<<

LITERATURA Terceirão – Caderno 8 – Código: 830385813 Código: – 8 Caderno – Terceirão ÍNDICECONTROLE DE ESTUDO

Aula 51 AD TM TC Aula 55 AD TM TC (pág. 51) (pág. 73)

Aula 52 AD TM TC Aula 56 AD TM TC (pág. 55) (pág. 79)

Aula 53 AD TM TC Aula 57 AD TM TC (pág. 61) (pág. 87)

Aula 54 AD TM TC Aula 58 AD TM TC (pág. 64) (pág. 93)

Professor:

CLARICE LISPECTOR

1 Introdução

Embora tenha nascido na Ucrânia, (1920 -1977) sempre se considerou brasileira e pernambucana. Com sua família, chegou ao Brasil com um ano e dois meses de idade e fixou-se primeiramente em Maceió. Não se adaptando à cidade, mudaram-se para Recife, onde a caçula foi criada e perma- neceu até os 15 anos, quando passaram a viver no . Clarice escreveu seu primeiro romance – Perto do coração selvagem – com ape- nas 20 anos de idade. O livro foi publicado logo depois e recebido com surpresa e admiração pela crítica especializada. Formada em Direito – profissão que nunca exerceria – casou-se com seu colega de classe Maury Gurgel Valente, que se tornaria diplomata, com quem teve dois filhos. Juntos, viajaram pelo mundo, morando em vários países da Europa e também nos Estados Unidos, sem nunca parar de escrever. Foi, entretanto, ao se separar em 1959 e voltar ao Rio de Janeiro com os filhos, que a escritora passou a trabalhar como jornalista e desenvolveu mais sua carreira literária. Logo após a publicação de seu último livro – A hora da estrela – Clarice mor-

© Folhapress reu, vítima de um câncer no ovário, em 1977, no Rio de Janeiro.

LITERATURA 51 TERCEIRÃO  8

3_TERC_8_LIT.indd 51 9/9/13 10:51 AM Pode-se dizer que as principais personagens de sentidas, não cheias de vontade de humanidade, não o Clarice Lispector são mulheres. A escritora especia- passado corroendo o futuro! O que eu disser soará fatal e lizou-se em investigar os dramas internos de suas inteiro. Não haverá nenhum espaço dentro de mim para criações e acompanhá-las em seu processo de trans- eu saber que existe tempo e nem para eu saber sequer formação. O crítico Affonso Romano de Sant’anna que estou criando porque então viverei! Só então viverei dividiu a estrutura dos contos da autora em quatro maior do que na infância, serei brutal e malfeita como grandes etapas. uma pedra, serei leve e vaga como o que se sente e não Num primeiro momento, a personagem é apre- se entende. E que tudo venha e caia sobre mim porque sentada em uma dada situação. A preparação de um basta me cumprir e então nada impedirá o meu caminho evento que romperá essa situação corresponde à até a morte-sem-medo. De qualquer luta ou descanso eu segunda etapa. A seguir, temos a ocorrência do sempre me levantarei forte e bela como um cavalo novo. evento (terceira etapa) e os desdobramentos que ele LISPECTOR, Clarice. Perto do coração selvagem. traz à personagem (quarta etapa). Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1992. O trecho anterior trata de um exemplo concreto 2 O fluxo de consciência e o monólogo de utilização do monólogo interior. Joana, narradora interior e protagonista do livro, conta sua vida em dois pla- nos diferentes: a infância e o início da vida adulta, Fluxo de consciência é um conceito de natureza refletindo sobre si mesma e substituindo o tempo psicológica, que nomeia os múltiplos aspectos da cronológico pelo psicológico. Sua consciência de- atividade mental que, por meio de associações livres, senvolve um movimento que leva a própria subjeti- muda de foco com frequência. Monólogo interior vidade a uma crise, uma vez que seus desejos e é a técnica literária de apreensão e apresentação des- decisões se confundem constantemente. se fluxo. Por meio dela, o leitor é colocado em conta- to direto com o universo íntimo da personagem. 3 O existencialismo Outro aspecto muito recorrente no trabalho de Clarice Lispector é a utilização do tempo psicológi- O existencialismo é uma linha filosófica de pensa- co em detrimento do cronológico. Isso significa que mento desenvolvida entre os séculos XIX e XX, popula- as narrativas não obedecem à cronologia porque o rizada na obra do autor francês Jean-Paul Sartre tempo que as organiza é aquele que transcorre no (1905 -1980). Para ele, "a existência precede e governa a interior da personagem, de acordo com sua imagi- essência". Todos possuímos uma essência que pode ser nação, seus desejos, angústias e ansiedades. Esse transformada e redefinida pelas experiências da vida. tempo pode se alongar ou se encurtar de acordo Em A paixão segundo G.H., obra de grande impor- com o estado de espírito de cada um. Passado e fu- tância, Clarice exercita seu existencialismo literário ao turo se fundem normalmente sem obedecer a ne- compor uma personagem bem-sucedida profissional- nhuma ordem. mente, que não conhece profundamente a si mesma e que, numa rápida incursão pelo quarto da empregada Perto do coração selvagem (1943) que se demitira, vê uma barata saindo do armário. A partir desse acontecimento banal, G.H. percebe-se Não, nenhum Deus… Quero estar só. E um dia virá completamente sozinha no mundo. sim, um dia virá em mim a capacidade tão vermelha e afirmativa quanto clara e suave. Um dia o que eu fizer A paixão segundo G.H. (1964) será cegamente, seguramente, inconscientemente pisan- do em mim e na minha verdade. Tão integramente lança- Então, de novo, mais um milímetro grosso de ma- da no que fizer que seja incapaz de falar. Um dia virá em téria branca espremeu-se para fora. Santa Maria, mãe que todo o meu movimento será só criação e nascimen- de Deus, ofereço-vos a minha vida em troca de não ser to. Eu romperei todos os nãos que existem dentro de mim verdade aquele momento de ontem. A barata com a ma- e provarei a mim mesma que nada há a temer. Que tudo téria branca me olhava. Não sei se ela me via, não sei que eu for será sempre onde haja uma mulher com o o que uma barata vê. Mas ela e eu nos olhávamos, e meu princípio. Erguerei dentro de mim o que sou e a um também não sei o que uma mulher vê. Mas se seus olhos gesto meu minhas vagas se levantarão poderosas – água não me viam, a existência dela me existia – no mun- pura submergindo a dúvida, a consciência. E quando eu do primário onde eu entrara, os seres existem os outros falar serão palavras não pesadas e lentas, não levemente como modo de se verem. E nesse mundo que eu estava

TERCEIRÃO  8 52 LITERATURA

3_TERC_8_LIT.indd 52 9/9/13 10:51 AM conhecendo, há vários modos que significam ver: um em um radinho que mantém sob o travesseiro, anún- olhar o outro sem vê-lo, um possuir o outro, um comer cios que não entende na Rádio Relógio. Depois de o outro, um apenas estar num canto e o outro estar ali ser despedida, conhece o metalúrgico Olímpico de também: tudo isso também significa ver. A barata não Jesus, também nordestino, ambicioso para se inte- me via diretamente, ela estava comigo. A barata não me grar à realidade do Sul e tornar-se deputado. Embo- via com os olhos mas com o corpo. ra não conseguissem estabelecer um diálogo efetivo, E eu – eu a via. Não havia como não vê-la. Não ha- tornaram-se namorados. Logo, porém, ele reconhe- via como negar: minhas convicções e minhas asas se ce a incompetência e feiura de Macabéa, trocando-a crestavam rapidamente e não tinham mais finalidade. Eu por Glória, uma amiga dela. não podia mais negar. Não sei o que é que não podia Aconselhada pela própria Glória, Macabéa pro- mais negar, mas já não podia mais. E nem podia mais cura uma cartomante, que resolve animar a moça socorrer, como antes, de toda uma civilização que me com a perspectiva de um futuro sorridente, profeti- ajudaria a negar o que eu via. zando que a nordestina encontraria um estrangeiro Eu a via toda, a barata. alourado de “olhos azuis ou verdes ou castanhos ou A barata é um ser feio e brilhante. A barata é pelo pretos”, muito rico e com quem se casaria. Macabéa avesso. Não, não, ela mesma não tem direito nem aves- que “nunca tinha tido coragem de ter esperança”, sai so: ela é aquilo. O que nela é exposto é o que em mim feliz da consulta, pois “a cartomante lhe decretara eu escondo: de meu lado a ser exposto fiz o meu avesso sentença de vida”. Na sequência, ao atravessar a rua ignorado. Ela me olhava. E não era um rosto. Era uma distraidamente, é atropelada por um automóvel máscara. Uma máscara de escafandrista. Aquela gema Mercedes. Várias pessoas observam a moribunda, o preciosa ferruginosa. Os dois olhos eram vivos como que ainda não acontecera enquanto vivia. Alguém dois ovários. Ela me olhava com a fertilidade cega de coloca uma vela acesa junto ao seu corpo. Desta ma- seu olhar. Ela fertilizava a minha fertilidade morta. Se- neira, Macabéa alcança, com a própria morte, a sua riam salgados os seus olhos? Se eu os tocasse – já que hora de maior destaque, sua hora de estrela. cada vez mais imunda eu gradualmente ficava – se eu os tocasse com a boca, eu os sentiria salgados? Ela nascera com maus antecedentes e agora parecia uma LISPECTOR, Clarice. A paixão segundo G.H. 16. ed., filha de não-sei-o-quê com ar de se desculpar por ocupar Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1991. espaço. No espelho distraidamente examinou as manchas No excerto, ao olhar detalhadamente o inseto que do rosto. Em Alagoas chamavam-se “panos”, diziam que encontrara, a personagem procura a si mesma e, de vinham do fígado. Disfarçava os panos com grossa camada certa forma, passa a se confundir com a barata. Ao de pó branco e se ficava meio caiada era melhor que o par- observá-la e defini-la em sua feiura e estranhamento, dacento. Ela toda era um pouco encardida pois raramente se lavava. De dia usava saia e blusa, de noite dormia de é a si mesma que observa e define. O ápice da narra- 1 tiva seria a fusão dos dois seres na boca de G.H., combinação . Uma colega de quarto não sabia como avi- numa atitude desesperada de compreensão de sua sar-lhe que seu cheiro era murrinhento. E como não sabia, existência para transformação de sua essência. ficou por isso mesmo, pois tinha medo de ofendê-la. Nada nela era iridescente2, embora a pele do rosto entre as man- chas tivesse um leve brilho de opala. Mas não importava. A hora da estrela (1977) Ninguém olhava para ela na rua, ela era café frio. Assoava o nariz na barra da combinação. Não tinha Clarice Lispector exercita a metalinguagem em aquela coisa delicada que se chama encanto. Só eu a muitas de suas obras, mas é em A hora da estrela que vejo encantadora. Só eu, seu autor, a amo. Sofro por ela. desenvolve mais profundamente a questão da cons- LISPECTOR, Clarice. A hora da estrela. Rio de Janeiro: Rocco, 1998. trução da narrativa. Isso se dá porque Rodrigo S.M., um narrador criado pela autora, se prepara para 1. Roupa íntima feminina que, numa só peça, faz as vezes de saia e de corpete. contar a história de Macabéa, uma datilógrafa nor- destina, que tenta ganhar a vida no Rio de Janeiro. O 2. Cujas cores são as do arco-íris ou que reflete essas cores. livro acaba contendo tanto a história do narrador A apresentação de Macabéa em seu aspecto físico como a da personagem, mas destaca significativa- mais simples está diretamente relacionada à existên- mente o processo de construção da obra. cia de Rodrigo S.M. Sem meias palavras, o narrador A personagem é concebida como um exemplo de revela as fragilidades da nordestina que não se lava- insignificância e falta de glamour. Sonha, de forma va, cobria as manchas da pele com pó branco e não pueril, em ser artista de cinema e ouve, encantada, se importava com nada. Era apenas café frio.

LITERATURA 53 TERCEIRÃO  8

3_TERC_8_LIT.indd 53 9/9/13 10:51 AM 2. Em A hora da estrela, o narrador apresenta a seguinte reflexão: "Pois na hora da morte a pessoa se torna bri- 1. (UEL-PR – Adaptada) A questão a seguir refere-se à pas- lhante estrela de cinema, é o instante de glória de cada sagem transcrita do conto “Feliz aniversário” (Laços de um e é quando como no canto coral se ouvem agudos família, 1960), de Clarice Lispector (1920 -1977). sibilantes". Com base nela, explique: Na cabeceira da mesa, a toalha manchada de a) Por que o romance leva esse título? coca-cola, o bolo desabado, ela era a mãe. A aniver- Porque narra a história de Macabéa, que sonhava em sariante piscou. Eles se mexiam agitados, rindo, a sua se tornar uma estrela de cinema. O clímax da obra é família. E ela era a mãe de todos. E se de repente não se ergueu, como um morto se levanta devagar e obriga a morte da protagonista, o que, segundo o narrador, mudez e terror aos vivos, a aniversariante ficou mais pode ser considerado um instante de glória, a hora dura na cadeira, e mais alta. Ela era a mãe de todos. em que todos nos tornamos estrelas. E como a presilha a sufocasse, ela era a mãe de to- dos e, impotente à cadeira, desprezava-os. E olhava-os piscando. Todos aqueles seus filhos e netos e bisne- tos que não passavam de carne de seu joelho, pensou de repente como se cuspisse. Rodrigo, o neto de sete b) Por que é irônica a relação entre o título e a história anos, era o único a ser a carne de seu coração. Rodri- de Macabéa? go, com aquela carinha dura, viril e despenteada, cadê Toda a história de Macabéa é marcada pela falta de Rodrigo? Rodrigo com olhar sonolento e intumescido naquela cabecinha ardente, confusa. Aquele seria um brilho e por sua insignificância. Ao contrário de seus homem. Mas, piscando, ela olhava os outros, a aniver- sonhos pueris, a protagonista não desperta a aten- sariante. Oh o desprezo pela vida que falhava. Como?! ção e nem o interesse de ninguém. Ela é, assim, o como tendo sido tão forte pudera dar à luz aqueles se- res opacos, com braços moles e rostos ansiosos? Ela, oposto do glamour indicado no título. Nessa oposi- a forte, que casara em hora e tempo devidos com um ção é que reside a ironia. bom homem a quem, obediente e independente, res- peitara; a quem respeitara e que lhe fizera filhos e lhe pagara os partos, lhe honrara os resguardos. O tronco fora bom. Mas dera aqueles azedos e infelizes frutos, sem capacidade sequer para uma boa alegria. Como pudera ela dar à luz aqueles seres risonhos fracos, sem 3. (Fuvest-SP) austeridade? O rancor roncava no seu peito vazio. Uns comunistas, era o que eram; uns comunistas. Olhou-os Será que eu enriqueceria este relato se usasse al- com sua cólera de velha. Pareciam ratos se acotove- guns difíceis termos técnicos? Mas aí é que está: esta lando, a sua família. Incoercível, virou a cabeça e com história não tem nenhuma técnica, nem de estilo, força insuspeita cuspiu no chão. ela é ao deus-dará. Eu que também não mancharia LISPECTOR, Clarice. Feliz aniversário. In: Laços de família. por nada deste mundo com palavras brilhantes e fal- 28. ed. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1995. p. 78-79. sas uma vida parca como a da datilógrafa. A problemática da terceira idade é o tema principal do LISPECTOR, Clarice. A hora da estrela. conto “Feliz aniversário”. Na história, sentada à cabeceira Em A hora da estrela, o narrador questiona-se quanto ao da mesa preparada para a comemoração de seu octogé- modo e, até, à possibilidade de narrar a história. De acor- simo nono aniversário, D. Anita: do com o trecho acima, isso deriva do fato de ser ele um § a) vê, horrorizada, sua descendência constituída por se- narrador: res mesquinhos. a) iniciante, que não domina as técnicas necessárias ao b) lembra-se, saudosa, da época em que seu marido era relato literário. vivo e com ele dividia as dificuldades cotidianas. b) pós-moderno, para quem as preocupações de estilo c) contempla seu neto, Rodrigo, a trazer-lhe ao presente são ultrapassadas. a imagem do falecido marido quando jovem. c) impessoal, que aspira a um grau de objetividade má- d) rememora, com rancor, sua vida de mulher, seja enquan- xima no relato. to esposa, seja enquanto mãe, mostrando-se indignada d) objetivo, que se preocupa apenas com a precisão com a atual falta de afeto de filhos, netos e bisnetos. técnica do relato. e) mistura presente e passado, deixando emergir a sau- § e) autocrítico que percebe a inadequação de um estilo dade que há tempo domina seu cotidiano. sofisticado para narrar a vida popular.

TERCEIRÃO  8 54 LITERATURA

3_TERC_8_LIT.indd 54 9/9/13 10:51 AM TAREFA MÍNIMA TAREFA COMPLEMENTAR t Leia o texto da aula. Caderno de Exercícios Caderno de Exercícios t Faça os exercícios 4 a 6. t Faça os exercícios 1 a 3.

JOÃO CABRAL DE MELO NETO

1 Construtivismo 2 O “poeta engenheiro”

“[...] a maior influência que sofri foi a de Le Cor- busier. Aprendi com ele que se podia fazer uma arte não com o mórbido, mas com o são, não com o es- pontâneo, mas com o construído. [...] A partir de ‘O engenheiro’, optei pela luz em detrimento da treva e da morbidez.” Entrevista a Antônio Carlos Secchin. In: João Cabral, a poesia do menos. São Paulo: Livraria Duas Cidades; Brasília: INL, Fundação Nacional Pró-Memória, 1985, p. 301.

© Haags Gemeentemuseum, The Hague, Holanda Essas palavras de João Cabral sintetizam aspec- Contraposição de dissonâncias, de Theo Van Doesburg, 1924. tos fundamentais de sua obra. A referência ao arqui- O Construtivismo foi uma proposta artística surgida teto suíço Le Corbusier (1887 -1965) e a reafirmação logo após a difusão das vanguardas europeias do início de uma arte feita “com o construído”, isto é, de forma do século XX. Trata-se da radicalização de algumas planejada, indicam o racionalismo da poesia cabrali- propostas vanguardistas, na direção de uma pintura na. De fato, o poeta declarou certa vez que buscava geométrica e antifigurativa que resultaria na Arte Abs- “o predomínio da inteligência sobre o instinto”. Com trata. Os construtivistas buscavam aplicar à sua arte o isso, pretendia estabelecer o primado da lucidez na mesmo rigor técnico empregado por engenheiros e abordagem do mundo, mostrando os objetos em sua arquitetos em suas obras. Em João Cabral de Melo Ne- pureza conceitual, desprovida de qualquer arroubo to, o construtivismo se manifesta no racionalismo de subjetivo. uma poesia avessa a qualquer expansão sentimental. Esse rigor na elaboração formal do poema, além do fato de começar a publicar nos anos 1940, permi- João Cabral de Melo Neto tiu uma aproximação um tanto apressada com a (1920 -1999) nasceu no Reci- Geração de 45. Mas o poeta revelou desde logo que fe (Pernambuco), onde fez os sua preocupação ia muito além da forma. Sua con- estudos primários. Transferiu- cepção da construção poética – que lhe fez merece- -se para o Rio de Janeiro nos dor do apelido de poeta engenheiro – incluía a anos 1940, período em que sensibilidade à flor da pele, com os olhos atentos publica seus primeiros livros, voltados para o mundo à sua volta.

mesma época em que inicia © Homero Sérgio/Folhapress O engenheiro sua carreira diplomática, que o leva a países como Ingla- terra, França, Suíça, Portugal e, por diversas vezes, Espa- A luz, o Sol, o ar livre nha, cuja cultura deixou marcas profundas em sua arte. envolvem o sonho do engenheiro. Aposentou-se em 1990 e faleceu no Rio de Janeiro. O engenheiro sonha coisas claras: superfícies, tênis, um copo de água.

LITERATURA 55 TERCEIRÃO  8

3_TERC_8_LIT.indd 55 9/9/13 10:51 AM O lápis, o esquadro, o papel; Outra educação pela pedra: no Sertão o desenho, o projeto, o número: (de dentro para fora, e pré-didática). o engenheiro pensa o mundo justo, No Sertão a pedra não sabe lecionar, mundo que nenhum véu encobre. e se lecionasse, não ensinaria nada; lá não se aprende a pedra: lá a pedra, (Em certas tardes nós subíamos uma pedra de nascença, entranha a alma. ao edifício. A cidade diária, MELO NETO, João Cabral de. In: Obra completa. como um jornal que todos liam, Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1994. ganhava um pulmão de cimento e vidro.) A reflexão sobre a pedra conduz o poeta a um aprendizado sobre a própria arte, em seu esforço de A água, o vento, a claridade apreensão da realidade concreta. A “voz inenfática” de um lado o rio, no alto as nuvens, sugere a impessoalidade de sua poesia, que rejeita o situavam na natureza o edifício sentimentalismo. A “resistência” da pedra corres- crescendo de suas forças simples. ponde à força que deve ter a palavra poética, para MELO NETO, João Cabral de. In: Obra completa. resistir a tudo que tenta torná-la fluida, fraca, sopo- Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1994. rífera. Mas a principal lição da pedra é a de “econo- Nas duas primeiras estrofes, o poema trata mais mia”: seu “adensar-se compacta” indica o caminho diretamente da figura do engenheiro. A expressão de uma linguagem concisa, seca, que será a pedra de “mundo justo” (verso 7) diz respeito à precisão geo- toque da arte cabralina. métrica e à exatidão matemática com que o enge- nheiro pensa e concebe as coisas que cria. Nas 4 Do Nordeste à Espanha duas estrofes seguintes, o poeta se insere no texto (“nós subíamos”), para sugerir que seu trabalho João Cabral manteve em sua vida – e em sua obra artístico consiste em retirar da “natureza” as “coi- – duas paixões: a terra natal e a condição de viajante sas simples”, isto é, exatas, precisas, claras, trans- imposta por suas atividades diplomáticas. A aparen- parentes. te incompatibilidade entre esses dois amores o levou a revelar, certa vez, que gostaria de que Pernambuco se tornasse independente do Brasil, para que ele 3 A palavra-pedra pudesse servir ali como embaixador, satisfazendo seus dois desejos díspares. O título do primeiro livro de João Cabral, Pedra A verdade, porém, é que João Cabral conseguiu do sono, publicado em 1942, já traz a imagem da pe- unir o Nordeste às culturas que conheceu, principal- dra, que acompanharia toda a sua obra. Nele, a ex- mente a espanhola, apreendida nas experiências vi- pressão sono remete ao Surrealismo que marcaria o vidas quando morou em Barcelona, Sevilha e Madri. início da carreira do poeta. Com o tempo, a atmosfe- Morte e vida severina (1954 -1955), por exemplo, é ra onírica seria abandonada, restando a contundên- inspirada em autos medievais ibéricos. E em muitos cia da palavra agressiva e impactante, feita para outros momentos de sua obra João Cabral presta despertar e nunca para anestesiar. homenagem explícita à Espanha. Em 1966, ao publicar o livro A educação pela pe- dra, João Cabral oferece uma síntese de seu projeto Lições de Sevilha poético: Tenho Sevilha em minha cama, eis que Sevilha se fez carne, A educação pela pedra eis-me habitando Sevilha Uma educação pela pedra: por lições; como é impossível de habitar-se. para aprender da pedra, frequentá-la; Nada há em volta que me lembre captar sua voz inenfática, impessoal a Sevilha cartão-postal, (pela de dicção ela começa as aulas). a que é turístico-anedótica, A lição de moral, sua resistência fria a que é museu e catedral. ao que flui e a fluir, a ser maleada; a de poética, sua carnadura concreta; Esta é a Sevilha trianera*, a de economia, seu adensar-se compacta: Sevilha fundo de quintal, lições da pedra (de fora para dentro, Sevilha de lençol secando, cartilha muda), para quem soletrá-la. a que é corriqueira e normal.

