador retira da experiência o que ele conta: sua própria experiência ou a relatada pelos outros. E incorpora as coisas narradas à experiência de seus ouvintes” (BENJAMIN, 1987, p. 201). No mesmo tempo em que me afeto, sou afetada pelas experiências do outro no confeto (Cf. DELEUZE; GUATARRI, 1997)

Nesse sentido, inspirada em Albernaz (2009, p. 94), cito a passagem de Riobaldo quando sobe ao Sobradão e se despede de Diadorim e questiona: “o senhor crê minha narração?” (ROSA, 2015, p.840). Para Albernaz (2009) nessa pergunta é convocada a escuta como referência tanto de viver como de narrar, isto é, “é colocada na escuta a questão da dobra de viver e narrar, pois é desde a escuta que é conferida vida ao narrar” (ALBERNAZ, 2009, p. 94). Diante disso,

Se narrar é viver, escutar é participar da vida do narrar que é vida. Daí o que se questiona é o fundamento de uma mesma experiência que de um modo ou de outro deve necessariamente aparecer – porque o narrável e o vivível são necessariamente da mesma natureza, provêm do mesmo, compartilham da

143 Derrida nomeará de différance: palavra-pasta que articula “diferença” e “diferir”). A estrutura, sob a ótica da diferença pura, organizaria de maneira transcendental as possibilidades de produção do sentido. Essas possibilidades estariam imobilizadas em um jogo invariante e centrado. Neste contexto, presente, sobretudo, na produção teórica do primeiro Derrida: A voz e o fenômeno (1967); A escritura e a diferença (1967) e Gramatologia (1967) se consolidou o período conhecido como Desconstrução. Desconstruir a filosofia é movê- la a partir de polos de ambiguidade, não dialeticamente, mas como um jogo. Um modo de desfazer uma estrutura para fazer aparecer seu esqueleto. A filosofia, ao contrário da proposta da tradição, não é transparente: é plena de binômios que precisam ser desconstruídos, ou seja, postos à luz para exame, para diagnóstico. Dessa forma, seria possível esgotar as possibilidades da interpretação ao desvelar a estrutura. Pensar a diferença pura exigiria então nos livrarmos dessa “metafísica da presença” que estaria embutida na noção de desvelamento da estrutura como esgotamento da interpretação? (AZEVEDO, 2013, p. 79).

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originalidade que é só uma – conforme se verá adiante; ou então, não vale nem o vivido nem o narrado. Isso que é a experiência originária tanto do narrar como do viver, é assumir de tempo. (ALBERNAZ, 2009, p. 94).

Com isso, essa narrativa é vida, se faz vida na medida em que a experiência de ouvir, traduz a experiência daquele que conta, de maneira recriada, brotada numa escrita fecundada por um tom lírico e narrativo, nas margens de se fazer uma ciência menor, uma história menor, desterritorializada, habitada por fluxos, ancorada à arte, na busca da afirmação da vida. Uma narração da percepção, talvez seria o que Merleau-Ponty anunciaria, já que “para que percebamos as coisas é necessário que as vivamos” (MERLEAU-PONTY, 1971, p.331), Tudo o que ouvi, eu percebi, eu senti. Com isso, uma narração implica que a vivamos, de modo a perceber as marcas do doar-se ao ouvir, ao sentir aquilo que vem do outro e aprender com o narrado:

Na narração [...] a finitude que nos é própria se doa como limite a partir do qual vida ganha forma e se difunde, o que significa que pela narração, que é dizer poético, poiesis, vida recebe, encontra ou reencontra o tempo que lhe sendo próprio a perfaz. Como movimento de apropriação do próprio, narrar é dedicar-se à aprendizagem da vida, é entregar-se à vida como percurso, travessia que só se doa como tempo. (ALBERNAZ, 2009, p. 94).

Desse modo, o que dizer de todas as vozes que fizeram dessa travessia uma partilha de encontros, de saberes construídos, de vivências relembradas? Cabe aqui o que Barthes me inspira redizer: “Para todas essas vozes, seria preciso inventar a metáfora exata, aquela que uma vez encontrada, nos possui para sempre; mas não encontro, tão grande é a ruptura [...] que rememoro fugitivamente em meus ouvidos” (BARTHES, 2003, p. 81).

Neste percurso, olho para traz e paro por um termpo, estaganada, cansada mas, ao mesmo tempo surpresa, pois percebo que tudo já se tornou história, foi mesma escrita inversa como Certeau (1982) já anunciava lá do início. Meu olhar está diferente, mistura-se à pluralidade de sentimentos dos acontecimentos vividos, se embaralha entre as dores e as delícias da construção desse texto e por intante assim como Bachelard (2009, p. 12)

fiquei imóvel por muito tempo deixando-me penetrar suavemente por esse conjunto inexprimível, pela serenidade do céu, pela melancolia da hora. Não

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sei o que se passava no meu espírito, nem poderia dizê-lo; era um desses momentos inefáveis, em que sentimos em nós alguma coisa que adormece e alguma coisa que desperta. (BACHELARD, 2009, p.12)

