Governo do Rio Coordenadora Supervisor Técnico OCA LAGE Vice-presidente do Programa das Oficinas Fabio Szwarcwald de Janeiro Presidente Aprofundamento | de Imagem Gráfica Conselho Governador Criação Artística 2014 Marcio Botner Roberto Tavares Adriana de Mello Barreto Luiz Fernando Pezão Vice-Presidente Bibliotecárias Adriana Scorzelli Rattes Coordenador Lisette Lagnado Adriano Estrella Pedrosa Secretaria de do Programa Danyelle Sant’Anna Diretor Aprofundamento | Maria Fernanda Nogueira Antonio Alberto Gouvea Vieira Estado Administrativo Curadoria 2014-15 Olga Alencar Daniel Senise de Cultura e Financeiro Fernando Cocchiarale Carlos Alberto Mendes dos Assistentes de Ensino Artur E. P. Miranda Secretária de Estado Santos Gomes Comissão de Ensino Ana Carolina Santos de Cultura Gerente Administrativo Glória Ferreira Lucas Leuzinger Eduardo Saron Adriana Scorzelli Rattes e Financeiro Eliane Lustosa Secretária de Relações Luiz Ernesto Moraes Assistentes de Rosana Ribeiro Ernesto Neto Institucionais Maria Tornaghi Exposições e Debates Gerente de Eventos Eva Doris Rosental Olga Campista Comissão de Projetos Laara Hügel e Projetos Fernando Marques Oliveira Subsecretário Batman Zavareze Renan Lima Marcus Wagner Guilherme Gonçalves Sabrina Veloso de Planejamento George Kornis Assessora de Luis Eduardo da Costa Carvalho e Gestão Paulo Sergio Duarte Assistente de Eventos Comunicação Luiz Camillo Osorio Mario Cunha Supervisora de Ensino Naldo Turl Rachel Korman Luiz Chrysostomo de Oliveira Filho Selma Fraiman Renato Augusto Zagallo Villela Superintendente Vanessa Rocha Supervisor dos Santos de Artes Secretaria Administrativo Supervisora do Ronaldo Cesar Coelho Eva Doris Rosental Programa Educativo Gisele Oliveira Sergio Bastos Cristina de Pádula Thais Sousa Supervisor Financeiro escola de artes Victoria Moreno Hércules da Costa Souza visuais Supervisora do Serviços Gerais parque lage Núcleo de Arte e Assistente EAV Tecnologia e das Supervisor Administrativo Rua Jardim Botânico, 414 Diretora Oficinas de Imagem Homero Gomes Carmen da Costa Souza Jardim Botânico Claudia Saldanha Rio de Janeiro | RJ gráfica Assistentes Coordenadora Conselheiros Tina Velho Janir Pereira 22461-000 de Ensino Presidente Tel | Fax: 21 3257 1800 Programa de Iraci De Oliveira Tania Queiroz Paulo Albert Weyland Vieira www.eavparquelage.rj.gov.br Capacitação Gerson Freitas Coordenadora de de Mediadores Roberto Nilton Exposições e Debates Maria Tornaghi Assistente de Clarisse Rivera Cristina de Pádula Eletricista Coordenador de Tania Queiroz Marcelo Gonçalves Eventos Assessora de Projetos Vitor Zenezi Especiais Sandra Caleffi ENCONTROS COM ARTISTAS

brígida baltar

cadu Créditos dos Cadernos Organização felipe Tania Queiroz Vanessa Rocha barbosa

Projeto Gráfico, CIP-BRASIL. CATALOGAÇÃO-NA-FONTE Tratamento de imagem SINDICATO NACIONAL DOS EDITORES DE fernanda e Produção Gráfica LIVROS, RJ Dupla Design gomes

Fotografias E74 Adriano Facuri, Cadu, Felipe luiz Escola de Artes Visuais do Parque Lage Felizardo, Luciano Bogado, ernesto Pat Kilgore, Studio Barbosa Cadernos EAV 2012 : encontros com artistas / Escola Ricalde, Wilton Montenegro de Artes Visuais do Parque Lage ; Organização: Tania Queiroz e Vanessa Rocha. Revisão de texto – Rio de Janeiro : EAV, 2014. ricardo Rachel Valença 264 p. : il. ; 13 x 18 cm. – (Cadernos EAV) becker Transcrição iSBN 978-85-64192-18-8 Vanessa Rocha 1. Arte contemporânea - Palestra. 2. Artistas brasileiros. 3. Baltar, Brígida, 1959-. 4. Cadu, 1977-. 5. Barbosa, Felipe, Gravação 1978-. 6. Gomes, Fernanda, 1960-. 7. Ernesto, Luiz, 1955-. Bruno Marcus 8. Becker, Ricardo, 1961-. I. Queiroz, Tania. II. Rocha, TOMBA Records Vanessa. III. Título. IV. Série. impressão Stamppa Gráfica CRB7 6590 / CRB7 0024/14 APRESENTAÇÃO

Os Cadernos EAV: Encontros com Artistas reúnem um impor- Ivens Machado, Nelson Félix, Tunga, , Daniel tante acervo de conversas entre artistas consagrados e alunos do Senise, Eduardo Coimbra, Elizabeth Jobim, e Wal- Programa Fundamentação da Escola de Artes Visuais do Parque tércio Caldas. Lage. Implementado pela EAV em março de 2009, com recursos Nos dois Cadernos de agora podemos conhecer os depoimentos da Secretaria de Estado de Cultura, o programa preparatório com de Brigida Baltar, Cadu, Carlos Vergara, Efrain Almeida, Felipe disciplinas fundamentais para a formação em arte visa oferecer Barbosa, Fernanda Gomes, Iole de Freitas, José Damasceno, Luiz uma iniciação ao aluno. Ernesto, Luiz Aquila e Victor Arruda. Com três professores para cada grupo, o Fundamentação promove, A diversidade dos processos de criação e das experiências resultan- a cada mês, encontros com artistas convidados. tes da atividade profissional de cada artista formam um singular Com o lançamento de mais dois volumes dos Cadernos EAV torna-se conjunto de idéias à respeito da vida e da arte e proporcionam público o resultado desses encontros, realizados em 2011 e 2012, depoimentos de rara riqueza e espontaneidade. entre artistas brasileiros e jovens do programa de ensino. Agradecemos a todos, artistas e professores, que generosamente Nos dois primeiros volumes, de 2009 e 2010, registrou-se os encon- colaboraram com este projeto, revelando parte da sua vivência tros com os artistas Anna Bella Geiger, Carlos Zílio, Ernesto Neto, artística e profissional.

CLAUDIA SALDANHA - Diretora da EAV Parque Lage brígida baltar 10 cadu 54 felipe barbosa 92 fernanda gomes 144 luiz ernesto 202 ricardo becker 230 10 Brígida Baltar

Agradeço ao Parque Lage o convite e queria dizer que, para mim, é bem especial ter uma conversa neste lugar, principalmente porque também comecei a estudar na Escola de Artes Visuais, nos anos 1980 e, talvez com a mesma idade de vocês, estava com algumas inquietações. Então, eu acho que a gente pode aproveitar realmente esse momento para falar com franqueza dessas inquie- tações. Na verdade, elas acompanham todo nosso caminho – até hoje tenho insônias, dúvidas e questionamentos, mas sei que, quando somos estudantes ou ainda estamos iniciando nossas pesquisas artísticas, as pulsões são mais intensas e temos que administrar isso... Eu sempre gosto de começar falando desse início, porque, particularmente, estava aqui estudando arte e ao Presságio, 2012 mesmo tempo fazia uma faculdade de história, já havia iniciado Video still. Exposição O amor do pássaro rebelde a faculdade de arquitetura e experimentado ser atriz. Então, nas Cavalariças da EAV Parque Lage 12 13 CADERNOS EAV BRÍGIDA BALTAR

o meu começo foi bastante conturbado, cheio de opções a fazer, e a mostrados foi uma estante com frascos de vidro que armazenavam pergunta era onde eu iria mergulhar profundamente. Há também goteiras recolhidas. Lá em Cuba me ofereceram uma sala com o momento, esse intervalo em que você já está trabalhando há resíduos de pinturas antigas nas paredes e rastros de goteiras no um tempo com arte e se pergunta: “Isso já é uma obra de arte?” espaço, então eu acabei colocando meu trabalho justamente na ou “Eu me considero uma artista?”. Meu crescimento aconteceu parte mais manchada da parede e pendurei ao lado uma capa de no processo de eliminações e escolhas. Foi uma busca, na ver- chuva transparente. dade, de identidade. E para isso parti da pura experimentação, do uso de materiais variados e tentativas de construção de um Em 1996, desenhei o formato do meu corpo na parede da casa pensamento e de uma obra, para chegar a um contorno com um e fiz a escavação desse molde. Essa ação nunca foi repetida em pouco mais de maturidade no início dos anos 1990. Incorporei uma galeria ou museu, porque o sentido acontecia para mim, no situações biográficas no trabalho e isso começou a acontecer espaço íntimo. Sem espectadores, a obra existe como fotografia por meio de pequenas ações que eu fazia usando o meu próprio e vídeo. Chamei de Abrigo. Ricardo Basbaum escreveu um texto corpo e, principalmente, a casa onde eu vivia, no Rio de Janeiro. que considero importante, em que ele fez umas colocações: “Você Por exemplo, eu fazia registros fotográficos de situações bem se situa num lugar extraordinário, que é numa parede onde você cotidianas, como tomar banho ou fazer um corte de cabelo, e tem uma visão particular incomum, você está num lugar que é então, finalmente, a casa passou a ser meio e suporte do próprio quase uma impossibilidade. Então, amplia esse lugar da visão.” trabalho. Mais tarde, quando comecei a participar de algumas exposições importantes, institucionais, foi bom ver meu trabalho A ideia era usar o corpo como estrutura e a casa como extensão situado e relacionado à geração 90. do próprio corpo. Eu gosto de pensar como se o corpo fosse uma continuação daqueles tijolos, o corpo como fortaleza, um corpo Estas são umas imagens da Bienal de Havana1 [Brígida inicia a que sustenta uma parede. projeção], de que participei em 1994, e pela primeira vez apre- sentei as ações que aconteciam naquela casa. Um dos trabalhos Sou árvore2 é uma fotoação, também intimista, feita em cima do sofá. 14 15 CADERNOS EAV BRÍGIDA BALTAR

“A ideia era usar o corpo Este ano, dando aula aqui na EAV Parque Lage, ao lado de Mar- celo Campos e Efrain Almeida, estamos justamente falando sobre como estrutura e a casa a presença do corpo na arte contemporânea. A ideia do corpo como memória e como identidade foi uma vertente que interessou os artis- como extensão do próprio tas dos anos 1990 e, indo mais para trás, os artistas dos anos 1970. A Body Art aconteceu com suas experiências mais políticas e radicais. corpo. Eu gosto de pensar Silhuetas3 foi realizada em 1996. Agora o corpo se apresenta em como se o corpo fosse uma instalação no chão, em sete formatos obtidos com madeira, pedra, tijolo, casca de tinta, saibro, poeira e pedaços de reboco. uma continuação daqueles Todos resíduos da casa em que eu vivia. tijolos, o corpo como Aqui é a Torre4 [Brígida prossegue mostrando imagens], um trabalho de construção com tijolos – a criação de um espaço de reflexão. fortaleza, um corpo que Todo meu processo, então, na época, podia se resumir em cole- sustenta uma parede.” cionar e selecionar materiais. Um vidro conteve lágrimas,5 que eu guardava em um pequeno buraco na parede.

Ainda falando dos anos de 1990, incorporei situações como abrir uma janela.6 Com a participação do meu filho Tiago, nós abrimos uma janela na parede. Nesse momento, a relação entre vida e arte ficou entrelaçada. 16 17 CADERNOS EAV BRÍGIDA BALTAR

É interessante quando a gente tem a oportunidade de falar sobre mas o sentido que essa paisagem pode transmitir – a atmosfera nossos processos, porque iniciamos novas reflexões e percebemos emocional, afetiva. O drama me interessa, o que a neblina produz as transformações da obra no percurso. Eu acho que o meu trabalho como simbólico. Percebo meu trabalho atravessado pelo simbólico, começou inicialmente existencial, realista, com algo de biográfico – são presente também na exposição atual das Cavalariças, O amor do fotos simples, cruas, em que uso roupas cotidianas. Mais tarde, a obra pássaro rebelde. se volta para uma fabulação – meu trabalho se modificou no tempo. Continuando a falar sobre as coletas, mantive nas fotografias a pre- Um trabalho nunca é tão cronológico ou linear. Ao mesmo tempo sença de ônibus passando, placas de trânsito, o registro de alguns que eu fazia ações domésticas, comecei a realizá-las também em um elementos urbanos nessa ação. Em 2001 ganhei o Prêmio Rioarte e sítio fora do Rio de Janeiro. Eu levava para lá algumas coisas que pude fazer novos filmes, usando 16mm, construí roupas especiais e também estavam dentro de uma atmosfera intimista – colocava, vidros orgânicos e fiz um disco de vinil. Na verdade, eu também estava por exemplo, móveis ao ar livre e cobria de terra, e fazia algumas começando a expor mais e, quando apresentava os vídeos projeta- experiências na natureza. Foi quando comecei a coletar orvalho. dos, sentia a necessidade de uma atmosfera de som, por exemplo. Meu filho também participou dessa experiência. Na verdade, acho Então, produzi o disco e apresentei o projeto Coletas sempre com que as primeiras coletas de goteiras me levaram, também, para as uma vitrola – foi assim no Agora/Capacete7 em 2001, e mais tarde, ações na natureza. em 2008, na Caixa Cultural de Brasília.8 Neste último espaço, fiz uma inversão: o vídeo foi projetado menor, e havia sete vitrolas no Coletar neblina foi um projeto que desenvolvi por quase dez anos. espaço – uma orquestra de vitrolas. O som foi retirado das próprias Ao mesmo tempo, era um trabalho com potência de imagem, mas, experiências e recriado digitalmente – foi mesmo uma experiência para mim, principalmente, era uma experiência sensorial impor- particular sonora. Não tão particular, pois fiz com a parceria do Phil. tante. Então, eu repetia essa vivência, geralmente nas serras de Petrópolis, Teresópolis, e ficava lá, pelas manhãs, naquela umidade. Um acontecimento bom nessa exposição (com curadoria da Luisa E posso sentir que o mais interessante para mim não é a paisagem, Duarte e Marisa Flórido) foi ter na sala da frente a obra de Paulo 18 19 CADERNOS EAV BRÍGIDA BALTAR

Vivacqua – também com uma instalação sonora, relacionada ao Este, por exemplo,11 é um trabalho mais inicial com o tijolo – eu deserto. Então, a gente criou essa relação da umidade e da aridez, usava o próprio tijolo para construir objetos, desenhos, esculturas tudo por meio da sonoridade. pequenas, e neste caso essa é uma escultura com tijolo maciço. Mais tarde12 produzi uma série de tijolos bem pequenos, a partir do Essa é uma imagem de um dos vidros coletores9 [Brígida mostra a tijolo em pó e cola. Isso se tornou um projeto: usar o pó até o final imagem no telão]. A foto é de 2001,10 bem diferente daquela primeira e o projeto termina. Eu gosto desta ideia – eu saí da casa levando imagem que eu mostrei coletando orvalho com o meu filho em 1994, a casa. Em vários galões. Uma casa móvel, que não se fixa e que vai quer dizer, outra atmosfera. Todas essas diferenças nos levam a uma sendo transformada. aceitação do nosso próprio percurso. Hoje em dia, tenho respeito ao olhar algumas obras que eu não faria de novo daquela forma, Caixa cobogó é um trabalho que eu venho fazendo, também a par- mas que foram feitas, acreditando que era o melhor. No caso das tir de moldes de silicone, pó de tijolo e cola. Sem a caixa o título é coletas, minhas prediletas são as primeiras ações, realizadas nos 90. Renda cobogó.

Depois de realizar as Coletas, comecei a ter mais convites para Em 2010,13 fiz sete montanhas do Rio de Janeiro com pó de tijolo e as exposições e observava que o trabalho inicial que eu tinha feito na apresentei só uma vez na Bienal de Denver. Quando as montanhas casa não era conhecido. Senti necessidade de voltar a ele. Eu tenho voltaram de viagem, chegaram brancas – eu tinha misturado cola um processo de avanço e retorno a um trabalho. Às vezes estou com mineral e resina, que reagiram. Estou refazendo a obra sem usar um trabalho novo e daqui a pouco volto para um trabalho que foi resina, apenas barro e pó de tijolo da casa, um intercâmbio de terras. iniciado cinco anos atrás, quando sinto que seria bom potencializá- -lo. Coincidiu que, em torno de 2004, eu já estava saindo daquela Utopias e Devaneios14 são duas esculturas em formato de livros, casa onde fiz todas as experiências iniciais e sentia que não tinha estas sim em pó de tijolo e resina. aprofundado o suficiente, como gostaria. Então, ao sair, levei vários materiais de lá e até hoje continuo trabalhando com eles. Vou agora apresentar algumas imagens de instalações e exposições 20 21 CADERNOS EAV BRÍGIDA BALTAR

de que participei. É bom para vocês observarem a obra no espaço. céu entre paredes,19 a narrativa da experiência de estar subindo as Foi na Fundação Eva Klabin que comecei a trabalhar com máscara paredes da casa para recolher tijolos, através dos vãos deixados, de papel e pó de tijolo, deixando o pó ficar solto no espaço, podendo que me serviram de escada, e então eu podia quase escalar. E, por ser desmanchado no final. Então, se tornou uma obra efêmera e estar tão próxima à parede, eu já não via casa, mas grutas, cavernas lá15 optei por fazer a reprodução do desenho do papel de parede de e novas paisagens. Na última sala fiz mais uma vez um desenho no uma das salas da FEK e sobre um móvel instalei o brocado. Repeti chão com pó. a ação em um canto da sala principal, no chão. Passagem secreta16 é uma parede de minitijolos, montada em uma porta de correr. Em Buenos Aires,20 na Galeria 713, também mostrei o piso bro- O vão da porta ficou mais estreito para a passagem das pessoas, cado e dessa vez reproduzi o mesmo desenho do piso em azulejo provocando uma sensação de impedimento, e houve um sentido hidráulico da própria galeria. dúbio – não era claro se a porta iria correr. Foi bom ver a relação da arte contemporânea em um espaço como a Fundação Eva Klabin, Vou mostrar mais uma exposição,21 que aconteceu no firstsite, na que já contém sua própria coleção de arte. Inglaterra. Eu queria ter quebrado as paredes e colocado meus tijolos dentro dos buracos, já tinha feito essa experiência no Museu Em 2007,17 fiz a exposição individualPó de casa, na Galeria Nara no Espírito Santo, e a curadora agora estava muito animada para Roesler, em que apresentei desenhos. Foi quando produzi as mini- eu repetir o mesmo lá na Inglaterra, mas como o firstsite aconte- paredes e o Chão pela primeira vez. E mostrei o Canto brocado, logo cia em uma casa antiga e tombada, não permitiram que eu fizesse após ter apresentado na FEK. o projeto. E optamos, eu e a curadora, Annabel Lucas, por uma nova experiência,22 que me deixou entusiasmada – e consistiu em Em 2010,18 Moacir dos Anjos me convidou a fazer duas instalações preencher todos os espaços do chão com pó de tijolo. O chão era na Fundação , em Recife. Um dos trabalhos foi de madeira, bem antigo, e o resultado foi chegar à invisibilidade, a criação de paisagens só usando o pó de tijolo, no chão. No final você entrava no espaço e não via nada. Havia uma sutileza que foi da exposição, eu recolhia o pó. Apresentei também o vídeo Um sendo percebida devagar. Foi no firstsite que desenhei a Floresta 22 23 CADERNOS EAV BRÍGIDA BALTAR

vermelha,23 pela primeira vez – um desenho feito com o efêmero nas roupas infantis – e me fotografei usando esse pano como se pó, diretamente na parede de outra sala. Mais tarde continuei a fossem extensões do corpo, como favos. Minha casa tinha muita desenhá-la em outras exposições, diferentes em escala e intensi- madeira, e trabalhei com a ideia dos casulos nas árvores. Levei a dade. Trabalhar com esta efemeridade traz uma sensação de um experiência para a natureza. Os desenhos foram também inspi- desaparecimento, que eu acho que de certa forma se relaciona radores. Desenhos como uma renda, que é o favo; em alguns, usei com a neblina. O que ajudou a montagem sutil do firstsite foi o fato carimbos, sempre com palavras ligadas ao universo das abelhas. Em de a instituição já ser uma construção de tijolos. Em Colchester, Favo imbuia,25 o desenho do favo aparece na escavação da madeira. a cidade é toda de tijolos aparentes. Isso construiu um pouco de Fiz um vídeo26 para a Bienal, em que o mel desce pelas escadas, bro- mimetismo com meu trabalho e criou uma relação interessante. tando do corpo, da casa. É a partir daí que o trabalho vai ficando cada Na janela da casa, que dava para um jardim tipicamente inglês, vez mais ligado à fábula, entrando no mundo das metamorfoses. instalei as borboletas – todas na parede pelo lado de fora. Assim, você podia observá-las do jardim e, com um pouco de dificuldade, Maria Farinha Ghost Crab27 é sobre a personificação do caranguejo da sala de exposição. fantasma. Convidei a atriz Lorena da Silva para ser esse persona- gem, o caranguejo de areia. Filmamos28 na Ilha Grande em 16mm. Ainda relacionada à casa, aconteceu a obra Casa de abelha.24 Foi Ela corria, se escondia, cavava, enterrava a cabeça, em ritmo veloz. um trabalho que eu fiz em 2002 para a Bienal de São Paulo, que A Maria Farinha tem essa agitação, e ela usava fones de ouvido esse ano tinha como tema cidades. Como meu interesse era mais em formato de conchas. Mais tarde percebi que, na verdade, eu intimista, eu não conseguia imaginar como iria enfocar algo urbano. também estava trabalhando o conceito casa, porque o caranguejo E decidi continuar dentro da casa, entrelaçando a minha e a das está sempre indo para a toca. O nome, caranguejo fantasma, eu abelhas. A abelha é um inseto social e tem essa tarefa de construir não inventei, ele é conhecido como caranguejo fantasma, porque a própria casa e o próprio alimento simultaneamente. E o mel traz se confunde com a areia, pela cor, e está sempre escapando. Gostei associações entre doçura e afetividade. Então, em um pano, fiz uma de fazer um trabalho mais fantasmático e em um lugar muito solar. espécie de bordado, em ponto “casa de abelha” – geralmente usado Fazia sol intenso na Ilha durante as gravações. Eu tinha também, 24 25 CADERNOS EAV BRÍGIDA BALTAR

“Eu acho que o meu trabalho ao mesmo tempo, silêncio e uma música bem fantasmagórica que acompanhava o filme. Esse filme foi feito em 2004. começou inicialmente Agora vou dar um salto para meus projetos recentes. A exposição existencial, realista, com nas Cavalariças se chama O amor do pássaro rebelde29 e, basica- mente, uma cantora lírica encena duas árias da Carmen de Bizet. algo de biográfico - são fotos Ela canta o amor e a morte. Há uma inspiração em Carmen e Bezan- zoni, mas as histórias me interessam menos do que as atmosferas simples, cruas, onde uso criadas. Tudo aconteceu quando eu comecei a trabalhar com voos. Em 2011 trabalhei na exposição Voar.30 Eu queria voos, mas ao roupas cotidianas. Mais tarde, mesmo tempo as quedas e as vertigens. Então, fiz31 esculturas que tinham penas ou traziam alguma metamorfose, de ser híbrido. E a obra se volta para uma usei massinha mesmo, massas de porcelana, aquelas que vão ao forno e são coloridas.32 fabulação - meu trabalho se Esse trabalho,33 é um anfiteatro em cima de um abajur. O teatro modificou no tempo.” começou a me interessar. O lugar das invenções, o palco das magias.

Os cavalos do carrossel são alados.34 Eu pensava no mito da Aurora. A mitologia é essa: ela sobe com os seus cavalos cor-de-rosa aos céus, todas as manhãs, trazendo o amanhecer. Ela, a deusa Aurora. E o nome dos cavalos, um é Claridade e o outro é Brilho, que é o título da obra. 26 27 CADERNOS EAV BRÍGIDA BALTAR

Fazer projetos sobre voos começou com uma vontade de tra- E termino minha apresentação, feliz com a presença de vocês, com balhar com o meu irmão, que é engenheiro e responsável pela um trecho do Voar.39 construção de aparelhos circenses, então ele é sempre convi- dado para espetáculos de teatro ou dança, pois sabe justamente Aluno: Quando e como o seu trabalho começou a ter como fazer a pessoa voar, alto, com segurança. E eu comecei todo algum reconhecimento? esse projeto me reunindo com ele, tentando criar umas ideias de máquinas para voar. Mas a ideia de construir uma máquina de Tive um processo de crescimento bem gradativo. Lembro de ten- verdade, que chegou a ser cogitada, acabou não existindo. E que tar mostrar meu trabalho nos Salões de arte. Nos anos 1980, havia, bom, também, que não existiu, porque logo entendi que o mais entre outros, o Salão Nacional, que era bem importante – todo ano importante para mim é o teor simbólico dos voos. Os voos que eu mandava imagens para o Salão Nacional, mas nunca consegui ser você pode dar sem sair do lugar. E fiquei satisfeita também com selecionada. Em 1994, tive essa oportunidade de ir para a Bienal de a dimensão das maquetes. Esta recebeu o título A maquina para Havana, que foi a minha primeira exposição fora do Brasil, e em 1997 voar ou A vertigem do pavão.35 ganhei o prêmio do Salão da Bahia. Eu posso dizer que a partir de 2000 é que tive algum reconhecimento, principalmente por convites Na Escola de Música,36 fiz um grupo de fotografias sobre um teatro de de exposições fora do Brasil. Em 2002 participei da Bienal de São sombras projetadas no papel de parede. Na mesma escola realizei o Paulo. O Prêmio Rioarte, em 2001, foi importante, pois culminou com filmeVoar . Convidei a maestrina Valéria Matos para reger um coro a exposição Coletas no Agora/Capacete. O Agora/Capacete era um de 16 vozes. A composição da música foi do Tim Rescala. Eu queria organismo organizado por artistas, pelo Helmut Batista, o Eduardo fazer um coro de músicas sobre voos e que incorporassem as noções Coimbra, o Ricardo Basbaum. Foi um lugar perfeito para apresentar o de vertigem e de queda. Eu apresento o filme sem os cantores, a meu trabalho, porque acima de tudo éramos amigos da mesma geração. maestrina rege um coro invisível. Trabalhar na Escola de Música da UFRJ foi bom. Entre as fotografias, há Autorretrato com asas de harpa Alexandre Dacosta: Existia videoarte, da década de 1980 pra sobre Osíris, o inventor da flauta37 e Dançando com as sete notas.38 cá, com o vídeo se tornando mais maleável, menos pesado. 28 29 CADERNOS EAV BRÍGIDA BALTAR

Mas se fazia mais vídeo mesmo como projeção, não como um A. D.: Até porque os galeristas investiram nisso, na pintura. material para acompanhar uma instalação, um trabalho, uma escultura, né? E algumas pessoas, alguns artistas ficaram um pouco sentindo a necessidade de se organizar, porque não tinham galerias – não Você nos anos 1980 fez muitos trabalhos com vídeo, mas acho que havia tantas como hoje e nem muito movimento institucional. você tem razão, a apresentação do vídeo se tornou mais incorporada Lembro que a obra do Hélio Oiticica ficava em um apartamento... à instalação, definindo o próprio espaço da obra. A. D.: É, eu fui lá com aquele grupo, A Moreninha.... A. D.: Se bem que, no final da década de 70, isso é que eu queria lembrar, o José Roberto Aguilar, o Otavio Donasci, que era Realmente aconteciam os movimentos dos artistas, e teve A um cara que fazia umas instalações com umas caras enormes, Moreninha, e toda a nossa formação era quase entre amigos. se vestia de negro, botava umas televisões em cima da cabeça Mais tarde a gente também se organizou num grupo chamado e ficavam umas figuras estranhíssimas... Enfim, o vídeo já Visorama. estava vindo com várias funções. Na década de 80 é que teve um pouco menos, né? Mas, realmente, não era tão usado. A. D.: A minha pergunta ia ser essa...

Eu me lembro das performances do Otavio Donasci... Na verdade, Pode perguntar. na década de 1980 não havia tanta informação sobre os momentos anteriores, pelo menos eu tinha essa sensação. Ou eu era muito A. D.: Não, desenvolve! jovem e estava ainda iniciando meus conhecimentos, pode ser. Como entrei para o Parque Lage a primeira vez em 1982, havia um Na verdade a gente se reunia – João Modé, Eduardo Coimbra, Carla movimento bem grande, que foi a pré-Geração 80, e tudo girava Guagliardi, Valeska Soares (que hoje mora em Nova Iorque), Analu em torno da volta da pintura. Cunha, Ricardo Basbaum, Rodrigo Cardoso, Márcia X e Ricardo 30 31 CADERNOS EAV BRÍGIDA BALTAR

Ventura – para estudar, organizar imagens de arte contemporânea, Edu Coimbra, nossos trabalhos ali, sendo projetados junto com convidar curadores, críticos para conversar... outros artistas. Era uma maneira de nos entendermos inseridos em uma óptica contemporânea e internacional. Uma vez recebe- A. D.: Vocês fizeram revista, né? mos a Barbara Kruger, aí a levamos na cachoeira das Paineiras, depois fomos almoçar num restaurante. Lembro que a Analu Cunha A revista Item veio depois, organizada pelo Ricardo Basbaum e pelo pegou os guardanapos de todos, inclusive o da Barbara, e fez um Eduardo Coimbra. Eles eram os editores e o Modé desenvolvia o trabalho. Mais tarde encontramos com o Mark Dion e o galerista projeto gráfico. inglês Nicholas Longsdail.

A. D.: Era um grupo de estudos. A. D.: E foi na década de 90, em que o objeto, uma volta até um pouco à arte conceitual, que começou a Era um grupo para refletir sobre arte contemporânea, entender vigorar mais do que em 80, estava muito preso o nosso momento, o circuito de arte, o papel das instituições, das pictoricamente, a pintura ali. Vou aproveitar agora e galerias, o panorama internacional. Isso ia ajudando a formar nosso passar esse microfone adiante e fazer umas perguntas. pensamento, nossas escolhas individuais. Era nossa formação Uma é sobre o Visorama: eu não participei, mas mesmo, como artistas. acompanhei de longe, e gostaria que você falasse mais um pouco. A. D.: E isso quando não existia internet, o que é um dado importante. Hoje em dia existem muitos coletivos. Na época teve A Moreninha e o Visorama, quase não existiam... Sim, não existia a internet. E é por isso que organizamos um banco de imagens, todo em slides, com imagens nossas e de artis- A. D.: O grupo Seis Mãos... Eu sempre gostei de trabalhar em tas do mundo todo. Eram bacanas aquelas projeções na casa do grupo, até por causa do teatro. 32 33 CADERNOS EAV BRÍGIDA BALTAR

E, eu acho que você marcou muito os anos 1980, com essas atuações. estado físico. Quando expus na Suíça, na Kunsthaus Baselland, tive O Seis Mãos era incrível. a oportunidade de conhecer um crítico que me deu um livro de um artista alemão chamado Gerard... que também fazia umas coletas, de A. D.: A minha pergunta é exatamente resgatando um pouco nuvens. E aí entramos em contato e nos correspondemos durante o teatro. Você disse que chegou a ser atriz, até trabalhamos dois anos. Fui percebendo que a obra do Gerard diferia da minha, era juntos. Você falou do drama, falou muito a palavra drama, bem científica – ele colhia nuvens em vidros e catalogava as nuvens, como o drama está no seu trabalho. Eu acho isso muito por exemplo, pelo grau de umidade. Para mim, colher névoa é pura interessante, vendo essa exposição que está aqui e a do Oi fantasia. Os vidros coletores, incrivelmente, funcionaram, para Futuro. Quer dizer, claro, tem essa coisa do drama pessoal, minha surpresa, mas eu não fiz nenhuma pesquisa mais profunda, que a gente pode até resgatar uma memória emotiva, que se científica para isso. Então, o que sempre me interessou no projeto fala muito em teatro, que é você resgatar uma memória sua da neblina foi muito mais o que ela traz de atmosfera – é você olhar para colocar no personagem e sentir uma emoção que seria uma paisagem que pode estar velada, você pode se aproximar do do personagem, mas que é sua também. Você já falou muito invisível em contraste com as superexposições da atualidade. A dessa coisa do psicológico que você joga no seu trabalho, neblina, uma vez o Marcelo Campos disse, também é uma parede. e eu queria que você falasse um pouco se essa experiência do teatro ainda fica muito em você para você fazer esses A. D.: Sempre se abrigando, tem um abrigo aí. trabalhos referenciais a um drama ou não, se é uma coisa puramente poética, mesmo. Tem uma coisa que passa por aí, sim. E eu acho que a coisa do drama... Essa exposição que está aqui no Parque Lage, eu trabalhei Sim, a natureza psíquica do trabalho me interessa. Ou emocional. com uma narrativa, com uma história. Embora eu tenha trabalhado Poderia se perceber meu trabalho como uma pesquisa de elementos com a Carmen de Bizet, me interessa menos a história da Carmen, e de certa maneira é: o tijolo é pedra ou terra, a neblina é ar e umi- da mesma maneira que eu trabalhei com a memória desta casa, mas dade. Mas afirmo que o que move este trabalho da neblina não é o seu para falar de outras questões. Eu não quis fazer um documentário. 34 35 CADERNOS EAV BRÍGIDA BALTAR

Na verdade, são duas encenações muito claras, uma fala de morte e a outra de amor, e elas trazem essa generalização (dramática) que no fundo é o que mais se aproxima do meu interesse mesmo. Ao mesmo tempo, construí três pequenos teatros de madeira para apresentar as óperas. É também trazer o espetáculo para uma visão intimista. Não sei se eu te respondi.

A. D.: Respondeu. Você fez uma desvinculação do lado atriz, também, no sentido que agora você chama atores...

É, por exemplo, na escola de música, mais uma vez, fiz umas expe- riências me fotografando. Eu chamei de Teatro de sombras, eu usei as paredes lá da escola de música, eu fiz uma série de fotografias das sombras projetadas em posições de voos e quedas... Então, mais uma vez, minha imagem, mesmo em sombra, foi parte da obra. Agora, não há mais nenhuma intenção biográfica. No caso do filme Voar, foi um convite para a cantora lírica Carla Odorizzi. São atores ou cantores convidados para realizar uma performance.

A. D.: E tem uns outros atores pelo Parque...

Tem outros personagens, não atores profissionais necessariamente. Habanera, 2012 Convidei amigos, pessoas de outras áreas, para este trabalho. No Maquetes de madeira e vídeo Foto: Wilton Montenegro 36 37 CADERNOS EAV BRÍGIDA BALTAR

filme, eles atuam nesse lugar da fábula. São personagens que não novas moldagens. Eu trabalho com intuição; para falar a verdade, têm história – são como fantasmas que saíram dessas óperas, des- acho que intuição é uma coisa boa, e desejo. Então, o que move é sas histórias, de uma memória talvez, e que vivem nesse lugar da isso, é a sua vontade. E as suas escolhas é que vão formando você. metamorfose – então, ao mesmo tempo ele é um cavaleiro e um Há muitos caminhos e possibilidades, não vai dar tempo de desen- cavalo. São metade personagem de ópera, metade natureza. Tem volver tudo o que gostaria. Eu acho que o caminho do artista é um a personagem com cabelos vermelhos e gola rufo, ela é quase um caminho de escolhas, que não terminam, há sempre um confronto mico-leão-dourado, a roupa tem pelos. com o que você já realizou, com o que você ainda pode realizar.

A. D.: Interessante porque a fábula carrega drama, também, Aluno: Você falou em intuição agora, então eu queria saber drama e encenação, o teatral. Essa palavra fábula é muito boa. como é que a tecnologia, e essa coisa do slide lá dos anos 80, que você comentou, como é que isso influencia no seu Aluna: Você trabalhou durante muito tempo com um material, processo criativo, na sua intuição, enfim, na construção da com pó de tijolo, com tijolo. E eu sou atriz, a gente treina sua obra. Você falou em pesquisa: hoje em dia você vai no muito, nós, atores. E eu fico pensando como me reinventar Google e descobre tudo sobre uma pessoa. O tempo de ainda em mim, sabe? E como você conseguiu transformar maturação da ideia, na verdade, de você ir descobrindo as esse material e ficar com ele tanto tempo. E eu queria saber informações, tem uma diferença sobre esse processo criativo como continuar com isso, porque é muito fácil largar, né? agora e como isso influencia?

