JOSÉ MAURÍCIO TEIXEIRA LOURES

ATRÁS DA IMAGEM, AO ALCANCE DO OLHAR

Tese de Doutorado apresentada ao Programa de Mestrado e Doutorado em Psicanálise, Saúde e Sociedade da Universidade Veiga de Almeida para obtenção do título de Doutor em Psicanálise, Saúde e Sociedade. Área de concentração: Psicanálise e Sociedade. Linha de pesquisa: Arte e Psicanálise.

ORIENTADORA: PROFa. DRa. SONIA XAVIER DE ALMEIDA BORGES

RIO DE JANEIRO 2020 UNIVERSIDADE VEIGA DE ALMEIDA PRÓ-REITORIA DE PÓS-GRADUAÇÃO, PESQUISA E EXTENSÃO Rua Ibituruna, 108 – Maracanã 20272-020 – Rio de Janeiro – RJ – Brasil Tel.: +55 21 2574-8888 e 0800 024 6172

L892 Loures, José Maurício Teixeira Atrás da imagem, ao alcance do olhar / por José Maurício Teixeira Loures. - 2020. 107 f. : il. color. 12,5 ; cm 30 cm.

Impresso por computador (original). Orientador: Sonia Xavier de Almeida Borges. Tese (doutorado) – Universidade Veiga de Almeida, Programas de Pós-graduação Stricto Sensu, Doutorado em Psicanálise, Saúde e Sociedade, Rio de Janeiro, 2020 .

1. Psicanálise e arte. 2. Fotografia. 3. Representação (Psicanálise). 4. Woodman, Francesca, 1958-. 5. Araki, Nobuyoshi, 1940-. I. Borges, Sonia Xavier de Almeida (orientador). II. Universidade Veiga de Almeida. Programas de Pós-graduação Stricto Sensu, Doutorado em Psicanálise, Saúde e Sociedade. III. Título.

CDD – 150.195

Ficha Catalográfica elaborada pelo Sistema de Bibliotecas da UVA Bibliotecária Adriana R. C. de Sá – CRB-7/4049

FOLHA DE APROVAÇÃO

JOSÉ MAURÍCIO TEIXEIRA LOURES

ATRÁS DA IMAGEM, AO ALCANCE DO OLHAR

Tese de Doutorado apresentada ao Programa de Mestrado e Doutorado em Psicanálise, Saúde e Sociedade da Universidade Veiga de Almeida para obtenção do título de Doutor em Psicanálise, Saúde e Sociedade. Área de concentração: Psicanálise e Sociedade. Linha de pesquisa: Arte e Psicanálise.

Aprovada em 31 de janeiro de 2020.

______Sonia Xavier de Almeida Borges Universidade Veiga de Almeida

______Ana Maria Toledo Piza Rudge Universidade Veiga de Almeida

______Maria Anita Carneiro Ribeiro Universidade Veiga de Almeida

______Marco Antonio Coutinho Jorge Universidade do Estado do Rio de Janeiro

______Vivian Martins Ligeiro Universidade do Estado do Rio de Janeiro

A Sonia Borges, que tem me conduzido pela psicanálise e pela arte com dedicação, afeto e entusiasmo.

A minha mãe, Mônica, eterna companheira em minha jornada em busca do impossível.

Ao meu irmão, Caio, pelo apoio incondicional. AGRADECIMENTOS

O fotógrafo Ansel Adams, certa vez, disse: “Não fazemos uma foto apenas com uma câmera; ao ato de fotografar trazemos todos os livros que lemos, os filmes que vimos, as músicas que ouvimos, as pessoas que amamos.” Assim também é a escrita de uma tese, que, como a produção de uma obra de arte ou como a construção de um sonho, se faz a partir de muitos elementos. Deixo, aqui, os meus agradecimentos a quem direta ou indiretamente participou da trajetória desta pesquisa. Agradeço primeiramente a Sonia Borges. Esta pesquisa foi o início de um trajeto que me permitiu resgatar o desejo pela fotografia e continuar trilhando o caminho da arte e da psicanálise que Sonia me apresentou/presenteou e me conduziu desde os primeiros passos até que eu pudesse adquirir segurança e maturidade para propor desvios, os quais você aceitou me acompanhar com a sua experiência, conhecimento e extrema dedicação. As nossas longas conversas, a sua paixão pela arte e pela psicanálise e, principalmente, o seu engajamento nesta pesquisa foram fundamentais. A conclusão deste Doutorado encerra um vínculo acadêmico, mas reforça ainda mais o nosso encontro. Repito o que escrevi nos agradecimentos da minha dissertação de Mestrado: “Se todos fossem iguais a você, que maravilha viver”. Exprimo também a minha gratidão a Gloria Sadala. A nossa parceria tem sido fortalecida e ressignificada continuamente. Você é poetiza incansável na arte da escrita, mas, também, no trabalho e na vida. Seus atos produzem ressonâncias que assumem proporções inimagináveis e o maior exemplo disso foi a criação deste Mestrado e Doutorado em Psicanálise, Saúde e Sociedade. Cada dissertação e tese defendidas, cada profissional que é tocado pela psicanálise, produzindo impacto em sua prática, cada pesquisador que irá expandir seus saberes adquiridos neste Programa, tudo isto é ressonância do seu ato criador. Não posso deixar de expressar minha gratidão a Maria Anita Carneiro Ribeiro. A psicanálise impulsionou este encontro, mas você também tornou possível um novo encontro com a psicanálise, com uma psicanálise que provém de muito estudo, dedicação, paixão e experiência. É um privilégio ter você como professora, supervisora e companheira de jornada. Obrigado por ter prontamente aceito o convite para compor minhas bancas de qualificação e defesa. Também, agradeço a Betty Fuks. O nosso encontro foi um dos maiores presentes deste Mestrado e Doutorado. Carrego enorme gratidão por todo o seu apoio e carinho. Obrigado pelas recomendações de leituras, por ter me apresentado o trabalho de Evgen Bavcar, que, com certeza, será objeto de estudos futuros, e pela preciosa indicação do Marco Antonio Coutinho Jorge e da Vivian Martins Ligeiro para compor a minha banca de defesa. A Ana Maria Rudge, que muito me alegrou ao aceitar estar nas minhas bancas de qualificação e de defesa, obrigado pelo apoio. A Marco Antonio Coutinho Jorge, em cuja transmissão faz parte do meu percurso na psicanálise, obrigado por ter aceitado o convite para participar da minha banca de defesa. A Vivian Martins Ligeiro, obrigado por ter aceitado participar da minha banca de defesa e pela valiosa contribuição, junto ao Marco Antonio Coutinho Jorge, com seu artigo intitulado “Psicanálise e arte: o triunfo do real”. A Maria Helena Martinho tenho a agradecer, pelo apoio, parceria, dedicação e pelo entusiasmo em sua transmissão, que sempre me inspirou. Agradeço aos professores do Programa de Mestrado e Doutorado em Psicanálise, Saúde e Sociedade não mencionados antes, dentre os quais destaco: Perla Klautau, sempre muito receptiva e atenciosa; a Antonio Quinet, teórico e pessoa admirável, pela transmissão, oportunidades e parcerias; e a Joana Novaes, pelo incentivo e pela prolífera parceria acadêmica. Também, agradeço as minhas colegas de orientação, Vera Stocco, Andréa Pires Camargo, Monica Vulej; aos meus colegas de turma André Veras, Evanir, Greta, Kátia Cristian, Mônica Miranda e Milânia. A Ieda Tucherman, agradeço o engajamento em contribuir para esta pesquisa, pelas indicações, livros e produtivas conversas. A Vera Pollo agradeço por tudo o que temos construído em análise, pelo apoio e escuta, que foram fundamentais para que fosse possível realizar este Doutorado e desenvolver esta tese. Agradeço a Aline Drummond, Andréa Senna, Giselle Albuquerque, Josy Pandolfo e Poliana Nunes, amigas queridas que muito me apoiaram neste percurso. Agradeço a Andreia Paraquette, parceira na fotografia e na vida; a Sônia Menezes, cuja amizade foi outro desdobramento dos meus primeiros estudos em fotografia e que sempre incentivou o meu desenvolvimento acadêmico; e a Fabiana Neves, pela amizade, apoio e pelas contribuições teóricas ao me apresentar detalhes e bibliografia sobre a cultura japonesa. A Lúcia Mota, obrigado pela amizade, pela disponibilidade e pelo empenho na impressão e encadernação final deste trabalho. Um especial agradecimento à Universidade Veiga de Almeida, lugar onde iniciei minha trajetória acadêmica e onde conheci as pessoas que fizeram parte desta jornada. E, por fim, agradeço à CAPES, pela bolsa de estudos concedida, que tornou possível a realização deste Doutorado.

“O que está ali remete ao que não está ali, ou o chama; porém não o chama sob a égide de uma regra determinada e formulável, como um teorema chama suas consequências, ainda que infinitas, um número seus sucessores, uma causa seus efeitos, ainda que inumeráveis. [...] Aquilo que não está numa representação pode, mesmo assim, achar-se ali, e para isso não há limite algum.” (Cornelius Castoriádis) RESUMO É conhecida a tradição contemplativa da arte, com seu efeito de “suave narcose”. Contudo, cada vez mais, tem se destacado uma arte que, muito pelo contrário, não visa nenhum tipo de apaziguamento. Essa arte quer provocar, fazer rupturas na experiência artística. E artistas que assumem esse projeto se engajam na invenção de modos extremamente particulares de formalização que venham a responder a isso, excedendo a tradição da representação. Esta pesquisa de Doutorado visa abordar esse excedente da representação a partir da teoria psicanalítica em articulação com a arte e a filosofia, buscando um lugar comum entre esses saberes. As obras de dois fotógrafos, a norte-americana Francesca Woodman (1958-1981) e o japonês Nobuyoshi Araki (1940 - ) são tomadas para estudo, já que, como se busca sustentar nesta pesquisa, ambos flertam com o impossível. Trabalha-se com a hipótese de que a partir da análise de seus processos de criação será possível extrair um saber acerca do que de fato está em jogo nesses tipos de formalização estética que, por sua vez, é consonante com a subversão freudiana da noção clássica de representação. Palavras-chave: Fotografia; Psicanálise; Corpo; Representação; WOODMAN, Francesca; ARAKI, Nobuyoshi.

ABSTRACT The contemplative tradition of art is known, with its effect of “soft narcosis”. However, more and more, an art has been highlighted that, quite the contrary, does not seek any kind of appeasement. This art wants to provoke, to disrupt the artistic experience. And artists who undertake this project engage in the invention of extremely particular modes of formalization that will respond to this, exceeding the tradition of representation. This PhD research aims to approach this surplus of representation from psychoanalytic theory, in articulation with art and philosophy, seeking a common place between these knowledge. The works of two photographers, the American Francesca Woodman (1958-1981) and the Japanese Nobuyoshi Araki (1940 -) are taken for study, as, as is sought in this research, both flirt with the impossible. It is hypothesized that from the analysis of its creation processes it will be possible to extract knowledge about what is really at stake in this kind of aesthetic formalization, which, in turn, is in line with the Freudian subversion of the classical notion of representation. Keywords: Photography; Psychoanalysis; Body; Representation; WOODMAN, Francesca; ARAKI, Nobuyoshi.

LISTA DE ILUSTRAÇÕES

Figura 1: José Maurício Loures: Sobre-posições #1 (2017-2019) ...... 20 Figura 2: Francis Bacon: Cabeça 1 (1966) ...... 21 Figura 3: Sergio Larrain: Trafalgar Square (1958-1959) ...... 22 Figura 4: Sergio Larrain: Niñas (1952) ...... 22 Figura 5: José Maurício Loures: Sobre-posições #2 (2017-2019) ...... 26

Figura 6: : Tordesilhas, da série “Fronteiriços” (2014) ...... 30 Figura 7: José Maurício Loures: Sobre-posições #3 (2017-2019) ...... 32 Figura 8: Esquema do véu ...... 33 Figura 9: José Maurício Loures: Sobre-posições #4 (2017-2019) ...... 34 Figura 10: Esquema de Jacques-Alain Miller ...... 35 Figura 11: José Maurício Loures: Sobre-posições #5 (2017-2019) ...... 39 Figura 12: Banksy: Love is in the Bin (2018) ...... 41 Figura 13: Rolf Nesch: Elbe Bridge I (1932) ...... 44 Figura 14: Bernard Schultze: Insektenhaft (1952) ...... 44 Figura 15: Fritz Wotruba: Standing Figure (1949–1950) ...... 45 Figura 16: Marina Abramović: Imponderabilia (1977) ...... 50 Figura 17: Nobuyoshi Araki ...... 52 Figura 18: Yoko Aōki com o gato ...... 53 Figura 19: Yoko Aōki no sexo ...... 53 Figura 20: Araki em cena ...... 54 Figura 21: Mulher nua com polvo ...... 56 Figura 22: Katsushika Hokusai: O sonho da mulher do pescador (1814) 56 Figura 23: Mulher com dinossauros ...... 57 Figura 24: Kinbaku ...... 59 Figura 25: Esquema do semblante ...... 62 Figura 26: Mulher suspensa ...... 63 Figura 27: Rachadura ...... 67 Figura 28: Cano ...... 67 Figura 29: Figo ...... 67 Figura 30: Morango ...... 67 Figura 31: Genitais riscados ...... 68 Figura 32: José Mauício Loures: Folheando Araki (2019) ...... 69 Figura 33: A morte de Yoko ...... 71 Figura 34: Yoko no caixão ...... 71 Figura 35: Francesca Woodman ...... 73 Figura 36: Untitled, Providence, Rhode Island, (1975-1978) ...... 75 Figura 37: Francesca Woodman: About being my model, Providence, Rhole Island (1976) ...... 76 Figura 38: Francesca Woodman: Untitled, Providence, Rholand Island (1976) ...... 80 Figura 39: Francesca Woodman: From Space, Providence, Rhode Island (1976) ...... 81 Figura 40: Francesca Woodman: House #4, Rhode Island (1976) ...... 82 Figura 41: Francesca Woodman: Untitled, Boulder, Colorado (1976) .. 82 Figura 42: Francesca Woodman: Untitled, Itália (1977-1978) ...... 85 Figura 43: Francesca Woodman: From Angel série, Itália (1977) ...... 85 Figura 44: Francesca Woodman: Then at one point I did not need to translate the notes; they went directly to my hands, Providence, Rhode Island (1976) ...... 86 Figura 45: Dirk Bouts: Ceia (1464) ...... 88 Figura 46: Esquema da perspectiva em Ceia ...... 88 Figura 47: Tintoretto: A última ceia (1593) ...... 88 Figura 48: Esquema da perspectiva em A última ceia ...... 88 Figura 49: Triângulo do sujeito que vê ...... 89 Figura 50: Triangulo do sujeito que é causado pelo olhar ...... 89 Figura 51: Quiasma do campo escópico ...... 90 Figura 52: Francesca Woodman: Space2, Providence, Rhode Island (1976) ...... 94 Figura 53: Francesca Woodman: Untitled, New York (1979-1980) ...... 95 Figura 54: Francesca Woodman, Untitled, Providence, Rhode Island, 1975–1978 ...... 96

SUMÁRIO

INTRODUÇÃO ...... 13

1. PARA ALÉM DA REPRESENTAÇÃO: O OBJETO DA PSICANÁLISE ...... 17 1.1 A PRETENSA RELAÇÃO DE OBJETO ...... 22 1.2 O REAL POR UM IMPASSE DA FORMALIZAÇÃO ...... 37

2. SEM TÍTULO: O OBJETO DE ARTE ...... 41 2.1 TRANSGRESSÃO DAS FRONTEIRAS ...... 42 2.2 A NOVA ARTE ...... 48

3. NOBUYOSHI ARAKI: ENTRE O SUBLIME E O NEFANDO ...... 52 3.1 A DAMA SUSPENSA POR CORDAS ...... 58 3.2 TODA NUDEZ SERÁ FOTOGRAFADA ...... 63 3.3 VISUALIDADE OBSCENA ...... 66

4. FRANCESCA WOODMAN: FRATURA NA IMAGEM ...... 72 4.1 DA IMAGEM DO CORPO AO CORPO DA IMAGEM ...... 76 4.2 PERTURBAÇÃO NO CAMPO VISUAL ...... 86

CONSIDERAÇÕES FINAIS ...... 97

REFERÊNCIAS ...... 100

INTRODUÇÃO

Toda obra de arte é formada por estruturas que estabelecem um tipo de organização estética. Cada artista, como veremos no decorrer desta pesquisa, desenvolve seu próprio processo de criação e acreditamos que o estudo acerca desses processos nos permitirá chegar ao cerne do que está em jogo em seu ato criador – e disso extrair um saber. Para esse tipo de abordagem, se faz necessário ir às origens do objeto de arte, considerando informações sobre o artista, sua época, suas concepções de arte, mas, principalmente, o que ele nos diz sobre o seu fazer artístico. Esta metodologia, a meu ver, foi inaugurada por Jacques Lacan, em seu Seminário, livro 7: a ética da psicanálise (1959-1960), em que desenvolve sua concepção de criação. Nesse Seminário, principalmente ao analisar a poesia cortês, mais especificamente a criação da Dama do amor cortês, e, posteriormente, ao discutir a ética da psicanálise a partir da tragédia de Antígona, Lacan aborda o objeto de arte considerando sua estrutura formal. Ele destrincha os elementos que compõem estas obras e, a partir disso, realiza uma reflexão teórica sobre a sublimação, a função do belo e a ética. Quando nos deparamos com uma obra de arte, não precisamos encontrar um significado para ela, devemos senti-la – fruição estética que pode causar júbilo ou, até mesmo, angústia. O importante é que nos provoque algo. A questão que pulsa é: por que algumas obras de arte nos capturam? As fotografias da norte-americana Francesca Woodman (1958-1981) e do japonês Nobuyoshi Araki (1940 -) me capturaram de várias formas: pela via da beleza, da angústia e até da perplexidade. Conheci o trabalho de Francesca Woodman quando comecei os meus estudos sobre fotografia, em 2009 e, desde então, tenho nutrido interesse em estudar sua obra, o seu processo de criação. No ano de 2017, pouco antes de iniciar este Doutorado, comecei a pensar, pela primeira vez, a obra dessa artista a partir da teoria psicanalítica. Produzi, então, em parceria com a Dr.a Sonia Borges, um texto intitulado “Francesca Woodman: uma fratura na imagem especular”, que apresentamos na XIX

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Jornada de Formações Clínicas do Campo Lacaniano do Rio de Janeiro e V Jornada da Escola de Psicanálise dos Fóruns do Campo Lacaniano do Rio de Janeiro. Posteriormente, o texto foi ampliado e publicado, a convite da Dr.a Betty Fuks, na revista Trivium: Estudos Interdisciplinares, com o título “Francesca Woodman: retrato da artista quando mancha” (BORGES; LOURES, 2019). Num primeiro momento, o interesse foi de, a partir das fotografias de Francesca, fazer uma articulação entre a função do espelho e a função do quadro em Lacan. Contudo, as questões não se esgotaram. Foi isso que motivou a proposta de pesquisa para este Doutorado. No início do ano de 2018, em uma viagem a Buenos Aires, visitei o Centro Cultural Kirchner, que, na época, abrigava o projeto de Guillermo Kuitca, uma exposição intitulada Les Visitants [Os Visitantes], que ofereceu ao público um passeio entre as diferentes estéticas de 23 artistas internacionais, dentre eles a inquietante Francesca Woodman e o excêntrico Nobuyoshi Araki. Este foi o meu primeiro contato com as fotografias de Nobuyoshi Araki. Tanto Francesca quanto Araki representam o corpo feminino e a primeira impressão que tive ao vê-los lado a lado foi: Francesca exibe um corpo falhado, disforme, um corpo que falta à imagem; enquanto Araki apresenta o outro extremo, o corpo feminino falicizado e terrivelmente erótico. Francesca Woodman problematiza o estatuto da presença e da ausência do objeto no campo visual. É no ponto em que o objeto sai da cena fantasística e a imagem idealizada se decompõe e retorna como estranha, não decodificada, que a negatividade vem à superfície do fotograma sob a forma de objeto. A artista parece ter encontrado nos recursos da fotografia um meio privilegiado de formalização, transformando o impossível de ser representado em fotografias do impossível. Araki, por sua vez, articula tradição (arte erótica clássica, quimonos etc.) e pornografia, o que levou suas obras a acervos renomados em todo o mundo. O artista diz que a base do seu trabalho é a relação íntima que estabelece com as pessoas que são fotografadas por ele. Suas fotografias mais conhecidas são as que retratam mulheres nuas, muitas vezes amarradas e/ou suspensas por cordas. Araki diz buscar uma representação do sexo e da morte, conjugados. Este estudo se iniciará com uma discussão acerca da representação, tomando a teoria da relação de objeto e o desenvolvimento da afirmação de Lacan, em seu Seminário, livro 20: mais, ainda, de que “o real é o impasse da formalização” (LACAN,

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1972-1973/2008, p. 100). Este primeiro capítulo servirá de base teórica para todos os desenvolvimentos posteriores. Em 2017, em minha primeira visita à Pinacoteca do Estado de São Paulo, após contemplar e fotografar as esculturas de corpos perfeitos expostas nos corredores, me deparei com uma inquietante performance em que duas pessoas vestiam uma roupa projetada para dois corpos, formando uma figura inumana. Em 2019, durante o desenvolvimento desta pesquisa, realizei um trabalho de pós-produção nas fotografias, sobrepondo estes dois universos anatômicos contraditórios. Essas fotografias serão apresentadas no decorrer do primeiro capítulo, como uma forma de ilustrar as possibilidades de ruptura na concepção clássica de representação que a arte tem propiciado. Na sequência, abordaremos o objeto de arte, enfatizando a transgressão de fronteiras entre diferentes formas de arte, a desmaterialização do objeto artístico e as características do que viemos a chamar de Nova Arte. Buscaremos refletir sobre possíveis aproximações entre o objeto de arte e objeto da psicanálise, tal como trazer mais elementos para a análise das obras dos dois artistas em estudo. Em seguida, abordaremos a arte de Nobuyoshi Araki, enfatizando, principalmente, a relação entre o real e o semblante e os impactos disto na estética de suas fotografias. Nobuyoshi Araki retrata a mulher que parece encontrar refúgio nos semblantes, seja pela vertente da encenação da mulher castrada, pelo sacrifício ou, até mesmo, pelo suposto masoquismo feminino. Não estaria o artista revelando, assim, a mascarada como essência do feminino, uma forma vazia de reconfiguração de si? Por fim, tomaremos para estudo a arte de Francesca Woodman, em cujas fotografias nos permitirão adentrar nas concepções psicanalíticas sobre o corpo e sobre o olhar. Consideramos que suas fotografias subvertem a função esperada do autorretrato, na medida em que aparecem como fragilização da imagem de si. Francesca discute a dissolução da imagem do corpo próprio a partir do trabalho com o informe, corpo que ela reconstrói em experiências visuais não-narcísicas de objeto, problematizando radicalmente a articulação entre corporeidade e imagem. Poderíamos afirmar que suas fotografias desvelam certo tipo de resistência à identificação do ser falante com o organismo, ou, melhor dizendo, à imagem ideal de seu corpo?