TERCEIRÃO  8 56 LITERATURA

3_TERC_8_LIT.indd 56 9/9/13 10:51 AM É a Sevilha que há nos seus poços, Falo somente do que falo: se há poço ou não, pouco importa; do seco e de suas paisagens, a Sevilha que dá às sevilhanas Nordeste, debaixo de um sol lições de Sevilha, de fora. ali do mais quente vinagre: MELO NETO, João Cabral de. In: Obra completa. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1994. que reduz tudo ao espinhaço, * Referência a Triana, tradicional bairro sevilhano. cresta o simplesmente folhagem, folha prolixa1, folharada, Mais uma vez, o poeta se dispõe a aprender com onde possa esconder-se na fraude. o mundo. Aqui, as lições são dadas pela cidade espa- nhola de Sevilha. No entanto, assim como em “A Falo somente por quem falo: educação pela pedra” a lição era dada “para quem por quem existe nesses climas soletrá-la”, isto é, para quem se dispusesse ao apren- condicionados pelo sol, dizado, aqui também se exige concentração para o pelo gavião e outras rapinas: que só pode ser observado com atenção, por estar além da paisagem convencional (“Sevilha cartão- e onde estão os solos inertes -postal”, “turístico-anedótica”), nos “poços” da cida- de tantas condições caatinga de, isto é, nas suas entranhas. em que só cabe cultivar o que é sinônimo de míngua. 5 Metalinguagem Falo somente para quem falo: Os poemas transcritos até aqui evidenciam um quem padece sono de morto traço fundamental da poética de João Cabral: a ten- e precisa de um despertador dência a refletir sobre a arte. Esse interesse o condu- acre2, como o sol sobre o olho: ziria para além de seus próprios versos, como mostram os textos que escreveu a respeito do artista que é quando o sol é estridente, plástico espanhol Joan Miró (1893 -1983). a contrapelo3, imperioso, Em João Cabral, o exercício da metalinguagem e bate nas pálpebras como funcionou como reforço da inclusão de sua poesia no se bate numa porta a socos. mundo e no tempo. Seus versos rejeitam o isolamen- MELO NETO, João Cabral de. In: Obra completa. to da torre de marfim, o distanciamento social, e Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1994. buscam decididamente a comunicação, o contato com o leitor. O esforço para corresponder a esse de- 1. Que usa palavras em demasia. sejo vale a pena, pois a poesia de João Cabral trans- 2. Que tem sabor amargo, ácido, azedo. mite ao leitor as lições que aprende: jamais voltar-se 3. Desfavorável, adverso. para o superficial, preferindo sempre a imersão ver- tical, para captar o que permanece, o que resiste – Os dois-pontos que se seguem ao nome de Graci- exatamente como a pedra. liano Ramos, no título do poema, insinuam que os O estilo enxuto da poesia de João Cabral, que versos se dirigem ao escritor, reproduzem uma fala buscava evitar o sentimentalismo, tinha suas raízes sua ou, ainda, servem para defini-lo. Seja como for, na obra do escritor Graciliano Ramos, cuja herança o poeta afirma uma mesma coisa: ao falar do outro, o poeta reconhecia explicitamente. está também falando de si mesmo. O poeta alinha aqui quatro fatores que condicionam tanto sua fala Graciliano Ramos: poética quanto a prosa de Graciliano: “com o que Falo somente com o que falo: falo” (estrofes 1 e 2) sugere a linguagem que busca a com as mesmas vinte palavras precisão expressiva e que evita o excesso dispensá- girando ao redor do sol vel; “do que falo” (estrofes 3 e 4) indica uma temática que as limpa do que não é faca: mais forte nos dois autores, a da seca; “por quem falo” (estrofes 5 e 6) explicita a disposição de traduzir de toda uma crosta viscosa, a alma sertaneja; “para quem falo” (estrofes 7 e 8) resto de janta abaianada, escancara a necessidade de denunciar as mazelas que fica na lâmina e cega sociais para comover (e mover) quem entra em con- seu gosto de cicatriz clara. tato com a obra dos dois escritores.

LITERATURA 57 TERCEIRÃO  8

3_TERC_8_LIT.indd 57 9/9/13 10:51 AM 6 Morte e vida severina (1954 -1955) mulheres de outros tantos, já finados Zacarias, Morte e vida severina tem como subtítulo: Auto vivendo na mesma serra de natal pernambucano. Auto por se tratar de uma magra e ossuda em que eu vivia. peça de teatro curta (apenas um ato), e escrita em Somos muitos Severinos versos, seguindo uma tradição ibérica de origem iguais em tudo na vida: medieval; natal por fazer referência a um nascimen- na mesma cabeça grande to; e, finalmente, pernambucano por ter Pernam- que a custo é que se equilibra, buco como cenário. Os versos curtos remetem ainda no mesmo ventre crescido aos textos teatrais da Idade Média, como os do por- sobre as mesmas pernas finas, tuguês Gil Vicente. e iguais também porque o sangue Nos anos 1960, a peça foi encenada por um grupo que usamos tem pouca tinta. de jovens atores do Tuca (Teatro da Universidade Ca- E se somos Severinos tólica de São Paulo) com uma novidade: os versos de iguais em tudo na vida, João Cabral foram musicados por um compositor ini- morremos de morte igual, ciante, de Hollanda. O título da peça mesma morte severina: chama a atenção ao promover uma curiosa inversão que é a morte de que se morre entre vida e morte, colocando esta última em primeiro de velhice antes dos trinta, lugar. O enredo da peça explica essa mudança. Além de emboscada antes dos vinte, disso, a expressão severina é neologismo, um nome de fome um pouco por dia próprio transformado em adjetivo. Esse procedimento [...] sugere que a personagem em torno do qual girará o MELO NETO, João Cabral de. In: Obra completa. auto, o retirante Severino, funciona como síntese de Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1994. todos aqueles que migram para as cidades, fugindo às Com essa fala inicial, Severino se apresenta aos dificuldades da seca nordestina. leitores/espectadores. Note-se que, ao fazê-lo, tenta se particularizar, mas acaba por demonstrar que, O retirante explica ao leitor quem é e a que vai como ele, existem muitos outros: “Somos muitos – O meu nome é Severino Severinos / iguais em tudo na vida”. A partir desse não tenho outro de pia. ponto, ele traça um perfil dos nordestinos submeti- Como há muitos Severinos, dos às dificuldades de sobrevivência que acaba por que é santo de romaria, levar à “velhice antes dos trinta”. deram então de me chamar Fugindo da seca, Severino busca a vida. Porém, Severino de Maria; trava, ao longo de sua jornada, uma sucessão de en- como há muitos Severinos contros com a morte: um defunto que é conduzido ao com mães chamadas Maria, cemitério; mulheres que choram a morte de um mora- fiquei sendo o da Maria dor local; o desaparecimento do próprio rio que ele do finado Zacarias. segue em sua jornada rumo ao litoral, e que também é Mas isso ainda diz pouco: vítima da seca; e, ainda, o funeral de um lavrador. há muitos na freguesia, 1 por causa de um coronel Assiste ao enterro de um lavrador de eito e ouve o que que se chamou Zacarias dizem do morto os amigos que o levaram ao cemitério e que foi o mais antigo – Esta cova em que estás senhor desta sesmaria. com palmos medida Como então dizer quem fala é a conta menor ora a Vossas Senhorias? que tiraste em vida. Vejamos: é o Severino – É de bom tamanho, da Maria do Zacarias, nem largo nem fundo, lá da serra da Costela, é a parte que te cabe limites da Paraíba. deste latifúndio. Mas isso ainda diz pouco: – Não é cova grande, se ao menos mais cinco havia é cova medida, com nome de Severino é a terra que querias filhos de tantas Marias ver dividida.

TERCEIRÃO  8 58 LITERATURA

3_TERC_8_LIT.indd 58 9/9/13 10:51 AM – É uma cova grande mas se responder não pude para teu pouco defunto, à pergunta que fazia, mas estarás mais ancho2 ela, a vida, a respondeu, que estavas no mundo. com sua presença viva. – É uma cova grande E não há melhor resposta para teu defunto parco3, que o espetáculo da vida: porém mais que no mundo vê-la desfiar seu fio, te sentirás largo. que também se chama vida, – É uma cova grande ver a fábrica que ela mesma, para tua carne pouca, teimosamente, se fabrica, mas a terra dada vê-la brotar como há pouco não se abre a boca. em nova vida explodida; MELO NETO, João Cabral de. In: Obra completa. mesmo quando é assim pequena Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1994. a explosão, como a ocorrida; 1. Trabalho de limpeza de uma plantação. mesmo quando é uma explosão 2. Largo, espaçoso. como a de há pouco, franzina; 3. Minguado, escasso, magro. mesmo quando é a explosão de uma vida severina. O trecho transcrito reafirma a luta pela terra que MELO NETO, João Cabral de. In: Obra completa. marca a vida do sertanejo nordestino. É sugerido aqui Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1994. que a seca é apenas um dos fatores a expulsá-lo de seu Essa é a fala final da peça, e nela se explicita a luta ambiente. A exploração do latifúndio e a batalha desi- entre o desespero, representado pela dúvida do reti- gual que ele trava contra os grandes proprietários aca- rante diante das possibilidades da vida e da morte, e a bam também por fazer dele uma vítima: seja com a esperança, consubstanciada no recém-nascido. O nas- morte, seja com o abandono do lugar. O trecho traz a cimento (que explica a classificação da peça como um nota do humor amargo, ácido, que está presente na lin- auto de natal) justifica a inversão do título: depois de guagem da peça, na ironia da situação do lavrador que, tantos encontros com a morte, finalmente Severino morto, recebe finalmente a terra pela qual tanto lutou. encontra a vida. A cena transmite uma mensagem de O embate entre a vida buscada e a morte encontra- esperança: a possibilidade de vitória da resistência da continua até mesmo no destino final do retirante, a contra a persistência da morte. cidade do Recife. Ao descobrir que as perspectivas de vida, ali, são igualmente nulas, Severino oscila entre manter-se vivo e entregar-se à morte. José, um mestre TEXTO PARA A QUESTÃO 1 carpina (isto é, carpinteiro) tenta demovê-lo da opção Tecendo a manhã pela morte, apresentando como argumento a reafir- 1 Um galo sozinho não tece uma manhã: mação da vida representada pelo nascimento de seu ele precisará sempre de outros galos. filho, que acaba de ocorrer. Depois de celebrar a che- De um que apanhe esse grito que ele gada da criança, o mestre carpina se dirige a Severino. e o lance a outro; de um outro galo O carpina fala com o retirante que esteve de fora, 5 que apanhe o grito que um galo antes sem tomar parte em nada e o lance a outro; e de outros galos Severino retirante, que com muitos outros galos se cruzem deixe agora que lhe diga: os fios de sol de seus gritos de galo, eu não sei bem a resposta para que a manhã, desde uma teia tênue, da pergunta que fazia, 10 se vá tecendo, entre todos os galos. se não vale mais saltar E se encorpando em tela, entre todos, fora da ponte e da vida; se erguendo tenda, onde entrem todos, nem conheço essa resposta, se entretendendo para todos, no toldo se quer mesmo que lhe diga; (a manhã) que plana livre de armação. é difícil defender, 15 A manhã, toldo de um tecido tão aéreo só com palavras, a vida, que, tecido, se eleva por si: luz balão. ainda mais quando ela é MELO NETO, João Cabral de. In: Obra completa. esta que vê, severina; Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1994.

LITERATURA 59 TERCEIRÃO  8

3_TERC_8_LIT.indd 59 9/9/13 10:51 AM 1. Assinale a alternativa INCORRETA sobre o poema anterior: a diferença é a mais mínima. a) Na primeira estrofe, as rimas são formadas pela repeti- Está apenas em que a terra ção de uma mesma palavra, alternada em singular/plu- é por aqui mais macia; ral; essa alternância já convoca o tema da união a partir está apenas no pavio, de um canto que é individual, mas que se coletiviza. ou melhor, na lamparina: b) Na segunda estrofe, temos rimas consoantes, contando pois é igual o querosene ainda com a exploração da homofonia entre “todos” e que em toda parte ilumina, “toldos”; as rimas finais em “ão”, propositadamente po- e quer nesta terra gorda bres, contribuem para criar a imagem do balão inflado. quer na serra, de caliça, c) Trata-se de uma apologia da comunhão, aqui alegori- a vida arte sempre com zada na imagem dos galos que, com seus gritos anun- ciadores do sol, parecem tecer a manhã, até construir a mesma chama mortiça. um toldo formado pelo cruzamento dos cantos. MELO NETO, João Cabral de. Morte e vida severina. d) Os versos 3 a 10 formam um único período, como a Neste excerto, o retirante, já chegado à Zona da Mata, representar um espaço para fazer caber todos os ga- reflete sobre suas experiências, reconhecendo uma dife- los, promovendo a incorporação formal do tema da rença e uma semelhança entre as regiões que conhece- solidariedade. ra ao longo de sua viagem. Considerando o excerto no § e) A primeira estrofe apresenta o elogio da ação indivi- contexto da obra a que pertence, dual, e a segunda indica a reação dos seguidores, a) explique sucintamente em que consistem a diferença formando um grupo coeso em torno do indivíduo; o e a semelhança reconhecidas pelo retirante. poema pode ser interpretado, assim, como uma ale- goria da liderança política. O retirante se refere à Zona da Mata qualificando-a como terra “mais macia” e “terra gorda”, contras- 2. (ENCCEJA) tando com a secura e a magreza associadas à Caa- E se somos muitos Severinos tinga. No entanto, há, sob essas diferenças, uma iguais em tudo na vida, morremos de morte igual, forte identidade na mesma condição “severina”, isto mesma morte severina, é, nas mesmas dificuldades enfrentadas pelos habi- que é a morte de que se morre tantes dos dois espaços. de velhice antes dos trinta, de emboscada antes dos vinte, de fome um pouco por dia (de fraqueza e de doença é que a morte severina b) Depois de chegar ao Recife, o retirante mudará subs- tancialmente o julgamento que expressa neste excer- ataca em qualquer idade, to? Justifique brevemente sua resposta. e até gente não nascida). MELO NETO, João Cabral de. Morte e vida severina. Não. Ao chegar ao Recife, o retirante encontrará a Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1999. mesma falta de esperança e de perspectiva que já As repetições de palavras e de estruturas presentes nes- conhecia e enfrentava desde o início de sua viagem. te trecho de Morte e vida severina são recursos expressi- vos que pretendem mostrar que: a) a vida no sertão nordestino é diferente de pessoa para pessoa. b) Severino conhece muitas pessoas com o mesmo no- me que o seu. c) há muitas mulheres com o nome de Severina no ser- TAREFA MÍNIMA tão nordestino. t § d) a fome e a miséria atingem muitos habitantes do Leia o texto da aula. sertão nordestino. Caderno de Exercícios t Faça os exercícios 1 e 2. 3. (Fuvest-SP) TAREFA COMPLEMENTAR Mas não senti diferença Caderno de Exercícios entre o Agreste e a Caatinga, t Faça os exercícios 3 a 5. e entre a Caatinga e aqui a Mata

TERCEIRÃO  8 60 LITERATURA

3_TERC_8_LIT.indd 60 9/9/13 10:51 AM POESIA CONCRETA

1 Concretismo novadoras para a poesia desde o lançamento, em 1952, da revista Noigandres (palavra tirada de um texto do poeta norte-americano Ezra Pound). Em pleno apogeu desenvolvimentista de São Paulo, os autores propunham uma expressão artísti- ca que significasse uma reação à poesia intimista e estetizante dos anos 1940. A poesia concreta buscava levar às últimas consequências certos processos es- truturais que marcaram o Futurismo, o Dadaísmo e, em parte, o Surrealismo. A grande inspiração, po- rém, era o poeta , principalmen- te pela economia linguística de seus poemas-pílula que marcaram época na década de 1920. O cerne das propostas dos concretistas é a supera- ção do verso como unidade rítmico-formal, procu- rando estruturar o texto poético a partir de seu suporte, sendo ele a página do livro em branco ou

© Haags Gemeentemuseum, The Hague, Holanda não. Além disso, o concretismo na poesia gerou uma Continuidade, de Max Bill, 1986. série de inovações que contribuíram para o desenvol- O escultor suíço Max Bill (1908 -1994) é tido como vimento de uma nova maneira de se pensar poesia. um dos mais influentes designers do século XX, conhe- cido também por ser um artista que abraçou o conceito de arte concreta que se desenvolveu na Europa a partir da década de 1930, em oposição às propostas de arte abstrata. A escultura acima é uma das muitas criadas pelo artista que trabalham variações da ideia do infini- to, representada ali por intermédio da indeterminação do início e do fim da figura, o que sugere um movimen- to contínuo. Com a proposta de buscar a pureza e o rigor for- mal na ordem harmônica do universo, Max Bill foi © Eduardo Knapp/Folhapress muito influenciado pelas ideias da escola Bauhaus (a Décio Pignatari entre os irmãos Campos (Augusto e Haroldo): os primei- mais importante expressão do Modernismo no de- ros componentes do grupo concretista brasileiro. sign e na arquitetura) e defendia em seu trabalho que a matemática é o meio mais eficiente para o conheci- 3 As inovações propostas pela poesia mento da realidade objetiva e que uma obra plástica concreta deve ser ordenada pela geometria e pela clareza da forma. Para o crítico , os concretistas têm A vertente literária da arte concreta teve início no como ponto de partida de sua poética o simbolista Brasil em 1956. A Exposição Nacional de Arte Concre- francês Mallarmé, que teria sido o autor do primeiro ta, ocorrida em São Paulo, ficou marcada como o lan- poema em que a comunicação não se faz no nível do çamento da poesia concreta brasileira. tema, mas no da própria estrutura verbo-visual. De- pois disso, nomes como Maiakovski (poeta russo), 2 A poesia concreta no Brasil Marinetti (idealizador do futurismo italiano), além de Fernando Pessoa, Carlos Drummond de Andrade e Os jovens intelectuais paulistas – Augusto de Cam- João Cabral de Melo Neto, também teriam sido im- pos (1931), Décio Pignatari (1927 -2012) e Haroldo de portantes no desenvolvimento das inovações da poe- Campos (1929 -2003) – já buscavam possibilidades re- sia concreta.

LITERATURA 61 TERCEIRÃO  8

3_TERC_8_LIT.indd 61 9/9/13 10:51 AM Inovação semântica desejo da mudança e a perplexidade frente ao novo, que se percebe diferente e não sabe exatamente como Há, no poema concreto, a busca pela comunica- agir. Importante observar a ambiguidade da palavra ção visual, não verbal, imediata. O poema funciona final: ao mesmo tempo em que sugere silêncio e imo- como um ideograma que possui um significado nele bilidade frente à novidade, também pode ser a conju- mesmo. gação do verbo mudar em primeira pessoa, o que indica a continuidade da mudança. Psiu! Inovação lexical

O poema concreto utiliza neologismos frequente- mente, explorando muitas vezes também a força ex- pressiva de palavras oriundas de outros idiomas (estrangeirismos) e termos técnicos (tecnicismos). durassolado solumano © petrificado corpumano amargamado fardumano agrusurado servumano capitalienado gadumano CAMPOS, Augusto de. Psiu!. In: Viva Vaia – massamorfado desumano Poesia 1949 -1979. São Paulo: Brasiliense, 1986. José Lino Grunewald A proposta gráfica do poema – associada à leitura Composto quase totalmente com palavras criadas das palavras que cercam os lábios vermelhos – por justaposição, o poema propõe uma reflexão sobre transmite a ideia de circularidade e intenso movi- o peso da vida marcada pelo trabalho e pela alienação mento. Os termos sobrepostos com diferentes tipos política. O termo humano é várias vezes transforma- e tamanhos de letras dão a impressão de vida e ba- do, percorrendo uma trajetória que vai de “corpuma- rulho. O título sugere um chamado “psiu!” e tudo no” até “desumano”, substantivos que ganham mais parece atrair a atenção do interlocutor. Outra leitura força e sentido pela aproximação de neologismos co- possível é que a vida, sugerida pelo vermelho da mo “servumano” e “capitalienado”. boca, é oprimida por tanta informação e notícia. As- sim, o “psiu” pode ser entendido como um alerta Inovação morfológica para que a vida não se esvaia completamente. A desintegração das palavras, separando sufixos, Inovação sintática prefixos e radicais, também é um procedimento co- mum nos poemas concretos, o que propõe uma nova Os tradicionais laços sintáticos (preposições, con- leitura da palavra como unidade de significado e, junções e pronomes, por exemplo) são eliminados consequentemente, das ideias expressas no texto. do texto, o que gera uma poesia objetiva, composta Epitáfio para um banqueiro principalmente de substantivos e verbos. n e g ó c i o e g o ó c i o c i o 0 José Paulo Paes Considerando o significado da palavra epitáfio (algo que se escreve sobre um túmulo) compreende- -se que o poema faz uma síntese da vida de um ban- queiro. Tendo o negócio como motivação principal, © Augusto de Campos de Augusto © Pós-Tudo, poema concreto de Augusto de Campos. a palavra do primeiro verso é desmembrada para compor os outros versos e, por isso, é chamada de A partir dos verbos mudar e querer, Augusto de palavra-valise. Dentro dela encontram-se o ego, o Campos constrói um texto que aborda a questão do ócio e o cio que terminam compondo uma operação

TERCEIRÃO  8 62 LITERATURA

3_TERC_8_LIT.indd 62 9/9/13 10:51 AM aritmética que tem zero (0) como resultado, o que O texto faz parte de um grupo de poemas do au- aponta para a conclusão de que a vida do banqueiro tor intitulado “poetamenos”, em que a relação entre acabou completamente anulada. as cores primárias e secundárias é a base da estrutu- ração dos textos. Neste poema, em especial, as cores Inovação fonética azul (primária) e laranja (complementar) represen- tam a figura do poeta e da amada. Como o poema A formação de jogos sonoros por meio de figuras está alinhado a partir do centro da página, pode-se de repetição como aliterações e assonâncias também dizer que os amantes possuem um eixo de força cen- é uma constante. tral e que o texto se estrutura, espacial e cromatica- Patacoada mente, na fusão dos dois elementos. Mais uma vez A pata empata a pata aparecem aqui as palavras-valise que contribuem porque cada pata para a sensação de fusão entre as palavras e entre os tem um par de patas amantes. e um par de patas um par de pares de patas. Agora, se se engata TEXTO PARA AS QUESTÕES 1 E 2 pata a pata cada pata de um par de pares de patas, a coisa nunca mais desata e fica mais chata do que pata de pata José Paulo Paes O poema é marcado pela assonância da vogal a e pela repetição da palavra pata. Além disso, a consoan- te t também é repetida em palavras como empata, engata, desata e chata, o que atribui ao texto uma sonoridade muito particular. Trata-se de um exemplo de poesia para crianças e sua leitura rápida também

vale como um divertido exercício de trava-língua. Campos de Augusto © Pluvial, poema concreto de Augusto de Campos. Inovação tipográfica 1. Em sua fase ortodoxa, a vanguarda brasileira postulou Uma das propostas mais radicais do grupo con- uma poética rigorosa, na qual o poema deveria ser cons- cretista é a abolição do verso, trabalhando com a truído de forma sintético-ideogrâmica. A realização des- sa inovadora poética se deu pela utilização do branco da utilização dos espaços brancos como parte constitu- página como constituinte ativo do poema e pela estru- tiva dos textos. O poema concreto funciona como turação dos poemas por meio das formas geométricas. uma obra de arte visual e, na maioria das vezes, Explique como a proposta formal contribui para a com- prescinde, inclusive, de sinais de pontuação. preensão do sentido do texto. Eis os amantes O fato de a palavra pluvial aparecer na parte superior do texto escrita verticalmente sugere o movimento da chuva que, ao cair, transforma-se na palavra fluvial, representada na horizontal a partir do meio do poema. A forma final do texto, com a união das duas palavras, representa a transformação da água das chuvas em rios que posteriormente evaporam e voltam a se tornar chuva. © Augusto de Campos de Augusto © Eis os amantes, poema concreto de Augusto de Campos.