Eu acho que é uma necessidade continuar, é como afirmar um Como é hoje em relação ao que foi? Bom, no início tinha, real- território, para você mesma. É a consciência de que é preciso mente, menos acesso à informação. Aconteceu e acontece essa mergulhar mais. É o tempo também de potencializar uma obra. revolução da tecnologia e o mundo ficou diferente, mais rápido. No caso da casa, eu senti que isso poderia se tornar um projeto: Mas, por outro lado, não dá tempo de ouvir todas as músicas, de retirar da casa, a casa se tornar um pó e a partir daí seguir com ler todos os livros, de absorver todas as informações disponíveis. 38 39 CADERNOS EAV BRÍGIDA BALTAR

O importante é seguir, como disse, suas vontades. Elas guiam. E Aluno: Talvez você já esteja começando a responder à minha isso é confortante – saber que, diante de tanta história, você não pergunta, no final agora dessa última, porque eu ia perguntar precisa conhecer tudo. Mas eu não sei se é exatamente isso que como se deu esse atravessamento entre os materiais, as você quer perguntar, você falou de tecnologia... ideias que se atravessam de um material para o outro, a conexão entre essas mídias que você explora. Tem a ver com Aluno: Na verdade, quando você tem muita opção, era isso a tecnologia, mas, enfim, queria que você falasse sobre isso. que eu queria saber mesmo. Porque você é muito detalhista nas suas obras, você é muito pontual, consegue pegar um Quando você é um artista que trabalha com um material só, com tema e destrinchar ao longo do tempo. O seu trabalho com o tempo você vai ficando muito bom no uso daquele material. Por pó de tijolo é muito bom. Você tem uma coisa mesmo de exemplo, se você é um artista que trabalha com pintura, você vai caminho, e hoje, com a tecnologia, as coisas ficam muito entendendo cada vez mais como preparar a tela, como misturar bem soltas, né? Você quer abraçar tudo, quer ler tudo, quer ver as tintas, etc. No meu caso, o único material que conheço com mais tudo, você até começou a palestra falando disso, né? De profundidade é o tijolo. Por isso, às vezes, quando penso em uma obra ver várias coisas e de estar sob todos os estímulos e ter que que precise do uso de outro material cuja técnica eu desconheça, escolher aquele que mais te interessa. posso me juntar a outros profissionais. Para oTeatro de sombras, fiz a maquete junto com a Beth, que é uma ótima maquetista. Para minha É verdade, eu acho que isso é um assunto no mundo, e não tem última exposição na Galeria Nara Roesler, apresentei uma escultura como fugir de mergulhar nessa fragmentação... Estudar ajuda bas- em bronze que foi produzida em uma fundição. Tive que trabalhar tante. Durante dez anos eu frequentei um grupo de filosofia, por junto com um fundidor de bronze, porque é uma técnica muito exemplo, em que a gente falava sobre tudo relacionado ao mundo específica, você tem que trabalhar no fogo para derreter o metal. contemporâneo. Isso me ajudou a entender um monte de coisas. Eu acho que existe a ansiedade, mas o tempo vai azeitando nossas Aluno: Em relação à problematização do tempo, por procuras, mesmo que elas sejam assumidamente caóticas. exemplo, você usa uma 16mm na Ilha Grande e você usa 40 41 CADERNOS EAV BRÍGIDA BALTAR

também uma Full HD. Então, eu queria saber como “Eu trabalho com é que você escolhe. intuição, para falar E usei o vinil numa época em que ninguém mais estava falando em vinil. E isso também passa por essa coisa muito orgânica do que se esteja vivendo no momento: eu tinha ido para a Alemanha a verdade, acho que e, quando eu visitava as pessoas lá, todo mundo escutava disco de vinil e tinha vitrola. E no Brasil você só via aqueles discos no meio intuição é uma coisa da rua sendo vendidos a dez centavos. Fiquei animada para fazer um. E fui fazer um filme em 16mm também. Mas não estava levan- tando nenhum pensamento à antitecnologia, na verdade, eu estava boa, e desejo. Então, perseguindo uma imagem que me interessava, que é analógica. Eu me formei com analogia, o meu portfólio nos anos 1990 era todo em slides e eu fotografava com uma Pentax analógica – todas as o que move é isso, é a fotos da neblina foram feitas com essa câmera. A entrada do mundo digital foi decepcionante para mim, porque o que eu via não tinha sua vontade. E as suas qualidade. E isso já mudou. Há câmeras de vídeo que se aproximam da tradicional imagem do cinema, da película. Eu sou da geração escolhas é que vão que viveu essa transformação – e meu trabalho traz essa mistura. A Tacita Dean só faz vídeos em 16mm, só projeta em 16mm ou 35, ela é totalmente ligada ao analógico e é uma questão de posiciona- formando você.” mento dela no mundo. Ela filmou a fábrica da Kodak na Alemanha, 42 43 CADERNOS EAV BRÍGIDA BALTAR

quando ameaçada de fechar. Ela filma todos os mecanismos do a morte, mais diretamente, porque existiam as catacumbas, onde analógico na Kodak. É bem interessante e nostálgico. No início dos as pessoas eram enterradas na parede. As leituras são do mundo anos 2000, quando eu estava apresentando a neblina com vitrola, também. eu adorava também esse lugar de tecnologia low, digamos assim, com o uso de muitos fios aparentes no espaço. É bacana, fica tudo Aluno: Tive a oportunidade de ir ali na sua exposição sobre em um tom mais artesanal. a Gabriela e achei que tem muito a ver com o que você vem trabalhando ao longo da sua vida, em cima dessa Aluno: Quando eu vi o seu trabalho, não esse coisa do pó do tijolo. E até a estrutura do próprio local especificamente, mas alguns outros, eu acabei pensando em que você montou a exposição tem muito a ver com em Manoel de Barros, e depois eu acabei lendo algumas essa questão do pássaro, não sei se você reparou. Mas a coisas, algumas pessoas também fazendo essa relação minha pergunta é sobre a validação do trabalho em si. e falando algumas coisas. E eu queria saber de você se Por exemplo, quando você se apropria de uma outra forma isso existe de fato, se você pensa na obra dele em algum de trabalhar: “Ah! Vou construir um lustre ou vou construir sentido e se te incomoda que façam essa relação. uma maquete”, como fica essa questão da construção do objeto? Por exemplo, do tijolo, eu entendo que seja um Não, não me incomoda. Essa relação foi feita também por uma pouco diferente esse conceito de você desconstruir a casa curadora de Florianópolis, mais jovem. Ela me mandou refe- para reconstruir e a coisa de construir um objeto. rências dele pelo facebook. Inclusive eu acho que as leituras do nosso trabalho, a gente não tem o controle. Quando você faz um São atitudes diferentes. No caso do tijolo, tem a desmaterialização trabalho, e você tem todas as suas razões internas para fazer, esse de um objeto já existente para se transformar em outro. Nas últimas trabalho está no mundo. Por exemplo, quando realizei o Abrigo, exposições Voar, na Oi Futuro, e O amor do pássaro rebelde, aqui eu pensava na força de sustentar uma parede, o corpo como tijolo, nas Cavalariças, existe mais o processo clássico de construção de essa era a minha intenção, mas para algumas havia a relação com uma escultura, é um outro tipo de relação. 44 45 CADERNOS EAV BRÍGIDA BALTAR

Aluno: Mas você é aberta a esse tipo de relação nova É possível... É como voltar para casa. Você falou em pouso e impulso, ou sempre tenta buscar um pouco das suas experiências eu acho que são sempre as duas coisas. Porque sempre quando adquiridas em outros trabalhos? retorno há também os pontos zero de partida. Desenhar para mim é sempre um lugar de pouso talvez. Eu sempre me coloco livre diante de cada novo projeto. Sempre falo para os meus alunos que um pouco de esquecimento é bom. Aluno: O seu trabalho começou nessas experiências com Mas, por exemplo, quando a maestrina entra naquele teatro e rege tijolos ou tem alguma coisa antes? um coro de vozes invisíveis, eu também estou relacionando com os gestos da neblina, com aquele lugar da coleta que também acon- Ele começou nessas experiências da casa, e os tijolos como parte tece com silêncios, ausências e invisibilidades. A Maria Farinha disso. Banho e chuva,40 por exemplo, é anterior, eu não sabia que escutava vozes que ela não sabia muito de onde vinham, e assim os iria coletar neblina ou goteiras, e ele já tem essa relação com a ideia trabalhos vão se conectando. Há maneiras diferentes de sustentar de coletar... O trabalho na casa começou mesmo com o armazena- esses entrelaçamentos. mento de materiais. Eu colocava as tintas das paredes em potes de vidro e às vezes fazia desenhos com aquelas cascas de tinta. E Aluno: Você disse no começo que acaba sempre retornando, continuava fazendo uns buracos nas paredes, plantava ervas nos em algum momento, ao tijolo e, pelas fotos que você mostrou, tijolos e fotografava tudo. A casa era espaço como laboratório. você tem esse material e não à toa você estocou esse material. Então, esse retorno ao material de tijolo, você pensa ele de A. D.: E por que você saiu dessa casa? alguma forma, ele se dá intuitivamente, ele é mais um lugar de repouso ou ele é como um lugar de impulso para o resto Foi natural, foi o fechamento de um ciclo no sentido da vida pessoal, dos seus trabalhos? Quando você retorna, você sente como mas eu precisei levar a casa em pó. retornando a um lugar um pouco mais confortável, ou para buscar um desconforto novo? Aluno: Eu queria fazer uma pergunta quanto à questão do 46 47 CADERNOS EAV BRÍGIDA BALTAR

processo de seleção, do que você considera que “pode ser exposto”. Considerando que você, dentro do seu processo criativo, tem uma questão da intuição e da intimidade, como você faz, dentro desse processo de seleção? Você faz um experimento e esse experimento, eu imagino que o público não vá conseguir fazer essa leitura, por ser algo muito íntimo. Ou não tem esses limites? Tudo que vem dentro desse processo criativo você acha que pode ser exposto?

Existe uma seleção, mesmo que essa seleção não seja feita ime- diatamente, porque, às vezes, você não tem a visão suficiente para decidir, quando você está muito próxima ao trabalho – quando é uma obra ainda em processo e recente –, para compreendê-la na sua totalidade. Tem a soma do tempo de maturação. Então, eu acho que a gente tem esse poder, e isso é bacana, a gente pode escolher a própria construção da obra e, em conseqüência, o que vai ser exposto. Talvez respondendo mais a sua pergunta: para mim, o íntimo sempre importa se vai trazer sentidos mais coletivos. Não se trata de mostrar uma biográfica, mas pensamentos e atmosferas que produzam sentidos nos observadores da obra – este é o limite. Presságio, 2012 Video still. Aluna: Eu fiquei pesquisando, ontem mesmo, a sua obra. Exposição O amor do pássaro rebelde E a que mais me chamou a atenção foi a que você disse nas Cavalariças da EAV Parque Lage 48 49 CADERNOS EAV BRÍGIDA BALTAR

que é a que te deu mais visibilidade, que é a da neblina, que significados colocam você também no lugar de captar a impossibi- não tem visibilidade, né? E que te deu visibilidade. [Risos] lidade. É chegar ao espaço da ficção. E tudo foi muito processual, Eu vi uma foto, ação fotográfica, como você chama, com porque no começo, realmente, eu pensava em vedar os vidros, até um colete de plástico bolha e atrás você carregando todos entender que a minha captura era de sentidos. os frascos com neblina e, em cinco minutos na internet, eu tive um fruir e aconteceu, realmente, um fenômeno estético Aluno: Eu queria saber um artista atual que te interessa. ali com a sua obra, eu fiquei encantada! Teve uma época da minha vida em que eu também morei na floresta, me isolei, e É difícil mencionar um. Me interesso por artistas mesmo que não isso me remeteu a essa bagagem, de momentos vividos, uma tenham relação aparente com meu trabalho, mas posso entender bagagem de coleta de sensações, uma apropriação de uma e apreciar a potência das suas intenções. Agora, na Feira de Arte do sensação que é imaterial. Essa foi a minha sensação vendo o Rio, foi interessante rever a obra da Roni Horn, com as fotografias seu trabalho, que, como você disse, está no mundo. Eu queria dos rios – ela fotografa o Sena, o Tâmisa, entre outros. Pesquisei há saber, desse colete de plástico bolha, com a neblina, o orvalho, pouco tempo para minhas aulas a Hannah Wilke, uma artista dos o que você realmente expressou, qual era o seu objetivo nessa anos 1970 que trabalhou sobre o corpo ao mesmo tempo criando parte da obra, nessa fotoação. uma relação com a escultura menos rígida que a minimalista, mais orgânica. Tem a Laura Lima, o Zerbini, são tantos. Quando eu comecei a coletar o orvalho, primeiro foi como extensão das ações que eu já estava fazendo na casa, para a natureza. Eu levava móveis e parte da casa para a natureza. Foi quando comecei a colher orvalho. E depois neblina. A minha captura era de signi- ficado, porque tudo significa, de certa maneira. Então, a neblina é mistério, invisibilidade, paisagem que muda, falta de localização, o lugar do sublime, do corpo diante dessa paisagem. Todos esses 50 51 CADERNOS EAV BRÍGIDA BALTAR

17. BALTAR, Brígida. Pó de casa. Exposição individual realizada na Galeria Nara Roesler. Notas São Paulo, 2007. 18. Brígida Baltar apresentou na Semana de Videoarte da Fundação Joaquim Nabuco 1. V Bienal de Havana. Cuba, 1994. a série Coletas, numa videoinstalação na Galeria Massangana e o resultado de uma 2. BALTAR, Brígida. Sou árvore, 1997. Fotografia, edição de 3. Dimensões: 27 x 18 cm. residência artística de três dias no Recife, na Galeria Baobá, ambas na Fundaj Casa 3. BALTAR, Brígida. Silhuetas, 1996. Ação e fotografia. Forte. Recife, 2010. 4. BALTAR, Brígida. Torre, 1996. Ação e fotografia. Construção com tijolos. 19. BALTAR, Brígida. Um céu entre paredes, 2005. Videoação. Duração: 1’15”. 5. BALTAR, Brígida. Coleta de lágrima, 1993. 20. BALTAR, Brígida. Sala brocada, 2007. Desenho com pó de tijolo e máscara de papel sobre chão. Dimensões: 22 m². Arte Contemporaneo, Buenos Aires. 6. BALTAR, Brígida. Abrindo a janela, 1996. Ação. 21. BALTAR, Brígida. Um céu entre paredes. Exposição individual realizada no firstsite, 7. BALTAR, Brígida. A coleta da neblina. Ação e fotografia, edição de 5. Dimensões: 40 x 60 Colchester, de maio a junho de 2006. cm. Exposição individual realizada no Espaço Agora/Capacete, Rio de Janeiro, 2001. 22. BALTAR, Brígida. Um céu entre paredes, 2006. Pó de tijolo moldado e pó de tijolo sobre 8. BALTAR, Brígida. Paisagem sonora, 2008. Vinil: neblina, orvalho, maresia – coletas, o chão, firstsite, Colchester. vitrolas e caixas de som. Coletas em 16mm e vídeo. Caixa Cultural, Brasília. 9. BALTAR, Brígida. Coletor de orvalho, 2001. Escultura de vidro e madeira cavada. 23. BALTAR, Brígida. Floresta vermelha, 2006. Desenho com pó de tijolo e duas molduras Dimensões: 11 x 60 cm. Os objetos coletores têm dimensões variadas, podendo chegar de madeira. a aproximadamente 80 cm de comprimento. 24. BALTAR, Brígida. Casa de abelha, 2002. Série de fotografias. 25ª Bienal de São Paulo. 10. BALTAR, Brígida. 2001. A coleta do orvalho, 2001. Ação e fotografia, edição de 5. 25. BALTAR, Brígida. Favo imbuia, 2009. Madeira escavada. Dimensões: 44,5 x 36 cm. Dimensões: 40 x 60 cm. 26. BALTAR, Brígida. Casa de abelha. Vídeo. Duração: 49”. 11. BALTAR, Brígida. Para voar, 1995. Escultura em tijolo maciço. Dimensões: 21 x 10 x 7 cm. 27. BALTAR, Brígida. Maria Farinha Ghost Crab, 2004. Série de fotografias e vídeo. 12. BALTAR, Brígida. Miniparquê, 2007. Pó de tijolo moldado. Dimensões: 23 x 34 cm. 28. BALTAR, Brígida. Maria Farinha Ghost Crab, 2004. Vídeo filmado em 16mm. Duração: 13. BALTAR, Brígida. Pó e paisagem, 2010. Esculturas feitas com pó de tijolo e cola 15’ 27”. mineral sobre estrutura de madeira: Dois Irmãos, Dedo de Deus, Pedra da Gávea, 29. BALTAR, Brígida. O amor do pássaro rebelde. Exposição individual realizada nas Corcovado, Pão de Açúcar, Pedra do Arpoador, Pico da Tijuca. Morros cariocas. Cavalariças da Escola de Artes Visuais do Parque Lage. Rio de Janeiro, de 24 de agosto Dimensões variáveis. a 28 de outubro de 2012. 14. BALTAR, Brígida. Utopias e Devaneios, 2005. Dois livros. Pó de tijolo, resina e 30. BALTAR, Brígida. Voar. Exposição realizada no Oi Futuro Flamengo. Rio de Janeiro, prateleira. Dimensões: 25 x 17 x 1 cm. de 11 de julho a 5 de setembro de 2011. 15. BALTAR, Brígida. Passagem secreta, 2007. Pó de tijolo e máscara de papel recortada. Dimensões variáveis. 31. BALTAR, Brígida. Esculturas zoomórficas, 2011. 16. BALTAR, Brígida. Passagem secreta, 2007. Parede de minitijolos moldados, instalada 32. BALTAR, Brígida. Escultura alada IV, 2011. Mármore, resina, cerâmica e metal. em porta de correr. Dimensões: 227 x 77 x 3 cm. Dimensões: 26 x 13 x 22 cm. 33. BALTAR, Brígida. Sem título, 2011. Madeira balsa, abajur de bronze e lâmpada vermelha. Dimensões: 40 x 35 x 30 cm. 52 53 CADERNOS EAV BRÍGIDA BALTAR

34. BALTAR, Brígida. Claridade e Brilho, 2001. Madeira, resina, metal e motor. Dimensões: 94 x 80 x 80 cm. Saiba mais 35. BALTAR, Brígida. A vertigem do pavão ou máquina para voar, 2011. Madeira, bronze e motor. Dimensões: 165 x 50 cm. DOCTORS, Márcio. Brígida Baltar: passagem secreta. Rio de Janeiro: Circuito, 2010. 192 p. 36. BALTAR, Brígida. Teatro de sombras, 2011. Ensaio fotográfico desenvolvido na Sala ESPAÇO AGORA/CAPACETE. Brígida Baltar: neblina orvalho e maresia coletas. Rio de Leopoldo Miguez, na Escola de Música da UFRJ, Rio de Janeiro, durante as gravações Janeiro, 2001. do filme Voar. OI FUTURO. Brígida Baltar: o que é preciso para voar. Curadoria e textos de Marcelo 37. BALTAR, Brígida. Autorretrato com asas de harpa sobre Osíris, o inventor da flauta, Campos. Rio de Janeiro: Aeroplano, 2011. 122 p. 2011. Fotografia. Dimensões: 24 x 18 cm. 38. BALTAR, Brígida. Dançando com As setes notas, 2011. Fotografia. Dimensões: 24 x 18 cm. 39. BALTAR, Brígida. Voar, 2011. Filme de 16mm. Duração: 7’. 40. BALTAR, Brígida. Banho e chuva, 1992. Dois jarros de porcelana e cerâmica sobre estante de madeira. Dimensões: 27 x 22 x 9 cm. 54 cadu

Gostaria de agradecer à EAV por esta rara oportunidade, não apenas de dividir meu pensamento, minhas ideias, mas de fazê-lo ao lado de um público tão ávido por conhecimento, genuinamente interessado.

Privilegiando os eventos mais recentes, começo pela Bienal de São Paulo. Como já foi dito nesta mesa, aspectos excêntricos per- tencentes às possíveis identidades que um artista assume ou lida durante a criação – como a obsessão e a loucura – parecem ter sido privilegiados nessa mostra. Recordei-me, portanto, de um comportamento adotado pelos índios nativos norte-americanos quando um membro da tribo detém tais características; em geral, quando nasce alguém dentro da comunidade que não se enquadra em nenhuma das atividades tradicionais, ao invés de se tornar um Montagem na 30ª Bienal de São Paulo/ SP. Fundação Bienal de São Paulo, 7 de pária ou ser descartado pelo grupo, esse indivíduo é extremante setembro a 9 de dezembro de 2012 Foto: Cadu 56 57 CADERNOS EAV CADU

bem acolhido, bem cuidado, preservado como algo singular. Pois lançou o Rumos Visuais, mapeamento e seleção de novos artistas em momentos de crise, em que não há um caminho claro a ser que curadores do Brasil inteiro esperam que, não sei ao certo, inje- seguido pelo grupo, é justamente aquele que não possui caminho tem ou sejam sangue novo no cenário de arte contemporânea do que o encontra para o conjunto. É possível que nunca se precise país. E participei com 22 anos da primeira edição. Fui escolhido dele, mas é bom tê-lo preservado, é bom que ele esteja ali. Quando por uma professora ligada à EAV intimamente e que foi uma pessoa me contaram essa história, fiquei aliviado. Pensei: “Bom, acho que fundamental em minha formação: Viviane Matesco. Iniciei meus posso ter encontrado um lugar, não?” Quem sabe eu tenha encon- estudos aqui com 14 anos de idade, fazendo aulas de modelo vivo. trado um caminho para mais alguém além de mim. Hoje sou professor da instituição. É um privilégio enorme poder devolver conhecimento ao lugar que lhe ofertou tanta informação Acredito que artistas, com suas buscas pessoais, colaboram para e que foi tão importante para construir sua identidade. a abertura de outros universos possíveis, passíveis de serem habitados por outros. Os artistas ajudam nesse sentido. Indiví- Retomando, foi no Itaú que encontrei pela primeira vez o André, duos singulares, legitimamente envolvidos em criação, por uma nós éramos ambos “mapeados”. O interessante, o singular da ini- necessidade de comentar este mundo de inquietações, de espantos, ciativa foi que pela primeira vez uma instituição organizava, além preservando um manancial importante para justificar sua própria de uma grande mostra coletiva com os selecionados, exposições existência e a de tantos. secundárias itinerantes que possibilitavam a ampliação do contato entre eles. Esse processo foi inaugurado com um seminário de Posso sentir que algo está diferente. Primeiramente, por meu uma semana na sede do Itaú. Éramos todos artistas muito jovens, trabalho nunca ter sido visto por tantas pessoas e, segundo, pelo estudantes ainda, precisando ganhar um pouco de léxico, um pouco modo como cheguei à Bienal. Algo tão espontâneo que até agora de malícia do meio, e aquilo era uma chance única. não compreendo bem como ocorreu. Mas sou capaz de pensar retrospectivamente e entender como nossas trilhas se cruzaram. Eu encontrei com o André ali, tivemos uma conversa de poeta para Há muitos anos, conheci o André Severo. Em 2000, o Itaú Cultural poeta... Estávamos desesperados com a situação, com o excesso 58 59 CADERNOS EAV CADU

de exposição que estávamos tendo, com a voracidade de alguns “Acredito que artistas, colegas. Estávamos sendo moldados para alguma coisa e me senti em uma escola para supermodelos. Estavam me preparando para com suas buscas alguma coisa que eu não sei o que era. Ele carregou um fardo ainda maior, porque havia um prêmio, na época uma viagem para Paris, e ele ganhou. Quando retornou, imagino que a ressaca resultou no pessoais, colaboram projeto Areal,1 que parecia ser a total negação disso. Não vou falar mais do Areal, pois não tenho propriedade para isso. Mas ele era para a abertura a única pessoa que eu conhecia. Reencontrei-o ano passado, durante o Panorama da Arte Brasileira. de outros universos Fui selecionado para participar da mostra2 e ele também. Fomos convidados a dar palestras no mesmo dia: ele sobre o projeto Areal e eu sobre o projeto Estações. Meu trabalho atual, de codinome possíveis, passíveis Cabana. Cabana? Minha casa. Na verdade, onde estou vivendo. O bonito durante o evento foi termos nos debruçado sobre os mes- de serem habitados mos temas sem qualquer combinação prévia. Ambos estávamos apresentando os motivos pelos quais ainda estávamos fazendo ou tentando trabalhar com arte, apesar de sentir os efeitos da trans- por outros.” formação do que realizamos em objetos de commodities, em status social, e tantos outros mal-entendidos periféricos à ocupação de criador, mas que parecem estar no cerne da agenda. Como nós transávamos ou deslizávamos e frequentávamos esses lugares com 60 61 CADERNOS EAV CADU

maior ou menor nível de desconforto. Talvez essa feliz coincidência mundo atual. Muitos criadores tomaram atitudes semelhantes, a tenha sido crucial para participar da Bienal.3 O projeto Estações grande maioria dos meus heróis fez isso. Então, juntei dois fortes enquadra-se muito bem no conceito curatorial da mostra, sob desejos: o primeiro, de infância, que era o de construir uma casa o título A Iminência das Poéticas. E é por onde eu vou começar. com as minhas próprias mãos. E o segundo, que, uma vez essa casa construída, eu pudesse habitá-la solitariamente num enorme O projeto Estações tem sido gestado há três anos e faz parte da minha exercício de autoespreita, para que ao abandoná-la estivesse plena- tese de doutorado. Sou pesquisador da UFRJ, na área de Poéticas mente comprometido com esse estado de arte, em arte, em que não Interdisciplinares. Sempre reflito que umas das vantagens de ser houvesse mais distinção entre a minha ocupação profissional e a artista é a oportunidade de escrever a sua própria história da arte. minha vida. Para tanto, foram necessárias muitas etapas, inúmeras Buscar nessa enorme linha de tempo exemplos maravilhosos, tentar clivagens que circunscreveram um período de três anos. achar quem são aqueles com os quais nos identificamos e fazer o maior esforço possível para até o final da vida, quem sabe, sermos O projeto Estações é uma casa, uma cabana que construí na Região distantemente lembrados ao lado desses sujeitos. E uma coisa que Serrana do Rio, em um terreno emprestado que surgiu inespe- sempre me atraiu muito foi a possibilidade de perceber os processos radamente. E é isso que considero espantoso de vez em quando: artísticos, mais do que algo relacionado com a produção de objetos, basta que você se comprometa integralmente para que o mundo mais do que fazer arte, com a possibilidade de ver o mundo dentro responda a seus anseios positivamente. de um estado, ou seja, de se estar em arte. Fazer com que a minha vida, dentro das relações cotidianas, contenha possibilidades de Eu passo seis dias por semana lá e uma vez por semana venho dar magia, de convívio com tabus, de ambiguidade, de opacidade. aulas e encontrar com meu orientador. A estadia iniciou-se na primeira noite do inverno, dia 21 de junho, e minha permanência Para que esses estados ocorram com maior naturalidade, com uma limitada até o dia 21 de março de 2013. Contando o tempo de cons- certa potência maior, é necessário algum isolamento. É comum trução da cabana, cobrirei o período de um ano lá dentro. Daí advém que, para um mundo novo nascer, ocorra uma separação de seu este nome, Estações, porque vai do outono até o final do verão. 62 63 CADERNOS EAV CADU

Até agora, o que pude perceber do projeto é que, a princípio, ele entra em atrito com curadores, a não ser em momentos muito parece ser consequência de uma decisão individual, uma decisão específicos, mas que são pura fofoca, eu não vou falar! Risos[ ] Ainda exclusivamente minha. Porém, com o transcorrer do tempo, chega- assim, eu nunca tinha tido um encontro tão espontâneo... sem -se à conclusão de que não se parte sozinho, mas por autorização. Há aquela pequena esgrima intelectual que sempre ocorre quando uma instituição acadêmica que me apoiou, a escola em que leciono você está sendo apresentado a uma pessoa que te interessa e ela possibilitou montar um horário que fosse conveniente para mim, interessada em você de alguma maneira. Ele foi ao meu ateliê, sen- a minha galeria, que trabalha comigo em São Paulo, me deu uma tou, tomou um copo d’água, começamos a conversar, daí a pouco força e as pessoas que eu amo, as pessoas de quem eu dependo ou chegou o outro, mais um, agora um café, o fluxo e a troca. Ao final que dependem de mim disseram “Não, nesse momento você pode de uma tarde, não notei as horas. fazer isso!”. Então, é como a primeira página do guia dos Alcoólicos Anônimos, em que está escrito assim: “Só depende de você, mas Num determinado momento da conversa, me foi perguntado: “Cadu, sozinho você não consegue”. o que você está fazendo?” Eu falei: “Olha, eu estou realizando essa história aqui, da cabana, é o que eu tenho no momento construído”. Todas as vezes em que sou obrigado a falar do trabalho, é um E aí, conforme eu fui apresentando, eles disseram: “Nossa! Você vai momento muito delicado, pois estou tentando lidar com algo participar da Bienal, porque o que você está fazendo está encaixando intangível, que até agora não sei muito bem o que é; um ambiente com tudo que estamos perseguindo!”. Na hora eu não me dei conta inteiro para que algo de natureza invisível se presentifique... Difícil daquilo, não acreditei muito, não esperei a coisa, porque não conto de explicar. Não sei de que forma “isso” vai se manifestar, mas pelo mais com o ovo dentro da galinha, espero a coisa vir. E ela veio. menos é o “isso” que me leva até lá e me traz ou me impulsiona até esse limite. Ao expor no MAM esse trabalho, o André escutou. Uma Existia um desejo da Bienal de fazer uma mostra em que houvesse coisa colou na outra e fui apresentado ao Oramas, posteriormente, pequenas individuais, obrigatoriamente deveríamos ir com outros e após alguns encontros o convite foi formalizado. Algo me deixou trabalhos, e não sou uma pessoa conhecida apenas por um tipo de muito surpreso com esse contato. Sou um indivíduo que raramente linguagem, normalmente eu trabalho com ideias que muitas vezes 64 65 CADERNOS EAV CADU

envolvem questões relacionadas a sistemas, métodos, jogos, rigor possibilidade de desenho. Só que para desenhar nessa plataforma eu e tempo, mas que serão configuradas na linguagem que acredito seria obrigado a ter um grau de intencionalidade e de rigor associa- melhor potencializá-las. Portanto, em determinados momentos, dos que eu nunca teria se tivesse um pedaço de papel e uma caneta utilizo-me do desenho como uma plataforma, outras vezes a perfor- para fazer. Passei um ano inteiro controlando o meu consumo de mance, outras vezes o vídeo, a fotografia. O que ficou claro, para eles, luz, apenas para depois receber da Light o resultado prosaico desse é que nesse momento estava muito nítida a presença de elementos esforço. Construí uma parábola perfeita, totalmente simétrica, sonoros e da ideia de sacrifício. inversa ao meu consumo de luz anual... Resumindo em palavras muito ruins: eu tomei cerveja quente no verão e tomei banho frio Com isso em mente, chegamos a quatro trabalhos: o projeto Esta- no inverno. Mas o projeto é muito mais. Vocês não fazem ideia ções, um trabalho em desenvolvimento em que a cada duas semanas da disciplina envolvida para tal. E eu, para ser sincero, também eu mando coisas da minha cabana para a Bienal. Tentativas, gestos não sei mais. Não sou mais esse homem. Aqui tinha 25 anos de oficinais, resultantes de um processo que tenta dar conta dessa idade e uma crença inabalável em minha imortalidade, a confiança experiência, desse desejo de sonhar. E é basicamente o que vou absoluta em ser capaz de fazer qualquer coisa comigo e com o meu fazer lá, eu vou sonhar lá, eu sou estimulado a sonhar! E isso é corpo. Esse trabalho talvez tenha sido escolhido pela Bienal por se muito raro, isso é um pequeno luxo, mas não significa que não está associar com a cabana, o momento em que estava sendo gestada embutida aí a dor e a doçura dessa escolha. ou apresentada pela primeira vez, essa certa fleuma pela vertigem que o projeto Estações5 contém... Outra peça presente na Bienal é o 12 meses.4 Um trabalho que deu muito, muito pano para manga para fazer. Ele foi realizado entre A escolha das obras se deu de modo muito espontâneo, porém 2004 e 2005 e utilizou como suporte de apresentação a minha com condições: “Não, esse trabalho (o 12 meses) tem que estar, conta de luz. Todo mundo conhece a conta de luz. Essa aqui é a assim como a cabana”. Os outros dois trabalhos me deixaram esco- conta da Light. Ela apresenta um gráfico mensal do consumo anual lher: “Olha, apresenta aqui três ou quatro outras opções para a em kW. Meu desafio foi perceber e abordar esse gráfico como uma gente determinar, juntos, o que fazer”. Mas eles explicitaram o 66 67 CADERNOS EAV CADU

“E uma coisa que sempre que gostariam: “Procuramos obras suas em que houvesse a pre- sença de som, porque é algo que você tem feito, e se possível que me atraiu muito foi a envolva sistemas”. Então, o trabalho seguinte, que acabou sendo escolhido, foi uma peça que fiz especialmente para a Bienal, uma possibilidade de perceber versão inédita de um trabalho chamado Hino dos vencedores.6 O Hino dos vencedores foi um projeto que surgiu em 2008 diante de os processos artísticos, mais uma notícia banal que eu ouvi no rádio, que era que a Mega Sena havia completado dez anos de existência e premiado mil pessoas. do que algo relacionado Achei aquilo extraordinário, porque de alguma maneira a loteria é com a produção de objetos, algo que resume para nós a possibilidade de sorte, a possibilidade de, em uma sequência aleatória de seis números, deparar-se com mais do que fazer arte, a transformação absoluta da sua vida. Ela é um dos gestos de fé consumista contemporâneos mais presentes na nossa cultura. E com a possibilidade de ver eu não sabia o que fazer com aquilo, porque artista, no final das contas, divide as suas perplexidades com o mundo, divide os seus o mundo dentro de um espantos, e eu estava muito espantado com aquilo, estava tentando dar forma para essa sensação. O que acabo fazendo, como a maioria estado, ou seja, de se estar das pessoas, é ir usando as minhas ferramentas, aquelas que possuo, para abordar problemas, como uma forma de aproximação e dali de em arte.” dentro alguma coisa acaba saindo. E, por ter alguma familiaridade – e aí, eu teria que falar do meu trabalho anterior e eu acho que hoje a gente não tem esse tempo ainda –, eu tenho certa facilidade de lidar 68 69 CADERNOS EAV CADU

com máquinas, construir padrões, identificar padrões, ou máquinas tocar. Ela ficava na última prateleira do quarto delas. Elas são mais que constroem padrões, em uma série de questionamentos que vão velhas do que eu, e eu mantinha uma relação de paixão suicida com desde a ideia de empurrar os limites do desenho de paisagem até aquela coisa, porque sempre que elas saíam do quarto eu arrumava a possibilidade de, por meio de uma repetição ou de alguma coisa um banco para subir, uma almofada pra pôr em cima do banco, e extremamente monótona, transcender isso e poder transformar pegava a caixinha e a ligava. Aquele era o prazer do homem bomba, isso em um objeto que vai habitar o circuito de arte pelo drama porque eu sabia que ia apanhar depois, ia explodir, então ouvia por que ali foi embutido. De alguma maneira a conta de luz eu acho poucos segundos a caixinha já esperando o tapa vir. E, quando o que fala um pouco disso. homem não dá conta, o menino que vive com ele, que lhe dá a mão, é assim que o fala?, vai resolver a fissura. Risos[ ] E aí, reparei que o bilhete de loteria brasileiro é exatamente do E, é exatamente isso, grande parte dos meus trabalhos é a visitação mesmo tamanho que um tipo de caixa de música que existe no Japão madura dos meus medos e prazeres de infância. há sessenta anos, que se utiliza de cartões perfurados para produzir música. Isso assim?! Sem razão alguma?! “Ah! Cadu, isso aconteceu “Bom, já que agora eu sou um adulto, posso brincar, posso usar do nada?” Não. Na verdade, não, porque alimento uma enorme de forma profissional os objetos que, de alguma maneira, eram do paixão por caixas de música, acho um objeto muito interessante, meu universo lúdico”. Então, eu tenho muitas caixas de música e que me fascina desde a infância. Logo fui capaz de estabelecer essa caixa de música fazia parte do meu acervo. uma relação entre fatos aparentemente distantes; o tamanho do bilhete de um jogo de azar e a partitura de uma caixa de música, Temos na Mega Sena seis dezenas, essas seis dezenas são colocadas cuja razão se reporta à história dos processos de automação, que dentro de um universo de cem dezenas para se escolher, mas a Caixa não vou explicar nesse momento. Econômica Federal mantém, acho, seis ou sete loterias em que o número de dezenas é variável; alguns jogos têm vinte dezenas, Mas acredito que a origem dessa curiosidade existe, porque as outros doze. A quina tem cinco dezenas só, e isso determina também minhas irmãs tinham uma caixinha de música que eu nunca podia o valor de cada uma delas. A Mega Sena são seis e é a loteria mais 70 71 CADERNOS EAV CADU

rica, a loteria que dá os prêmios mais altos. Procurei na internet, caixinhas continha uma tripa dos cem jogos que constituíam, no peguei os mil jogos, cronologicamente organizados, dos mil ganha- final, a soma de mil, e acompanhavam um desenho. Vocês viram dores, e furando as dezenas no próprio cartão de loteria, quando eu que no momento do vídeo eu estou martelando e depois colando os passasse dentro da caixa de música eles corresponderiam a uma umas bolinhas. Isso foi na verdade, no início, algo que acontecia nota musical. Desse modo foi possível construir o que chamei de perifericamente ao processo, eu queria fazer uma música, mas repa- O hino dos vencedores. Um título irônico, uma vez que não existem rei que, conforme ia furando, os cartões iam acumulando aquelas hinos para perdedores. O hino é ode ao triunfo. Vou mostrar para bolas cravadas com os números em uma outra superfície. Pensei: vocês um filme muito pequenininho que eu fiz caseiramente em Caramba! Que engraçado! Isso ilustra, de alguma outra maneira 2008 para explicar o trabalho para um amigo meu que morava na apresenta, devolve a ideia de acaso, desenho, mas dá outro tipo de Inglaterra, o que eu estava fazendo na época, e depois eu conto visualidade ao processo que eu estou construindo, que é eminen- como é que ficou a montagem na Bienal. temente sonoro.

