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Ano LI, número 40 (2.665) Cidade do Vaticano terça-feira 6 de outubro de 2020

Diante do túmulo de São Francisco de Assis Papa assinou a encíclica «Fratelli tutti» Uma mensagem de fraternidade universal

Somos todos irmãos? A urgência de parar e refletir

Andrea Monda A encíclica Fratelli tutti chega co- mo gota de água que cai numa terra deserta, como raio de luz que atravessa “as sombras de um mun- do fechado”. Este é o título do primeiro capítulo da nova, tercei- ra, encíclica do Papa Francisco, dedicada à fraternidade e à amiza- de social, que o Papa ontem quis oferecer aos fiéis reunidos na pra- ça de São Pedro na “forma” da edição especial de “L’O sservatore Romano” que voltou a ser impres- so em papel mas com um novo formato. Mas vamos prosseguir passo a passo. Em primeiro lugar, o facto de ter deixado o Vaticano, a primeira vez desde o lockdown provocado pela pandemia, e de ter ido a As- sis para assinar a Carta diante do túmulo de São Francisco, que mais uma vez, após a Laudato si’, há cinco anos, é fonte de inspira- ção para o seu pontificado, tem uma força simbólica tão óbvia que não precisa de outras explicações. Fratelli tutti é um texto podero- so, que soa como um grito num momento de alarme e esperança, e oferece aos leitores uma visão, um horizonte grande, que transmite O Papa foi a Assis para assinar a sua cisco, após uma breve visita a Spel- clica do seu pontificado — após a confiança e desperta o desejo de nova encíclica Fratelli tutti, sobre a lo, na diocese de Foligno, onde se Lumen fidei, de 29 de junho de 2013, se comprometer com o bem co- fraternidade e a amizade social. À encontrou com a comunidade das ea Laudato si’, de 24 de maio de mum, com os outros, que são to- pequena cidade da Úmbria, o Pontí- Clarissas. 2015 — cujo texto foi divulgado de- dos, ninguém excluído, nossos ir- fice chegou de carro no início da Diante do túmulo do Pobrezinho pois do meio-dia de domingo, 4 de mãos. tarde de sábado, 3 de outubro, vés- Francisco celebrou a Missa, no final outubro, no final do Angelus na A encíclica está dividida em oito pera da festa litúrgica de São Fran- da qual assinou a terceira carta encí- praça de São Pedro. capítulos que, após o primeiro que analisa, de forma lúcida e sem descontos, a situação em que o mundo se encontra hoje, um mun- do que parece estar a caminhar para o fechamento porque “a so- ciedade cada vez mais globalizada NESTE NÚMERO nos torna próximos, mas não ir- mãos” (a citação é da Caritas in Pág. 2: Síntese da carta encíclica do Santo Padre Francisco “Fratelli tutti”; pág. 3: Palavras do Papa veritate de Bento XVI, um dos tex- no final da missa em Assis; Fitar os outros como irmãos e irmãs para nos salvar a nós e ao mundo, tos mais citados pela encíclica), por Andrea Tornielli; pág. 4: Audiência ao Círculo de São Pedro; Mensagem à CCEE; pág. 5: Au- desenvolve-se num sentido positi- diência geral de quarta-feira; pág. 6: Como uma «biblioteca de Cristo» , por Gianfranco Ravasi; vo e pró-ativo a fim de “pensar e págs. 7-11: Carta Apostólica do Santo Padre Francisco no XVI centenário da morte de São Jeróni- gerar um mundo aberto” (cap. 3) mo; pág. 12: Missa do Pontífice para o Corpo da Gendarmaria; pág. 13: Mensagem do Papa por e lançar as bases para “a melhor ocasião do centenário da aprovação canónica da congregação de São Miguel Arcanjo; pág. 14: Dis- p olítica”(cap. 5) e criar as condi- curso à Inspetoria de segurança pública do Vaticano; pág. 15: Informações; Promulgação de decre- ções para “o diálogo e a amizade tos; Credenciais da embaixadora chefe da delegação da União Europeia; pág. 16: Angelus de do- so cial”(cap. 6) e abrir “caminhos mingo, 4 de outubro. de um novo encontro” (cap. 7), a fim de chegar à conclusão que su-

CO N T I N UA NA PÁGINA 4 página 2 L’OSSERVATORE ROMANO terça-feira 6 de outubro de 2020, número 40

Síntese da carta encíclica do Santo Padre Francisco sobre a fraternidade e a amizade social “Fratelli tutti”