LITERATURA 63 TERCEIRÃO  8

3_TERC_8_LIT.indd 63 9/9/13 10:51 AM 2. À parte a inovação tipográfica, que propõe a eliminação 3. (Enem) O poema a seguir pertence à poesia concreta bra- do verso, aponte outra característica inovadora da poe- sileira. O termo latino de seu título significa "epitalâmio", sia concreta que se materializa neste texto. Explique. poema ou canto em homenagem aos que se casam. O fato de o poema ser composto apenas pelos adjetivos pluvial e fluvial já pode ser compreendido como uma ino- vação. Não há verbos nem sinais de pontuação no texto. A síntese absoluta é mais um dos pressupostos a partir dos quais se constroem poemas concretos. © Pedro Xisto/ENEM 2004 Considerando que símbolos e sinais são utilizados geral- mente para demonstrações objetivas, ao serem incorpo- rados no poema "Epithalamium – II", tais símbolos: § a) adquirem novo potencial de significação. b) eliminam a subjetividade do poema. c) opõem-se ao tema principal do poema. d) invertem seu sentido original. e) tornam-se confusos e equivocados.

TAREFA MÍNIMA TAREFA COMPLEMENTAR t Leia o texto da aula. Caderno de Exercícios Caderno de Exercícios t Faça os exercícios 3 e 4. t Faça os exercícios 1 e 2.

ANOS 1960  MÚSICA E ARTES PLÁSTICAS

1 A Bossa Nova

O projeto desenvolvimentista do presidente Juscelino Kubitschek (1956 -1961) buscou modernizar a indústria brasileira. O Brasil foi varrido por uma sede do novo, que se manifestaria também em algumas designações de movimentos artísticos da época, como o Cinema Novo, a Nova Arquitetura e a Bossa Nova. A Bossa Nova foi o resultado do encontro de três artistas: o poeta , o compositor Tom Jobim e o violonista João Gilberto. Três virtuoses que estavam igualmente abertos para influências diversas – como o jazz norte-americano e a tradição musical brasileira. João Gilberto deu voz à delicadeza das com- posições de Tom e Vinicius, com uma execução vocal suave, minimalista, quase em sussurro, que seria a marca registrada da Bossa Nova. O primeiro álbum de João Gilberto, Chega de saudade, de 1959, trazia uma das músicas mais emblemáti- cas do movimento, “Desafinado”.

TERCEIRÃO  8 64 LITERATURA

3_TERC_8_LIT.indd 64 9/9/13 10:51 AM Desafinado Canção veiculados por emissoras como a Excelsior e a Tom Jobim / Newton Mendonça Record tornaram-se oportunidades de extravasamento juvenil, tanto de artistas como do público, no momento Se você disser que eu desafino amor em que o país vivia o forte cerceamento das liberdades Saiba que isto em mim provoca imensa dor civis provocado pela ação dos militares que assumiram Só privilegiados têm o ouvido igual ao seu o governo após o golpe de 1964. Eu possuo apenas o que Deus me deu A composição vencedora do III Festival da Música Se você insiste em classificar Popular Brasileira, em 1967, transmitido pela TV Record, Meu comportamento de antimusical de São Paulo, foi “Ponteio”, de e Capinam. Eu mesmo mentindo devo argumentar Que isto é Bossa Nova que isto é muito natural Ponteio* Edu Lobo / Capinam O que você não sabe nem sequer pressente Era um, era dois, era cem É que os desafinados também têm um coração Era o mundo chegando e ninguém Fotografei você na minha Rolley-Flex* Que soubesse que eu sou violeiro Revelou-se a sua enorme ingratidão Que me desse ou amor ou dinheiro Só não poderá falar assim do meu amor Este é o maior que você pode encontrar Era um, era dois, era cem Você com a sua música esqueceu o principal Vieram pra me perguntar: Que no peito dos desafinados “Ô, você, de onde vai, de onde vem? No fundo do peito bate calado Diga logo o que tem pra contar” Que no peito dos desafinados também bate um coração Parado no meio do mundo João Gilberto. Chega de saudade. LP Odeon, 1959. Senti chegar meu momento * Marca de máquina fotográfica da época. Olhei pro mundo e nem via Na canção, o emissor reclama do desprezo da Nem sombra, nem sol, nem vento amada: colocada como um dos “privilegiados” que Quem me dera agora possui ouvido capaz de perceber a afinação, a moça Eu tivesse a viola pra cantar não consegue perceber que o que ela toma por “com- Quem me dera agora portamento antimusical” é, na verdade, a proclama- Eu tivesse a viola pra cantar ção de um novo estilo, marcado pela naturalidade (“Isto é Bossa Nova, isto é muito natural”), entendida Era um dia, era claro, quase meio como o instrumento ideal para expressar a sincerida- Era um canto calado sem ponteio de do sentimento (“no peito dos desafinados também Violência, viola, violeiro bate um coração”). O novo estilo nada tem de desafi- Era morte em redor, mundo inteiro nado, ao contrário do que pensa a ouvinte que o des- Era um dia, era claro, quase meio preza: trata-se de uma elaboração melódica sofisticada. Tinha um que jurou me quebrar Mas não lembro de dor nem receio 2 Os Festivais da Canção Só sabia das ondas do mar Jogaram a viola no mundo Mas fui lá no fundo buscar Se eu tomo a viola ponteio Meu canto não posso parar, não

Quem me dera agora Eu tivesse a viola pra cantar Quem me dera agora Eu tivesse a viola pra cantar

Era um, era dois, era cem

© Acervo UH/Folhapress Era um dia, era claro, quase meio Edu Lobo vence o Festival de 1967 com “Ponteio”. Encerrar meu cantar já convém O advento da televisão trouxe modificações profun- Prometendo um novo ponteio das na difusão da música brasileira. Os Festivais da Certo dia que sei por inteiro

LITERATURA 65 TERCEIRÃO  8

3_TERC_8_LIT.indd 65 9/9/13 10:51 AM Eu espero não vá demorar Roda-viva Este dia estou certo que vem Chico Buarque Digo logo o que vim pra buscar Tem dias que a gente se sente Correndo no meio do mundo Como quem partiu ou morreu Não deixo a viola de lado A gente estancou de repente Vou ver o tempo mudado Ou foi o mundo então que cresceu E um novo lugar pra cantar A gente quer ter voz ativa In: 3o Festival da Música Popular Brasileira. LP Philips, 1967. No nosso destino mandar * Ato de tocar instrumento de corda. Mas eis que chega a roda-viva E carrega o destino pra lá Em “Ponteio”, o cantador insiste em entoar seu canto, a despeito do ambiente desfavorável (“Era Roda mundo, roda-gigante morte em redor, mundo inteiro”) e das ameaças que Rodamoinho, roda pião recebe (“Tinha um que jurou me quebrar”). Em seu O tempo rodou num instante gesto de resistência (“Meu canto não posso parar”) Nas voltas do meu coração está a esperança da chegada do tempo de liberdade A gente vai contra a corrente (“Este dia estou certo que vem”), que deverá ser um Até não poder resistir “tempo mudado”, isto é, diferente daquele que se Na volta do barco é que sente vive – clara referência à situação política do país na- O quanto deixou de cumprir quele momento. Faz tempo que a gente cultiva A mais linda roseira que há 3 MPB Mas eis que chega a roda-viva E carrega a roseira pra lá Roda mundo… A roda da saia, a mulata Não quer mais rodar, não senhor Não posso fazer serenata A roda de samba acabou A gente toma a iniciativa Viola na rua, a cantar Mas eis que chega a roda-viva E carrega a viola pra lá Roda mundo... O samba, a viola, a roseira © Editora Abril Chico Buarque (segundo à direita) e o conjunto vocal MPB 4. Um dia a fogueira queimou Foi tudo ilusão passageira Nos anos 1940, a expressão música popular Que a brisa primeira levou brasileira designava a produção musical de raízes No peito a saudade cativa populares. Já nos anos 1960, o termo passou a ser Faz força pro tempo parar sintetizado na sigla MPB e associado a uma postura Mas eis que chega a roda-viva de defesa do patrimônio cultural genuinamente bra- E carrega a saudade pra lá sileiro, contra o que se considerava uma invasão de guitarras elétricas e sonoridades oriundas do rock Roda mundo... americano ou inglês. Chico Buarque de Hollanda – volume 3. RGE Discos, 1968. Embora não tenha se envolvido diretamente nes- Originalmente, a música foi composta para a peça se ataque aos instrumentos modernos, o compositor homônima, escrita pelo próprio compositor, que nar- Chico Buarque se transformou, ao longo do tempo, rava a história de um cantor popular engolido pelos em um dos principais ícones da chamada MPB. A meios de comunicação de massa que então se instala- canção “Roda viva”, terceiro lugar no Festival de 1967 vam no país. No entanto, o alcance da música se am- (o mesmo de “Ponteio”), foi um de seus grandes su- plia, tratando da angústia do indivíduo que não con- cessos na época. segue ter nas mãos as rédeas do próprio destino.

TERCEIRÃO  8 66 LITERATURA

3_TERC_8_LIT.indd 66 9/9/13 10:51 AM 4 Música de protesto Não por acaso, Vandré se tornou um dos principais alvos das perseguições militares na classe artística. “Caminhando” se coloca como uma convocação geral dirigida a estudantes (“escolas”), trabalhadores rurais (“campos”) e urbanos (“construções”) e, enfim, a todos os que protestam “nas ruas”. O motivo da convocação é explicitado: “quem sabe faz a hora, não espera acon- tecer” – brado de revolta e estímulo à ação transforma- dora. Uma transformação que se pretende inevitável, já que quem a promove tem “a certeza na frente, a histó- ria na mão”. A referência aos militares é feita com iro- nia e força: “Nos quartéis lhes ensinam uma antiga © Arquivo/Agência O Globo O Arquivo/Agência © Geraldo Vandré. lição / De morrer pela pátria e viver sem razão”. Alguns representantes da Bossa Nova, como Car- los Lyra, defendiam um envolvimento maior do mo- 5 Jovem Guarda vimento com as questões sociais. Após o golpe militar de 1964, essa tendência se acentuou no meio A televisão tam- musical, fazendo surgir um conjunto de canções que bém foi palco do sur- tinham como aspecto comum a temática social e a gimento de outro fe- expressão de revolta contra a opressão. nômeno de massa, a O maior representante dessa corrente foi Geraldo Jovem Guarda, de Ro- Vandré, autor da música que se tornaria um verda- berto Carlos e seu par- deiro hino da resistência ao golpe de 1964 no âmbito ceiro . da música popular, “Pra não dizer que não falei das Fundando-se em uma flores”, mais conhecida como “Caminhando”. vertente do rock deno- minada iê-iê-iê, surgi- Pra não dizer que não falei das flores da a partir do pop eu- © Teixeira/CPDOC JB Geraldo Vandré ropeu (inglês e italia- Roberto Carlos. Caminhando e cantando e seguindo a canção no), o movimento obteve sucesso consagrador, prin- Somos todos iguais, braços dados ou não cipalmente após o lançamento de “Quero que vá tu- Nas escolas, nas ruas, campos, construções do pro inferno”, no programa Jovem Guarda, da TV Caminhando e cantando e seguindo a canção Record, em 1965. Vem, vamos embora, que esperar não é saber Quero que vá tudo pro inferno Quem sabe faz a hora, não espera acontecer Roberto Carlos / Erasmo Carlos Pelos campos há fome em grandes plantações De que vale o céu azul e o sol sempre a brilhar Pelas ruas marchando indecisos cordões Se você não vem e eu estou a lhe esperar Ainda fazem da flor seu mais forte refrão Só tenho você em meu pensamento E acreditam nas flores vencendo o canhão E a sua ausência é todo o meu tormento Há soldados armados, amados ou não Quero que você me aqueça nesse inverno Quase todos perdidos de armas na mão E que tudo o mais vá pro inferno Nos quartéis lhes ensinam uma antiga lição De que vale a minha boa vida de playboy De morrer pela pátria e viver sem razão Se entro no meu carro e a solidão me dói Onde quer que eu ande tudo é tão triste Nas escolas, nas ruas, campos, construções Não me interessa o que de mais existe Somos todos soldados armados ou não Quero que você me aqueça nesse inverno Caminhando e cantando e seguindo a canção E que tudo o mais vá pro inferno Somos todos iguais, braços dados ou não Os amores na mente, as flores no chão Não suporto mais você longe de mim A certeza na frente, a história na mão Quero até morrer do que viver assim Aprendendo e ensinando uma nova lição Só quero que você me aqueça nesse inverno In: A era dos festivais – CD que acompanha o livro A era dos festivais, E que tudo o mais vá pro inferno de Zuza Homem de Mello. São Paulo: Editora 34, 2003. Roberto Carlos, Jovem Guarda. LP CBS, 1965.

LITERATURA 67 TERCEIRÃO  8

3_TERC_8_LIT.indd 67 9/9/13 10:51 AM A canção exemplifica a simplicidade das músicas E no joelho uma criança sorridente, feia e morta, da Jovem Guarda, elaboradas a partir de conceitos Estende a mão básicos facilmente assimiláveis; no caso, trata-se do Viva a mata, ta, ta conquistador que se rende ao amor verdadeiro. Do Viva a mulata, ta, ta, ta, ta ponto de vista formal, também há o recurso a luga- No pátio interno há uma piscina res-comuns do vocabulário de matriz romântica, Com água azul de Amaralina como “céu azul” e “sol sempre a brilhar”. Coqueiro, brisa e fala nordestina e faróis Na mão direita tem uma roseira 6 Tropicalismo Autenticando eterna primavera E no jardim os urubus passeiam a tarde inteira Entre os girassóis Viva Maria, ia, ia Viva a Bahia, ia, ia, ia, ia No pulso esquerdo o bang-bang Em suas veias corre muito pouco sangue Mas seu coração Balança a um samba de tamborim Emite acordes dissonantes Pelos cinco mil alto-falantes Senhoras e senhores, ele põe os olhos grandes

© Divulgação Sobre mim Capa do disco Tropicalia ou panis et circencis. Viva Iracema, ma, ma Oriundos dos Festivais, mas percorrendo um cami- Viva Ipanema, ma, ma, ma, ma nho alternativo independente, os baianos Caetano Ve- Domingo é o fino da bossa loso e fundaram o movimento tropicalista, Segunda-feira está na fossa de que faziam parte artistas como , Tom Zé e Terça-feira vai à roça os componentes da banda Os mutantes ( e os Porém, o monumento é bem moderno irmãos Arnaldo Baptista e Sérgio Dias). O Tropicalismo Não disse nada do modelo do meu terno retomava a perspectiva da Antropofagia do modernista Que tudo mais vá pro inferno, meu bem Oswald de Andrade para realizar, em palcos e apresen- Que tudo mais vá pro inferno, meu bem tações repletas de simbologia e efeitos plásticos e dra- Viva a banda, da, da máticos, a união entre a informação estrangeira do rock , da, da, da da, da da da e a busca da expressão moderna da brasilidade. . Philips, 1990 (remasterização do LP de 1967). Tropicália “Tropicália” apresenta uma imagem do Brasil em Caetano Veloso que a tradição e o arcaico (“palhoça”, “fala nordestina”) se juntam ao moderno (“aviões”, “caminhões”, “pisci- Sobre a cabeça os aviões na”, “faróis”). A letra da canção abre a possibilidade Sob os meus pés, os caminhões para uma leitura política. A “mão direita” figura o po- Aponta contra os chapadões, meu nariz der que, sob a máscara da pureza (sugerida na referên- Eu organizo o movimento cia a uma cantiga infantil: “Na mão direita tem uma Eu oriento o Carnaval roseira / Que dá flor na primavera"), esconde o trágico Eu inauguro o monumento no planalto central e o grotesco (“E nos jardins os urubus passeiam a tarde Do país inteira entre os girassóis”). No “pulso esquerdo”, o Viva a bossa, sa, sa “bang-bang” pode ser uma referência à luta armada Viva a palhoça, ça, ça, ça, ça conduzida por setores mais radicais, cuja fragilidade é O monumento é de papel crepom e prata indicada no “pulso”, que contrasta com a força associa- Os olhos verdes da mulata da à direita, que usa a “mão”. A despeito de sua moder- A cabeleira esconde atrás da verde mata nidade (“o monumento é bem moderno”), o país é visto O luar do sertão de maneira negativa, pessimista, sem possibilidade de O monumento não tem porta redenção – o que vem sugerido por imagens como: A entrada é uma rua antiga, estreita e torta “urubus”, “criança sorridente, feia e morta”.

TERCEIRÃO  8 68 LITERATURA

3_TERC_8_LIT.indd 68 9/9/13 10:51 AM 7 Artes plásticas nos anos 1960 de Roberto Carlos – ícone da música jovem nos anos 1960 – é apresentada com os contornos em lâmpadas Nas artes plásticas, os anos 1960 marcam o início neon, em meio a imagens religiosas. Tudo isso em da chamada era pós-moderna. Uma das principais um ambiente introspectivo, cercado por cortinas. características desse momento artístico é a exploração Contudo, para entrar nesse espaço de “adoração”, é dos mais diversos elementos materiais para a criação necessário passar por uma catraca, objeto que con- artística. Isso é o que torna categorias consagradas trola a acesso de pessoas, mediante pagamento. Isso como “pintura” ou “escultura” imprecisas quando se sugere o interesse mercantil no culto às celebridades. tenta definir a arte contemporânea. Uma das maiores influências desse período foi a chamada Pop Art, que Hélio Oiticica e a Tropicália levou os artistas a se apropriarem livremente de ima- gens e ideias advindas das modernas formas de comu- Hélio Oiticica (1937 -1980) nicação, como a televisão, a publicidade, os jornais e foi um dos mais influentes as revistas em quadrinhos. A intenção é produzir uma artistas dos anos 1960. Suas arte cada vez mais próxima do grande público. Nesse obras exploravam o que ele sentido, o abstracionismo que predominou nos anos chamava de antiarte, pois 1950 perde força em favor de uma retomada da figu- buscavam desmistificar o ração, em propostas contestadoras intimamente anco- conceito de arte como algo radas na realidade histórica nacional. afastado do mundo real e Um dos marcos da arte do período foi a mostra cotidiano. Para isso, o artista

Nova Objetividade Brasileira, ocorrida em abril de esperava que os espectado- © Claudio Oiticica 1967 no Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro res tivessem uma participa- Hélio Oiticica. (MAM-RJ), que reuniu diversas vertentes da vanguar- ção ativa na construção do significado de suas obras, da brasileira. A proposta mais importante era a busca abandonando a posição de observação contemplati- de soluções autenticamente nacionais, superando a va para vivenciar a obra de arte numa experiência ideia do chamado “quadro de cavalete” para invocar o multissensorial, seja penetrando-a – no caso dos espectador a participar intensamente da obra de arte, ambientes –, seja vestindo-a, como no caso dos seus de maneira não apenas visual, mas de uma forma que famosos parangolés, espécie de capas coloridas envolvesse toda a sua corporalidade. É o que se verifi- com inscrições de poesias. ca na obra Adoração, apresentada a seguir: Oiticica foi um artista polêmico. Ele expunha suas convicções de maneira criativa, sempre despertando a curiosidade e a reflexão do público. Fascinado pelo Carnaval carioca, o artista mergulhou na cultura do samba e dos morros da cidade. Em 1965, foi expulso de uma exposição de Arte Moderna e, em represália, trouxe membros da escola de samba Mangueira –ves- tidos com parangolés – para protestar em frente ao Museu de Arte Contemporânea do Rio de Janeiro. Em 1968, em plena época de endurecimento das repres- sões na ditadura, Oiticica chocou a opinião púbica nacional com o estandarte “Seja Marginal, Seja Herói”. © Nelson Leirner/MASP Adoração (Altar para Roberto Carlos). Catraca de ferro, veludo, montagem de imagens reli- giosas, tela pintada e neon, 1966.

Nessa obra, Nelson Leirner se apropria de ele- mentos religiosos e populares de modo a questionar © Claudio Oiticica a relação do público com os seus ídolos. A imagem Tropicália, de Hélio Oiticica, 1967.

LITERATURA 69 TERCEIRÃO  8

3_TERC_8_LIT.indd 69 9/9/13 10:51 AM Tropicália é uma instalação (ambiente artístico Dois nomes paralelos na arte dos anos 1960: criado em galerias ou museus) apresentada pela pri- e meira vez em 1967. Uma espécie de labirinto, com areia e pedras pelo chão, que remetia aos becos e Embora os nomes de Tomie Ohtake e Frans Krajc- ruelas das favelas cariocas. Nas passagens penetrá- berg não sejam associados imediatamente à arte dos veis de Tropicália havia diversas referências à cultura anos 1960 – talvez porque continuem ativos até os dias tropical brasileira, como araras, plantas, pedras, so- de hoje –, seus trabalhos desenvolveram característi- noridades típicas. Segundo o seu criador, tratava-se cas próprias que merecem ser aqui lembradas. de um ambiente que “ruidosamente apresenta ima- gens”. Caetano Veloso compôs uma canção com o Tomie Ohtake mesmo nome da obra de Oiticica, que acabou por dar nome ao movimento “Tropicalismo”.

Lygia Clark e a dessacralização da arte

A artista mineira Lygia Clark (1920 -1988), depois de participar do movimento concretista, seguiu um caminho menos racionalista da produção artística. A superação dos papéis preestabelecidos entre produ- tor/obra/espectador é uma das bases de seu experi- mentalismo. Assim como Oiticica, a artista incentivava © Cleo Velleda/Folhapress a arte a se tornar uma vivência de apropriação não A razão sobre a emoção: Tomie Ohtake. apenas de caráter intelectual, mas, também, física. Para isso, criou, por exemplo, esculturas livremente Tomie Ohtake nasceu no Japão em 1913 e naturali- moldáveis, de maneira a que cada espectador pudes- zou-se brasileira nos anos 1940. Seu trabalho segue um se fazer, a partir de sua própria vontade e inspiração, caminho muito particular no quadro da arte da década formas novas. de 1960, recusando a figuração e as referências ao mun- do real ao explorar o abstracionismo em profundos estu- dos de forma e de cor. A artista também se notabilizou pela construção de grandes esculturas, que hoje enri- quecem o espaço público de várias cidades brasileiras. © Lygia Clark Obra mole, de Lygia Clark.