Silêncio [ ] Despertar ǁ Devir Ξ

Talvez eu precisasse mesmo por um instante descansar, Bachelard (2009) diria que esse olhar imóvel é um devaneio expressado no repouso do ser. Repousei. Despertei. Entre pausas e movimentos me reconstituo, escrevo no devir, inscrevo-me, “uso a palavra para compor meus silêncios” (BARROS, 2010, p.320). E nesse silêncio necessário, sinto a solidão da escrita, já em golpes que ora apunhalam, oram acariciam o meu corpo. Quiçá o compadre Quelemém, repetisse o que disse para Riobaldo: “a colheita é comum, mas o capinar é sozinho” (ROSAS, 2015, p. 74). Sinto-me assim ao final dessa travessia. Sufocada por barulhos e silêncio. Silêncios que ainda ecoam palavras e nisso tudo, sei bem: Nenhuma palavra alcança o mundo, eu sei Ainda assim, escrevo. (COUTO, 1999, p. 23)

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Martha Barros, Silêncio delicado - 100cm x 100cm - 2013

Escrevo para me alimentar das palavras, mesmo tomada pela solidão da escrita. Pois na solidão está o silêncio da concha, está o nosso canto da casca, da casa, os nossos devaneios poéticos, a nossa imaginação literária. A solidão da escrita adentra o mundo da ‘agramática’144, possibilitando um convívio íntimo com a ‘despalavra’145, tornando esse processo menos árduo. A solidão da escrita transfigura a imagem original, dando-lhe outras e diferentes des-formas:

A imaginação é um princípio de multiplicação dos atributos para a intimidade das substâncias. É também vontade de ser mais, de modo algum evasiva, mas pródiga, de modo algum contraditória, mas ébria de oposição.

144 Barros, 2010. 145 Idem.

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A imagem é o ser que se diferencia para estar certo de vir a ser. E é com a imaginação literária que essa diferenciação fica imediatamente nítida. Uma imagem literária destrói as imagens preguiçosas da percepção. A imaginação literária desimagina para melhor reimaginar (BACHELARD, 1991, p. 21- 22).

Arte: SATO, Michèle, 2018.

Assim, essa escrita se fez brincante, crianceira, mas, também se fez solitária, exaustiva. No entanto, A solidão nunca é só, é carregada de devir. O devir nasce no meu desejo, na potência que me afeta, nas margens de se fazer uma ciência menor, no meu fazer história, provocado por todo essa travessia e por todas as personagens que a compõe, as quais “ao mesmo tempo me fazem pensar e sonhar” (BACHELARD, 1994, p.81), ou simplesmente pela predisposição da busca, da travessia. Finalmente, esse foi um ensaio que pretendeu entre outros ‘despropósitos’ dizer da criança enquanto coautora de sua própria história, enquanto produtoras de cultura, atores e

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atrizes sociais seja no passado, seja no presente. Crianças que quando brincavam, quando inventavam brinquedos ou brincadeiras aprendiam com o outro, se colocavam no mundo e construíam outros mundos inventados, de faz-de-conta, de imitação (que recriava as ações adultas, aos seus modos), de repetição, de “desfazer a norma”. Crianças que sob à ótica da vigilância, driblavam a partir de suas táticas, jogando com as estratégias de um lugar de poder (Cf. CERTEAU, 1998). Crianças na floresta, ou na metrópole146 brincavam. Viviam no âmago do seu ser o profano e o sagrado do tempo de brincar, onde a sincronia e a diacronia entre Chrónos e Aión ao mesmo tempo que se faziam díspares, se completavam nos sonhos da criança que “brincava até dormindo” (SERIGUELA, Depoimento 2016). E nesse “mundo do sonho não se voa porque se tem asas, mas acredita-se ter asas porque se voa. As asas são consequências. O princípio do voo onírico é mais profundo. É esse princípio que a imaginação aérea dinâmica deve reencontrar (BACHELARD, 2001, p.28)”. Deste modo, espero que esse trabalho contribua para com novos e outros estudos sobre a infância, sobre o brincar, tanto numa vertente histórica, como também na atualidade, nos estudos voltados para a Educação Infantil, para as discussões sobre o relevante exercício do brincar, a contribuição do brincar livre, do criar brinquedos, do contato, da relação com a terra, com a natureza que nossas crianças precisam ter para um saudável desenvolvimento integral. Se faz relevante relembrar as pontuações apresentadas no terceiro canto sobre um currículo rizomático, um devir-currículo147, que não enquadre a infância numa cultura meramente conteudotivista, aceleradamente preocupada com o cronômetro escolar que mata a criação, a invenção, a amorosidade de aprender e de ensinar. Creio que em tudo isso, está marcado fortemente os meus próprios sonhos de educadora. Contudo, sonhar aqui “não significa sonhar a impossibilidade, mas significa projetar. Significa arquiteturar, significa conjecturar sobre o amanhã.” (FREIRE, 1987, p. 293). Sou uma educadora que sonha e que acredita numa educação de qualidade, mais justa e igualitária para todos e todas, na luta, na resistência dessa conjectura.

146 Me refiro às narrativas que tive acesso dos adultos americanos que narram suas infâncias em cidades dos Estados Unidos. 147 De acordo com Rohden e Arantes (2011, p.6) um devir-currículo lança seus múltiplos olhares para a (re) significação da identidade do ser humano, considerando-o em suas diferenças, suas peculiaridades, nas suas superações, na sua singularidade inserida na multiplicidade de poder ser, estar, agir, fazer. E, é esta multiplicidade que permeia o processo de constituição da Educação que configura o currículo como “rizomas” e não mais como uma “árvore do saber.” De acordo com Tadeu e Kohan (2005, p. 1175) “se esta última conduz ao desastre e ao terrorismo de falar e pensar pelo outro, aos programas e aos modelos, a primeira abre as portas para um devir impensado, para uma antipedagogia da experiência e do encontro”.