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De fato, as obras desses artistas colocam para nós questões as quais só teremos respostas ao analisarmos as singulares estratégias que eles utilizam para a criação de seus objetos de arte. Buscaremos, portanto, nesta pesquisa, uma reflexão psicanaliticamente orientada a respeito do fazer artístico desses fotógrafos, articulando psicanálise e arte sem dissolver as especificidades dos modos de criação empreendidos por cada um deles. Acreditamos que esta forma de abordar o objeto de arte poderá trazer contribuições tanto para a psicanálise quanto para o campo da estética.

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1. PARA-ALÉM DA REPRESENTAÇÃO: O OBJETO DA PSICANÁLISE

“Eu objeto: feito jato eu jogo isso ante os nossos olhos. Eu o constituo em objeto sob nosso olhar, eu o localizo ante a nós. Mas também: eu nos localizo – e questiono esse local – ante a ele. Eu exponho a coisa e nos exponho a ela. Eu a aprochego de nós. Eventualmente, eu nos reprocho por dela termos desviado o olhar. De sorte que tornar visível será sempre ao mesmo tempo objetar certo estado de coisas, quando as coisas estão somente “no estado”, ou seja, nem tão estranhas para serem vistas e interrogadas.” (Georges Didi-Huberman)

Do renascimento até o fim do século XIX, as produções artísticas e do saber eram consideradas não apenas como construções mentais, mas representações fiéis de uma realidade que lhes preexistia. Dominantes durante muito tempo, essas convicções cessaram progressivamente, de modo que artistas, cientistas e filósofos começaram a duvidar, questionando, inclusive, o mecanismo da representação (DELACAMPAGNE, 1995). Em 1900, Sigmund Freud, publicou a Interpretação dos Sonhos, dando início ao que Jacques Lacan viria a chamar de “trilogia do significante”, que abrange, também, a “Psicopatologia da vida cotidiana”, de 1901, e os estudos sobre os chistes (Witz), de 1905. Esses trabalhos, além de fundamentarem uma concepção de subjetividade pautada em um saber inconsciente e na relação deste com a linguagem, problematizam toda a lógica da representação.

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Na Interpretação dos Sonhos, Freud (1900/2016) estabeleceu que o efeito de distorção produzido nos sonhos é gerado por condensação (efeito metafórico, em que várias ideias se condensam em um único elemento) e deslocamento (efeito metonímico, em que há um deslize de uma ideia para uma representação alusiva a essa ideia). Estes mecanismos de distorção, presentes não só nos sonhos, mas em todas as formações do inconsciente, estão relacionados a uma das características do inconsciente, sua mobilidade de investimentos, em que uma ideia pode ceder à outra toda a sua carga de investimento, como, também, pode apropriar-se de todo o investimento de várias outras ideias (FREUD, 1915/2006). Freud (1915/2006) também acrescenta que as representações que transferem suas intensidades umas às outras. Quando se encontram em relações mais frouxas, são ligadas a associações equivalentes entre si, principalmente as que são baseadas na homofonia e na literalidade, produzindo o efeito humorístico que observamos nos chistes. Há, ainda, a possibilidade de, no fluxo normal das representações, do qual importa, acima de tudo, a escolha e conservação do elemento representacional “correto”, formarem-se representações intermediárias, produzindo um efeito inédito, quando buscamos expressões linguísticas para os pensamentos pré-conscientes – é o caso dos lapsos. Desde 1900, Freud já havia estabelecido que os processos do pensamento são em si mesmos inconscientes e só atingem sua capacidade para se tornarem conscientes através de ligação com os resíduos de percepções de palavras. Mas, se as representações de palavras se originam das percepções sensoriais, da mesma forma que as representações das coisas, caberia, então, indagarmo-nos: por que as representações das coisas não podem tornar-se conscientes por intermédio de seus próprios resíduos perceptivos? Provavelmente, responde Freud (1915/2006, p. 207), “o pensamento prossegue em sistemas tão distantes dos resíduos perceptivos originais, que já não retêm coisa alguma das qualidades desses resíduos e, para se tornarem conscientes, precisam ser reforçados por novas qualidades”. Além disso, estando ligadas a palavras, “os investimentos podem ser dotados de qualidade mesmo quando representem apenas relações entre [representações] de objetos, sendo assim

18 incapazes de extrair qualquer qualidade das percepções.” (FREUD, 1915/2006, p. 207). Em seu ensaio sobre as afasias, de 1891, Freud já se debruçara sobre a questão da representação. Nesse artigo, Freud estabeleceu que a palavra adquire seu significado ligando-se a uma representação do objeto – processo que se caracteriza por um complexo de associações que se formam por uma variedade de representações visuais, acústicas, táteis, cenestésicas etc.

Da filosofia aprendemos que a representação do objeto não compreende senão isto, e que a aparência de uma “coisa”, de cujas diferentes “propriedades” falam aquelas impressões sensoriais, surge apenas na medida em que no leque das impressões sensoriais obtidas por um objeto incluirmos também a possibilidade de uma longa sucessão de novas impressões na mesma cadeia associativa. (FREUD, 1891/1979, p. 71)

Freud conclui, assim, a partir de seu estudo sobre as perturbações da fala, que a representação da palavra está ligada, por suas imagens sonoras, à representação do objeto. Em suma, as representações são investimentos de traços mnêmicos – repetições da percepção –, mas não há nada que impeça o representante pulsional de, no inconsciente, encontrar novas formas de expressão. Na verdade, é justamente por estar afastado da influência da consciência que esse conteúdo pode formar representações derivadas e estabelecer ligações, havendo, assim, um “desdobramento desinibido da representação na fantasia” (FREUD, 1915/2004, p. 179).

Qualquer tipo de semelhança entre dois elementos do material inconsciente – uma semelhança entre as próprias coisas ou entre as representações de palavras – serve de oportunidade para a criação de um terceiro elemento, que é uma representação mista ou de compromisso. (FREUD, 1901/2006, p. 72)

Enquanto Freud desenvolvia sua “trilogia do significante”, rupturas também eram feitas em diversos campos do saber, impactando radicalmente o que até então estava estabelecido. No que se refere à concepção clássica de representação, a maior subversão se deu com o advento da psicanálise e, no âmbito da arte, com o modernismo. Segundo Borges (2010, p. 58), a compreensão psicanalítica acerca da representação “implica o abandono da noção de percepção como impressão

19 sensível.” É nesse sentido que daremos continuidade a este estudo com uma reflexão sobre a relação de objeto, visando pensar a representação na criação artística a partir da teoria psicanalítica. Lacan (1958-1959/2016), em seu Seminário, livro 6: o desejo e sua interpretação, adverte que existe uma confusão a propósito do próprio termo “objeto”. Há, por um lado, o objeto que se situaria na realidade material e, por outro, o objeto que se inscreve na relação do sujeito com este. Quando falamos de relação de objeto, nos referimos à relação entre o sujeito e os objetos parciais. O objeto é sempre uma forma encarnada, devido a relação estabelecida com ele do seio, voz, olhar e fezes. Esses objetos, segundo Lacan (1966- 1967/inédito) são irrepresentáveis, mesmo o seio e as fezes. Sim, o seio pode constituir um objeto erótico. Mas, em termos de representação, como defini-lo? “O que é um belo seio, por exemplo?”, questiona Lacan. Ainda que o isso seja comumente pronunciado, o que daria algum suporte ao termo “Belo seio”?.

Se há alguma coisa que o seio constitui, seria preciso para isso, como um dia um aprendiz-poeta [...] o articulou ao fim de uma de suas quadras [...] com essas palavras: “a nuvem ofuscante dos seios”; não há outro modo, me parece, senão jogar com o registro do obscuro, adicionando aí alguma coisa a mais, da ordem do reflexo, a saber do menos apreensível, pelo que ele pode ser possível de suportar, na Vorstellung, o que é desse objeto que, bem antes, não há outro estatuto do que podemos chamar, com toda a opacidade dos seus termos, um ponto de gozo. (LACAN, 1966-1967/inédito, lição de 25/01/1967)

Figura 1: José Maurício Loures: Sobre-posições #1 (2017-2019)

Fonte: Arquivo próprio.

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É com essa dificuldade de apreensão do objeto que os artistas criam, eles jogam com a impossibilidade de se representar a Coisa, “se viram” com essa impossibilidade. Borges, em referência a Heidegger, afirma que “A arte ‘deixaria ser’, ‘deixaria ver’, um algo que interesses demasiadamente discursivos e racionais nos impedem de perceber.” (BORGES, 2017, p. 8). Assim, o ato criador supõe a desconstrução da representação ordinária. O artista apreende, a sua maneira, a partir de sua fantasia, o objeto e faz disto obra de arte. O pintor anglo-irlandês Francis Bacon, em entrevista a David Sylvester, nos traz um perfeito exemplo disto. O artista revela que, ao pintar a cabeça de alguém, percebeu que “aquilo que formava as órbitas dos olhos, do nariz, da boca, era, quando [foi] analisar, simples formas que nada tinham a ver com olhos, nariz ou boca” (BACON apud Sylvester, 2007, p. 12). Bacon diz:

[...] no dia seguinte, tentei chegar ainda mais perto do que procurava, tentei ser mais penetrante, mais profundo, e perdi complemente a imagem. [...] Está na fronteira com a abstração, mas, na verdade, nada tem a ver com ela. É uma tentativa de fazer com que a coisa figurativa atinja o sistema nervoso de uma forma mais violenta, mais penetrante. (BACON apud Sylvester, 2007, p. 12)

Figura 2: Francis Bacon: Cabeça 1 (1966)

Fonte: SYLVESTER, David. Entrevistas com Francis Bacon. São Paulo: Cosac Naify, 2007, p. 13.

Mas a tinta, indo de um contorno para outro, apesar de criar uma imagem desfigurada, fez surgir, segundo o artista, uma semelhança com a pessoa que ele estava querendo pintar.

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1.1 A PRETENSA RELAÇÃO DE OBJETO

No ano de 2018, tive o privilégio de conhecer as obras do fotógrafo chileno Sergio Larrain (1931-2012), em sua exposição intitulada Um retângulo na mão, no Instituto Moreira Salles, no Rio de Janeiro. O fotógrafo possui um estilo marcado por composições nada óbvias: o chão ocupa, muitas vezes, a maior parte da fotografia; figuras desfocadas são colocadas em primeiro plano, enquanto a cena principal se desdobra ao fundo; há horizontes inclinados e, principalmente, pessoas em movimento, flagradas em situações inusitadas.

Figura 3: Sergio Larrain: Trafalgar Square (1958-1959)

Fonte: https://www.henricartierbresson.org/wp-content/uploads/2014/09/Sergio-Larrain_FHCB_5- e1411479306298-728x1098.jpg (Acesso em: 28/12/2019)

Não há uma preparação prévia do que vai ser fotografado. É assumida uma postura que não antecipa os fatos, simplesmente deve-se estar atento ao instante. Com suas fotografias, Larrain evidencia que o acaso pode ser mais comovente e surpreendente do que qualquer narrativa imagética planejada. As imagens que captura – e que o capturam – são acontecimentos efêmeros.

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O artista decupa fragmentos do instante percebido, de modo que a sua máquina fotográfica opera como uma lâmina, que explora, percorre a realidade visível para, repentinamente, recortá-la, dando a ver algo da ordem do inesperado. Seu fazer fotográfico nos remete às considerações de Walter Benjamin, em seu ensaio Pequena História da Fotografia:

Percebemos em geral, o movimento de um homem que caminha, ainda que em grandes traços, mas nada percebemos de sua atitude na exata fração de segundos em que ele dá um passo. A fotografia nos mostra essa atitude, através de seus recursos auxiliares: câmara lenta, ampliação. Só a fotografia revela esse inconsciente óptico, como só a psicanálise revela o inconsciente pulsional. (BENJAMIN, 1931, p. 94)

Figura 4: Sergio Larrain: Niñas (1952)

Fonte: https://www.henricartierbresson.org/wp-content/uploads/2014/09/Sergio-Larrain_FHCB_3- 728x1190.jpg (Acesso em: 28/12/2019)

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O fotógrafo define a maneira como concebe suas imagens: “É dentro de mim próprio que procuro as fotografias quando, de câmera na mão, vou passeando o olhar pelo que está lá fora. Posso assim solidificar esse mundo de fantasmas quando acho algo que encontra ressonância dentro de mim” (LARRAIN, 2018, n.p.). Não estaria Larrain trabalhando com esse “inconsciente óptico” de que fala Benjamin? Afinal, o que se revela em suas fotografias é o instante não percebido: aquilo que foge aos nossos olhos, mas que não escapa das lentes do fotógrafo. Para Benjamin, “a natureza que fala à câmera não é a mesma que fala ao olhar; é outra, especialmente porque substituiu a um espaço trabalhado conscientemente pelo homem, um espaço que ele percorre inconscientemente.” (BENJAMIN, 1931, p. 94). Seguiremos agora para o estudo acerca da relação de objeto, visando melhor entender esta complexa relação entre o artista, a maneira como percebe as coisas e as obras que cria. A fórmula da relação de objeto, para Lacan (1958-1959/2016, p. 393), é o matema da fantasia, considerando a fantasia fundamental como sendo o que garante sua estrutura mínima ao suporte do desejo. Esta fórmula justifica o fato de Lacan se referir à relação entre sujeito e objeto como uma “pretensa relação”, pois o que $◊a revela é que há uma infinidade de relações possíveis entre sujeito e objeto, exceto uma, a de igualdade. Mas o que mais nos interessa aqui é o fato de que a fantasia é como uma lente, como diz Freud em sua Interpretação dos sonhos (1900). Mas esta lente, ao contrário de possibilitar uma fiel apreensão do objeto, perturba a percepção deste, apresentando-se, como afirma Lacan (1958-1959/2016), como um tormento para o homem, chegando a degradar, desorganizar, aviltar, abalar o objeto representado. A fantasia é um véu entre o sujeito e o mundo. Há, em cada sujeito, uma reserva de fantasia, que tende à satisfação pela ilusão, alucinação inconsciente, tal como nos ensinou Freud no “Projeto para uma psicologia científica” (1950 [1895]/2006), solidificando essas ideias no capítulo 7 da Interpretação dos sonhos (1900/2016). Em suas “Formulações sobre os dois princípios do funcionamento psíquico”, Freud (1911/2006) afirma que, com a introdução do princípio de realidade, uma forma de atividade de pensamento encontra-se separada por clivagem, permanecendo independente da prova de realidade e submetida unicamente ao princípio do prazer – ou seja, submetida à lei da redução das tensões. É à fantasia, esse “domínio que ficou

24 separado do mundo externo real na época da introdução do princípio de realidade”, que o sujeito recorre a cada vez que um obstáculo se erige em relação à satisfação pulsional (FREUD, 1924/2006, p. 208). Trata-se do enredo que constitui o núcleo que organiza toda a subjetividade. Na fantasia, segundo Lacan, “frequentemente o sujeito é despercebido, mas ele está sempre lá, quer seja no sonho, no devaneio, em não importa quais formas mais ou menos desenvolvidas. O sujeito se situa a si mesmo como determinado pela fantasia” (LACAN, 1964/2008, p. 181). Já que o acesso ao objeto é impossível, a fantasia fundamental simula a presença do objeto, viabilizando, assim, o vínculo com o Outro. O que Freud descobre é que as fantasias, “no final das contas, servem apenas para dissimular a atividade autoerótica” (WINTER, 2001, p. 113). O que velamos, pelo fato mesmo de velá-lo, desvelamos, pois o véu é que nos indica a presença. E o que seria isto que o véu designa? O véu designa a vida sexual da criança que fomos e que permanecemos fixados. A fantasia deve, então, criar uma barreira ao redor da sexualidade infantil. Conforme afirma Coutinho Jorge, “em todas as fantasias originárias, assim como em todas as fantasias, o denominador comum diz respeito ao enigma da sexualidade.” (COUTINHO JORGE, 2006, p. 63, grifo do autor). Freud (1905/2006a) destaca como uma das características mais importantes da prática sexual da criança o fato de que, em um primeiro momento, esta não está dirigida a outra pessoa, mas se satisfaz no próprio corpo, é autoerótica. E observa que a sexualidade infantil apresenta uma característica fundamental, é “perversopolimorfa”, de modo que o pequeno sujeito vem a praticar todas as transgressões possíveis: se exibe e gosta de ficar olhando, ou seja, ele é exibicionista e voyeurista; se satisfaz ao chupar o dedo, por exemplo, e ao manipular a própria genitália; e pratica atividades anais e sadomasoquistas. O que se encontra na sexualidade infantil se manifesta na idade adulta nos fetiches dos perversos, nas alucinações e delírios dos psicóticos, no inconsciente dos neuróticos e nos jogos sexuais de todos. E por que não na obra de arte? A compreensão tradicional da sublimação como relacionada a uma “dessexualização”, considerando o desvio do alvo e do objeto sexual da pulsão em direção a objetos socialmente valorizados, é relativizada por Lacan, que, desde o seu Seminário, livro 7: A ética da psicanálise, insiste na estrutura particular do objeto na

25 sublimação. Afinal, afirmar que a pulsão pode encontrar satisfação em um alvo e em um objeto que não sejam diretamente sexuais não significa que ela seja necessariamente dessexualizada. Após conceituar o objeto a, Lacan (1968-1968), em seu Seminário, livro 16: de um Outro ao outro, retoma o tema da sublimação, enfatizando a relação desta com o gozo, o gozo sexual. O objeto a faz cócegas dentro da Coisa e é isso “que constitui o mérito essencial de tudo o que chamamos de obra de arte”, afirma Lacan (1968- 1969/2008, p. 227). Assim, em Lacan encontramos uma tríade fundamental para se pensar a sublimação: estética, ética e erótica (PORGE, 2019).

Figura 5: José Maurício Loures: Sobre-posições #2 (2017-2019)

Fonte: Arquivo próprio.