[Exibição de filme] Então, eram apresentados a tripa dos cem jogos, a caixa de música com um loop pequeno de trinta jogos e um desenho de 30 x 30 cm, Bom, o que vocês viram ali é um pequeno trecho, são trinta jogos constituindo aquele volume da minha ópera de dez canções. só, que estão enfileirados. A apresentação, na época, para a Mega Sena, quando eu fiz o trabalho só com a Mega Sena, cada trabalho Para a Bienal de São Paulo eu fiquei resistente, porque tenho quase era constituído por um conjunto – e eu vou ter que abrir aqui uma uma obsessão por não repetir trabalho. Eu não gosto de refazer um outra pasta, só para vocês entenderem uma coisa – vou explicar a trabalho, porque, como muitos dos meus trabalhos têm a possibili- diferença das coisas que estão na Bienal... dade de usar sistemas, é fácil eles serem reproduzidos novamente, eu criar as condições iniciais para que eles possam ser apresentados, Este é o trabalho que está na Bienal, mas o trabalho original era apesar de quase sempre o resultado ser diferente, porque eu gosto... composto por dez caixinhas de música, sendo que cada uma dessas depois que eu entendo um trabalho, depois que eu já o domino ou 72 73 CADERNOS EAV CADU

que ele não me leva mais para aventuras, eu começo a me sentir O trabalho da Bienal, ele contém então... eu fui lá, e eles falaram: “A excessivamente confortável. Não aprecio sentir-me assim. Eu acho gente queria usar esse trabalho novamente!” Mas eu falei: “Nova- que o bom criador é aquele que está sempre trabalhando no limite das mente não dá, eu não vou fazer a Mega Sena de novo. Me desculpe, suas forças, porque, no processo, vai para lugares que até então não tá? Eu posso fazer uma outra coisa que eu não fiz e gostaria de conhecia. E tem um professor aqui na escola, o Charles, que resume tentar, que é o seguinte: a Caixa Econômica Federal mantém outras isso de uma forma muito inteligente: “Estilo pode ser a única coisa cinco ou seis loterias, algumas delas utilizam outros tipos de com- que você foi capaz de fazer e depois você não sabe fazer outra coisa”. binações numéricas. Logo, a Lotomania, por exemplo, eu acho que Porque é verdade, algumas vezes dá tanto trabalho você se tornar utiliza quinze ou vinte números, enquanto que a Quina utiliza fluente em determinado vocabulário ou adquirir certas habilidades apenas cinco, a Mega Sena seis, a Timemania não sei quantos. que depois você não consegue abrir mão delas, e elas podem se tornar, Vamos, então, pegar os cem primeiros jogos de cada uma dessas então, uma prisão, uma prisão maneirista que, na verdade, você deve- loterias e vamos novamente estabelecer outro processo”. Então, ria abandonar, para que possa ir para outros lugares, para que possa o que temos aqui são cinco desenhos, cada um desses desenhos visitar outras paisagens e se dar o direito de nem sempre acertar. contendo os cem primeiros números dessas loterias, que eu já Porque a maioria dos artistas acaba querendo chegar a esse primor não sei qual é qual. Até porque a ideia era exatamente que eles visual, a esse primor estético – odeio usar essa palavra, desculpa –, pudessem se confundir, mas você tem aqui cem jogos da Mega esse certo valor de apresentação, mas não sabem depois fazer outra Sena, cem jogos da Quina, cem jogos da Lotomania, cem jogos coisa, porque naquele momento é simplesmente apresentação da da Timemania, cem jogos da Loteca... Desse modo construímos conquista de um meio, a conquista de uma ferramenta. Ao invés de músicas com diferentes camadas de som, que podem ser mani- ser um especialista, acho muito mais interessante ser um generalista, puladas simultaneamente. sempre ser ou estar em estado de estrangeiro diante de alguma coisa, por isso fico pulando por diversas áreas e linguagens artísticas, mas É claro que o público da Bienal é um público muito grande e muito tudo bem, isso aí é história do Scooby-Doo, né? Que você conta no voraz, quando vocês forem lá, infelizmente vocês vão ter que pedir final do desenho para dar sentido a tudo. Risos[ ] pra mexerem, não vão ser vocês que vão mexer. A gente tentou 74 75 CADERNOS EAV CADU

durante um espaço de um ou dois dias, quando a Bienal abriu. museu muito bacana projetado pelo arquiteto português Álvaro Porém tivemos que impedir a interação direta, pois a velocidade e Siza. Ao completar dez anos de bolsa, resolveram chamar todos a agressividade com que as pessoas estavam mexendo, ansiedade, os premiados. Apresentei dois projetos, um deles foi realizado enfim, uma série de coisas, que vai desde curiosidade até perversão e o outro não, pois sofri um acidente de moto. Ao me recuperar, mesmo, fizeram o trabalho não aguentar. Mas, a ideia toda era essa, o que levou aí uns quatro, cinco meses de tratamento, acabei que as pessoas pudessem tocar a obra. passando muito tempo de cama, então eu trabalhava ou mexia com coisas que eram muito pequenas, que coubessem no leito. O quarto trabalho é um trabalho chamado Partitura.7 O Parti- Em algum momento eu resolvi mexer de novo no meu trem, no tura, mais uma vez, é um trabalho que habita o meu universo meu trenzinho elétrico, e aí, mexendo nele, reparei que, se eu infantil, que é a minha paixão por trens e a associação dessas pegasse o meu trem e fundisse com a ideia de uma caixinha de viagens com ritmos; de tratar-se sempre de uma viagem modu- música, se o próprio trilho fosse, digamos assim, o cilindro ou o lada pelo som, pelo som dos postes que passam ao lado e criam lugar onde o motor, que é o trenzinho, iria circular, e tudo que eu uma certa variação de pressão no seu ouvido... e por aí vai. E ele colocasse ao redor fossem as notas musicais, poderia construir aconteceu pelo seguinte: em 2010, eu fui chamado para partici- algo interessante. par de um workshop na Fundação Iberê Camargo, que fica em Porto Alegre, como resultado de uma exposição de dez anos de Eu já tinha que dar um workshop mesmo e pedi para o pessoal da uma bolsa que eu participei e ganhei. É uma bolsa que existe até Fundação: “Olha, me comprem três kits de trem tal, tal, tal”. Aí os hoje, que vocês – dependendo do nível de ambição dentro da caras falaram: “Pô, mas para quê você quer isso?”. “Quero para um prática artística – devem tentar com o tempo, chamada Bolsa workshop em que eu vou levar os kits, vou preparar esses trens de Iberê Camargo. Participei da primeira seleção, ganhei a primeira uma determinada maneira e vou fazer uma proposição de três, bolsa e fui para a Inglaterra. Quando voltei, fiquei fazendo um quatro dias”. E foi o que aconteceu. Levei os trens, levei junto uns monte de outras coisas, paralelamente. A Fundação foi ganhando vagões adaptados em que a gente podia parafusar uma aleta, não sei envergadura, até que hoje em dia possui uma sede própria. Um se vocês estão vendo aqui, de metal. Essa aleta batia em qualquer 76 77 CADERNOS EAV CADU

objeto colocado na periferia do circuito e gerava sons. Durante três E aí, então, feita a apresentação das quatro peças, nós começamos a ou quatro dias fiquei construindo músicas com essas pessoas ou montagem do meu espaço lá. Decidimos então que eu ia fazer mais necessariamente não, ou tentando libertar o som da música, né? uma vez o Partitura, foi a terceira e última versão desse trabalho, Que é uma coisa que muita gente tem necessidade ao lidar com eu não vou mais mexer nele, e falei: “Bom, então eu vou encerrá-lo sons, querer logo criar música. em uma escala, em uma envergadura que até então eu nunca fiz, eu tinha muita curiosidade para fazer”. Então, a gente comprou um [Exibição de vídeo] monte de kits, um monte de vagões, garrafas, copos diferentes, e eu fiz uma peça com uma escala ambiciosa, que é essa daqui, que Esses circuitos foram feitos por eles... esta lá na Bienal, vocês vão poder ver.

E foi excelente a oportunidade, porque eu pude entender o que E o espaço ficou assim, então. A grande maioria das salas da Bienal eu deveria mudar no trabalho, qual era o nível de potência que de São Paulo são salas fechadas com paredes, e eu escolhi uma “não o trabalho teria ou não para sobreviver depois de um momento sala”... Conversando com o curador, ele afirmou que havia um dado menos doméstico, menos caseiro e quais são as coisas que podem muito grande de natureza envolvendo o meu trabalho e da ideia acontecer, como um vagão soltar, a locomotiva voltar. Como eu ia de som, talvez o som fosse incomodar quando fosse confinado, e lidar com esses acidentes ou não, esses acasos felizes. a coincidência feliz de eu estar ocupando uma área do pavilhão em que havia árvores muito perto, do outro lado do vidro. Eles Fizemos muitos, muitos trajetos. Muitas vezes eu começava com me apresentaram algumas plantas, falaram: “Você quer uma área uma frase, uma frase musical e eles, então, iam... Os alunos e eu, aberta?” No início, eu pensei: “Poxa! Por que eu não tenho uma área dividindo a autoria. Eles traziam os copos, as garrafas, às vezes fechada como todo mundo?” Mas aí eu vi que isso, o que aparen- pegávamos os próprios materiais que a parte do educativo lá tinha temente, nos primeiros cinco minutos, me pareceu um problema, e a gente podia manipular uma cerveja, uma coca-cola, uma latinha poderia ser uma excelente oportunidade, porque era uma maneira de spray... de fazer que um trabalho e outro interferissem menos entre si, 78 79 CADERNOS EAV CADU

Estações, 2012 Estações, 2012

Foto: Adriano Facuri Foto: Cadu 80 81 CADERNOS EAV CADU

porque vaza o som, e em um contexto de Bienal, eu quase obrigo pequeno animal que se aproxima de você, e eu não vou negar esse as pessoas a passarem pelo meu trabalho, porque ele está numa impulso nesse momento. E acabo, então, mandando filmes que área de passagem, então ele, invariavelmente, foi visto, eu acho, contêm esse tipo de postura lá. Este aqui, por exemplo, é um filme por praticamente todas as pessoas que foram ao prédio. longuíssimo, de meia hora, que contém o meu pôr do sol, só para vocês terem uma rápida noção... Então, meu espaço é aberto e vocês vão entender lá como é que ele funciona, mas ele é da seguinte maneira: uma área contém o Não possuo energia elétrica em abundância, tenho um “gato”, que Hino dos vencedores, a outra é uma área designada para o projeto eu fiz de um galinheiro que fica a uns trezentos metros da minha Estações, em que há no chão uma marcação em tamanho real da cabana, então é um fiozinho só, que sai de lá até a minha casa, e como minha cabana, bem Dogville, recordam? Em frente a ela, há uma a distância é muito grande, eu tenho muita perda de energia no parede onde eu mando fotos, coloco desenhos, coloco as plantas caminho. Só consigo força suficiente para alimentar o meulaptop e digitais do processo, tudo que fui fazendo até essa cabana existir, ter uma lâmpada, e é o suficiente, para falar a verdade. Banho, eu até uma maquete em escala, disposta na posição exata da planta, para instalei um chuveiro, mas não consigo usar o chuveiro quente, cai as pessoas perceberem, fazerem esse exercício de tamanho, e um a luz, só uso ele frio, então quando preciso tomar banho quente, eu texto em que eu apresento, em cinco parágrafos, o que é o projeto. tenho um banho solar, que é um saco de um plástico bem resistente, preto, que você pode deixar no sol ou preencher de água aquecida. No final, optamos também por uma televisão com vídeos em tom É um banho de acampamento, que funciona muito bem para um bem caseiro, mostrando aspectos da minha vida lá. Há registros homem de cabelo curto. [Risos] que parecem ser muito clichês e são. No entanto, quando você está vivendo em um ambiente daqueles, a paisagem se impõe com uma Mas há gravações curtas; eu fui adotado por uma macaca, eu não força tão intensa que você não tem como não filmar o pôr do sol, adotei ela, ela que me adotou, porque ela frequenta a minha casa, você não tem como não filmar o nascer do sol, você não tem como ela vai três ou quatro vezes por dia lá. Eu sei que é uma macaca, não se espantar com uma pequena formiga andando ou com um porque eu identifiquei, mas isso é muito raro, porque esse animal 82 83 CADERNOS EAV CADU

deve ser um animal jovem, que o bando ou separou ou descartou sozinho, apesar de não ser um ermitão ou uma pessoa com medo ou morreu, porque eles são animais gregários, eles vivem juntos, de gente. Porque vejo aquilo como um período ritualístico, uma então eu acho que como ela está nesse estado ainda de adolescên- pequena dança solo que inventei, uma escolha, e essa escolha vai cia, ela fica comigo. acabar em algum momento. Mas o meu medo está em não desejar voltar, não sair dali. Isso eu temo. E esse é um dos filmes que estão lá, e esse filme causou um enorme mal-entendido que eu fui descobrir outro dia, porque o meu traba- Há um livro em particular muito importante, do escritor Henry lho, não sei, felizmente ou estranhamente, foi listado, num review David Thoreau, que é talvez o sujeito que mais me habita o ima- da Art in America, como um dos dez trabalhos mais importantes da ginário para ter tomado a decisão de montar o Estações. Em 1845, Bienal, dessa trigésima edição. Porém é afirmado que a obra acon- resolveu construir uma cabana nas margens do Lago Walden e lá ele tece na Amazônia, e não sei se isso influenciou oranking [Risos da morou dois anos e dois meses, voltou e escreveu um livro chamado plateia]. E ontem eu tive uma reunião com uma curadora, que está A vida nos bosques. É um sujeito mais conhecido por um ensaio curando a Bienal de Istambul, e ela falou: “Como é o seu projeto chamado Desobediência civil,8 mas, apesar da qualidade prosaica do na Amazônia?” Aí eu falei: “Olha, vou ser muito sincero com você, que ele escreveu, em termos de literatura, o exemplo dele reverbera se você veio por isso, acho que você vai se decepcionar, porque a até hoje como um dos primeiros gestos eminentemente políticos minha casa não é na Amazônia, a minha casa é no Rio, mas ela está e ecológicos registrados. na Mata Atlântica, na rainforest...” Enfim, aí o mal-entendido foi desfeito, mas eu não sabia disso. Tudo culpa da macaca... [Risos] Bom, o que eu tinha para falar é isso. [Aplausos]

Muitas pessoas se preocupam com minha saúde mental. Mas isso Aluno: Queria perguntar de alguma dificuldade que você é bem relativo aqui. Acho que já surtei faz tempo. [Risos] Não, eu tenha tido nesse trabalho da cabana, que você tenha não tenho medo, não disso exatamente, porque me sinto muito transformado... e agregado ela ao trabalho. Como é um confortável nesse tipo de ambiente, consigo passar muitas horas trabalho que está em construção, algum contratempo... 84 85 CADERNOS EAV CADU

Não. Há limites, né? Há limites o tempo todo, dá muito trabalho também é muito estranho, porque durante alguns dias lá dentro para entrar e dá muito trabalho para sair. eu sonho com a cidade, meus sonhos todos acontecem em um contexto urbano, só depois de três ou quatro dias é que eu começo Aluno: Você vai sem carro? a sonhar com a cabana, meus sonhos habitam ali. E isso é prova da complexidade ou da dificuldade que é fazer o que eu estou fazendo, Não, eu vou de carro, mas tenho que deixar o automóvel na base da apesar de isso ser absolutamente irrelevante para o resto do mundo. montanha, da propriedade em que eu estou, e subir a trilha a pé. As Apenas tem valor para mim. Mas não, ainda não consegui formalizar dificuldades, em geral, eu ainda não consegui dar forma a algumas um problema, só contá-los, só consigo enxergá-los! delas, mas elas existem, que é uma enorme tentativa do mundo de me trazer de volta para a cidade o tempo todo, o tempo todo alguma Aluno: Vi um trabalho seu, o projeto Cavalo, no Oi Futuro,9 coisa acontece, eu não sei por quê, não são coisas boas, sabe? São e hoje de manhã eu vi uma entrevista, mas, enfim, queria eventos familiares importantes, são coisas drásticas, são viagens, saber como é essa relação com a musicalidade: tinha uma e eu fico em uma espécie de balanço, decidindo... experimentação musical e nos seus trabalhos tem isso: passeiam pela musicalidade, não têm essa relação com as Aluno: Você cede? notas, mas com o som...

Cedo, eu cedo quando não tenho escolha, acho que um dos poucos Sou apaixonado por música há muitos anos, militei na cena cultural caprichos que eu fiz foi ir ao aniversário de 91 anos da minha avó. musical por algum tempo e ainda trabalho com músicos. Mas o que Pensei: “Bom, essa mulher não vai estar aí muito mais tempo, não foi me atraindo para usar o som foi que a visualidade não dava mais vai fazer 92, então eu vou...” [Risos] conta e porque o som chega ao seu ouvido independentemente do seu desejo. Se você não quer ver alguma coisa, você fecha os olhos; Talvez tenha sido uma das minhas saídas mais luxuosas de lá, o agora, não escutar algo é muito difícil e a capacidade que o som tem resto do tempo fico lá, porque não tenho opção de sair, sabe? Isso de transformação do espaço em que você se encontra, do seu estado 86 87 CADERNOS EAV CADU

interior, é muito pré-verbal. Aquilo atinge o seu corpo de uma O projeto Cavalo foi um dos exercícios mais difíceis que já atravessei forma impossível de ignorar. Então comecei a explorar um pouco coletivamente. Trabalhei com dez artistas durante um ano, foram isso. Mas um dos motivos principais é que percebo que na música nove meses de ensaios, mais apresentação, em que eram todos a ideia de colaboração é acrescida e a de autoria diminuída. Isso caciques, era muito cacique, mas todos eram obrigados a virar em nome da construção de uma obra ou de um sentido que pode curumins se quisessem fazer que algo desse certo ali. Então, todos nem pertencer a você. Essa diluição generosa da autoria me atrai. indivíduos muito bem colocados e reconhecidos em suas áreas de atuação, ali, em termos de música, engatinhavam. Tento em alguns outros trabalhos diminuir o meu nível de respon- sabilidade mesmo sobre a obra, quando crio um sistema que vai Aluna: É mais uma curiosidade do que uma pergunta. trabalhar com o vento ou um sistema que utiliza colaboração dos Eu queria saber sobre a experiência de morar em uma números da loteria ou um sistema que utiliza meu deslocamento montanha: é uma experiência bastante particular, porque você em paisagens por meio de um pequeno sismógrafo que absorve vê uma imensidão na sua frente e o espaço que você habita as vibrações desse deslocamento e gera uma imagem. Então, essa de terra é muito pequeno, então acho que isso causa um gentil doação de ideias e de colaborações, que antes eu fazia com desconforto, ainda mais quando você está sozinho, você não coisas inanimadas, hoje em dia eu passo a fazer com autores. E tem para onde fugir. aprecio isso mais ainda pelo fato de não ter uma formação musi- cal, eu não sei muita coisa de teoria musical, não sei tocar muitos Bom, na verdade, um pouco como o Absalon, eu construí um instrumentos, não sei tocar nenhum. Para falar a verdade, quem pequeno templo da contemplação. Eu me entoco e em determi- toca muitos instrumentos? Só o Prince, né? [Risos] Se eu tocasse nadas circunstâncias identifico certo aprisionamento. Entra muito um bem, já estava bom, mas eu não toco nada bem. No entanto, frio, e foi até por isso que eu escolhi entrar no inverno, porque eu não me intimida trabalhar com essa linguagem. Não sou capaz de acho que é um momento em que o mundo se contrasta, em que o prever por quanto tempo essa fase vai durar, mas já tem durado, frio te cutuca, de certa forma te separa do fora, e aí você é obrigado talvez aí, um ano e meio. a comer o próprio estômago. 88 89 CADERNOS EAV CADU

Aluno: O telefone pega? vai acontecer. A cabana é, nitidamente, o objeto, a construção que eu sei exatamente quando gestei e quanto tempo levou para ela O telefone pega, mas até alguém chegar lá, sabe? Então eu presto acontecer, foram mais ou menos uns vinte anos. muita atenção em tudo que faço porque a qualquer momento aquilo pode colapsar. Por exemplo, eu desvio água de uma nascente que Tania queiroz: Bom, eu acho que a gente vai ter que fica montanha acima uns 250 metros. Desci um cano que vem de terminar, eu sei que o Cadu, quando se prontificou, disse que lá, quando chove muito o cano sai, entope, solta e eu tenho que ir teria que sair às cinco horas em ponto... (risos) lá emendar a tubulação. Se me descuidar, caio e ninguém vai ficar sabendo. Logo, sou obrigado a prestar muita atenção em tudo que Hoje não está sendo dia de cabana excepcionalmente, né? faço e me envolvo. Agora, é bom, 99,9% do tempo é muito bom. A soli- dão, uma companhia que uso a meu favor, como uma companheira. Mas foi um dia de Cabana!

Eu falo para os meus alunos, aqui: prestem atenção, porque vocês T.q.: Queria agradecer muito! O Cadu falando de forma tão estão fazendo o Fundamentação, ele pode ser a concretização de um tocante sobre o trabalho, a gente fica realmente emocionado desejo que vocês estão gestando há muito tempo e que agora está de ouvir. Obrigada! ganhando corpo. Porém você pode ter esquecido o pedido. Quando você botou o dente debaixo do travesseiro, levou tanto tempo para Obrigado a vocês! essa coisa vir ao mundo, você já não lembra mais, então é sempre bom você ter bem certo na sua cabeça quando você estabeleceu certas coisas. Por esse motivo a estrela cadente é um excelente exemplo da ideia de desejo, porque estou tão distante dela, e é tão raro olhar para o alto e ver uma passando, que ela pode ser a imagem que me separa fisicamente do que eu quero e de como isso 90 91 CADERNOS EAV CADU

Notas Saiba mais:

1. Criado no ano de 2000 por Maria Helena Bernardes e André Severo, Areal é um GALERIA LAURA ALVIM. Cadu: entardecer no ano do coelho. Textos de Fernando projeto em arte contemporânea brasileira cujas principais vertentes de atuação são o Cocchiarale. Rio de Janeiro, 2011. 43 p. suporte à produção de artistas convidados e a publicação da série de livros Documento GALERIA VERMELHO. Cadu Costa: manhã no ano do coelho. São Paulo, 2011. Areal. 2. 32º Panorama da Arte Brasileira. Curadoria de Cauê Alves e Cristina Tejo. Realizado no Museu de Arte Moderna [MAM SP] – São Paulo, de 15 de outubro a 11 de dezembro de 2011. 3. 30ª Bienal de São Paulo/SP. Fundação Bienal de São Paulo – A Iminência das Poéticas. 7 de setembro a 9 de dezembro de 2012. 4. CADU. 12 meses, 2004-2005. Ampliação digital. Dimensões: 25 x 100 cm. 5. CADU. Estações, 2012. Maquete, fotografias, amuletos e vídeos. Dimensões variáveis. 6. CADU. Hino dos vencedores, 2008-2009. Caixa de música, bilhete de loteria e papel. Dimensões: 30 x 30 cm (desenho); variáveis (instalação). 7. CADU. Partitura, 2010-2011. Instalação. Trem elétrico, trilhos, hastes, copos, garrafas e madeira. Dimensões variáveis. 8. THOREAU, Henry David. A desobediência civil. Porto Alegre: L&PM, 2007. 88 p. 9. Apresentação realizada no festival Multiplicidades. Oi Futuro Flamengo, Rio de Janeiro, 24 de novembro de 2011. 92 felipe barbosa

Eu queria agradecer a presença de todos vocês aqui e o convite da EAV. Primeiro, é um prazer estar aqui, retornar, de certa maneira, à escola, um lugar que, afetivamente também, é importante na minha formação. Apesar de não ter frequentado durante muito tempo, foi um lugar importante, sem dúvida, para a minha formação.

Eu estava aqui, enquanto vocês estavam chegando, deixando rolar um vídeo de uma exposição que, na verdade, não foi a última que eu fiz, mas ainda está em cartaz, é um trabalho no Museu do Futebol,1 que, na verdade, é uma instalação interativa que eu fiz junto com o VJ Spetto, a convite do curador Leonel Kaz. É uma espécie de Ursa mel, 2007 cenografia, instalação, em que a obra dele atravessa a minha, de Urso de pelúcia recoberto por estalinhos coloridos alguma maneira, para falar de vestiário, que era, digamos assim, o 100 x 90 x 86 cm Foto: Studio Barbosa Ricalde 94 95 CADERNOS EAV felipe barbosa

assunto da curadoria. Vou, na verdade, mostrar um pdf do último interuniverso. Essas imagens foram feitas da exposição Matemática livro que eu publiquei – na verdade está rolando aí – foi publicado imperfeita,3 que foi apresentada lá no Centro de Arte Hélio Oiticica, no ano passado, então está bem recente. Vou tentar não falar tanto e era uma exposição que abordava essa questão da matemática por das imagens que vocês estão vendo e tentar falar um pouco do meio de vários materiais, mas também fazendo um recorrido de conceito, de algumas questões que norteiam o meu trabalho. Vou dez anos de produção. Nem por isso uma retrospectiva, até porque passar rapidamente as imagens. eu acho que ainda não é o momento de se pensar nesse sentido.

O nome desse livro é Matemática imperfeita,2 que é um conceito Todas as minhas exposições individuais, na verdade, são pequenas que vai atravessar várias obras que eu faço. Vocês vão ver ao longo curadorias em que eu tento agrupar um determinado universo de da apresentação que o material, o tipo de abordagem, a técnica ou questões que, quando agrupadas, serão mais evidentes. O que eu mesmo o estilo não são questões com que eu estou preocupado, quero dizer com isso? Cada trabalho é um universo em si e esses pelo contrário, eu estou querendo que cada obra em si tenha uma universos podem estar agrupados de diversas maneiras. Eu posso autonomia dentro do seu universo. Então, procuro achar formas falar, por exemplo, desse trabalho Sinuca de bico,4 desde questões que praticamente sejam sugeridas a mim por meio do material dos jogos ou no caso da relação matemática como estava nessa que eu elejo. A matemática e a geometria muitas vezes servem exposição, mas agora esse trabalho vai participar de uma exposi- tanto para justificar a existência do trabalho quanto para ser um ção5 sobre o surrealismo e a relação do surrealismo com o Brasil. elemento estruturador dos objetos, um elemento conceitual e Então, eu também quero que o trabalho sempre possa gerar leituras ao mesmo tempo empírico. Porque não estou preocupado com diversas, eu não estou preocupado com a minha intenção, quando o resultado quando começo um trabalho, eu estou muito mais eu realizo um determinado trabalho. O que eu uso, na verdade, além preocupado que essa experiência gere uma resultante que vai ser dos materiais cotidianos, estou sempre lidando com uma experiên- um somatório de diversas abordagens, diversos confrontos com cia prévia do espectador em relação àquele material, quer dizer que aquele material, com aquela situação, com aquela exposição. Então, cada trabalho, na verdade, vai ser lido, interpretado perante uma de certa maneira, cada trabalho é um site-specific dentro do seu bagagem cultural que o espectador vai carregar para aquela leitura. 96 97 CADERNOS EAV felipe barbosa

Então, ele nunca está completo sem a participação do outro, sem “A obra sempre você gerar o estranhamento. É no reposicionamento dos objetos, na frustração da expectativa em relação à natureza das coisas que vai procurar falar eu tento inserir minha prática artística.

Essa diversidade de materiais e técnicas, também, faz que a cada em vários graus e novo projeto eu tenha que aprender novas técnicas. Obviamente, por algumas coisas pessoalmente eu me interesso, então acabo aprendendo. O último curso que fiz foi de soldador e serralheiro, falar particularmente um pouco para poder entender o processo... e acabo montando essas oficinas no meu ateliê, que concentra vários tipos de pro- para cada pessoa.” dução. Trabalho com muitos parceiros, muitos colaboradores de diversas áreas e esse leque de ferramentas, de instrumental e de parceiros vai sempre se ampliando, porque estou sempre indo atrás da melhor resposta para a ideia e não tentando adequar ao trabalho o meu conhecimento técnico ou as minhas limitações de qualquer tipo. Obviamente a sua experiência, o seu acesso ou não às coisas, acaba sendo um elemento constituinte, limitador, por isso eu digo que cada obra acaba sendo um site-specific dentro do seu próprio universo.

Esse aqui, Mergulho do corpo,6 é mais um exemplo dessa questão que eu falei, a questão do labor especializado... Seria impossível, 98 99 CADERNOS EAV felipe barbosa

eu demoraria uns três ou quatro anos aprendendo a azulejar, para Então, ele tem um poder de transformação inerente a qualquer poder chegar a esse grau de precisão matemática, mas ao mesmo matéria, mas que em alguns objetos eu procuro evidenciar, me inte- tempo uma matemática que vai se adequando às necessidades, ressa o risco. Ao mesmo tempo que você é convidado a se aproximar uma matemática mole, uma matemática que eu não sei se o resul- da obra, a obra também te oferece um certo perigo real e, também, tado está certo ou está errado, mas ela resulta, ela funciona e ela esse perigo vai ser emprestado pela pessoa, tanto no cenário cultu- chega a um determinado resultado, e essa resultante será sempre ral quanto no cenário psicológico mesmo. Eu digo cenário cultural influenciada pelo que o espectador está trazendo, por isso é uma porque tem outros trabalhos meus, por exemplo, uma obra que se matemática imperfeita. chama Homem bomba,8 que é um boneco feito com morteiros de São João, fogos de artifício. É um objeto que oferece risco real em A imagem resultante, que me interessa pouco em muitos casos, um ambiente: ali, ele realmente pode explodir e as pessoas podem é como, neste trabalho7 aqui, eu joguei uma partida de pingue- sair feridas. Esse trabalho, nos EUA, curiosamente já foi para uma -pongue e a bolinha era toda feita de giz, então onde ela tocava a exposição lá e foi super mal-recebido, e na mesma exposição tinha mesa marcava com maior ou menor intensidade e a partir dessa essa série que se chama Teddybear, com bichos de estalinhos e marcação eu cavei a mesa para poder encaixar as bolinhas com eles são super bem-recebidos, apesar de terem o mesmo tipo de maior ou menor profundidade. Então, a imagem que está aqui no relação de risco... É por isso que eu digo: a relação cultural vai ser trabalho pouco importa, ela vai ser o resultado desse jogo, dessa determinante para a sua leitura da obra, a obra não vai estar com- partida, porque, se mudar alguns poucos elementos dessa operação, pleta em nenhum estágio, nem dentro do ateliê, nem na rua, nem muda novamente a imagem. na exposição, nem depois que ela for totalmente sistematizada, avaliada pela crítica, pelo meio. A obra sempre vai procurar falar Um outro aspecto que me interessa particularmente neste trabalho em vários graus e falar particularmente para cada pessoa. e que em várias outras obras vocês vão ver é o sentido de latência. Latência em alguns casos é bem evidente, como, por exemplo, esse Esta aqui,9 na verdade, é a origem para alguns trabalhos. Outro urso que é feito de estalinhos. De fato, ele explode se for atingido. aspecto recorrente que vocês vão ver na minha obra é que as séries 100 101 CADERNOS EAV felipe barbosa

não se fecham. Eu faço uma analogia do chinês que roda pratos ao uma tartaruga para conseguir chegar a essa textura, chegar à cor. mesmo tempo e ele tem que voltar para continuar girando o prato Então, também tem um labor que seria impossível sem a partici- que ele deixou para trás. Então, tem essa relação de o trabalho e os pação de outros colaboradores. Eu falo muito isso porque o que materiais continuarem a falar comigo. E então, às vezes, mesmo se evidencia no meu trabalho e na minha aproximação com a arte uma série que já foi exposta, quando volta para o ateliê, eu posso é que, na verdade, você é proprietário das ideias, a mão do artista olhar, cinco anos depois, e mudar sem nenhum tipo de pudor, por- não é uma questão muito importante para mim. Obviamente, eu que acho que também tenho que me dar esse espaço dentro do faço muita coisa, até por necessidade e por gosto, mas acho que meu próprio trabalho. a invenção reside muito mais no pensamento e no pensamento olhando, no cotidiano do trabalho, e você está sempre entendendo Muitas vezes, também, o título do trabalho é o elemento consti- a evolução dele, a que caminho ele vai te direcionar. Então, é um tuinte ou mesmo o elemento disparador do trabalho. A série dos caminhar atento às próprias coisas do mundo, muito mais do que trabalhos de estalinhos começou com essas esculturas que se cha- uma imposição técnica, uma imposição conceitual, é um caminhar mavam Insight,10 que eram uma forma da minha própria cabeça e junto das coisas do mundo com os materiais. enfim... Aqui, novamente, o título acaba fazendo parte da obra, ela se chama The Record,11 é um pódio feito com os discos que seriam, Eu vou falar um pouco dessas duas séries que nasceram juntas, elas digamos, os top ten da vitrola lá de casa durante os anos 80. se chamam Mapas de consumo13 e Mapas de metrô ou Circulação,14 eles foram pensados quase simultaneamente em uma residência que Outro trabalho em que o título, não vou dizer que seria fundamen- fiz, em 2001, em Madri. Eu tive uma bolsa para o ateliê de pintura tal, mas é um encontro feliz com a obra é o Turtle Ball, que depois lá na Universidade Complutense de Madri e queria fazer algum alguém chamou de “bolaruga”.12 Ele tem uma certa circularidade tipo de trabalho que me obrigasse a ficar fora do ateliê. Eu queria que quase descreve o trabalho, e, particularmente, foi um desafio primeiro descobrir a cidade, particularmente, e também queria técnico. Eu demorei uns quatro anos para conseguir chegar a esse entender essa cidade e como eu poderia pensar isso em termos de resultado, ele é feito com resina. Foi superdifícil, moldei mais de pintura. Criei essas duas séries que se chamam mapas. Aqui tem 102 103 CADERNOS EAV felipe barbosa

uma evolução de uma, explicando basicamente o que é: eu vou a e é curioso que as marcas vão mudando a cor no meio do processo. uma cidade nova e começo a catar tampinhas do chão, tampas de Então, me interessa como o trabalho se dá para mim, muito mais bebidas alcoólicas ou não alcoólicas, e vou agrupando-as em um do que eu me impondo a ele. Aí acabou gerando uma série desde campo que eu determino, em um quadro, e aqui no caso tem 1,60 2001, e eu já fiz em diversos lugares, Cidade do México, Tijuana, x 1,10, em que cabem mais ou menos quatro mil tampinhas. E essas San Juan, Londres, Rio de Janeiro, São Paulo, Recife, Nova Iorque... tampinhas vão sendo agrupadas a partir da sua marca, e essa marca, quando eu encontro mais, é porque foi mais consumida e, então, Essas séries nasceram juntas, pois ambas tinham essa vontade eu acabo fazendo uma espécie de gráfico estatístico a partir de de estar na cidade, de estar descobrindo a cidade a partir do seu amostragem do consumo daquela cidade. E novamente o resultado dejeto. Não que eu me interesse particularmente por questões de dessa pintura, por mais que pareça que possa ter sido planejada, reciclagem, apesar de, às vezes, as pessoas fazerem essa aproxima- é simplesmente um gráfico visual do consumo daquelas marcas, ção equivocada do meu trabalho. É mais uma coisa que está aí no por isso que essa marca tem mais que outra. Ela também tem uma mundo. Então, não estou particularmente interessado em ecologia, dinâmica interessante de território, onde uma marca (cor) começa não como artista, me interessa como pessoa. Porque eu acho que a fagocitar a outra e, quando começa a ficar mais apertado o espaço, a arte, inclusive, não pode se limitar a nada: “Ah eu não posso usar ela começa a expandir os seus domínios para o outro lado, tem uma uma tinta acrílica porque vai poluir o meio ambiente”. Tudo polui! dinâmica interna que ela se autoconstrói. Então, é um trabalho que Então, não quero levantar nenhuma bandeira. pode ser, inclusive, encomendado a partir de uma instrução... Me interessa muitas vezes quando você consegue pensar um trabalho A série Mapa de metrô foi feita com os bilhetes de metrô de algu- que possa quase se autorreproduzir, sendo único, original e fazendo mas cidades. Esta aqui, com os bilhetes de Nova Iorque.16 Eu cato sentido a mudança dele, porque a cada vez que eu for a Londres com os bilhetes nas ruas e depois redesenho as malhas metroviárias certeza mudou a dinâmica de consumo. Tem alguns que eu chamo daquelas cidades com seus próprios bilhetes. Então, aqui é o mapa de Mapas de longa duração, como o que fiz do Rio,15 supergrande, de metrô de Nova Iorque e aí tem o de algumas outras cidades como aproximadamente 15 mil tampinhas coletadas durante dez anos, Madri,17 Cidade do México,18 Londres.19 104 105 CADERNOS EAV felipe barbosa