Para Lygia, a inovação deve ser um elemento © Instituto Tomie Ohtake, São Paulo Sem título, 1968. constituinte do objeto artístico. A artista criava for- mas em materiais maleáveis e as pendurava em es- Ohtake explora a cor e as formas em seu estado cadas ou paredes. A imprevisibilidade da forma final puro, sem nenhuma intenção figurativa. A aparente fazia parte do jogo criativo. Outra de suas composi- simplicidade de suas telas esconde pensamentos com- ções explorava formas rígidas unidas por dobradi- plexos e um domínio paciente da linha e das várias ças. O espectador podia manipulá-las como bem camadas de cores – o que faz lembrar a arte oriental da entendesse, criando um jogo de invenção que diluía caligrafia. Diz a pintora: “Eu nunca pintei com o emo- o conceito de autor na obra de arte. cional. Sempre pintei mais friamente. É sempre colo-

TERCEIRÃO  8 70 LITERATURA

3_TERC_8_LIT.indd 70 9/9/13 10:51 AM cando camada, camada, camada. Colocando muitas Alegria, alegria cores, camada, camada até chegar onde eu quero. O Caminhando contra o vento gesto era bem mais calmo, caía sempre sobre a tela e Sem lenço e sem documento seguia uma direção que era mais mental”. Muitas de No sol de quase dezembro suas obras nem sequer apresentam títulos, numa recu- Eu vou sa à palavra, que indica a predominância da imagem sobre qualquer outro tipo de discurso. O Sol1 se reparte em crimes Espaçonaves, guerrilhas, A consciência revoltada do planeta: Frans Krajcberg Em Cardinales2 bonitas O polonês Frans Krajcberg nasceu em 1921. Com Eu vou 27 anos, transferiu-se para o Brasil após perder a família em campos de concentração durante a Se- Em caras de presidentes gunda Guerra Mundial. Seu trabalho esteve desde Em grandes beijos de amor Em dentes, pernas, bandeiras sempre ligado à defesa e preservação da natureza, 3 mesmo quando o discurso ecológico não estava tão Bomba e Brigitte Bardot em voga como nos dias de hoje. Para Krajcberg, a [...] natureza não funciona apenas como tema, mas como matéria-prima de seu processo criativo: o artista Ela pensa em casamento busca materiais calcinados depois de queimados e E eu nunca mais fui à escola os reaproveita, incorporando neles cores e formas. Sem lenço e sem documento Eu vou

Eu tomo uma coca-cola Ela pensa em casamento Uma canção me consola Eu vou

Por entre fotos e nomes Sem livros e sem fuzil Sem fome, sem telefone No coração do Brasil Caetano Veloso. In: .

Floração, de Krajcberg, 1. Jornal de vanguarda, à época. 1968, feita a partir de relevo em flores e 2. Referência a Claudia Cardinale, atriz italiana.

© Frans Krajcberg madeira pintada. 3. Famosa atriz francesa. Em depoimentos, Frans Krajcberg afirma que a terrível experiência da guerra o desiludiu dos seres I. “A linguagem era nova, cheia de referências visuais, humanos, o que o levou a buscar refúgio em am- e tudo estava ali, combinando temas que nem en- bientes naturais. Mas o contato com ecossistemas sempre precisam combinar: despreocupação, gajamento político, tecnologia, lirismo...” (Laura de brasileiros apresentou outra faceta terrível da ação Mello e Souza. Adaptado.) humana na Terra: o desmatamento e as queimadas. A recolha de troncos queimados de madeira e o seu a) Transcreva um verso que ilustre, de modo mais ex- reaproveitamento artístico fez de Krajcberg um dos pressivo, o que está destacado nesse comentário. artistas mais expressivos e atuantes do cenário cul- Justifique sua escolha. tural brasileiro. Seu empenho e valor artístico são O verso “Espaçonaves, guerrilhas” reúne os dois ele- reconhecidos internacionalmente. mentos destacados no comentário, isto é, tecnolo- gia (“espaçonaves”: referência à corrida espacial que 1. (Fuvest-SP) Leia os seguintes versos de “Alegria, alegria”, então se iniciava) e política (“guerrilhas”: uma das de Caetano Veloso, e, em seguida, os dois comentários estratégias de luta contra o regime militar instaura- em que os autores explicam por que essa canção é uma de suas prediletas. do em 1964).

LITERATURA 71 TERCEIRÃO  8

3_TERC_8_LIT.indd 71 9/9/13 10:51 AM IMAGEM E TEXTO PARA A QUESTÃO 3 II. “A canção era importante pela força mágica de afir- mar a potência criativa da vida em meio à fragmenta- ção do mundo”. (Jurandir Freire Costa. Adaptado.)

b) Transcreva um verso que exemplifique, de modo mais evidente, o que está destacado nesse comentá- rio. Justifique sua escolha. Os versos que evidenciam mais fortemente a visão fragmentada são: “Em dentes, pernas, bandeiras” e “Bomba e Brigitte Bardot”. Neles, misturam-se a referência erótica (“dentes”, “pernas” e “Brigitte Bardot”) e política (“bandeiras” – evidência do na- cionalismo engendrado pelo golpe de 1964 – e “bom-

bas” – referência, no plano externo, à corrida arma- © Divulgação Bandeira-poema Seja marginal, seja herói, de Hélio Oiticica, 1968. mentista e, no interno, ao enfrentamento do regime pelas ações da guerrilha armada). A arte contemporânea é intervenção crítica na cul- tura, convidando a uma experiência de subversão – e, eventualmente, de reflexão sobre o sujeito e o mundo [...]. 2. (Fuvest-SP) RIVERA, Tania. A criação crítica: Oiticica com Lacan. Disponível em: [...] . Acesso em: 3 jun. 2013. Página infeliz da nossa história 3. Considerando o comentário crítico anterior, de que ma- Passagem desbotada na memória neira a obra “Seja marginal, seja herói” pode ser conside- Das nossas novas gerações rada uma “experiência de subversão” no contexto social Dormia brasileiro do final dos anos 1960? A nossa pátria mãe tão distraída Certamente a obra de Oiticica proporcionava essa “ex- Sem perceber que era subtraída periência de subversão”. Propõe-se uma “intervenção Em tenebrosas transações [...] crítica” na sociedade, pois Oiticica considera o marginal “Vai passar”, de Chico Buarque e Francis Hime. (entendido como um sujeito delinquente, um “fora da

a) É correto afirmar que o verbo dormia tem uma cono- lei”) um herói, ou seja, um modelo de comportamento. tação positiva, tendo em vista o contexto em que ele Tal mensagem “subversiva” é acentuada ainda pela cor ocorre? Justifique sua resposta. vermelha do estandarte, o que seria facilmente asso- Não. Dormia tem conotação negativa no trecho, já ciado à cor do comunismo, no período da Guerra Fria. que serve para denunciar a distração da “nossa pá- tria mãe”, incapaz de perceber a ocorrência de “tene- brosas transações”.

b) Identifique, nos três últimos versos, um recurso ex- pressivo sonoro e indique o efeito de sentido que ele TAREFA MÍNIMA produz. Não considere a rima “distraída” / “subtraída”. t Leia o texto da aula. A aliteração da consoante /s/ sugere a atmosfera Caderno de Exercícios de surdina em que ocorrem as “tenebrosas transa- t Faça os exercícios 1 e 2. ções”. Além disso, a repetição da consoante /t/ su- TAREFA COMPLEMENTAR Caderno de Exercícios gere a agressividade própria do regime autoritário t Faça os exercícios 3 e 4. que dominava o país no tempo da canção.

TERCEIRÃO  8 72 LITERATURA

3_TERC_8_LIT.indd 72 9/9/13 10:51 AM ANOS 1960  CINEMA E TEATRO

1 Breve histórico do cinema brasileiro no Nelson Pereira dos Santos início do século XX

Cartaz do filme O Ébrio, de Gilda de Abreu (1946). © Patrícia Santos/Folhapress

Nelson Pereira dos Santos (1928) é o primeiro ci- neasta brasileiro a ocupar uma cadeira na Academia Brasileira de Letras. Iniciou um processo de transformação do cinema

© Divulgação brasileiro desde seu primeiro longa-metragem, Rio 40 Pôster do filme O descobrimento do graus, de 1955, que apresentava a vida difícil nas fave- Brasil, de Humberto Mauro (1937). las cariocas em contraste com a futilidade da zona sul. É o responsável pela criação de um dos filmes mais premiados de todo o cinema nacional, considerado uma obra-prima: Vidas secas, finalizado em 1963, adaptação do romance de Graciliano Ramos.

Glauber Rocha © Divulgação Baiano de Vitória da Con- quista, (1939- -1981) fundou, ao lado de seus amigos, em 1956, a Cartaz do filme Orfeo Negro Coo pe rativa Cinematográfi- (ou ), Orfeo do Carnaval ca Yemanjá, e era visto pela

© Divulgação de Marcel Camus (1958). ditadura militar como um A produção do cinema nacional iniciou-se nos elemento subversivo. Reali-

anos 1930, mas efetivou-se nos anos 1950, com a im- zou três filmes fundamentais © Paulo Moreira / Agência O Globo plantação de grandes estúdios de produção cinema- para a história do cinema nacional, nos quais uma tográfica que acompanhou a euforia de uma ideologia crítica social feroz se alia a uma forma de filmar que nacional-desenvolvimentista que acreditava na possi- pretendia cortar radicalmente com o estilo america- bilidade de crescimento do cinema nacional. O ritmo no: Deus e o Diabo na terra do sol (1964), Terra em de produção do cinema brasileiro atingiu então um transe (1967) e O dragão da maldade contra o Santo esquema industrial, principalmente em São Paulo, em Guerreiro (1969). filmes que valorizavam manifestações de cunho fol- Embora Glauber tenha sido um cineasta contro- clórico, como O cangaceiro (1953), por exemplo. vertido e incompreendido no seu tempo, tornou-se Ainda no início da década de 1950, algumas ideias internacionalmente conhecido pelos prêmios que com potencial transformador começaram a ganhar conquistou: o de Crítica, do Festival de Cannes; o Luis força nos meios de produção cinematográfica. O cine- Buñuel, na Espanha; o Melhor filme, do Locarno In- asta Nelson Pereira dos Santos defendia uma produ- ternational Film Festival; e o Golfinho de Ouro de ção voltada para a reflexão em torno da realidade melhor filme do ano, no Rio de Janeiro, todos por nacional. Terra em transe.

LITERATURA 73 TERCEIRÃO  8

3_TERC_8_LIT.indd 73 9/9/13 10:51 AM 2 O Cinema Novo no Brasil

© Divulgação © Divulgação © Divulgação Rio, 40 graus, de Nelson Pe- Vidas secas, de Nelson Pereira Terra em transe, de Glauber Rocha, reira dos Santos, 1955. dos Santos, 1963. 1967.

Há alguns momentos históricos em que certos mo da política brasileira, anterior ao golpe onde acontecimentos parecem convergir conveniente- operários e camponeses aparecem como massa de mente para o desenvolvimento de novas tendências manobra, pois só podiam agir quando o espaço po- e manifestações artísticas, que reflitam a maneira de lítico lhes era oferecido de maneira paternalista. pensar de determinado período. O movimento do Leia a seguir um trecho do roteiro da obra de Cinema Novo, por exemplo, propunha uma fuga dos maior destaque de Glauber Rocha: padrões luxuosos de produção norte-americanos, com a adoção do lema “uma câmera na mão e uma Terra em transe ideia na cabeça”. Além disso, adotava uma postura LAMARTINE crítica diante da situação política brasileira. (Lamartine se exalta, o Cardeal a seu lado.) Três obras de temática marcadamente rural, que — Precisamos fundar novas cidades, abrir grandes abordavam especificamente a pobreza da região estradas, construir escolas! Os detratores não sabem que Nordeste, Vidas secas (Nelson Pereira dos Santos), Juscelino fez o mais importante Governo do Brasil: cons- Deus e o Diabo na terra do sol (Glauber Rocha) e Os truiu Brasília, desfraldou a bandeira do nacionalismo, Três fuzis (), são os primeiros títulos do Cine- Marias, Furnas – a força do desenvolvimento, a aurora do ma Novo, produzidos até o golpe militar de 1964. nacionalismo nasceu deste homem cujos erros tinham a Com o golpe de 1964, ficou cada vez mais difícil mesma grandeza de seus acertos... Precisamos de trezentas discutir explicitamente a realidade política e social do cidades no Amazonas, precisamos restaurar o espírito dos Brasil. O Cinema Novo passou então a desenvolver bandeirantes, o espírito do Pe. Antônio Vieira! uma tendência autocrítica e metalinguística que colo- As vacas começam a berrar. Os vaqueiros cercam as cava em foco sua própria atuação como agente social vacas, montando nos seus cavalos. Começa um aboio Jor- de uma classe média urbana, cuja atuação política dan e o Piloto levam Lamartine para o helicóptero. Bisquê começa a ser focalizada de forma crítica. Alguns idem. Silvino observa ao fundo. Sanfonas, movimento – di- exemplos dessa tendência são filmes como O desafio vertem-se. Paulo sente calor, alheio àquilo, bebe cerveja. (Paulo Cesar Saraceni, 1965), O bravo guerreiro (Gus- Ouve o barulho do helicóptero. O helicóptero sobe, Silvi- tavo Dahl, 1969) e Macunaíma (Joaquim Pedro de no olha, Bisquê vem ao fundo, corre em direção a Silvino. Andrade, 1969). BISQUÊ É, porém, Terra em transe, de Glauber Rocha, o — Grande homem, o Dr. Lamartine! exemplo mais significativo do Cinema Novo depois O Embaixador fixa Silvino, assustado. Silvino o abraça. do golpe de 1964. Com uma narrativa completamen- O barulho do helicóptero. te fragmentada, o filme trata de uma revisão crítica dos acontecimentos anteriores ao golpe. No enredo, SILVINO Eldorado é um país imaginário onde os interesses do — O senhor vai servir onde agora? povo são manipulados por políticos demagogos. O BISQUÊ filme faz críticas em relação à esquerda e ao populis- — Gostaria de servir no México...

TERCEIRÃO  8 74 LITERATURA

3_TERC_8_LIT.indd 74 9/9/13 10:52 AM SILVINO 3 O papel do teatro — Qual sua posição política? BISQUÊ — Um liberal conservador, ou melhor, um conservador liberal... Silvino dá uma bruta gargalhada e bate na barriga do Embaixador. O helicóptero neste momento passa sobre eles, levanta o vento e espalha o ruído. Bisquê foi por terra, sob o vento, tenta se compor, Silvino sorri, Paulo entra em campo com o copo de cerveja, Silvino grita. SILVINO — Embaixador, pra se subir no Governo Federal é pre- ciso ser de esquerda. Comunista não, veja bem... De es- querda!

CAM sobe com música. TRAV aéreo. Os vaqueiros © Carlo/Cedoc/Funarte cercam a boiada que se movimenta. O americano, no Montagem de Vestido de noiva, de , encenado pelo grupo Os comediantes. jipe, descreve um círculo, buzinando gritando como um cowboy. CAM afasta-se, estoura uma música carnavales- É consenso absoluto entre críticos e estudiosos do ca. CORTE. teatro no Brasil que Vestido de noiva, de Nelson Ro- Sequência 6 drigues, é o marco do moderno teatro brasileiro. A TRAV. DESCONTÍNUO. Mulheres fantasiadas dançan- encenação realizada pelo grupo Os comediantes, em do histéricas. Estamos num baile de Carnaval, num Clube 1943, dirigida pelo encenador polonês Ziembinski, en- pequeno. Animação. Uma mulher loura dá um longo beijo traria para a história das artes dramáticas do país. Divi- em Paulo. Paulo fantasiado simplesmente, de marinheiro, dindo o palco em três planos (memória, alucinação e afasta-se, um pouco bêbado e se dirige ao bar. Confusão realidade), o espetáculo acompanhava o delírio de Alaí- generalizada. Consegue disputar um uísque. Subitamente de, uma mulher casada com Pedro, por sua vez desejado atacam Paulo de lança-perfume e gritos e beijos. São Mari- pela irmã dela: Lúcia. A protagonista, após sofrer um na e Álvaro. Paulo, feliz com a descoberta, os beija. atropelamento, se encontra em sua alucinação com a TRAVS DESCONTÍNUOS. Corre o Carnaval. Paulo, lendária prostituta Madame Clessi, que a ajuda a re- Marina e Álvaro se divertem, felizes. Detalhes de um prés- constituir sua trajetória até aquele ponto da vida. tito, clima de sonho. Sucedem-se os préstitos, trombetas. A Foi necessário algum tempo para que novos dra- Escola de Samba desfila, insólita e agressiva. Oscilam ban- maturgos da mesma importância de Nelson Rodrigues deiras. Estoura o Baile do Municipal. São sequências rápi- surgissem na cena brasileira depois do fenômeno Ves- das e fortes, dando a passagem de tempo do Carnaval. tido de noiva. Com o olhar voltado para o universo das TRAV LATERAL, veloz, passa levando Paulo, Marina e fazendas e da família tradicional do interior do Brasil, o Álvaro, alegres, confundem-se com outros foliões, cresce. paulista Jorge Andrade desenvolveu sua dramatur- ROCHA, Glauber. Terra em transe (primeiro tratamento). gia. A peça A moratória estreou em 1954 e também se In: Roteiros do Terceiro Mundo. Organização: Orlando Senna. tornou um marco no trabalho de análise da formação Rio de Janeiro: Editorial Alhambra, 1985. da sociedade paulista e brasileira, focalizando a deca- Não é difícil perceber o caráter fragmentário do ro- dência dos valores patriarcais no Brasil, principalmen- teiro de Glauber Rocha, na medida em que as falas não te durante o período do ciclo do café. constituem exatamente um diálogo linear e Lamartine fala sozinho e Silvino e Bisquê parecem não se enten- 4 O teatro brasileiro da década de 1960 – der. Além disso, há a presença da ironia na resposta de movimentos e artistas Bisquê, que não quer se posicionar politicamente e simplesmente se declara um liberal conservador ou um Muitas manifestações diferentes marcavam o de- conservador liberal, expressões que não esclarecem senvolvimento do teatro brasileiro no início dos anos nada. As rubricas que fazem menção a um rebanho de 1960: novos dramaturgos, diretores que propunham vacas, ao calor, a helicópteros e ao Carnaval sugerem uma nova visão de encenação, grupos que inovaram uma grande movimentação que aproxima o urbano e o a expressão teatral, tanto como arte quanto como ato rural, os homens e as vacas, como se todos fossem sem- político. Nessa cena, dois grupos e seus trabalhos no pre sujeitos à manipulação de alguém. período se destacaram significativamente.

LITERATURA 75 TERCEIRÃO  8

3_TERC_8_LIT.indd 75 9/9/13 10:52 AM Teatro de Arena ternacional em 1967, com a montagem do texto de Oswald de Andrade, O rei da vela. Fundado em São Paulo As montagens de Galileu Galilei em 1968 e Na no ano de 1953, o Teatro selva das cidades, em 1969, ambas de Bertolt Brecht, de Arena transformou-se, coroam esse movimento ascensional e são conside- em pouquíssimo tempo, radas perfeitas recriações brasileiras do universo do em sinônimo de teatro en- autor alemão. gajado e comprometido Entre tantos artistas e estudiosos de teatro surgi- com questões políticas e dos no período, dois dramaturgos merecem desta- sociais. Realizando suas que especial: e Oduvaldo apresentações em peque- Vianna Filho, também conhecido como Vianinha.

© Dadá Cardoso/Folhapress nos clubes, fábricas e sa- O diretor (1931 -2009). lões, o grupo conseguiu Oduvaldo Vianna Filho ter seu próprio teatro no final de 1954, uma pequena Filho de Oduvaldo Vianna, também figura impor- sala localizada à rua Teodoro Baima, no centro da cida- tante do teatro brasileiro, Vianinha (1936 -1974) es- de, onde se localiza até hoje. treou como dramaturgo em 1959, ao escrever Augusto Boal, diretor teatral recém-chegado de Chapetuba Futebol Clube. Participou como ator do fil- uma temporada em Nova York, uniu-se ao grupo me Cinco vezes favela em 1962, importante represen- para apresentar o método de interpretação realista tante do Cinema Novo e, junto de Armando Costa, do russo Stanislavski, que aprendera nos Estados criou e dirigiu, na Rede Globo de Televisão, uma das Unidos. Foi o trabalho com o encenador que acabou séries humorísticas de maior sucesso na TV brasilei- por dar à companhia um caráter de esquerda que ra: A grande família, que voltaria a ser apresentada possibilitou o desenvolvimento do método do Tea- na mesma emissora. Sua peça mais elogiada pela tro do Oprimido, em que o público pode participar crítica é Rasga coração, que ele terminou de escrever do espetáculo, abordando e buscando compreender poucos dias antes de falecer, vitimado por um cân- melhor seus conflitos internos e relacionais por meio cer pulmonar, com apenas 38 anos de idade. do teatro. A participação de dramaturgos como Gianfrancesco Guarnieri e Oduvaldo Vianna Filho Gianfrancesco Guarnieri foi responsável por grandes sucessos da companhia como Eles não usam black tie (1958) e Chapetuba Gianfrancesco Guar- Futebol Clube (1959). nieri (1934 -2006) foi cria- Foi, porém, em 1965, que o grupo encontrou uma do em São Paulo, cidade maneira muito particular de expressar suas ideias onde chegou de Milão acerca do cenário político brasileiro e da história do com a família no início Brasil, criando o conhecido sistema “coringa”, no dos anos 1950. Foi líder qual todos os atores se revezam para representar estudantil desde a ado- todas as personagens. O sucesso estrondoso de Are- lescência e começou a na conta Zumbi (1965) se repete em Arena conta Tira- fazer teatro amador com dentes (1967), ambos realizados pela parceria de Oduvaldo Vianna Filho, © Léo Drumond/Folhapress sucesso entre Guarnieri e Augusto Boal. com quem criou, em 1955, o Teatro Paulista do Estu- dante, que, no ano seguinte, uniu-se ao Teatro de Arena. Criado no diretório acadêmico XI de Agosto da Sua peça de estreia, como dramaturgo, foi Eles Faculdade de Direito do Largo São Francisco, o Tea- não usam black tie, em 1958, pelo Teatro de Arena. A tro Oficina se profissionalizou em 1961, quando ad- peça, dirigida por José Renato, contou com um elen- quiriu o Teatro Novos Comediantes, onde funciona co de grandes talentos que começavam a despontar até hoje. no teatro brasileiro. Programada para encerrar o Em 1964, durante o golpe militar, estava em car- trabalho do grupo, que vivia uma crise financeira, taz a montagem realista Os pequenos burgueses, de alcançou sucesso imenso, sendo um dos marcos da Máximo Gorki. Depois de um incêndio em 1966, o renovação do teatro brasileiro da época. grupo fez remontagens de antigos sucessos para Ao longo de sua jornada, Guarnieri escreveu ou- levantar fundos para a reconstrução do teatro até tros textos importantes, como Gimba e A semente, e alcançar grande notoriedade e reconhecimento in- participou de montagens fora do Teatro de Arena