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Posto isso, se, num primeiro momento, a criança expressa sua sexualidade na relação consigo própria (autoerotismo), é na relação com os pais – ou com seus substitutos – que ela irá desempenhar suas primeiras relações objetais e todas essas relações serão decisivas para a expressão futura da sua sexualidade, considerando- se que a concepção de sexualidade em psicanálise abarca muito mais do que o ato sexual, mas todas as relações objetais do sujeito. A criança, inicialmente, encontra-se num momento de domínio das necessidades. Os aparelhos lhe estão assegurados e os objetos pré-formados (boca para comer, olhos para ver etc.). Contudo, no cumprimento dessas funções, há uma redução da tensão causada pela necessidade, resultando no prazer, um tipo de mais- valia, mais-de-gozar, como dirá Lacan. Quando ocorre a separação do objeto, que é inscrita no sujeito como uma perda, o mecanismo da fantasia vem assegurar a manutenção do princípio do prazer. Já que perdemos o objeto, não nos resta outra coisa a não ser ter uma relação com um objeto alucinado. O seio, as fezes, o olhar, a voz, são peças destacáveis e, contudo, fundamentalmente religadas ao corpo, e é disso que se trata na relação de objeto. Enquanto o princípio de prazer implica em uma relação da criança com o objeto, tomando este como parte de seu próprio corpo, o princípio da realidade faz com que ela deva apreender a abster-se desse objeto. Isso, conforme aponta Lacan, fica bastante evidente na noção de objeto transicional proposta por Winnicott, que “observa que [...] é preciso que a mãe opere estando sempre ali no momento necessário, isto é, precisamente vindo colocar, no momento da alucinação delirante da criança, o objeto real que a satisfaz” (LACAN, 1956-1957/1995, p. 34). Nesse sentido, não existiria, inicialmente, nenhuma distinção entre a alucinação do seio materno – que surge, por princípio, do processo primário – e o encontro do objeto real de que se trata. Em outras palavras, a criança não teria “nenhum meio de distinguir entre o que é da ordem da satisfação fundada na alucinação do princípio, ligada ao funcionamento do processo primário, e a apreensão do real que a preenche e satisfaz efetivamente” (LACAN, 1956-1957/1995, p. 34). Quando, de tempos em tempos, a realidade não coincide com a alucinação surgida do desejo, vemos aparecer esses objetos que Winnicott chama de objetos transicionais, a partir dos quais podemos situar a dialética da alucinação e do objeto real. É aí que se situa, também, “um dos pontos mais essenciais da experiência

27 analítica, [...] a noção da falta de objeto”, que é, “a própria mola da relação do sujeito com o mundo” (LACAN, 1956-1957/1995, p. 35). Afinal, o núcleo do desejo é a falta que o origina, esse resto irredutível da primeira experiência de satisfação. A fantasia é a cena na qual o sujeito não visa ao objeto. Ela desvia o sujeito do objeto que, como sabemos, não existe e nem nunca existiu – desde o início fora alucinado. Por isso, a pulsão se presentifica na série infinita de objetos substitutivos e evidencia a impossibilidade de representação da Coisa. A pulsão precisa do objeto não para tê-lo, mas para contorná-lo. E criação do objeto de arte é bastante ilustrativa disto. Lacan (1959-1960/2008), ao abordar o “problema da sublimação”, enfatiza que todas as modalidades de arte se caracterizam por um certo modo de organização em torno do vazio da Coisa. Para Freud (1950[1895]/2006), se tratando do deslocamento da satisfação como substituição, essas satisfações chamadas substitutivas voltam a atualizar a “verdadeira” satisfação, e, com efeito, no núcleo do desejo está o investimento alucinatório dessa lembrança. Por isso, Lacan afirma que “qualquer espécie de constituição do mundo objetal é sempre um esforço para redescobrir o objeto” (LACAN, 1954-1955/1995, p. 131). Contudo, esse investimento alucinatório é incapaz de ser mantido até o esgotamento, e, por isso, não provoca a cessação da necessidade (FREUD, 1900/2016). Freud (1925/2006), ao desenvolver sua concepção de Verneinung, em 1925, preconiza que não só é importante ao sujeito que o objeto de satisfação possua o atributo “bom”, assim merecendo ser integrado ao seu Eu (juízo de atribuição), mas, também, que esteja no mundo externo, de modo que o sujeito possa se apossar desse objeto sempre que dele necessitar, julgando se algo existente no Eu como representação pode ser reencontrado também na percepção (juízo de existência). Ainda, segundo Freud (1925/2006, p. 267), a antítese entre subjetivo e objetivo não existe desde o início, mas surge do fato de que “o pensar tem a capacidade de trazer diante da mente, mais uma vez, algo outrora percebido, reproduzindo-o como representação sem que o objetivo externo ainda tenha de estar lá”. Portanto, o objetivo primeiro e imediato do teste de realidade não seria o de encontrar na percepção real um objeto que corresponda ao representado, “mas reencontrar tal objeto, convencer- se de que ele está lá.” (FREUD, 1925/2006, p. 267).

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Tratava-se, no julgamento de atribuição, de expulsar ou introjetar. No julgamento de existência, trata-se de atribuir ao [Eu], ou , antes, ao sujeito (é mais compreensível) uma representação a qual o seu objeto não corresponde mais – mas correspondeu numa volta atrás. O que aqui está em causa é a gênese do exterior e do interior. (HYPPOLITE, 1971, p. 54)

Podemos, então, concluir que é impossível uma representação fiel do objeto já que a percepção não é um processo puramente passivo, pois são enviadas periodicamente pequenas quantidades de investimentos no sistema de percepção, por meio dos quais prova os estímulos externos para retirar-se novamente depois de cada um de seus avanços. Assim, a percepção do objeto pode ser modificada por omissões e alterada por fusões de elementos diferentes. É o teste de realidade que controla até onde se estendem essas deformações, exigindo e forçando a representação a sempre veicular uma falta. Assim, o teste de realidade trabalha na delimitação do buraco no simbólico, a falta fundante no campo da representação. A Coisa é irrepresentável – do objeto não há ideia nem representação –, contudo, é condição de toda representação. Segundo Lacan (1956-1957/1995), uma nostalgia liga o sujeito ao objeto perdido, fazendo com que se exerça todo o esforço da busca e marcando, também, uma repetição impossível, já que, precisamente, este não é o mesmo objeto da primeira experiência de satisfação. Há pouco mais de 20 anos, quando passava por um ferro-velho nos arredores do Morro da Conceição, atrás da estação Central do Brasil, no Rio de Janeiro, artista plástica brasileira Anna Bella Geiger encontrou no chão uma antiga gaveta de ferro enferrujada. Começou ali a sua série “Fronteiriços”, compostas de mapas contidos em gavetas, fixados em grossa camada de cera de abelha tingida com pigmentos. Em entrevista, a artista revela:

[...] Surgia na minha frente o que eu sempre procurava, mas nunca soubera nem o que nem como era. Parecia que eu havia caminhado pelo deserto durante 20 anos [...] até encontrar, sem buscar, o contêiner ideal para abrigar o mundo. 1

1 Anna Bella Geiger, em entrevista para o Jornal O Globo, em 4 de outubro de 2015.

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Figura 6: Anna Bella Geiger: Tordesilhas, da série “Fronteiriços” (2014)

Fonte: https://www.pinterest.nz/pin/628111479252515142/ (Acesso em 19 jan. 2020).

Encontramos no relato da artista a fórmula enunciada por Lacan (1959- 1960/2008), segundo a qual define a sublimação como elevar o objeto à dignidade de Coisa. A experiência descrita por Anna Bella nos remete imediatamente ao célebre dito de Picasso: “Eu não procuro, eu acho”. Com efeito, o objeto é por sua natureza um objeto reencontrado: que ele tenha sido perdido, é consequência disso – mas só- depois (LACAN, 1959-1960/2008). Só temos notícias desse objeto como perdido por meio desses reencontros. E, a Coisa, por ser velada, é sempre representada por outra Coisa: uma gaveta de arquivo, por exemplo. Contudo, mesmo depois de uma experiência de reencontro, o sujeito continuaria buscando pelo objeto, e, por isso, seu desejo permanecerá deslizando. Na medida em que o objeto que se apresenta “só coincide parcialmente com aquilo que já lhe proporcionou satisfação, o sujeito se põe em busca, e repete indefinidamente sua procura até reencontrar este objeto” (LACAN, 1954-1955/1995, p. 132). Em outras palavras, “não para de engendrar objetos substitutivos” (LACAN, 1954-1955/1995, p. 132).

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A primazia dessa dialética coloca, no centro da relação sujeito-objeto, uma tensão fundamental, que faz com que o que é procurado não seja procurado da mesma forma que o que será encontrado. É através da busca de uma satisfação passada e ultrapassada que o novo objeto é procurado, e que é encontrado e apreendido noutra parte que não no ponto onde se o procura. Existe aí uma distância fundamental, introduzida pelo elemento essencialmente conflitual incluído em toda busca do objeto. Esta é a primeira forma sob a qual, em Freud, aparece a relação de objeto. (LACAN, 1956-1957/1995, p. 13)

O objeto é aquilo que sustenta o desejo, exatamente por escapar ao sujeito, funcionando como suporte do desejo enquanto fantasiado, afinal, não se pode lidar com o desejo sem sentido, opaco e mortífero sem que se encubra ao menos um pouco o vazio que o causa. Com efeito, a fantasia, como vimos, é a cena que assegura ao sujeito uma relação com o objeto mediada por uma ficção e, por isso, mostra o objeto de forma velada – se não for velado, não dá para mostrar (LACAN, 1962-1963/2005). Contudo, o objeto nunca está em simetria com o sujeito, já que em presença do objeto o sujeito esvanece. Na cena em que o Homem dos Ratos entra embaixo da saia da governanta, encontramos uma perfeita ilustração disso. Temos, de um lado, o sujeito em fading, apagado, o pequeno Lanzer escondido; de outro, o objeto ausente, as partes genitais de Mademoiselle Robert, que o pequeno Lanzer tateia e diz ter encontrado algo “curioso”. “Ele [o objeto] vacila completamente ao sujeito” (LACAN, 1963/1998, p. 792). Como bem observou Freud (1909/2006), o menino designava a governanta pelo seu sobrenome masculino. Se os órgãos genitais parecem “curiosos”, é porque ele não sente ali o pênis. O “curioso” é a marca da castração, de cuja relação com o objeto este último tira uma parte de seu fascínio. Desde Freud, no que se refere ao mecanismo de funcionamento da pulsão, trata-se fundamentalmente da satisfação como substitutiva do objeto ausente. A fantasia faz tela em relação a essa perda constituinte da pulsão. Esse lugar esvaziado pela imagem, pelo objeto de gozo, o sujeito vai reencontrá-lo no movimento em que o objeto se deixa perceber. “O sujeito está em uma exclusão interna a seu objeto.” (LACAN, 1966/1998a, p. 875). É no plano das imagens que Lacan aborda a função da tela da fantasia como lugar das representações. O sujeito está sempre construindo uma ficção visando suturar a sua própria divisão, divisão esta que é a causa de seu desejo. A materizalização do nada que está na causa do desejo se dá através de um véu, plano

31 imaginário fundamental da relação simbólica. Em seu Seminário, livro 4: a relação de objeto, Lacan afirma que:

[...] com a presença da cortina, aquilo que está mais além como falta, tende a se realizar como imagem. Sobre o véu pinta-se a ausência. Isso não é mais que a função de uma cortina qualquer. A cortina assume seu valor, seu ser e sua consistência justamente por ser aquilo sobre o que se projeta e se imagina a ausência. (LACAN, 1956- 1957/1995, p. 157)

Figura 7: José Maurício Loures: Sobre-posições #3 (2017-2019)

Fonte: Arquivo próprio.

É nesse sentido que Lacan (1956-1957/1995) considera que há uma ilusão fundamental em todas as relações tecidas pelo desejo. Ali onde vemos simbolicamente o objeto de desejo, onde o supomos sob o véu, é justamente onde ele não está – presença invisível que faz com que a imagem adquira brilho fálico. “O que é amado no objeto é aquilo que falta a ele – só se dá o que não se tem” (LACAN, 1956-1957/1995, p. 153).

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Figura 8: Esquema do véu

LACAN, Jacques. (1956-1957). O Seminário, livro 4: a relação de objeto. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed.,1995, p. 158.

A imagem como véu esconde a vacuidade que há por trás dela. No instante em que o véu se rasga, a nudez da imagem emerge em meio ao brilho do olhar e, como efeito dessa ruptura, o sujeito se experimenta diante do nada, já que o Eu não pode se reconhecer em sua vertente especular, sendo traído em seu desejo e confrontado com a morte. Hoje, principalmente, encontramos na arte obras que, sob o tecido da representação, fazem fraturas, são criações que não estancam a falta e encontram- se no limite do que pode ser representado. Ligeiro e Coutinho Jorge (2018, p. 16) destacam que:

[...] algumas obras chamam particularmente a atenção por parecerem estar quase inteiramente despidas do belo e unificante envelope imaginário, que nos convidaria à contemplação. Ao contrário, o nosso olhar é traído pela violência e horror que suscitam, ao revelar a face crua do objeto, o real, impossível de ser representado por imagens ou palavras, mas que ex-siste e retorna.

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Figura 9: José Maurício Loures: Sobre-posições #4 (2017-2019)

Fonte: Arquivo próprio.

Quinet (2004, p. 99) afirma que “Para aquém da cortina temos a associação do olhar com o (- φ) da castração. A realidade visual do percepiens sustenta-se nessa cortina que vela a falta no Outro e a presença do objeto a como olhar”. E sobre o véu se instaura a relação de um mais além como captura imaginária, “fundamental em toda instauração da relação simbólica” (LACAN, 1956-1957/1995, p. 159). Em seu Seminário, livro 10: a angústia (1962-1963/2005), Lacan conceitua o objeto a. Diferentemente do objeto do conhecimento, correlato da razão, o objeto a é aquilo que faz furo, que problematiza a teoria do conhecimento. Evitando, pois, o equívoco de uma apreensão fenomenológica do objeto do desejo, Lacan o concebe não como objeto a desejar – objeto positivo, autônomo, constituído desde sempre – mas como um objeto negativo que não se presta à fenomenologia, não aparece. O objeto é externo a toda definição possível de objetividade, pois o seu campo é o da objetalidade – campo inaugurado pelo corte que o significante introduz. É preciso conceber o objeto de que se trata em psicanálise não como um objeto visado pelo desejo, que se situa à frente do desejo, mas atrás, como sua causa

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(LACAN, 1966/1998a). O objeto a, enquanto revestido imaginariamente, vem mascarar o fundo fundamental de angústia que marca a relação do sujeito com o mundo. Tradicionalmente se diz que, diferente do medo, a angústia não tem objeto. Mas Lacan (1962-1963/2005) vem nos mostrar o contrário, ela “não é sem objeto”. Por não ter consistência, o objeto marca uma falta radical na estrutura do sujeito. Paradoxalmente, o objeto causa de desejo é, também, objeto da angústia. Lacan (1962-1963/2005) nos mostra que a conjuntura da angústia está relacionada ao rompimento das significações do Outro que recobrem o desejo. E diz que a angústia não engana, aproximando a angústia da verdade, precisamente devido à proximidade da angústia com o objeto. A angústia é amarrada ao objeto e, assim, não se desloca na cadeia significante – daí a fórmula “amarração da angústia”. Jacques-Alain Miller, em seu livro La angustia – Introdución al Seminário X de Jacques Lacan (2015), apresenta o seguinte esquema, aqui traduzido:

Figura 10: Esquema de Jacques-Alain Miller

Fonte: Arquivo próprio.

Entre gozo e desejo há duas vias possíveis, uma passa pela angústia, ou seja, o objeto a sem nenhum recobrimento imaginário, e a outra pelo amor, o objeto a revestido imaginariamente, fazendo do objeto da realidade um objeto idealizado. Se o imaginário, devido ao caráter ilusório e alienante, sempre bloqueia a verdade, é no real, o a sem véu, que podemos situar a verdade (LACAN, 1975-1976/2007). No lado da angústia, encontramos o objeto não especularizável, que se caracteriza como uma aparição, perturbação no mundo visível. Žižek (2006), em seu documentário O guia pervertido do cinema, traz uma bela ilustração do objeto enquanto perturbação a partir do filme Pássaros, de Hitchcock. O filme termina sem uma resposta à pergunta “por que os pássaros atacam tão

35 violentamente?”. Segundo Žižek, não basta dizer que os pássaros são parte do cenário natural da realidade. Trata-se de uma irrupção explosiva: invasão súbita de uma dimensão externa que rasga em pedaços a realidade. Assim, a realidade se desintegra, perturbando o lugar onde nos situamos dentro do simbólico. O objeto não especularizável, paradoxalmente, se especulariza, dando a entrever algo do invisível (MILLER, 2015). A angústia está sempre referida à Coisa que habita o sujeito. Trata-se de uma estrutura temporal e efêmera: os momentos da angústia são os que o sujeito se faz equivaler ao objeto. Cabe então distinguir o objeto em sua função de causa do desejo e na angústia. Na angústia, longe de estar em função de causa, o objeto está em função de identificação destituinte. Quando o objeto está em função de causa, causa de desejo, ele está oculto, velado (LACAN, 1962-1963/2005). Por isso mesmo, como enfatiza Lacan (1975/inédito) em R.S.I., constatamos o desejo e, a partir dele, deduzimos o objeto. O objeto “não está atrás do que corremos, mas é o que nos faz correr, é o que institui o valor da dinâmica do sujeito, e dali se induz o objeto como subtraído” (SOLER, 2012, p. 48). Também, cabe acrescentar que o objeto a pode ser situado nos três registros. No imaginário, pode ser localizado na representação do corpo: boca, anus, olhos e orelhas. No simbólico, encontra-se negativado enquanto objeto perdido, ou melhor dizendo, extraído, subtraído – “A perda do objeto em sua naturalidade é solidária da captura do ser humano pela linguagem.” (RABINOVICH, 2009, p. 105). E no real, quando toma substância corporal, considerando que o corpo não é feito só de imagem, mas é na carne que se goza. Um belo exemplo do objeto a enquanto substância corporal encontramos no sonho da injeção de Irma, analisado por Freud em sua “Interpretação dos sonhos”.

[Sua] boca se abre com facilidade, e à direita encontro uma grande mancha branca, e noutra parte, sobre estranhas estruturas curvas que imitam de maneira evidente os cornetos nasais, vejo amplas crostas cinzas esbranquiçadas. (FREUD, 1900/2016, p. 128)

Este sonho põe em evidência o sujeito se deparando “com a experiencia de seu rasgamento, de seu isolamento com relação ao mundo”. A relação humana com o mundo, para Lacan (1954-1955/1995, p. 212) “tem algo de profundamente, inicialmente, inauguralmente lesado.”

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A imaginarização do corpo informe no sonho dá a entrever aquilo que está para além do narcisismo, um “espetáculo medonho”, como diz Lacan (1954-1955/1995, p. 197). Nesse sonho, o núcleo real da fantasia transcende a ilusão especular, desvelando o objeto a em sua face de abjeto. Lacan, ao comentar a cena em que Freud investiga o interior da boca de Irma, diz:

Eis ai uma descoberta horrível, a carne que jamais se vê, o fundo das coisas, o avesso da face do rosto, os secretados por excelência, a carne da qual tudo sai, até mesmo o íntimo do mistério, a carne, dado que é sofredora, informe, que sua própria forma é algo que provoca angustia. (LACAN, 1954-1955/1995, p. 197)

Lacan assinala este ponto que revela algo inominável, uma revelação do “real sem nenhuma mediação possível, de um real último diante do qual as palavras se detêm e as categorias fracassam.” (RABINOVICH, 2009, p. 117). A angústia se situa justamente na borda da intercessão do corpo imaginário, “saco de buracos”, e do corpo real, substância de gozo – substâncias episódicas e múltiplas, que não são de falta: anal, oral, escópica e invocante; são substancias destituintes do sujeito na medida em que o sujeito percebe que é o que o anima.

1.2 O REAL POR UM IMPASSE DA FORMALIZAÇÃO

Em seu Seminário, livro 20: mais, ainda, Lacan (1972-1973/2008, p. 99), propõe que “O real só se poderia inscrever por um impasse da formalização”. No ponto em que estamos, o que podemos fazer com essa fórmula? Lacan (1972-1973/2008) segue o seu raciocínio, trazendo a formalização matemática como índice dessa formulação. Alain Badiou (2017), em seu livro Em busca do real perdido, desenvolve esta ideia, explicando que mesmo a aritmética básica carrega consigo algo que está para além do conceito. Isso porque, na aritmética, seja qual for a duração do cálculo finito, sempre encontraremos um número. Porém, para que seja possível sempre se chegar a um resultado em número finito, é necessário haver uma série de números sem fim. Esse infinito funcionaria de maneira oculta no interior do próprio cálculo finito. “Logo, o real da aritmética finita exige que se admita uma infinidade subjacente que funda o

37 real do cálculo ainda que como impasse de qualquer resultado possível desse mesmo cálculo, que só pode produzir números finitos.” (BADIOU, 2017, n.p.). Em suma, “no exemplo aritmético, um infinito oculto é a condição do cálculo finito, mas ao mesmo tempo não pode ser calculado e, portanto, não pode figurar ‘em pessoa’ na formalização dentro da qual o cálculo opera” (BADIOU, 2017, n.p.). Assim, podemos entender que o real é o ponto de impossível da formalização. Em outras palavras, aquilo que a formalização torna possível “só é possível pela existência implicitamente assumida daquilo que não pode se inscrever nesse tipo de possiblidade.” (BADIOU, 2017, n.p.). Há algo da ordem do inapreensível no cerne da formalização e este inapreensível não é suprimido, mas conservado. Disso extraímos que o real é evocado através daquilo que é impossível em determinado tipo de formalização. Se o real é o impasse da formalização, é preciso que haja um arranjo, uma forma, para que seja possível situar o que desta forma é inalcançável, o que representa um tipo de divisão nessa formalização, “becos sem saída que mostram o real acendendo ao simbólico” (LACAN, 1972-1973/2008, p. 100). Com toda a teorização a respeito da relação de objeto, entendemos que aquilo que é referido ao objeto a é o que causa o fascínio na imagem. Assim como o número infinito é o real da aritmética, o fora de campo seria o infinito próprio da representação, mas é também seu impossível, já que, por definição, o invisível nunca é capturado pela imagem. O lugar dos objetos de desejo é o campo das representações. Lugar onde encontramos os objetos secundários que velam a obscuridade do desejo enquanto desejo puro. O objeto a, vazio, mas preenchido por suas encarnações fantasmáticas, dá à imagem “ar de presa” (LACAN, 1960/1998, p. 832). A imagem veste o objeto e seu prestígio vem disso que ela envelopa. Quando esse recobrimento falha e é possível entrever o objeto, desvela-se a angústia. Lacan considera que a imagem envelopa/veste o objeto, e isto quer dizer que ela o dissimula, o oculta, o encobre. Cobrir para que? Para esconder, claro! Mas essa não seria talvez a melhor e a única forma de aproximação, já que o objeto, em sua dimensão real, não é da ordem do visível? Ao mesmo tempo em que esconde o objeto, o envelope fabrica a imagem.