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Martha Barros, Sonhos - 130cm x 70cm - 2014

Finalmente, quero apenas mais alguns ecos para dizer o quanto essa pesquisa me ensinou. Creio que aprendi muito com o que os livros me ensinaram, com que a Academia me apresentou, com as experiências culturais que vivi em cada museu, em cada espaço acadêmico, artístico, histórico que meus pés pisaram e que meus olhos viram enquanto estive no intercâmbio de estudos no exterior nesse processo de doutoramento. Sobretudo, aprendi com as pessoas, aprendi no encontro, na troca, na partilha com cada um, com cada uma que se fez presença nessa experiência. Aprendi ouvindo dos meus sujeitos de pesquisa, aprendi com a sabedoria do ouvir o outro, aprendi a reeducar os ouvidos para ouvir muito mais do que dizer. O outro sempre nos ensina e nós sempre aprendemos se estivermos abertos para viver essa experiência e também ensinamos enquanto aprendemos, já dizia Paulo Freire. Aprendi a reeducar constantemente o olhar, ele nunca está pronto para atingir o nível de azul, é um exercício diário. Aprendi que a ciência se torna melhorada com a arte, se torna leve com a poesia e isto exige um aprender ousar, o que não é tarefa fácil diante dos moldes ainda tão estruturais que a Academia muitas

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vezes se rende. Aprendi a esperançar, sempre! No entanto, ao pensar nas minhas aprendizagens, reconheço toda a minha fragilidade, toda a minha pequenez nesse meio acadêmico. Acho que nasci mesmo pra “desenhar o cheiro das árvores” (Cf. BARROS, 2010, p. 287) pois, como Manoel:

Ocupo muito de mim com o meu desconhecer. Sou um sujeito letrado em dicionários. Não tenho que 100 palavras. Pelo menos uma vez por dia me vou no Morais ou no Viterbo - A fim de consertar a minha ignorãça, mas só acrescenta. Despesas para minha erudição tiro nos almanaques: - Ser ou não ser, eis a questão. Ou na porta dos cemitérios: - Lembra que és pó e que ao pó tu voltarás. Ou no verso das folhinhas: - Conhece-te a ti mesmo. Ou na boca do povinho: - Coisa que não acaba no mundo é gente besta e pau seco. Etc. Etc. Etc. Maior que o infinito é a encomenda. (BARROS, 2010, p. 304)

Enfim, já disse muito para o que seria apenas ecos, desse jeito vou acumular muita informação e perder a sensatez do divinare (Cf. BARROS, 2010). Creio que já esgotei-me no âmbito acadêmico nos três cantos que compõe essa partitura sobre a pesquisa. Tudo o que eu desejava dizer sobre uma história do ‘inverso’, ou ‘do avesso’ creio que foi dito e assim, se fez uma história-ficção (Cf. CERTEAU, 1982). É chegada a hora de calar e no silêncio que

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agora me faço, percebo que “no pulsar da existência, a ética se alia à estética para que não se finde a poética. Ao desfecho deste texto, já chegou o momento silencioso de sonhar” (SATO, 2016, p.24). Termino com a alma leve, com o coração feliz, com a consciência ‘desangustiada’ de ter cumprido essa travessia. Da janela do meu quarto vejo agora os dias que me esperam lá fora, no entanto, é chegada a hora do descanso, do sonho do adormecer, pois,

Rios começam a dormir, pela orla. Um dom de entardecer percorre as águas. Nas entranhas dessas lagoas os sapos tocam violas a quinze metros do arco-íris o sol é cheiroso A ciência ainda não pode provar o contrário. (BARROS, 2010, p. 275)

Foto: Valmir Cordasso, 2013.

Então, antes que os rios comecem a dormir, conto que essa foi a minha versão da história de meninos e meninas do/no m/Mato. “Fim que foi. Aqui a estória se acabou. Aqui, a estória acabada. Aqui a estória acaba”. (ROSA, 2015, p.863). Mas, aí a gente descobre que até o final tem um limite, talvez essa seja a perseguição do sentido da vida. “A vida da gente nunca tem termo real” (ROSA, 2015, p.862). Ter chegado ao sentido de um final, do fim, é que dá a gratuidade do sentido do início, lá bem do comecinho... Não importa aqui ter chegado à lugar nenhum, mas a decisão de travessia. Assim, nada ficou “estabelecido a priori, portanto, não há representatividade, tudo decorreu da experienciação, tudo é por vir, tudo é caminho a atravessar ou travessia (ALBENAZ, 2009, p.17). Foi tudo “Compromisso do coração” (ROSA, 2015, p.38), Acrescento por fim, no limite, na borda, na dobra, na experimentação, no devir, bricoleurs de travessia...compromisso do coração: Bricoleurs de vida;

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Bricoleurs de experienciação; Bricoleurs de ave. Bricoleurs do coração.

Posso agora enfim dizer, que em uma tese, eu fui vida, como o poeta foi vida em alguma ave:

Foto: Valmir Cordasso, 2015.

“-Fui vida em alguma tese”

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Restos numa tese-ninho: cantos do amanhecer

Os raminhos com que arrumo as escoras do meu ninho são mais firmes do que as paredes dos grandes prédios do mundo. (Manoel de Barros)

Nessa partitura de uma tese, há um ninho feito por muitos pássaros, há ainda muitos mistérios, muitos sonhos, muitas coisinhas que ficaram presas ao ninho. Talvez ficaram para marcar a continuidade, a inconclusão deste trabalho. Então, as lacunas, os espaços deixados nessa escritura são para imaginar, para que o leitor faça suas próprias percepções, reflexões, indagações, construa outros ninhos com os raminhos deste.