TERCEIRÃO  8 76 LITERATURA

3_TERC_8_LIT.indd 76 9/9/13 10:52 AM com e também no Teatro Brasilei- OTÁVIO ro de Comédia, TBC, até retornar como ator e como Minha gente, vocês querem dá um pulo lá fora; esse autor em sucessos emblemáticos na história do gru- rapaz quer conversá comigo. po como Arena conta Zumbi (1965) e Arena conta ROMANA Tiradentes (1967), textos em que utiliza uma lingua- Eu preciso mesmo recolhê a roupa! gem metafórica e alegórica devido ao complicado JOÃO panorama político do momento. Já vou indo, então. Até logo, seu Otávio, e parabéns! Gianfrancesco também se tornou um ator conhe- cido na televisão brasileira, tendo atuado em séries e OTÁVIO inúmeras telenovelas. Obrigado! (Saem. Tião e Otávio ficam a sós.) Bem, pode falá. Eles não usam black tie – os operários em cena no tea- TIÃO tro brasileiro Papai… Primeira peça de Gianfrancesco Guarnieri, Eles OTÁVIO não usam black tie, de 1958, foi muito importante na Me desculpe, mas seu pai ainda não chegou. Ele deixou revisão da forma de se fazer teatro no final da década um recado comigo, mandou dizê pra você que ficou muito de 1950, que influenciaria toda a dramaturgia dos admirado, que se enganou. E pediu pra você tomá outro anos 1960. No lugar de cenários grandiosos e figuri- rumo, porque essa não é casa de fura-greve! nos luxuosos, ficaram apenas os elementos de cena TIÃO indispensáveis. Ao invés de personagens ricas e no- Eu vinha me despedir e dizer só uma coisa: não foi por bres, operários e moradores do morro tomaram o covardia! palco. Pela primeira vez, conflitos básicos da realida- de operária brasileira ganhavam espaço na drama- OTÁVIO turgia nacional. Seu pai me falou sobre isso. Ele também procura acre- A ação da peça se desenrola em uma favela, nos ditá que num foi por covardia. Ele acha que você até que anos 1950, e tem como tema a greve de uma indústria teve peito. Furou a greve e disse pra todo mundo, não fez em que trabalhavam juntos pai (Otávio) e filho (Tião). segredo. Não fez como o Jesuíno que furou a greve saben- O mote principal do texto é o choque entre os dois, do que tava errado. Ele acha, o seu pai, que você é ainda com posições ideológicas opostas, diante da situação mais filho da mãe! Que você é um traidô dos seus compa- de greve. O pai tem um espírito sonhador e idealista, nheiro e da sua classe, mas um traidô que pensa que tá cer- tendo exercido várias lideranças e sofrido algumas to! Não um traidô por covardia, um traidô por convicção! prisões, o que o tornou um dos principais membros TIÃO do movimento grevista. Já o filho, criado na cidade Eu queria que o senhor desse um recado a meu pai… com os padrinhos, nunca conviveu com esse mundo OTÁVIO de luta e reivindicação da classe operária. Vá dizendo. Depois de adulto e morando no morro com os TIÃO pais, Tião vive um dos maiores conflitos de sua vida. Que o filho dele não é um “filho da mãe”. Que o filho Não quer aderir à greve, pois acha que essa é uma dele gosta de sua gente, mas que o filho dele tinha um luta inglória, sem resultados para a classe, e preten- problema e quis resolvê esse problema de maneira mais de se casar com Maria, moça simples, porém deter- segura. Que o filho é um homem que quer bem! minada e leal ao seu povo, que está esperando um filho seu. No momento da greve, Tião está mais OTÁVIO preocupado com o seu futuro do que com a luta de Seu pai vai ficá irritado com esse recado, mas eu digo. seus companheiros, que considera utópica. Seu pai tem outro recado pra você. Seu pai acha que a Leia a seguir o trecho final da obra. culpa de pensá desse jeito não é sua só. Seu pai acha que tem culpa... TIÃO (a Otávio) Eu queria conversá com o senhor! TIÃO Diga a meu pai que ele não tem culpa nenhuma. OTÁVIO OTÁVIO (perdendo o controle) Comigo? Se eu te tivesse educado mais firme, se te tivesse mos- TIÃO (firme) trado melhor o que é a vida, tu não pensaria em não ter É. confiança na tua gente…

LITERATURA 77 TERCEIRÃO  8

3_TERC_8_LIT.indd 77 9/9/13 10:52 AM TIÃO d) realização de produções de custos reduzidos, caracteriza- Meu pai não tem culpa. Ele fez o que devia. O proble- das pelo uso de novas linguagens e inovações cênicas. ma é que eu não podia arriscá nada. Preferi tê o desprezo e) descoberta de novos talentos tanto na dramaturgia co- de meu pessoal pra poder querer bem, como eu quero que- mo na direção de cinema e teatro no Brasil. rer, a tá arriscando a vê minha mulhé sofrê como minha 2. Todas as características listadas abaixo estão relacionadas mãe sofre, como todo mundo nesse morro sofre! ao movimento do Cinema Novo, EXCETO: OTÁVIO a) a preocupação em pensar o Brasil subdesenvolvido. Seu pai acha que ele tem culpa! b) o desenvolvimento de uma linguagem cinematográfica TIÃO própria. Tem culpa de nada, pai! c) a prática de um cinema de autor. § d) o aproveitamento de pressupostos criados pelo cinema OTÁVIO (num rompante) americano do período. E deixa ele acreditá nisso, senão ele vai sofrê muito e) as produções simples e orçamentos relativamente baixos. mais. Vai achar que o filho dele caiu na merda sozinho. 3. Vai achar que o filho dele é safado de nascença. (Acal- (Enem) ma-se repentinamente.) Seu pai manda mais um recado. Teatro do Oprimido é um método teatral que Diz que você não precisa aparecê mais. E deseja boa sistematiza exercícios, jogos e técnicas teatrais ela- sorte pra você. boradas pelo teatrólogo brasileiro Augusto Boal, TIÃO recentemente falecido, que visa à desmecanização Diga a ele que vai ser assim. Não foi por covardia e física e intelectual de seus praticantes. Partindo do não me arrependo de nada. Até um dia. (Encaminha-se princípio de que a linguagem teatral não deve ser para a porta.) diferenciada da que é usada cotidianamente pelo OTÁVIO (dirigindo-se ao quarto dos fundos) cidadão comum (oprimido), ele propõe condições Tua mãe, talvez, vai querê falá contigo. Até um dia! práticas para que o oprimido se aproprie dos meios (Tião pega uma sacola que deve estar debaixo de um do fazer teatral e, assim, amplie suas possibilidades móvel e coloca seus objetos. Camisas que estão entre as de expressão. Nesse sentido, todos podem desen- trouxas de roupa, escova de dentes etc.) volver essa linguagem e, consequentemente, fazer teatro. Trata-se de um teatro em que o espectador GUARNIERI, Gianfrancesco. Eles não usam black tie. In: O melhor teatro – Gianfrancesco Guarnieri. Seleção Décio de Almeida Prado. é convidado a substituir o protagonista e mudar a São Paulo: Global, 1986. condução ou mesmo o fim da história, conforme o olhar interpretativo e contextualizado do receptor. A grande qualidade do trabalho de Gianfrancesco Companhia Teatro do Oprimido. Disponível em: . Guarnieri pode ser facilmente percebida neste trecho da Acesso em: 1o jul. 2009 . Adaptado. peça. A discussão entre o filho e o pai, que fala de si mes- mo na terceira pessoa, é recheada de lirismo e profundi- Considerando-se as características do Teatro do Oprimido apresentadas, conclui-se que: dade que transcendem a questão política debatida. A despedida entre os dois, que percebem a impossibilida- a) esse modelo teatral é um método tradicional de fazer de de continuar a dividir a mesma casa, é capaz de arran- teatro que usa, nas suas ações cênicas, a linguagem rebuscada e hermética falada normalmente pelo ci- car lágrimas da plateia sem ser piegas ou exagerada. dadão comum. b) a forma de recepção desse modelo teatral se destaca pela separação entre atores e público, na qual os ato- res representam seus personagens e a plateia assiste 1. O Cinema Novo e o movimento de renovação teatral lide- passivamente ao espetáculo. rado pelo Teatro de Arena e pelo Grupo Oficina foram ex- § c) sua linguagem teatral pode ser democratizada e pressões artísticas, com objetivos e características comuns, apropriada pelo cidadão comum, no sentido de pro- afinadas com o contexto brasileiro das décadas de 1950 e porcionar-lhe autonomia crítica para compreensão e 1960 do século passado. Entre as características desses interpretação do mundo em que vive. movimentos culturais, NÃO se inclui a: d) o convite ao espectador para substituir o protagonis- § a) vinculação a grandes estúdios cinematográficos e a ta e mudar o fim da história evidencia que a proposta companhias teatrais já estabelecidas. de Boal se aproxima das regras do teatro tradicional b) concepção da obra de arte como meio de conscientiza- para a preparação de atores. ção política, influenciada por tendências de esquerda. e) a metodologia teatral do Teatro do Oprimido segue a c) crítica à realidade brasileira, aos seus problemas e con- concepção do teatro clássico aristotélico, que visa à tradições, com forte conteúdo social. desautomação física e intelectual de seus praticantes.

TERCEIRÃO  8 78 LITERATURA

3_TERC_8_LIT.indd 78 9/9/13 10:52 AM 4. (Ufscar-SP) Uma peça de grande importância para o teatro brasileiro é Eles não usam black tie, escrita por Gianfrancesco Guarnieri em 1955, e montada pela primeira vez em 1958 pelo Teatro de Arena de São Paulo. É correto afirmar que a importância da peça deve-se ao fato de: a) inaugurar o Teatro de Arena como espaço de mobilização contra o poder instituído. b) salientar o papel da burguesia urbana no desenvolvimento econômico nacional. § c) ter ressaltado uma dramaturgia de cunho social, que punha em cena a classe operária. d) mostrar a decadência da aristocracia rural diante do desenvolvimento social nas cidades. e) incorporar uma estética norte-americana na dramaturgia do teatro brasileiro.

TAREFA MÍNIMA TAREFA COMPLEMENTAR t Leia o texto da aula. Caderno de Exercícios Caderno de Exercícios t Faça o exercício 2. t Faça o exercício 1.

LITERATURA BRASILEIRA CONTEMPORÂNEA  PROSA

1 As marcas da ditadura primeiros anos. Assim, algumas obras que atacavam diretamente o autoritarismo militar puderam vir à luz. Foi o caso do livro Quarup, de Antonio Callado, publicado em 1967. Nando se aproximou. Olhou pela janela. Não tinha ninguém, mas no quadro-negro se lia:

Arara Vovô vê a arara ele vê a arara ele vê o dedo

© KAORU/CPDoc JB As grandes palavras majestosas tinham desapareci- Oposição ao golpe de 1964. do das paredes onde antes explodiam com uma dureza A repressão que se se- de arte nova: TIJOLO, ENXADA, JANGADA. No canto guiu ao golpe civil-militar onde se pendurava um cartaz com o emblema das Na- de 1964 atingiu iniciativas ções Unidas havia agora outro de um homem com um de difusão cultural, como as boné de operário russo, botas tintas de sangue, andando mantidas pela União Nacio- em cima do mapa do Brasil com uma foice e um mar- nal dos Estudantes (UNE). telo. [...] Mas viu de longe o mastro com a bandeira A instituição organizava os subindo feito uma flor de ouro e verde [...]. Já bem perto Centros Populares de Cul- procurou na base o único azulejo diferente, a inscrição tura (CPC), que defendiam em letras verdes no ladrilho branco: Terra do Centro

um projeto de conscientiza- © César Itiberê/Folhapress Geográfico do Brasil. À memória de Levindo, amigo dos ção política das classes po- Antonio Carlos Callado (1917- camponeses. O azulejo tinha sido arrancado. Tapando pulares por intermédio da -1997) foi um jornalista e escri- o buraco, apoiada contra a base do monumento, uma tor brasileiro, cujas obras refle- arte. Ainda em 1964, a UNE tiam a situação política do país. tábua quadrada, provisória, com os dizeres: Terra do seria declarada ilegal. Centro Geográfico do Brasil. Viva a Revolução, 31 de A despeito dessa agressão inicial, muitas mani- Março de 1964. Sem olhar para os lados, sem pensar festações contrárias ao golpe foram toleradas nos em nada, concentrado a fundo no que fazia, Nando

LITERATURA 79 TERCEIRÃO  8

3_TERC_8_LIT.indd 79 9/9/13 10:52 AM abriu a braguilha das calças e mijou pausadamente em não ser as respostas às perguntas que fariam. Onde esta- cima da placa. va Salgado? Não sabia, não sabia onde estava ninguém. CALLADO, Antonio. Quarup. 9. ed. Rio de Janeiro: Capitão Albernaz bateu de novo na mesa e Raul, um po- Civilização Brasileira, 1978. licial que funcionava na sua equipe, exibiu o telefone de campanha e disse que iria falar com Fidel Castro. Ligaram Quarup acompanha a trajetória do Padre Nando, os fios na minha mão e começaram a dar choques e per- desde seus dilemas íntimos em torno da vocação reli- guntar por pessoas. [...] Minha reação diante dos primeiros giosa, que o levam à experiência sexual, até o envolvi- choques foi uma reação de homem civilizado, creio: fi- mento com as questões sociais, que o conduz à opção quei perplexo em ver que aquilo existia e que havia pesso- pela luta armada contra o regime que assassinara o as que o empregavam. Claro que já sabia disso por outros líder camponês Levindo. Na cultura indígena, a ex- caminhos, mas agora estava vendo e era o mesmo que ver pressão quarup designa a celebração da morte de crianças arrancando as pernas de um passarinho. Como é um guerreiro. A festividade que marca o evento asso- que isto era possível em gente daquela idade? Enquanto cia morte e vida. Da mesma maneira, o romance, por pensava, ia tomando novos choques e quando passaram intermédio da trajetória de Nando, tenta aproximar a os fios para a ponta da orelha realmente deixei de pensar morte de projetos populares com a possibilidade de em outra coisa, exceto na necessidade de não deixar que retomá-los na luta social. No trecho, ocorre o contras- minha cabeça se partisse. Cada vez que davam o choque, te entre a posição oficial (no cartaz de alfabetização, tinha uma profunda sensação de dilaceramento, da cabe- de cunho alienante, e nos símbolos nacionais explora- ça se partindo em duas, e acreditava que podia fazer algu- dos de forma a construir a apologia da Revolução de ma coisa com o corpo para mantê-la intacta. 64) e aquela assumida por Nando, de agressiva repul- GABEIRA, Fernando. O que é isso, companheiro?. sa ao novo regime. Rio de Janeiro: Codecri, 1979. Em dezembro de 1968, foi decretado o Ato Institu- cional no 5 (AI-5), que fechou o Congresso e concedeu O depoimento chocante das torturas sofridas pe- ao governo poderes de perseguição e censura. A partir los que eram aprisionados expunha a face mais co- varde do regime militar. O estilo simples e direto do de 1974, pressões populares impuseram aos militares a narrador estabelece uma empatia forte com o leitor. necessidade de fazer concessões no sentido da abertu- Além disso, o distanciamento temporal faz com que, ra política. Foi um processo demorado e oscilante, paralelamente aos relatos, tenhamos o desenvolvi- marcado por ações dos setores mais radicais do gover- mento de reflexões a respeito de temas políticos e no, como a tortura e o assassinato do jornalista Vladi- sociais que iam além do episódio relatado. mir Herzog (1975) e do operário Manuel Fiel Filho (1976) e o frustrado atentado à bomba contra a celebra- 2 ção do Dia do Trabalhador, no Rio de Janeiro, em 1981. A temática da violência A anistia aos exilados, promulgada em 1979, trouxe Com o fim da censura, algumas obras que haviam de volta ao Brasil boa parte dos que haviam sido per- sido proibidas foram enfim publicadas. O volume de seguidos durante a ditadura. Alguns deles publicaram contos Feliz ano novo, de Rubem Fonseca, foi reco- então uma série de relatos autobiográficos que forne- lhido por ação da censura em 1975, e o escritor só cem um quadro vivo e dra- conseguiu a liberação catorze anos depois. Nele, mático dos anos mais Rubem explorava um tema que se tornaria sua mar- terríveis da ditadura. Um ca registrada: a violência urbana. exemplo importante é O que é isso, companheiro (1979), de Fernando Gabeira. Fernando Paulo Nagle Gabeira (1941) era jornalista quando se envolveu com o movimento armado que pretendia derrubar a ditadura. Preso e exilado em

© Divulgação/Companhia das Letras 1970, retornou ao Brasil com a anistia.

O Capitão Albernaz bateu furiosamente na mesa, man- dou que me sentasse e fez um pequeno discurso. Os ou- © Paulo Moreira/Agência O Globo tros se colocaram em torno de mim enquanto ele ia falan- José Rubem Fonseca (1925) formou-se em Direito e exer- do que era muito burro, muito muito burro, de forma que ceu diversas atividades antes de se dedicar plenamente à com ele não adiantava conversa pois não ouviria nada a literatura, tornando-se um dos autores mais lidos do país.

TERCEIRÃO  8 80 LITERATURA

3_TERC_8_LIT.indd 80 9/9/13 10:52 AM Vamos dar uma volta de carro?, convidei. Eu sabia Dalton Trevisan se destaca entre os praticantes do que ela não ia, era hora da novela. Não sei que graça gênero no Brasil por seu constante esforço minimalis- você acha em passear de carro toda as noites, também ta, com o enxugamento da narrativa, reduzida aos aquele carro custou uma fortuna, tem que ser usado, eu seus elementos essenciais. O leitor consegue apreen- é que cada vez me apego menos aos bem materiais, mi- der todos os fatos envolvidos no conto transcrito nha mulher respondeu. apenas com os dois parágrafos que compõe o texto. O [...] Apaguei as luzes do carro e acelerei. Ela só per- discurso direto (primeiro parágrafo) sugere a trans- cebeu que eu ia para cima dela quando ouviu o som missão oral que faz lembrar a maledicência da fofoca. da borracha dos pneus batendo no meio-fio. Peguei a O estilo do narrador (segundo parágrafo) incorpora mulher acima dos joelhos, bem no meio das duas per- alguns procedimentos próprios dessa oralidade – co- nas, um pouco mais sobre a esquerda, um golpe perfei- mo o que se verifica em “fazer a barba no sargento”. to, ouvi o barulho do impacto partindo os dois ossões, dei uma guinada rápida para a esquerda, passei como 4 A literatura fantástica um foguete rente a uma das árvores e deslizei com os pneus cantando, de volta para o asfalto. Motor bom, o O Surrealismo, surgido nos anos 1920, trouxe a meu, ia de zero a cem quilômetros em nove segundos. corrente artística da literatura fantástica, na qual acon- Ainda deu para ver que o corpo todo desengonçado da tecimentos inusitados eram narrados de forma a lhes mulher havia ido parar, colorido de sangue, em cima de conferir completa naturalidade. A América Latina foi um muro, desses baixinhos de casa de subúrbio. um terreno fértil para obras desse tipo, como mostram FONSECA, Rubem. Passeio noturno (parte I). In: Feliz ano novo. os romances Cem anos de solidão (1967), do colombia- 2. ed. São Paulo: Companhia das Letras, 1989. no Gabriel García Márquez, e O púcaro búlgaro (1964), Nos contos de Rubem Fonseca, a banalização da do brasileiro . violência, muitas vezes cometida por pessoas co- Entre nós, o escritor mais conhecido nesse terre- muns, é utilizada para acentuar a barbárie presente no foi Murilo Rubião, com contos que mostram per- na civilização moderna. No trecho transcrito, um sonagens com coti- homem se dedica a uma estranha diversão: atropelar dianos banais repen- pessoas nas ruas. A frieza do narrador-personagem tinamente quebrados se manifesta nos detalhes que fornece do atropela- por circunstâncias in- mento. O escritor inova ainda no estilo, ao retirar do sólitas. texto as marcas gráficas próprias do discurso direto.

3 O conto

Desde os anos 1970, quando o país viveu o chama- do boom do conto, a narrativa curta manteve apelo considerável junto ao público leitor, projetando nomes Murilo Eugênio Rubião (1916- como os de , , -1991), jornalista e escritor, Dalton Trevisan, Luis Fernando Verissimo, Moacyr exerceu grande influência na Scliar, Domingos Pellegrini, entre muitos outros. vertente surrealista da literatu-

© Agência Estado ra brasileira. – O primeiro marido tem dinheiro de sobra. E ela, uma vida regalada. Até o cara ser preso como traficante. Os primeiros dragões que apareceram na cidade mui- O segundo marido ganha bem, mas judia dela. Arras- to sofreram com o atraso dos nossos costumes. Receberam ta pelo cabelo, morde, tira sangue. O terceiro, sargento precários ensinamentos e a sua formação moral ficou irre- reformado, é manso e quieto. Só que bebe até cair. In- mediavelmente comprometida pelas absurdas discussões ternando-o na clínica, ela recebe uma pequena pensão. surgidas com a chegada deles ao lugar. Logo se amiga com o tipo mais novo. Não se droga, Poucos souberam compreendê-los e a ignorância geral não fuma, não bate, não bebe. Mas também não trabalha. fez com que, antes de iniciada a sua educação, nos perdês- Daí ela visita o marido no asilo: “Deus te mandou, minha semos em contraditórias suposições sobre o país e raça a santa. Você meio me buscar”. Com dó, leva-o para casa e que poderiam pertencer. vivem os três da mesma pensão. O amante não está feliz, A controvérsia inicial foi desencadeada pelo vigário. tem de dar banho e fazer a barba no sargento. Convencido de que eles, apesar da aparência dócil e mei- TREVISAN, Dalton. Conto 98. In: Pico na veia. ga, não passavam de enviados do demônio, não me permi- Rio de Janeiro: Record, 2002. tiu educá-los. Ordenou que fossem encerrados numa casa

LITERATURA 81 TERCEIRÃO  8

3_TERC_8_LIT.indd 81 9/9/13 10:52 AM velha, previamente exorcismada, onde ninguém poderia que entramos nele abri as cortinas do centro e nos sen- penetrar. Ao se arrepender de seu erro, a polêmica já se tamos nas cadeiras de vime, ficando com nossos olhos alastrara e o velho gramático negava-lhes a qualidade de voltados pro alto do lado oposto, lá onde o sol ia se dragões, “coisa asiática, de importação europeia”. Um leitor pondo, e estávamos os dois em silêncio quando ela me de jornais, com vagas ideias científicas e um curso ginasial perguntou “que que você tem?”, mas eu, muito disper- feito pelo meio, falava em monstros antediluvianos. O povo so, continuei distante e quieto, o pensamento solto na benzia-se, mencionando mulas sem cabeça, lobisomens. vermelhidão lá do poente, e só foi mesmo pela insistên- RUBIÃO, Murilo. Os dragões. In: O pirotécnico Zacarias. cia da pergunta que respondi “você já jantou?” e como 17. ed. São Paulo: Ática, 1995. ela dissesse “mais tarde” eu então me levantei e fui sem Uma das marcas da literatura fantástica é a inversão pressa pra cozinha (ela veio atrás), tirei um tomate da de expectativas. No trecho transcrito, o absurdo do apa- geladeira, fui até a pia e passei uma água nele, depois recimento de dragões em uma cidade abre a narrativa fui pegar o saleiro do armário me sentando em seguida de forma natural, sem nenhum questionamento prévio. ali na mesa (ela do outro lado acompanhava cada movi- O que o narrador considera “absurdas” são, na verdade, mento que eu fazia, embora eu displicente fingisse que as “discussões surgidas com a chegada” dos dragões, e não percebia), e foi sempre na mira dos olhos dela que não a presença deles em si. O olhar inusitado lançado comecei a comer o tomate, salgando pouco a pouco o sobre a realidade acaba por levantar questionamento que ia me restando na mão, fazendo um empenho simu- em torno do que se considera normal ou natural. lado na mordida pra mostrar meus dentes fortes como os dentes de um cavalo, sabendo que seus olhos não Dois nomes consagrados desgrudavam da minha boca, e sabendo que por baixo do seu silêncio ela se contorcia de impaciência, e sa- Entre os autores brasileiros em atividade, muitos bendo acima de tudo que mais eu lhe apetecia quanto são aqueles que mereceriam uma referência. Lygia mais indiferente eu lhe parecesse, eu só sei que quando Fagundes Telles (Conspiração de nuvens, 2007) e Nel- acabei de comer o tomate eu a deixei ali na cozinha e son Oliveira (Poeira – demônios e maldições, 2010), fui pegar o rádio que estava na estante lá da sala, e sem entre muitos outros, mantêm o nível de suas obras, já voltar pra cozinha a gente se encontrou de novo no cor- contando com uma carreira sólida e uma legião de redor, e sem dizer uma palavra entramos quase juntos leitores. Chico Buarque, reconhecido principalmente na penumbra do quarto. como compositor, mostra a mesma perícia no trata- NASSAR, Raduan. Um copo de cólera. 5. ed. mento da prosa, desde Estorvo (1991). São Paulo: Companhia das Letras, 1992. Para representar essa produção, vamos tratar aqui Um copo de cólera narra um encontro amoroso de dois autores que vêm obtendo especial atenção por permeado de desencontros. O amor é experimenta- parte da crítica especializada, que os colocam entre os do com forte sensualidade, mas um acontecimento grandes nomes da literatura brasileira dos últimos banal – o aparecimento de saúvas no sítio onde estão tempos: Raduan Nassar e Milton Hatoum. – deflagra acessos de raiva e de acusações mútuas. O trecho transcrito relata os primeiros momentos do encontro, mas é notável como o narrador consegue sugerir o clima de tensão que domina a relação do casal, esperando apenas o momento da explosão. © Moacyr Lopes Júnior/Folhapress Raduan Nassar (1935) escreveu pouco – apenas o suficiente para evidenciar a importância de sua obra. Em 1984, o escritor declarou que abandonava a literatura, recolhendo-se para seu sítio, no interior de São Paulo. E quando cheguei à tarde na minha casa lá no 27, ela já me aguardava andando pelo gramado, veio me abrir © Henrique Manreza/Folhapress Henrique © o portão pra que eu entrasse com o carro, e logo que saí Milton Hatoum (1952) aparece constantemente na lista dos grandes es- da garagem subimos juntos a escada pro terraço, e assim critores brasileiros em atividade.