Fraternidade e amizade social são os por Francisco, que se contrapõe ao caminhos indicados pelo Pontífice para «populismo» que ignora a legitimi- construir um mundo melhor, mais justo dade da noção de «povo», atraindo e pacífico, com o compromisso de todos: consensos a fim de instrumentalizar pessoas e instituições. Reafirmado com ao serviço do seu projeto pessoal vigor o não à guerra e à globalização (159). Mas a melhor política é tam- da indiferença. bém a que protege o trabalho, «uma dimensão indispensável da vida so- Quais são os grandes ideais mas cial» e procura assegurar que cada também os caminhos concretos para um tenha a possibilidade de desen- aqueles que querem construir um volver as suas próprias capacidades mundo mais justo e fraterno nas (162). A verdadeira estratégia contra suas relações quotidianas, na vida a pobreza, afirma a Encíclica, não social, na política e nas instituições? visa simplesmente a conter os neces- Esta é a pergunta à qual pretende sitados, mas a promovê-los na pers- responder, principalmente, “Fr a t e l l i petiva da solidariedade e da subsi- tutti”: o Papa define-a como uma diariedade (187). A tarefa da política, «Encíclica Social» (6) que toma o além disso, é encontrar uma solução seu título das «Admoestações» de para tudo o que atenta contra os di- São Francisco de Assis, que usava reitos humanos fundamentais, tais essas palavras «para se dirigir a to- como a exclusão social; tráfico de dos os irmãos e irmãs e lhes propor órgãos, e tecidos humanos, armas e uma forma de vida com sabor do O momento extraordinário de oração em tempos de pandemia presidido pelo Papa Francisco drogas; exploração sexual; trabalho Evangelho» (1). A Encíclica tem co- no adro da basílica de São Pedro (27 de março de 2020) escravo; terrorismo e crime organiza- mo objetivo promover uma aspira- do. Forte o apelo do Papa para eli- ção mundial à fraternidade e à ami- minar definitivamente o tráfico de zade social. No pano de fundo, há a que saiba incluir, integrar e levantar gitimamente contraída deve ser pa- seres humanos, «vergonha para a pandemia da Covid-19 que — re v e l a aqueles que sofrem (77). O amor ga, espera-se, no entanto, que isto humanidade», e a fome, porque é Francisco — «irrompeu de forma constrói pontes e nós «somos feitos não comprometa o crescimento e a «criminosa» porque a alimentação é inesperada quando eu estava escre- para o amor» (88), acrescenta o Pa- subsistência dos países mais pobres «um direito inalienável» (188-189). vendo esta carta». Mas a emergência pa, exortando em particular os cris- (126). A política da qual há necessidade, sanitária global mostrou que «nin- tãos a reconhecerem Cristo no rosto Ao tema das migrações é, ao in- sublinha ainda Francisco, é aquela guém se salva sozinho» e que che- de cada pessoa excluída (85). O vés, dedicado em parte o segundo e centrada na dignidade humana e gou realmente o momento de «so- princípio da capacidade de amar se- todo o quarto capítulo, «Um coração que não está sujeita à finança por- nhar como uma única humanidade», gundo «uma dimensão universal» aberto ao mundo inteiro»: com as suas que «o mercado por si só, não resol- na qual somos «todos irmãos». (7- (83) é também retomado no terceiro «vidas dilaceradas» (37), em fuga ve tudo»: os «estragos» provocados 8). capítulo, «Pensar e gerar um mundo das guerras, perseguições, catástrofes pela especulação financeira mostra- No primeiro de oito capítulos, in- aberto»: nele, Francisco exorta cada naturais, traficantes sem escrúpulos, ram-no (168). Assumem, portanto, titulado »As sombras dum mundo fe- um de nós a «sair de si mesmo» pa- arrancados das suas comunidades de particular relevância os movimentos chado», o documento debruça-se so- ra encontrar nos outros «um acres- origem, os migrantes devem ser aco- populares: verdadeiros «torrentes de bre as muitas distorções da época centamento de ser» (88), abrindo- lhidos, protegidos, promovidos e in- energia moral», devem ser envolvi- contemporânea: a manipulação e a nos ao próximo segundo o dinamis- tegrados. Nos países destinatários, o dos na sociedade, de uma forma co- deformação de conceitos como de- mo da caridade que nos faz tender justo equilíbrio será entre a proteção ordenada. Desta forma — afirma o mocracia, liberdade, justiça; o egoís- para a «comunhão universal» (95). dos direitos dos cidadãos e a garan- Papa —, pode-se passar de uma polí- mo e a falta de interesse pelo bem Afinal — recorda a Encíclica — a es- tia de acolhimento e assistência aos tica «para» os pobres para uma po- comum; a prevalência de uma lógica tatura espiritual da vida humana é migrantes (38-40). Especificamente, lítica «com» e «dos» pobres (169). de mercado baseada no lucro e na medida pelo amor que nos leva a o Papa aponta algumas «respostas Outro desejo presente na Encíclica cultura do descarte; o desemprego, o procurar o melhor para a vida do indispensáveis» especialmente para diz respeito à reforma da Onu: pe- racismo, a pobreza; a desigualdade outro (92-93). O sentido da solida- aqueles que fogem de «graves crises rante o predomínio da dimensão de direitos e as suas aberrações co- riedade e da fraternidade nasce nas humanitárias»: incrementar e simpli- económica, de facto, a tarefa das mo a escravatura, o tráfico de pes- famílias que devem ser protegidas e ficar a concessão de vistos; abrir cor- Nações Unidas será dar uma real soas, as mulheres subjugadas e de- respeitadas na sua «missão educativa redores humanitários; oferecer aloja- concretização ao conceito de «famí- pois forçadas a abortar, o tráfico de primária e imprescindível» (114). mento, segurança e serviços essen- lia de nações», trabalhando para o órgãos (10-24). Estes são problemas O direito a viver com dignidade ciais; oferecer possibilidade de traba- bem comum, a erradicação da po- globais que requerem ações globais, não pode ser negado a ninguém, lho e formação; favorecer a reunifi- breza e a proteção dos direitos hu- sublinha o Papa, apontando o dedo afirma ainda o Papa, e uma vez que cação familiar; proteger os menores; manos. Recorrendo incansavelmente também contra uma «cultura de mu- os direitos são sem fronteiras, nin- garantir a liberdade religiosa. O que à «negociação, aos mediadores e à ros» que favorece a proliferação de guém pode ser excluído, indepen- é necessário acima de tudo» — lê-se arbitragem» — afirma o documento máfias, alimentadas pelo medo e pe- dentemente do local onde nasceu no documento —, é uma legislação pontifício — a Onu deve promover a la solidão (27-28). (121). Deste ponto de vista, o Papa (governance) global para as migra- força da lei sobre a lei da força (173- A muitas sombras, porém, a Encí- lembra também que é preciso pensar ções que inicie projetos a longo pra- 175). clica responde com um exemplo lu- numa «ética das relações internacio- zo, indo além das emergências indi- Do sexto capítulo, «Diálogo e minoso, o do bom samaritano, a nais» (126), porque cada país é tam- viduais, em nome de um desenvolvi- amizade social», emerge também o quem é dedicado o segundo capítu- bém do estrangeiro e os bens do ter- mento solidário de todos os povos conceito de vida como «a arte do lo, »Um estranho no caminho». Nele, ritório não podem ser negados àque- (129-132). encontro» com todos, também com o Papa assinala que, numa sociedade les que têm necessidade e vêm de O tema do quinto capítulo é «A as periferias do mundo e com os po- doente que vira as costas à dor e é outro lugar. O direito natural à pro- política melhor», ou seja, a que re- vos originais, porque «de todos se «analfabeta» no cuidado dos mais priedade privada será, portanto, se- presenta uma das formas mais pre- pode aprender alguma coisa, nin- frágeis e vulneráveis (64-65), somos cundário em relação ao princípio do ciosas da caridade porque está ao guém é inútil, ninguém é supérfluo» todos chamados a estar próximos destino universal dos bens criados serviço do bem comum (180) e co- (215). Particular, então, a referência uns dos outros (81), superando pre- (120). A Encíclica também coloca nhece a importância do povo, enten- do Papa ao «milagre da amabilida- conceitos e interesses pessoais. De uma ênfase específica na questão da dido como uma categoria aberta, de», uma atitude a ser recuperada fato, todos nós somos corresponsá- dívida externa: embora se mantenha disponível ao confronto e ao diálogo veis na construção de uma sociedade o princípio de que toda a dívida le- (160). Este é o populismo indicado CO N T I N UA NA PÁGINA 3