“A relação cultural vai ser Aqui é uma instalação que estava no Paço Imperial,20 a exposi- ção chamava-se Estranha economia, todos os trabalhos lidavam determinante para a sua de alguma maneira com questões relacionadas à economia, ao dinheiro, à troca, à falsificação, à unicidade. E lá no Paço Imperial leitura da obra, a obra eu apresentei esta instalação,21 que era um ambiente doméstico em que todos os objetos eram feitos ou revestidos completamente por não vai estar completa em essa massa feita de dinheiro picado, dinheiro de verdade, notas que eu consigo com o Banco Central por estarem marcadas, ou seja, o nenhum estágio, nem dentro número de série está avisando ao sistema financeiro e bancário que foi dinheiro roubado, então, quando se recupera esse dinheiro, do ateliê, nem na rua, nem o Banco Central é obrigado, apesar de elas serem verdadeiras, autênticas, a descartar. E eu queria fazer um pouco essa ideia do na exposição, nem depois material que se constrói por si mesmo. Minha ideia é que esse ambiente doméstico – até a origem da palavra economia tem a que ela for totalmente ver com isso. Tudo no mundo, de certa maneira, é viabilizado ou materializado por meio desse instrumento que a humanidade sistematizada, avaliada pela criou, que é o dinheiro. Então, eu queria dar corpo e visibilidade a esse material. E costumo dizer, também, que todo trabalho vai crítica, pelo meio.” ter diversas sutilezas de leitura. Então, dentro dessa instalação, haveria trabalhos que, às vezes pelo próprio título ou pelo que é o objeto, criam uma autonomia. Por exemplo, aqui, são os bancos de dinheiro,22 ou então tem as malas feitas com dinheiro,23 tem um tanquezinho de lavar roupa que é um brinquedo, chama-se 106 107 CADERNOS EAV felipe barbosa

Aprendendo a lavar dinheiro, tem vários trabalhos que vão também Esse aqui, também, tem um pouco essa relação. Se chama Quadro se relacionando internamente e em conjunto e, em um sentido de cortiça,25 é um quadro de fotografias em que botei fotografias maior, em um conjunto de uma obra total, porque eu acho que, impressas e deixei se autofotografando no sol durante seis meses, no final, o que o artista está construindo é uma obra e não obras, então as fotografias geraram fotografias de si mesmas sobre um trabalhos isoladamente. O que interessa é realmente o conjunto, quadro de fotografia e ele é apresentado como uma fotografia 1:1. é um tipo de pensamento que vai ser a sua contribuição, se for o Então, tem essa circularidade e não poderia ser diferente, Fotografia. caso, à cultura, e não o objeto isoladamente. De volta à questão dos objetos que se autoestruturam, com uma Um outro aspecto que vocês vão perceber é que os trabalhos às vezes intervenção pequena minha, autoconstrução é um conceito que me são supersofisticados de serem feitos, apesar de não parecerem, e interessa. E também outra coisa importante é um sentido de precisão outros trabalhos são felizes justamente por serem supersimples. numérica em termos de elementos. O que eu quero dizer com isso? Esse aqui é um trabalho que se chama Lixa mão.24 Eu, basicamente, Que não é um trabalho de acumular objetos e a partir do acúmulo peguei uma lixa de parede, marquei minha mão com caneta no verso gerar um sentido: eu preciso de um número exato de objetos, às vezes e fiquei lixando uma parede de verdade sem tentar tirar minha mão esse número exato são três mil e às vezes são seis. Como no caso dos do lugar. Queria que desgastasse só na área que tivesse minha mão guarda-chuvas (abrigo), não tem como você fazer esse objeto com e, na verdade, eu fiz uma impressão da minha mão pelo desgaste, nenhum a mais e nenhum a menos, não acontece essa forma, mas às uma espécie de gravura um pouco inversa. Mas, ao mesmo tempo, vezes o número exato pode ser vinte mil ou cento e vinte mil. Então, o que me interessa é que eu não fiz nada, só usei minha mão para a questão do acúmulo não é importante, é muito mais a questão da lixar uma parede, e de repente aconteceu um trabalho. Se fosse des- quantidade precisa, a quantidade ideal para transmitir o que você crever, eu diria: “Eu peguei uma lixa, botei na parede, botei minha está querendo falar ou o que a obra está querendo falar. mão atrás da lixa e raspei a parede e isso gerou um trabalho”. Às vezes a descrição do trabalho é uma banalidade, só que a operação Outro aspecto, também, que vocês percebem no trabalho é o de é muito sutil nesse universo banal do cotidiano. coleção. Isso é uma coisa que vem perseguindo o trabalho. Não 108 109 CADERNOS EAV felipe barbosa

que eu vá colecionando e as coleções se transformem em traba- as mais clássicas que a gente imagina, de 32 gomos, vinte hexágonos lhos, é um caminho oposto. Eu penso um trabalho que já seja uma e doze pentágonos, e o que eu faço, basicamente, para torná-las coleção. Aqui, no caso, é um trabalho que está até participando planas é retirar os pentágonos, é uma operação que se dá por si só. de uma exposição26 nos EUA, itinerando já há uns três anos em E, ao mesmo tempo, é uma paleta cromática que muda cada vez que museus supersérios, agora ela está no ICA de Boston e se chama eu vou ao mercado comprar bola, então essa paleta vai sugerindo The Record – Arte contemporânea e discos de vinil. E é uma expo- outros trabalhos e me permite também não cansar a minha paleta. sição séria, começou na Duke University na Carolina do Norte... É curioso como esse universo curatorial é muito rico e o trabalho Sou bacharel em pintura pela EBA e minha formação, mesmo pode estar encaixado sob diversas questões. antes de entrar na faculdade, era produzir essencialmente pin- turas. Durante quatro, cinco anos, no início da minha carreira, Aqui27 é uma coleção de assinaturas de pessoas que possuíam a eu pintava com bastante frequência. E um aspecto que me freou minha atual coleção de discos de vinil. Então, eu organizo meus foi aquela velha questão, que eu acho que todo mundo que pinta vinis por a quem eles pertenceram e não pelo gênero. Também tem: o que eu vou pintar que tenha algum sentido? Porque fazer é uma espécie de autógrafos de pessoas que não são os artistas, ilustração infantil em tela grande não é o mesmo que pintura... Isso tem um pouco uma coleção inversa no próprio ato de colecionar, pra mim não era suficiente.... E esse trabalho é essencialmente de uma espécie de coleção perversa. E aí, para a exposição, digamos, pintura, pintura eu digo historicamente, porque historicamente existe a minha coleção e o objeto que está sendo exposto, eu acabei a tentativa da pintura era transmitir um mundo tridimensional fazendo uma série de cartões-postais, que são os fragmentos dos para o mundo virtual, plano, e é justamente o que eu faço nesse discos em que aparecem as assinaturas dessas pessoas que eram trabalho com a bola, a bola, que é um objeto que por si só define os colecionadores da minha coleção de vinis. um espaço tridimensional, é constituinte do plano em que ela se autorrepresenta. Então, na verdade, eu não estou planificando a Essa é uma série que faço há alguns anos, feita com bolas de futebol. bola, porque não estou alterando a natureza dos seus elementos, Na verdade, eu desmonto as bolas de futebol, as bolas que eu uso são não estou tirando nem estou recortando a unidade primária dela, 110 111 CADERNOS EAV felipe barbosa

estou só reconfigurando o próprio constituinte de que ela é feita. Eu falar com a pessoa quanto para a pessoa falar com o trabalho. E poderia recortar o gomo para chegar a algum formato, algum tipo essas leituras vão tornando o trabalho mais complexo na minha de pele, mas na verdade eu tento me ater ao próprio elemento sem cabeça, entendendo melhor o que eu estou fazendo e, também, alterá-lo, sem que ele possa deixar de ser bola, porque a qualquer vendo que o trabalho está, digamos, atingindo um certo objetivo... momento que eu quiser remontar a bola, eu posso remontá-la Nessa série de futebol mesmo, eu não entendia nada do esporte, com o plano. de que, aliás, nem gosto... Foi por conta do meu trabalho que eu passei a gostar de futebol... O trabalho vai te empurrando para E essas sutilezas dos universos pessoais e do olhar do outro, que determinadas áreas do conhecimento, o que me deixa muito feliz. é tão importante, aconteceram para mim nesse trabalho aqui, Nenhum dia no ateliê é igual ao outro. que é um hexágono feito com as bolas de futebol. Uma vez eu estava fazendo uma apresentação, uma visita guiada, que tinha Vou falar um pouco desse trabalho que se chama Boi bola.29 Ele é esse trabalho exposto,28 para uma turma de escola pública de dez, feito com couro de boi, desses que você compra em lojas de couro, doze anos, e percebi que tinha um menino que só olhava para esse e eu cortei e montei uma bola de couro – porque nenhuma bola trabalho, ele não estava prestando atenção em nada mais. Logo no mercado é de couro. Ele é de uma edição de sete, por acaso, e que eu terminei a visita ele levantou o braço e perguntou: “– Tio, eu tinha até vendido três trabalhos dessa edição e tive a ideia de esse trabalho aqui, por acaso, é uma tabuada de seis?” E eu, na gravar o símbolo da Nike e o final da tiragem ficou com a logo. Eu verdade, não tinha percebido que, de fato, é uma tabuada de seis não estou muito preocupado com esses aspectos de uma tiragem no somatório dos gomos. No centro 0 x 6 não tem o gomo, na que ficou inicialmente interrompida, porque o trabalho, digamos, primeira volta 6 x 1 = 6 gomos, na segunda 12, e assim por diante, transcendeu aquela situação e acho, também, que é importante e terminava na décima volta, exatamente 60 gomos. É uma coisa o artista ter essa possibilidade de ser menos preocupado com o que nem eu saquei a princípio e é muito bom quando a pessoa resultado, ele sempre pode ficar melhor, sabe? Não tenho pressa de fora empresta esse olhar sofisticado, independentemente da de o trabalho já estar resolvido totalmente, se tem uma coisa boa formação, e eu tento deixar essa abertura tanto para o trabalho em ser artista é você justamente ter a liberdade de voltar atrás. 112 113 CADERNOS EAV felipe barbosa

Eu pintei até 2000, minha última pintura. Em 2008 comecei a as mesmas casinhas que foram para o acervo do MAC de Niterói e, fazer as pazes com a pintura por intermédio do Volpi, na verdade como eles não têm sempre como apresentar ele montado da maior é um Volpi meio maroto, porque o que me interessava aqui era um maneira, eu fiz algumas opções de montagem. Então, eles têm, na tipo de construção que eu podia fazer com as casas. E a questão verdade, cinco obras em uma. A princípio foi uma coisa um pouco da geometria, novamente, como um elemento estruturador do estranha, não vou dizer por que eles não aceitaram a ideia numa projeto. Eu fiz diversos condomínios, como chamei esta série,30 boa, mas para o setor de museologia era um pouco estranho você que são casas de pássaros, em que eu uso uma paleta livremente ter inventariado cinco obras e na verdade não tinha todas aquelas aproximada do Volpi e faço um pouco essa relação que, na ver- unidades. São questões com que a arte contemporânea tem obrigação dade, vem das bandeirinhas, mas é gerada pelos telhados, tem um de lidar, as instituições, os museus têm que se adequar à nova pro- elemento autoconstrutor e que também vai se desdobrando em dução e cada vez mais rápido isso acontece. Hoje, também, a gente diversos sentidos. Aqui, eu explorei um plotter direto na parede, vive em um sistema de arte no Brasil bastante maduro, eu diria, bem fiz algumas possibilidades e comecei a me aproximar um pouco diferente de quando eu comecei, em 1996. Há dezesseis anos, era bem da pintura... Eu gosto de pegar uma ideia e realmente esgarçá-la diferente todo o sistema de arte, desde a escola, como a gente estava ao máximo. falando mais cedo, enfim, o panorama acadêmico, mesmo, você tinha pouquíssimas opções. Em vários aspectos a gente está bem melhor. Esta aqui31 é a maior que chegou a ser construída e talvez a mais radi- cal, que é com a casa de cachorro que se chama In the Dog´s House, Em 2009 eu fiz uma exposição na Casa Triângulo, em São Paulo, que seria uma situação difícil, alguma coisa assim. E, novamente, a chamada Arquitetura de engenheiro,33 em que, a partir das casi- minha operação aqui é quase nenhuma, praticamente só empilho nhas de passarinho pintadas, eu gerei uma série de pinturas e essas as casas existentes para gerar o trabalho. Um outro elemento que realmente tinham um diálogo explícito com Volpi, até na fatura, também vai importar, mais do que objetos, é um sentido de módulo: nas cores. E, ao mesmo tempo que a escultura foi para a pintura, o trabalho também assimila o objeto muitas vezes na lógica modu- eu também a forcei a, digamos, o que seria um limite extremo, que lar, onde ele pode ser expandido, reconfigurado. Estas aqui32 são seria a própria arquitetura elaborando um projeto em autocad para 114 115 CADERNOS EAV felipe barbosa

a construção de um prédio. Não construí ainda esse projeto, mas ele está todo dimensionado e é totalmente viável, um arquiteto trabalhou comigo e a gente projetou um prédio viável de ser cons- truído. Então, novamente, essa busca para que o trabalho possa se desdobrar ao extremo e no que ele se transforma, gerando novos trabalhos, novas ideias e irrigando outros trabalhos que estavam até esquecidos. Os meus trabalhos demoram muitos anos para saírem do ateliê, isso é uma curiosidade também, se vocês forem reparar nas minhas fichas técnicas, é sempre assim, 2005-2009, 2007-2012, tem sempre um tempo até eu sentir que eles já fazem sentido fora do ambiente controlado do ateliê... Alguns, é claro, são mais rápidos, mas eu procuro sempre entender bem o trabalho antes de botar ele no mundo. Eu quero poder falar do trabalho, poder defendê-lo.

Uma outra relação do trabalho é com o design, com o produto mais do que uma relação com o design, tem muito mais a ver com certo desprezo pelas artes visuais e com não querer necessariamente só pensar em um circuito de arte tão viciado. Eu acho que é um desafio pessoal cada trabalho me empurrar para uma nova técnica, uma nova questão e novos relacionamentos.

Em 2000 eu fiz esta pintura, que se chama Círculo cromático,34 com In the Dog´s House, 2008 Casas de cachorro organizadas chicletes de diversos sabores e com massinha de modelar. Então, 300 x 450 cm Foto: Studio Barbosa Ricalde 116 117 CADERNOS EAV felipe barbosa

já tinha uma relação da pintura ser um resultado de uma ação do quanto mais ela vai crescendo, mais vai se apurando, vai ficando corpo ou um resultado conceitual... mais sofisticada, ela começa, inclusive, a mudar o próprio discurso sobre si mesma, ela começa a criar aspectos diferentes desde uma Procuro deixar o material que trabalho o mais cru possível e não arqueologia e, também, ao mesmo tempo, você começa a pensar: tenho nenhuma preocupação em fazer merchandising ou qual- O que é a falsificação? O que é a cópia? O que é a cola? O que é quer coisa desse tipo. Isso é uma questão. Às vezes, por exemplo, mainstream? O que é underground? A exposição do Paço Imperial agora nessa exposição do Museu do Futebol, que é uma exposição discutia essas questões... Tem um trabalho, que estava no Paço grande, não podiam aparecer marcas, porque teriam problemas Imperial, que é um gráfico com as provetas graduadas cheias de com o patrocinador... Mas, como tenho um universo tão amplo Coca-Cola, correspondentes às embalagens de volumes diferentes e tão diversificado de trabalhos, isso para mim acaba não sendo que eu consegui catalogar, até agora 22 graduações de Coca-Cola problema, porque tem sempre um outro trabalho que possa dar até um litro, ou seja, começa na embalagem de 140 ml e até a de uma resposta. Então, me dá uma liberdade, também, de não ter esse um litro são curiosidades sobre o mundo que também movem o tipo de preocupação, de deixar realmente o trabalho contaminado trabalho sem querer dar uma resposta. pelo mundo, de deixar o trabalho mostrar o que ele é e de que é feito e não tentar camuflar o que o material é. Aqui, é uma série que também é construída muito mais pelo olhar, a minha ação, de novo um pouco de coleção e de perceber um aspecto Esta instalação35 estava também na exposição Estranha econo- que vai ser evidenciado quando você coloca isso lado a lado, quando mia, no Paço Imperial. É um trabalho em processo, mais uma das você faz, digamos, uma curadoria sobre esse objeto mundano ou coleções. É uma coleção de refrigerantes de cola, sabores de cola, sobre esse olhar mundano e o coloca no âmbito da arte ou da dis- não a Coca-Cola, e que eu ponho em fila em uma cola e ela está cussão intelectual. crescendo até hoje, ela começou em 2002 e atualmente conta com quatrocentas marcas e embalagens diferentes de refrigerantes de Aqui,36 é uma série que eu fiz na minha cidade, Rio das Ostras, de cola. Me interessa o aspecto de ela estar em crescimento, porque, lixeiras, as pessoas fazem isso para os animais não atacarem o lixo, 118 119 CADERNOS EAV felipe barbosa

só que, ao mesmo tempo, elas começam a se tornar expressões um trabalho que rememorasse essa visão idealizada do pôr do sol esculturais, eu diria, tem uns realmente interessantes. que você tem na água, dele baixando. Então, são oito velas de wind- surfe nessa cor e que geram essa imagem emblemática e clichê... A série seguinte tem também essa relação, eu chamei de Construti- vismo literário37 e é uma série de vitrines que eu vou fotografando, Gostaria de falar também desses dois trabalhos de 2000. São de livrarias. Eu realmente queria saber por que é assim, se isso faz trabalhos muito pontuais, em que apareceram diversas questões vender mais livros... Mas, enfim, então tem um olhar curioso sobre para mim. Primeiro, a questão da latência, de como um gesto pode a carne do mundo. alterar muito e, ao mesmo tempo, de como fazer uma pintura o mais radical possível. A minha ideia inicial era fazer uma tela Aqui tem a série um pouco mais pirotécnica, eu diria. Esse mate- com palitos de fósforo e eu fiquei muito com a frase do Barney rial não tem no Brasil, então não é muito conhecido, se chama Newman na cabeça, quando ele falou que um gesto muda toda a ‘acendalha’ – eu fiz em Portugal esse vídeo. Ele é um material para lógica do quadro, que um gesto é suficiente para mudar o quadro, acender lareira, então é um combustível sólido, uma mistura de e eu fiquei com isso e queria radicalizar um pouco essa ideia. parafina com querosene, com o cheiro superativo, e eu fiz esse Inicialmente, eu comecei a botar os palitos de fósforo em uma iglu,38 o vídeo começa com essa cena, foi feito no cais do porto, então rede de mosquiteiro, enfiava um por um, só que no meio já vi que tem um vento constante, você sente a temperatura da imagem, o negócio não ia dar muito certo, porque a coisa começou a defor- você é enganado porque você não tem o cheiro e depois fora de mar e não ficou uma pintura como eu queria, ficou uma espécie cena começa a vir o fogo e lentamente consome o iglu, leva vinte de superfície que tem 1 m x 1 m aproximadamente, mas que tem minutos para consumir essa peça. esse sentido de risco que eu queria. Só que foi muito interessante perceber essa falha, porque eu queria que fosse um quadro, uma Crepúsculo39 foi para uma exposição40 em Portugal, que aconteceu coisa plana, e comecei a perceber que o fato de a cabeça do palito em uma galeria que foi um armazém do porto, e eu fiquei pen- de fósforo ser maior do que o corpo era o problema que não faria sando que o armazém obstrui a visão para o rio e eu queria fazer o trabalho ficar plano. Na verdade, esse problema me fez perceber 120 121 CADERNOS EAV felipe barbosa

que o material estava querendo ser outra coisa, e esse trabalho “A relação com o se chama Mórula,41 mórula é um estágio embrionário, a partir das mitoses da célula. Assim que é fecundado, o óvulo começa objeto, enfim, vai a se dividir e chega a um estágio celular que se chama mórula, que é uma espécie de bola com essas células. E esse DNA que eu descobri, de certa maneira, do palito de fósforo ter a cabeça desde essa relação maior do que o corpo, e aí, quando eu colocava ele lado a lado, ele gerava um segmento de cone, e esse segmento de cone gerava uma forma esférica. Então, essa forma é só uma resultante do fato de física e estrutural da a cabeça do palito de fósforo ser maior do que o corpo. Essa aqui é a primeira. Quando eu comecei a agrupar elas para tentar fazer coisa, como também esse trabalho, percebi que ela estava se sugerindo dessa forma, se autoestruturando, e aí a coisa começou a ficar mais sofisticada, até eu conseguir fazer, só com perímetros,42 já ver que era uma de uma associação forma autoestruturante, apesar de ser só fósforo e cola, e é bem evidente, você vê a cola, eu não tento camuflar do que é feito, ela poética, imaginária é superresistente porque é um tipo de construção que está no DNA das coisas. É muito curioso como essa forma vai estar em e conceitual...” diversas coisas do universo inteiro, do micro ao macro. A relação com o objeto, enfim, vai desde essa relação física e estru- tural da coisa, como também de uma associação poética, imaginária e conceitual... 122 123 CADERNOS EAV felipe barbosa

O Desenho espacial é um filhote do problema dos fósforos não Então, também tem essa adequação, até você se conformar com a ter dado certo como pintura lá no início.43 Eu percebi que essas realidade do mundo. Não existem livros de geometria descritiva células de fósforo das Mórulas eram segmentos de cone, assim com a proporção áurea, não precisa ninguém procurar, garanto! como as pontas dos lápis eram um cone; então, comecei a colar, Nunca existiram no Brasil, já procurei em todos. [Risos] Então, tem simplesmente, a ponta dos lápis lado a lado, sem nenhum elemento um pouco de o trabalho se adequar. E tem alguns livros que você interno, só a cola, e ela ia gerando esse formato esférico e, apesar compra sem nem saber muito bem por quê. Esse livro do peixe é de não parecerem, são bastante resistentes. Aí o trabalho vai se um livro da Phaidon, que é uma editora grande, chama-se Fish desdobrando em diversos objetos diferentes. face.45 E, basicamente, são caras de peixe em cada página, e depois de ter alguns anos esse livro no ateliê, pensei: “Para quê comprei Um outro elemento que vai aparecer em alguns trabalhos é o livro, isso?” [Risos] e em uma demanda de uma exposição que se chamava tanto como instrumento de estudo quanto como material. Este44 A água e seu papel,46 e tem essas coisas que você fica quebrando aqui é um trabalho que eu acho muito importante na minha tra- a cabeça para tentar pensar um trabalho, e aí na última hora eu jetória, porque eu acho que ele resume diversos aspectos. São três pensei nesse trabalho,47 de inserir um aquário, tem um aquário de livros de geometria descritiva e, se tivessem a proporção áurea nas verdade que fica dentro do livro com um peixinho nadando ali... suas medidas, eles descreveriam um icosaedro perfeito. A princípio, eu fiquei durante uns três anos procurando livros com a proporção Este48 também é um trabalho que começou em 2000 e até hoje eu áurea, então eu ia à livraria, ao sebo, procurar livros de geometria faço. Chama-se Justa troca. São chaveiros de guarda-volumes de descritiva com a proporção áurea. E, depois, eu descobri que não supermercados, museus, centro culturais, eu vou ao lugar, deixo precisava, que ele já gerava a imagem que eu pretendia, que era o uma coisa minha e guardo a chave, não volto para devolver, e vou icosaedro. Isso é uma propriedade matemática, se você interse- colecionando essas chaves a partir dessa troca compulsória que ciona três planos áureos entre si, a ligação entre o perímetro desses realizo em alguns lugares. E o objetivo, digamos assim, desse jogo planos vai gerar um icosaedro. Isso é uma coisa que, estudando que eu criei para mim mesmo é tentar fazer uma sequência numé- matemática, eu descobri e quis aplicar esse princípio a um trabalho. rica, o que é um desafio, muitas vezes a chave que você quer não 124 125 CADERNOS EAV felipe barbosa

tem, então tem um pouco dessa brincadeira de completar o álbum risco, me interessa essa potencialidade de uma coisa tão pequena de figurinhas, que vai estimulando você a continuar o processo de poder conter uma energia. Obviamente a gente estava falando da trabalho. pilha, da pólvora, mas na verdade eu acho que esse poder é uma metáfora para o poder da própria arte, em que um pequeno objeto Novamente o aspecto de latência das séries de fósforos, dos esta- vai conseguir ter uma potencialidade capaz de atingir um mundo linhos, dos homens bomba, aparece na série chamada Pilhados.49 inteiro, de certa maneira, e curiosamente eu percebo isso dentro Eu uso pilhas novas, não é reciclagem, pelo contrário, porque me do meu universo de trabalho: como alguns trabalhos bem peque- interessa essa potencialidade que está dentro da bateria, me inte- nos são muito emblemáticos na minha trajetória. É o caso com ressa a energia que está contida ali, e às vezes essa energia, essa um trabalho que eu tenho, que é um martelo de pregos,51 algumas busca por um material potente, se você conseguisse desmontar pessoas depois foram falando assim: “– Nossa, mas é tão pequeno!” o trabalho, poderia ligar um objeto elétrico. O controle que tento Porque esperavam que fosse uma coisa e era só um martelo com dar à obra vem do fato de resinar as pilhas só até um certo ponto, pregos. Então eu acho que é um pouco essa metáfora da arte mesmo. deixando algumas áreas delas em contato com o oxigênio, então quero que esse trabalho de fato pingue, chore e contamine... Aluno: Eu percebi uma coisa muito geral no seu trabalho, que é bem plural, mas tem uma coisa muito singular, que é Tem um desdobramento dessa obra, que é mais recente, que se o acúmulo, parece que você falou muitas vezes de coleção, chama Chuva química.50 São várias nuvens, que estarão instaladas muitas vezes de você querer acumular coisas. São duas em uma exposição em que elas estão mais expostas e menos cola- perguntas: tem uma questão da pintura, porque você falou das, elas estão realmente pingando veneno durante a exposição, que pinta com outros objetos, de que maneira você se algumas vezes a própria bateria se soltará da nuvem e cairá no coloca no campo artístico, por exemplo, isso é bom? Você chão... Assim espero... Me interessa um certo grau de radicalidade se caracteriza como um pintor, um escultor? E de que dessa potencialidade, que, de fato, o objeto gere uma relação de maneira a crítica encara isso de você, como artista, ter uma presença com o observador, muito mais do que de ilustração de um produção muito plural, porque você tem diferentes trabalhos 126 127 CADERNOS EAV felipe barbosa

de diferentes temáticas e uns você tenciona, provoca, essa Mas, assim que eu comecei, um artista que eu acho muito bom questão da latência você se mostra de uma maneira crítica chamado Jorge Duarte e que me convidou para uma das minhas quanto à arte e em outras não. Quero saber como você se primeiras exposições bacanas, virou para mim e disse: “– Felipe, coloca e se isso é um problema ou não para você, porque você vai se ferrar, porque vai ter o mesmo problema que eu tive, você não quer se colocar. A segunda questão é como a crítica o meu trabalho é muito diversificado e as pessoas não conse- te recebe dessa maneira. guem assimilar bem isso”. Eu falei: “– Bom, fazer o quê, né?”. E eu acho que, de certa maneira, você se impõe, eu me impus, Primeiro, eu me coloco como artista no sentido mais amplo possível impus o meu trabalho, no bom sentido. E percebo uma certa da palavra, depois como um artista visual... Mas, na verdade, não me coerência, hoje em dia, esse meu livro Matemática imperfeita preocupo com isso! Sou um artista interessado pelo mundo, então tenta abranger quinze anos de carreira, e eu consigo perceber esse mundo acaba fazendo que eu me interesse por diversas outras claramente o momento em que as pessoas conseguiram conectar coisas além da arte. A arte é mais um dos meus grandes interesses vários trabalhos que elas já conheciam, mas não necessariamente e principalmente a minha profissão. Mas tem vários assuntos e ligavam uns aos outros. algumas coisas que vou descobrindo e que me despertam algo que nem sei definir bem, porque a arte vai me levando e de repente Cronologicamente, o primeiro trabalho meu mais conhecido estou fazendo algumas coisas que eu nem sabia que eu sabia fazer. foi esse das mórulas de fósforo, e aí durante dois meses “o rapaz Eu acho que nesse sentido de encarar a vida como artista e deixar faz as mórulas de fósforo”, eu podia me acomodar muito bem aí. a vida te levar. Sobre a sua segunda pergunta, acho interessante E aí, logo depois, eu fiz o trabalho que foi apresentado em uma porque você tem razão, para a crítica esse tipo de trabalho é um exposição grande, que era o Martelo de pregos. Foi apresentado problema, primeiro porque você não se coloca em um segmento, no Paço Imperial em 2002, numa exposição que foi muito impor- segundo porque você se contradiz o tempo inteiro. Eu uso a pintura tante, até para despontuar, para contradizer o primeiro trabalho, às vezes para reafirmar que não estou interessado em pintura ou uso pois era uma exposição de cinquenta anos de arte brasileira e a a escultura para reafirmar que não estou interessado em escultura. última obra era o Martelo de pregos. Então, teve muita visibilidade 128 129 CADERNOS EAV felipe barbosa

e era o oposto do que as pessoas conheciam. Logo depois, eu fiz aluno e vai fazer Belas-Artes?” É fato, eu só tirava notas altíssimas. uma série que é essa de bolas de futebol, então ferrou, sabe como No vestibular com minha nota passaria para Direito, Medicina, e é? Não dá mais para me identificar pelo material. Então, eu acho escolhi fazer Belas-Artes, nem tentei fazer Arquitetura ou Dese- que é um desafio diário e acho que a crítica tem certa dificuldade. nho Industrial para garantir um empreguinho. É um desperdício Eu, particularmente, acho curioso como alguns artistas são tão de educação, se você for imaginar, para o entendimento familiar. pouco instigados pelo mundo. Às vezes tão jovens e já se colocam, Então, quando você já vence esse primeiro desafio, que é decidir “eu sou pintor”, “sou fotógrafo”, “trabalho com vídeo”, eu acho ser artista, suas chances aumentam... Hoje vocês podem pensar: curioso você se limitar tão precocemente e acho triste que a crítica “Ah, tem mercado, tem galeria”. Gente, é difícil para caramba, não tenha tanta dificuldade, não dá para falar globalmente, porque se enganem não! Porque é cotidianamente no ateliê trabalhando isso também já era, “a crítica”, ou “o mercado”, ou “o circuito” em todos os aspectos da produção. não são entidades que estão sentadas em uma mesa definindo o que é circuito, mercado ou crítica... Quem faz isso é você, você, Outro aspecto que eu acho que falta ainda na formação do artista o artista, o resto não interessa. Então, eu acho que você tem que visual, e que os músicos já decidiram muito bem, é a sua autogestão, ter certa postura, digamos, arrogante de impor o seu trabalho, você realmente se colocar como um profissional. A crise da indús- de impor a natureza do seu trabalho e não se adequar “a crítica tria fonográfica fez que os artistas músicos entendessem que dava prefere que eu só faça essa série...” “Bom, foi mal aí...” O artista para tomar um espaço e não só esperar as coisas acontecerem. É em certa medida tem que ser um desajustado, mesmo dentro do mais ou menos a mesma postura em relação à crítica. sistema da arte. Aluno: Olhando seu trabalho, observei uma ressignificação Volto a dizer, hoje, para vocês o campo é muito diferente de expec- a partir da mescla entre apropriação de objetos previamente tativa, de possibilidades. Mas, em 1995, quando eu virei para a construídos e uma intervenção plástica. Eu queria saber se minha família e disse “vou fazer Belas-Artes”, era uma vereda você conceitua previamente seu trabalho e como é que se dá de que ninguém nunca ouviu falar. “–Poxa, mas você é tão bom esse processo. 130 131 CADERNOS EAV felipe barbosa

Cada projeto é muito diferente do outro. Algumas vezes a ideia vem mais pronta. Às vezes fica um trabalho latente na cabeça e de repente ele se resolve. Então, assim, cada caso é realmente um caso específico.

Aluno: Eu queria saber se você escreve seu trabalho, por exemplo: “Estou querendo abordar isso”, “Penso nisso”, antes ou depois, durante...

Antes, durante, depois. Depende, depende do trabalho. Obviamente sou muito consciente, fiz mestrado, escrevi uma dissertação, que para o artista é um tormento mesmo, juro, foi superdifícil! Você sabe mais ou menos o que está fazendo, mas também não pode querer achar que você vai ter uma ideia e as coisas vão se resolver a partir daquela ideia, porque aí você mata justamente esse espaço da experimentação, você mata o espaço do erro. Se não fossem alguns erros, alguns acidentes, algumas séries de que eu gosto muito não existiriam. Então, é importante você deixar esse espaço para você poder criar. É um olhar atento o tempo inteiro, é antes durante e depois, porque depois que o trabalho está pronto, ele está pronto em algum aspecto, você pode ter um trabalho vendido que depois você altera. Esqueci o nome do artista, um pintor brasileiro, que era Tetris ball, 2005 Bolas de futebol abertas e recosturadas convidado para os jantares e as pessoas ficavam vigiando porque 200 x 135 cm Foto: Studio Barbosa Ricalde 132 133 CADERNOS EAV felipe barbosa

ele ia na casa dos outros e mexia nos quadros, levava uma tinta... achar que ele é aquilo, mas ele também pode ser aquilo outro. Então, Tem um pouco essa sensação... [Risos] acho que tem um pouco essa relação do mundo, das pessoas, por aí.