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Figura 11: José Maurício Loures: Sobre-posições #5 (2017-2019)

Fonte: Arquivo próprio.

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Desde o Seminário, livro 7: A ética da psicanálise, Lacan (1959-1960/2008), em seu desenvolvimento sobre a sublimação, enfatiza que o objeto de arte dá forma àquilo que não se deixa ver. Contudo, também nos mostra, a partir de seu comentário sobre a Dama do Amor Cortês, que, ainda assim, esse objeto carrega consigo uma opacidade. Chegamos, assim, à relação que a arte estabelece entre o que é representável e o não-figurável. Em seu Seminário livro 11: os quatro conceitos fundamentais da psicanálise, Lacan (1964/2008) nos mostra que o anteparo é o lugar onde podemos manipular e mediar o olhar. Sem anteparo, não haveria arte possível. Contudo, acreditamos que ao encobrir o real, a arte é capaz de fazer com que este retorne em seu próprio encobrimento, assim, o objeto de arte tem o potencial de revelar a dualidade do objeto. Ao velar “o pior” – aquilo que não pode ser dito nem visto (LACAN, 1971-1972/2012) – o objeto de arte dá a entrever, mesmo que na bela forma, a opacidade mortificante do objeto de desejo. A arte não cessa de evocar na representação o irrepresentável, questionando a realidade visível e denunciando a sua fragilidade. O que muitas obras revelam é, então, o logro de sua estrutura. Reconhecer o objeto como pura aparência é uma forma de não se tomar o simulacro, a ilusão, como única realidade plausível. Por trás da tela está o objeto, o olhar, com o qual o artista joga. Sem relação com o real da Coisa, a obra perde sua força. Algumas criações artísticas dão maior visibilidade a esse vazio que suporta os objetos, revelando a incompletude constituinte destes e a relação assimétrica que os sujeitos estabelecem com eles. Esse vazio é o que há de real na representação, aquilo que está fora da cena, mas é sempre evocado, afinal, cada visível guarda também uma dobra invisível.

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2. SEM TÍTULO: O OBJETO DE ARTE

“A relação do artista com o tempo no qual ele se manifesta é sempre contraditória. É sempre contra as normas reinantes, normas políticas por exemplo, ou até mesmo esquemas de pensamento, é sempre contra a corrente que a arte tenta operar novamente seu milagre.” (Jacques Lacan)

Em 2002, um artista britânico de identidade desconhecida, que assina seus trabalhos com o pseudônimo Banksy, criou um mural que retratava uma menina tentando alcançar um balão vermelho em forma de coração. Em 2016, o misterioso artista fez uma pintura que reproduzia essa imagem e, dois anos mais tarde, enviou para leilão na Sotheby's, em Londres. A pintura, que foi arrematada pelo valor de 1 milhão de euros, logo após o arremate, deslizou para fora de sua moldura, sendo parcialmente cortada em tiras por um triturador secretamente embutido na obra.

Figura 12 – Banksy: Love is in the Bin (2018)

Fonte: https://www1.folha.uol.com.br/ilustrada/2018/10/banksy-planejava-picotar-o-quadro-menina- com-balao-todo-mas-so-cortou-metade.shtml (Acesso em: 28/12/2019)

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A Sotheby’s anunciou que a pintura, que originalmente se chamava Girl with Balloon [Garota com balão], após a destruição, foi renomeada como Love is in the Bin [Amor aos pedaços]. Um vídeo feito pelo artista, intitulado Shredding the Girl and Balloon – the Director’s cut2, revela a construção do mecanismo de destruição que foi colocado no interior da moldura. Na sequência, surgem imagens do leilão, até o momento em que uma pessoa não identificada pressiona o botão de um controle remoto e começa a destruição parcial da pintura. Ao fim, pode ler-se a frase: “Nos ensaios funcionou todas as vezes”, revelando que o objetivo final do trabalho seria a destruição total da pintura. “A performance de Banksy se transformou em um instante em história da arte mundial”, ressalta Alex Branczik, diretor da casa de leilão. E continua: “é a primeira vez que um novo trabalho artístico é criado durante um leilão [...] Banksy não destruiu uma obra de arte no leilão, ele criou uma”3. Em outro vídeo publicado por Banksy em seu Instagram, no dia seguinte ao leilão, ele cita Pablo Picasso, que afirma: “A necessidade de destruir é também uma necessidade criativa”. Essa ideia se alinha com a proposta lacaniana desenvolvida em seu Seminário, livro 7: a ética da psicanálise, em que a criação estaria diretamente relacionada à pulsão de morte. Esse episódio é ilustrativo do estranhamento que a arte pode causar quando enfatiza a experiência e adquire um aspecto questionador de seus próprios limites, se orientando para além de formas, materiais e técnicas e, sobretudo, para além da proposta contemplativa.

2.1 TRANSGRESSÃO DAS FRONTEIRAS

Hoje, nas salas e corredores dos museus e galerias de arte, nos deparamos com vídeos, desenhos pinturas, fotografias, gravuras, serigrafias, mas, também, com pregos, pedras, plásticos, livros, cartões-postais, cacos de vidro, textos, bolhas de plástico, jornais, brotos de feijão, enfim, uma disparidade de temas, técnicas e matérias. Encontramos toda a sorte de “materiais em profusão de formalizações de impossível classificação estilística ou por categorias, ou, ainda, ineficazes como

2 Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=vxkwRNIZgdY (Acesso em: 10 jun. 2018). 3 Disponível em: https://oglobo.globo.com/cultura/artes-visuais/compradora-de-banksy-triturado-em- leilao-da-sothebys-vai-manter-aquisicao-da-obra-23150424 (Acesso em: 10 jun. 2018).

42 identificação da produção de um mesmo artista” (FERREIRA, 2009, p. 21). Ferreira (2009) comenta que:

Portadores de suas próprias significações, as pedras ou pregos, não mais são mera matéria que adquire forma pela ação do artista na instauração de códigos autônomos, tendo a forma como princípio interno. São peças constituintes dos constructos ficcionais, como passagens do imaginário ao real, da ficção à história, do jogo à ação buscando tocar a vida com a arte e por meio da arte, em uma reafirmação de sua esfera de liberdade e de poder crítico. (FERREIRA, 2009, p. 23)

Cada vez mais, artistas tem desvencilhado a arte de uma materialidade sensível ou, em outras palavras, de seu destino como mercadoria. A crítica de arte norte-americana Lucy Lippard chamou essa tendência de desmaterialização da obra de arte, que, segundo a autora, provém de duas fontes: arte como ideia e arte como ação. “No primeiro caso, a matéria é negada, pois a sensação foi convertida em conceito; no segundo caso, a matéria foi transformada em energia e tempo- movimento.” (LIPPARD; CHANDLER, 2013, p. 152). Artistas produzem obras que interrogam as posições sempre instáveis e cambiantes das figuras que compõem o sistema de arte, seu estatuto, assim como seus meios e instituições. O campo artístico se expandiu, de modo que as proposições conceituais passaram a negar a eternidade da obra, o sentido único e permanente e a possibilidade de ela ser consumida. Segundo Ferreira (2009), o que presenciamos é uma multiplicidade de possibilidades de formalização na arte, podendo o mesmo trabalho assumir visibilidades distintas, nas quais o contexto de sua apresentação é dado inerente e seu núcleo gerador é o caráter reflexivo. Também, há um deslocamento do fazer artístico da produção de objetos, subsumindo as noções de originalidade e unicidade da obra para a constituição de uma rede de significações, com a exploração sistemática da combinação de diferentes meios e contaminação/“borramento” entre as artes. A ênfase no visual, arte retiniana, como dizia Duchamp, transferem-se para situações de experiências em que se associam sujeito e objeto. Theodor Adorno, em seu ensaio intitulado A arte e as artes aborda o estreitamento dos limites entre diferentes modalidades e gêneros artísticos. Segundo o autor: “No desenvolvimento mais recente, fluidificam-se as fronteiras entre os

43 gêneros artísticos ou, mais exatamente, suas linhas demarcatórias se entrelaçam” (ADORNO, 1966/2017, p. 21). Se tratando da pintura, Adorno (1966/2017) comenta como as obras de Rolf Nesch, expressionista alemão, e do pintor polonês-alemão Bernard Schultze invadem o espaço, evitando a ilusão da perspectiva central. O olhar deve agora demorar-se no encontro com a tela para construir seu sentido, adotando pontos de fuga diferentes e se esforçando para reconhecer padrões formais recorrentes.

Figura 13 – Rolf Nesch: Elbe Bridge I (1932)

Fonte: https://en.wikipedia.org/wiki/Rolf_Nesch#/media/File:Rolf-Nesch-Bro-Over-Elben.jpg (Acesso em: 28/12/2019)

Figura 14 – Bernard Schultze: Insektenhaft (1952)

Fonte: https://www.artsy.net/artwork/bernard-schultze-insektenhaft-insect-adhesion (Acesso em: 28/12/2019)

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Na escultura, Adorno refere-se às obras de artistas que não mais respeitam as fronteiras entre escultura e arquitetura, como o austríaco Fritz Wotruba, que, por meio de progressiva mutação, torna a figura humana quase arquitetônica. Há um tipo de passagem da função do belo para o “progresso da dominação do material” nesses casos (ADORNO, 1966/2017, p. 29).

Figura 15 – Fritz Wotruba: Standing Figure (1949–1950)

Fonte: https://www.tate.org.uk/art/images/work/N/N06/N06013_10.jpg (Acesso em: 28/12/2019)

“Aquilo que derruba os marcos fronteiriços dos gêneros é movido por forças históricas que brotam de dentro das fronteiras e finalmente as ultrapassam”, afirma Adorno (1966/2017, p. 26). E continua: “onde fronteiras são desrespeitadas, o medo reativo da confusão se faz sentir” (ADORNO, 1966/2017, p. 26). Busca-se certo

45 purismo na arte e há um preconceito em relação ao que é híbrido – considerado por alguns como imoral e decadente. Por isso, o autor diz que a questão da arte de vanguarda é, de modo literal: “Isso ainda é?”. E essa pergunta é respondida ocasionalmente por uma pintura, escultura ou música, que, de fato, não se propõe mais a ser. A arte ensina a desaprender os princípios das obviedades que são atribuídas aos objetos. No campo da música, podemos tomar como exemplo a obra do compositor italiano Franco Donatoni, Puppenspiel (1961), montada a partir de ruídos produzidos por quatro instrumentos de corda, e do compositor húngaro Gyorgy Ligeti, Atmospheres (1968), cuja composição não se pauta em quaisquer sons diferenciáveis no sentido convencional. Em 2002, foi exibido na Tate, em Londres, um show chamado Quartet, em que o videoartista e músico suíço Christian Marclay, a partir de quatro vídeos e quatro telas, utiliza pequenas partes de filmes como trilha para a peça, ou melhor, ele utiliza partes de filmes como se esses fragmentos de imagem e sons fossem as notas de uma peça para quarteto. Assim, ele usa filmes como instrumentos musicais, de modo que, se uma determinada nota é dada pela voz de Marilyn Monroe em um tom mais alto, ela é vista cantando a mesma coisa cada vez que a nota aparece na composição. Posto isso, Adorno (1966/2017) aponta que Hegel, ao discorrer sobre a música, e Schopenhauer, ao abordar a pintura histórica, teriam tentado sintetizar teoricamente a diversidade heterogênea na arte, hierarquizando as obras a partir de uma escala de valor de sistemas com seus diversos gêneros. E estende seu comentário a Kandinsky, que defende um “rumo espiritual na arte” – já antecipado por Hegel na construção do que ele chama de arte romântica. Em sua crítica a esse “rumo espiritual na arte”, Adorno afirma:

O espírito que, no que tange à arte, não mais encontra satisfação na aparição sensível, torna-se independente. Mas essa independentização legítima e incontornável contrapõe o espírito inevitavelmente como algo separado [...] dos materiais e procedimentos das obras de arte. [...] Espiritualização, disposição racional sobre os modos de procedimento parece expulsar o próprio espírito enquanto conteúdo da coisa. O que deveria espiritualizar o material termina em material nu enquanto um mero ente, tal como nos mais tardios desenvolvimentos de algumas escolas, em termos musicais, por exemplo, como o que a de John Cage expressamente exigia [materialidade do objeto]. (ADORNO, 1966/2017, p. 32-33)

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Adorno (1966/2017) também lembra que Heidegger ambiciona – em consonância com o conceito de Ser, que domina seu pensamento – a unidade. Sua teoria de que o Ser sempre já estaria no mundo enfatiza a “Coisidade” e unidade do objeto. Para Heidegger, segundo Adorno, toda arte teria um caráter linguístico e seria essencialmente poética, e logo, arquitetura, pintura, música deveriam ser remetidas à poesia. Mas Adorno (1966/2017) aponta que há uma diferença entre a poesia que necessita dos conceitos e que, mesmo nas formas mais radicais, não se vê livre de elementos conceituais, e os tipos não conceituais de arte. Diferenças como essa testemunham que as artes não constituem entre si uma continuidade que permitiria pensar o todo com um conceito unitário não interrompido. Assim, Adorno discorda da tentativa de subordinar os diferentes gêneros artísticos sob o conceito de arte como grande gênero superior – unificação dos gêneros em um ideal de arte: a poesia. Para se manterem na contracorrente dos “tabus civilizatórios”, os gêneros artísticos devem “usufruir um tipo de promiscuidade” (ADORNO, 1966/2017, p. 28). Mais do que isso, a arte precisa de algo heterogêneo para se tornar arte. Caso contrário, o processo, de acordo com o qual, segundo o conteúdo, cada obra de arte é em si mesmo, não teria qualquer ponto focal, giraria sem sair do lugar. Nesse sentido, a arte existiria apenas nas artes, e sua essência dialética estaria no fato de que ela executa o seu movimento para a unidade apenas através da multiplicidade. Nenhum dos polos deve ser separado; da arte não deve ser retirado um de ambos, nem mesmo o seu dualismo. Por isso, “O conflito entre a arte e as artes não pode ser decidido a favor de uma ou das outras” (ADORNO, 1966/2017, p. 40). Esse processo de definição da função artística e mutação histórica do estatuto do artista, com a crise das disciplinas tradicionais e desqualificação da hierarquia entre os gêneros, engendra uma concepção experimental da criação. Agenciam-se dispositivos visuais e discursivos – nos quais especulações de ordem teóricas e filosóficas se tornam materiais da arte. Estabelece-se, assim, a negação da natureza a priori da arte e, consequentemente, a instabilidade dos conceitos de arte, artista e obra (ARCHER, 2013).

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2.1 A NOVA ARTE

Desde que o crítico de arte Clement Greenberg, na década de 1950, enunciou que a “recentidade” era uma característica dominante no modernismo, é preciso admitir que o objetivo da arte, pelo menos para a arte mais divulgada nas últimas décadas, foi, de fato, o de ser “nova”. Disso resultaram importantes rupturas no campo da arte, crises vividas como enriquecimento e, em grande parte, como libertação. Emergiu, assim, uma nova forma de indagação sobre a natureza, significado e função do objeto de arte. Assim, a arte revelou o seu potencial de desconstruir a ideia da representação vinculada à captação/apreensão da realidade, pois seu objetivo não é mais o de ser uma janela para o mundo – e, mesmo quando imita os objetos que representa, o faz só para extrair um sentido novo. Desse modo, desnaturaliza/descentraliza o olhar e questiona a realidade visível, denunciando sua fragilidade. Ao desprezar a racionalidade, a arte desvela o seu próprio absurdo: “constrói ilusões de verdade e destrói as ilusões da Verdade” (BRITO, 1980, p. 202). , em seu artigo “Teoria do não-objeto”, de 1960, define o “não- objeto” não como como um “antiobjeto”, um objeto negativo, ou qualquer coisa oposta ao objeto material, mas como “um objeto especial em que se pretende realizar a síntese de experiências sensoriais e mentais: um corpo transparente ao conhecimento fenomenológico, integralmente perceptível, que se dá à percepção sem deixar resto.” (GULLAR, 1960, n.p.) – em outras palavras, pura aparência. Segundo esse autor, a busca de artistas por escapar ao círculo fechado da estética tradicional, romper a moldura e eliminar a base representa um esforço para libertar-se do quadro convencional da cultura, “para reencontrar aquele ‘deserto’ de que nos fala Malevitch, onde a obra aparece pela primeira vez livre de qualquer significação que não seja a de seu próprio aparecimento” (GULLAR, 1960, n.p.). Marcel Duchamp, com seus Ready-mades, já havia proposto algo nesse sentido, ao buscar desvelar o objeto deslocando-o de sua função ordinária e, assim, estabelecer novas relações entre ele e os demais objetos. Duchamp coloca o objeto no centro da reflexão estética. Mas, segundo Gullar (1960), há limitações nesse processo de transfiguração do objeto, já que a técnica do Ready-made se funda menos nas qualidades formais do objeto do que na sua significação, nas suas relações

48 de uso e hábito cotidianos. Com efeito, “aquela obscuridade característica da coisa [voltaria] a envolver a obra, reconquistando-a para o nível comum.” (GULLAR, 1960, n.p). Ainda, explicita Gullar:

Pode dizer-se que toda obra de arte tende a ser um não-objeto e que esse nome só se aplica, com precisão, àquelas obras que se realizam fora dos limites convencionais da arte, que trazem essa necessidade de deslimite como a intenção fundamental de seu aparecimento. (GULLAR, 1960, n.p.)

Hélio Oiticica, em seu artigo “Esquema geral da Nova Objetividade”, publicado em 1967, propõe que a arte brasileira de vanguarda tem as seguintes características:

• Vontade construtiva geral; • Tendência para o objeto ser negado e superado do quadro de cavalete; • Participação do espectador (corporal, tátil, visual, semântica etc.); • Abordagem e tomada de posição em relação a problemas políticos, sociais e éticos; • Tendência para proposições coletivas e consequente abolição dos “ismos” característicos da primeira metade do século XX; • Ressurgimento e novas formulações do conceito de “antiarte”.

Cada um desses tópicos aproxima-se da noção de arte desmaterializada, já que, nessa perspectiva, o objeto de arte se revelaria em processos e ocuparia espaços expandidos e indiferenciáveis. A arte, ao romper com os padrões estabelecidos, cumpre o papel de se isentar da necessidade de o expectador recorrer a manuais e dela fazer uma apreciação a partir da sua própria experiência. Quanto mais rica for a experiência, mais ele terá acesso a sutilezas maiores em vistas de uma obra que estaria experimentando. Mas isso não significa que a obra se feche ou que exija uma chave cultural precisa. Em 1977, a artista sérvia Marina Abramović performou sua obra Imponderabilia, na qual ela e seu parceiro, Ulay, ficaram nus, um em frente ao outro, cada um de um lado da porta que dava acesso à Galleria Communale d'Arte Moderna, em Bolonha, na Itália. Para entrar, os visitantes tinham que passar pelo estreito espaço entre os dois artistas encarando um deles. O público – que já não era mais público, mas co-

49 criador da obra – foi, então, confrontado com a posição, por vezes constrangedora, de contato físico e visual com os performers (WESTCOTT, 2015).

Figura 16 – Marina Abramović: Imponderabilia (1977)

Fonte: https://comunicacaoeartes20122.files.wordpress.com/2013/02/marina-abramovic-ulay- imponderabilia.jpg (Acesso em: 28/12/2019)

Sua arte é exemplar para se pensar a relevância da atitude do artista em detrimento dos aspectos formais e estéticos do trabalho. Segundo Hélio Oiticica (1967/2006), quando o artista se restringe apenas aos problemas estéticos – sendo um mero criador de obras – ele vira as costas para o mundo. Por isso, há uma necessidade de atuação efetiva nos acontecimentos e problemas da sociedade, influenciando e modificando-os com desejos e ideias transformadores nos planos ético, político e social. Afinal, a arte “não está à cima, mas no meio disso tudo” (DUARTE, P. S., 2008, p. 51).