TERCEIRÃO  8 82 LITERATURA

3_TERC_8_LIT.indd 82 9/9/13 10:52 AM A viagem terminou num lugar que seria exagero cha- morta é narrada em Aracelli, meu amor, enquanto a mar de cidade. Por convenção ou comodidade, seus ha- trajetória de um bandido é o tema de Lúcio Flávio, o bitantes teimavam em situá-lo no Brasil; ali, nos confins passageiro da agonia – ambos romances de José da Amazônia, três ou quatro países ainda insistem em Louzeiro publicados na década de 1970. nomear fronteira um horizonte infinito de árvores; na- Mais romancistas que repórteres, autores como quele lugar nebuloso e desconhecido para quase todos Plínio Marcos, João Antônio e Marçal Aquino man- os brasileiros, um tio meu, Hanna, combateu pelo Bra- tiveram a temática da marginalidade com aborda- são da República Brasileira; alcançou a patente de co- gem crua e direta da violência urbana, utilizando-se ronel das Forças Armadas, embora no Monte Líbano se muitas vezes do baixo calão para dar voz às comuni- dedicasse à criação de carneiros e ao comércio de frutas dades pobres das grandes cidades brasileiras. Para nas cidades litorâneas do sul; nunca soubemos o porquê esses autores, não se trata apenas de focalizar a ban- de sua vinda ao Brasil, mas quando líamos suas cartas, didagem, mas de expor as condições que a geram. que demoravam meses para chegar às nossas mãos, fi- Em 1997, Paulo Lins publicou Cidade de Deus, re- cávamos estarrecidos e maravilhados. Relatavam epide- tratando o cotidiano dos moradores de um dos subúr- mias devastadoras, crueldades executadas com requinte bios mais violentos do Rio de Janeiro. Passados quatro por homens que veneravam a lua, inúmeras batalhas tin- anos, o paulista Reginaldo Ferreira da Silva, conheci- gidas com as cores do crepúsculo, homens que degusta- do como Ferréz, lançou Capão pecado, ambientado na vam a carne de seus semelhantes como se saboreassem periferia de São Paulo, realidade que o autor conhece rabo de carneiro, palácios com jardins esplêndidos, do- de perto. Assim, no início do século XXI, as popula- tados de paredes inclinadas e rasgadas por janelas ogi- ções marginalizadas assumem sua própria voz, fazen- vais que apontavam para o poente, onde repousava a do surgir uma nova expressão literária, cujo valor lua de ramadã. fundamental está na contundência da denúncia e no HATOUM, Milton. Relato de um certo Oriente. São Paulo: esforço em se fazer ouvir. Companhia das Letras, 1989.

Ausente de Manaus por vinte anos, uma mulher retorna à cidade para visitar a família adotiva que a havia acolhido na infância. Presenciando as mortes de alguns parentes, resolve escrever a um irmão, para comunicá-las e, em suas cartas, resgata as ex- periências vividas ali. Pode-se notar a presença de certos traços biográficos de Hatoum, como a am- bientação em Manaus, sua cidade natal, e a ascen- dência libanesa. No entanto, a visão que se tem ali é a de um certo Oriente, o que sugere a predominância da visão subjetiva da personagem que narra. Além © Rivaldo Gomes/Folhapress Rivaldo © disso, trata-se, acima de tudo, de um relato, com Ferréz (1975) venceu todas as barreiras até se transformar em uma voz marcas de expressão que resgatam as tradições de qualificada a difundir a cultura da periferia paulistana. uma cultura profundamente oral. Amanheceu, Rael levantou cedo, se arrumou e foi trabalhar; logo pela manhã ouviu um monte do seu pa- A voz da marginalidade trão pela falta do dia anterior. O resto do dia foi tran- quilo, entregou os pães nas escolas, serviu os clientes, A temática da malandragem está presente na lite- lavou o freezer onde se colocavam os leites e foi para ratura brasileira desde Memórias de um sargento de casa. Chegando lá, estranhou quando viu aquele monte milícias, de Manuel Antônio de Almeida, em meados de gente, e parecia que o movimento era em frente à do século XIX. Com o passar do tempo, essa imagem sua casa. Correu, pois sabia que o povo dali só se unia assumiria contornos dramáticos. Muitos escritores assim para falar mal dos outros, ou então pra ver mor- dos anos 1970, por exemplo, cuja liberdade de ex- to. Rael corria e preferia que se tratasse do seu primeiro pressão era cerceada pela ação da censura oficial, pensamento; mas não foi assim, Dida estava caído em recorreram a narrativas baseadas em fatos – eram os frente à sua casa: estava de costas, sem o par de tênis e chamados romances-reportagem. A marginalida- com uma enorme mancha de sangue nas costas. Rael se de está presente neles, mas sem as cores leves do abaixou, tocou seu rosto e começou a chorar. Sua mãe romantismo: a história de uma menina encontrada insistiu para que ele entrasse, estava com medo de que

LITERATURA 83 TERCEIRÃO  8

3_TERC_8_LIT.indd 83 9/9/13 10:52 AM o assassino achasse que Rael, por ser amigo de Dida e Will, poderia servir de testemunha, ou então querer uma vingança. Insistiu, insistiu, mas Rael continuava abaixa- do chorando. Foi quando Zé Pedro, seu pai, o abraçou por trás, o levantou e o arrastou para dentro do barraco, sem muita resistência. Duas horas depois a Tático Sul chegou ao local, co- briu o corpo com um lençol pedido a uma vizinha. Fica- ram comendo carniça por mais de seis horas quando o IML chegou e foi logo retirando o corpo. O pessoal nem estranhou o fato de os legistas não terem examinado o

corpo, todos por ali já estavam acostumados com o des- © Paulo Fehlauer/Folhapress Daniel Galera (1979) nasceu em São Paulo, mas adotou Porto Alegre caso das autoridades. como sua cidade. Seus livros trazem reflexões contundentes e atuais. FERRÉZ. Capão pecado. 2. ed. São Paulo: Labortexto Editorial, 2000. “Lá em Ushuaia”, ela começou, “há um museu dedica- do aos índios que viviam na região antes da colonização A proposta literária de Ferréz e seus congêneres dos europeus. Museu Yámana. Por incrível que pareça, supõe uma identificação completa entre autor, tema eles não usavam roupas naquele frio horrível. Parece que e forma. Para ele, só quem pode falar da periferia é a gordura dos animais e a oleosidade natural da pele bas- quem a vive cotidianamente. E a única maneira de tavam. Eles dormiam ao relento e mergulhavam na água contar a sua história é utilizar-se da linguagem que congelante sem dar muita bola. Em algumas fotos, estão viceja ali, com seus palavrões e suas gírias. A criati- cobertos de peles, mas na maioria estão nus. Quando os vidade está nesse registro doloroso do cotidiano europeus chegaram, deram roupas de presente aos índios, marginalizado. Os nexos entre o “descaso das auto- achando que estavam fazendo uma boa ação. Mas a maio- ridades” e a dor de Rael pela morte do amigo são ria deles morria em pouco tempo depois de vestir essas expostos no texto de forma clara, sem que isso signi- roupas. Os tecidos ficavam molhados e eles adoeciam fique uma visão simplista dos problemas sociais – e com a umidade. Mas enfim, não era disso que eu queria estéticos – sugeridos ali. falar. É que lá no museu fiquei sabendo que a língua dos yámanas contém a palavra mais sucinta que existe. Como Novos talentos era mesmo? É... mapihna... não, Mamihlapinatapai. É o olhar que duas pessoas trocam quando cada uma fica es- Em 2012, a revista Granta, publicada pela editora perando que a outra inicie uma coisa que as duas querem, Objetiva, lançou um volume com um título sugesti- mas que nenhuma tem coragem de começar.” Ela o enca- vo: Os melhores jovens escritores brasileiros. Deixan- rou. “Era bom que houvesse muitas palavras sucintas des- do de lado a parcialidade inerente ao juízo do que se tipo. Sei que essa não se encaixa exatamente no nosso seja o melhor em qualquer setor, chama a atenção, caso, mas imaginar uma palavra bem parecia que definisse no título, o interesse pelo jovem escritor. A juven- o olhar que duas pessoas trocam quando uma delas quer tude dos autores pode ser a garantia de uma expres- iniciar algo que as duas querem, mas a outra põe tudo a são literária renovada, arejada, cheia de vitalidade. perder porque defende que não é o momento certo, que se Para chegar ao público, essa nova geração conta puderem esperar só mais um pouquinho...” Ele desviou o com os meios tradicionais: novas editoras surgem olhar. “É uma pena que o português não tenha essa pala- como alternativas de produção literária – é o caso da vra, não acha?” Ele imaginou uma palavra que descrevesse Não Editora, de Porto Alegre, responsável por títulos a situação em que uma pessoa já sabe o que a outra vai como Areia nos dentes, de Antônio Xerxenesky, O dizer, mas se cala porque é essencial que a outra o diga, professor de botânica, de Samir Machado de Macha- para que suas palavras tornem inquestionável a verdade do, e Pó de parede, de Carol Bensimon – todos lan- indesejada que os dois já conhecem.“ Tarde demais, Da- çados em 2008. Mas os meios eletrônicos são cada nilo. A gente teve um problema de sincronia.” Ainda não vez mais usados: surgem blogs que lançam livre- era bem isso que ele precisava ouvir. Fingiu que não tinha mente textos na rede virtual – como o Prosa caótica, entendido bem, pediu outras explicações. Só a deixaria em de Maira Parula. paz quando dissesse nos termos mais simples, sem rodeios Um autor que se firma cada vez mais como um nem palavras indígenas, que não o amava mais. nome definitivo é Daniel Galera, autor de uma obra GALERA, Daniel. Cordilheira. São Paulo: que, mesmo em seu início, já se mostra consistente. Companhia das Letras, 2008.

TERCEIRÃO  8 84 LITERATURA

3_TERC_8_LIT.indd 84 9/9/13 10:52 AM Cordilheira relata os desencontros amorosos de zona de preparação, aumentam as probabilidades de, Anita e Danilo. Os desentendimentos do casal se ma- recuperado o esférico, concatenarmos um contragolpe nifestam até mesmo no nível da linguagem: a moça se agudo com parcimônia de meios e extrema objetivi- perde entre suas recordações e o que tem para dizer dade, valendo-nos da desestruturação momentânea do ao rapaz (“não era disso que eu queria falar”). A in- sistema oposto, surpreendido pela reversão inesperada congruência se acentua com as palavras indígenas do fluxo da ação. que ela usa, tão incompreensíveis para ele quanto os — Ahn? sentimentos que nutrem um pelo outro. Além disso, a — É pra dividir no meio e ir pra cima pra pegá cena transcrita pode ser entendida quase como uma eles sem calça. reflexão metalinguística: o que Galera e sua geração — Certo. Você quer dizer mais alguma coisa? buscam é dizer as coisas “nos termos mais simples”, — Posso dirigir uma mensagem de caráter sen- abordando temas corriqueiros, como o fim de uma timental, algo banal, talvez mesmo previsível e pie- relação íntima. gas, a uma pessoa à qual sou ligado por razões, in- Os jovens escritores – sejam eles os melhores ou clusive, genéticas? não – não precisam de rótulos e não merecem ser — Pode. encarcerados por eles. Mesmo assim, os autores se- — Uma saudação para a minha progenitora. lecionados na edição da Granta não desmentem a — Como é? proposta da revista: João Paulo Cuenca, Antonio — Alô, mamãe! Prata, Carola Saavedra e Tatiana Salem Levy, entre — Estou vendo que você é um, um... outros, prenunciam grandes textos literários. Ne- — Um jogador que confunde o entrevistador, nhum deles pretende ser o novo Guimarães Rosa ou pois não corresponde à expectativa de que o atleta a nova Clarice Lispector. Querem apenas ser. seja um ser algo primitivo com dificuldade de ex- Enquanto isso, a literatura brasileira continuará a pressão e assim sabota a estereotipação? produzir autores, jovens ou não, mas – e é o que im- — Estereoquê? porta – de talento. Não é nenhum favor colocar ao — Um chato? lado desse elenco juvenil o nome mais maduro de — Isso. Evandro Affonso Ferreira, autor de obras como Gro- Correio Braziliense, 13 maio 1998. gotó (2000) e Araã! (2003). Quer saber de quem se O texto retrata duas situações relacionadas que fogem à trata? Corra atrás! Afinal, você também é jovem. expectativa do público. São elas: a) a saudação do jogador aos fãs do clube, no início da entrevista, e a saudação final dirigida à sua mãe. § b) a linguagem muito formal do jogador, inadequada à 1. (Enem) Para falar e escrever bem, é preciso, além de co- situação da entrevista, e um jogador que fala, com nhecer o padrão formal da Língua Portuguesa, saber desenvoltura, de modo muito rebuscado. adequar o uso da linguagem ao contexto discursivo. c) o uso da expressão “galera”, por parte do entrevistador, Para exemplificar este fato, seu professor de Língua Por- e da expressão “progenitora”, por parte do jogador. tuguesa convida-o a ler o texto “Aí, galera”, de Luis Fer- d) o desconhecimento, por parte do entrevistador, da nando Verissimo. No texto, o autor brinca com situações palavra “estereotipação”, e a fala do jogador em “é pra de discurso oral que fogem à expectativa do ouvinte. dividir no meio e ir pra cima pra pegá eles sem calça”. Aí, galera e) o fato de os jogadores de futebol serem vítimas de Jogadores de futebol podem ser vítimas de este- estereotipação e o jogador entrevistado não corres- reotipação. Por exemplo, você pode imaginar um ponder ao estereótipo. jogador de futebol dizendo “estereotipação”? E, no 2. (Enem) entanto, por que não? — Aí, campeão. Uma palavrinha pra galera. Texto I — Minha saudação aos aficionados do clube e Logo depois transferiram para o trapiche o de- aos demais esportistas, aqui presentes ou no recesso pósito dos objetos que o trabalho do dia lhes pro- dos seus lares. porcionava. Estranhas coisas entraram então para o — Como é? trapiche. Não mais estranhas, porém, que aqueles — Aí, galera. meninos, moleques de todas as cores e de idades — Quais são as instruções do técnico? as mais variadas, desde os nove aos dezesseis anos, — Nosso treinador vaticinou que, com um trabalho que à noite se estendiam pelo assoalho e por debai- de contenção coordenada, com energia otimizada, na xo da ponte e dormiam, indiferentes ao vento que

LITERATURA 85 TERCEIRÃO  8

3_TERC_8_LIT.indd 85 9/9/13 10:52 AM circundava o casarão uivando, indiferentes à chuva Como quem dissesse no Carnaval: aquele menino que muitas vezes os lavava, mas com os olhos puxa- está fantasiado de palhaço. Minha avó entendia de dos para as luzes dos navios, com os ouvidos presos regências verbais. Ela falava sério. Mas todo mundo às canções que vinham das embarcações... riu. Porque aquela preposição deslocada podia fazer AMADO, Jorge. Capitães da areia. São Paulo: de uma informação um chiste. E fez. E mais: eu acho Companhia das Letras, 2008. que buscar a beleza nas palavras é uma solenidade de amor. E pode ser instrumento de rir. De outra fei- Texto II ta, no meio da pelada um menino gritou: Dislimina À margem esquerda do rio Belém, nos fundos do esse, Cabeludinho. Eu não disliminei ninguém. Mas mercado de peixe, ergue-se o velho ingazeiro – ali aquele verbo novo trouxe um perfume de poesia à os bêbados são felizes. Curitiba os considera ani- nossa quadra. Aprendi nessas férias a brincar de pa- mais sagrados, provê as suas necessidades de cacha- lavras mais do que trabalhar com elas. Comecei a ça e pirão. No trivial contentavam-se com as sobras não gostar de palavra engavetada. Aquela que não do mercado. pode mudar de lugar. Aprendi a gostar mais das pa- TREVISAN, Dalton. 35 noites de paixão: contos escolhidos. Rio de Janeiro: BestBolso, 2009. lavras pelo que elas entoam do que pelo que elas in- formam. Por depois ouvi um vaqueiro a cantar com Sob diferentes perspectivas, os fragmentos citados são saudade: Ai morena, não me escreve / que eu não exemplos de uma abordagem literária recorrente na lite- sei a ler. Aquele a preposto ao verbo ler, ao meu ratura brasileira do século XX. Em ambos os textos, ouvir, ampliava a solidão do vaqueiro. a) a linguagem afetiva aproxima os narradores dos per- BARROS, M. Memórias inventadas: a infância. sonagens marginalizados. São Paulo: Planeta, 2003. b) a ironia marca o distanciamento dos narradores em No texto, o autor desenvolve uma reflexão sobre dife- relação aos personagens. rentes possibilidades de uso da língua e sobre os senti- c) o detalhamento do cotidiano dos personagens revela dos que esses usos podem produzir, a exemplo das a sua origem social. expressões “voltou de ateu”, “dislimina esse” e “eu não § d) o espaço onde vivem os personagens é uma das mar- sei a ler”. Com essa reflexão, o autor destaca: cas de sua exclusão. e) a crítica à indiferença da sociedade pelos marginaliza- a) os desvios linguísticos cometidos pelos personagens dos é direta. do texto. b) a importância de certos fenômenos gramaticais para 3. (Enem) o conhecimento da língua portuguesa. c) a distinção clara entre a norma culta e as outras varie- Cabeludinho dades linguísticas. Quando a Vó me recebeu nas férias, ela me apre- d) o relato fiel de episódios vividos por Cabeludinho sentou aos amigos: Este é meu neto. Ele foi estudar no durante as férias. Rio e voltou de ateu. Ela disse que eu voltei de ateu. § e) a valorização da dimensão lúdica e poética presente Aquela preposição deslocada me fantasiava de ateu. nos usos coloquiais da linguagem.

TAREFA MÍNIMA TAREFA COMPLEMENTAR t Leia o texto da aula. Caderno de Exercícios Caderno de Exercícios t Faça os exercícios 4 a 6. t Faça os exercícios 1 a 3.

TERCEIRÃO  8 86 LITERATURA

3_TERC_8_LIT.indd 86 9/9/13 10:52 AM LITERATURA BRASILEIRA CONTEMPORÂNEA  POESIA

1 Introdução Carlos Drummond de Andrade e o racionalismo da poesia de João Cabral de Melo Neto. Mas outras Uma das características da arte contemporânea é veias de expressão também se fortaleceram, adqui- o experimentalismo. Essa postura visa explorar novas rindo relevo e influência. Vejamos algumas delas. formas de expressão artística, que incluem os mais variados suportes. No exemplo abaixo, os grafiteiros 2 Poesia marginal paulistas Gustavo e Otávio Pandolfo, conhecidos co- mo OsGemeos, usam a parede monumental de uma Nos anos 1970, com o acirramento da censura du- avenida para mostrar a sua arte, que apresenta re- rante a ditadura militar e a dificuldade em se publicar quinte técnico, colorido e ambientações oníricas. Su- um livro de poesia, poetas buscaram meios pouco or- as imagens estranhas, povoadas de grandes todoxos de divulgar a sua arte. Poemas eram reprodu- per so nagens amarelas, já são reconhecidas interna- zidos de maneira artesanal e os próprios autores cionalmente como uma das mais interessantes mani- procuravam vendê-los na boemia das grandes cidades. festações das artes plásticas brasileiras do começo do Esse movimento foi chamado de “poesia marginal” século XXI. A aceitação do grafite como forma válida devido ao seu – por vezes – voluntário distanciamento de expressão artística atesta o pluralismo estético pre- dos círculos mais “oficiais” de circulação literária, co- dominante atualmente. mo as universidades e as editoras. Há pouca unidade A partir dos anos 1950, a poesia brasileira foi for- de temas e de estilos nos poetas chamados “margi- temente influenciada por algumas forças motrizes: a nais”, mas, de maneira geral, pode-se notar a transfigu- exploração da visualidade poética, na esteira pro- ração poética do cotidiano, e a presença de uma posta pelo Concretismo; a subjetividade crítica de linguagem francamente coloquial. © Paul Marotta/Getty Images Marotta/Getty Paul © OsGemeos. Pintura em um dos parques do Rose Kennedy Greenway, em , Estados Unidos.

LITERATURA 87 TERCEIRÃO  8

3_TERC_8_LIT.indd 87 9/9/13 10:52 AM Post-mortem o panfleta* que há em mim Quase morrer é assim: não é como o jornalista que há em ti uma cada vez mais crescente ojeriza com a “vidinha matéria paga [literária” o pateta que há em mim de par com a imorredoura memória de certas linhas, não é como o esteta que há em ti por exemplo, cana a la kant que durante o resto de tempo que me é concedido viver e na hora H da minha morte, o poeta que há em mim estampada na minha face esteja a legenda: é como o voo no homem pressentido. O que amas de verdade permanece, o resto é escória. CHACAL. In: 26 poetas hoje. Org. Heloísa Buarque de Hollanda. [...] Rio de Janeiro: Labor, 1976.

Zelar pelo deus Treme-Terra que meu coração devolveu * O termo aqui equivale a “panfletista”, ou seja, aquele que escre- Não cortejar a morte. ve panfletos, feitos com texto curto, violento e sensacionalista, Não perambular pelos cemitérios geralmente sobre assuntos políticos, impresso em folha avulsa ou folheto, e de distribuição limitada. nem brindar o luar patético com caveiras repletas de vinho tinto seco O poema de Chacal (codinome de Ricardo de Car- como um Byron-Castro Alves gótico e obsoleto. valho Duarte) é uma tomada de posição ante o cenário Sereno e cabeça dura – testa ruda – literário dos anos 1970. O poeta quer individualizar-se mirar de frente a caveira diante do mundo artístico e intelectual de seu tempo, e as tropas de vermes de prontidão por isso qualifica negativamente poetas, jornalistas, (como observo vermes dentro de um pêssego) estetas. O enunciador, ao caracterizar na última estrofe Mas por enquanto gargalhar da irrealidade da morte. o poeta que há dentro dele, se vale de uma comparação Gozar, gozar e gozar de caráter surrealista e elevado, acentuando a impreci- a exuberância órfica* das coisas são e leveza na sua atividade poética. em riba da terra debaixo do O olhar simples e pantaneiro: céu. SALOMÃO, Waly. Lábia. Rio de Janeiro: Rocco, 1998.