Aluna: Vi a sua exposição do Paço, estava vendo aquelas Aluno: Você explicou sua obra usando muitos termos espirais de notas, de boletos e as gravatas, também, e me matemáticos e científicos. Você acha que essas ciências remeteu muito a uma coisa de cotidiano, de estar pagando podem contribuir efetivamente para sua obra, para sua criação aquilo, de boletos de viagem, de conta, etc. Como é que você artística? lida com essa expressão, com essa influência do dia a dia na sua obra, com a natureza do material e com essa questão de Sim e não. Acho que o trabalho já meio que responde isso. Por cotidiano, também. Como é que isso se dá na sua obra? exemplo, até essa imagem que está aberta aqui, esse trabalho com ladrilhos hexagonais, eu fiz antes das séries das bolas de futebol, Eu acho que o cotidiano se dá pela minha aproximação com o a bola de futebol é quase o inverso desse trabalho. Então, assim, mundo, eu quero que o meu trabalho fale sobre o mundo, sobre as o mundo estava ali, isso aqui é muito mais o meu universo do que pessoas, não tem um aspecto que eu acho mais relevante e como as bolas. E é curioso como desse trabalho até o trabalho das bolas artista também não acho que a arte é a coisa mais importante do tem um espaço de dois a três anos quase. Um pouco por isso, o mundo. Lógico que, por ter estudado, me interesso por história conhecimento flui a sua vontade, são coisas que me interesso, não da arte, acho que sobre diversos aspectos, inclusive, o trabalho tenho formação acadêmica em ciências, mas eu leio muita divul- é muito motivado por questões da história da arte, pela relação gação científica, me interesso, vejo documentários, estou sempre com o neoconcretismo carioca, enfim... Mas não é um aspecto a se pesquisando. frisar. Eu mantenho essa permissividade no trabalho em relação ao mundo, uma certa promiscuidade do trabalho com o mundo. Então, Aluno: Minha curiosidade vai um pouco além do seu trabalho, mais do que uma ressignificação, ele está ali também, ele faz parte eu queria saber um pouco de você como indivíduo, como é o do mundo, ele está se relacionando naquele contexto que faz você seu ateliê? Como é o seu sistema de produção? Você produz 134 135 CADERNOS EAV felipe barbosa

sozinho? Você deixa que alguém entre no seu espaço quando não precisa acender luz, capta água da chuva. Eu acho que é culpa você está nesse processo de evolução de um trabalho? É uma de gastar tanto material! [Risos] Aqui, por exemplo, esse mezanino curiosidade muito pessoal. foi pensado para poder fotografar, isso até atende mais ao trabalho da Rosana, que trabalha muito sobre papel, então, antes de botar Bom, eu vou mostrar umas fotos do ateliê, vou passar rápido, porque a moldura, pode-se fotografar as coisas de cima, tem toda uma também é um aspecto importante. preocupação técnica. Tem uma parte da oficina que tem uma sala de pintura, também, então aqui é vazado para poder sair vapor de Atualmente, eu tenho dois ateliês, eu moro a maior parte do tempo tinta, tem também uma biblioteca, escritório, arquivo de docu- em Rio das Ostras, eu me mudei para lá há quase quatro anos, eu mentos, reserva técnica, etc.. sou casado com uma artista, Rosana Ricalde, que também tem uma produção... Talvez trabalhe mais do que eu até, temos filhos É uma empresa... E, paralelo a isso, a gente tem outro ateliê aqui em pequenos e tal. Então, a escolha de Rio das Ostras foi tanto no nível Botafogo, ele funciona mais para quando a gente está aqui no Rio pessoal quanto na ideia de criar um ateliê que pudesse atender e também para receber curadores, algumas pessoas, a gente acaba todas as nossas demandas. Então, durante dois anos a gente fez recebendo no ateliê que tem um arquivo pequeno, mas a produção uma obra, um ateliê realmente grande que tem salões separados, mesmo mais efetiva é dada lá nesse lugar que a gente construiu para Rosana tem um tipo de espaço, eu trabalho mais no segundo andar, trabalhar. E é isso, todo dia no ateliê, acordar e trabalhar, não tem eu fico mais sozinho no segundo andar, que é a biblioteca, onde muito por onde escapar não, está nos fundos de casa... tem diversas experiências, objetos e coisas em andamento, mas a produção é mais feita nas oficinas, que são no primeiro andar. Aluno: É só uma curiosidade, porque você falou que não teve Lá a gente tem uma equipezinha fixa, hoje de cinco pessoas e os arquiteto nesse projeto, eu faço arquitetura e pelo que vi está colaboradores, e todos atendem no ateliê. Então, dependendo da um projeto bem resolvido para um ateliê. E acho curioso, porque demanda, minha ou da Rosana... Toda a arquitetura do espaço foi eu, como estudante de arquitetura, fico pensando nessa questão construída para ser ateliê com todas as nossas demandas, a gente dos espaços para a arte. Na faculdade a gente não tem uma 136 137 CADERNOS EAV felipe barbosa

matéria específica para isso ou qualquer tipo de coisa como a Aluno: A minha formação, assim como a sua, é em pintura gente tem para habitação, comércio, enfim... Você que projetou também e no meio da faculdade eu estava pintando e vi todo esse ambiente? É uma curiosidade sobre o projeto. que não era a minha praia e de repente tentei outras coisas. Sei que você já pintou muito, sua produção em pintura Na verdade, existiu um projeto esboçado por mim e o André na faculdade, e mesmo depois dela, você teve uma larga Renaud, que não foi nada feito, porque envolveria cálculo estru- produção e de repente você começou a criar objetos, tural, além de nem eu nem o André sermos arquitetos... Foi feito intervenções. Você tem um ou outro artista que tenha te assim, na base do do it yourself, também não tínhamos garantias de influenciado a seguir esse caminho ou você falou: “Pintura já que íamos ter grana pra fazer até o final, então resolvemos começar deu o que tinha que dar para mim, vou tentar outras coisas”? e tivemos a sorte de encontrar um mestre de obras muito bom, que facilitou a coisa toda, eu aprendi muito com o cara, um cara Não, nenhum especificamente, eu continuo gostando bastante de incrível, até hoje ele faz algumas coisas para mim até de trabalho, pintura, até coleciono algumas coisas. Era uma demanda interna coisas aqui no Rio ele vem de Rio das Ostras para fazer. E realmente mesmo de uma obra mais conceitual, acho que é mais essa procura eu saquei que o cara entendia do que estava falando, até onde ele de uma obra que tivesse uma visualidade, tivesse uma expressão, ia, e a gente foi fazendo na medida, assim, tinha uma ideia geral mas que tivesse conceito. Eu acho que às vezes se pensa que uma e aí foi sendo feito na medida da grana. Realmente, tudo foi pen- coisa para ter conceito tem que ser hermética, tem que ser antipo- sado para ser ateliê, é um lugar que eu acho que dificilmente seria pular, e eu acho que não necessariamente, eu sempre falo do Tom reaproveitado, quer dizer, dá para aproveitar para outra coisa, vai Jobim, porque acho que ele chegou a um grau de sofisticação na desde a telha térmica com lâmina de metal para não transmitir música e é extremamente popular, tanto é que até hoje em todas eletricidade nem calor, a iluminação, tamanho de portas, polias as novelas só toca Tom Jobim. Não precisa ser ruim, não precisa para suspender trabalhos, etc. Eu e Rosana já tivemos vários ateliês, baixar o nível para ser popular, enfim, um artista maior, referência, então a gente já sabia mais ou menos que tipo de espaços a gente o Tom Jobim. E aí na arte, o Cildo, acho que essa coisa do resul- gostaria. Não é um galpão, é setorizado segundo as necessidades. tado formal interessa menos do que o processo conceitual, mas ao 138 139 CADERNOS EAV felipe barbosa

mesmo tempo tem uma exuberância, tem uma presença visual na Notas obra do Cildo quase sempre, tem uma inteligência visual, também, 1. BARBOSA, Felipe. Vestiário. Exposição individual realizada no Museu do Futebol. São que me interessa bastante. Paulo, de 14 de fevereiro a 15 de julho de 2012. 2. BARBOSA, Felipe. Matemática imperfeita. Rio de Janeiro: Apicuri, 2011. 292 p. 3. BARBOSA, Felipe. Matemática imperfeita. Exposição individual realizada no Centro Tânia Queiroz: Eu queria fazer uma... não é exatamente uma Municipal de Arte Hélio Oiticica. Rio de Janeiro, de 6 de novembro a 5 de dezembro pergunta, mas, se você só pudesse fazer uma recomendação de 2010. para as pessoas que estão começando uma formação em arte, 4. BARBOSA, Felipe. Sinuca de bico, 2003-2010. Mesa de sinuca alterada. Dimensões: 100 x 200 x 310 cm. qual seria ela? 5. Espelho refletido -O surrealismo e a arte contemporânea brasileira. Exposição coletiva realizada no Centro Municipal de Arte Hélio Oiticica. Rio de Janeiro, de 10 de junho a 29 de julho de 2012. Uma só é difícil! Eu posso fazer um monte, rapidinho... [Risos] Pri- 6. BARBOSA, Felipe. Mergulho do corpo - Lavando a alma, 2010. Caixa de água revestida meiro é ter uma relação verdadeira com o trabalho, de gostar mesmo de azulejos, 110 x 134 x 134 cm. de estar no ateliê, de gostar do meio, porque nem sempre é muito 7. BARBOSA, Felipe. Movediça, 2010. Mesa, rede e bolas de pingue-pongue. Dimensões: 75 x 153 x 275 cm. gratificante essa profissão, aliás na maioria das vezes não é, então 8. BARBOSA, Felipe. Homem bomba, 2002. Objeto construído com bombas. Dimensões: fica no meio quem realmente gosta, quem tem uma relação mesmo 44 x 20 x 13 cm. 9. BARBOSA, Felipe. Mórula, 2002. Palitos de fósforo colados lado a lado. Dimensões: 44 de paixão, é romântico, porque sem romantismo eu acho que em x 40 x 43 cm. nenhuma profissão você vai conseguir ser muita coisa. E a outra 10. BARBOSA, Felipe. Insight, 2003. Cabeças feitas com estalinhos brancos. Dimensões: seria realmente aproveitar as oportunidades desse tipo aqui, da 35 x 24 x 25 cm cada. 11. BARBOSA, Felipe. The Record, 2011. Podios feitos com discos de vinil. Dimensões: 60 faculdade. Hoje a gente tem um monte de palestras, visitas guiadas x 40 x 20 cm. e isso melhora tanto a formação! Eu digo por mim, fiz a Escola de 12. BARBOSA, Felipe. Bolaruga/Turtle Ball, 2005. Resina e pigmentos. Dimensões: 22 x Belas-Artes em um momento muito precário da escola e eu ia a um 22 x 22 cm. 13. BARBOSA, Felipe. Mapas de consumo, 2001-2010. Série de mapas estatísticos feitos de monte de palestras e tem sempre coisa boa acontecendo, às vezes tampas coletadas em diversas cidades do mundo. você ia a palestra com um cara superimportante e tinha quatro pes- 14. BARBOSA, Felipe. Mapa de metrô, 2001-2008. Série de bilhetes de metrô redesenhando a malha metroviária da cidade. soas, para você é até bom porque a pessoa dá a palestra para você... 140 141 CADERNOS EAV felipe barbosa

15. BARBOSA, Felipe. Mapa de consumo de longa duração do Rio de Janeiro, 2001-2010. 31. BARBOSA, Felipe. In the Dog’s House, 2008. Instalação. Dezesseis casas de cachorro Mapa estatístico de consumo feito com tampas de bebidas coletadas pela cidade. 200 de tamanhos diferentes. x 300 cm. 32. BARBOSA, Felipe. In the Dog’s House, 2008. Instalação. Quatro casas de cachorro 16. BARBOSA, Felipe. Mapa de metrô Nova Iorque, 2005-2008. Bilhetes de metrô cada. Dimensões: 220 x 220 x 58 cm e 220 x 58 x 267 cm. redesenhando a malha metroviária da cidade. 280 x 180 cm. 33. BARBOSA, Felipe. Arquitetura de engenheiro. Exposição individual, realizada na 17. BARBOSA, Felipe. Mapa de metrô Madri, 2001. Bilhetes de metrô redesenhando a Galeria Casa Triângulo. São Paulo, 2009. malha metroviária da cidade. 195 x 195 cm. 34. BARBOSA, Felipe. Círculo cromático. 2000. Pintura. Chicletes e massinhas de 18. BARBOSA, Felipe. Mapa de metrô Cidade do México, 2004. Bilhetes de metrô modelar e tinta. redesenhando a malha metroviária da cidade. 180 x 140 cm. 35. BARBOSA, Felipe. Cola, 2002-2012. Coleção de refrigerantes de sabor Cola. Trabalho 19. BARBOSA, Felipe. Mapa de metrô Londres, 2004. Bilhetes de metrô redesenhando a em progresso, contando com aproximadamente 400 marcas diferentes, oriundas de malha metroviária da cidade. 180 x 260 cm. diversos países. Dimensões variáveis. 20. BARBOSA, Felipe. Estranha economia. Exposição individual realizada no Paço 36. BARBOSA, Felipe. Lixeiras, 2008-2009. Série de fotografias coloridas. Coleção de Imperial. Rio de Janeiro, de 21 de março a 13 de maio de 2012. fotos de suportes para lixo. Dimensões: 30 x 58 cm cada foto. 21. BARBOSA, Felipe. Estranha economia. Instalação. Objetos construídos com notas de 37. BARBOSA, Felipe. Construtivismo literário, 2005. Série de fotografias coloridas. 24 x real picadas. 32 cm cada. 22. BARBOSA, Felipe. Bancos, 2011. Notas de real picadas e prensadas. Dimensões: 90 x 38. BARBOSA, Felipe. Igloo, 2007. Vídeo que mostra um pequeno iglu construído com 35 x 35 cm cada. acendalhas. 20’. Cor. Som. 23. BARBOSA, Felipe. Mala, 2011. Notas de real picadas e prensadas. Dimensões: 64 x 43 39. BARBOSA, Felipe. Crepúsculo, 2007. Oito velas de windsurfe. Dimensões: 580 x 1600 x 35 cm. cm. 24. BARBOSA, Felipe. Lixa mão, 2009. Lixa de parede. Dimensões: 22 x 28 cm. 40. BARBOSA, Felipe. Estética doméstica, 2007. Exposição individual realizada na Galeria 25. BARBOSA, Felipe. Quadro de cortiça, 2003-2006. Fotografia colorida 82 x 117 cm. Filomena Soares, Lisboa, Portugal. 26. The Record: Contemporary Art and Vinyl. Exposição coletiva intinerante. Nasher 41. BARBOSA, Felipe. Mórula, 2002. Palitos de fósforos colados lado a lado. Dimensões: Museum of Art at Duke University; Institute of Contemporary Art/Boston; Miami Art 48 x 45 x 38 cm. Museum; Henry Art Gallery, Seattle. 2011-2012. 42. BARBOSA, Felipe. Wormhole, 2006. Palitos de fósforo colados lado a lado. Dimensões: 27. BARBOSA, Felipe. Autógrafos, 2004-2006. Cartões-postais e fragmentos de discos de 30 x 34 x 33 cm. vinil autografados. 43. BARBOSA, Felipe. Desenho espacial, 2005. Lápis e cola. Dimensões: 33 x 33 x 33 cm. 28. BARBOSA, Felipe. Tabuada, 2007. Bolas de futebol costuradas. Dimensões: 135 x 150 44. BARBOSA, Felipe. Geometria descritiva, 2003-2005. Três livros de geometria cm. descritiva, acrílico e fio transparente. Dimensões: 25 x 25 x 25 cm. 29. BARBOSA, Felipe. Boi bola, 2005. Bola de futebol feita de pele de boi. Dimensões: 22 45. DOUBILET, David. Fish face. Londres: Phaidon, 2007. 408 p. x 22 x 22 cm. 46. A água e seu papel. Exposição coletiva realizada na Galeria Caza Arte Contemporânea, 30. BARBOSA, Felipe. Série Condomínio Volpi. 2007-2008. Colorjet sobre madeira. Rio de Janeiro, de 30 de maio a 17 de junho de 2011. Dimensões: 60 x 60 cm. 142 143 CADERNOS EAV felipe barbosa

47. BARBOSA, Felipe. Livro peixe, 2011. Livro sobre peixes recortado com aquário embutido contendo um peixe vivo. Dimensões: 24 x 24 x 5 cm. Saiba mais 48. BARBOSA, Felipe. Justa troca, 2000-2005. Placas e chaveiros numerados, conseguidos em operações de troca nas instituições que têm guarda-volumes. http://www.felipebarbosa.com/ 49. BARBOSA, Felipe. Pilhados, 2008-2010. Pilhas carregadas e resina. Dimensões BARBOSA, Felipe (Org.). Felipe Barbosa: matemática imperfeita. Rio de Janeiro: Apicuri, variadas. 2011. 292 p. (Pensamento em arte) 50. BARBOSA, Felipe. Chuva química, 2012. Placas de metal, resina e pilhas. Dimensões COSMOCOPA ARTE CONTEMPORÂNEA. Felipe Barbosa: estranha economia. Rio de variadas. Janeiro: Apicuri, 2012. 88 p. (Coleção Cosmocopa-Apicuri) 51. BARBOSA, Felipe. Martelo de pregos, 2001. Martelo e aproximadamente 1,5 kg de barbosa, Felipe. Santiago de Compostela: Artedardo, 2008. (Colección DardoTu) pregos. Dimensões: 35 x 8 x 10 cm. GALERIA ARTE EM DOBRO. Felipe Barbosa. Textos Guilherme Bueno, Luciano Vinhosa, Marisa Flórido, Moacir dos Anjos. Rio de Janeiro, 2006. 144 FERNANDA GOMES

A formatação do texto obedece orientação da artista.

é um prazer estar aqui, um grande prazer! geralmente falo sem plano, prefiro ir pensando o que vou falando. podemos desde já abrir para perguntas. prefiro saber o que vocês gostariam de ouvir. ou não, talvez seja melhor eu falar o que tem me interessado mais. então, acho que podemos ter uma conversa bem livre e todo mundo ficar à vontade. vale falar todas as bobagens. eu me dou sempre esse direito, de começar falando bobagens à vontade. às vezes no meio de um fluxo a gente encontra caminhos muito mais interessantes do que dentro de uma estrutura planejada. mas, na verdade, pensei em falar mais uma vez o que costumo falar, quando me lembro, para iniciar qualquer palestra ou conversa, que é ter em mente que a precariedade da palavra é maior do que a gente pensa. sou Vista da exposição: Museu de Arte apaixonada pela palavra, até por causa dessa precariedade também. Moderna do Rio de Janeiro, 2011 Foto: Pat Kilgore 146 147 CADERNOS EAV FERNANDA GOMES

tanto a precariedade da palavra quanto a precariedade da ideia de o pensamento se materializa em uma situação plástica, ele tem entendimento. e procuro entender cada dia menos as coisas, em uma autonomia tão perfeita que a palavra quase sempre tira mais todos os níveis. parece absurdo, mas é uma desconstrução funda- do que acrescenta. tira quando tenta criar um veículo direto. mas mental, e a arte traz essa possibilidade, de aproximação do mistério. quando é assumidamente paralela, livre, poesia, pode até funcionar bem, amplifica. claro que quando há uma tentativa de estruturação ainda bem que a gente vai poder editar isso na hora de publicar. também pode funcionar bem, para quem gosta disso. mas o que eu mesmo sendo uma exposição ou uma conversa gravada para ser sinto é que, quanto mais a gente deixa a situação concreta agir, em publicada, tento sempre não prestar tanta atenção à ideia de crista- fruição descomprometida, mais potente tudo se torna. sobretudo lização. o espaço do erro é muito importante. quase sempre se tenta para quem já está muito embebido disso tudo. as palavras estão tão evitar o erro, mas é inevitável. e a arte aproveita o erro. a ciência contaminadas, nesse discurso da arte, que eu tenho pensado – tenho também aproveita o erro, e na vida, também, a gente aproveita escrito também, eu gosto de escrever – em como poder recuperar bastante o erro. eu gosto da palavra errar, especialmente no infi- um certo frescor das palavras em relação à arte? como inventar nitivo, errar também no sentido de vagar, de se deixar andar à toa. palavras? porque pensar em arte e vida como amálgama é pensar uma possibilidade de uma vida muito mais inteira, muito mais quer dizer, sempre isso, vou começar a falar e começar por onde? livre ou significativa. ou sei lá que palavras a gente pode juntar aí... tanto faz, né? essas palavras todas não têm tanta importância, os processos vão ficando muito misturados e eu sinto que quanto apesar de toda a importância da palavra. onde a situação de fato mais misturados eles ficarem melhor vai ser. quanto menos tentar é o mais equilibrada e potente possível é lá no mam, onde está a decompor melhor. exposição. então, se vocês quiserem realmente saber alguma coisa do meu trabalho, é lá que vocês vão saber, não é comigo aqui. e é lá porque parece que os sistemas, até de pensamento, são muito falhos. com o pensamento de vocês, não com meu pensamento. claro que porque a gente aprendeu a pensar com palavras, né? e eu sinto as o meu pensamento, e o pensamento de qualquer outra pessoa, vai palavras distantes de uma experiência mais concreta. quando a poder sempre acrescentar alguma coisa. mas sinto que, quando gente pensa “mesa”, cada um vai pensar em uma mesa diferente. 148 149 CADERNOS EAV FERNANDA GOMES

e “mesa” é uma coisa simples. imagina quando pensamos algo e mesmo trabalho é uma palavra pesada, né? e aí, você pensa em mais complexo ou abstrato, como funcionam essas frestas entre obra, em como nomear as coisas. ainda bem que elas não têm palavras e entre a palavra e a coisa? porque entre cada palavra há o necessidade de nome. vale o tradicional “sem título”, mas é sem- entendimento de cada um, então... cada vez mais, para mim, é cair pre desagradável, parece que está faltando alguma coisa. tem que nisso com gosto. aceitar a natureza das coisas. porque eu sinto que marcar dentro do sistema “sem título”, “sem data”, “dimensões a cultura que formou o nosso pensamento não aceita a natureza variáveis”, “materiais diversos”. não quer dizer nada, mas cabe na das coisas. nem a natureza da vida, pouco se fala de morte, ou das normatização, ou no sistema, ou como fazer... questões mais determinantes. agora estou me lembrando do paulo bruscky, sentado nesta mesma então, na possibilidade do fazer da arte há uma libertação do pen- mesa, falando da maneira de enfrentar o sistema que ele utiliza até samento que eu acho cada dia mais fundamental, como base para hoje, com muita potência e graça (em todos os sentidos da graça, uma ação concreta. uma ação que junte em cada um e em todos nós do humor, do estado de graça, da graciosidade, e do grátis). ele uma possibilidade, nem que seja um respiro acima dessa dimensão falou da ideia de implosão, entrar no sistema e atuar no sistema tão trivial, tão acachapante, tão normalizante, tão brutal de uma por implosão. sem ficar jogando pedra na vidraça, entrar profun- certa forma da vida cotidiana, né? damente naquilo e funcionar como implosão. e pensar que a gente está tão ligado ainda a essa ideia do registro. sinto que o sistema, tanto o sistema da arte quanto o sistema geral é tudo tão misterioso, e vai ficando tão pantanoso, que quanto das coisas, é um desastre, né? e se é um grande desastre, tanto mais eu tentar entrar nisso, quanto mais falar, mais vou me melhor, talvez não seja tão difícil abrir umas brechas, porque tudo enrolar, né? e é bom, é ótimo! vou me enrolar, vocês podem rir, é tão falho, né? eu posso rir e pensar: “estou totalmente perdida, vou voltar para lá”. e tudo isso é o processo do trabalho em si ou o processo do e se a gente pensar que vai morrer e não sabe quando, e não sabe pensamento. como. e que a gente morrer ainda é o de menos, porque as pessoas 150 151 CADERNOS EAV FERNANDA GOMES

que amamos também vão morrer, se sobrevivermos a elas. e passar com a ideia de beleza que tentam vender para todo mundo. pela morte dos outros é bem pior do que pela nossa própria, eu ima- gino. se a gente pensasse o tempo todo que vai morrer, a vida seria vou ficar falando sozinha aqui? posso falar horas sozinha. outra coisa, né? a arte seria outra coisa, tudo seria outra coisa. e por que a única certeza concreta é o tempo todo negada pela sociedade Aluno: Bom, seu pensamento é rizomático, você vai em que a gente vive? não tenho ideia. talvez seja desconfortável andando... Eu tinha feito algumas perguntas. Mas, a partir do demais lidar com essa situação permanentemente, para a maioria que você falou agora, você começou falando da morte, que às das pessoas. eu gosto de pensar na morte, para mim funciona como vezes é difícil de lidar com a morte, você repetiu essa palavra libertação e como possibilidade de criar uma perspectiva mais justa muito tempo e agora você falou que a sociedade não sabe da vida, em todos os sentidos. lidar direito com a morte, essa foi a palavra que me veio. E agora você falou do normal como mutilação. Como essa coisa cada um de nós tem defeitos maravilhosos. mas como tentar apro- de lidar com a morte está presente nos seus objetos? Porque, veitar esses defeitos? como poder aceitar a natureza das coisas e por exemplo, você pega objetos que foram esquecidos, vai ao mesmo tempo perceber que elas são transformáveis? é simples acumulando coisas, vai produzindo isso, esse é o seu material ficar de cabeça para baixo, é simples derramar água no chão, é para a arte? Você considera alguns elementos desses, no muito simples. ações muito pequenas, que muitas vezes não faze- caso, esse fato de você pegar objetos que foram esquecidos, mos porque tem ainda essa ideia do “normal”, de que a gente não alguma relação entre morte e viver, reviver os objetos, recriar consegue se desvencilhar. a partir desse objeto que não está sendo utilizado, que foi morto, tem alguma relação com isso? eu sinto o normal como uma mutilação. é o que tira o imperfeito de cada um e é o imperfeito que vai fazer a beleza de cada um. é não é assim direto não. sinto que a morte está entranhada na vida o imperfeito que vai fazer da arte, também, essa possibilidade de de uma forma totalmente orgânica. quer dizer, a gente vai sentindo beleza maior, perfeitamente imperfeita e que não tem nada a ver isso a todo momento, acho, quando está com essa sensibilidade 152 153 CADERNOS EAV FERNANDA GOMES

ativa. começo a falar de uma forma muito geral, talvez, porque grau de liberdade o quanto você aguentar. o preço é bastante alto, pensar ou falar de arte sem falar de um todo me parece cada dia mas vale a pena, né? mais inútil. mas ao mesmo tempo é muito importante falar de arte, arte mesmo. começo falando assim porque uma palavra vai levando Aluno: Você disse que falar de arte sem falar do todo é inútil, a outra, é o mesmo jeito que eu vou trabalhando. então você deve ter uma concepção do que é a arte e por que é a arte. E eu me pergunto como é que você se enfiou nisso? chegar lá no mam e escutar as pessoas falando: esse espaço tão grande Onde é que isso começou e o que te motiva? Além dessa não te dá medo? nenhum! é um prazer muito grande ter um espaço questão da liberdade, do suspiro. tão lindo, tão maravilhoso – eu não sei se vocês viram a exposição ou não –, um espaço que tem sido tão pouco utilizado da maneira são essas coisas que não adianta tentar explicar muito, né? é desde que eu utilizei e que foi planejado para ser utilizado também assim, criança, para mim é desde muito criança. e, aos poucos, você vai claro que não só assim, mas também assim, aberto, sem divisões. seguindo. é engraçado, outro dia eu estava pensando nisso: toda criança desenha, né? basta dar papel e lápis e qualquer criança sai e vou me deixando seguir, ou seja, vou tentando justamente juntar desenhando. tem a mitificação do artista e da criança, desde picasso tudo, juntar todos os pensamentos, e sobretudo a ideia de pen- até a ideia da criança como um ser livre, que eu também acho um samento e ação simultâneos. claro que depois posso tomar uma mito. mas tem uma coisa muito simples, é muito simples desenhar, distância razoável e olhar e ver que aquilo ali não tem por que toda criança desenha. agora, o estranho é por que tanta gente para estar ali e retirar, e aí começar outra vez. ou seja, o que eu sinto é: de desenhar? não é que você precise ser artista, não acredito que venho tentando ser o mais livre possível. livre em relação ao meu todo mundo é artista, ainda bem, né? mas todo mundo poderia próprio pensamento, livre da expectativa externa, livre da minha desenhar, simplesmente desenhar. própria expectativa, livre da ideia de que liberdade é impossível. é possível aumentar o grau de liberdade infinitamente, até porque, Alexandre Dacosta: É a escola! Para de desenhar porque se a liberdade total é de fato impossível, você pode aumentar o a escola normal quer que você faça uma casinha, uma 154 155 CADERNOS EAV FERNANDA GOMES

arvorezinha e o solzinho amarelo, né? Aí, em casa, os pais de sou superdedicada, mas ainda estou muito longe do que eu quero repente: “Mas você pintou o céu de vermelho? Não é branco? conseguir. e quando eu conseguir, não vai adiantar mais nada, eu O que o céu é?” Sei lá... não vou conseguir mesmo, mas tudo bem! (risos) e a gente pode se educar, né? quem tiver filhos, então, que responsabilidade incrível. outro dia aconteceu uma coisa engraçada. eu estava na casa de um mas a gente pode ir se educando nesse sentido, tirando esse lixo. amigo artista e a filha dele tinha desenhado na parede um desenho a gente passa a vida inteira, mas não adianta, você tira um monte que ele tinha adorado. um superdesenho, enorme, com várias cores, de lixo e ainda vem gente e te joga mais aquela pazona de lixo. às abstrato, claro, a menina é muito miúda, para ela não devia ser vezes, é o seu amigo na melhor intenção, ou a sua família, seu pai, nada abstrato, mas para nós era absolutamente indecifrável. e aí sua mãe, seu irmão, seu tio, seu namorado, seu marido, até o seu a menina que cuida dela foi lá e fez uma florzinha, aquela florzinha filho, cara! a quantidade de crianças repressoras é incrível. que parece um carimbo, né? e ele tinha ficado tão incomodado com aquilo e eu falei: “mas por que você não vai lá e simplesmente a arte é essa possibilidade de um campo de experimentação muito apaga a florzinha?” e ele: “mas eu fico sem jeito, porque ela dese- concreto, que transcende tudo isso, que é muito mais do que tudo nhou a florzinha com tanto carinho!” mas qual o problema? vai isso, mas que também é onde você pode errar tranquilo, sabe? um lá e apaga a florzinha com tanto carinho também, né? risos( ) mas médico não pode se dar esse luxo. a gente pode fazer uma exposi- ele não conseguiu e eu disse: “me dá a borracha que eu apago, vou ção horrorosa, que bom! vai ser mais uma, não vai fazer a menor apagar com o maior carinho”. e apaguei realmente com o maior diferença. ninguém riu? carinho. e pronto. então, é isso que eu estou falando, são ações muito simples, né? é uma área de grande liberdade, só você é quem sabe, ninguém mais vai te ensinar, você vai inventar uma coisa! mas aí, o que acontece? e o que eu sinto é que, na verdade, quando o alexandre fala isso, o sistema da arte, do jeito que está atualmente, está ficando muito quer dizer, eu tenho a sorte de não ter filhos e ainda estar muito bruto, porque, bem, estamos conseguindo viver disso, é uma pro- longe da tarefa de me educar a mim mesma. eu me esforço muito, fissão. sou uma profissional, vivo disso, ganho dinheiro com isso, 156 157 CADERNOS EAV FERNANDA GOMES

pago a minha vida com isso. mas, isso é um lado paralelo, né? quer “e procuro entender dizer, se na hora em que eu estiver fazendo um trabalho eu pensar se vou vender aquele trabalho ou não, é melhor não sair de casa, cada dia menos as coisas, vou fazer outra coisa, entende?

é preciso tentar separar as coisas. não há mal nenhum em você em todos os níveis. ser um artista profissional, desde que ser profissional não sufoque o artista. o artista não pode se permitir entrar nesse espírito de tempo é dinheiro, né? como é possível referenciar o tempo, que é parece absurdo, mas o que existe de mais precioso, na objetividade vulgar do dinheiro?

é uma desconstrução é um sistema muito absurdo, mesmo. então acho que o pensamento tem que dar volta no sistema o tempo todo e o trabalho tem que fundamental, e a arte ser a expressão mais avançada do pensamento. acho que somos animais mais emocionais do que racionais, mas a traz essa possibilidade, ideia de emoção está cada dia mais distante da arte para iniciados. estamos falando aqui de iniciados, né? não somos o público, então cada vez que entro em uma exposição eu já tenho que me livrar de aproximação do de tudo aquilo, né? o público em geral entra assim: “não estou entendendo nada, explica para mim”. isso é um problema. outro problema é aquele que já entrou entendendo tudo. então, no fundo, mistério.” para mim, é a mesma coisa. e na verdade é isso, você não tem muito 158 159 CADERNOS EAV FERNANDA GOMES

por onde andar, é um território minado mesmo, que bom! e se gente muito rigoroso. quer dizer, se eu começar a mexer, vou ter que não sabe voar, dá para dar uns saltos, né? refazer tudo. o que conta é trabalhar e trabalhar e trabalhar muito. e autocrítica, fiz durante três semanas e pensei assim: é uma exposição que vai não tem nada mais difícil do que autocrítica. o que vale é o senti- ficar quatro meses, que é um mundo de tempo, e do lado da minha mento de estar inteiro ali ou fazendo alguma coisa que possa de fato casa. eu não vou viajar durante esses quatro meses, basta eu pegar o me surpreender. gosto muito de olhar as coisas, então faço as coisas meu carro e fazer um trajeto maravilhoso pela praia de copacabana, que eu gosto de olhar. se não tenho o interesse renovado em olhar aterro do flamengo, que por si já é uma preparação perfeita para ver e olhar de novo, se aquilo não me cria fagulhas para continuar, sei alguma coisa. e eu vou chegar lá, vou poder mudar à vontade. para que não presta. mas também vale a alegria, é a prova dos nove, né? que eu vou fazer uma exposicão só? falei isso porque, de fato, era a minha intenção. eu não estava nem enganando a mim mesma, eu Aluno: E qual é a sua autocrítica? Como você se vê acho, muito menos a ninguém. já tive essa intenção outras vezes, enquanto espectador da sua obra? Você falou que é legal tentei fazer e fracassei também. chega um momento em que as fazer autocrítica, que é uma coisa muito difícil – de fato é – e coisas ficam equilibradas e eu não consigo fazer mais nada. ou des- onde você recai na sua autocrítica? Porque, na verdade, o seu monto tudo ou começo a tirar para poder acrescentar. três semanas trabalho, por exemplo, no MAM, ainda vai continuando, vai de trabalho muito intenso, chegando em casa era quando eu sentia acontecendo, é uma exposição que vai acontecendo, então, que o espaço era grande. sei lá quantos quilômetros eu andava ali onde acaba e onde você para, para ter uma autocrítica? dentro, nem calculo, não quero nem calcular. o corpo doído, eu estou bem fisicamente, mas parecia que eu tinha apanhado. então, não vai acontecendo, isso foi mais um fracasso. eu tenho um tru- o limite ali é sempre o limite do corpo, de uma certa maneira. e eu que mental: nada está nunca pronto. mas é truque, né? sei que não poderia continuar a fazer aquilo naquele ritmo durante quatro é falso, é só um truque – nada está nunca pronto, mentira total! meses, ninguém consegue fazer aquilo durante quatro meses. fica- em certo momento, há um equilíbrio, uma situação de equilíbrio ria doente, eu acho. ou algum acidente iria acontecer. quer dizer, 160 161 CADERNOS EAV FERNANDA GOMES

eu tenho uma tendência a trabalhar sempre no limite, me agrada acham disso? não sei, mas é muito prático. até porque ninguém isso, tanto do ponto de vista de processo quanto de resultado. mas pede a ninguém que faça arte, você faz porque você quer fazer. é muitas vezes eu ficava doente ou começava a quebrar tudo, sem uma coisa interior, é uma vontade, mesmo. então, em um lugar onde querer, tropeço, quebro uma coisa, quebro outra, quebro outra e você tem essa possibilidade de fazer o que quer, por que você vai outra. hoje em dia, com mais experiência, é menos frequente ficar fazer o que não quer? ou por que você não pode mudar de ideia? doente ou quebrar coisas. de vez em quando quebro uma coisinha ali eu queria, mas não quero mais! e outra aqui, mas antigamente eu passava do ponto e começava de fato a quebrar e quebrar em sequência. aí tinha mesmo que parar! Aluno: Com tantas ideias, pensamentos, como você faz para que não se perca dentro daquilo que você se propõe? Porque e tem uma coisa estranha: depois que a exposição abre ao público, às vezes eu também vivo isso, muitas ideias, muitas ideias, e ela não é mais sua, então eu não tinha como ficar ali. eu mantive, e aí eu nem sei o que selecionar, nem sei por onde começar. Eu mantenho ainda, o meu espaço separado ali. não gosto, quando eu acho que você podia, de repente, dar uma luz para todos nós, estou fazendo uma montagem, de ter objetos que não façam parte em relação a isso. da situação da exposição, então geralmente tenho um espaço de recuo. ali eu tinha um espaço de recuo muito generoso. esse espaço eu me perco! eu não tenho medo de me perder, eu me perco à von- continua lá, fechado ao público. vou lá umas duas vezes por semana, tade mesmo! e aí tem horas que tem uma onda irresistível, se você trabalho lá, olho a exposição, faço manutenção, documento um está ali é porque tem dedicação, né? é dedicação e integridade, você pouco, vejo. e não me deu vontade de mudar nada. acho que às está seguindo o foco do desejo, né? e da sua visão, e eu penso visão vezes a gente não sabe o que tem que fazer, mas se sabe o que quer como uma palavra muito importante, ampla. assim, visão não é só fazer já é bom. não sabe se é isso ou aquilo, deveria fazer isso, será o que você está vendo. é o que você está vendo, é o que você está que seria bom fazer isso? mas se você sabe o que você quer fazer... imaginando, é o que você está vendo de uma forma, também, dis- tem coisas muito simples: tem vontade de fazer? faz! é tão simples! tanciada, crítica, mais consciente. e é se dedicar a ver, né? a olhar não tem vontade de fazer? não faz! é básico, é banal? o que vocês e olhar e ver, poder olhar de fato, né? ajudou? 162 163 CADERNOS EAV FERNANDA GOMES