L’OSSERVATORE ROMANO ANDREA MONDA TIPO GRAFIA VAT I C A N A EDITRICE Assinaturas: Itália - Vaticano: € 58.00; Europa: € 100.00 - U.S. $ 148.00; América Latina, África, d i re t o r L’OS S E R VAT O R E ROMANO Ásia: € 110.00 - U.S. $ 160.00; América do Norte, Oceânia: € 162.00 - U.S. $ 240.00. EDIÇÃO SEMANAL EM PORTUGUÊS Administração: telefone +390669899480; fax +390669885164; e-mail: assinaturas.or@sp c.va Unicuique suum Non praevalebunt Giuseppe Fiorentino v i c e - d i re t o r Serviço fotográfico Para o Brasil: Impressão, Distribuição e Administração: Editora Santuário, Televendas: Redação 08000160004 ou 00551231042000. E-mail: [email protected] Cidade do Vaticano via del Pellegrino, 00120 Cidade do Vaticano telefone +390669884797 redazione.p ortoghese.or@sp c.va telefone +390669899420 fax +390669884998 Publicidade Il Sole 24 Ore S.p.A, System Comunicazione Pubblicitaria, Via Monte Rosa, 91, w w w. o s s e r v a t o re ro m a n o .v a fax +390669883675 p h o t o @ o s s ro m .v a 20149 Milano, [email protected] número 40, terça-feira 6 de outubro de 2020 L’OSSERVATORE ROMANO página 3