Foto: Valmir Cordasso, 2013.

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Este foi um ensaio de experimentações que como bem sugerido por Barthes “aquele que se põe numa prática de escritura consente assaz alegremente em diminuir ou desviar a acuidade de suas ideias.” (BARTHES, 2003, p. 117). Espero muito ter atendido essa recomendação de Barthes. Experimentei com toda minha carnalidade um fazer pesquisa aos meus modos, tive orientações de voo dos meus queridos orientadores, senti nos pousos a segurança de pisar no chão com os teóricos que convidei a caminhar comigo, enquanto estivesse brincando com as “coisinhas do chão” (BARROS, 2010). Mas sobretudo, provei da liberdade de voar quando meu orientador Luiz Augusto Passos, como um “girassol que tem dom de auroras” (BARROS, 2010, p.125) me disse: - “Você tem toda liberdade para criar”, eu ‘logicamente’ entendi a mensagem que ele quis dizer: “Poesia é voar fora da asa” (BARROS, 2010, p.238 ) e então, todo espírito artístico que em mim faz morada quis ter as asas cada vez maiores para voar fora delas, bem mais pra longe... e Josivaldo dos Santos, meu coorientador com todo o zelo de um “apanhador de desperdícios” (BARROS, 2010, p. 98) cuidou para que esses voos ousassem numa poética que se fundasse em qualidade acadêmica, então, “de noite há uma flor que corrige os insetos” (BARROS, 2010, p.87), estava lá Josivaldo em suas noites, na tentativa de corrigir os meus devaneios. Quando estive em Chicago na Loyola University, sob a orientação de Noah Sobe, percebi que devia me cuidar nesses voos poéticos, Noah inserido na cultura americana foi metodologicamente “A régua (que) é existidura de limite” (BARROS, 2010, p.129), então, troquei o céu pelo mar, o voo pela vista e assim, o Lake Michigan foi meu maior companheiro, meu inspirador para os dias frios do outono-inverno, meu melhor entardecer. Ao contemplar todos os dias sua infinitude, misturado às cores do céu ora azul, ora cinzento e aos muitos pôr-do-sol que eu honrava receber, entendia cada vez que era bem difícil entender uma outra língua, mas eu entendia “bem o sotaque das águas” (BARROS, 2010, p. 387). Dos professores e professoras que compartilharam dos ‘bastidores’, ficaram no ninho memórias tênues, outras um tanto batentes. Cada olhar minucioso, fez certamente a riqueza dos detalhes: Nessa versão, já não estiquei as imagens, aprendi a não apenas apreciar a estética, mas ter todo um cuidado com ela, expliquei como fora o processo das entrevistas, entendi que o presente é o futuro do passado, portanto, as memórias reconstruídas carregam a identidade de quem as contam, emprestei de Guimarães Rosa o seu jagunço Riobaldo, para comigo fazer uma outra travessia, fiz uma apresentação de início aos moldes clássicos, intentei proporcionar aos poemas de

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Manoel uma percepção de cronotopo, entre outras muitas sugestões que me foram concedidas. Algumas das sugestões feitas na ocasião pela banca examinadora, fiz questão de deixar com seus próprios dizeres, quis que suas vozes fossem compartilhadas com outros, com futuros trabalhos. Além disso, deixei fluir o que Passos constantemente me dizia: “-Você não precisa fazer nada a mais, daquilo como percebe sua pesquisa.” Com tudo isso, meu ninho ficou repleto de vozes, de barulhinhos, de olhares singulares de cada um/uma que construiu junto esse trabalho. Sou agora, uma guardadora de ninho, assim como Manoel é um guardador de águas, e por isso tenho marcado “no rosto um sonho de ave extraviada” (BARROS, 2010, p. 485) e com meu olhar já viciado nesse trabalho, ainda não consegui parar de falar “em língua de ave e de criança” (BARROS, 2010, p. 485). Assim, para cada voz que construiu junto esse ninho de sonhos, de esperança, de memórias, de lutas, expresso minha gratidão em miudezas ao modo de que “as violetas me imensam” (BARROS, 2010, p. 344) e deste modo, cada um receba como agradecimento o que melhor lhe tocar a alma: andorinhas, caracóis, passarinhos, rãs, lírios, pedras, garças, açucenas, goiabas, córregos... à todos os meus professores da banca de qualificação: Michèle Sato, Solange Guimarães, Danilo Streck, Márcia Ferreira dos Santos, Carlos Edinei de Oliveira, Ozerina Victor de Oliveira e também meus orientadores: Luiz Augusto Passos, Josivaldo Constantino dos Santos, Noah Sobe, que deixaram seus vestígios no ninho retribuo com a mais importante de todas as titulações: são agora todos “beatos de águas, de pedras e de aves” (BARROS, 2010, p. 417).