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Cildo Meireles acrescenta:

[...] uma vez que o que se faz hoje tende a estar mais próximo da cultura do que da Arte, é necessariamente uma interferência política. Porque se a estética fundamenta a arte, é a Política que fundamenta a cultura. (MEIRELES, 1948/2006, p. 265)

O solo comum entre muitos artistas parece estar no incômodo diante do mundo como se apresenta hoje, bem como em uma aposta na arte e no seu poder de intervenção crítica, inconformismo, dúvida e desejo de mudança. A arte é, então, “aquele lugar que [...] modifica o quadro dado, e por consequência o olhar daquele que se aproxima, doando novas lentes para o olhar do mesmo” (DUARTE, L. 2009, p. 417). Em um mundo carregado de totalitarismos, intolerâncias e ditaduras outras – mesmo as mais invisíveis –, ainda assim, artistas buscam continuar pensando este mesmo mundo, mas indo contra a corrente, acreditando no potencial de reinventá-lo por meio da arte e este “é um primeiro passo para transformar e doar mais dignidade ao tempo presente” (DUARTE, L. 2009, p. 417). Nesse sentido, a função do artista seria a de impor desafios à sensibilidade comum, indo na contramão do universo de comunicação fácil da publicidade pelo seu impacto e visibilidade.

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3. NOBUYOSHI ARAKI: ENTRE O SUBLIME E O NEFANDO

“Tenho tirado fotos desde que eu vim a este mundo. Eu tinha acabado de sair para fora do ventre de minha mãe, quando eu me virei e fotografei seu sexo!” (Nobuyoshi Araki)

Nobuyoshi Araki nasceu em 1940, na cidade de Tóquio, no Japão. Sua primeira câmera foi uma Baby Pearl, uma pequena máquina 3x4 com um fole, que ganhou de seu pai na década de 1950. Ele estudou fotografia e cinema na Chiba University, entre os anos de 1959 e 1963, e trabalhou com fotos comerciais para a Dentsu Advertising, uma das maiores agências de publicidade do mundo, por quase 10 anos. A partir da década de 1970, passou a realizar séries fotográficas de temática erótica.

Figura 17: Nobuyoshi Araki

Fonte: ARAKI, Nobuyoshi. Araki. Köln/Alemanha: Taschen, 2002, n.p.

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Em 1971, Araki se casou com Yoko Aōki. Durante a sua festa de casamento, apresentou imagens da esposa nua, o que deixou seus convidados desconcertados. Mais tarde, publicou Sentimental Journey, uma espécie de diário fotográfico de sua lua de mel – um tipo de imersão na intimidade do casal. Tudo foi registrado, desde situações corriqueiras, como Yoko segurando seu gato, até cenas do ato sexual do casal.

Figuras 18 e 19: Yoko Aōki com o gato / Yoko Aōki no sexo

Fonte: ARAKI, Nobuyoshi. Araki. Köln/Alemanha: Taschen, 2002, p. 494/492.

Alguns anos mais tarde, em 1989, Yoko foi hospitalizada em decorrência de um mioma no útero e, no ano seguinte, aos 42 anos, ela faleceu. Araki registrou os últimos meses de vida da esposa internada até a sua morte. Estas fotografias passaram a constituir o álbum Winter Journey, publicado em 1991. Entre os anos de 1983 e 1985, quando a indústria sexual de Tóquio estava em pleno vapor, Araki, acompanhado de Akira Suei, editor chefe da revista Photo Age – uma revista fundada em 1981, no Japão, por Byakuya-Shobo, cujo conteúdo principal eram as fotografias feitas por Araki –, circulava pela cidade em busca de locais para entretenimento sexual, como clubes de sexo e sex shops. Nesses passeios, o artista registrava tudo o que podia: a cidade, as fachadas, o interior dos estabelecimentos e as pessoas que ali estavam. Ele fotografava prostitutas nuas ou seminuas, que performavam para o público e para a sua câmera, e casais em uma diversidade de práticas sexuais. O artista estabelecia, assim, um tipo de relação voyeurística com esse universo. Quando o próprio Araki aparece nas fotografias, com seus óculos de sol de lentes redondas, faz com que a relação entre artista e obra se mostre ainda mais peculiar. O fotógrafo, que esperamos estar escondido atrás da câmera, se materializa

53 na imagem, sendo transportado para a cena/performance que ele mesmo criou. Enquanto participa da encenação, estabelecendo uma relação privada com o seu assunto, ele também é um observador que vê toda a cena.

Figura 20: Araki em cena

Fonte: ARAKI, Nobuyoshi. Tokyo Lucky Hole. Köln/Alemanha: Taschen, 2016, n.p.

Bataille, em seu ensaio O erotismo, afirma: “O desejo do erotismo é o desejo que triunfa sobre o interdito” (BATAILLE, 1957/2017, p. 282). Isso porque a sexualidade humana é limitada por interditos e o domínio do erotismo é o da transgressão desses interditos. A transgressão, então, não nega o tabu, mas o transcende e o completa. Para Sontag (2015, n.p.), em seu texto intitulado “A imaginação pornográfica”:

[...] a imaginação pornográfica habita um universo que é, por mais repetitivos os incidentes que ocorrem em seu interior, incomparavelmente econômico. Aplica-se o critério de relevância mais estrito possível: tudo deve apontar para a situação erótica. O universo proposto pela imaginação pornográfica é um universo total. Tem o poder de ingerir, metamorfosear e traduzir todas as preocupações com que é alimentado, convertendo tudo à única moeda negociável do imperativo erótico. Toda ação é concebida como uma série de intercâmbios sexuais. [...] A bissexualidade, o desrespeito pelo tabu do incesto e outros traços similares comuns às narrativas pornográficas funcionam para multiplicar as possibilidades de troca.

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Ainda, segundo Sontag (2015, n.p.), “tudo o que a pornografia significa é a representação das fantasias da vida sexual infantil, editadas pela consciência mais treinada, menos inocente, do adolescente masturbador, para ser comprada pelos chamados adultos”. A ideia de Lacan, ao abordar a função do quadro em seu Seminário, livro 11: os quatro conceitos fundamentais da psicanálise, de que a obra que olhamos também nos olha, parece apreender o cerne da repulsa e atração das obras de Araki, pois o expectador, remetido aos seus desejos mais íntimos, tem sua intimidade violada. Os estudos de Freud sobre os chistes, mais especificamente a parte sobre os chistes obscenos, nos são elucidativos para pensarmos a afirmação de Sontag e as fotografias de Nobuyoshi Araki. Os chistes obscenos, segundo Freud, através da técnica da alusão, contornam um obstáculo, a manifestação crua do sexual, extraindo prazer de uma fonte abjeta. Essa fonte provém da sexualidade infantil, quando não havia as barreiras do pudor, da repugnância e da moralidade. Aquilo que era prazeroso na infância, após inscrição na cultura e estabelecimento do recalque transforma-se em algo repulsivo e inaceitável. Freud assinala que, quando o adulto educado ri de um sofisticado chiste obsceno, ele está rindo da mesma coisa que provoca riso no sujeito vulgar que ouve um escárnio indecente. A pessoa refinada, porém, repudia o escárnio indecente e só pode rir “quando o chiste lhe presta socorro” (FREUD, 1905/2006b, p. 95). Em nota acrescentada em 1915 aos “Três ensaios sobre a teoria da sexualidade”, Freud afirma que a beleza, embora associada ao encanto, tem sua base no campo da excitação sexual e originalmente significou “aquilo que excita sexualmente” (FREUD, 1905/2006b, p. 142). Devemos considerar também o fato paradoxal de que, mesmo que não achemos propriamente “belos” os genitais, sua visão provoca em nós a mais poderosa excitação sexual. As fotografias de Araki circulam entre uma sofisticação fetichista e o abjeto, revelando as duas faces do objeto a. Afinal, como nos diz Freud (1905/2006b), na sexualidade, o mais sublime e o mais nefando estão em íntima dependência. A forma que Araki retrata a mulher nos remete a uma possível releitura dos clássicos eróticos japoneses, chamados Shunga (que significa “primavera”, um eufemismo comum para a sexualidade), feitos em xilogravuras durante o período Edo (quando o Japão foi governado pelos xoguns da família Tokugawa, entre os anos de

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1603-1868). Há uma foto em que Araki nos mostra uma mulher, nua, dentro de uma banheira, com um polvo sobre o seu corpo.

Figura 21: Mulher nua com polvo

Fonte: ARAKI, Nobuyoshi. Araki. Köln/Alemanha: Taschen, 2002, n.p.

Nesta fotografia, Araki faz menção à icônica ilustração O sonho da mulher do pescador (1814), de Katsushika Hokusai, uma referência à arte erótica com cordas. A obra original retrata o êxtase de uma mulher tomada por polvos, cujos tentáculos entrelaçam seu corpo.

Figura 22: Katsushika Hokusai: O sonho da mulher do pescador (1814)

Fonte: http://www.rotten.com/library/sex/rape/tentacle-rape/ (Acesso em: 28/12/2019)

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Essa mistura entre tradição (arte erótica clássica, quimonos etc.) e pornografia levou as obras de Araki a acervos renomados em todo o mundo. Em entrevista a Jérôme Sans (2007), Araki, ao ser questionado sobre a relação entre as suas fotografias e o Shunga, responde:

Shunga não apenas revela sexo, eles revelam o segredo do amor entre duas pessoas, entre um homem e uma mulher. Muitas vezes eu apareço nas minhas fotografias, nas quais cenas de escravidão ou sexo são mostradas. Mas eu não tenho o papel principal. Sou como um personagem menor em uma impressão de Shunga, um papel secundário ou de espectador. (ARAKI, 2002, p. 7, tradução minha)

Sobre o seu objetivo com a arte, Araki afirma: “Meu desejo é documentar a minha relação com as mulheres, capturar inclusive nossos sentimentos. Isso é muito difícil, se não impossível de conseguir, mas esse é o objetivo. [...] A relação íntima que estabeleço com meus sujeitos fotográficos é a base de tudo.” (ARAKI apud ESCANDÓN, 2002, p. 6). É comum, em suas fotografias, a montagem de uma cena que inclui dinossauros de plástico. Segundo o artista, estas criaturas representam o seu desejo de estar nas fotografias, como se fossem parte de seu corpo (ARAKI, 2002). Eventualmente, ele intervém nas fotografias com manchas coloridas e, ao comentar esta prática, afirma: “é uma indicação do meu desejo de mexer, como se eu estivesse tocando neles ou colocando meu sexo neles.” (ARAKI, 2002, p. 7, tradução minha).

Figura 23: Mulher com dinossauros

Fonte: ARAKI, Nobuyoshi. Araki. Köln/Alemanha: Taschen, 2002, p. 255.

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Em entrevista a Jérôme Sans, o artista revela:

Eu preciso de assuntos. Pode ser flores, o céu ou, é claro, mulheres. Eu vivo através de mulheres. Eu sempre fotografarei mulheres. Se um dia as mulheres desaparecerem do planeta, espero ter morrido há muito tempo. (ARAKI, 2002, p. 7, tradução minha)

E, em outro momento da entrevista, ele continua:

As mulheres têm todos os encantos da própria vida. Elas têm todos os atributos essenciais: beleza, feiura, obscenidade, pureza ... muito mais que a natureza. [...] Seja sua esposa, um caso de uma noite ou uma prostituta, as mulheres ensinam como o mundo gira. (ARAKI, 2002, p. 7, tradução minha)

Tudo o que é capturado em suas fotos – flores, objetos, imagens do cotidiano etc. – é tão erótico quanto as genitálias, práticas sadomasoquistas e atos sexuais que costuma retratar. “Por que [as minhas fotos] acabam sendo tão eróticas? Porque eu as fotografei” (ARAKI apud KOSUGA, 2013, n.p.), afirma o artista.

3.1 A DAMA SUSPENSA POR CORDAS

Nobuyoshi Araki é internacionalmente conhecido por seus trabalhos sobre bondages (amarrações ou, no termo japonês, kinbaku). Originalmente, o kinbaku foi um costume milenar utilizado pelos samurais para amarrar, de forma segura, os seus inimigos. Posteriormente, essa prática foi integrada, por influência do ocidente, ao universo erótico, destacando-se como ato fetichista, sadomasoquista.

Figura 24: Kinbaku

Fonte: ARAKI, Nobuyoshi. Araki. Köln/Alemanha: Taschen, 2002, p. 117.

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Freud (1933[1932]/2006) já nos ensinara que há algo de inapreensível no que se refere à representação da mulher. Logo, a mulher não se inscreve da mesma forma para todos e, por isso, tanto os homens quanto as mulheres têm que se haver com a questão do que é uma mulher. Segundo Lacan: “A mulher, isto só se pode escrever barrando-se o A. Não há A mulher, artigo definido para designar o universal. Não há A mulher pois [...] por sua essência ela não é toda.” (LACAN, 1972-1973/1985, p. 98). Não havendo um significante que a represente, a mulher encontra seu refúgio no artifício da máscara, dos semblantes, seja pela vertente da encenação da mulher castrada, pelo sacrifício ou, até mesmo, pelo suposto masoquismo feminino. As mulheres, eventualmente, assumem “ares de masoquista, mas para se dar ares de mulher, sendo a mulher de um homem, na impossibilidade de ser A mulher” (SOLER, 2005, n.p.). Isso não significa que elas sejam masoquistas de fato, mas que estão muito mais propensas em dispor de si mesmas, de seu corpo. Estaria Araki elevando o semblante à dignidade de Coisa? É no movimento literário medieval do Amor Cortês que Lacan encontra uma possibilidade de representação do objeto feminino. A Dama, enquanto “verdadeira mulher” explora uma zona desconhecida, ultrapassa os limites e denuncia o próprio falo como um semblante relativo ao gozo. Para advir como A Dama, a mulher fora esvaziada de substância, despersonalizada, teve subtraídos os seus atributos – era, inclusive, frequentemente invocada por um termo masculino, Mi Dom [Meu Senhor] – o que evidencia certa submissão à Dama –, “um objeto enlouquecedor”, “um parceiro desumano” dirá Lacan (LACAN, 1959-1960/2008, p. 182). A poesia cortês se tornou paradigma da sublimação no Seminário, livro 7: A ética da psicanálise, na medida em que a Dama revela a impossibilidade estrutural de se preencher o vazio da Coisa. Contudo, não seria possível pensar numa relação entre o amor cortês e a sublimação sem a referência à perspectiva. Segundo Porge (2019, p. 113), “É justamente porque há no amor cortês algo difícil de ser representado que se recorre à perspectiva, que é o que dá lugar ao que escapa à representação.” É nesse sentido que Lacan compara a estrutura formal da poesia cortês com a arte de alguns pintores do final do século XVI e do início do século XVII, situando em ambos a produção de um “fantasma fálico”, a partir do fenômeno estético conhecido como anamorfose. No Seminário, livro 11: os quatro conceitos fundamentais da psicanálise, ao retomar o tema da anamorfose, Lacan afirma:

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[...] se, por exemplo, um pincel da luz que conduz nosso olho nos cativa a ponto de nos impedir de ver o que ele ilumina – só o fato de introduzir nesse campo um pequeno anteparo, que corte na direção daquilo que é iluminado sem ser visto, faz reentrar na sombra, se assim podemos dizer, a luz leitosa, e faz surgir o objeto que ela escondia. (LACAN, 1964/2008, p. 108)

A anamorfose consiste em um efeito de perspectiva, criado pela articulação entre uma imagem no campo da visão – uma superfície –, e o ponto geometral – a linha reta desempenhando o papel de trajeto da luz. O que mais interessa a Lacan é justamente a dimensão geometral, que não tem a ver com a visão como tal, pois o que está em jogo nesta é a ordem simbólica, a função da falta. Na anamorfose, quando aparece algo lá onde nada deveria aparecer, é possível entrever a outra face do objeto, o vazio insuportável e funesto da Coisa. Enquanto a perspectiva ensina o artista a dominar o vazio, a fixa-lo sob a forma de ilusão do espaço, a anamorfose reverte essa ilusão, revertendo também o olhar, e, assim, o artista se faz olhar pela obra. Na anamorfose, encontramos uma presentificação da elisão do olhar como objeto a no espaço entre duas imagens (a deformada e a reformada). A organização de uma encenação da impossibilidade de acesso ao objeto aproxima a anamorfose e o amor cortês na medida em que a beleza da Dama constitui limite à crueldade de sua inacessibilidade.

[...] a mulher idealizada, a Dama, que está na posição do Outro e do objeto, coloca-se de repente, brutalmente, no lugar sabiamente construído por significantes requintados, em sua crueza, o vazio de uma coisa que se revela ser a coisa, a sua, aquela que se encontra no âmago de si mesma em seu vazio cruel. (LACAN, 1959-1960/2008, p.196)

Em suas fotografias, encenadas, Araki retrata mulheres nuas, seminuas, com quimonos ou amarradas – na maioria das vezes, suspensas por cordas. Essas imagens, ao mesmo tempo em constroem fantasmaticamente a mulher fálica, pois sugerem certa supervalorização da mulher (o que encontramos na fantasia perversa), também remetem à castração. Além disso:

[...] Lacan observa que a vítima [do perverso] não é qualquer corpo para torturar, nem tampouco o atormentador é qualquer carrasco. A vítima tem traços muito precisos: um deles é a inocência, a castidade, a vítima está inscrita sob os ideais do Outro, e não está ali só como

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corpo, que se trata suposto de fazer sofrer, de angustiar, mas, sobretudo se trata de forçar, de violar seu pudor. O cerne da experiência sádica é o gozo forçado da vítima. Não basta que sofra, é também preciso atingir o seu pudor. (MARTINHO, 2011, p. 111)

As damas de Araki dispensam os atributos de castidade e inocência, pois são, em sua maioria prostitutas. É do lugar de “vítima tão terrivelmente voluntária” (LACAN, 1959-1960/2008, p. 294) que elas são retratadas. Dos seus ares de masoquistas, extraem seu brilho, fascinante e insuportável. O recurso sádico/masoquista como modo de formalização presente na estética de Nobuyoshi Araki aponta para uma certa inadequação fundamental entre o vazio do desejo e os objetos empíricos, mais do que para uma fixação fetichista. Posto isso, em seu Seminário, livro 20: mais, ainda, Lacan (1972-1973/1985) apresenta um grafo que estabelece uma equivalência entre Real, Simbólico e Imaginário, situando o semblante sobre a via que vai do simbólico ao real. Com esse grafo, entende-se que o semblante resulta do esforço do simbólico para apreender o real.

Figura 25: Esquema do semblante

Fonte: LACAN, Jacques. (1972-1973). O Seminário, livro 20: mais, ainda Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1985, p. 121.

Rocha Miranda (2011, p. 139) comenta que “O sujeito percorrendo o caminho, através do desfile de significantes que vai do simbólico ao real, encontra o semblante, a aparência, lugar em que no triângulo Lacan situa o objeto a”. Esse percurso nos

61 mostra “a verdadeira natureza do objeto a. Se o objeto a [...] [é] aparência de ser, é porque ele parece nos dar o suporte do ser” (LACAN, 1972-1973/1985, p. 124). A estética de Araki revela uma relação dialética estreita e difícil entre o semblante e o real, já que, como afirma Badiou, “o real surge com uma violência extraordinária justo no ponto de seu semblante” (BADIOU, 2017, n. p.). Há algo de real na própria máscara, aquilo que, para o sujeito, é sem medida. Ainda segundo Badiou (2017, n. p.): “[É] sempre no ponto do semblante que haveria uma chance de encontrar o real, uma vez que é preciso também que haja um real do próprio semblante: que haja uma máscara, que ela seja uma máscara real”. Mas não podemos deixar de levar em consideração que, já que não há representação possível do real, a máscara, quando arrancada, revela-se como máscara de outra máscara. [...] jamais se [chega] ao real nu, já que é a própria máscara que está nua, é o próprio semblante que é real. Mas abre a partir daí outras perspectivas, mais otimistas, nas quais, através do semblante, do semblante do real e do real do semblante, algo de verdadeiramente real vem se afirmar. (BADIOU, 2017, n. p.)

Figura 26: Mulher suspensa

Fonte: ARAKI, Nobuyoshi. Araki. Köln/Alemanha: Taschen, 2002, p. 261.

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Araki busca sustentar a imagem da mulher inacessível, impessoal e indiferente. Parece produzir um semblante que ilustraria a concepção lacaniana d’A mulher que não existe, mas dá a entrever o ponto vazio do desejo. Revela-se, assim, algo da ordem do fantasma fálico, o sujeito como nadificado, “encarnação imajada da castração [...] a qual centra para nós toda a organização dos desejos através do quadro das pulsões fundamentais” (LACAN, 1964/2008, p. 91). Em suma, tal como na criação da Dama do Amor Côrtes, encontramos nas mulheres retratadas por Araki o objeto feminino despersonalizado, desprovido de qualquer traço de individualidade. Araki revela a posição da aparência como pura aparência, nos levando à compreensão da arte como espaço de desdobramento de semblantes e simulacros.

Como testemunham a história e a antropologia, uma preocupação constante da humanidade consiste em velar, cobrir as mulheres. De certo modo é possível dizer que as mulheres são cobertas porque A mulher não pode ser descoberta. (MILLER, 2010, p. 2)

Sob a imagem está a ausência do falo, de modo que a imagem funciona como uma roupa. Afinal, conforme afirma Lacan (1956-1957/1995, p. 169): “As roupas não são feitas apenas para esconder o que se tem, [...] mas também, precisamente, o que não se tem. [...] Não se trata, sempre e essencialmente, de esconder o objeto, mas também de esconder a falta de objeto”. Nas fotografias em estudo, a nudez não está sob o quimono, mas sob aquilo que lhe dá corpo e brilho fálico, sustentando a fantasia.