Aluno: Eu queria saber se as suas obras têm destinatário ou sinto que está tudo interligado. sinto que estou conectada com elas só têm remetente? Você pensa no destinatário ou você se aquele cara desenhando na parede da caverna. vi uma vez. é per- concentra no seu processo e só? feito, lindo! tem umas frases que são lindas, adoro essa, do miró: “a pintura está em decadência desde os tempos das cavernas”! não é uma carta, né? então, não tem nem destinatário nem reme- usando o relevo da pedra pra fazer o relevo da coxa do animal, o tente. faço para mim em primeiro lugar, isso é claro. mas não só, olho, aproveitando a forma da pedra para fazer o desenho, uma coisa porque se fosse só para mim também não faria sentido. ou faria, deslumbrante! esse cara fez aquilo pra quem? fez aquilo pra fazer, também, nada faz sentido, então, se nada faz sentido, pode-se pen- né? é como se fosse sem remetente conhecido, e o destinatário é sar: que bom que nada faz sentido. melhor do que tentar encontrar geral, para usar a tua imagem. um sentido para as coisas é aceitar que nada faz sentido, ou que muito pouca coisa faz sentido. ou mesmo a ideia de fazer sentido sinto que eu vivo conversando com os mortos, todo dia, o tempo todo, é esquisita demais. por que as coisas têm que fazer sentido? de escutando os mortos, quer dizer, eles não me escutam, mas eu escuto. onde surgiu isso? nunca estudei filosofia, gosto de ler, mas não mas nunca se sabe, né? de vez em quando eu até falo em voz alta para consigo estudar de uma forma sistemática. desde que me livrei alguém em especial. existe todo esse patrimônio do pensamento da graduação, pensei: finalmente acabou isso! gosto de estudar, e da arte, cada dia mais disponível. outro dia eu estava ouvindo o mas de acordo com outros métodos, sou empirista, anárquica. glenn gould falando sobre bach, um cara que viveu isso com uma não me encaixo nos sistemas padronizados. e não vejo por que obsessão absoluta, uma precisão genial! e falando que aquilo não era me encaixar, já que cumpro as minhas obrigações sociais de uma avançado demais para a época, ao contrário, ninguém ligava para o forma conveniente. isso é importante também, quanto mais johann sebastian porque aquilo era considerado velho. a maravilha você se desencarga desse tipo de coisa, melhor. tem que pagar que é o registro, né? ter acesso continuado a um patrimônio que é a conta de luz, porque se não pagar não funciona, literalmente. de todos e percebo que é ali, na arte, que estamos de fato. é o espaço então, pagou o que tem que pagar, fez os exames de saúde, fez o verdadeiro da humanidade, no sentido de que está todo mundo ali, que tem de ser feito, aí tem espaço para tudo o que se quer fazer. e todos interligados. é um momento em que se pode pensar que o 164 165 CADERNOS EAV FERNANDA GOMES

homem não é um animal tão horrível assim, né? há alguma coisa que e eu tenho vontade de mexer nela, então, por outro lado, não compensa esse desastre todo, quer dizer, nada compensa nada, mas há uma liberdade. Me deixa um pouco aflita que às vezes eu tem algo que faz que a gente tenha um certo prazer em ser humano. vou ver esculturas e tenho vontade de tocar nelas, de sentir a textura, e as suas coisas eu tinha vontade de mudar de lugar, Aluna: Não tenho uma pergunta, são coisas que ficam em mas vá eu fazer isso lá no MAM... E aí aflige um pouco: essa mim, algo que eu senti vendo a sua exposição no MAM, mas pessoa está mexendo comigo e eu não posso mexer com ela? que mexe muito comigo, porque posso estar errada, mas acho que a arte, para mim, a função, eu tenho vontade de a pessoa não está lá, estou aqui, é outra coisa, né? você vai mexer mexer com as pessoas, sabe? De tocar as pessoas e, às vezes, comigo quando fizer um trabalho também. não é mexendo algo de quando a arte é muito contemporânea, como você falou, lugar que você vai mexer comigo. se mexeu na tua emoção, quando há uma parte das pessoas que não estão entendendo nada, você fala isso, se eu estou aqui ouvindo o que você está falando, que não vão entender nada, só que para mim isso é muito você está mexendo comigo, pessoalmente. mas no que está ali nem bom, para mim, como artista, é uma realização muito grande. eu mexo em nada, porque ali já é outra coisa. achar que arte parti- Então, eu fico me perguntando qual é a minha função? Por cipativa é manipular ou mexer nas coisas acaba sendo uma visão que eu quero fazer isso? Quero fazer isso porque nasci assim. superficial, mexer na coisa sem viver a dimensão mais profunda, Ninguém disse que precisa de mais artista, então qual é minha mental-emocional. a experiência sensorial ali é principalmente função no mundo, para que eu quero fazer isso? Para que e visual. você pode andar e se aproximar daquelas obras à vontade, para quem vai servir? Será que é só uma terapia que eu estou cada percurso que você faz está configurando uma visão única. fazendo comigo mesma, é algo egoísta? Mas por outro lado, uma experiência só sua, determinada pelo seu corpo, pelo seu não sei fazer outra coisa, não gostaria de viver de outra forma. olhar, seu tempo, seu deslocamento. só pelo fato de se mexer ali, você já está fazendo alguma coisa que é muito mais poderosa do E outra coisa que acontece quando chego a uma exposição que mexer em alguma coisa ali. e tanto é que você se sente mexida. como a sua, que mexe muito com o sensível, ela mexe comigo quando fiz aquilo defini que ninguém poderia mexer ali. defini 166 167 CADERNOS EAV FERNANDA GOMES

também que eu poderia mexer e não consegui mexer. porque não tive vontade, porque aquilo de certa forma não me pertence mais. aquilo está ali, tem autonomia. você vai poder mexer, eu acho, é no que você vai fazer com essa experiência. acho que isso tem um alcance muito maior do que se a gente pudesse entrar ali e usar aquilo como playground. tenho tido muitos problemas com essa questão participativa, que é muito interessante, muito positiva, mas traz também um efeito negativo, vazio, dessas proposições. acho que em alguns momentos ficaram muito datadas, apesar de eu ser grande fã de hélio oiticica, lygia clark e uma série de outros artistas. vejo isso hoje muito diferente do que eu via antes. quando foi lançado em 1986 o livro aspiro ao grande labirinto, eu li com grande prazer e emoção. quando eu releio hoje, tenho uma visão tão diferente da que eu tinha há quase 30 anos. tudo aquilo é muito importante para ampliar essas possibilidades de pensamento. mas por outro lado acho que foram criados mitos aí, que no momento são para mim muito contraproducentes, como pensar que pelo simples fato de pegar nas coisas você fez algo significativo, quando a verdadeira participação é interior. criar uma dimensão mental e emocional transformadora é o maior resultado daquela experiência, né?

Vista da exposição: Museu de Arte Moderna Aluna: O mexer a que eu me referi... do Rio de Janeiro, 2011 Foto: Pat Kilgore 168 169 CADERNOS EAV FERNANDA GOMES

tem peças que seriam para mexer até, mas não dá, o público é bruto, é um museu, sabe? em situações ideais seria outra coisa. mas o você viu o que as pessoas escrevem no livro? museu não é uma situação ideal, o museu é uma situação possível. em uma situação museológica, aquilo tudo teria aquela faixa branca, Aluna: Não, mas o mexer, na verdade, eu estava falando né? e só pode ser daquele jeito, porque aquilo tudo é da minha de um mexer muito mais simples, eu tive vontade de ficar coleção, porque eu quis fazer uma exposição totalmente fora dos sentada do lado... padrões museográficos. foi uma exposição feita com custo irrisório. eu quis fazer com as condições limitadas de que o museu dispõe. você pode sentar, sem tocar nos objetos, você pode deitar, você e sem texto de parede. tem um texto em um pequeno folheto, mas pode ficar lá... não tem texto de abertura, ou seja, você não é estimulado a ler algo antes de entrar. esse formato como regra geral é um grande Aluna: Então podia ficar deitada, eu não tive... Eu fiquei com problema. primeiro, ter que ler um texto e só depois entrar na medo, porque tem uma pessoa que fica lá... exposição, a meu ver, só faz sentido para exposições históricas. mas atualmente parece que todos querem pensar a partir do texto mas ela nem chega perto de você, elas são superlegais, ela não vai e não do que está de fato ali. e quis fazer sem seguro, entende? tudo atrás de você, vai? que está ali é meu risco. mas tudo tem sido muito bem cuidado e bem feito, essa equipe de monitores tem feito um trabalho incrível. Aluna: Não. tem a presença de alguém que está prestando atenção, ou seja, você sabe que você não está ali sozinho, que você não pode fazer o que elas são ótimas! você quiser, você tem que ter uma distância respeitosa no sentido: “não, você não pode mexer em nada”. isso não está escrito em lugar Aluna: Só teve uma hora em que eu estava muito perto, aí ela nenhum, né? poderia ter escrito: “por favor, não toque nas obras”, veio andando e ficou olhando, mas eu só estava inclinada... mas aí seria pior ainda, eu acho que isso é implícito, você está em um museu, você não pode tocar, ainda que tenha vontade, você não 170 171 CADERNOS EAV FERNANDA GOMES

pode tocar. mas você acaba tocando sem querer, ou seja, as pessoas igual, mas se eu deixo cair e esse copo quebra você nunca mais vai tropeçam, chutam. pela própria estrutura das coisas ali no espaço encontrar um caco igual, nunca vai conseguir quebrar um copo e pela luz, o tempo todo acontece alguma coisa. o que também é da mesma maneira. então, um copo comum, inteiro, é um objeto engraçado, não é você que toca o trabalho, é o trabalho que toca qualquer. um copo quebrado é um objeto especial, único. nesse você. sei lá, tem uma fricção ali. caso, era um único caco, e esse objeto era uma tira de borracha com esse caco de vidro enfiado. mostrei na primeira coletiva do projeto Aluno: Você já contava com isso? macunaíma, que era a apresentação para as individuais que viriam a seguir, foi minha primeira exposição. esse trabalho um amigo já contava com isso, achei que teria muito mais acidentes do que quis comprar e eu não vendi porque queria ficar com o trabalho de fato houve. cada vez que acontece um acidente, ou seja, que- para mim. estupidez, mas bem, é assim, acontece! fui desmontar bra alguma coisa, tem muito mais leveza, porque isso não implica eu mesma, tinha uma embalagem, eu embalava com algodão, com nenhum procedimento, perícia, seguro. eu estou arcando com o caco dentro do algodão e eu amarrava a borracha em volta, tudo esse ônus, que até agora foi mínimo. quebrou uma peça que eu dentro de um saco plástico no final. mas eu tinha estacionado em pude repor, quebrou uma outra peça que não acho que tenha gran- lugar proibido e com medo de rebocarem o carro, botei tudo no saco des problemas, coloquei de volta e ela ficou ali. as coisas quebram plástico e saí correndo. quando cheguei e vi que meu carro estava mesmo, lá em casa as coisas quebram também. felizmente até agora, lá, resolvi tirar do saco plástico para embalar direito, mas na hora falta uma semana só, não quebrou a peça que foi vendida durante em que eu tirei o caco de vidro caiu na calçada e se estilhaçou em a exposição. espero que ela não seja quebrada, mas se quebrar... mil pedaços. em suma, acabou o trabalho! não é uma boa história? (risos) no fundo, o mais importante é imaterial. essa história, para a primeira peça que eu mostrei em uma exposição foi uma his- mim, tem muito mais valor do que o trabalho em si. na época era tória triste, mas muito educativa. era uma tira de borracha com um trabalho importante para mim, mas hoje em dia eu vejo como um caco de vidro. vocês sabem que um caco de vidro é um objeto um trabalho fraco. talvez eu esteja errada, talvez fosse um trabalho absolutamente irreproduzível? esse copo você pode encontrar bom, mas de toda forma ele já não existe mais. 172 173 CADERNOS EAV FERNANDA GOMES

Aluno: Você estava falando, desde o início da conversa uma... Você está me entendendo? Se existiu isso ou se não aqui, dessa liberdade toda, da sua liberdade em relação ao existiu, também? trabalho, à obra, à ocupação de um espaço como o espaço de um museu que é o MAM, da autonomia que a própria desde o início percebi que o trabalho existia, tinha autonomia. por- obra gera dentro de uma liberdade, ela acaba surgindo que você pode ter vontade de fazer e não conseguir fazer, ou muitas como obra e funciona, está lá no MAM, as pessoas vezes na hora você não percebe muito bem o que está fazendo, estão visitando... isso acontece muito. mesmo agora, que eu tenho uma trajetória respeitável, posso começar a fazer coisas que não tenham força ou E você veio falando dessa relação sua com o fazer, com o autonomia. nada garante nada. claro, já existe uma obra, está lá, processo artístico, mas uma curiosidade que sempre surge mas isso não garante que eu vá conseguir continuar a desenvolver comigo, em relação a qualquer artista a quem eu tenho em plena possibilidade. ou seja, eu acho que cada vez o desafio oportunidade de fazer pergunta, é: existe um momento fica maior, e tem que ficar cada vez maior. a exigência tem que ser em que você se dá conta ou que se desvela essa prática cada vez maior. quer dizer, é muito estranho você saber quando faz que é uma liberdade que, realmente, qualquer um pode ser alguma coisa de fato. eu me lembro também de um dia, há muitos artista, mas não é qualquer um que pode ocupar o MAM, e anos, eu não era, digamos, nem artista, eu nunca nem tinha feito isso é fruto de uma longa história, de muito livro, de muita uma exposição, mas sempre eu tinha ouvido falar que eu era artista biblioteca, de muita prática, muito ateliê, não sei como é e eu negava aquilo assim... argh!! que é isso. Gostaria que você falasse um pouco desse local, desse momento, não de obra nenhuma, não de exposição A.d.: Tem mais gente para fazer perguntas, mas só como específica, mas essa coisa de: “Realmente, agora meu você está falando disso, desse início, quer dizer, meio início, trabalho começa a funcionar”. Até que momento ele é só você... Como está um papo abstrato e ótimo, mas só para uma pesquisa, só um desenvolvimento e quando é que você dar uma estaca zero, uma estaca km 1. Você fez muito tempo vê o trabalho tendo realmente autonomia e não sendo mais programação visual, designer, né? A pergunta é um pouco 174 175 CADERNOS EAV FERNANDA GOMES

isso: você se formou nisso? Você falou de graduação, você eu ia botando no teto. meus pais foram muito generosos, muito fez desenho industrial, aí você trabalhou como programadora estímulo, sabe? podia fazer o que quisesse e estava sempre fazendo visual? Você vai falar um pouquinho. Esse click, primeiro coisas, desde muito criança. mas nunca imaginei que isso era uma queria que você falasse um pouco desse design no seu profissão. é horrível, até hoje, falar que é artista plástico, acho cons- trabalho, como é que desenvolveu, né? Quer dizer, digamos, trangedor. mulher, então? é pior ainda, pensam que o marido deve essa limpeza. Trabalhamos juntos, quer dizer, você fez alguns sustentar, ou o pai. qualquer um pode falar que é artista plástico. trabalhos para nosotros, e então eu percebi a limpeza e a precisão que você tinha. Como é que foi essa passagem, A.d.: Nas fichas de hotel você coloca artista plástico? quer dizer, essa passagem naturalíssima, mas como é que foi para você essa passagem, claro que já estava junto, coloco, em tudo! agora tenho que colocar artista plástico porque não naquela época... tenho outra profissão, antes eu tinha, né? então eu falavadesigner , depois tive que falar designer e artista plástico e hoje em dia eu não não, eu sempre fazia... eu pintava, eu pintava a óleo, cara! ganhei o posso mais falar que sou designer... primeiro prêmio de desenho na escola, ainda no ginásio. eu dese- nhava muito, meu pai não entendia nada, como é que eu fazia essas a.d.: Naquela época nem se usava designer, né? coisas horríveis se eu tinha tanto jeito para desenho. desenhava, pintava muito, fazia artesanato, fazia tudo! faço até hoje, eu adoro era sempre uma coisa meio cafona de falar! é bonito você falar: “o fazer milhares de coisas, fazer coisas, sabe? eu fazia umas coisas que você faz? sou médico!” é um negócio sério, lindo! tenho a maior quando eu era garota que até hoje tenho vontade de refazer, fazia inveja, eu deveria ter feito medicina... (risos) então, eu estou cada uns cubinhos de palitinhos de fósforo e depois pintava de preto, vez respondendo menos, né... respondi? fazia umas instalações – instalações no mau sentido – no meu quarto, minha mãe deixava, eu fazia tudo, então eu pregava, era Aluno: Você começou a falar sobre a questão da morte, sobre cheio de prego, cheio de coisa pendurada, não tinha mais espaço, a questão da liberdade e falou de mutilação. Eu queria saber 176 177 CADERNOS EAV FERNANDA GOMES

“quase sempre se tenta como você se coloca na questão que o espaço museológico acaba mutilando a sua liberdade como artista. Como é que evitar o erro, mas é você dialoga com isso? inevitável. e a arte aproveita isso é uma questão interessante. a palavra mutilação, que eu usei, é forte demais, todo mundo pegou assim, estou até arrependida de ter o erro. a ciência também usado essa palavra, é forte demais. sinto o seguinte: desde a época em que comecei, sempre fiz um trabalho que tinha uma questão aproveita o erro, e na vida, de escala muito diferente do que se fazia naquele momento, e uma situação material muito precária, até para poder se nomear aquilo também, a gente aproveita obra de arte. eram umas coisinhas bem pequenas. acho estranho que em arte a primeira coisa que todo mundo pergunta: “com que bastante o erro. eu gosto da material você trabalha?” tanto faz! qualquer material, entendeu? e eu não trabalho só com resíduo, mando fundir colheres em ouro palavra errar, especialmente branco, 18k, liga italiana. para mim, tanto faz! um copo d’água! qualquer um que vai lá pode fazer aquela escultura que está lá no no infinitivo, errar também mam. um sarrafo que se pega em qualquer caçamba, aquela perna de três, bota um copo que você compra em qualquer botequim, no sentido de vagar, de se enche de água, está ali a escultura. deixar andar à toa.” tem muitos processos, né? então, como tem essa diversidade muito grande, tanto em termos de escala quanto em termos de mate- rial e procedimentos, é bastante complicado do ponto de vista 178 179 CADERNOS EAV FERNANDA GOMES

museológico ou comercial. trabalho com quatro galerias e atual- entrega ao todo e o que a gente é nesse todo, se o todo mente vivo da venda das minhas obras. tenho muito orgulho disso, é um pântano? até porque me permite uma autonomia em relação a esse sistema de financiamento público de arte. esta é uma outra questão bem a gente faz o que você está fazendo aí, a gente tenta fazer poesia, né? complexa, que não vem ao caso hoje aqui, mas um dia a gente pode até falar só sobre isso. Aluno: É, sei lá... (risos) então, eu penso que ao invés de adaptar meu trabalho ao sistema, eu acho que é poesia, né... é tentar fazer poesia. justamente, tento criar um sistema que possa adaptar o que eu faço aos sistemas quanto mais pantanoso, quanto mais complicado, mais divertido existentes. dá um trabalho danado, é chatíssimo, mas é necessário. fica, né? é a possibilidade de fazer poesia, seja com palavras, e é sempre um aprendizado, estou sempre tentando encontrar seja com outras coisas, com movimento... o que eu sinto é isso, soluções. por exemplo, para adequar à necessidade de exposição é pensar, é tentar. claro que tudo também acaba sendo... é isso, permanente, evitando o máximo possível o risco de aquilo ficar já que tudo é mesmo inútil, então a gente está mais livre, não muito engessado ali. mas tem casos que é mesmo caixinha de acrí- é? já que não há sentido, a gente pode pensar a partir disso. lico, sinto muito! é a moldura, é o “não me toque, estou no museu”. pode pensar a morte como uma liberdade maior para a vida e e é o limite entre o que seria ideal e o que é possível. respondi mal, uma dimensão muito mais realista. se muita gente pensasse na né? (risos) pode reclamar, eu vou me animando... morte em outros termos, a gente não vivia nessa ganância, nesse materialismo tão chinfrim, né? para que você vai gastar o seu Aluno: Uma coisa que me chamou muito a atenção tempo, que é a coisa mais preciosa que você tem, para ganhar foi você falando que a palavra é pantanosa. E eu fiquei dinheiro para comprar um monte de porcaria que não serve para pensando como é a relação com o todo se a palavra é nada, para jogar tudo fora, para ter esse... quer dizer, todo um pantanosa, se a gente só tem uma certeza, que a gente sistema de uma sociedade tão mercantilista, tão materialista. vai morrer e que a gente não é nada, como a gente se acho que na verdade é falta de pensamento, quer dizer, é uma 180 181 CADERNOS EAV FERNANDA GOMES

negação da negação da negação da negação, né? o consumismo desconforto, a roupa, o sapato. eu sinto muito desconforto, físico, não existe para quem pensa que a vida é outra coisa, que a vida inclusive. então, a gente vai simplesmente procurando eliminar é um tempo, determinado e rápido, curto, muito mais curto do o máximo possível o desconforto no sentido mais simples, né? que se tem ideia. muito mais curto! pensar na roupa que veste, na casa onde vive, como gosta de se locomover, como gosta de estar, o que gosta de comer, como gosta Aluno: Quando você fala dessa questão do desapegar, do de dormir. e tentar desenvolver o corpo no sentido mais objetivo, entendimento, de ser entendida... para mim, tem sido uma descoberta cada dia mais determinante. pensar em corpo como estrutura mental e emocional também. e eu não usei a palavra desapegar, tá? pensar em você mesmo como o material de trabalho principal. assim, o meu investimento cada vez mais é em mim mesma. eu Aluno: É, então, começar a sair desse sistema de como as vou viajar agora, fazer uma exposição, não vou levar nada, é o que coisas funcionam e pensar fora e você começa a pulsar em eu mais gosto de fazer. eu não levo nada porque está tudo comigo e outra vibração, isso gera problemas, né? Eu acredito que isso onde eu chegar eu vou encontrar as coisas de que preciso, seja em gera desconforto, isso gera ansiedade. Eu queria saber o que uma loja de material de arte, seja em uma esquina. então, muitas foi te ajudando durante esse caminhar fora, esse querer pensar vezes a ideia do desconforto também é um ponto de partida para fora de um sistema fechado. O que foi te ajudando a abraçar você procurar o que é não só mais agradável, mas mais gratificante. essa liberdade que também causa problemas? mas não tem como eliminar o desconforto. eu me sinto muitas vezes sensível demais, mas não tem como eliminar. quer dizer, ah, tudo causa problema e tudo causa desconforto, não é? acho eu poderia tentar eliminar isso, poderia trabalhar nesse sentido: que essa ideia do desconforto é muito boa, porque o desconforto “quero me tornar mais cascuda”. mas prefiro viver com a minha ao mesmo tempo é algo, eu acho, intrínseco à natureza humana, pelezinha fina, sabe? talvez seja mais desconfortável, certamente a gente não tem como... quer dizer, nascer já é uma espécie de é mais desconfortável em vários aspectos, mas em outros não e desconforto, você sai daquela situaçāo de conforto total para um também é uma natureza, quer dizer, eu já tenho isso, então para 182 183 CADERNOS EAV FERNANDA GOMES

mim é muito mais fácil, talvez. não sei se fácil, mas mais produtivo, conforto que é me sentir um animal perfeito. de vez em quando eu tenho melhores resultados, entende? em tentar afinar minha eu me sinto um animal perfeito, é maravilhoso! sem pensar nisso, sensibilidade, para não cair em uma pequena armadilha de baixo sem separar pensamento e ação. sem separar hoje, amanhã, ontem, nível em qualquer esquina, saber me proteger de certa maneira, sem pensar que está pensando, simplesmente pensa, age, respira, mas nunca criando casca, sabe? mexe. isso acontece no amor, acontece na arte, são as referências que eu tenho... e no mar, a natureza, né? Aluna: Como você começa a abraçar isso de pulsar como se fosse em outra vibração, se você vai encontrando pessoas a.d.: O desconforto move. que conseguem conversar sem querer se compreender completamente, encontrando pessoas que não estão tão o desconforto move, certamente, mas pode mover para um descon- preocupadas, que não se importam em errar, falar e se soltar. forto maior ainda! (risos) às vezes é horrível! se você vai pensando Isso vai acontecendo, você vai encontrando essas pessoas? como essas questões vão funcionando ao longo da vida, né? lembro que em vários momentos da vida eu me movia de um desconforto vai, vai encontrando e tem horas que você fica um pouco... mas para um desconforto maior ainda e para um desconforto no limite é isso, viver não é simples para ninguém. mas a gente está vivo e do insuportável. hoje em dia tento equilibrar muito mais. porque como a gente vai viver? acho que é difícil para todo mundo, mas tem essa coisa também do mito do artista. hélio oiticica falando não sei como é. ninguém sabe como é para o outro, né? por mais “o artista é o vampiro de si próprio” zeus me livre! entendeu? mas intimidade que você tenha, por mais comunicação que você tenha. tem essa onda, todo mundo já entrou nessa, você vira o vampiro é uma situação de desconforto estar vivo, também. quem sabe a de si próprio, quase todos morrem aos quarenta e poucos anos. morte é um grande conforto. (risos) não sei, a questão é que você eu já passei dessa fase, então pronto. não que eu desvalorize isso, vai como uma planta vai para a luz, de uma certa forma. a gente muito pelo contrário, eu tive sorte, escapei, passei dessa fase. é muito mais animal do que quer crer e eu acho que isso é mara- quer dizer, é interessante porque você pensa, a maior parte desses vilhoso, não é? sinto que às vezes consigo chegar a um grau de artistas que realmente foram consumidos pelo próprio fogo, muito 184 185 CADERNOS EAV FERNANDA GOMES

fogo, um fogo lindo, maravilhoso. são vidas lindas, maravilhosas, maturação, não sei... eu me perdi um pouco no final... (risos) mas geralmente terminam aos quarenta, ninguém aguenta. eu É basicamente isso, essa questão do material. tenho vontade de envelhecer, acho que é um processo interessante, realmente muito interessante, e acho que em termos de arte você o material, para mim, eu vou sempre... consegue, de fato, chegar a uma depuração, e eu estou nessa, estou a fim de envelhecer... Aluno: Até pensando no que você falou da galeria, como é que você pensa em tudo? Tania Queiroz: Pessoal, mais duas ou três perguntas... Certamente, está ótima a conversa, mas eu acho que ficaria... agora eu me perdi... você está falando da escolha das coisas?

é bom parar... posso, também, responder em três palavras. (risos) Aluno: É, tem uma coisa do inacabado, do renegado, parece que você foi a uma loja de demolição. Sabe aquela Aluno: Você falou do cansaço que sentiu em estar presente ali coisa que ninguém quer mais, que não interessa? Aí eu falei na exposição. Eu acho que tem uma clareza, uma sensibilidade da galeria, se isso tem uma relação até como uma crítica nessa exposição que até eu também senti, sei lá, uma clareza, daquela coisa que foi renegada passar a ser vendida, tem uma uma paz muito forte, bem sensível. E agora, pensando na transvaloração do material. pergunta já, sempre quando eu vejo uma exposição, penso muito no material que o artista utiliza. Você até depois falou de venda, e é, isso eu acho muito bom porque é recolocar as ideias de valor. como tem uma escolha desses materiais no espaço e você remetendo a está todo mundo muito ligado em preço e não em valor, é interes- própria presença muito forte de madeira, ferro, eu vejo muito no sante conseguir transformar um valor abstrato, de uma situação teu trabalho uma coisa de escolha, da escolha desses materiais. E totalmente desvalorizada, em uma situação desse valor aí, quanti- a pergunta é exatamente sobre isso, sobre como é que a própria ficado pelo preço. então, isso é uma operação que me agrada muito, madeira, como é que se deu, se tem alguma relação do tempo, às vezes tirar uma coisa sem fazer nada nela, tiro do lixo, da rua, e vai 186 187 CADERNOS EAV FERNANDA GOMES

direto para o museu. no fundo, não interessa se aquilo foi achado, se eu herdei, se eu fiz, aquilo existe dentro de um universo que eu construí mentalmente, na verdade é uma construção de linguagem. o que eu construí, na verdade, é uma obra da linguagem, imaterial, totalmente imaterial e as coisas materiais dão, digamos, esse lastro. então, qual é o mistério disso? aquilo faz parte de um conjunto, ou não significaria nada. só faz sentido porque faz parte de um conjunto, que é uma construção da linguagem ou da poesia, em que é o imate- rial que traz o valor dessa coisa material, ou aquilo não existiria. a linguagem é o que permite ver ou pensar aquilo como arte, e é o que permite depois fazer, aí sim, a operação que mais me interessa, que é poder ver o mundo de uma forma totalmente diferente.

Minha linguagem você não vai conseguir, nem eu, nem ninguém, amarrar em meia dúzia de frases. nem a minha, nem a de nenhum outro artista. estou me dedicando a uma aventura muito complexa e muito exigente, para mim mesma e para quem quiser compartilhar. e funciona, o incrível é que funciona, no sentido transformador. a ideia de que a arte transforma o mundo. acho que a arte contem- porânea tem essa possibilidade de criar um novo olhar em relação a tudo, sobretudo nesse mundo em que a beleza não é mais beleza. Vista da exposição: Museu de Arte e pensar em beleza de uma forma muito mais verdadeira, e poder Moderna do Rio de Janeiro, 2011 Foto: Pat Kilgore 188 189 CADERNOS EAV FERNANDA GOMES

falar em beleza, e eu não estou falando em criar estranhamento, eu estou fazendo com tudo o que eu posso fazer, então eu tenho con- não quero chocar ninguém, eu quero criar beleza, uma coisa antiga, fiança que não estou guardando nada, não estou me poupando. me muito antiga. às vezes tenho a sensação de que o meu trabalho vira cuido para caramba, cada vez mais, mas eu não me poupo, sabe? a quase uma coisa primitiva, do tempo das cavernas, sabe? mas não, reserva é no sentido de estar... pronto, já me perdi outra vez! mais claro que não! é supercontemporâneo! e, sei lá, estou descobrindo, uma pergunta para terminar... fazendo e descobrindo, né? é uma aventura que vai ficando cada dia mais complexa, quanto mais você começa a entrar no sistema, Aluno: Não é exatamente uma pergunta, mas um pedido de mais necessária a clareza, saber o que você está fazendo. mesmo comentário. Eu queria que você comentasse um pouco sobre que você não saiba exatamente o que você está fazendo. porque um espaço que tem na sua mostra, na exposição lá, que é um ninguém sabe muito bem o que está fazendo. porque, se eu souber pouco velado, tem uma esfera branca dentro, e me chamou a muito bem o que estou fazendo, eu sei o que estou fazendo errado. atenção porque, na verdade, ele é uma coisa um pouco oculta quando você falou “eu sinto errado” ninguém sente errado, não que você se questiona inicialmente se aquilo é uma parede ou existe sentir errado, não é bom isso? não existe! como você pode é uma passagem e das duas perspectivas você não vê aquilo sentir errado? pode até ser um sentimento incômodo, inapropriado, de início, tanto de cima quanto quando você entra ali. Então, desmesurado, todos os adjetivos, mas errado não tem para sentir. gostaria que você comentasse um pouco sobre isso. pode ser um sentimento ruim ou que você não tenha apreço por ele, mas não é errado, se você sentiu, sentiu. é, as coisas são o que elas são, então é muito simples, eu também me pergunto o que é aquilo. e o que me interessa quando eu estou então, é tentar pensar isso, não adianta tentar reduzir, não adianta fazendo as coisas é justamente me perguntar o que é aquilo. senão pensar e dizer: aqui eu sei o que estou fazendo! eu sei o que estou já não acho tão interessante. ali, aquela situação existe por vários fazendo desde a primeira exposição. sei muito bem o que eu estou motivos, e por que ela acabou se tornando aquilo, principalmente. fazendo. tenho confiança porque eu sei o que estou fazendo. nem posso falar do ponto de vista mais objetivo, ou seja, defini que eu certo nem errado, eu estou fazendo com o máximo que posso fazer, queria o espaço todo aberto e que eu queria uma grande parede na 190 191 CADERNOS EAV FERNANDA GOMES

entrada, rebatendo a parede do fundo, ou seja, tudo aberto. porque waltercio caldas que fez para a exposição dele. são estruturas de tem um lado que é superestruturado no sentido formal, não no sen- alumínio com tecido que são encaixadas nas janelas, é um sistema tido formalista, mas no sentido formal como estrutura, modulação, muito bom para ter uma outra situação ali, no museu, porque você tudo ao contrário desse vagar aí, né? a luz é assim, o espaço é assim tem a luz mas não tem transparência. translúcido mas não transpa- e isso aqui rebate. eu não queria que tivesse nenhuma comunicação rente. e eu comecei a usar aquilo e acabou criando aquela situação. com a sala anterior e que você entrasse em uma exposição que você é um espaço meio estranho, porque as pessoas poderiam ficar ali. não visse nada e, quando você estivesse lá dentro, que você não visse você poderia entrar por ali também, todo mundo entra pela direita, nada lá fora, a não ser a própria paisagem. então fiz aquela parede que mas é possível entrar pela esquerda. é uma série de situações que foi rebate, exatamente, a outra parede. e a luz, que é uma luz estranha criando aquela situação ali. que vai pro teto, ela é estranha por dois motivos: primeiro porque ilumina só uma parte bem pequena da sala. e só usa as luzes do museu, Aluno: Voltando àquela questão sobre o fato de você ter ou seja, eu resolvi trabalhar com toda a precariedade como um dado migrado do design para a arte, o que não ficou muito claro positivo. e aconteceu uma situação interessante ali, totalmente para mim foram os motivos, suas motivações, imagino até que casual, porque tem o acaso que é uma maravilha, também. para a seja pela liberdade da criação e pela sua busca de uma beleza exposição que estava na outra sala foi construída uma parede, que menos rasa. tem o avesso ali à mostra. bastava eu fechar aquela porta corta-fogo para a sala ficar “normal”, ou seja, do jeito que seria se não houvesse eu adoro design, mas a questão é que não dá para fazer tudo, né? aquilo. mas aquela estrutura, daquele avesso da parede, tem tudo a foi uma situação muito simples, porque eu achava que eu nunca ver com outras estruturas que eu estou trabalhando e com outros ia conseguir viver do meu trabalho. achava que, apesar de saber trabalhos que eu já fiz em outros lugares. por acaso estava ali e eu que eu estava fazendo uma coisa que tinha um espaço, seria meio gostei e deixei aquilo aberto. aos poucos fui usando, também, o que complicado do ponto de vista... não estava previsto, mas eu tinha pedido para tirar, e quando eu fui começar a montagem, todos aqueles painéis que, na verdade, foi Aluno: Desculpa, qual trabalho, o de arte ou design? 192 193 CADERNOS EAV FERNANDA GOMES

o trabalho de arte. o trabalho de design, pelo contrário, estava muito fica a venda de um objeto feito de ouro com liga italiana e bem. gosto de design, gostaria até de trabalhar com design no futuro a venda de um que é um sarrafo tirado do lixo? Como se dá novamente, de outra maneira. acho importantíssimo, acho que o esse processo de valoração? design, hoje em dia, é muito mal pensado. mas não dá para fazer tudo, é só isso. e naquele momento eu tinha no meu apartamento é genial, porque o preço não depende muito do material, o preço um escritório de design e um ateliê e comecei a perceber que pre- do trabalho, na verdade, é muito mais caro do que o preço do ouro, feria estar ali. a cada dia estava fazendo aquilo, arte, com mais o ouro não é caro, na verdade, né? mesmo quando trabalho com vontade, e comecei a não ter mais tanta vontade de fazer design. e aí ouro, nunca tem um supercusto de produção e o ouro é um mate- entrou o computador. foi uma sorte. ainda fiz alguns trabalhos com rial maravilhoso de trabalhar, realmente, não é à toa que é tão assistentes, eu sentada do lado. mas eu teria que aprender todo um precioso. é mesmo um material maravilhoso de trabalhar, trabalho outro sistema e investir em equipamentos, ou entāo largar. larguei! com ouro puro também, adoro, você corta com tesourinha, sabe? foi maravilhoso, porque eu detesto ficar no computador por muito é um material, assim, delícia, realmente! então, por exemplo, tem tempo, aquilo agride visualmente, bombardeio de luz no olho, né? um trabalho que é um círculo de ouro e o outro é um acrílico, é o mesmo preço, entendeu? ouro e acrílico, o valor material ali se dilui. Aluno: Bom, Fernanda, você mencionou a questão da obra do caco de vidro, que você não queria vender, tinha, vamos Aluno: E esse apego com a obra? dizer assim, um certo apego com a obra. Depois desse percurso artístico, ainda hoje, há alguma obra que você faz esse apego é chato pra caramba, mas tem duas coisas: um é aquele falando “Isso é para mim, isso eu não quero vender”. E tem trabalho que você quer guardar por questões idiotamente sentimen- uma outra pergunta: você falou da questão do material, por tais. isso acontece, eu sou idiotamente sentimental, isso melhora, exemplo, eu vi as colheres feitas de ouro branco. Como se mas não cura não. depois tem o trabalho que você não pode vender dá a questão da valoração no mercado de arte, quem dá esse porque é trabalho gerador, aí é outra história. o trabalho gerador preço, é a galeria, é o artista? Mas, hoje, por exemplo, como é aquele que você precisa guardar porque ele vai te alimentando. 194 195 CADERNOS EAV FERNANDA GOMES

tem algo que vai se desenvolver muito ali. às vezes faço um trabalho “porque pensar em em dez minutos, mas passo meses, anos, olhando aquilo. tenho trabalhos inacabados de mais de vinte anos. arte e vida como tenho um monte de desenhos e nunca fiz uma exposição de dese- nhos, até hoje. então, separo em pilhas, desenhos ótimos que são amalgama é pensar geradores e eu não posso me desfazer ainda, desenhos bons que eu posso vender e desenhos ruins que eu reciclo ou guardo. às vezes, eu vou na pilha de desenhos ruins e acho um desenho lindo e falo: uma possibilidade de “caramba! o que esse desenho está fazendo aqui? esse desenho é lindo!”. às vezes eu vou na pilha de desenhos bons e falo: “que uma vida muito mais porcaria de desenho!”. como saber o que é bom e o que não é bom, essa é uma das questões mais complicadas, sobretudo para quem está começando a trabalhar. como você vai distinguir as coisas na inteira, muito mais sua produção? isso é uma coisa que faz muita diferença, eu acho, e é o que vai fazer vários artistas seguirem muito bem adiante e livre ou significativa. outros nem tanto. e outros que se perdem: encontrou uma coisa ali e não seguiu aquilo e foi cair em uma outra situação, ou por pressões externas ou porque não teve a capacidade de ver. muitas ou sei la que palavras a vezes você não tem a capacidade de ver o que você fez na hora, e, nesse ponto, o mercado acaba atuando de uma forma muito peri- gosa, a minha sorte foi que durante anos eu não vendi quase nada, gente pode juntar ai...” ficava tudo ali, então... 196 197 CADERNOS EAV FERNANDA GOMES