* Relativo a Orfeu, personagem da mitologia grega associada à poesia e à música.

O poeta baiano Waly Salomão explora nesse poe- ma os desejos de quem sobreviveu depois de ter enca- rado a morte. Daí a ironia do título: a expressão latina post-mortem (depois da morte) nomeia o poema de alguém que agora decide o que vai fazer com o tempo que lhe resta. O eu lírico se propõe a mergulhar na “exuberância órfica das coisas”, num desejo de fruir de

maneira plena o amor e aquilo que a arte e a poesia do © Marlene Bergamo/Folhapress mundo podem oferecer, sem preocupações com aqui- O poeta mato-grossense Manoel de Barros (1916) lo que ele qualifica de “vidinha literária”. explora a poesia das coisas simples e aparentemente O poeta carioca Chacal é outra das vozes mais sem importância. Criado em intenso contato com a significativas da poesia dos anos 1970: natureza do Pantanal, as referências a plantas e pe- quenos animais povoam a sua obra, marcada por o poeta que há em mim versos insólitos e fascinantes, por exemplo, “o es- não é como o escrivão que há em ti plendor da manhã não se abre com faca” ou “nossa funcionário autárquico maçã come Eva”. A estranheza de suas expressões o profeta que há em mim demonstra uma percepção atenta sobre a realidade, não é como a cartomante que há em ti permitindo ao leitor a surpresa de ver como novo o cigana fulana mundo há muito conhecido.

TERCEIRÃO  8 88 LITERATURA

3_TERC_8_LIT.indd 88 9/9/13 10:52 AM O catador À televisão Um homem catava pregos no chão. Teu boletim meteorológico Sempre os encontrava deitados de comprido, me diz aqui e agora ou de lado, se chove ou se faz sol. ou de joelhos no chão. Para que ir lá fora? Nunca de ponta. Assim eles não furam mais – o homem pensava. A comida suculenta Eles não exercem mais a função de pregar. que pões à minha frente São patrimônios inúteis da humanidade. como-a toda com os olhos. Ganharam o privilégio do abandono. Aposentei os dentes. O homem passava o dia inteiro nessa função de catar Nos dramalhões que encenas pregos enferrujados. há tamanho poder Acho que essa tarefa lhe dava algum estado. de vida que eu próprio Estado de pessoas que se enfeitam a trapos. nem me canso de viver. Catar coisas inúteis garante a soberania do Ser. Garante a soberania de Ser mais do que Ter. Guerra, sexo, esporte BARROS, Manoel de. Tratado geral das grandezas do ínfimo. – me dás tudo, tudo. Rio de Janeiro: Record, 2001. Vou pregar minha porta: já não preciso do mundo. O poema pode ser considerado um verdadeiro elo- gio da vida simples – o que, de certa maneira, retoma o PAES, José Paulo. Prosas seguidas de odes mínimas. São Paulo: Companhia das Letras, 2002. lugar-comum clássico do aurea mediocritas. O enun- ciador demonstra que o interesse pelas coisas inúteis O texto é uma ode à televisão. A ode é um gênero esconde uma grandeza de caráter ético, já que supera literário que tem como origem o canto elogioso dos a superficialidade de uma vida orientada apenas pelo poetas antigos aos vencedores dos jogos olímpicos. desejo de possuir bens. O “catador”, por isso, é um Embora o poema, a princípio, devesse ser um elogio homem livre, “soberano” de si mesmo. à televisão, causa estranheza que o enunciador abdi- que do mundo para cultivar apenas os prazeres que A tradição da ironia: José Paulo Paes o aparelho proporciona. A ironia é radical: preso aos simulacros de uma realidade aparentemente supe- José Paulo Paes rior, o eu lírico isola-se em sua ilusão, satisfeito como (1926 -1998) iniciou a um viciado que se afunda nos gozos de um entorpe- sua trajetória poética cente que acabará por levá-lo à morte. em 1947. Poeta dos mais profícuos e erudi- : a poesia do sublime e do baixo tos, Paes desenvolveu sua obra dialogando Hilda Hilst (1930-2004) com as propostas de iniciou sua trajetória lite- vanguarda e com a tra- rária ainda ligada aos pa-

© Claudia Guimarães/Folhapress dição. Um dos aspectos drões da poesia metafísica mais marcantes de seu trabalho é o olhar agudo e irô- da Geração de 45. Desde nico a respeito da realidade. Essa percepção se mani- os primeiros livros, a poe- festa por meio de poemas ora sintéticos – o que revela tisa abordou temas eleva- sua filiação à corrente modernista oswaldiana – ora dos como Deus, o amor e a extremamente visuais, como pudemos ver no poema morte, demonstrando do- “Epitáfio para um banqueiro”, transcrito na aula 53, mínio técnico e profundo sobre Poesia Concreta. Ao mesmo tempo, Paes domi- conhecimento da tradição. na com desenvoltura o verso metrificado e rimado. O Hilst também trabalhou autor foi ainda um dos nossos mais importantes tradu- com temas obscenos, con-

tores, vertendo para o português obras de grandes siderados “baixos” por © Lenise Pinheiro/Folhapress poetas da tradição ocidental, dos mais variados idio- boa parte da tradição crítica. É uma das poetisas mas: grego, latim, provençal, italiano, inglês, francês, mais consagradas do século XXI. Teve sua poesia alemão, espanhol, dentre outros. traduzida para diversos idiomas.

LITERATURA 89 TERCEIRÃO  8

3_TERC_8_LIT.indd 89 9/9/13 10:52 AM Isso de mim que anseia despedida tudo por um fio (para perpetuar o que está sendo) tudo feito Não tem nome de amor. Nem é celeste tudo estivesse no cio Ou terreno. Isso de mim é marulhoso tudo pisando macio E tenro. Dançarino também. Isso de mim tudo psiu É novo: Como quem come o que nada contém. A impossível oquidão do ovo. tudo em minha volta Como se um tigre anda às tontas Reversivo, como se as coisas Veemente de seu avesso fossem todas Cantasse mansamente. afinal de contas.

Não tem nome de amor. Nem se parece a mim. Transar bem todas as coisas Como pode ser isso? Ser tenro e marulhoso a Papai do Céu pertence, Dançarino e novo, ter nome de ninguém fazer as luas redondas E preferir ausência e desconforto Para guardar no eterno coração do outro. ou me nascer paranaense. HILST, Hilda. Cantares. São Paulo: Globo, 2002. A nós, gente, só foi dada essa maldita capacidade, Hilst retoma, com elegância e contemporaneida- transformar amor em nada. de, o velho tema da definição do amor. A dificuldade LEMINSKI, Paulo. Distraídos venceremos. em nomear as contradições sentimentais já se anun- São Paulo: Brasiliense, 1987. cia nos primeiros versos. Sem ter nome adequado para seu sentimento, o enunciador chama-o de “isso O poema expressa bem os valores da poesia de de mim”, e o associa a imagens ligadas à delicadeza, Leminski, como a exploração da visualidade – por mas carregadas de um aspecto contraditório, estra- meio de uma organização inusitada dos versos na nho e sempre surpreendente, como um tigre que página – e a linguagem simples e coloquial, cheia de canta manso ou o oco de um ovo. Um dos traços mais trocadilhos – como já se verifica no título. Sob essa relevantes de “isso de mim” é a disposição ao sacrifí- simplicidade se esconde, contudo, ecos da poesia cio e sofrimento, pois força o enunciador a preferir a clássica, como a apropriação da temática do descon- dor e a ausência para guardar na eternidade o “cora- certo do mundo: o enunciador apresenta a dificuldade ção do outro”. de compreender profundamente as coisas, atribuindo a Deus essa capacidade plena. Aos homens, resta-nos a capacidade nada edificante de transformar o amor Um lugar à parte: – o mais sublime dos sentimentos – em nada.

O curitibano Paulo Le- minski (1944 -1989) é um dos Poesia em diálogo com o mundo pop: poetas mais influentes deste começo de século XXI. Unin- do rigor técnico a uma dicção simples e precisa, ele soube tratar de temas cotidianos e profundos com lirismo denso. Vários de seus poemas são

© Luiz A. Novaes/Folhapress fortemente visuais, com ritmo leve e repletos de trocadilhos bem-humorados, que revelam a cada momento formas surpreendentes e

© Adriana Zehbrauskas/Folhapress significados inesperados embutidos nas palavras. Arnaldo Antunes (1960) é um artista multicultural: Por um lindésimo de segundo além de poeta respeitado, é compositor e cantor de su- tudo em mim cesso, com participação relevante no cenário da música anda a mil popular brasileira. Foi integrante do grupo de rock Ti- tudo assim tãs e segue sua trajetória musical em carreira solo com

TERCEIRÃO  8 90 LITERATURA

3_TERC_8_LIT.indd 90 9/9/13 10:52 AM shows e happenings no Brasil e no exterior. Sua poesia dos, dentre outros, por artistas como Marina Lima, nasce da inspiração concretista, mas, diferentemente Adriana Calcanhoto e João Bosco. Antonio Cicero é daquela corrente de vanguarda, busca um diálogo mais também filósofo. Sua linguagem, marcada por uma próximo com o grande público, por meio de uma lin- dicção elegante e clássica, aborda temas profundos guagem clara, que sutilmente aborda temas complexos, retirados ora de uma reflexão rigorosa sobre a existên- numa roupagem típica da arte contemporânea. cia, ora de um acontecimento casual, tendo como cená- rio a cidade do Rio de Janeiro. Os buracos do espelho o buraco do espelho está fechado Voz agora eu tenho que ficar aqui Orelha, ouvido, labirinto: com um olho aberto, outro acordado Perdida em mim a voz de outro ecoa. no lado de lá onde eu caí Minto: Perversamente sou-a. pro lado de cá não tem acesso CICERO, Antonio. Guardar. Rio de Janeiro: Record, 1996. mesmo que me chamem pelo nome mesmo que admitam meu regresso Este poema breve apresenta um elemento caro à toda vez que eu vou a porta some estética clássica: a maneira como o artista deve dialogar com a arte que existe previamente a ele. Pode ser con- a janela some na parede siderado uma pequena Arte poética, no sentido de uma a palavra de água se dissolve exposição dos procedimentos da criação poética. No na palavra sede, a boca cede texto, o enunciador afirma escutar uma voz que entra antes de falar, e não se ouve física e fisiologicamente em seu corpo. A incorporação já tentei dormir a noite inteira da voz do outro não se dá, contudo, de maneira passiva, quatro, cinco, seis da madrugada como um eco; pelo contrário: o poeta apropria-se ativa- vou ficar ali nessa cadeira mente dela, tornando-se a voz estranha que soava per- uma orelha alerta, outra ligada dida em si mesmo. A paronomásia (figura de linguagem que aproxima palavras de sons semelhantes, mas de o buraco do espelho está fechado significados diferentes) entre os termos “soa” (do verbo agora eu tenho que ficar agora soar) e “sou-a” acentua a indefinição do que era o outro fui pelo abandono abandonado e do que é agora o enunciador. aqui dentro do lado de fora Arnaldo Antunes. In: .

O poema mostra o forte desejo de autorreconheci- TEXTOS PARA A QUESTÃO 1 mento. O espelho, onde cada um de nós se reflete, expulsou e abandonou o enunciador, que agora espe- Digitações ra angustiadamente, “do lado de cá”, uma nova opor- A poética é uma máquina tunidade para se ver e entrar novamente em íntimo Há um código central contato consigo mesmo. Em que se digita ANULA É a máquina do nada Poesia e filosofia: Antonio Cicero Que anda ao contrário Da sua meta O poeta carioca Antonio A repetição é a morte Cicero (1945) conjuga em sua Noutro código lateral poesia o rigor da tradição Digita-se ENTRA com as notas seguras de E os cupins invadem o quarto uma poesia marcadamente Sebastião Uchoa Leite contemporânea. Assim co- 1. (Mack-SP) Assinale a alternativa correta. mo Arnaldo Antunes, ele tra- § a) O poema traz marcas da contemporaneidade tanto na balha de perto com o mundo forma escolhida pelo poeta (versos livres e brancos), da cultura popular, pois vá- como nas imagens utilizadas. rios de seus poemas foram b O texto recupera do estilo surrealista a valorização dos conhecidos pelo grande pú- aspectos técnicos de composição, como os efeitos so-

© Ana Carolina Fernandes/Folhapress blico por terem sido musica- noros, por exemplo, em detrimento do conteúdo.

LITERATURA 91 TERCEIRÃO  8

3_TERC_8_LIT.indd 91 9/9/13 10:52 AM c) A sintaxe fragmentada, apoiando-se em frases nomi- 2. (UEL-PR) Com base nos textos I e II, é correto afirmar: nais, é marca do estilo “telegráfico”, muito valorizado a) Em ambos os textos, há referências explícitas a uma fi- pelo modernista Oswald de Andrade. gura feminina como agente das ações mencionadas. d) Ao enaltecer a subjetividade do artista, o texto recupera b) A ênfase em uma ação tipicamente feminina revela-se aspecto significativo do estilo de João Cabral de Melo com mais clareza em “Corte” através da frase “Almoça-se Neto, poeta da terceira fase do Modernismo brasileiro. ao meio-dia”. e) A idealização do progresso tecnológico, o uso de “pa- § c) Em “Solar”, sobressai a ideia de cumplicidade entre o lavras em liberdade” e a ausência de pontuação, confir- sujeito lírico e a figura materna, que torna o cotidiano mando-se, assim, tratar-se de um texto do Futurismo. doméstico menos enfadonho. d) As autoras expõem posicionamentos feministas que TEXTOS PARA AS QUESTÕES 2 E 3 sugerem ser a subversão a melhor resposta à opressão masculina. Texto I e) Em “Solar”, há uma espécie de perturbação do sujeito Corte lírico com a inconstância da ação da figura materna. O dia segue normal. Arruma-se a casa. Limpa-se 3. (UEL-PR) Sobre o texto II, considere as afirmativas a seguir. em volta. Cumprimenta-se os vizinhos. Almoça-se I. O verbo cantar remete a uma prática que contrasta ao meio-dia. Ouve-se rádio à tarde. Lá pelas 5 horas, com o prosaico pouco expressivo do cotidiano. inicia-se o sempre. II. Os ingredientes enumerados – arroz, feijão-roxinho e MELLO, Maria Amélia. Corte. Minas Gerais, Belo Horizonte, molho de batatinhas – representam o descaso da n. 686, ano XIV, 24 nov. 1979. Suplemento Literário, p. 9. mãe com a família. III. O último verso é introduzido por uma conjunção que Texto II expressa o sentido de oposição. Solar IV. O texto é narrativo porque os atos de cozinhar e can- Minha mãe cozinhava exatamente: tar são mostrados em uma sequência cronológica. arroz, feijão-roxinho, molho de batatinhas. Estão corretas apenas as afirmativas: Mas cantava. a) I e II. d) I, II e IV. § PRADO, Adélia. O coração disparado. 3. ed. Rio de Janeiro: b) I e III. e) II, III e IV. Salamandra, 1984. p. 28. c) III e IV.

TAREFA MÍNIMA TAREFA COMPLEMENTAR t Leia o texto da aula. Caderno de Exercícios Caderno de Exercícios t Faça os exercícios 4 a 7. t Faça os exercícios 1 a 3.

TERCEIRÃO  8 92 LITERATURA

3_TERC_8_LIT.indd 92 9/9/13 10:52 AM LITERATURA LUSÓFONA CONTEMPORÂNEA

1 Muito além de Fernando Pessoa No entanto, esta polarização ainda não dá conta do panorama literário português, notadamente a Depois de um início de século vigoroso, com a partir da segunda metade do século XX. Ele nos re- geração de artistas reunidos em torno da revista Or- serva boas surpresas, como a poesia surrealista de pheu, lançada em 1915, a literatura portuguesa pare- Mário Cesariny, por exemplo, que buscou novos ca- ceu entrar em refluxo. Na verdade, o nome forte de minhos expressivos, embora sem fugir do ambiente Fernando Pessoa funciona como ímã, impedindo, político em que se encontrava. Outros nomes de por vezes, que se veja um cenário mais amplo. Vi- destaque na poesia foram: Sophia de Mello Breyner vendo sob regime ditatorial a partir de 1926, a cultu- Andresen, Jorge de Sena, Carlos de Oliveira, Eugé- ra portuguesa experimentou dois polos distintos de nio de Andrade, David Mourão Ferreira, Herberto manifestação. De um lado, a introspecção, marca Helder, E. M. de Melo e Castro, Al Berto, Nuno Júdi- registrada da segunda geração do Modernismo luso, ce, entre outros. cujo órgão de divulgação, a revista Presença, lançada No terreno da ficção, alguns de seus principais em 1927, trazia em seus primeiros números artigos representantes trilharam caminhos parecidos. Mi- de defesa de uma literatura psicologizante. De outro guel Torga fez do inconformismo seu principal moti- lado, o engajamento político, na etapa seguinte, a do vo, traduzindo-o em obras de caráter autobiográfico Neorrealismo, que teve na publicação do romance (Diário) e utilizando ainda o recurso da fábula (como Gaibéus, de Alves Redol, em 1939, seu ato inaugural. em Bichos). Vergílio Ferreira veio do Neorrealismo, mas logo derivou para um estilo filosófico, de teor existencialista, tratando de sentimentos contraditó- rios, como no romance Aparição. Trajetória seme- Primeiro número da re- lhante cumpriu José Cardoso Pires, buscando man- vista Presença (1927). ter-se distante de programas estéticos definidos, bem como da retórica narrativa para se concentrar no trabalho com a palavra. Agustina Bessa-Luís lan- çou, em 1954, o romance A sibila, com o qual ganhou lugar de destaque na ficção portuguesa do século. O livro sintetiza algumas das qualidades da escritora, como a sensibilidade no registro da cultura lusitana e, acima de tudo, um notável refinamento estilístico. Da geração seguinte, destaca-se Helder Macedo, cujo romance Pedro e Paulo (1998) mantém a referên- cia histórica ao tratar da trajetória de dois irmãos que © Biblioteca Geral da Universidade de Coimbra, Portugal viveram sob a ditadura salazarista. O panorama luso se amplia com nomes impor- tantes, surgidos na virada do século XX para o XXI. O escritor valter hugo mãe, que grafa seu nome com as iniciais em letras minúsculas, lançou em 2006 O remorso de Baltazar Serapião, contendo grande teor de inovação linguística. A temática urbana é a linha- gem em que se incluem Rui Zink e Inês Pedrosa, enquanto a ambientação rural mostra sua força na obra de José Riço Direitinho. Capa do romance Essa ampliação é ainda maior quando se considera Gaibéus, de Alves Re- os talentos surgidos em terras lusófonas, como os an- dol, cuja publicação golanos Agostinho Neto, José Luandino Vieira, Pepe- é tida como marco inaugural do Neorre- tela, José Eduardo Agualusa e Ondjaki, o moçambicano

alismo português. © Divulgação Carlos Cardoso e o cabo-verdiano Manuel Lopes.

LITERATURA 93 TERCEIRÃO  8

3_TERC_8_LIT.indd 93 9/9/13 10:52 AM Para representar uma produção tão ampla e im- O motorista olhou pelo retrovisor, julgou que o passa- portante, escolhemos aprofundar o estudo dos por- geiro não ouvira, já abria a boca para repetir, Para onde, tugueses José Saramago e António Lobo Antunes e mas a resposta chegou primeiro, ainda irresoluta*, suspen- do moçambicano . siva, Para um hotel, Qual, Não sei, e tendo dito, Não sei, soube o viajante o que queria, com tão firme convicção José Saramago como se tivesse levado toda a viagem a ponderar a esco- lha, Um que fique perto do rio, cá para baixo, Perto do rio José Saramago nasceu só se for o Bragança, ao princípio da Rua do Alecrim, não na aldeia de Golegã, em sei se conhece, Do hotel não me lembro, mas a rua sei 1922. De família humilde, fi- onde é, vivi em Lisboa, sou português, Ah, é português, lho de pais analfabetos, de- pelo sotaque pensei que fosse brasileiro, Percebe-se assim dicou-se a diversas ocupa- tanto, Bom, percebe-se alguma coisa, Há dezesseis anos ções para ganhar a vida: foi que não vinha a Portugal, Dezasseis anos são muitos, vai serralheiro mecânico, dese- encontrar grandes mudanças por cá, e com estas palavras nhista, modesto funcionário calou-se bruscamente o motorista. do serviço de saúde e da SARAMAGO, José. O ano da morte de Ricardo Reis. Portugal: Círculo de leitores, 1986. previdência social, mas, des- * Indecisa. de a infância, revelara forte

© Tuca Vieira/Folhapress interesse pela leitura, o que Nesse trecho, Ricardo Reis, o heterônimo clássico de o encaminhou posteriormente para o trabalho com as Fernando Pessoa, retorna a Lisboa. Recém-chegado, palavras, como editor, tradutor e jornalista. Sempre apanha um táxi e conversa com o motorista. A maneira defendeu pontos de vista bastante pessoais e polêmi- como o diálogo é apresentado pode causar estranha- cos, sem se preocupar em ser agradável aos podero- mento. O narrador introduz as vozes das personagens sos. Sua consagração total como escritor só viria em sem os tradicionais travessões. Mas isso não chega a 1982, com a publicação de Memorial do Convento. causar confusão: numa leitura atenta, é possível perce- Desde então a obra de José Saramago tem sido muito ber marcas nítidas de separação das vozes das persona- lida e discutida, o que fez dele o escritor contemporâ- gens e do narrador. Usa-se a vírgula seguida de uma neo mais influente do idioma. Em 1995, Saramago foi letra maiúscula, para indicar a troca das vozes. laureado com o prêmio Camões, um dos mais presti- giados do mundo lusófono. Três anos depois, a acade- Realismo fantástico mia sueca concedeu a ele o Prêmio Nobel de Literatura, No texto anterior, José Saramago usou como per- o primeiro concedido a um autor da língua portuguesa. sonagem um poeta inventado por Fernando Pessoa. O prestígio não livrou Saramago de intensas polêmi- No romance O ano da morte de Ricardo Reis, o heterô- cas. Devido ao seu livro O evangelho segundo Jesus nimo, depois de um autoexílio no Brasil, retorna a Cristo, foi duramente atacado por setores eclesiásticos Lisboa, onde vai assistir ao conturbado período histó- e por críticos que acusaram o autor – um ateu militante rico do ano de 1936, quando iniciava o período salaza- – de ter feito uma leitura subjetiva e distante dos câno- rista. Essa mistura entre ficção e realidade foi muito nes propostos pela Igreja. Devido às consequências explorada pelo grande romancista. Em Memorial do dessa polêmica, Saramago decidiu mudar-se de Portu- Convento, fatos e personagens históricos conhecidos gal para a ilha de Lanzarote, no arquipélago espanhol do século XVIII são entremeados a uma narrativa de das Canárias, próximo ao continente africano. Foi nes- caráter fantástico, com personagens dotadas de pode- sa inóspita ilha que o escritor faleceu, no ano de 2010, res sobrenaturais. É o caso de Blimunda, que tinha o aos 87 anos. estranho poder de ver as pessoas por dentro: Que poder é esse teu, Vejo o que está dentro dos O estilo corpos, e às vezes o que está no interior da terra, vejo o José Saramago criou um estilo único, em que incor- que está por baixo da pele, e às vezes mesmo por baixo porou o português erudito a formas e expressões tipi- das roupas, mas só vejo quando estou em jejum, perco camente orais. Uma das principais marcas de sua prosa o dom quando muda o quarto da lua, mas volta logo a é a maneira peculiar com que registra os diálogos de seguir, quem me dera que o não tivesse, Porquê, Porque suas personagens, por meio do uso pouco convencio- o que a pele esconde nunca é bom de ver-se, Mesmo nal dos sinais de pontuação, e da eliminação do traves- a alma, já viste a alma, Nunca a vi, Talvez a alma não são para indicar o discurso direto. Eis um exemplo: esteja afinal dentro do corpo, Não sei, nunca a vi, Será