3.2 TODA NUDEZ SERÁ FOTOGRAFADA

É sabido que há divergência considerável entre as posturas morais do Ocidente e do Oriente no que se refere à sexualidade. Dentre outros aspectos, no Japão, por não haver a influência do cristianismo, a sexualidade não é vinculada ao pecado.

No Japão do século VII – enquanto a Europa apreciava todos os outros aspectos da Idade Média –, livros didáticos e manuais sexuais muito bem produzidos e romances eróticos elegantes já estavam amplamente disponíveis. [...] No Japão a ideia de educação sexual não é apenas tradicional. Trata-se de um conceito cultuado nos mitos de criação do país. (HILL; WALLACE, 2003, p. 41)

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Ainda assim, a revista Photo Age, na qual Araki publicava seus retratos, foi considerada obscena em 1988. A editora recebeu ordens para retirar de circulação todas as cópias e a publicação foi interrompida. Mas, antes disso, foi censurada por mais de uma vez. Araki, sobre isso, comenta:

Eu acho que essa atitude reflete um paradoxo do Japão, que tem leis contra a pornografia. Sim, e tem sido assim desde o período Edo. Pode parecer ambíguo ou paradoxal. Pode haver uma lei estrita sobre censura, mas você ainda pode encontrar tudo e qualquer coisa no Japão. Caos é a regra. O rigor rígido coexiste com o glamour de oportunidades desviantes. E essas coisas contrastantes geralmente se confundem. No Japão, ninguém condenará a morte de um fotógrafo por amarrar uma garota e tirar fotos dela. [...] Os países cristãos são muito mais severos a esse respeito. (ARAKI, 2002, p. 7, tradução minha)

Inicialmente, foi exigido que deixassem de mostrar pelos pubianos; eles rasparam. Depois, foram obrigados a tapar a área púbica com tinta; eles obedeceram, entretanto, não colocaram a tinta sobre o papel, mas sobre o corpo das modelos. Quando precisaram cobrir com roupa íntima o seu assunto, se certificaram de que as peças seriam tão transparentes que fosse possível ver o que estava por baixo. Assim, Araki tornou suas fotografias ainda mais sensuais, já que, segundo Winter (2001, p. 114):

[...] uma parte do corpo vela outra e suscita portanto nosso desejo pelo fato de que não o vemos; ou então há um uso real dos véus, isto é, há realmente véus no sentido de cortinas, que envolvem tal pedaço do braço, da perna, tal parte carnuda do corpo, ou então, simplesmente, e nos perguntamos por vezes o que aquilo faz ali, a dama está inteiramente nua, mas de sapatos. Evidentemente, aquele que essa foto torna desejante se interessa bem mais pelos altos saltos da dama do que pela nudez suposta. Mais exatamente, aquilo por que ele se interessa está no limite entre o sapato da dama e o corpo desvelado, na linha que faz limite entre o sapato e o corpo. Ou um cinto, uma pulseira, uma joia qualquer, que marca no corpo um corte, uma separação; ou então há um ornamento, ou há um desenho, um chapéu, algo enfim que vem manifestar que o véu designa [...] (WINTER, 2001, p. 114)

Posto isso, segundo a crítica literária Eliane Robert Moraes (2013), que há muito se dedica aos estudos acerca do erotismo e da pornografia, é difícil se estabelecer uma diferenciação entre estas duas categorias, ainda mais porque há

64 divergências entre autores e, principalmente, pelo fato de que, normalmente, erotismo e pornografia são abordados como sendo a mesma coisa. Contudo, a autora destaca a concepção de que o pornográfico mostra tudo, enquanto o erótico evoca. Ainda, diz Moraes, o erotismo tem um fundamento moralista de base cristã, partindo da ideia de que o que não está velado é imoral, “baixo”, da ordem do grotesco, repugnante. Assim, a estética erótica seria, então, organizada a partir de um padrão moral, enquanto a pornografia apresentaria a nudez crua – não haveria uma sugestão do sexual, mas difusão de imagens ou palavras que ferem o pudor. Nessa pesquisa, ao abordarmos as fotografias de Nobuyoshi Araki, não tentaremos situar sua estética em uma ou outra dessas duas categorias. Em entrevista, Araki nos surpreende com uma enigmática enunciação: “o fato de elas [suas modelos] terem os seios ou a púbis descobertos não significa [...] que estejam nuas” (ARAKI apud KRIEF, 2000). Seu modo de pensar a nudez nos permite uma articulação com as ideias do filósofo italiano Giorgio Agamben (2014). Para este autor, a tradição religiosa influenciou a maneira pela qual a nossa cultura lida com a nudez. Eva ofereceu a Adão o fruto da árvore do conhecimento do bem e do mal. Seus olhos se abriram e ambos perceberam que estavam nus. Ao perderem a graça, suas partes do corpo, que antes eram expostas sem pudores, agora tornaram-se indecentes – marcas da sexualidade e, logo, do pecado. Por isso, precisaram cobrir-se com folhas de figueira. A transgressão do mandamento divino implicou na mudança de uma nudez sem vergonha para uma nudez que deveria ser coberta. Segundo Agamben (2014, p. 75): “através do pecado, o homem perde a glória de Deus e na sua natureza torna-se agora visível [...] o nu da corporeidade pura [...], um corpo ao qual falta toda nobreza, porque a dignidade última do corpo estava contida na glória divina perdida”. O sujeito, que nasce banhado de uma sexualidade perverso-polimorfa, com a inscrição na cultura, receberia não só a vestimenta, mas, segundo essa linha de pensamento, também o véu da santidade. O pecado, então, não introduziria o mal no mundo, mas revelaria a natureza pulsional humana. Aos olhos condicionados pela tradição teológica, “o que aparece quando se tiram as vestes (a graça) não é mais do que uma sombra delas” (AGAMBEN, 2014, p. 81). Por isso, Agamben afirma que mesmo no corpo aparentemente desnudo, sem

65 nenhuma parcela de vestes, a antiga concepção teológica da nudez é, de certo modo, evocada. Para Berger (2018, p. 69) “Na nudez não há disfarce. Ser exibido é ter a superfície da sua própria pele, os seus próprios pelos, transformados num disfarce que, nessa situação, nunca pode ser retirado”. Estaria então o nu condenado a nunca ficar despido? Ou seria possível alcançar uma nudez plena? Araki (apud KRIEF, 2000, n. p.), nos diz: “eu fotografo mulheres nuas mesmo que estejam vestidas”. Bataille, sobre isso, nos diz:

A nudez arruína a decência que nos damos através de nossas roupas. [...] Acrescentamos à nudez a estranheza dos corpos semivestidos, cujas roupas não fazem senão salientar a desordem de um corpo, que é tanto mais desordenado quanto mais está nu. [...] do mesmo modo, a prostituição, o vocabulário de baixo calão e todos os laços do erotismo e da infâmia contribuem para fazer do mundo da volúpia um mundo de degradação e ruína (BATAILLE, 1957/2017, p. 161)

Segundo Agamben (2014, p. 91), “[o obsceno aparece] quando o corpo assume posições que o despojam completamente dos seus atos e mostram a nu a inercia da carne”. Isto é a “perda irreparável de toda a sua graça.” (AGAMBEN, 2014, p. 91). Ao articularmos as ideias de Agamben com as obras e os ditos do artista em estudo, podemos dizer que Araki apresenta, em suas fotografias, o corpo como carne obscena, assumindo “pela força do corpo do outro atitudes incongruentes e posições tais que revelem a sua obscenidade (AGAMBEN, 2014, p. 91).

3.3 VISUALIDADE OBSCENA

Paisagens bucólicas, histórias pessoais, o ato sexual, a morte: tudo é registrado em detalhes. Araki afirma: “Fotografar é obsceno, ser fotografado é obsceno, mostrar fotografias é obsceno, não mostrar fotografias é obsceno, ser capaz de olhar para fotografias é obsceno, fotografias são obscenidades, as obscenidades são belas” (ARAKI apud TACCA, 1999, p. 96).

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Figuras 27 e 28: Rachadura / Cano

Fonte: ARAKI, Nobuyoshi. Araki. Köln/Alemanha: Taschen, 2002, p. 344.

No álbum intitulado Erotos, de 1993, Araki fotografa flores, frutas, objetos e até mesmo uma rachadura no asfalto, de modo que estes parecem genitálias. Esse, a meu ver, é um dos trabalhos mais significativos do fotógrafo, pois constitui uma crítica visual ao atribuir conotação erótica a imagens banais de modo que nos leva, inclusive, a perceber que estas imagens podem ser mais sensuais do que as imagens de pessoas nuas ou de atos sexuais.

Figuras 29 e 30: Figo / Morango

Fonte: ARAKI, Nobuyoshi. Araki. Köln/Alemanha: Taschen, 2002, p. 358.

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Em 1997, Araki lançou um photobook intitulado Obscenities and Strange Black Ink Stories. As fotografias apresentadas eram coloridas, muitas com datas impressas, feitas com iluminação artificial e intencionalmente empobrecidas no que se refere à qualidade técnica, assemelhando-se a produções baratas de filmes pornográficos. Segundo o artista:

É uma paródia, como uma maneira de dizer que a perfeição não foi alcançada nem buscada. Se há uma data impressa em uma foto, ela não pode ser uma obra-prima, pode? Isso significa que essas fotos são exatamente o que aconteceu em um determinado dia. Isso é fotografia! A fotografia apenas diz que esse dia foi maravilhoso. Isso é vida! Nada é melhor que um diário. (ARAKI, 2002, p. 9, tradução minha)

Em muitas dessas fotografias, Araki interferiu nas imagens de forma violenta, riscando bruscamente partes do corpo das modelos, principalmente os genitais. Mas as fotografias não registravam apenas o nu feminino. Como faz frequentemente nesses ensaios, o artista intercalou as fotos de nus e de atos sexuais com imagens do cotidiano: um chinelo no chão, um maço de cigarro amassado, uma criança andando de bicicleta. Mesmo nessas fotos banais, seus riscos operam, como se essas imagens, tanto as de nu quanto as do cotidiano, fossem todas obscenas.

Figura 31: Genitais riscados

Fonte: TACCA, F. Fotografia japonesa: do surrealismo ao realismo fantástico. Studium, n. 4, Laboratório de Media e Tecnologias de Comunicação Dpto. de Multimeios / Instituto de Artes da Unicamp, 1999, p. 94.

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Para Sontag (2015), a sexualidade humana está mais próxima das experiências extremas que às comuns, sendo uma das forças “demoníacas” que assolam o sujeito, mesmo que ela possa ser domesticada. Nesse sentido, a sexualidade nos impeliria, de quando em quando, “para perto de proibições e desejos perigosos, que abrangem do impulso de cometer uma súbita violência arbitrária contra outra pessoa ao anseio voluptuoso de extinção da consciência, à ânsia da própria morte” (SONTAG, 2015, n. p.). Assim, a autora destaca o fascínio erótico da crueldade física e a atração em coisas vis e repulsivas como inerentes à condição humana, fenômenos que “fazem parte do espectro genuíno da sexualidade” (SONTAG, 2015, n. p.). Araki, ao misturar fotografias de atos sexuais explícitos, práticas sadomasoquistas e até escatológicas com imagens do cotidiano nos mostra que a sexualidade pode se provar passível de domesticação para, em seguida, revelar o contrário, mostrando o seu caráter inquietante e perturbador. “O fato de que poucas pessoas tenham regularmente, ou tenham alguma vez, experimentado suas capacidades sexuais a esse nível perturbador não significa que o extremo não é autêntico ou que a possibilidade jamais as assediou” (SONTAG, 2015, n. p.).

Figura 32: José Mauício Loures: Folheando Araki (2019)

Fonte: Arquivo próprio.

Segundo o crítico de arte Hal Foster (2017), muitas imagens contemporâneas apenas encenam o obsceno, tornam-no temático ou cênico e, assim, o controlam. Nesses casos, o obsceno estaria a serviço do anteparo – não contra ele – como um último recurso da imagem para evitar sua dissolução. Araki revela um sentimento

69 trágico sob o fundo obsceno, um assombramento diante das “coisas do sexo”. E afirma: “quero fotografar sexo e morte mesclados. Nas minhas fotos esses dois desejos são inseparáveis. [...]. No sexo percebemos a morte, e na morte o sexo” (ARAKI apud KRIEF, 2000, n. p.). Se o erotismo é uma transgressão das leis da cultura, sua articulação com a violência e a morte pode ser uma forma radical de subversão. “Disso sabiam bem os malditos, revolucionários e visionários de todas as épocas que, como Marquês de Sade, ousaram repetir: ‘Não há melhor maneira de se familiarizar com a morte do que aliá-la a uma ideia libertina’” (BRANCO, 2004, p. 42). Bataille, em seu livro O erotismo (1957/2017), afirma que “O sentido último do erotismo é a morte”. E isto fica bastante claro em A história do olho (1928/2001), em que o autor nos mostra, a partir de uma narrativa terrivelmente sexual, que o que está em jogo no erotismo ou na pornografia não é, em última instância, o sexo, mas a morte. Sontag (2015, n. p.), a esse respeito, comenta:

Não pretendo dizer que toda obra pornográfica fale, de forma aberta ou velada, da morte. Somente as obras que enfrentam essa inflexão específica e mais aguda dos temas da luxúria, do “obsceno”, é que o fazem. É para as gratificações da morte, sucedendo e ultrapassando as de Eros, que toda busca verdadeiramente obscena se dirige.

Bataille expõe, como Araki, a experiência erótica extrema, evidenciando, assim, a conexão entre o sexo e a morte. Em Bataille, os atos sexuais descritos têm consequências mortíferas; enquanto, em Araki encontramos a proposta de revelar uma sexualidade que não se reduz às tentativas de manter o “horror” à distância. “Isso é tolice, de acordo com Bataille, uma vez que o horror reforça a ‘atração’ e excita o desejo.” (SONTAG, 2015, n. p.). A morte, para Araki (apud ESCANDÓN, 2002, p. 8), “é uma coisa formosa. Quando se aproxima da morte, também se aproxima da beleza”. Em O seminário, livro 7: a ética da psicanálise, Lacan (1959-1960/2008) propõe uma aproximação entre o trágico e o belo. E afirma que a “barreira que detém o sujeito diante da destruição absoluta [...] é o fenômeno estético propriamente dito, uma vez que é identificável com a experiência do belo” (1959-1960/1986, p. 265). Logo, a beleza operaria como uma barreira nas fronteiras do horror, alojando a pulsão de morte.

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Figura 33: A morte de Yoko

Fonte: ARAKI, Nobuyoshi. Araki. Köln/Alemanha: Taschen, 2002, p. 497.

Quando a mãe de Nobuyoshi Araki faleceu, em 1974, Araki, ao vê-la morta, lamentou por não estar com a câmera em mãos naquele momento, já que era a primeira vez em que viu tal expressão em seu rosto. Mas, no instante da morte de sua esposa, ele conseguiu registrar, com a ajuda de seu irmão, sua mão segurando a de Yoko. E, em seu funeral, a fotografou dentro do caixão.

Figura 34: Yoko no caixão

Fonte: ARAKI, Nobuyoshi. Araki. Köln/Alemanha: Taschen, 2002, p. 500.

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4. FRANCESCA WOODMAN: FRATURA NA IMAGEM

“Ver uma imagem. Tentar escrevê-la (esta imagem, este ver da imagem). Meu corpo todo na jogada. Meu corpo em face do corpo da imagem, meu corpo até ser chamado por este outro corpo (passado, desaparecido) cuja imagem convoca, ou me faz convocar, a sensação.” (Georges Didi-Huberman)

Francesca Woodman nasceu em 3 de abril de 1958, em Denver, no Colorado. Filha de artistas – sua mãe, Betty, escultora, e seu pai, George, pintor e fotógrafo –, ela começou a travar seus primeiros contatos com a fotografia aos treze anos, quando ganhou uma máquina fotográfica de seu pai. Entre 1975 e 1978, Francesca estudou fotografia na Rhode Island School of Design, considerada uma das mais antigas escolas de arte dos Estados Unidos. Naquela época, ela morava em seu estúdio, em uma área industrial, onde muitas de suas fotos foram criadas (TELLGREN, 2017). Nos anos ativos de Francesca – final dos anos 70 e início dos anos 80 – a fotografia estava em um período de transição, pois muitos artistas estavam experimentando novas possibilidades com a fotografia e deixando a tradição documental para projetos mais subjetivos e surrealistas. “Se a fotografia de Woodman lembra qualquer outro corpo de trabalho, mesmo superficialmente, pode ser uma fotografia surrealista.” (SOLOMON-GODEAU, 1986, n.p., tradução minha), principalmente devido ao “uso frequente de espelhos, duplos, sombras, luvas, mãos, cisnes, peixes, enguias, máscaras e símbolos sexuais” (TELLGREN, 2017, p. 13, tradução minha).

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Durante sua residência em Roma, Woodman se conectou com os proprietários da Libreria Maldoror, uma livraria especializada em literatura histórica de vanguarda e surrealista, além de um local de encontro de artistas, que ela visitava a caminho de seu apartamento em Roma, para a escola no Palazzo Cenci, lá, ela encontrou cadernos antigos da década de 1930, cartões postais anônimos e outros itens que mais tarde usaria em seu trabalho. Ela leu o romance de André Breton em 1928, Nadja, e outros textos surrealistas. Eles também tinham uma galeria no porão para exposições menores, e Woodman exibiu suas fotografias lá em março de 1978. (TELLGREN, 2017, p. 13, tradução minha)

Figura 35: Francesca Woodman

Fonte: WOODMAN, Francesca. On Being an Angel. Londres: Moderna Museet, 2017, p. 60

O nu causa fascínio e está presente na fotografia desde o início da sua história, com os primeiros daguerreótipos (KOETZLE, 2014). Solomon-Godeau (1986) aponta que os nus de Woodman geralmente incluem um detalhe que interrompe a composição e nos convidam a um olhar mais atento sobre eles. Seus trabalhos se apresentam como ações performáticas pensadas especificamente para a fotografia e o corpo aparece como uma superfície de infinita plasticidade, na qual ela pode, inclusive deformá-lo até decompô-lo.

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Ainda, Solomon-Godeau (1986, n.p., tradução minha) comenta que:

A jovem e bela Francesca Woodman experimenta a si mesma como o objeto do olhar: ímã e lugar dos desejos e fantasias dos outros. E, ao mesmo tempo, como artista, fotógrafa, é a autora de trabalhos especificamente sobre o visual, o domínio do escópico. Suas fotos, como as de qualquer fotógrafo, são produzidas olhando e prendendo o visual. A orquestração desses olhares – os do fotógrafo, a câmera, o espectador – funciona para produzir diferentes posições do sujeito.

Alguns anos após a morte precoce de Francesca, aos 22 anos, o Museu de Arte Moderna de São Francisco realizou a primeira retrospectiva de seu trabalho. Posteriormente, a retrospectiva foi exibida, em menor escala, no Museu Guggenheim e no Metropolitan Museum, ambos em Nova York. Estima-se que a artista chegou a produzir mais de 800 imagens, hoje preservadas por The Estate of Francesca Woodman, em Nova York. Coleções significativas de suas fotografias podem ser também encontradas no Metropolitan Museum, em Nova York; na Tate Modern, em Londres; e no Sammlung Verbund, em Viena. Desde a sua primeira grande exposição, é crescente o interesse pela arte de Francesca, cujas obras têm sido expostas em museus e galerias pelo mundo. Embora se tenha encerrado muito cedo o seu percurso pela arte, Francesca ganhou visibilidade e “Seu corpo de trabalho foi objeto de muitos estudos aprofundados e grandes exposições, e sua fotografia inspirou gerações de artistas e fotógrafos em todo o mundo.” (TELLGREN, 2017, p. 10, tradução minha). A título de exemplo, podemos citar as artistas Sophie Calle e Cindy Sherman, conhecidas por seus retratos conceituais, que, em entrevistas, relatam que a arte de Francesca influenciou seus próprios trabalhos. Sherman afirma:

Ela empurrou os limites da fotografia experimental e jogou com o potencial de velocidade do obturador e exposição. Ela tinha poucos limites e fazia arte do nada: salas vazias com papel de parede descascado e apenas sua figura. Nenhum arranjo de palco elaborado ou luzes... Seu processo me impressionou mais como um pintor trabalha, se contentando com o que está bem na frente dela, em vez de fotógrafos como eu, que precisam de tempo para planejar o que vão fazer.4

4 Disponível em: https://www.tate.org.uk/art/lists/five-things-know-francesca-woodman (Acesso em: 29 dez. 2019).

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No ano de 2018, após passar pelo Centro Cultural Kirchner, em Buenos Aires, alguns de seus trabalhos foram exibidos na Tate Liverpool, em Londres. Marie Nipper, curadora da exposição, descreve as fotografias da artista como imagens “íntimas e borradas [...] que captam momentos prolongados no tempo de forma surreal, humorada e dolorosamente honesta” (NIPPER, s.d., online, tradução minha).