Aluno: Quem dá o preço? vender o seu trabalho por um preço razoável. muitos artistas bons entraram nessa enrascada. quem dá o preço é o galerista e o artista juntos. eu trabalho com a mesma galeria há 22 anos, então é uma delícia! acho dificílimo dar Aluno: Eu queria saber sobre o seu espaço de trabalho, sobre preço para o meu trabalho. parto do princípio de que todo preço o seu ateliê, como funciona, se é muito habitado, pouco está errado. mais um truque, né? preço certo não existe, está tudo habitado, se é só seu... errado! valor e preço são coisas muito diferentes e todo preço em relação à arte está errado. partindo desse princípio, é mais simples sempre trabalhei em casa, gosto de trabalhar em casa. já morei encontrar o preço mais correto possível. muitos critérios entram sozinha, já morei casada, em dois casamentos, agora estou em jogo, mas o mais objetivo é ajustar o preço em relação aos preços morando sozinha de novo. casei com dois caras bem especiais, dos trabalhos que já foram vendidos. jamais vender por menos. porque lá em casa é um negócio meio selvagem. as coisas são então, para mim, é bom manter o preço o mais baixo possível, sem relativamente organizadas e limpas, mas não tem distinção entre desvalorizar o trabalho. encontrar os vários preços dentro do meu as coisas, quer dizer, é tudo um ateliê. um apartamento de 105m². próprio trabalho é complicado, porque não é só formato e material nem grande nem pequeno, para uma pessoa sozinha é bastante que vão definir. o trabalho de ouro vai ter o mesmo preço de um confortável, para duas pessoas também. tem uma sala que só trabalho de um material totalmente vulgar. e você vai pensando, tem um canto, com sofá e uma poltrona, e o resto é tudo vazio, tudo bem, é preço, só preço, não tem problema nenhum, não é então eu vou mudando à vontade. fico experimentando, está valor. você tenta encontrar o melhor preço. geralmente quem sabe sempre mudando. fazer isso da melhor maneira é o galerista consciencioso. o grande perigo é colocar o preço muito alto. é um grande perigo para os Aluno: Faxineira nem pensar... artistas jovens, um galerista que vai vender o seu trabalho por uma fortuna, porque se depois o trabalho não vender o problema faxineira eu já tive uma que era um gênio, mas era um pouco é seu. o galerista arranja outro artista e você nunca mais vai poder insensível. na época em que eu era casada. então, essa parceria 198 199 CADERNOS EAV FERNANDA GOMES

amorosa tem que ser sempre uma parceria com gente que está A.d.: E algumas coisas você dispensa... muito ligada no teu trabalho também, e vice-versa. porque se não, não tem como morar ali, tem que ser alguém que realmente goste vou ter que dispensar umas coisas, se vocês quiserem acolher coisas, e eu tive a sorte de encontrar dois companheiros que realmente eu estou pensando... gostavam, tinham prazer de estar vivendo ali naquela coisa. tem um quarto que não tem nada, não tem arte, não tem nada, só Aluno: Mas, geralmente, você dispensa alguma coisa? tem um colchão no chão e nada. e tem um ateliê que é superlo- tado, uma cozinha que é tudo muito misturado, é sala de jantar dispenso algumas coisas. eu tinha pensado em criar uma situação e coleção, porque gosto de ter obras de outros artistas também. que seria “obras em depósito”, ou seja, você faz contratos com e agora eu tenho um ateliê legal, que é o meu preferido, que é o indivíduos ou instituições e deixa a obra em depósito durante cinco melhor quarto da casa, porque é o mais claro e é um ateliê que eu anos. depois quem ficou com a obra em depósito tem preferência chamo de ateliê de pintura, é tudo branco e não tem acúmulo. e de compra ou, se não quiser comprar, devolve. acho que para vários agora está maravilhoso porque está tudo no mam! semana que artistas poderia ser uma forma também de fazer circular as coisas. vem ainda vai ser uma semana assim, mas a outra semana vai o complicado é que o pessoal, quando pega, para devolver às vezes ser barra pesada. eu poderia ter outro espaço, pensei em várias custa. então tem que realmente fazer contrato. mas nesse caso tem opções e resolvi não fazer nada. vou tentar de novo acomodar várias coisas que são do museu, então não tem descarte, fica lá no tudo em casa, porque, de fato, eu não gosto de trabalhar fora de museu mesmo. vamos ver, acho que é fazendo, né? estou um pouco casa. eu gosto daquela situação que você levanta de noite e você desesperada, mas vai passar... vê o trabalho no escuro. eu gosto de tudo misturado. então, por exemplo, boa parte das coisas que estão no mam vai voltar. uma Aluno: Eu posso guardar um pouco lá em casa! mesa vai voltar a ser mesa da cozinha, a cadeira vai voltar a ser cadeira, o banquinho vai voltar a ser banquinho, então tem o todo mundo só quer guardar coisa pequena, eu quero saber quem trânsito dos objetos... é que vai guardar trambolho! coisa pequena eu guardo. 200 201 CADERNOS EAV FERNANDA GOMES

lá em casa, na verdade, é muito divertido, né? é outra coisa. mas no autonomia de programação não é necessariamente vinculada a museu é o máximo! que espaço maravilhoso! e aí, para mim, essa grandes patrocínios. o museu conseguiu 20 mil reais, desses 20 exposição é tentar colaborar com o que eu possa fazer de melhor mil reais, que eu saiba, foram gastos até agora 14 mil com tudo, o para que o museu possa voltar a ser um espaço importante. e, mais folheto, a edição de múltiplo. no último domingo vou distribuir os do que importante, vivo, né? o potencial é muito maior do que está múltiplos, se eu conseguir me lembrar, se não, alguém me lembra. sendo usado. e espero que tenha contagiado um pouco quem viu a o múltiplo vocês também podem fazer, é só um lápis, aquele lápis exposição, que fique com vontade de fazer coisas ali. que está lá, pendurado, com duas pontas, é só fazer.

A.d.: Os cursos que havia antigamente ajudavam muito nisso. é isso, tem muita coisa para fazer, espero que vocês estejam cheios de disposição! porque tem muita gente trabalhando, mas acho que isso eu tenho falado demais. mas falam assim... “mas tem o par- a maioria dos artistas atualmente tem uma sede grande demais de que lage!”. mas é diferente. o bloco escola era fundamental! e inserção no mercado. é fundamental dar circulação ao trabalho pode ter, inclusive, um intercâmbio maravilhoso entre o parque e ganhar a vida fazendo aquilo em que se acredita. mas é preciso lage e o bloco escola do mam. seria uma ideia simples de ser ainda muito cuidado e coragem, e uma disposição de amador, amor, implantada. o mam tem essa situação, é no centro da cidade, é muito amor. um lugar onde todo mundo pode se encontrar. tem esse grande parque que pode ser usado, muito usado, tem cinemateca, tem uma história e uma arquitetura que só ali, né? não tem outro lugar, é um dos museus mais lindos do mundo. precisa recuperar sua potência original. para mim essa exposição foi materializar essa ideia, de fazer uma exposição que possa também dar ao museu a noção de que uma 202 203 CADERNOS EAV FERNANDA GOMES

Nota Saiba mais

Que difícil este processo de edição! Escrevo muito diferente do que falo, como quase ART GALLERY OF NEW SOUTH WALES. Material immaterial. Curator: Benjamin todo mundo, ou pior. Falo muito, escrevo resumidamente. Jurei que nunca mais faço Genocchio. Sydney, 1997. 63 p. isso. Provavelmente vou acabar fazendo. Lendo, tive o prazer de discordar de mim e GALERIA LAURA ALVIM. Fernanda Gomes. Curadoria da programação Fernando mudar. Cortei o que me pareceu inútil ou aborrecido demais. Muitas vezes foi necessário Cocchiarale. Rio de Janeiro, 2013. reescrever para dar mais fluidez, sem trair o tom descomprometido da conversa. Fiz o melhor que pude, mas fiquei insatisfeita. Espero que pelo menos guarde um pouco da GALERIA LUISA STRINA. Fernanda Gomes. São Paulo, 1995. alegria do encontro. 204 LUIZ ERNESTO

Eu queria agradecer o convite para estar aqui hoje neste encontro. Tenho um envolvimento de anos aqui com a escola, são trinta anos de Parque Lage, e eu sempre gosto de participar de projetos como este. Este projeto Fundamentação foi um grande avanço, e eu fico muito contente de estar aqui hoje.

Eu trouxe algumas imagens que vão mostrar um pouco do que acon- teceu durante esses anos todos, terminando com alguns trabalhos mais recentes que estou expondo1 na Galeria Silvia Cintra, aqui na Gávea. Queria convidar todos que ainda não foram. Muito branca, uma nuvem bordada Eu entrei na EAV em 1975, ano da fundação da escola. A EAV descansava, 2012 Resina epóxi, fibra de vidro, impressão inkjet. havia acabado de nascer. Temos que lembrar que era uma época 130 x 130 x 9 cm 206 207 CADERNOS EAV LUIZ ERNESTO

de ditadura. Aqui fora havia um camburão que ficava permanen- pop, era mais político, mais crítico, não tinha aquele clima irônico, temente na entrada do Parque, e muitas vezes, ao chegar, você era cínico, do pop americano. Ele dava um curso que se chamava Coti- revistado. Mão no capô do carro... jogavam sua bolsa no chão... diano e Expressão. Era um curso em que podia entrar tudo, aulas Então, era uma história muito diferente dessa de hoje. Mas aqui teóricas, aulas práticas, leitura de textos, mas era basicamente era ao mesmo tempo um lugar muito rico, porque era uma espécie despertar nos alunos a atenção para o mundo próximo, do dia a dia, de oásis dentro de um ambiente de censura, de ditadura. Era um e fazer disso uma referência para o seu trabalho. Por outro lado, o lugar efervescente, com muitas opções e eu, então, ficava prati- Roberto Magalhães era o artista da fantasia, do onírico, do olhar camente o dia inteiro fazendo aulas. Ao mesmo tempo, eu estava para o mundo com o filtro da fantasia, do fantástico. Um olhar que fazendo uma faculdade de engenharia, que foi, na verdade, a minha atravessa a dimensão prática e imediata das coisas e vai para uma formação. Acabei me formando em engenharia. Eu ficava muito dimensão fantástica. São duas posições muito diferentes. Mas dividido entre estar na faculdade e vir para cá. Minha faculdade acabei chegando à conclusão de que o meu trabalho, ao longo dos era em Petrópolis. Acabei optando pela arte. anos, pendeu às vezes para um lado, às vezes para o outro. E eu só percebi isto ao fazer o livro. Junto de minha exposição atual, lancei um livro,2 que mostra meu percurso nesses anos todos de carreira. Para fazer o livro, revi Sempre tive interesse por objetos, coisas comuns do dia a dia. Eu imagens de trabalhos que não via há muitos anos, que estavam fotografava esses objetos; coisas que a gente tem em casa, um copo guardadas. E, ao selecionar as imagens, eu me dei conta de quanto comum de vidro, torneiras, cadeiras, coisas simples, banais, que dois cursos que eu havia feito no passado, aqui na escola, foram são tão comuns que, às vezes, se tornam até invisíveis para nós. E marcantes para mim e como, na verdade, influenciaram tudo que a minha ideia era que, por um modo de fazer o trabalho, poderia fiz até hoje. Um era o curso do Rubens Gerchman, que era o dire- modificar a natureza desse objeto, fazer que essa invisibilidade se tor e fundador da escola; o outro, o do Roberto Magalhães. Eram transformasse em opacidade, que a imagem desses objetos pudesse completamente diferentes: Gerchman tinha um trabalho com reaparecer no mundo, não pelo seu caráter utilitário, mas por seu influênciapop . O pop no Brasil, que talvez nem se possa chamar de lado poético, um lado que pudesse indagar por que as coisas são como 208 209 CADERNOS EAV LUIZ ERNESTO

são. Por que elas não são diferentes? O que eu faço com esse objeto “De certa maneira, para ele ser uma outra coisa? Como eu posso mudar essa natureza? todo trabalho de arte De certa maneira, todo trabalho de arte faz isso. Desconfia do mundo. Temos uma tendência a naturalizá-lo, achar que as coi- sas são o que são porque o mundo se desenvolveu assim. Mas nos faz isso. Desconfia esquecemos de que quem está construindo esse mundo somos nós, quem dá sentido a esse mundo somos nós. E a arte, a filosofia, a literatura, quer dizer, as formas de expressão, de modo geral, são do mundo.” lugares onde se desconfia desses valores, desses sentidos. É onde você tem uma margem de deslocamento. A possibilidade de rear- rumar, de criar um certo embaralhamento nessas verdades que se enraízam de uma forma tão intensa em nossa vida. Eu queria fazer isto a partir de objetos que fossem familiares. Queria partir de coisas que fossem muito conhecidas, que todos temos em casa. Eu não escolhia objetos novos, eles não deveriam ter a impesso- alidade de um objeto que se compra em uma loja, novo, perfeito. Tinham que ser objetos que, de alguma forma, fizessem parte do dia a dia das pessoas e que isto deixasse neles traços, marcas que os preenchem de histórias, de memórias. Pode se ter uma relação com o objeto pelo uso, ou porque está na moda, pela marca... Objetos podem ser signos de distinção. Mas também temos coisas que nos foram dadas de presente, que nos lembram de pessoas. Às vezes 210 211 CADERNOS EAV LUIZ ERNESTO

herdamos um objeto, então ele tem um significado na família. Eles são espaços separados por um vidro. Um lugar que te deixa do lado podem nos lembrar de um lugar ou de uma época. Então, existem de fora. E da mesma forma a pintura, porque se você pinta dessa outras camadas mais sutis nos objetos, e nessas camadas é que maneira, hiperrealista, é como se o objeto pintado tivesse volume, sempre procurei atuar. tivesse uma profundidade. Mas a tela é plana, então você tem uma situação semelhante à da vitrine, você está do lado de fora. Naquele [Mostrando imagens dos trabalhos] momento, eu queria lidar com três coisas: a ambiguidade de uma imagem que parecesse real, o aquário e a vitrine. E fiz, então, uma Este é um trabalho de 1982. Um desenho. Eu desenhava muito série em que misturava a imagem de sapatos com peixes. nesta época. Não pintava ainda. Fazia também litografia, que é basicamente desenho. E esse é um trabalho da época em que eu Eram trabalhos muito demorados. Eu levava dois, três meses para procurava modificar a forma dos objetos de modo a coincidir com terminá-los. Era muito lento. Esta série gerou o meu trabalho da certas formas de animais e criar uma espécie de hibridização. Eu Geração 80.3 Como vai você, Geração 80? foi uma exposição,4 em queria que isto acontecesse por meio de semelhanças entre as 1984, que ocupou a escola toda, e apesar de ser uma mostra que imagens. Por isso o tratamento hiperrealista. São desenhos a lápis, ficou muito marcada pela pintura, na verdade, o projeto original a partir de fotografias era de instalações, de ocupação dos espaços. Construí uma grande caixa, como se fosse um aquário, e dentro dessa caixa coloquei várias Algum tempo depois, comecei a pintar. Achei que podia introduzir a folhas de plástico transparente, penduradas em paralelo, como se cor, introduzir a tinta, a tela. E esse foi o primeiro quadro que eu fiz. fosse um varal de roupa, até o fundo dessa caixa. As paredes eram Na verdade é uma decorrência do trabalho anterior. Resolvi fazer pintadas de azul, pintei sapatos sobre as folhas de plástico. uma série que se chamava Aquário, que era baseada em fotos que eu tirava de vitrines de sapatarias populares, geralmente de Copacabana. Num certo momento, decidi separar esses objetos de sua hibridi- Comecei a perceber algumas aproximações entre vitrines, aquários e zação com animais. Comecei então a sugerir a semelhança entre pintura: primeiro, o fato de que tanto um aquário como uma vitrine as formas, mas colocando lado a lado dessa vez a forma do animal 212 213 CADERNOS EAV LUIZ ERNESTO

e a do objeto. Aí, surgiu uma exposição,5 que também foi aqui na “Então, existem escola, chamada Rio Narciso, que teve curadoria do Marcus Lontra e era uma exposição baseada na cidade do Rio de Janeiro. Os artis- outras camadas mais tas foram convidados a fazer trabalhos que, de alguma maneira, se relacionassem com a cidade. E aí, como eu fazia essas analogias de formas, trabalhei com uma imagem bem clichê do Rio: o Pão sutis nos objetos, de Açúcar. Associei a forma do morro à forma de um gato deitado. Era um trabalho feito em neon, uma instalação.6 e nessas camadas Essas associações começaram a me cansar. Comecei a achar que o projeto já tinha se esgotado. Então me dei um tempo para começar é que sempre a pensar em outras coisas. Passei um período sem expor e retornei ao desenho, que sempre foi um meio que me ajuda a pensar. Procurei experimentar uma maneira de fazer bem diferente do realismo dos procurei atuar.” desenhos que eu fazia até então. Fui chegando a um tratamento mais denso, escuro... um tanto expressionista... e iniciei uma série de tra- balhos em que meus objetos, absolutamente banais, apareciam com uma carga dramática. Iniciei, então, uma série de desenhos baseados na ideia de criar um clima denso a partir de imagens de coisas bobas, um cachorro-quente,7 uma televisão,8 um pneu,9 um frango assado...10

Aí, novamente, como aconteceu antes, passei do desenho para a pintura. E comecei então a desenvolver uma série de pinturas, com 214 215 CADERNOS EAV LUIZ ERNESTO

esse clima dos desenhos, usando também objetos banais (como O tamanho mudava em função do interesse do vendedor, do anun- sacolas de supermercado,11 por exemplo). Alguns desses objetos ciante, de chamar a atenção para um certo objeto e não mantinha foram reaparecendo em outras séries ao longo do tempo. Como as qualquer relação com a escala real de tamanhos que esses objetos torneiras.12 Fiz diversos trabalhos com imagens delas. tinham entre si. Isto é exatamente o que era a pintura medieval, que não lida com perspectiva. O tamanho dos personagens depende da Para reforçar este clima dramático nas pinturas, que no desenho eu importância que eles têm na história. São tamanhos hierárquicos. conseguia trabalhando contrastes intensos, fui pesquisar pintores Comecei, então, a juntar os meus objetos do cotidiano (muitos eu que usaram esses contrastes. Caravaggio, por exemplo. E comecei a pintava a partir das imagens dos encartes) com certas estruturas me interessar pela representação da luz na história da pintura. Na da pintura medieval, e nesse processo, além das tintas metálicas, Idade Média, ela estava atrelada à aplicação da folha de ouro. O ouro comecei a colar rendas de crochê do Nordeste sobre as telas, imi- na pintura mediaval era a luz divina. A iluminação das velas nas tando os ornamentos das pinturas religiosas. Usei alguns trabalhos igrejas refletia no dourado dos quadros e criava um clima místico, de Giotto como modelo, substituindo os personagens por objetos. religioso. E eu comecei então a usar tintas metálicas. Este ursinho,13 por exemplo, é tridimensional, já é um trabalho em Durante esse período, coincidentemente, ganhei uma bolsa de fibra de vidro. Eu esculpi em espuma de poliuretano, revesti com estudos e fui para a Escócia. Então, lá, fui pesquisar in loco algumas a fibra e ele está parafusado no chassi. coisas que podia ver em igrejas e castelos medievais e museus. Mais tarde, realizei alguns trabalhos tridimensionais utilizando a Nessa época, além das fotos que eu fazia dos objetos, usava também fibra de vidro. Fiz uma exposição no Paço Imperial que se chamava como referência encartes publicitários de lojas de departamentos, Relação platônica.14 Eram cinco grandes torneiras feitas em fibra que vinham dentro de jornais. Comecei a perceber que, às vezes, de vidro, presas à parede. Embaixo de cada uma, há uma placa de em um encarte desses, aparecia, por exemplo, a imagem de um mármore, sobre a qual imprimi, em serigrafia, uma fotografia de relógio de pulso enorme e a de uma geladeira ao lado, bem pequena. um balde vazio visto de cima. 216 217 CADERNOS EAV LUIZ ERNESTO

Um outro trabalho, em resina, chama-se Nau frágil:15 uma folha de plástico transparente, como eu já tinha usado lá na Geração 80, presa em um canto de parede, com esse barquinho flutuando no meio dela.

Experimentei também outros materiais, como o mármore.

Em uma outra exposição no Paço, apresentei16 uma prateleira que ficava na parede e essa camisa dobrada que eu esculpi em mármore.

Na mesma exposição, mostrei uma gavetinha que tinha um enve- lope também em mármore, com o título de Parla!. 17

Esse18 é outro trabalho da mesma exposição: aviõezinhos, como aqueles dobrados em papel, também em mármore. Eram cinquenta, ficavam no chão.

Fiz também alguns desenhos sobre placas finas de fibra de vidro. Eram translúcidas e eu desenhei objetos que se relacionavam à água. Depois de desenhá-los, jogava água sobre eles, de modo a Sutis sensações libertavam momentos provocar o apagamento de algumas partes. O nome do trabalho encerrados na memória, 2012 Resina epóxi, fibra de vidro, impressão inkjet. era Desenhos lavados.19 104 x 180 x 9 cm. 218 219 CADERNOS EAV LUIZ ERNESTO

A partir daí, iniciei o trabalho que venho desenvolvendo e que vai Esses são trabalhos mais recentes. Terminei a série dos tijolos e terminar na exposição que estou realizando. São placas de fibra de comecei a utilizar a imagem de outros objetos. Como comentei vidro que se assemelham a quadros (ficam na parede), em que eu anteriormente, me interessam muito os objetos que não são novos, insiro fotografias, pintura e texto. mas usados. Objetos que tenham as marcas do tempo, que insinuem a impermanência das coisas. O texto foi entrando aos poucos. Inicialmente, uma única palavra, uma palavra que procurava não ter uma relação direta com a ima- Esses trabalhos atuais são também uma forma de lidar com ques- gem, mas que “abria” o seu sentido. tões que não pertencem à tradição da pintura. De repensá-las. De discutir seus limites. Eles se situam em uma categoria indefinida, Esse20 é um trabalho que tem a ver com aquela instalação do Paço, entre a pintura, o objeto, a fotografia... mas aqui é plano. São fotografias de torneiras inseridas dentro das camadas de fibra de vidro. Há algum tempo comecei a introduzir frases também. Ao invés de usar só uma palavra, surgiram sentenças. Comecei a elaborá-las Eram21 bastante transparentes, eu podia controlar nas camadas de de uma forma um tanto poética, e hoje, realmente, fazem parte de fibra o grau de transparência da placa, então certas placas são mais uma etapa bastante trabalhosa. transparentes que outras e quando bate a luz tem-se uma ideia de água. Na exposição atual, busquei um clima de silêncio, contemplativo, Outra série foi a dos tijolos, nasceu por acaso, quando eu comecei a e resolvi tirar praticamente a cor do trabalho. Guilherme Bueno fotografar tijolos que estavam empilhados durante uma reforma em escreveu o texto principal do livro e deu o título de Pintura muda. minha casa. O tijolo como imagem tem uma outra lógica, eu posso Achei que cabia muito bem na exposição e tornou-se o título dela. fazer com ele o que com o tijolo real eu não poderia fazer, então comecei a organizá-los como formas, como se fossem abstrações Aluno: Gostaria de saber o tipo de influência que você tem geométricas. Este é chamado Murmúrio.22 na hora de escrever as frases. Como você disse, é uma das 220 221 CADERNOS EAV LUIZ ERNESTO

partes mais difíceis atualmente, então eu gostaria de saber, explicação da imagem, é uma segunda coisa, ela funciona junto. mais ou menos, como é esse processo de inspiração, de Então, não há um processo fixo. escrever e ver se está bom, se não está bom, se você tem todo um trabalho de mostrar isso para alguém, talvez, ter uma Aluno: Como é esse processo de fazer essas placas de fibra autoavaliação, como é esse processo? de vidro?

É, na verdade, isso acabou sendo uma coisa nova para mim. Tenho É um processo industrial, chama-se laminação. É o mesmo uma compulsão por leitura, sou um leitor viciado, é algo que real- processo usado na fabricação de barcos, móveis de jardim, car- mente me dá um prazer muito grande. Sempre ando com um rocerias... Na verdade, a fibra de vidro é uma espécie de palha caderninho, porque às vezes leio uma coisa e encontro uma palavra, de vidro. Tem-se que encharcá-la com resina, trabalha-se por associo a outra e vou anotando. Vou arquivando uns retalhos de camadas sobre uma fôrma, e é entre essas camadas que eu aplico textos. Uma palavra solta... uma expressão... algo que ouvi alguém a foto, o texto, a pintura, às vezes pigmentos... Mas é tudo feito falar... Eu não tenho uma influência direta de algum autor espe- por trás, entendeu? Quer dizer, eu só sei como ficou o trabalho, cífico... A imagem vem em primeiro lugar. Dificilmente faço uma de fato, quando ele sai da fôrma. frase antes de saber qual é a imagem. Escolho o objeto, faço a foto, trabalho essa imagem no photoshop e envio para o birô imprimir Alexandre Dacosta: Eu me lembro na minha adolescência, em um acetato. Aí, com a frase já decidida, vou para o ateliê fazer não sei se você fez isso, mas eu roubei algumas placas de a placa de fibra. Às vezes, tenho uma imagem e tenho essas ano- trânsito na rua, na minha adolescência, aquela coisa, o máximo tações, esses rascunhos, aí, sento na frente do computador e vou da rebeldia! E me lembro que as placas eram de fibra de vidro, escrevendo, fico lá, às vezes, uma semana ou mais, porque a sentença não eram parafusadas, eram coladas naquele suporte, e, às tem que ter uma certa contenção, não vai passar de três linhas, vezes, coçava a mão, a fibra tem isso... tem que ter um certo ritmo, tem que ter uma certa sonoridade e uma maneira, também, de falar a coisa. Uma legenda não é uma É, não só a mão, como várias outras partes do corpo... [Risos] 222 223 CADERNOS EAV LUIZ ERNESTO

A.d.: Já que você está nesse processo da fibra, você tem que criar um modo de trabalhar em função do aproveitamento algum produto que passa, realmente coça ou a fibra já dele. Em certos momentos ajuda, mas gosto muito dessa solidão não coça tanto como antigamente? Enfim, uma pergunta do ateliê, gosto de poder sentar ali, ler, dar um tempo... pensar... idiota, mas... Não é uma fábrica com horário a cumprir. Não precisa estar tra- balhando o tempo todo, mas é importante estar ali. Mas, se tiver Não, tem razão, o material é barra pesada, na verdade! Eu uso um assistente, o ritmo muda. A exposição atual eu fiz inteira máscara, luva e com o tempo você aprende a manusear. Não é sozinho. Acho que você vai descobrindo um pouco mais sobre o que não coce, mas tem um jeito. Meio que naturalmente você próprio trabalho à medida que você o faz. Mas a impressão das vai aprendendo. Uso uma luva de couro, mas, às vezes, tenho que fotos é feita em uma gráfica. Por mais que você planeje antes, e cortar pedaços da manta de vidro... você corta puxando... mas, eu tenho que planejar, algumas decisões surgem na hora, você ao mesmo tempo, com a luva você perde o tato, para fazer uma nunca faz exatamente o que você planeja. E aí surgem coisas na coisa menor fica difícil e aí eu acabo tirando. A mesma coisa é hora que só você pode resolver. a máscara, uma máscara própria para vapores, o próprio pó de vidro é perigoso... Mas tem uma hora em que você não aguenta o Aluna: Eu queria entender um pouco mais de onde você calor e acaba tirando. tirou a ideia, na verdade, de onde você veio antes de ser artista plástico. A.d.: Você trabalha com assistente? [Risos] Antes de ser artista plástico eu não era muita coisa não! Eu já tive assistente, mas tenho um certo problema com isso, eu Eu era estudante, como falei, a minha formação universitária foi não sei se fico atrás dele ou se vou fazer outra coisa... eu começo a em engenharia mecânica. Eu entrei para a faculdade em 1974, ficar meio nervoso no ateliê, aí não ajuda. Tenho uma maneira de só que passei para uma faculdade em Petrópolis e fui morar lá. trabalhar não muito linear... faço uma coisa um pouco, aí depois Mas, ao mesmo tempo, por ter saído de casa, tive maior liberdade faço outra, volto para aquela... se eu tenho um assistente, tenho de vir, praticamente todos os dias, ao Rio para estudar aqui no 224 225 CADERNOS EAV LUIZ ERNESTO

Parque Lage. Geralmente as aulas eram à noite na faculdade. Eu chegava aqui de manhã e no final da tarde eu voltava. Então, eu fiz essas duas escolas juntas, acabei me formando em engenharia, mas nunca exerci. Mas, com curso superior, pude ganhar uma bolsa do Conselho Britânico e fui para a Escócia em 92. Trabalhei em um estúdio de gravura lá durante quase um ano, em Glasgow.

A.d.: De qualquer maneira, é desde pequeno que você tem um dom nato de desenho de observação. Eu dei uma olhada no seu livro, ontem eu levei o livro para a turma, falei de hoje e dei uma lida, assim, rapidamente, dei uma passada de olho e vi que tinha uma coisa de você ficar debaixo da mesa do seu pai desenhando. Seu pai era engenheiro, né?

Meu pai era médico...

Aluno: Mas você já desenhava ali, desde pequenininho, então?

Desde pequeno. Eu tenho dois irmãos que iam jogar bola, aquela coisa, e eu ficava ali em um mundo, assim, meio delirante. Eu me lembro que meu pai tinha uma mesa, grande, onde ele trabalhava. Volteando sobre si mesma ora encobria Ele costumava levar papel ofício para casa e me dava um bolo. Eu ora revelava, 2012 Resina epóxi, fibra de vidro, impressão inkjet. deitava no chão, embaixo da mesa dele e ficava horas desenhando! 70 x 100 x 5 cm 226 227 CADERNOS EAV LUIZ ERNESTO

Era uma coisa que, realmente, eu adorava fazer, desenhar, desde aqui e tinha uma espécie de curso básico, assim como é o de fun- pequeno eu fazia isso. Outra coisa que foi também muito marcante damentação hoje, era um curso com vários professores, eu fiz esse para mim: um apartamento que eu frequentei muito, também básico. Fiz muitos cursos: modelo vivo, desenho de observação e, durante a infância, que era o apartamento da minha avó. Era um como contei, os dois cursos mais importantes foram o curso que o apartamento muito grande em Botafogo, com objetos muito antigos próprio Gerchman dava, que se chamava Cotidiano e Expressão, e e cheios de histórias. Lá havia um álbum de desenhos, de caricatu- o curso do Roberto Magalhães, que eu levei um tempo para entrar, ras feitas por Araújo Porto-Alegre, que eu herdei. Eram desenhos porque era um curso muito concorrido, você tinha que se inscre- neoclássicos, muito bem feitos, muito bonitos, e eu gostava muito ver, fazer uma entrevista, às vezes não tinha vaga. E fiz outros, fiz de ver esse álbum. Toda vez que eu ia a esse apartamento, queria ver gravura, lito, mas os dois cursos realmente mais marcantes para o álbum. E havia ainda outra coisa que me surpreendia. Lá, nada mim foi esse do Gerchman e o do Roberto. saía do lugar, os objetos, durante cinquenta e tantos anos, estavam sempre no mesmo lugar, a mesma mesa, a mesma arrumação... A.d.: Lito era quem? acho que isso teve influência nessa coisa dos objetos, havia uma sensação de perenidade ... Lito era o Antônio Grosso, que era um grande litógrafo, era um pesquisador do processo da lito e, na verdade, foi um cara muito A.d.: Você fez aula com quem aqui, você vem em 1975 para cá? importante para eu começar a dar aula aqui. Uma professora de lito havia saído e abriu uma vaga... O Grosso me convidou para É, entrei em 1975... substituí-la. Foi aí que eu comecei a dar aula, na litografia.

A.d.: Era o Gerchman o diretor? Aluno: Você disse que trabalha sempre com série, não é? Mas você trabalha as séries de uma maneira continuada ou você Era o Gerchman, era o primeiro ano da escola. Eu entrei no final, já trabalha várias séries ao mesmo tempo? Trabalha com duas ou tinha mais ou menos uns meses de funcionamento, mas eu entrei uma série leva a outra? 228 229 CADERNOS EAV LUIZ ERNESTO

Uma série depois da outra. Porque a série, na verdade, não surge “Quer dizer, mais do de ideias esporádicas que vão aparecendo, são ideias que nascem a partir de um processo, o próprio trabalho começa a te mostrar que o objeto em si, me alguns indícios, possibilidades, você começa a “ler” o próprio trabalho... Mas há sempre um momento de transição, alguns trabalhos nem sempre são muito bons... mas eu não trabalho em interessa a imagem séries paralelas.