Martha Barros, Desejo de árvores e aves - 170 cm x 80 cm - 2013

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Também, quero dizer dos sujeitos que participaram dessa pesquisa. Além de suas vozes carregadas de memórias da infância, ficou no ninho risos, lágrimas, migalhas de bolos, farelos de biscoitos oferecidos à mim em suas casas. O gosto do café passado na hora e do chimarrão, da erva verdinha. A cada entrevista, fui recebida como visita, me senti à vontade, virei quase uma amiga da infância de cada um. No final, de tanto infancionar no tempo, éramos todos uma criançada só, rindo do que aprontávamos no passado, das peraltices, o que era para ser em torno de uma hora, tornava- se uma tarde toda e como na infância, “não víamos as horas passar”. Nossos caracóis de memórias se entrelaçavam na casa um do outro e por um instante víamos outra vez nossos “barquinhos de papel na água suja das sarjetas” (BARROS, 2010, p. 81), ao barulho da “chuva fina pingando... pingando das árvores” (BARROS, 2010, p. 81) e sentíamos de novo também o “barulhinho vermelho dos cajus e o riacho passando nos fundos do quintal...” (BARROS, 2010, p. 114), éramos então, naquelas longas tardes, outra vez os meninos e meninas do/no m/Mato. E nessa história toda, nesse ninho de restos, de pedaços, de sobras de todos os encontros termino como uma única ‘certeza’ – “o que é feito de pedaços precisa ser amado” (BARROS, 2010, p. 152). Resta no ninho pedaços de muito amor, pedaços de muitos mundos, pedaços de muitas histórias.

Martha Barros, As cores do amanhecer - 54cm x 40cm - 2013

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Deixo este ninho de muitas memórias crianceiras protegido com raminhos que arrumo como escoras, são mais firmes do que as paredes dos grandes prédios do mundo (Cf. BARROS, 2010). Moram nele também os últimos bricoleurs, os quais têm cheiros, gostos, olhares, toques no/do m/Mato. Bricoleurs de capim-do-mato,

... do carrapicho que gruda na barra da calça;

... das paisagens desenhadas na terra;

Bricoleurs do barulho das águas;

... do doce fruto do cajueiro;

Bricoleurs do canto mágico: do uirapuru que se faz pássaro.

Voe e pouse uirapuru... cante e silencie...já é tarde, volte para o ninho... até a próxima manhã...o seu canto é aqui e em toda floresta: um “fazedor de amanhecer” (BARROS, 2010, p.473).

Martha Barros, Era uma vez um passarinho - 130cm x 85cm - 2009

Vestígios no ninho...

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UIRAPURU Pena Branca e Xavantinho Cifra: Principal (violão e guitarra) Tom: C C C#5 F Uirapuru, Uirapuru G7 C Seresteiro, cantador de meu sertão C C#5 F Uirapuru, Uirapuru G7 C Tens no canto as mágoas do meu coração C F A mata inteira fica muda ao teu cantar G7 C tudo se cala para ouvir tua canção F G7 F Que vai ao céu numa sentida melodia G7 C Vai a Deus em forma triste de oração C C#5 F Uirapuru, Uirapuru G7 C Seresteiro, cantador de meu sertão C C#5 F Uirapuru, Uirapuru

G7 C Tens no canto as mágoas do meu coração F Se Deus ouvisse o que te sai do coração G7 C Entenderia o que é dor tua canção F G7 F E dos seus olhos tanto pranto rolaria G7 C Que daria para salvar o meu sertão C C#5 F Uirapuru, Uirapuru G7 C Seresteiro, cantador de meu sertão C C#5 F Uirapuru, Uirapuru G7 C Tens no canto as mágoas do meu coração

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Professores presentes na Banca de Qualificação, julho de 2017.

Ata em Cordel da Qualificação

Que tarde maravilhosa, De grandeza sem igual. Com belas reflexões De cunho intelectual Figura 25: QualificandoQualificação em uma 07/07/2017 tese de uma escrita genial.

Ouvi professora Márcia Que nos fez provocação Pra rever possibilidades Em alguma contradição. Vamos olhar com carinho A sua pontuação

Michèle Sato serena Deu sua contribuição Mostrou possibilidades Durante a reflexão “Não esticar as imagens” Foi a recomendação.

Essa delícia de tese Segue a todo vapor Uma nave bem pilotada Com competência e amor Com as sugestões recebidas O final dessa viagem Será de muito louvor

Josivaldo Constantino dos Santos, 07/07/2017.

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Memórias da qualificação, 07/07/2017.

A voz e a presença da Profa. Márcia Ferreira dos Santos, com quem tanto aprendi desde o mestrado, sempre minuciosa, atenta, cuidadosa e comprometida com a educação, com a história. Pessoa fundamental na minha formação acadêmica.

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Portão de Entrada da Loyola University - Chicago

Interior da Loyola University, Outono de 2017. 281

Lembrança da partilha de saberes com a família do Prof. Noah, dos múltiplos ensinamentos e trocas culturais entre Brasil – Estados Unidos.

Escondida num abraço do querido orientador Prof. Passos, quem orientou todo o voo com muita sapiência, amorosidade, respeito e acolhimento de um pai, de um professor, de um pesquisador, de um amigo, sempre transbordando paz nos momentos em que mais me angustiavam. Sua voz estará pra sempre no coração. 282

Minha vista diária na sala de estudos e pesquisas da Loyola University

Lake Michigan e eu, outono-inverno de 2017. 283

A voz e a presença da Profa. Solange Guimarães nessa travessia, que com tanto cuidado e delicadeza me apontou ‘paisagens’ lindas para rever no caminho.

284

A voz e a presença do Professor Danilo Streck nessa ensaio de experimentações, qual me deu segurança de não temer ‘ousar’ a criar, a inventar, a experimentar um mundo acadêmico muito maior que estamos acostumados.

285

A voz e a presença do Professor Carlos Edinei de Oliveira nessa tese-ave, que com o olhar da história acolheu um outro modo de fazer história, de experimentar novos caminhos diferentes dos convencionais.