Figura 36: Untitled, Providence, Rhode Island, (1975-1978)

Fonte: WOODMAN, Francesca. On Being an Angel. Londres: Moderna Museet, 2017, p. 127.

As “imagens íntimas”, muitas vezes chamadas de autobiográficas, são assim caracterizadas principalmente por serem, em sua maioria, autorretratos. Francesca usa seu próprio corpo para encenar uma objetificação, o paradoxo é que ela é também o sujeito da imagem e observadora de si. Francesca considera o autorretrato uma maneira conveniente de fotografar o corpo, já que não dependeria de mais ninguém. Ainda assim, em muitos trabalhos, a artista exibe suas amigas e modelos, mas adverte que estas sempre representam ela própria.

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Figura 37: Francesca Woodman: About being my model, Providence, Rhole Island (1976)

Fonte: WOODMAN, Francesca. On Being an Angel. Londres: Moderna Museet, 2017, p. 149.

4.1 DA IMAGEM DO CORPO AO CORPO DA IMAGEM

Na arte de Francesca Woodman encontramos a predominância de dois tipos de formalização no que se refere à representação do corpo próprio: o corpo esfacelado, recortado pelo espaço, e o corpo dissolvido, como uma mancha informe. Francesca, a partir de seu peculiar modo de fotografar, produz representações de si que não condizem com a imagem esperada de um corpo. No contexto atual, em que a diversificação dos meios de criação de imagem técnica não apenas aprimorou o seu efeito de “instantaneidade”, como, também, intensificou a exigência de que toda situação se transforme em imagem (LAURENT, 2016), o que acarretou na “febre” das selfies, a arte de Francesca pode ser pensada como uma potente negação deste novo campo que se oferece para satisfazer a paixão

76 narcísica, pois suas fotografias são ícone das mais violentas denegações das imagens idealizadas. O sujeito, como sabemos, não possui imagem, ele é, em si, um desconhecido de si mesmo. As palavras de Didi-Huberman (2018), em seu livro Imagens-ocasiões ilustram bem isso:

Tenho a impressão bem nítida – alucinatória? – de que cada espelho me reflete diferentemente. Em cada novo banheiro, de um hotel ao outro, não sou mais o mesmo e isso vai, geralmente, de mal a pior. [...] O que mesmo isso me diz é algo sobre a inquietante estranheza que sobrevém na imagem que me é mais familiar, a saber, a minha própria. (DIDI-HUBERMAN, 2018, p. 85)

O corpo, isso sim, tem uma imagem. É a partir de uma identificação do ser falante com o organismo que, ao vestir-se da imagem do corpo próprio, o sujeito aflora em sua pretensa imagem. Freud, em sua “Introdução ao narcisismo”, artigo de 1914, já nos mostrara que uma unidade comparável ao Eu não poderia existir no sujeito desde o início. A gênese do Eu depende de identificações que possibilitam a subjetivação da materialidade do corpo. É daí que parte Lacan para a construção de sua teoria do estádio do espelho, que permite relacionar a apreensão da imagem do corpo com a constituição do Eu. Lacan, ao longo de seu ensino, observa que o corpo possui três dimensões: real, simbólica e imaginária. No início, ao retomar a noção freudiana de narcisismo, Lacan (1949/1998) esclarece o registro do imaginário pela ênfase dada à alienação da criança à imagem do semelhante e pelo que aí se precipita de uma Gestalt antecipatória do corpo próprio. Assim, o corpo-imagem é o nosso primeiro outro. Ademais, Lacan (1961/1998) ressalta que, na experiência do espelho, a função do simbólico é fundamental, já que o que vemos no espelho é uma ilusão, imagem ideal que, pautada nos ditos do Outro, faz unidade do corpo e funciona como um modelo constitutivo, cuja pregnância introduz um falso domínio. Lacan atenta que “a relação especular vem a tomar seu lugar e a depender do fato de que o sujeito se constitui no lugar do Outro, e de que sua marca se constitui na relação com o significante” (LACAN, 1962-1963/2005, p. 41). Em seu Seminário, livro 8: a transferência, Lacan (1960-1961/1992) adverte que nem todo investimento libidinal passa pela imagem especular. O falo se apresenta

77 como falta e, considerando a impossibilidade de haver imagem daquilo que falta, há uma lacuna na imagem libidinalizada do corpo. Este desenvolvimento de Lacan parte de um estudo acerca do objeto parcial em Abraham, que relata o sonho de uma paciente que, “em seguida a uma relação traumática com o pai, este não é mais apreendido [...] senão por seu valor fálico” (LACAN, 1960-1961/1992, p. 366), contudo, no decorrer de sua análise, ela relata um sonho com seu pai em que a imagem do corpo dele foi censurada no nível dos genitais, o que acarretou no desaparecimento dos pelos pubianos. Abraham se pergunta de onde vem esse furor de castrar o outro que irrompe no nível imaginário. Lacan toma, então, de Abraham, a ideia de que “em todo homem, aquilo que constitui, propriamente, os genitais, é investido mais fortemente em todas as outras partes do corpo no campo narcísico” (LACAN, 1960-1961/1992, p. 366). Logo, não são as regiões mais investidas que se descarregam para começar a dar um pequeno investimento de objeto, mas, nos níveis de investimento mais baixos que se faz a captação da energia do investimento objetal. Em suma, podemos extrair dessas considerações que a defasagem da apreensão do objeto com relação ao objeto real, na medida em que possamos aspirar a ele, é basicamente determinada pelo caráter negativo do falo. Assim, a captura do objeto na dialética das relações entre o sujeito e o significante é posta no princípio da relação com o falo. É nesse sentido que um certo objeto, o objeto a vem preencher na fantasia o lugar arcado pela ausência do falo (- φ). O sujeito está sempre presente na fantasia e o objeto a, enquanto objeto de desejo, toma o lugar do falo, aquilo de que o sujeito está privado simbolicamente. No escrito “Subversão do sujeito e dialética do desejo”, Lacan (1960/1998) introduz a metáfora da imagem do corpo como vestimenta (habillage) do objeto: “É a esse objeto inapreensível no espelho que a imagem especular dá sua vestimenta” (LACAN, 1960/1998, p. 832). O objeto é, então, suporte do desejo na fantasia, não sendo “visível naquilo que se constitui para o homem a imagem de seu desejo” (LACAN, 1962-1963/2005, p. 51). Justamente na porção libidinal que não se coloca na imagem, o objeto a opera, como parte da libido que, ao ser revestida pela imagem, a torna interessante, atraente.

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Desse modo,

O que se manipula no triunfo da assunção da imagem do corpo no espelho é o mais evanescente dos objetos, que só aparece à margem: a troca de olhares, manifesta na medida em que a criança se volta para aquele que de algum modo a assiste, nem que seja apenas por assistir a sua brincadeira. (LACAN, 1966/1998b, p. 74)

Mas não podemos esquecer que, conforme nos ensina Lacan (1962- 1963/2005), para que haja desejo, não apenas em sua face de falta, mas de apetência que visa algo, é preciso, também, haver um resto de empuxo que não seja redutível à demanda que se endereça ao Outro. Lacan situa esse “empuxo da libido” na fratura entre dois termos: a e (- φ). O objeto a é o que do empuxo vai se investir na imagem e (- φ), resto do empuxo que não entra no imaginário, é a parte subtraída, uma reserva libidinal que não se investe no nível da imagem. Tanto a quanto (- φ) situam-se no nível da função do desejo e ambos não têm imagem, não se situam no tempo e no espaço. Nenhuma fotografia possível? Embora ambos não tenham imagem, cada um terá uma relação muito particular com esta. (- φ) não tem nada a ver com a mutilação – isso se vê, tem um peso imaginário –, por outro lado, o objeto a entra no imaginário, onde, contudo, não se vê, um ponto cego, parte da libido que torna a imagem atraente (SOLER, 2012). Há uma dialética entre (- φ), representante de uma perda, castração, que vem simbolizar o que falta à imagem, e o objeto a, a consistência dessa perda, positivação da falta. É a partir da perda que o objeto da pulsão se constitui, por subtração ao Outro, como objeto perdido cuja pulsão dá a volta. Há, então, uma relação de exclusão entre sujeito e objeto.

Traço comum a esses objetos em nossa elaboração: eles não têm imagem especular, ou, dito de outra maneira, alteridade. Isso é o que Ihes permite serem o “estofo”, ou, melhor dizendo, o forro, sem, no entanto, serem o avesso, do próprio sujeito tomado por sujeito da consciência. Pois esse sujeito, que acredita poder ter acesso a si mesmo ao se designar no enunciado, não é outra coisa senão um objeto desse tipo. (LACAN, 1960/1998, p. 832, grifo meu)

Em “Radiofonia”, Lacan volta a falar sobre o corpo, contudo, não mais a partir da referência ao espelho. Nesse texto, ele define o Outro por sua incompletude, como (-1), ou seja, como a falta de um significante no Outro, S ( A/ ). E afirma: “Pelo Um-a- Menos faz-se cama para a intrusão que avança a partir da extrusão: é o próprio

79 significante” (LACAN, 1970/2003, p. 407). O efeito da “incorporação simbólica” do S( A/ ) – intrusão significante e extrusão de gozo – “é o esvaziamento do gozo da carne. E o resto dessa operação é uma concentração de gozo fora-do-corpo, que não deixa de ter efeitos sobre o corpo por intermédio da pulsão e do objeto a.” (QUINET, 2014, p. 61). O corpo retratado por Francesca Woodman não é um “saco de buracos”, pois passa para o outro lado do espelho. O espaço envolve o corpo de Francesca, recortando-o ou se confundindo com ele. Seu rosto, por vezes, aparece parcial ou totalmente dissolvido, é encoberto ou mascarado, ou, simplesmente, é excluído da imagem, como uma figura acéfala. Seus membros dissolvem-se no ar, tornando-se translúcidos. Essas fotografias evocam o desencaixe que existe entre o sujeito e seu corpo, sugerindo que há algo para além da ilusão do espelho.

Figura 38: Francesca Woodman: Untitled, Providence, Rholand Island (1976)

Fonte: WOODMAN, Francesca. On Being an Angel, Londres: Moderna Museet, 2017, p. 147.

Francesca diz que seu interesse é mostrar aquilo que as pessoas não podem ver. Podemos pensar que as obras da artista apontam para o que a imagem especular não mostra, esse ponto de castração no qual o olhar se constitui como objeto a, que, como ausente, é o que sustenta a imagem exatamente por furtar-se a ela? O objeto a

80 localizaria-se, então, nas manchas e lacunas deixadas pela artista, na medida em que essas imagens flertam com o impossível da representação. Assim, o objeto é encarnado como objeto de desejo lá onde falta à imagem e “é interrogado até as profundezas de seu ser, solicitado a mostrar-se no que tem de mais escondido para vir preencher essa forma vazia na medida que ela é fascinante” (LACAN, 1960-1961/1992, p. 375). É interrogado até o ponto em que a última falta-a- ser é revelada, “ponto em que a questão se confunde com a própria destruição do sujeito” (LACAN, 1960-1961/1992, p. 375). Francesca costumava trabalhar em ambientes incomuns, como edifícios abandonados. Há fotografias em que ela desaparece gradualmente nas paredes, no papel de parede rasgado, nas portas e janelas, na lareira e em outros elementos da cena, transformando-se em parte da parede ou da casa. É como se ela pudesse desaparecer da sala, sair de cena, a qualquer momento.

Figura 39: Francesca Woodman: From Space, Providence, Rhode Island (1976)

Fonte: WOODMAN, Francesca. On Being an Angel, Londres: Moderna Museet, 2017, p. 60

Ela está se escondendo, pronta para se fundir com a parede e se tornar parte do lugar? Ou está prestes a emergir do cimento, arrancar as camadas de papel de parede e ocupar o espaço da sala? Seu corpo é como uma casa, morada? Ou como uma prisão, fardo, do qual ela tenta escapar?

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Figura 40: Francesca Woodman: House #4, Rhode Island (1976)

Fonte: WOODMAN, Francesca. On Being an Angel, Londres: Moderna Museet, 2017, p. 57

Essa ideia de transformação é expandida em uma fotografia em que seu corpo se mescla com uma árvore, como se ela estivesse se tornando parte da árvore e da natureza.

Figura 41: Francesca Woodman: Untitled, Boulder, Colorado (1976)

Fonte: https://jikopic.pw/Francesca-Woodman-Untitled-Boulder-Colorado-1976-About.html

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Há, nessa fotografia, uma possível alusão ao mito de Dafne, ninfa da mitologia grega que foi transformada em uma árvore de louro por seu pai, Peneu, para escapar da perseguição de Apolo por ela. “A familiaridade e a onipresença do colapso conceitual do corpo na natureza são aqui efetivamente agrupadas, paralisadas e, até, entram em curto-circuito através da sugestão sutil da faceta do pesadelo da metamorfose.” (SOLOMON-GODEAU, 1986, n.p., tradução minha). Se narciso ficou fixado em sua própria imagem refletida no espelho d’agua, Francesca pode nunca ter encontrado em seu reflexo uma imagem que a capturasse, uma imagem com a qual ela pudesse se identificar, e jogou com isto em sua arte. Diferentemente de Narciso, ela ora integrou-se à paisagem, como Dafne, ora decompôs a imagem de seu corpo, de modo a tornar-se uma mancha. Francesca parece ter encontrado nessas imagens em que figura e fundo se confundem ou na figuração informe de seu corpo uma representação de si para ela melhor do que a que o espelho lhe oferecia. Orlan, uma artista cujo trabalho também suscita indagações sobre as relações do sujeito com a imagem do corpo, nos diz:

Sinto-me irrepresentável, irrefigurável. Toda imagem minha é pseuda, seja ela presença carnal ou verbal. Toda representação é insuficiente, mas não produzir nenhuma seria pior. Seria ser sem figura, sem imagem, sem representação, não é o rosto nem a desfacialidade que me salvam. Para mim o que conta é girar nessas imagens possíveis. (ORLAN, 2008, p. 175, grifo meu)

Não estariam Orlan, com as suas intervenções cirúrgicas no corpo, e Francesca, com as manipulações na imagem, problematizando a mesma coisa: o caráter ilusório da identificação do ser falante com a imagem de seu corpo? O falasser, nos diz Lacan (1975-1976/2007, p. 64), “adora seu corpo, porque crê que o tem. Na realidade, ele não o tem, mas seu corpo é sua única consistência, consistência mental, é claro, pois seu corpo sai fora a todo instante”. Segundo Laurent (2016), a forma do corpo é uma armadilha que faz negligenciar os processos pulsionais determinantes do gozo. A evidência multiforme das imagens do corpo tende a nos fazer esquecer que sempre estamos confrontados com a ausência do que poderia responder, na condição de sujeito, ao gozo. “O paradoxo do gozo se deve ao fato de que ele é, antes de tudo, trauma, por fazer furo no tecido das representações do sujeito” (LAURENT, 2016, p. 17).

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A câmera fotográfica, ao se impor no lugar do desenho e da pintura no que diz respeito à aproximação mimética da realidade, surgiu como um recurso para a fixação do instante visto. A revolução da fotografia não se deu pela produção de uma representação da realidade mais perfeita do que o desenho e a pintura, mas por "ser uma impressão do lugar e do momento, [por] fixar o tempo, com o instantâneo" (AMOUNT, 2004, p. 80). Mas que preço tem essa fixação do instante para a fotografia? “Toda a representação do século XIX hesita sobre a resposta a essa pergunta”, nos diz Amount (2004, p. 92). E continua: "O instante é precioso por não ser passível de repetição e de imitação, pelo fato de encarnar o mistério do tempo" (AMOUNT, 2004, p. 92). A imprevisibilidade do instante torna essa intencionalidade, de registrá-lo de modo fiel à realidade visível, insuficiente, não bastando, então, para fundar o realismo. E “quanto mais a arte pictórica parece confiar no instante, mais precisará reivindicar em alto e bom som o caráter artístico de seu projeto” (AMOUNT, 2004, p. 92). “Não se mexa!”, diziam os primeiros fotógrafos, em cujo equipamento da época os obrigava a fotografar em longa exposição. Esses fotógrafos precisavam imobilizar o assunto para evitar que a foto ficasse tremida, manchada, pois esse “vestígio da duração” foi por muito tempo julgado indesejável, “não estético” (AMOUNT, 2004, p. 91). A longa exposição combinada com o movimento do assunto faz tremer a imagem, criando um tipo de eclipse na representação, confronto entre várias vistas, que permite ao observador a visão de um “entre-vários-instantes”, representada pelo vazio entre estes. A arte de Francesca Woodman põe em questão a complexidade do encontro entre o olhar do espectador (que a obra deliberadamente desconcerta) e a imagem des(figurada), que resulta também de um olhar, o da artista. Francesca manipula o instante e o espaço à sua maneira para revelar algo da realidade não visual. Mas o que ela, afinal, nos mostra com a sua arte? A força estética e potência crítica de seu trabalho figuram-se na queda parcial da imagem do corpo, evocando o vazio – uma imagem despida de seu narcisismo, perturbada lá onde o sentido se esvai. Francesca exibe o movimento conjugado entre o mundo visível, que passa diante aos olhos, e o seu olhar sobre si, não mais buscando se reconhecer na imagem alienante do espelho e abandonando-se livremente à fluidez das formas. “Eu mostro aquilo que você não consegue ver: a força íntima do corpo”, afirma a artista.

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Figura 42: Francesca Woodman: Untitled, Itália (1977-1978)

Fonte: WOODMAN, Francesca. On Being an Angel, Londres: Moderna Museet, 2017, p. 145.

Figura 43: Francesca Woodman: From Angel série, Itália (1977)

Fonte: WOODMAN, Francesca. On Being an Angel, Londres: Moderna Museet, 2017, p. 25.

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Índice do fracasso da ilusão, suas fotografias revelam um corpo inconsistente enquanto imagem, que desvanece, se converte num vestígio, numa transparência. Assim, a artista se recusa a representar as formas esperadas do corpo, mas aspira a representar, de modo até então radicalmente novo, o vazio que habita o seu ser. “Sinto que minha arte é sobre mim mesma”, afirma Francesca. Não está no escopo deste trabalho a realização de uma interpretação clínica, contudo, nos interrogamos se Francesca não estaria, com as suas fotografias, buscando um contorno para o seu corpo. Ela diz: “Há o papel e, então, há a pessoa”.

4.2 PERTURBAÇÃO NO CAMPO VISUAL

Francesca Woodman captura um intervalo que não se esgota no simples escoamento de uma duração restituível, mas sucessão irregular de fixações e ausências. Assim, a artista nos convoca a refletir sobre como a imagem, paradoxalmente, pode evocar o que dela própria não é visível – presença invisível do objeto no campo da representação.

Figura 44: Then at one point I did not need to translate the notes; they went directly to my hands, Providence, Rhode Island (1976)

Fonte: WOODMAN, Francesca. On Being an Angel, Londres: Moderna Museet, 2017, p. 113.

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A Renascença deixou como herança para a civilização ocidental, por mais de quatro séculos, o sistema de representação plástica do espaço em que se baseiam as criações artísticas desse período. Trata-se da perspectiva central – também denominada linear, geométrica ou albertiana –, um sistema fundado em leis científicas de construção do espaço que tentava dar conta de uma reprodução fiel da realidade visível, uma visão da natureza mais próxima daquela que o olho humano obtém. Embora muitos digam que os gregos antigos e romanos haviam inventado a perspectiva, sua descoberta é atribuída ao arquiteto e escultor renascentista Filippo Brunelleschi. Buscando ser capaz de desenhar com precisão os antigos edifícios e ruinas de Roma, Brunelleschi desenvolveu uma técnica que viria a ser chamada de perspectiva linear e demonstrou isso em Florença, em 1420. Contudo, foram necessários 15 anos para que sua descoberta fosse codificada e sistematizada. Foi Leon Battista Alberti quem, na Antiguidade, escreveu o primeiro manual de perspectiva, em 1435. Neste, estabelece que no desenho e na pintura as coisas vistas são reduzidas a superfícies bidimensionais que figuram na tela a tridimensionalidade do motivo representado. Sua técnica consiste na circunscrição de um ponto de fuga situado na linha do horizonte para onde convergem as linhas imaginárias da composição, a partir do qual pode-se criar planos metricamente calculados para que a profundidade de campo seja fielmente alcançada. Nos três ensaios que compõem a obra Da pintura, Alberti apresenta técnicas de composição, enquadramento, iluminação, cor etc. que visam à criação da “bela forma”, inclusive no que se refere à figuração do corpo humano. Para este autor, o quadro é a interseção da pirâmide visual, como um vidro translúcido de uma janela de onde se vê o mudo figurável (ALBERTI, 1435/2014). Embora a intenção original da perspectiva linear fosse simplesmente a de criar uma ilusão de profundidade de espaço numa superfície bidimensional, os artistas descobriram que também poderiam se utilizar desta técnica como forma expressiva. Ao olhar para um quadro não vemos somente o reflexo de uma realidade que se abre para nós como numa janela, mas um assunto já visto anteriormente por um olho, o do artista, que dirige o nosso olhar pelas linhas imaginárias da composição até o ponto de fuga. Ponto este que, por não estar lá, é, por isso mesmo, o que convoca o nosso olhar para a obra (MACHADO, 2015).