Aluno: Na série de Aquários, quanto tempo você levava do objeto, porque com para finalizar uma pintura daquelas? E você acha que, se não tivesse um planejamento, você conseguiria um resultado esta imagem posso interessante, se você saísse um pouco da fotografia e partisse da memória ou alguma coisa assim? mudar o objeto, posso Olha, eu levava muito tempo, realmente, era um trabalho que levava às vezes três meses... eram muitas horas de ateliê. Eu tinha que ter mudar sua natureza, uma disciplina que hoje acho que não teria mais. Mas o que me interessa realmente é lidar com a imagem. Quer dizer, mais do que o objeto em si, me interessa a imagem do objeto, porque com aquilo que a imagem esta imagem posso mudar o objeto, posso mudar sua natureza, aquilo que a imagem representa... Então, não me interessa muito a memória pessoal que eu teria dele ou observá-lo diretamente, me representa...” interessa lidar com o objeto depois que ele se torna uma imagem. 230 231 CADERNOS EAV Ricardo Becker

Como o cachimbo de Magritte... Então, a fotografia sempre foi Notas importante para mim, é meu ponto de partida. 1. ERNESTO, Luiz. Pintura muda. Exposição individual realizada na Galeria Silvia Cintra+Box 4. Rio de Janeiro, de 8 de novembro a 8 de dezembro de 2012. 2. ERNESTO, Luiz. Luiz Ernesto: Antologia 1982-2012. Rio de Janeiro: Réptil Editora, Tania Queiroz: Você falou da litografia, como foi presente na 2012. 160p. sua formação. Como é que você vê esses procedimentos da 3. ERNESTO, Luiz. Aquário, 1984. Instalação. Pintura sobre plástico transparente e gravura, como eles reverberam no seu trabalho hoje? madeira. 4. Como vai você, Geração 80?. Exposição coletiva que reuniu trabalhos de 123 artistas, realizada na Escola de Artes Visuais do Parque Lage, Rio de Janeiro, aberta em 14 de Eu acho que esse trabalho, Tania, é um somatório de tudo que eu julho de 1984. fiz. Por exemplo: faço esse trabalho ao contrário, eu faço o trabalho 5. Rio Narciso. Exposição coletiva realizada na Escola de Artes Visuais do Parque Lage, Rio de Janeiro, 1985. pelas costas, é tudo invertido, que é exatamente como se trabalha 6. ERNESTO, Luiz. Instalação para a exposição Rio Narciso, 1985. Neon. Dimensões: 200 na gravura. Tenho que fazer marcações na fôrma como registros, x 200 cm como se faz para colocar o papel na gravura. Tenho que riscar a 7. ERNESTO, Luiz. Cachorro-quente, 1988. Grafite sobre papel. Dimensões: 70 x 100 cm. 8. ERNESTO, Luiz. TV, 1988. Grafite sobre papel. Dimensões: 72 x 100 cm. fôrma toda para colocar a foto no lugar correto, Está tudo medido. 9. ERNESTO, Luiz. Pneu, 1988. Grafite sobre papel. Dimensões: 70 x 100 cm. E isto veio da gravura, da lito. E não deixa de ser um processo de 10. ERNESTO, Luiz. Frango, 1988. Grafite sobre papel. Dimensões: 70 x 100 cm. impressão, é uma impressão inkjet. Então, tem a fibra que eu usava 11. ERNESTO, Luiz. Sacolas, 1987. Grafite sobre papel. Dimensões: 160 x 200 cm. lá atrás nos objetos, tem a fotografia, que sempre serviu de base 12. ERNESTO, Luiz. Torneira, 1987. Grafite sobre papel. Dimensões: 160 x 200 cm. para mim, e esse trabalho invertido que é um processo de gravura. 13. Ernesto, Luiz. Urso, 1990. Óleo, fibra de vidro e esmalte sobre tela. Dimensões: 80 x 200 cm. 14. Ernesto, Luiz. Relação platônica,1996. Resina de poliéster, fibra de vidro e serigrafia sobre mármore. 15. ERNESTO, Luiz. Nau frágil, 1997. Instalação. Resina de poliéster e plástico. Dimensões: 150 x 150 x 200 cm. 16. ERNESTO, Luiz. De circunstância, 1999. Mármore e madeira. 36 x 45 x 23 cm. 17. ERNESTO, Luiz. Parla, 1999. Mármore e madeira. 35 x 25 x 8 cm. 18. ERNESTO, Luiz. Fora de alcance, 1999. 30 “aviõezinhos” de mármore. 12 x 25 x 3 cm (cada). 232 233 CADERNOS EAV LUIZ ERNESTO

19. ERNESTO, Luiz. Desenhos lavados, 1999. Grafite sobre fibra de vidro. Série de 12 desenhos. Dimensões: 50 x 70 cm cada. Saiba mais 20. ERNESTO, Luiz. Ligação, 2012. Resina de poliéster, fibra de vidro e impressãoinkjet . Dimensões: 125 x 200 x 5 cm. http://www.luizernesto.com.br/ 21. ERNESTO, Luiz. Deriva, 2002. Resina de poliéster, fibra de vidro e impressãoinkjet . GALERIA ANNA MARIA NIEMEYER; PAÇO IMPERIAL. Luiz Ernesto. Rio de Janeiro, Dimensões: 150 x 106 x 5 cm. 1996. 22. ERNESTO, Luiz. Murmúrio, 2004. Resina de poliéster, fibra de vidro e impressão GALERIA PAULO KLABIN. Luiz Ernesto: pinturas – aquários. Rio de Janeiro, 1984. inkjet. Dimensões: 150 x 106 x 5 cm. LUIZ Ernesto: antologia 1982 – 2012. Textos de Agnaldo Farias, Guilherme Bueno, Marcus de Lontra Costa, Paulo Sergio Duarte. Rio de Janeiro: Réptil, 2012. 453 p. 234 ricardo becker

A proposta deste encontro é apresentar algumas imagens de tra- balhos representativos da minha atividade como artista e falar um pouco sobre o percurso da minha trajetória. Quando acabar a apresentação, considero interessante uma troca de ideias para um melhor entendimento desses trabalhos.

Em meados dos anos 80, comecei a trabalhar com arte. Minha forma- ção inicialmente foi em Direito, que não tem absolutamente nada a ver com artes plásticas. Então comecei a fazer alguns cursos no ateliê da artista Maria Teresa Vieira, que frequentei durante dois, três anos, e cursos de outros artistas também. Depois, ingressei nos cursos do MAM, que infelizmente não existem mais. A Escola de Artes Visuais Projeto Cisco, 2012 Vista da instalação realizada no Cento eu frequentava para conversar, encontrar artistas e amigos. Cultural Laura Alvim - Rio de Janeiro Foto: Wilton Montenegro 236 237 CADERNOS EAV Ricardo Becker

O primeiro curso no MAM foi de desenho, e entrei com um colega mais completa. Ao mesmo tempo, passei a vender meu trabalho artista plástico, Marcos Chaves. Fizemos uma trajetória, mais ou e a frequentar algumas galerias e dessa forma começo a ingres- menos juntos: ateliê da artista Maria Teresa Vieira, depois o MAM. sar no mercado de arte. Por acaso, tinha um grupo de amigos e Nesse curso específico do MAM, fiquei muito frustrado porque o fomos conhecendo pessoas do meio, colecionadores, críticos de professor chegou e falou: “Amigo, você tem que ir para um curso arte. Uma crítica de arte, muito amiga, Lígia Canongia, na época, mais básico, porque você não sabe desenhar nada!” Fiquei abalado e crítica de arte do O Globo, ajudou muito o grupo. Havia crítica de fui fazer um curso de modelo vivo – a coisa mais careta e arcaica. A arte no jornal, o que era muito bom e que hoje em dia não existe, situação era a seguinte: algumas senhoras desenhando uma modelo, praticamente. A exposição que ela idealizou – “7 x ar”, no MAM, nua, e eu não conseguia desenhar de jeito nenhum! Tentava, rasgava deu uma alavancada em nossas carreiras. Éramos sete artistas; o papel e via aquelas senhoras desenhando com perfeição; aquele uma exposição de esculturas, cada artista iria apresentar uma desenho maravilhoso, falei para mim mesmo: “Poxa cara, eu não sei peça. Foi uma exposição bastante interessante, em 1985. Tivemos desenhar, não vou ser artista, mas eu quero ser artista!” De repente, a chance de contar com a generosidade dela e de outras pessoas. o que acontece? Um toque do professor que se tornou um grande Mas também fazíamos muitas ações individuais e conjuntas; não amigo, até hoje – Manoel Fernandes, um ótimo artista que mora ficávamos numa atitude de esperar, “Ah, eu quero a galeria tal...” em São Paulo. Ele chega para mim e fala: “Ricardo, o que é isso que Nossas ações conjuntas eram importantes; alugávamos uma casa, você está fazendo? O que é isso que está aí?” Respondi: “Ah! É um convidávamos pessoas do meio de arte, críticos, colecionadores. desenho”, e ele: “Ricardo, é o teu desenho! O teu desenho é assim. Assim, fomos ingressando no mercado, porque queríamos viver Você não precisa desenhar igual a essas senhoras que estão do seu seriamente de arte. Então, fazíamos essas ações, fomos colocando lado, e o seu desenho é muito mais interessante do que o delas. Vai nosso trabalho na rua. embora, vai para casa trabalhar!”. E aconteceu, no MAM; todo aberto, todo de vidro. E que durante Acatei; fui para casa e comecei a dar com a cara na parede; pintar, muitos anos tinha as janelas tampadas com compensado simu- desenhar, estudar; decidi fazer cursos teóricos para uma formação lando duas grandes paredes nas laterais do espaço. Conversamos 238 239 CADERNOS EAV Ricardo Becker

com o Carlos Zuñiga, diretor de montagem do museu, e falamos: vir ao Brasil. Por outro lado, comecei a fazer uma carreira em Por- “Gostaríamos de tirar todas essas tapadeiras, todos os módulos, tugal; exposições em galerias de Portugal e da Espanha; participei porque a gente quer o museu aberto”. O espaço do museu em que de feiras. Trabalhei também com publicidade, porque junto com iríamos expor foi projetado sem paredes; as paredes eram falsas. as artes plásticas sempre mantive uma relação de trabalho com Desvelamos o museu; ficou superbacana porque se via a cidade, os publicidade. Era diretor de arte; esse trabalho em agência durou trabalhos conversavam com a cidade. Interação. quinze anos. Então, começou a bater a saudade daqui; o país estava melhorando, também. Quando deixei o Brasil, estava vivendo um Essa exposição no MAM foi determinante; a coisa começou a acon- momento difícil, não saí por causa dessa crise; na verdade, viajei tecer, o grupo era bem interessante; todos trabalhando seriamente para me casar, porque me apaixonei por uma portuguesa. com propostas visuais diversas e determinação. Conversávamos muito; tínhamos um ateliê: eu, Marcos Chaves, Marcus André, Voltei ao Brasil em 2000, com uma exposição individual agendada André Costa, e fazíamos uma baderna lá dentro! Era um galpão no Paço Imperial – Entre algum lugar nenhum. Uma exposição que imenso na Tijuca; convidávamos artistas de São Paulo; vinha o idealizei em Portugal. Leonilson, fazíamos trabalhos a dez mãos; enfim, era uma curtição! Essa coisa da união é bem legal; depois, por questões da vida, cada Agora, gostaria de falar um pouco do meu trabalho propriamente. um seguiu o seu caminho. As artes plásticas têm essa caracterís- A minha trajetória sempre privilegia o conceito, a ideia, o projeto. tica; acabam produzindo carreiras solo. Às vezes sinto falta desse Os projetos não têm uma continuidade formal; a continuidade é encontro, dessa troca de ideias: “Então, o que você está achando muito mais conceitual. Então, trabalho com várias mídias – escul- do trabalho?”. Isso acabou. Mas, no princípio, foi um pouco assim. tura, desenho, pintura, instalação – e diversos materiais: alumínio, madeira, vidro, muito com vidro. E procuro passar para os meus Depois fui morar fora do Brasil e quando a gente sai, as pessoas alunos essa “fórmula” para que não fiquem presos a uma questão. esquecem um pouco da gente. Passei sete anos em Portugal. Apesar Percebo que muitos artistas trabalham com apenas um tipo de de ter feito duas ou três exposições aqui, fiquei muito tempo sem material ou mídia ou até mesmo se prendem a um determinado 240 241 CADERNOS EAV Ricardo Becker

tema. Seja lá o que for, essa postura acaba limitando o pensamento, apenas. Lembro-me quando a instalação ficou pronta; todos exaus- nesse caso o artista fica meio sem saída; passa a ser artista de uma tos... Fui para casa e no dia seguinte não tinha vernissage, não ia obra só e isso acontece muito! Para me proteger dessa situação, receber convidados. Fui sozinho para o Centro e ao sair do metrô priorizo os projetos porque propõem novos desafios... Nenhum fiquei com medo.“Cara, qual vai ser a reação do público?” Não estava vai ser igual ao outro. fazendo uma exposição, digamos, num museu ou galeria aonde as pessoas vão para ver arte. Saio do metrô e vejo aquele “monstro” O projeto Passeio da sombra vai ao encontro dessa reflexão de pro- na minha frente. “Cara, eu criei isso!” Começo a ver e ouvir o que as por uma multiplicidade de caminhos, uma pluralidade vertiginosa pessoas falam... O trabalho atravessava a praça, fazia uma diagonal, dos possíveis, questão tão atual na arte e vida contemporâneas. saía quase na beirinha da calçada do Teatro Municipal e ia até o O Passeio da sombra, que realizei em 2004, era uma instalação bar Amarelinho; tinha uns 50 metros de comprimento e ia fazendo formada por 500 portas de dimensões variáveis que formavam um esse labirinto; não era um labirinto para se perder, era uma alusão. labirinto e tomavam conta da Cinelândia. Esse trabalho foi pontual; Foi interessante porque separei a praça, e era necessário dar a no mundo contemporâneo estamos como em um labirinto. Por que volta para poder ver o trabalho. Pela manhã, fiquei meio frustrado não criar esse labirinto? Faço, então, uma maquete no meu ateliê, porque a reação das pessoas era não entrar no labirinto, as pessoas um trabalho caro e complicado para execução; um amigo vê essa passavam “batido”. Ouvia alguns comentários: “Ah, isso é coisa do maquete e fala: “Ricardo, vamos realizar esse trabalho, eu tenho Lula!”, um negócio meio favelão, o trabalho era meio povera, era x de grana para fazer essa peça, topa?” “Claro.” E estava tendo no forte pra caramba! Dialogava muito bem com a cidade, conversava Rio um festival de teatro internacional que envolvia arte, com o com os prédios; teve um momento em que parecia até que as portas tema labirinto, e o Festival permite que o projeto se realize na tinham voado desses prédios. Passei o dia inteiro observando e Cinelândia. Foi superdesafiador, porque gosto de fazer trabalhos enquanto pela manhã as pessoas estavam indo para o trabalho e de grande escala. Foi assim, então, que realizei minha primeira ninguém queria perder tempo, depois, à tarde, todo mundo entrava. obra em um espaço urbano. Esse trabalho teve que ser montado de À noite, então, as pessoas interagiam com o trabalho e fiquei super- madrugada; com uma equipe de 20 pessoas, em duas madrugadas feliz! Em determinado momento encontrei o Paulo Herkenhoff, 242 243 CADERNOS EAV Ricardo Becker

na época, diretor do Museu Nacional de Belas-Artes e ele falou: iluminação. Enfim, estou à frente do meu trabalho; ele é dirigido “Becker, eu adoro esse trabalho, todo dia quando acabo de almoçar, por mim. Essa última exposição, projeto Cisco, era uma exposição venho aqui e fico apreciando, olhando teu trabalho”. Ocorreu uma com trabalhos que tinham uma questão de engenharia complicada; situação de liberdade e interação que foi muito interessante; até tinham que estar em balanço, ficavam no ar. Essas questões que grafitaram algumas portas. Já montei esse trabalho em museu e surgem no decorrer da execução do projeto têm que ser resolvidas; foi vandalizado; na rua o pessoal respeitou muito mais. E tinha então, é o engenheiro, o arquiteto, o marceneiro, que eu não chamo pensado: “Vão destruir tudo, vão derrubar”. de marceneiro, mas de “meu mágico”, porque ele é o máximo, que resolve tudo. Essas parcerias são fundamentais para a execução Quanto à execução dos trabalhos; gosto de dirigir e coordenar os correta do trabalho. Em relação às minhas aulas, procuro chamar projetos do princípio ao fim, desde a concepção da ideia até colocar, a atenção para que os alunos aprendam a defender o seu trabalho, nesse caso, as portas ali na Cinelândia; tudo tem que ser pensado; entendam o que estão fazendo. os meus trabalhos têm um planejamento, uma arquitetura. É claro que conto com colaboradores de confiança como o Leandro que Quanto à questão da montagem de um projeto, seja para uma gale- é arquiteto e meu assistente; ele faz toda a parte digital, desenho ria, museu ou espaço público, penso e planejo o que melhor vai se técnico, maquete. É preciso existir uma parceria, uma confiança, adaptar ao espaço. É preciso entrar no espaço físico do local da mas não abro mão de dirigir o meu trabalho; eu boto a mão nele o exposição para saber o lugar de cada coisa e dessa forma facilitar tempo inteiro, gosto muito de ir lá e fazer. Por exemplo, para fazer o trabalho da equipe. É interessante o trabalho estar todo plane- uma escultura em alumínio, fui para dentro de uma fábrica em São jado para evitar erro, porque é sempre com pouco dinheiro que Paulo: não entendia nada de alumínio, aprendi como é que se funde se trabalha. o alumínio, a quantos graus; isso me interessou porque quero estar o tempo inteiro com a mão ali. Tem artistas que mandam fazer, Aluno: Eu queria que você comentasse um pouco sobre mas gosto de estar controlando o trabalho. Controlo inclusive a uma das obras; aquela que é uma pedra e uma lupa, e a lupa montagem, a iluminação; aprendo iluminação e gosto de fazer a transforma a proporção dessa pedra... 244 245 CADERNOS EAV Ricardo Becker

“Quanto à questão da Esse trabalho, que realizei em 2004, foi o ponto de partida para o projeto da exposição Belvedere na Galeria Novembro, em 2005, no montagem de um projeto, Rio de Janeiro. O que é belvedere? Belvedere é um lugar em que se vê a grande vista, para tal é necessário subir uma montanha e então seja para uma galeria, museu vislumbrar a paisagem. A exposição trazia a ideia de paisagem para dentro da galeria, utilizando a lente e suas implicações conceituais. ou espaço público, penso e Acho que fui bastante feliz no título, considero fundamental pensar no título; um exercício interessante, porque o título é revelador. planejo o que melhor vai se O Belvedere parece perguntar qual seria a função do olhar na arte contemporânea, a contemplação ainda estaria na linha de frente adaptar ao espaço. É preciso desse olhar? entrar no espaço físico do As centenas de lupas presas a correntes metálicas tomaram conta do espaço da galeria e permitiam uma interação com o público. local da exposição para saber Temos que entrar no trabalho, penetrá-lo, esgueirar-nos entre as lupas. Elas são um emblema de uma visão clara e minuciosa, num o lugar de cada coisa e dessa conjunto que se impõe ao detalhe. As lupas, a despeito de seu tama- nho e aspecto idêntico, sofreram dois tipos de intervenção; ao lado forma facilitar o trabalho das intactas, jateei parte das lentes, tirando-lhes a transparência, as deixei translúcidas; além dessa situação, produzi outra, na qual da equipe.” simplesmente vedei de negro as lentes, cegando-as pela opacidade total. Essas situações remetiam à situação de olhar e ver, de não ver com clareza e à situação de não ver. 246 247 CADERNOS EAV Ricardo Becker

Belvedere foi o ponto de partida para o projeto Cisco, um projeto que trata de outras questões; a questão do vento e suas implicações conceituais. O título é sugestivo, parece alertar-nos contra algo que compromete nosso olhar. Ciscos estão à solta e o vento pronto para levá-los. No projeto Cisco, o desafio era tornar o invisível visível. O invisível é o ar e o vento; o vento, uma situação tátil, que incomoda. Os ciscos são uma das poucas situações de “ver” vento – ainda que de forma incômoda. Visualizar o vento de modo poético foi o maior desafio que me propus nesse projeto. E o vento é o veículo que constrói essa exposição através de cinco trabalhos que exploram diferentes possibilidades de visualização do ar. A exposição se inicia com um filme que mostra o fluxo do vento sobre a areia da praia. Na sala principal, um túnel de vento – um penetrável – faz com que o visitante, ao fazer o percurso do túnel, se defronte com uma ven- tania produzida por vários ventiladores no seu interior. Na última sala, duas esculturas, uma com grandes galhos de uma árvore que caiu na minha casa pela ação do vento e outra, uma pequena árvore que revela o assédio do vento sobre ela, sua fragilidade ao longo de uma breve existência. Mas o cisco principal é aquele formado por hábitos acomodados ao senso comum.

Passeio da sombra, 2004 Por que eu peguei esse projeto? Como se dá o processo de traba- Vista da instalação realizada na Cinelândia - Rio de Janeiro lho? O que faz o trabalho acontecer? Tenho o hábito de acumular, Foto: Luciano Bogado 248 249 CADERNOS EAV Ricardo Becker

“O invisível é o ar e o vento; guardar muitas coisas, objetos que considero que podem resultar em uma ideia. Por exemplo, ganhei esse bonsai1 e esqueci na casa o vento, uma situação tátil, de um amigo em Búzios durante um ano. Quando voltei, lá estava exatamente onde o havia deixado; em um telhadinho e tinha adqui- que incomoda. Os ciscos são rido a forma que o vento lhe imprimiu. A questão do vento e suas implicações já estavam na minha cabeça e quando voltei de Búzios uma das poucas situações de deu um start. “ver” vento – ainda que de Li uma entrevista do Waltercio Caldas e achei muito interessante o que ele dizia: na arte não existe o acaso; “Ah, deu certo porque forma incômoda. Visualizar eu dei essa pincelada”, não! Deu certo porque você foi lá dar a pincelada!” Então, não existe o acaso. Houve a intenção da pince- o vento de modo poético lada. O artista é consciente do que faz. No caso do projeto Cisco, a árvore que ganhei provocou um pensamento sobre a situação do foi o maior desafio que me vento e comecei a desenvolver a instalação e a fazer a maquete. Depois, tive que refletir sobre o fazer, a questão escultórica. Como propus nesse projeto.” construir essa escultura? Simplesmente apresentar a árvore em cima de um praticável... não seria uma escultura, seria uma árvore que sofreu a ação do vento com o tempo. Mas quando entra a questão escultórica da coisa? É quando começo a pensar em como será o suporte desse trabalho? Quando um objeto deixa de ser apenas objeto e se torna arte? Decido fixar a árvore em um tubo de vidro embutido na raiz e que depois é colocado na parede. 250 251 CADERNOS EAV Ricardo Becker

A árvore ganha outra estatura, porque dá conta de transmitir a até relacionam porque esse trabalho tem uma questão de ninho, ideia e assim se torna uma escultura. O objeto árvore se trans- tem uma coisa de acolhida; é todo de madeira, as pessoas queriam forma em escultura. Se estivesse em cima da mesa, não seria uma muito ficar lá dentro. Teve uma situação engraçada, uma menina: escultura, seria um bonsai, e agora passou a ser escultura. Essa “Você não quer me alugar, para eu dormir aqui, colocar uma rede e mudança de condição passa por esse processo de pensamento tal...” O trabalho tinha uma coisa de acolher; então, nesse sentido, que acabei de descrever. O objeto agora transmite um conceito; considero que pode se pensar no Hélio Oiticica. é portador de uma ideia. Mas também uma condição para que o objeto árvore adquira a posição de obra de arte é que o trabalho Aluno: Eu perguntei mais por causa do uso da palavra, seja apresentado e inserido no contexto da arte: museus, galerias, porque eu também achei que formalmente não tivesse muito instituições... a ver. Mas essa palavra não foi inventada pelo Hélio Oiticica? Essa qualificação? Aluno: Na exposição Cisco tem essa instalação que você acabou de mostrar, que você disse que era um penetrável. Não, acho que não foi inventado por ele. Penetrável é um tra- Eu queria saber qual a sua relação com o trabalho de balho no qual o visitante entra e com o qual “interage”. No caso Hélio Oiticica. do projeto Cisco, considero que pode se falar que o trabalho é muito mais um site specific. Site specific é um trabalho projetado O penetrável que apresentei no projeto Cisco não foi pensado como para determinado local. Então, esse trabalho do túnel atende ao um trabalho que se relacionasse diretamente com o Hélio Oiticica. conceito de site specific porque foi pensado, dimensionado para Pensei o trabalho como um site specific e como um penetrável. O aquela sala. O trabalho pode até ser construído em outro local, mas Hélio criou vários penetráveis; a situação que desenvolvo não é vai ter outra configuração. Enfim, tudo relacionado ao túnel foi uma situação de ninho, até chamo de Vento abrigo2. É claro que, pensado e planejado; a desproporção em relação à sala, a mudança quando se pensa em penetrável, sempre se pensa no Hélio, posso da arquitetura do lugar, a condição abrutalhada do trabalho, nada ter pensado no Hélio Oiticica, mas não diretamente. As pessoas foi feito por acaso. 252 253 CADERNOS EAV Ricardo Becker

Aluno: Sou estudante de arquitetura e agora estou aqui casa, o arquiteto, o responsável pelo museu, o iluminador, todos fazendo curso no Parque Lage. Eu gostaria de saber mais a que participaram estavam lá! No final da montagem, teve até um respeito de você, artista, na produção de uma peça e do seu momento que falei: “O trabalho é meu! Quem manda nisso sou diálogo com o seu parceiro arquiteto, com os engenheiros eu, vai ser assim, ponto final, e quero ficar com a minha equipe, e com marceneiro. Como é essa troca? Como isso pode tranquilo! Porque parceria não é tão simples; montagem e execução enriquecer o seu trabalho, não do ponto de vista do projeto têm momentos tensos... O arquiteto: “O trabalho não pode tocar o em si, da segurança, de ficar em pé, mas como eles podem chão...” Isso, por conta da casa ser tombada. “Tá bom! Mas, como contribuir para que o seu trabalho fique melhor do ponto de eu faço?” e todo mundo começou a dar ideias, até que meu mar- vista do trabalho em si, do impacto dele? ceneiro falou: “Para não tocar no chão tem que ser assim e assim. Quer que eu faça?” “Quero!” E conseguiu criar essa engenharia...O É importante uma situação de parceria; ser aberto para ideias. Na trabalho no ar! Parecia que o trabalho ia levantar voo; e você já verdade, essa troca acontece o tempo inteiro. Por exemplo, traba- sai lá de dentro voando, porque o vento é muito forte... Tudo em lho com um arquiteto, amigo meu da Alemanha, que é excelente; balanço; planejei com o arquiteto que, ao sair do penetrável para em relação ao projeto Cisco, ele falou: “A gente tem que fazer uma ver o filme, o visitante ainda estivesse recebendo o vento. Depois, maquete, pela volumetria desse trabalho...” E era um lugar com- na edição do filme com o cineasta, surge a questão do som; lá estava plicado, passava por uma porta de 1,20m, tinha que ter condições o filme maravilhoso, na cor, e o som? Tinha som. “Mas não podia adequadas para o cadeirante, mil e uma normas do museu. Juntos, ter som!” O som é o som do vento! Um som real do vento. Porque discutimos como executar o projeto; isso é uma parceria, ter aber- o som gravado do vento é “brrrrrr!”; fake, inclusive. Essa foi outra tura para negociar e fazer o melhor. Outra situação de parceria; a sacada conjunta do trabalho em equipe. ideia do suporte para a árvore foi do Leandro, meu assistente – “por- que você não coloca um vidro na árvore?”. Foi uma contribuição Aluno: Minha pergunta não está relacionada a um trabalho importante. Isso é uma equipe. E a questão da parceria é tão forte específico, mas à sua carreira. Você comentou que trabalhou que, quando entramos na exposição do projeto Cisco, a equipe da como publicitário ou ainda trabalha? Não ficou muito claro 254 255 CADERNOS EAV Ricardo Becker

para mim. Você teve um trabalho extenso nessa carreira? Eu queria saber como lidar com essas duas carreiras? Uma que você tem que produzir mais comercialmente, que você está ali atendendo a um cliente, tem preocupação com prazo, um salário no final do mês, e uma que também tem as suas formalidades, mas é mais livre no sentido da criação. Então, como lidar com isso?

Comecei trabalhando com arte; então, acontece aquela crise dos anos 80; as galerias começam a falir e pensei: “já estou com vinte e poucos anos, tenho que trabalhar!” E fui pedir um estágio em uma agência, a Artplan, uma das grandes agências do Rio, na época. Pedi um estágio, fui aceito. Depois desse estágio, fui para outra agência, onde fui contratado já como diretor de arte. Logo depois, em Portugal, trabalhei com publicidade em mais algumas agências. Atualmente, não trabalho com publicidade. Realmente, são traba- lhos muito diversos tanto em relação ao cliente como em relação à criação. Como publicitário, tinha liberdade, mas certas limitações de produção; o interesse da agência é atender os clientes. Como artista, a liberdade de produção é muito maior, mas a estabilidade financeira, menor. Belvedere, 2005 Vista da instalação realizada na Galeria Aluno: E como foi lidar com as duas carreiras em paralelo? Novembro - Rio de janeiro Foto: Wilton Montenegro 256 257 CADERNOS EAV Ricardo Becker

É muito difícil; primeiro, tem a questão física, de você passar o dia nessa galeria, passei a ser artista da galeria; participei de uma feira dentro de uma agência. Passava o dia na Artplan e tinha um ateliê em Madri, a Arco. Encontrei vários amigos do Brasil que não via há na Gávea – foi um momento em que produzi muito pouco, porque anos, “Becker, você tá aqui?” “É, estou em uma galeria de Portugal”. chegava exausto ao ateliê, às sete horas da noite, e evidentemente a produção de arte cai. Tem que ter muita força de vontade, traba- Aluno: Você já expôs fora do país e aqui também. Eu gostaria lhar final de semana... Quando fui para Portugal, aluguei um ateliê de saber qual a diferença de expor aqui e expor lá fora. e fiquei quase um ano sem trabalhar com arte, mas a gente nunca deixa de ser artista. Pensa em arte 24 horas por dia. Então, em um Fiz exposições fora do Brasil, em Portugal e na Espanha; conheci dado momento, estava cheio de ideias. E então aconteceram umas artistas, diretores de museu, mas sempre fui um estrangeiro, nin- coisas bastante engraçadas; conheci uma galerista, levei o meu guém me adotou. Nenhum português me fez um convite para uma portfólio, e ela achou muito interessante, gostou do meu trabalho; coletiva de portugueses. Há, então, esse problema, você é um estran- era uma supergaleria. “Você tem trabalhos aqui?” Ao que respondi: geiro, por mais anos que você viva fora; você é um brasileiro, seja “Tenho, tenho”. Eu não tinha nenhum trabalho, nada, nada, zero! pintor, escultor. Apesar de ser superrespeitado, sentia essa situação. Minha casa não tinha nenhum trabalho, tinha uma TV, um rádio Por exemplo, o Antônio Dias viveu quarenta anos fora do Brasil, mas e uma máquina de lavar. “Quero ir ao seu ateliê!” Falei: “Está bem, continua sendo brasileiro. Às vezes, é mais fácil ser convidado para vamos lá, sábado”. Pensei: “O que eu vou mostrar?” Saio na rua, vou uma exposição fora do Brasil do que estar propriamente em outro a uma papelaria e compro um monte de papel, uns papéis imensos, país. Com certeza, estamos com muito mais visibilidade hoje do que de três metros. E criei uma exposição toda em papel. Fiz umas há vinte anos e, portanto, somos mais convidados para exposições. montagens, uma zarabatana com quatro metros de altura, uma Tanto que 90% dos artistas que têm uma carreira internacional, escultura em papel, e ficou um trabalho bem interessante. Tinha como o , moram no Brasil, não estão morando em alguns quadros, porque pinto, também, não com tinta; são uns outros países. Quanto à minha trajetória, prefiro estar aqui, hoje trabalhos com talco. Também trabalho com uma situação tridi- em dia. A Europa é boa para passear, passei quarenta dias agora, mensional e desenho. E acabei fazendo uma exposição de pintura em Roma, curtindo, tomando vinho e tal. 258 259 CADERNOS EAV Ricardo Becker

Aluno: Mas em questão de suporte das galerias e do pessoal Tania Queiroz: Os próprios museus, os acervos dos museus... envolvido, da montagem? Eu sou superapologista da internet; você vê o acervo do Louvre, Tem uma diferença. Se você vai expor em uma galeria lá fora, terá de todos os museus, galerias! Isso é uma facilidade, ferramenta mais apoio e estrutura, com certeza. Expor em Portugal, um país fantástica! Mas não deixem de ir a museus no Brasil, de visitar pequeno, na Fundação Gulbenkian, por exemplo, o artista pode galerias; galerista não morde! Isso é fundamental! E ler muito! contar com uma equipe de dez pessoas, aqui é você e cinco caras Falo isso porque tinha medo de entrar em galeria, achava os caras te atrapalhando! “Não chegou o prego, o ventilador...!” Alugo o arrogantes. Aquela porta de vidro existe para ser aberta! Lembro- ventilador e pago, porque o produtor dormiu, e o ventilador tinha -me de que tinha medo de entrar na Galeria Saramenha, na Gávea, que estar lá naquele dia. São esses absurdos. Lá fora, não acon- de um grande amigo meu, até hoje, o Victor Arruda. E não é nada tece isso, mando uma lista para o museu e quando chegar para disso; são pessoas superamáveis, são pessoas legais. É que os gale- a montagem, com certeza, os ventiladores vão estar, a madeira ristas e curadores sofrem um constante assédio dos artistas e essa também, tudo... Aqui é preciso muito jogo de cintura, que não postura arrogante faz parte do jogo, para que possam se proteger deixa de ser um aprendizado. Acho que o europeu tem muitas também. Não levem em consideração e não deixem de frequentar facilidades, ele compra pronto! A gente tem que botar a mão na museus e galerias. massa: carregar o quadro, fazer tinta; aprendi a fazer tinta porque não tinha dinheiro para comprar; tinta importada era muito caro. Tania Queiroz: A gente tem Inhotim, agora. Quando a gente O brasileiro não se intimida com as dificuldades e a falta de apoio; estudava nem se pensava em ter algo como Inhotim, não é? o importante é realizar! E hoje em dia temos a internet, que é uma ferramenta que facilita o acesso do artista, seja para informações Claro que não. Por acaso, ainda não fui, tenho que ir com vocês! de arte seja para a compra de materiais. Pessoalmente, gosto de estar com uma revista de arte na mão, mas esses textos estão na T.q.: Você tem um caderno, Becker? Onde você anota essas internet, tudo mais fácil! coisas? 260 261 CADERNOS EAV Ricardo Becker

Tenho, mas tenho muito papelzinho solto também, que vou jun- “E não deixar passar, tando aos cadernos. não jogar fora T.q.: Ele perguntou sobre o trabalho do espelho, aquele grande e redondo que estava em um espaço público. nenhuma coisa que Fui convidado para fazer parte de uma exposição nas ruas de Santa Teresa sobre a Via-Sacra e o trabalho que escolhi foi a representação do túmulo de Cristo. Na minha cabeça tinha sempre essa imagem você viu. Acho que o – uma pedra redonda, a tampa da tumba de Cristo. Então, fiz um grande espelho de dois metros de diâmetro, que ficava encostado artista é um poço de em um muro virado para o céu. Os trabalhos sob encomenda são difíceis; também fiz um trabalho sobre Aids; eram os quarentas anos da doença e foram convidados quarenta artistas de quarenta ficar guardando coisas, anos. Fui buscar em Brancusi, no trabalho O beijo, um clássico da história da arte, a ideia desse trabalho, por conta da representação armazenando visões, do carinho e solidariedade que O beijo evoca. Considero que fui muito feliz nessa fotografia. É um trabalho único, não tem a ver ideias.” com o que eu faço, mas foi bem legal. Para finalizar, gostaria de comentar sobre um assunto relacionado à fotografia que me preocupa bastante: a documentação da obra de arte. Hoje em dia, com o advento da fotografia digital, ficou 262 263 CADERNOS EAV Ricardo Becker

muito fácil o próprio artista fotografar a sua obra, o que considero Notas um erro. Sempre tive a iniciativa de convidar um profissional da 1. Árvore cisco, 2012; bastão de vidro e árvore; 30 x 30 cm fotografia para documentar meu trabalho. É um outro olhar vendo 2. Vento abrigo, 2012; escultura penetrável; ripas de madeira e ventiladores 10 m meu trabalho, que não está viciado com a obra. O risco que pode ocorrer é que teremos anos de trabalhos mal documentados de arte, uma geração de obras de arte mal catalogadas.

T.q.: O que você diria para aqueles que buscam uma formação em arte? O que eles não podem deixar de fazer?

É ter vontade, gostar do que faz. Fui para a arte porque realmente gosto de fazer isso! Faço com amor, acho que faço bem, gosto de fazer. E cada hora é um desafio. Acho que é perseverança, é vontade de ir lá e fazer e assim é possível! Não é impossível ser artista! É trabalhar, trabalhar e ter boas ideias e levá-las em frente. E não deixar passar, não jogar fora nenhuma coisa que você viu. Acho que o artista é um poço de ficar guardando coisas, armazenando visões, ideias. Saiba mais

GALERIA GRAÇA FONSECA. Ricardo Becker: “porque eu quero”. Lisboa, 1996. GALERIA LAURA ALVIM. Ricardo Becker: projeto cisco. Curadoria de Fernando Cocchiarale. Rio de Janeiro, 2012. 43 p. LAURA MARSIAJ ARTE CONTEMPORÂNEA. Ricardo Becker: você não está aqui. Rio de Janeiro, 2001.