286

~

A marcante e rica presença do meu coorientador e amigo Prof. Josivaldo dos Santos, quem com a sabedoria de um poeta direcionou, inspecionou com cuidado, companheirismo e amorosidade todo esse trabalho. Essa tese-poema tem muito da sua voz desde a graduação, quando fui sua orientanda.

A voz e a presença da Profa. e amiga Mimi Sato, quem me acolheu com poesia e afeto de uma “dinda”, no meio da travessia. 287

A voz e a presença da Profa. Ozerina Victor de Oliveira, quem me acompanhou lindamente no início dessa travessia com ricas contribuições, sempre serena, atenta e comprometida no seu ensinar.

Turma amada do Doutorado em Educação - PPGE/UFMT 2015-2019 com as professoras Ozerina Víctor de Oliveira e Filomena Monteiro. Memórias e histórias de um voo em bando.

288

As vozes e as presenças das minhas amigas-irmãs desde o Mestrado: Catiane Peron e Alessandra Abdala. Suas vozes estão nas entrelinhas desse trabalho. Sou infinitamente grata por fazerem parte da minha vida, da minha história. Dos bastidores dessa travessia, vocês merecem ser anunciadas... esse doutorado também é de vocês.

289

Foto: Valmir Cordasso, 2015

Das sobras, dos restos, dos cantos... ficam no ninho as memórias, lembranças de muitos voos e pousos- delírios de infância.

Há no ninho um novo passado, que pulsa vida no instante. Floresta, gentes, histórias ressoam vozes de orvalho.

Moram no ninho desenhos de saudades, dos saberes primordiais com um coração de passarinho.

(Josi Rohden, 2019)

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ELENCO DE FIGURAS

Figura 1: caixa de HISTÓRIA (FECHADA) ...... 26

Figura 2: Caixa de História (interior da caixa) ...... 27

Figura 3:Fruto da Castanha transformado em artesanato ...... 28

Figura 4: Interior dos frutos com Versos-sementeiros ...... 29

Figura 5:Fruto da Infância Fechado com os versos sementeiros ...... 29

Figura 6:Cartaz de divulgação da Amazônia, publicado em 30 de dezembro de 1970 ...... 146

Figura 7: Maus tratos aos povos indígenas durante a Ditadura Militar ...... 148

Figura 8:Vista aérea de Sinop, 1974...... 155

Figura 9: Faixa exposta na ocasião da fundação de Sinop, 1974...... 158

Figura 10: Derrubada da mata, 1973...... 161

Figura 11: Abertura de Sinop, 1973...... 161

Figura 12: Matéria publicitária da Colonizadora SINOP S.A...... 162

Figura 13: Mudança de uma família ou famílias chegando em Sinop, 1973 ...... 163

Figura 14: Missa de Fundação de Sinop pelo Bispo Dom Henrique Froelich, 1974 ...... 165

Figura 15: Enio Pipino: o moderno bandeirante ...... 166

Figura 16: Moradias de Famílias em Barracões de Lona, 1973...... 167 Figura 17: Crianças de uma família em Sinop, (déc. 70)...... 168 Figura 18- Cotidiano dos trabalhadores em Sinop, (déc. 70)...... 168 Figura 19- BR 163 que liga Sinop-Cuiabá no período Chuvoso (déc. 70)...... 168 Figura 20: Povo assistindo ao discurso do Presidente Figueiredo em Sinop,...... 174 Figura 21: Tarsila do Amaral, Operários, óleo sobre tela 150 cm x 205 cm, 1933...... 175 Figura 22: Desfile cívico, 1978...... 175 Figura 23: Criança brincando num balanço construído pelo pai, 1997...... 198 Figura 24: Criança brincando com restos de madeira e de outros resíduos, 1981...... 210 Figura 25: Casinha de brincar feita pelo pai de Vitória Régia, 1978...... 212 Figura 26: Crianças brincando na mata em final da estação da seca (outono), 1977...... 218 Figura 27: Crianças em companhia da mãe e da arara com quem brincavam, 1978...... 218

291

Figura 28: Alunos jogando bola em frente à uma escola rural de Sinop, 1978...... 230 Figura 29: Crianças brincando possivelmente de roda, 1977 em uma escola rural de Sinop...... 232 Figura 30: Desfile Cívico de Aniversário da cidade, 1978...... 235 Figura 31: Crianças acompanhadas de adultos na saída da missa, 1977...... 236 Figura 32: Crianças organizadas para a celebração da fundação de Sinop, 1974...... 236 Figura 33: Caracol de Memórias...... 258

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NOTAS DE SIGLAS

BASA Banco da Amazônia S.A. INCRA Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária PIN Programa de Integração Nacional SUDECO Superintendência para o Desenvolvimento do Centro- Oeste SINOP Sociedade Imobiliária do Noroeste do Paraná COBAL Companhia Brasileira de Alimentos UFMT Universidade Federal de Mato Grosso PPGE Programa de Pós- Graduação em Educação NHC Nova História Cultural UNIR Universidade Federal de Rondônia DACIE Departamento Acadêmico de Ciências da Educação CAPES Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior

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VOOS COM...

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Depoimentos:

AÇUCENA. Entrevista concedida no dia 17/01/2012, em Sinop-MT. Entrevistadora: Josiane Brolo Rohden.

BROMÉLIA. Entrevista concedida no dia 23/01/2012, em Sinop-MT. Entrevistadora: Josiane Brolo Rohden

307

COPAÍBA Entrevista concedida no dia 07/02/2012, em Sinop-MT. Entrevistadora: Josiane Brolo Rohden

IPÊ AMARELO. Entrevista concedida no dia 30/11/2016, em Sinop-MT, duração: 2h: 04 min. Entrevistadora: Josiane Brolo Rohden.