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Figuras 45 e 46: Dirk Bouts: Ceia (1464)

Fonte: http://pt.wahooart.com/A55A04/w.nsf/O/BRUE-8BWP6J/$File/DIRK-BOUTS-THE- LAST- SUPPER.JPG / MACHADO, Arlindo. A ilusão especular: uma teoria da fotografia. São Paulo: Gustavo Gili, 2015, p. 82.

Figuras 47 e 48: Tintoretto, A última ceia (1593)

Fonte: https://pt.wikipedia.org/wiki/Tintoretto#/media/File:Jacopo_Tintoretto_- _The_Last_Supper_-_WGA22649.jpg / MACHADO, Arlindo. A ilusão especular: uma teoria da fotografia. São Paulo: Gustavo Gili, 2015, p. 82.

Nenhuma imagem é simples apresentação de propriedades naturais dos objetos. O artista decide o sentido da presença ao determinar o grau de visibilidade de cada elemento que compõe a imagem. Estar na imagem é dar-se a ver como objeto no interior de um campo de organização visual estruturado. Segundo Berger (2018, p. 19):

Uma imagem é um olhar que foi recriado ou reproduzido. Trata-se de uma aparência, que foi retirada ao tempo e lugar em que havia primeiro aparecido e onde fora preservada – durante alguns momentos ou alguns séculos. Cada imagem encarna um modo de ver. [...] De cada vez que olhamos uma fotografia, apercebemos-nos, mesmo que tenuamente, do fotógrafo que seleciona um determinado olhar a partir de uma infinidade de outros olhares possíveis.

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Contudo, Duchamp (1957/1986) já havia nos ensinado, com o seu coeficiente artístico, que o artista não é capaz de expressar tudo o que planeja, como também, acaba por transportar para imagem algo que não havia intencionado. O receptor, por sua vez, poderá ver algo na obra que está para além, tanto do que o artista quis mostrar quanto do que ele depositou na obra sem saber. Em seu Seminário, livro 11: os quatro conceitos fundamentais da psicanálise (1964/2008), Lacan revela que há uma disjunção entre o olho e o olhar. O olhar não deve ser confundido mais com o visível, nem com a função visual. Trata-se de um objeto da pulsão, que nos é inapreensível. Segundo Lacan (1964/2008, p. 109), “os olhos existem para não ver”. No campo do olhar “algo escorrega, passa, se transmite, de piso para piso, para ser sempre nisso em certo grau elidido” (LACAN, 1964/2008, p. 76). Lacan (1964/2008) situa o local em que o objeto a simboliza a falta central do desejo pelo algoritmo (- φ). E afirma: “O objeto a, no campo do visível é o olhar” (LACAN, 1964/2008, p. 106). Lacan, então, apresenta o quiasma do campo escópico, que nos permite entender como o sujeito é preso, captado no campo da visão. O quiasma do campo escópico é constituído pelo entrelaçamento de dois triângulos, a saber, um que é sustentado pelo sujeito que vê, e o outro causado pelo objeto olhar.

Figura 49: Triângulo do sujeito que vê

Fonte: Arquivo próprio.

Figura 50: Triangulo do sujeito que é causado pelo olhar

Fonte: Arquivo próprio.

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Lacan sobrepõe o cone da visão, bastante conhecido nos tratados renascentistas sobre perspectiva, que emana do sujeito, com outro cone, que emana do objeto, no ponto luminoso do objeto a.

Figura 51: Quiasma do campo escópico

Fonte: Arquivo próprio.

Na sobreposição dos dois cones vemos que o sujeito está também sob o olhar do objeto. Segundo Lacan (1964/2008, p. 107), “no campo escópico, o olhar está do lado de fora, sou olhado, quer dizer, sou quadro.” Tomando como referência a obra de Maurice Merleau-Ponty, O visível e o invisível, Lacan (1964/2008, p. 76) estabelece que, assim como a linguagem, o olhar preexiste ao sujeito que, “olhado de todos os lados”, não passa de uma “mancha” no mundo – o mundo representado olha de volta para o observador. O sujeito, essa coisa visível, “está contido no grande espetáculo” (MERLEAU-PONTY, 2000, p. 137). Se “as pulsões são, no corpo, o eco do fato de que há um dizer.” (LACAN, 1975- 1976/2007, p. 18), como afirma Lacan em seu Seminário, livro 23: o sinthoma, a linguagem, que preexiste ao sujeito, marca a anterioridade do olhar. E é isso que a mancha revela, “a preexistência, ao visto, de um dado a ver (LACAN, 1964/2008, p. 77), pois é exterior por ser extraída do sujeito, sendo-lhe, então, terrivelmente familiar. Entre o ponto do sujeito que olha e o seu quadro, nesse intervalo, podemos situar a fantasia. O anteparo permite que o sujeito, no ponto do quadro, contemple o objeto, no ponto luminoso, e é, também, o lugar onde se pode manipular e mediar o olhar. A estrutura visual do mundo ordena-se em torno de um furo da representação, um impossível de ser representado. O ponto do sujeito que olha tem como condição uma perda do campo visual, é um ponto perdido. O sujeito, por estrutura, não pode

90 representar a si próprio, ele precisa de um significante que o represente junto a outro significante (LACAN, 1964/2008). O olhar do Outro tem a função fundante de instituir o sujeito ao nível do visível.

O que me determina fundamentalmente no visível é o olhar que está do lado de fora. É pelo olhar que entro na luz, e é do olhar que recebo seu efeito. Donde se tira que o olhar é o instrumento pelo qual a luz se encarna, e pelo qual – se vocês me permitem servir-me de um termo, como faço frequentemente, decompondo-o sou foto-grafado. (LACAN, 1964/2008, p. 107)

Lacan apresenta a dialética do olho e do olhar e garante que de modo algum há coincidência, mas logro: “Quando, no amor peço um olhar, o que há de fundamentalmente insatisfatório e sempre falhado, é que jamais me olhas de onde te vejo. Inversamente, o que eu olho não é jamais o que quero ver.” (LACAN, 1964/2008, p. 104).

O olhar pode conter em si mesmo o objeto a da álgebra lacaniana, no qual o sujeito vem fracassar, e o que especifica o campo escópico e engendra a satisfação que lhes é própria, é que lá, por razões de estrutura, a queda do sujeito fica sempre despercebida, pois ela se reduz a zero. Na medida em que o olhar, enquanto objeto a, pode vir simbolizar a falta central expressa no fenômeno da castração, e que ele objeto a reduzido, por sua natureza, a uma função puntiforme, evanescente – ele deixa o sujeito na ignorância do que há para além da aparência [...]. (LACAN, 1964/2008, p. 80)

No entanto, há, também, algo de inquietante, de ameaçador nesse objeto se ele não for constantemente “desarmado”. Na medida em que o quadro entra em relação com o desejo, afirma Lacan (1964/2008, p. 109), “o lugar de um anteparo central está sempre marcado, que é justamente aquilo pelo que, diante do quadro, sou elidido como sujeito do plano geometral”. O anteparo (fantasia, quadro, cena, sonho, outro especular, outra cena, tela...) é uma maneira pela qual o sujeito pode domar o olhar, uma operação significante capaz de aplacar tanto o apetite do olho que busca pela Coisa, pelo objeto perdido, quanto o olhar obsceno do Outro, que se dirige a ele de todos os lados. A função do anteparo é barrar o olhar do campo da visão. Trata-se de um véu de representação que recobre o objeto – cortina que vela, mas, como podemos observar nas fotografias de Francesca, também desvela. Em outras palavras, o

91 anteparo, ao fazer mediação entre o sujeito e o olhar, protege o sujeito deste último, velando o objeto que causa o desejo a partir de uma negociação que culmina em uma rendição do olhar. Estaria Francesca burlando essa negociação? Ou a efetua de modo peculiar? Quando não há anteparo, a Coisa se mostra sob a forma de olhares perseguidores, espectros, vozes sem corpo, sussurros... São os fenômenos que observamos na psicose. Nessa estrutura clínica, o objeto não está perdido e retorna no campo da realidade: a tela falha e o olhar aparece no primeiro plano, sem nenhum recobrimento de proteção. Já na neurose, o mecanismo do recalque implica a perda do objeto, por isso, o olhar não possui consistência, substância; não aparece, não pode ser visto. O olho, órgão do aparato sensorial, e o olhar, zona de gozo, funcionam inversamente. O olhar situa-se atrás do objeto percebido, encobrindo sua opacidade e a ausência fundamental de (- φ). Em outras palavras, a fantasia (anteparo) esconde o objeto e impede a castração de aparecer. Conforme nos ensina Lacan:

[...] de todos os objetos nos quais o sujeito pode reconhecer a [sua] dependência [em relação ao registro] do desejo, o olhar se especifica como inapreensível. É por isso que ele é, mais que qualquer outro objeto, desconhecido, e é talvez por essa razão também que o sujeito consegue simbolizar com tanta felicidade seu próprio traço evanescente e punctiforme na ilusão da consciência de ver-se vendo- se, em que o olhar se elide. (LACAN, 1964/2008, p. 86)

Roland Barthes (2015), em seu ensaio A câmara clara, propõe que algumas fotografias são efeito de um processo de dessimbolização do objeto, já que libertam a imagem de qualquer significado profundo e situam-na na superfície enquanto simulacro. Há um elemento, nomeado por Barthes de punctum, que nasce da cena, mas é lançado para fora dela. O punctum de uma foto é esse acaso que, nela, punge o sujeito, mas também o mortifica, o fere. Esse acaso pode ser um detalhe que dentro do quadro se situa em um tipo de extracampo, um ponto cego. Segundo o autor, um extracampo sutil, como se a imagem lançasse o desejo para além daquilo que ela dá a ver. O punctum seria aquele ponto ou mancha em uma fotografia capaz de desestabilizar o enquadramento representativo. Aquilo que rasga a cena, uma fratura na imagem. Essa mancha, intolerável, ao invés de esconder, denota a presença do

92 objeto no campo escópico, tornando aparente o ponto em que o sujeito não é quem olha, mas é olhado. Enquanto o véu é um anteparo que esconde a presença do objeto, a mancha marca a preexistência, ao visto, de um dado-a-ver. Foster (2017), ao abordar o que chama de “realismo traumático” na arte, defende que uma parte da arte se “recusa a antiga diretiva de pacificar o olhar” (FOSTER, 2017, p. 136). E continua: “É como se a arte quisesse que o olhar brilhasse, que o objeto se sustentasse, que o real existisse, em toda a sua glória (ou horror) de seu desejo pulsátil, ou ao menos evocar essa condição sublime” (FOSTER, 2017, p. 136). O autor cita, como exemplo, as obras que produzem uma ilusão capaz de denunciar e quebrar a própria ilusão, como o efeito anamórfico do quadro Os Embaixadores, de Hans Holbein, ou a arte abjeta. Arlindo Machado (2015, p. 130), sobre isso, comenta:

Por mais paradoxal que isso possa parecer, essas duas formas extremas de manejar a câmera conduzem a um mesmo efeito desconstrutivo: a denúncia do ângulo de tomada como mecanismo subterrâneo e “invisível” de instauração do sentido. Só que a primeira o faz através da ênfase gritante, enquanto a segunda obtém o mesmo resultado por meio da negligência e do desprezo mais absolutos.

O objeto, situado normalmente atrás da imagem, objeto que deveria estar velado, é, então, entrevisto como se a moldura de representação não fosse suficiente para contê-lo. Isto é representável? Certamente que não, a menos que seja instituído um modo muito particular de formalização, modo este que estamos buscando apreender com a artista em estudo, que, ao recortar na imagem a borda de sua ausência, não se deixa submeter às formas fetichizadas do imaginário e evoca a face opaca do objeto enquanto resto, dejeto, materialidade sem imagem, desprovido de estrutura de apreensão. Ao sair do campo da objetividade da representação realística, Francesca Woodman penetra no campo da objetalidade, campo que muito interessa à psicanálise. E nos mostra que há algo para além do duplo especular, essa imagem falaciosa, enganadora, que tende sempre a ser completa e perfeita. Aí está o caráter disruptivo e transgressor de sua arte, que é capaz de desestabilizar o enquadramento representativo de modo impreenchível, radicalmente singular e até mesmo brutal, “convocação pungente entre a ameaça e a poesia, a angústia e o prazer” (RIVERA, 2013, p. 186).

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Figura 52: Space2, Providence, Rhode Island (1976)

Fonte: WOODMAN, Francesca. On Being an Angel, Londres: Moderna Museet, 2017, p. 45.

Nas fotografias de Francesca, encontramos uma aparente recusa em se utilizar da arte apenas para pacificar o olhar. Ela cria representações capazes de criticar a própria natureza representacional, de modo a colocá-la em crise, rompê-la radicalmente, em prol de uma presença traumática do sujeito. É no desvelamento do ponto vazio no qual o olhar se constitui como objeto a – que, como ausente, é o que sustenta a imagem exatamente por furtar-se a ela – que a ilusão especular se rompe. “Uma vez que o sujeito tenta acomodar-se a esse olhar”, nos diz Lacan (1964/2008, p. 83), ele se torna “esse objeto puntiforme, esse ponto de ser evanescente, com o qual [...] confunde seu próprio desfalecimento”. Cito Francesca:

Eu estou na fotografia? Eu estou dentro ou fora dela?

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Eu posso ser um fantasma, um animal ou um corpo morto, não apenas uma garota parada em um canto.5

Figura 53: Untitled, New York (1979-1980)

Fonte: WOODMAN, Francesca. On Being an Angel, Londres: Moderna Museet, 2017, p. 167.

Em seu Seminário, livro 7: a ética da psicanálise, Lacan afirma: “É evidentemente por o verdadeiro não ser muito bonito de se ver, que o belo é, senão seu esplendor, pelo menos sua cobertura.” (LACAN, 1959-1960/2008, p. 265). No entrecruzamento entre o visível e o invisível, o objeto a se apresenta em sua face mortal: o real impossível de suportar, essa coisa desconhecida, que não pode ser nomeada e que reduz o sujeito a puro objeto que é. Diante do inominável, da “destruição para além da putrefação”, como diz Lacan (1959-1960/2008 p. 259-260), Francesca produz em suas fotografias um fenômeno estético que, embora provoque inquietação e estranheza, ainda assim, pode ser identificável com a experiência do belo. Faz fratura na imagem, de modo que nos permite entrever esse vazio que nos olha, nos concerne e nos constitui, mas não deixa

5 Disponível em: http://www.artnet.com/artists/francesca-woodman/ (Acesso em: 28/12/2019).

95 de criar anteparo. Recobre o real, transformando horror do despedaçamento do corpo em fotografias que causam fascínio.

Figura 54: Francesca Woodman, Untitled, Providence, Rhode Island, 1975–1978

Fonte: http://media-cache- ak0.pinimg.com/originals/f4/65/6b/f4656b732123061b099da8ea00445dfc.jpg (Acesso em 29 dez 2019)

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CONSIDERAÇÕES FINAIS

“Difícil fotografar o silêncio. Entretanto tentei. Eu conto: [...] Não se ouvia um barulho, ninguém passava entre as casas. Eu estava saindo de uma festa. Eram quase quatro da manhã. Ia o Silêncio pela rua carregando um bêbado. Preparei minha máquina. [...] Fotografei esse carregador. Tive outras visões naquela madrugada. [...] Vi uma lesma pregada na existência mais do que na pedra. Fotografei a existência dela. Vi ainda um azul-perdão no olho de um mendigo. Fotografei o perdão. Olhei uma paisagem velha a desabar sobre uma casa. Fotografei o sobre. Foi difícil fotografar o sobre. (Manoel de Barros, O fotógrafo)

Há sempre um impossível de se ver, algo que está ausente no campo das aparências. Fotografar o silêncio, a existência de um ser, o perdão, o sobre... Seriam estas fotografias do impossível? Como representar com imagens o que não está dado no mundo visível? O poeta, mais uma vez, desbrava o caminho e nos confronta com a ideia de um tipo de arte que não visaria à reprodução estática e nem mesmo estética da realidade.

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Vem se destacando, cada vez mais, uma arte que se caracteriza pela sua atitude questionadora, reflexiva e que visa a experiência. Mesmo que o objeto de arte venha a ser revestido dos mais incontestáveis vestígios de sedução, esta arte não mais se propõe exclusivamente à fruição estética pela via da beleza e da contemplação. Com isso, desvela-se uma verdadeira desconstrução da tradição histórica da representação, a de tentar fazer, por exemplo, de um quadro uma janela para o mundo. Contudo, para atingir esse novo objetivo, a arte precisou desviar-se para o inominável, flertar com o impossível. E cada artista que realiza uma obra que responde a esse projeto, sendo, portanto, disruptiva, inventa meios extremamente particulares e inovadores de produzir seus objetos. Nesta pesquisa, partimos do pressuposto de que a psicanálise nos ajudaria a entender melhor alguns modos de criação que se alinham a essa proposta. Mas teria a psicanálise legitimidade para interrogar a estética? É possível pensarmos uma estética de inspiração psicanalítica? Não se pode negar que o alcance do método psicanalítico supera os limites da clínica. No mundo da Arte, Freud e Lacan se tornaram referências frequentes: lugar comum nas resenhas de exposições, artigos acadêmicos e de crítica. Freud, em 1913, em seu texto “O interesse científico da psicanálise”, afirmou que a psicanálise pode contribuir com o campo da estética e, mais tarde, em 1919, ao abordar o fenômeno que chamou de Unheimliche, enfatizou que os psicanalistas estão impelidos a refletir sobre as modalidades de arte que rompem com os padrões estabelecidos. Contudo, deve-se lembrar que a proposta de trabalhar a relação entre arte e psicanálise não pressupõe a afirmação de uma estética psicanalítica no sentido de fundamentar uma psicanálise aplicada à arte, como um tipo de hermenêutica, mas evidencia que a psicanálise, em seu arcabouço teórico, possui formulações que nos dão subsídios para pensarmos a estética. Nesta pesquisa de Doutorado, nos debruçamos, principalmente, sobre as obras de dois artistas. As fotografias de Nobuyoshi Araki e de Francesca Woodman nos trouxeram indagações a respeito da peculiaridade de suas criações. Ambos se engajaram na criação de modos muito particulares de formalização que atacam de frente as convenções estéticas estabelecidas nos níveis da forma e da temática. A figura humana, cuja tradição clássica a representava como idealizada, feita à semelhança de Deus, foi por eles profanada pela deformação e extrema erotização.

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Mas analisar seus meios de produção artística e suas obras só foi possível após a conceituação teórica a respeito da relação de objeto, realizada no primeiro capítulo, teoria que nos permitiu pensar a representação, a criação do objeto de arte e, também, nos fundamentou para desenvolvimentos posteriores sobre o feminino, o semblante, as concepções psicanalíticas de corpo e o olhar enquanto objeto a. Além disso, entendemos que as obras desses artistas se alinham à estética que vem sendo fortalecida, principalmente desde as vanguardas da década de 1960, de, mais do que agradar aos sentidos, “prover uma investigação fundamental da arte e da realidade” (ROSENBERG, 2013, p. 216). Por isso, se fez necessário situar, no segundo capítulo, os aspectos do que viemos a chamar de Nova Arte, que reatualiza de forma radical a crítica à representação e à figuração que se iniciou com o modernismo Este percurso teórico nos permitiu entender melhor essa arte que rompe com a tradição da representação e o que está em jogo na criação do objeto de arte. Assim, na sequência, nos dedicamos ao estudo das obras de Nobuyoshi Araki e Francesca Woodman. Araki é considerado um dos artistas mais prolíficos do Japão e do mundo (EDINGER, 2019). Sua obra compreende mais de 400 álbuns de fotografias publicados. Nesta tese, optamos por enfatizar suas fotografias de temática sexual, já que estas compreendem a maior parte de sua produção e, também, são as mais conhecidas e divulgadas. O artista fotografa, principalmente, mulheres nuas ou seminuas, na maioria das vezes amarradas e, frequentemente, suspensas por cordas. Entendemos que Araki se utiliza do semblante da suposta mulher masoquista para desnudar a essência do feminino, revelando que há algo de real na própria máscara, aquilo que, para o sujeito, é sem medida. Poderíamos propor que atrás da camuflagem fálica das damas de Nobuyoshi Araki o que encontraríamos seria, talvez, a precariedade das representações do corpo próprio que, como retratado por Francesca Woodman, tende à dissolução? Francesca, com seu savoir-y-faire com a arte, dá forma e estabiliza o impossível, mas não sem criar uma perturbação no campo visual, no quadro da fantasia. Desenha a ausência mesma dos limites, fazendo surgir representações que galgam ruinas, rupturas, descontinuidades. Em suas criações, a artista remodela a imagem do corpo, cujas formas perdem a sua estabilidade, dando a ver uma figuração

99 do corpo em constante transição. Assim, ela, a nosso ver, desvela o momento em que o imaginário falha na sua função de velar a falta – mesmo quando a imagem se propõe encobridora. Tanto Nobuyoshi Araki quanto Francesca Woodman trazem à superfície do fotograma “uma visibilidade completamente nova, não menos falsa, não menos verdadeira que todas as outras” (DIDI-HUBERMAN, 2018, p.123).

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