TERCEIRÃO  8 94 LITERATURA

3_TERC_8_LIT.indd 94 9/9/13 10:52 AM porque não se possa ver, Será, e agora larga-me, tira a riado. A mulher do médico vivencia o absurdo de perna de cima de mim, que me quero levantar. enxergar quando todas as pessoas (da cidade, do SARAMAGO, José. Memorial do Convento. país, do mundo) são jogadas na bruta luta pela sobre- Portugal: Editorial Caminho, 1986. vivência, numa condição de animalidade total. O diálogo se dá entre Baltazar (conhecido como Se- O sol tinha rompido, brilhava nas poças de água forma- te-Sóis) e Blimunda (conhecida como Sete-Luas) pou- das entre o lixo, via-se melhor a erva que crescia entre as co tempo depois de se conhecerem. Ambos são pobres pedras da calçada. Havia mais gente fora. Como se orien- e suspeitos aos olhos da poderosa Inquisição. Em outro tarão eles, perguntou-se a mulher do médico. Não se orien- eixo narrativo, o leitor vai conhecer o dia a dia do rei D. tavam, caminhavam rente aos prédios com os braços es- João V, que, para pagar uma promessa, manda erguer tendidos para a frente, continuamente esbarravam uns nos em 1717, na cidadezinha de Mafra, um convento e um outros como as formigas que vão no carreiro, mas quando palácio monumentais financiados com o ouro que che- tal sucedia não se ouviam protestos, nem precisavam fa- gava fartamente do Brasil. Mais de 50 mil homens tra- lar, uma das famílias despegava-se da parede, avançava balharam em condições desumanas nessa construção. ao comprido da que vinha em direção contrária, e assim O evidente contraste entre o luxo e a miséria no século seguiam e continuavam até ao próximo encontro. De vez XVIII dá ao livro uma dimensão social que transcende em quando paravam, farejavam à entrada das lojas, a sen- seus limites temporais e serve de denúncia da explora- tir se vinha cheiro de comida, qualquer que fosse, depois ção do trabalho até nos dias de hoje. prosseguiam o seu caminho, viravam uma esquina, desa- Blimunda e Baltazar envolveram-se com o padre pareciam da vista, daí a pouco surgia dali outro grupo, não brasileiro Bartolomeu de Gusmão – personagem que traziam ar de haver encontrado o que buscavam. existiu historicamente. O padre, que era um livre- SARAMAGO, José. Ensaio sobre a cegueira. -pensador, sonhava em voar com um aparelho em São Paulo: Companhia das Letras, 1995. forma de ave, a “passarola”, e precisava que Blimun- O narrador mostra o impressionante quadro de da o ajudasse a recolher as “vontades” de dentro das desolação a que chegara a humanidade após a epide- pessoas. Segundo o padre, sem esse fluido etérico mia. A doença é marcada pelo branco, que é a cor as- seu aparelho nunca deixaria o chão. sociada à razão, à luz. A cegueira branca parece indicar Como se pode ver, Saramago entrelaça de maneira os exageros a que chegou a moderna sociedade racio- sutil e convincente a mais aberta fantasia com referên- nalista. O absurdo da cegueira branca se acentua pela cias precisas, renovando o gênero do romance histórico. total ausência de explicações sobre as causas da doen- ça ou suas possíveis curas, como a indicar que a ordem As grandes alegorias da modernidade em que nós vivemos pode também ser subvertida radi- Saramago não se resume a calmente, transformando as pessoas, sem distinção de um escritor que resgata tem- classe ou raça, num único conjunto de seres lutando pos passados. Faz também pela sobrevivência. Basta pensar num desastre ecoló- grandes alegorias do presente, gico de dimensões mundiais. em que se esboça forte pessi- mismo, mas em que não se António Lobo Antunes apaga a chama daquilo que há de mais elevado na condição António Lobo Antunes humana: o amor e a arte. Bom (1942) nasceu em Lisboa e

© Divulgação exemplo disso é o romance seguiu a carreira da Medici- Cartaz do filme Ensaio sobre Ensaio sobre a cegueira. Numa na, especializando-se em a cegueira, de Fernando Mei- relles, inspirado no romance cidade e num tempo impreci- Psiquiatria. Na condição de homônimo de José Saramago. sos, alastra-se uma estranha médico, serviu em Angola epidemia de cegueira, em que durante a guerra civil, entre os doentes só tinham a cor branca diante dos olhos, 1971 e 1973, experiência que como se estivessem mergulhados em um “mar de marcaria profundamente

leite”. Somente a mulher do médico que cuidou dos © Eric Fougere/Kipa/Corbis/LatinStock sua obra literária. Mesmo primeiros doentes não ficou cega e, assim, pôde tes- mantendo a dedicação à Medicina (disse certa vez temunhar os mais vis horrores a que os humanos que continuava a ir ao hospital apenas para não se foram rebaixados. O ditado que diz “em terra de ce- sentir maluco), Lobo Antunes é bastante reconheci- go, quem tem um olho é rei” é gritantemente contra- do por sua ficção.

LITERATURA 95 TERCEIRÃO  8

3_TERC_8_LIT.indd 95 9/9/13 10:52 AM Dramas humanos refere um lugar distante; de outro, um rebaixamento físico e moral – a degradação provocada pela expe- Em suas obras, António Lobo Antunes aborda riência trágica da guerra de conquista e de coloniza- preferencialmente temas relacionados à morte, à soli- ção. Há, ainda, um outro sentido pertinente ao enredo dão, à frustração, às dificuldades das relações huma- da obra: entre os membros do Movimento Popular de nas. Tais dramas são ambientados na vida burguesa Libertação de Angola (MPLA), um dos grupos de de Lisboa, da qual é originário o próprio autor. Suas guerrilha organizados na luta pela independência, a influências mais evidentes são: os cinemas norte- expressão era usada para qualificar exatamente os -americano e italiano, o ritmo do jazz e alguns escrito- traidores. Assim, o título denunciaria o estigma de res que o encantaram na adolescência, como Céline, quem se sente traído por seu país, e traidor dos pró- Hemingway, Sartre, Camus, Júlio Verne, etc. A gran- prios ideais. de presença de referências estrangeiras se deve, co- mo ele mesmo sugere, à sua origem parte brasileira O que fizeram do meu povo, O que fizeram de nós (um avô) e parte alemã (uma avó). sentados à espera nesta paisagem sem mar, presos por Entre suas obras, contam-se: Memória de elefante três fieiras1 de arame farpado numa terra que nos não (1979), Os cus de Judas (1979), Conhecimento do inferno pertence, a morrer de paludismo2 e de balas cujo per- (1980), O manual dos inquisidores (1988), Fado alexan- curso silvado3 se aparenta a um nervo de nylon que vi- drino (1983), O esplendor de Portugal (1997), Exortação bra, alimentados por colunas4 aleatórias cuja chegada aos crocodilos (1999) e Não entres tão depressa nessa depende de constantes acidentes de percurso, de em- noite escura (2000). boscadas e de minas, lutando contra um inimigo invi- sível, contra os dias que se não sucedem e indefinida- A guerra como motivo de ficção mente se alongam, contra a saudade, a indignação e o A colonização portuguesa em Angola teve início no remorso, contra a espessura das trevas opacas, tal um final do século XV. Durante a ditadura do Estado Novo, véu de luto, e que puxo para cima da cabeça a fim de 5 que se prolongou no país de 1926 a 1974, os órgãos de dormir, como na infância utilizava a bainha do lençol repressão interna também estendiam seus tentáculos para me defender das pupilas de fósforo azul dos meus às colônias. Muitos grupos locais de resistência ao do- fantasmas. mínio lusitano foram organizados, como o Movimento [...] Talvez a guerra tenha ajudado a fazer de mim Popular Libertação de Angola (MPLA). Durante as dé- o que sou hoje e que intimamente recuso: um solteirão cadas de 1960 e 1970, a manutenção da guerra colonial melancólico a quem se não telefona e cujo telefonema minava as bases do governo autoritário, cada vez mais ninguém espera, tossindo de tempos a tempos para se 6 frágeis. Com o fim da ditadura lusa, em 25 de abril de imaginar acompanhado, e que a mulher a dias acabará 7 1974, iniciou-se o processo de desmontagem do apara- por encontrar sentado na cadeira de baloiço em cami- 8 to colonial, e a independência de Angola foi finalmente sola interior , de boca aberta, roçando os dedos roxos 9 proclamada em 1975. no pelo cor-de-novembro da alcatifa . Em seus primeiros livros, publicados nos anos 1970, ANTUNES, António Lobo. Os cus de Judas. 19. ed. Lisboa: António Lobo Antunes compõe um painel brutal e áci- Publicações Dom Quixote, 1997. do da guerra angolana. As feridas ainda estavam aber- 1. Fileira. tas entre os portugueses e esses livros se constituíram 2. O mesmo que malária, doença aguda causada por parasitas. em fontes de reflexão sobre toda a sociedade lusa. 3. Que produz som agudo. 4. Grupo de soldados. Os cus de Judas 5. Dobra de tecido. O romance Os cus de Judas 6. Faxineira. 7. Cadeira de balanço. é a transposição ficcional de 8. Camiseta. uma experiência efetiva do au- 9. Tapete. tor: sua participação como mé- dico militar na guerra que A narrativa se desenvolve como um grande mo- opôs o exército português à nólogo do protagonista, que conversa em um bar guerrilha de Angola, então co- com uma mulher cuja fala não aparece jamais. Em lônia de Portugal. O título, pro- seu discurso, o narrador rememora a experiência da positadamente chulo, sugere guerra, cujas marcas se estendem ao presente e de- algumas das linhas fundamen- terminam a visão cética que ele tem da vida e da so-

© Divulgação/Editora Objetiva tais do romance. De um lado, ciedade. No trecho, percebe-se a mistura da perspec-

TERCEIRÃO  8 96 LITERATURA

3_TERC_8_LIT.indd 96 9/9/13 10:52 AM tiva social, na referência à guerra, com o intimismo, Terra sonâmbula – um lugar destruído pelo colonialismo presente nas considerações pessoais que desenvolve. português O estilo caudaloso reproduz de forma expressiva a É estimado que um mi- angústia que toma conta do narrador em seu relato lhão de moçambicanos te- desesperado da experiência vivida e que impregna nham morrido na guerra sua existência. civil em consequência dos conflitos internos posterio- 2 Literatura lusófona africana res à libertação do país em 1975. Terra sonâmbula é um Há um grupo de países africanos que guardaram a romance que trata da ne- língua como herança colonial e possuem uma quanti- cessidade de reconstrução dade significativa de obras e autores importantes. de um local destruído pela Esses artistas têm revelado ao mundo uma realidade violência. muito marcada pelas consequências das lutas san- O menino Muidinga e o

grentas travadas pela independência política e tam- © Divulgação/Companhia das Letras velho Tuahir, representantes bém suas guerras internas oriundas desses conflitos. de duas gerações, de dois tempos diferentes no mes- mo lugar, andam juntos por uma estrada, acreditan- Mia Couto do que ela possa conter alguma promessa de futuro. Em um ônibus incendiado, que serve de abrigo temporário aos dois, encontram, entre os corpos carbonizados, o diário de Kindzu, que procurava os naparamas, guerreiros tradicionais abençoados pe- los feiticeiros. Enquanto o menino segue em busca de suas raízes, é narrada em flashback a trajetória de Kindzu. As duas histórias acabam por fundir-se em uma mensagem de esperança. Repleta de metáforas líricas, Terra sonâmbula é uma obra otimista, na qual predominam a busca e o sonho em meio a um lugar em que impera a morte, a sujeira e o céu cinza. O que verdadeiramente se

© Karime Xavier/Folhapress procura é a identidade moçambicana. Contista, poeta e romancista moçambicano.

Filho de portugueses, Mia Couto nasceu na Beira, Naquele lugar, a Guerra tinha morto a Estrada. Pelos em Moçambique, em 1955. Cursou Medicina até o caminhos só as hienas se arrastavam, focinhando entre terceiro ano, quando começou a atuar como jornalis- cinzas e poeiras. A paisagem se mestiçara de tristezas ta, impulsionado pela militância na Frente de Liber- nunca vistas, em cores que se pegavam à boca. Eram tação de Moçambique. cores sujas, tão sujas que tinham perdido toda a leveza, Mia Couto formou-se em Biologia e trabalha atual- esquecidas da ousadia de levantar asas pelo azul. Aqui, mente na reserva de Inhaca, em Moçambique. Acredi- o céu se tornara impossível. E os viventes se acostuma- ta que se manter ativo em diferentes profissões é uma ram ao chão, em resignada aprendizagem da morte. forma de estar aberto para o mundo. A estrada que agora se abre a nossos olhos não se É um dos principais escritores africanos e também entrecruza com outra nenhuma. Está mais deitada que um dos mais traduzidos, comparado a Gabriel García os séculos, suportando sozinha toda a distância. Pelas Márquez e Guimarães Rosa. Seu romance Terra sonâm- bermas1 apodrecem carros incendiados, restos de pilha- bula foi considerado um dos dez melhores livros africa- gens. Na savana em volta, apenas os embondeiros2 con- nos do século XX. Em 1999, o autor recebeu o prêmio templam o mundo a desflorir3. Vergílio Ferreira pelo conjunto de sua obra e, em 2007, Um velho e um miúdo vão seguindo pela Estrada. o prêmio União Latina de Literaturas Românicas. Andam bambolentos4 como se caminhar fosse seu único Um olhar sobre duas obras, de características serviço desde que nasceram. Vão para lá de nenhuma diferentes e complementares do escritor africano, parte, dando o vindo por não ter ido, à espera do adian- ajuda a perceber o estilo particular desenvolvido no te. Fogem da Guerra, dessa Guerra que contaminara trabalho literário de Mia Couto. toda a sua terra. Vão na ilusão de, mais além, haver um

LITERATURA 97 TERCEIRÃO  8

3_TERC_8_LIT.indd 97 9/9/13 10:52 AM refúgio tranquilo. Avançam descalços, suas vestes têm a Me aproximava do prédio e já me aranhava na mul- mesma cor do caminho. tidão. Coisa de inacreditar: olhavam todos para cima. COUTO, Mia. Terra sonâmbula. São Paulo: Quando olhei os céus, ainda mais me perturbei: lá esta- Companhia das Letras, 2007. va, pairando como águia-real, o Zuzé Neto. O próprio 1. Passagens estreitas que separam canais, trincheiras ou fossos. José Antunes Marques Neto, em artes de aeroanjo. Es- 2. Árvore nativa da região tropical da África. tava caindo? Se sim, vinha mais lento que o planar do 3. Neologismo que significa: secar, definhar, entristecer, murchar. planeta pelos céus. 4. Neologismo que significa: com o corpo “bambo”, sem firmeza. Atirara-se quando? Já na noite anterior, mas o povo O texto pode ser considerado um bom exemplo só notara no sequente dia. Amontara-se logo a mundi- de prosa poética. Com claras influências de Guima- dão e, num fósforo, se fabricaram explicações, episte- rães Rosa, Mia Couto desenha um panorama triste e, mologias4. Que aquilo provinha de ele ter existência ao mesmo tempo lírico, da situação em que se en- limpa: lhe dava a requerida leveza. Fosse um político e, contram suas personagens. O tom que predomina com o peso da consciência, desfechava logo de focinho. no fragmento é, apesar de tudo, esperançoso, de Outros se opunham: naquele estado de pelicano, o ci- encontro de um refúgio tranquilo. Os andarilhos se dadão fugia era de suas dívidas. Ninguém cobra no ar. confundem não apenas com a terra da estrada, mas Houve até versão dedicadamente cristã. Um miro- com o próprio país a que pertencem. É possível iden- ne5, longilongo, vestido como se coubesse numa só tificar exemplos de neologismos como bambolen- manga, bradejou apontando o firmamento: tos, cujos significados se depreendem do contexto Aquilo, meus senhores, é o novo Cristo. em que são aplicados, contribuindo para uma rique- COUTO, Mia. O fi o das missangas. za sonora que traduz de forma peculiar o universo São Paulo: Companhia das Letras, 2009. que descreve. 1. Neologismo que significa: rondando insistentemente. 2. Apertava em volta, diminuía o calibre. O fio das missangas 3. Solução alcalina, detergente. Da mesma forma que o romance Terra sonâmbu- 4. Teoria do conhecimento. la, o livro de contos O fio das missangas também tem 5. Observador, testemunha. Moçambique como cenário principal. Os textos da O narrador, nesse trecho, observa o amigo que, obra abordam principalmente o universo feminino, numa situação insólita, permanece flutuando ao ten- retratando mulheres condenadas ao esquecimento tar se jogar do alto de um edifício. O trecho exempli- ou maltratadas pelos homens que as cercam. São 29 fica tanto a exploração do realismo mágico nos contos pequenos contos em que o autor se empenha para do autor, como a presença do humor. O uso de neo- criar um panorama da vida, dos hábitos e da cultura logismos merece especial atenção, palavras como moçambicana. depressavam e mundidão são usadas como repre- Continuando a fazer uso de neologismos, aqui as sentação de uma oralidade específica e revelam a palavras inventadas funcionam também como ins- forma de expressão das personagens, contribuindo trumento de interpretação do ambiente das narrati- para apresentá-las ao leitor. vas e ganham múltiplos significados que revelam aspectos da alma do país. Além disso, há ainda espa- ço para o realismo mágico e também para a explora- TEXTO PARA A QUESTÃO 1 ção do humor de algumas situações. No trecho a seguir, do romance Ensaio sobre a cegueira, O homem cadente de José Saramago, um deficiente visual dá conta de co- Quando me vieram chamar, nem acreditei: mo estava o mundo depois que todas as pessoas foram — É Zuzézinho! Está caindo do prédio. acometidas da cegueira branca: E as gentes, em volta, se depressavam para o suce- Os que andam em grupo, como nós, como quase dido. Me juntei às correrias, a pergunta zaranzeando1: toda a gente, quando temos de procurar comida somos o homem estava caindo? Aquele gerúndio era um des- obrigados a ir juntos, é a única maneira de não nos per- mando nas graves leis da gravidade: quem cai, já caiu. dermos uns dos outros, e como vamos todos, como nin- Enquanto corria, meu coração se constringia2. Ante- guém ficou a guardar a casa, o mais certo, supondo que via meu velho amigo estatelado na calçada. Que suce- tínhamos conseguido dar com ela, é estar já ocupada dera para se suicidar, desabismado? Que tropeção der- por outro grupo que também não tinha podido encon- rubara a sua vida? Podia ser tudo: os tempos de hoje são trar a sua casa, somos uma espécie de nora* às voltas, lixívia3, descolorindo os encantos. ao princípio houve algumas lutas, mas não tardámos a

TERCEIRÃO  8 98 LITERATURA

3_TERC_8_LIT.indd 98 9/9/13 10:52 AM perceber que nós, os cegos, por assim dizer, não temos barba é a floresta do Chalala2 a resistir ao napalm3 praticamente nada a que possamos chamar nosso, a da gilete, um grande rumor de trópicos ensanguen- não ser o que levarmos no corpo, A solução estaria em tados cresce-me nas vísceras, que protestam. viver dentro duma loja de comidas, ao menos enquanto ANTUNES, António Lobo. Os cus de Judas. elas durassem não seria preciso sair, Quem o fizesse, o Rio de Janeiro: Objetiva, 2003. mínimo que lhe poderia acontecer era nunca mais ter 1. Localidade angolana. um minuto de sossego, digo o mínimo porque ouvi falar 2. Localidade angolana. do caso de uns que o tentaram, fecharam-se, trancaram 3. Substância usada na fabricação de bombas incendiárias. as portas, mas o que não puderam foi fazer desaparecer Que recurso estilístico o narrador utiliza para aproximar o cheiro da comida, juntaram-se fora os que queriam a guerra de seu cotidiano? Cite dois exemplos. comer, e como os de dentro não abriram, pegou-se fogo O narrador recorre a uma série de metáforas da guerra à loja, foi remédio santo, eu não vi, contaram-me, de que a associam com ações corriqueiras do cotidiano, toda a maneira foi remédio santo, que eu saiba ninguém mais se atreveu, [...] como o simples ato de se barbear relatado no trecho: SARAMAGO, José. Ensaio sobre a cegueira. “um centímetro mentolado de guerra” (isto é, pasta de São Paulo: Companhia das Letras, 1995. dentes), “a espuma verde-escura dos eucaliptos de * Neste caso, a palavra nora designa um mecanismo composto de uma roda que faz girar a corda a que estão presos recipientes Ninda”, “a minha barba é a floresta do Chalala”, “napalm para tirar água de poços ou cisternas. da gilete”. Tais metáforas criam a alegoria de uma guerra 1. O trecho apresenta um diálogo em discurso direto. Con- que impregna o indivíduo, tanto em suas atitudes banais tudo, o narrador omite os verbos e sinais como traves- sões ou aspas para indicar a alternância da fala entre os como em sua própria constituição física, como mostra o interlocutores. Quais as marcas textuais que evidenciam trecho: “um grande rumor de trópicos ensanguentados a troca das falas entre as personagens? A partir desta cresce-me nas vísceras, que protestam”. constatação, localize o trecho onde a fala da primeira personagem é interrompida por um comentário do in- terlocutor. 4. Uma das personagens de O fio das missangas, de Mia As marcas textuais que evidenciam a troca de falas Couto, era desprezada pelo marido. Assinale a opção em entre as personagens é uma vírgula seguida de uma que a passagem do texto NÃO caracteriza o estado de palavra com inicial maiúscula. O comentário aposto à submissão e passividade vivido por ela: a) “Hoje será como todos os dias: lhe falarei, junto ao fala da primeira personagem é “A solução estaria em leito, mas ele não me escutará. Não será essa a dife- viver dentro duma loja de comidas, ao menos enquanto rença. Ele nunca me escutou.” elas durassem não seria preciso sair”. b) “Onde vivo não é na sombra. É por detrás do sol, onde toda a luz há muito se pôs.” c) “Agora, pelo menos, já não sou mais corrigida. Já não recebo enxovalho, ordem de calar, de abafar o riso.” 2. A que condição os seres humanos são rebaixados após § d) “Amanhã, tenho que me lembrar para não preparar o a epidemia de cegueira branca? cesto da visita.” Os seres humanos são rebaixados a uma condição de e) “Como a pedra, que não tem espera nem é esperada, fiquei sem idade.” animais lutando pela sobrevivência. Nessa fábula, os valores que orientam a atual sociedade de consumo – como o luxo e a sofisticação – são completamente irre- levantes. TAREFA MÍNIMA t Leia o texto da aula. Caderno de Exercícios 3. (Unicamp-SP) Leia a seguinte passagem de Os cus de t Faça os exercícios 1 a 4. Judas, de António Lobo Antunes: TAREFA COMPLEMENTAR Deito um centímetro mentolado de guerra na es- Caderno de Exercícios cova de dentes matinal, e cuspo no lavatório a espu- t Faça os exercícios 5 a 8. ma verde-escura dos eucaliptos de Ninda1, a minha

LITERATURA 99 TERCEIRÃO  8

3_TERC_8_LIT.indd 99 9/9/13 10:52 AM TERCEIRÃO  8 100 LITERATURA

3_TERC_8_LIT.indd 100 9/9/13 10:52 AM