VITÓRIA RÉGIA. Entrevista concedida no dia 08/12/2016, em Sinop-MT, duração: 1h: 22 min. Entrevistadora: Josiane Brolo Rohden.

CASTANHEIRA. Entrevista concedida no dia 20/12/2016, em Sinop-MT, duração: 2h: 21 min. Entrevistadora: Josiane Brolo Rohden.

JACARANDÁ. Entrevista concedida no dia 17/01/2017, em Sinop-MT, duração: 1h: 23 min. Entrevistadora: Josiane Brolo Rohden.

ANDIROBA. Entrevista concedida no dia 25/01/2017, em Sinop-MT, duração: 1h: 10 min. Entrevistadora: Josiane Brolo Rohden.

SERIQUELA. Entrevista concedida no dia 10/02/2017, em Sinop-MT, duração: 1h: 25 min. Entrevistadora: Josiane Brolo Rohden.

INGÁ. Entrevista concedida no dia 14/02/2017, em Sinop-MT, duração: 1h: 16 min. Entrevistadora: Josiane Brolo Rohden.

MIGRANTE A. Entrevista concedida no dia 08/12/2011, em Sinop-MT, duração: 2h: 07 min. Entrevistadora: Josiane Brolo Rohden

MIGRANTE B. Entrevista concedida no dia 14/01/2012, em Sinop-MT, duração: 2h: 03 min. Entrevistadora: Josiane Brolo Rohden.

MIGRANTE C. Entrevista concedida no dia 25/01/2012, em Sinop-MT, duração: 1h: 26 min. Entrevistadora: Josiane Brolo Rohden.

MODANESE, Reinaldo Domingos, Entrevista concedida no ano de 2002, em Sinop-MT. Entrevistadora: Janice Cássia Lando

ROVERI, José. Entrevista concedida no ano de 2002 em Sinop-MT. Entrevistadora: Janice Cássia Lando.

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HÁ-NEXOS

HÁ-NEXO I: Roteiro de entrevista com Migrantes de Sinop -MT

Parte I - Identificação e Dados Pessoais Nome: ______Data de nascimento: _____/ _____/ ______Idade: _____ anos. Sexo: ( ) fem. ( ) masc. Naturalidade:______UF:______Endereço: ______Bairro:______Profissão:______Escolaridade:______Veio para Sinop no ano de:______Mora nesta cidade há ______anos. Vem de que cidade e estado?______Idade que tinha quando chegou a Sinop:______Veio acompanhado de quem? ______Motivos da vinda para Sinop: ______

Parte II – Das Memórias sobre a cidade: 1- Você lembra como era a cidade quando você chegou? (Floresta, estradas, dificuldades, comércios, condições de vida, etc.) 2- Há alguma recordação especial dos primeiros tempos de vida aqui? 3- Como era viver em Sinop nos primeiros anos?

Parte III – Das Memórias da Infância e dos Sentidos

1- Como era ser criança em Sinop em tempos de colonização? 2- Que recordações você tem da sua infância? 3- O que você mais gostava de fazer e o que não gostava quando criança? 4- Conte-me sobre suas recordações da escola, da família, da igreja ou outro grupo de pessoas que você convivia e, que gostaria de falar. 5- Você tem lembranças de cheiros, sabores que te faz recordar a infância? 6- E quanto às memórias visuais (paisagens, lugares, imagens), auditivas (sons, barulho, canto de pássaros, animais, etc.) 7- E memórias táteis: você lembra de algo que gostava de pegar, sentir, tocar?

Parte IV – Das memórias do Brincar

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8- Você costuma brincar do quê? 9- Haviam brinquedos? Você construía brinquedos? Se sim, de que materiais eram feitos os brinquedos e como você construía? 10- Que brincadeiras ou jogos você mais gostava? 11- Haviam brincadeiras e jogos em grupos com outras crianças? Como eram? 12- Haviam regras nos jogos ou brincadeiras? Como eram? Quem as faziam? 13- Você brincava em casa, na rua, na escola? Em que lugar você brincava mais? 14- Era um espaço de rios e florestas, você costuma brincar nestes espaços da natureza? Como era? 15- Haviam brincadeiras de roda? Você lembra de alguma? 16- Qual era o tempo destinado a brincar? Pouco, Muito? 17- Havia alguma proibição de algum jogo ou brincadeira? 18- Você podia brincar na escola? Se sim, como eram as brincadeiras e jogos? Tinha alguma proibição? 19- Seus pais incentivavam que você brincasse? E, a escola? 20- Havia distinção entre brincadeiras entre meninos e meninas? Quais eram? 21- Gostaria de contar algo a mais sobre sua infância e sobre as brincadeiras?

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HÁ-NEXO II- VERSOS SEMENTEIROS

Fui criado no mato e aprendi a gostar das coisinhas do chão – Antes que das coisas celestiais. Manoel de Barros

Cresci brincando no chão, entre formigas. De uma infância livre e sem comparamentos. Eu tinha mais comunhão com as coisas do que comparação. Manoel de Barros

Era o menino e os bichinhos. Era o menino e o sol. O menino e o rio. Era o menino e as árvores. Manoel de Barros

Eu fui aparelhado para gostar de passarinhos. Tenho abundância de ser feliz por isso. Manoel de Barros

Meu quintal É maior do que o mundo. Manoel de Barros

Isto porque a gente foi criada em lugar onde não tinha brinquedo fabricado. Isto porque a gente havia que fabricar os nossos brinquedos: eram boizinhos de osso, bolas de meia, automóveis de lata. Manoel de Barros

A casa era sem o teto, Apenas umas míseras telhas. A noite se enxergava as estrelas por entre o pouco coberto. Eu as contava. Josi Rohden

Que outro lugar no mundo, Haveria de ter montanhas de pó-de-serra. Só para crianças escalarem? Josi Rohden

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Meu lugar já estava escolhido: Era lá, naquele grande parque: De mata fechada, De montanhas de pó-de-cerra. Qual não trocaria por nada, Local das minhas grandes expedições. Eu era uma exploradora daquele lugar. Josi Rohden

Qualquer resto de madeira virava um brinquedo, Invenção tinha nome próprio. A escolha da melhor tábua era feita a dedo, Quanto mais plaina e leve, Mais alto a gente pularia. Josi Rohden

Cipó era balanço, Os meninos achavam ser Tarzan, As meninas pensavam estar, Num palco como bailarinas. Não sei de onde vinha tanta destreza Para fazer de um cipó, Lugar de embalar sonhos. Josi Rohden

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HÁ-NEXO III- AUTORIZAÇÃO PARA USO DE IMAGENS FOTOGRÁFICAS

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INFORMAÇÕES SOBRE OS ARTISTAS PLÁSTICOS/FOTOGRÁFICO:

Flávio Ribeiro: Arte-educador, Desenhista e Pintor, Graduado em Licenciatura em Desenho e Plástica pela Escola de Belas Artes da Universidade Federal da Bahia. Pós-Graduado, Especialização Em Docência do Ensino Superior, pela Fundação Visconde Cairu e Mestre em Educação- UFBA. Nas suas produções em aquarelas, Flávio Ribeiro não se prende a temáticas especificas, mas ás formas de representações – encaradas como constituintes de seus blocos de esboços. Para ele, suas produções em aquarela são momentos de objetivações de uma árdua perseguição de “pretensiosas ingenuidades”. Informações coletadas no site do artista: https://www.flavioribeiroartes.com.br/

Mari Bueno: Em Sinop, no interior de Mato Grosso, a artista plástica Mari Bueno busca inspiração nas características da Amazônia para retratar a cultura indígena, a fauna, a flora, o cotidiano dos moradores, os materiais regionais na arte abstrata e a inculturação na Arte Sacra. As obras ultrapassaram fronteiras e chegaram à Europa, América do Norte e África. Pensando assim, Mari Bueno desenvolveu técnicas escolhendo materiais locais para trabalhar a arte contemporânea. Prefere pintar com tinta óleo sobre tela, mas também trabalha com pigmento sobre textura (principalmente na arte sacra) e desenvolveu uma técnica para usar pó de serra que pega nos lixões de madeireiras. A base teórica vem da uma graduação em Letras pela Universidade do Estado de Mato Grosso (Unemat) e de duas especializações: em Arte na Educação, pela Fasipe, e em Arte Sacra e Espaço Litúrgico-Celebrativo, pelo Instituto de Teologia de Santa Catarina. Além de cursos realizados na Europa, como desenho, pintura, mosaico e iconografia.

Informações coletadas no site da artista: http://maribueno.com.br/

Martha Barros: Carioca, com raízes em Campo Grande (MS), Martha Barros é formada em Biblioteconomia mas foi na pintura que a artista encontrou sua verdadeira fonte de inspiração. Cursou o atelier de Hélio Rodrigues e freqüentou a Escola de Artes Visuais do Parque Lage, onde estudou com mestres do naipe de João Magalhães, Gianguido Bonfanti, Charles Watson, John Nicholson e . Filha do poeta matogrossense Manoel de Barros, um dos maiores em atividade, Martha herdou do pai o lirismo e o gosto pelas coisas pequenas, e vem colocando suas preciosas ilustrações na obra do pai. Mas, a artista, que busca a liberdade do imaginário e do inconsciente, tal como Kandinsky, Paul Klee, Miró e Chagall, seguiu uma trajetória própria no universo das artes visuais. A obra de Martha Barros é influenciada pelo mundo dos homens, dos animais e das plantas, em comunhão com a natureza. Sua linguagem, artesanalmente construída, está sempre em busca de uma simplicidade que se abastece na infância e bebe na fonte do ser. São imagens ignorantes do mundo moderno e de suas tecnologias mas, ao mesmo tempo, totalmente carregadas da inocência, que é exatamente onde o ser busca as suas raízes.

Informações coletadas no site da artista: http://www.marthabarros.com.br/

Valmir Cordasso: Bancário e um apaixonado por pássaros. De acordo com seu perfil no Wikiaves, suas fotografias são feitas a partir do equipamento de uma Câmera canon 70D e 7d mark ii, Lente 100-400 ii e 150-600. Possui 1246 fotos de 637 espécies diferentes, 0 fotos não-identificadas, 21 sons de 19 espécies diferentes, 0 sons não-identificados. Reside em Manaus, além de pássaros, Valmir fotografa também a fauna e a flora da Amazônia. Informações coletados no site WikiAves: https://www.wikiaves.com.br/perfil_corval2006

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Arte: Aquarela de Flávio Ribeiro, 2017. Disponível em: https://www.flavioribeiroartes.com.br/

FOTO: Valmir Cordasso, 2019. 315

“Passarinho que se debruça - o voo já está pronto!”

João Guimarães Rosa