Palavras do Papa no final da missa em Assis Fitar os outros como irmãos e irmãs Agradecimento para nos salvar a nós e ao mundo

ANDREA TORNIELLI maritano, tão atual e fora dos esque- aos tradutores mas. Estamos circundados pelas “sombras O caminho indicado pelo Papa de um mundo fechado”, mas há quem Francisco baseia-se na mensagem de não se rende ao avanço das trevas e Jesus que elimina qualquer extraneida- continua a sonhar, a esperareasujar de. O cristão é efetivamente chamado as mãos, comprometendo-se a criar a «reconhecer Cristo em cada ser hu- fraternidade e amizade social. A tercei- mano, para o ver crucificado nas an- ra guerra mundial em pedaços já co- gústias dos abandonados e dos esque- meçou, a lógica de mercado baseada cidos deste mundo, e ressuscitado em no lucro parece predominar sobre a cada irmão que se levanta». Mas a boa política, a cultura do descarte pa- mensagem da fraternidade pode ser rece prevalecer, o clamor dos povos da aceite, compreendida e partilhada tam- fome não é ouvido, mas há quem indi- bém por homens e mulheres crentes de que uma forma concreta para construir outras religiões, assim como por mui- tos homens e mulheres não crentes. um mundo diferente e mais humano. A nova encíclica apresenta-se como Há cinco anos, o Papa Francisco uma suma do magistério social de publicou a encíclica Laudato si’, fazen- Francisco e reúne de forma sistemática do compreender claramente as ligações as ideias oferecidas por pronunciamen- entre crise ambiental, crise social, tos, discursos e intervenções dos pri- guerras, migrações e pobreza. E indi- meiros sete anos de pontificado. Uma cou um objetivo a alcançar: o de um origem e uma inspiração é certamente sistema económico e social mais justo representada pelo “Documento sobre a No final da Missa, celebrada diante do túmulo de São Francisco de Assis, e respeitador da criação, que tenha no fraternidade humana em prol da paz na tarde de 3 de outubro, antes de assinar a Encíclica «Fratelli tutti», o seucentroohomem, queéoguardião mundial e da convivência comum”, as- Papa disse: da mãe terra e não o dinheiro elevado sinado a 4 de fevereiro de 2019 em a divindade absoluta. Hoje, com a no- Abu Dhabi com o Grão-Imã de Al- Agora vou assinar a Encíclica trazida ao altar por Mons. Paolo Brai- va encíclica social Fratelli tutti, o Su- da, encarregado das traduções e também dos discursos do Papa na Azhar, Ahmad Al-Tayyib. Desta decla- cessor de Pedro mostra o caminho ração comum, marco no diálogo entre Primeira Secção. Ele supervisiona tudo e por isso quis que ele esti- concreto para alcançar esse objetivo: as religiões, o Papa reitera o apelo pa- vesse aqui presente hoje e que me trouxesse a Encíclica. Com ele vie- reconhecer-nos irmãos e irmãs, irmãos ra que o diálogo seja adotado como ram dois tradutores: o padre António, tradutor de língua portuguesa, porque filhos, guardiões uns dos ou- caminho, a colaboração comum como que traduziu do espanhol para o português; e o padre Cruz, que é tros, todos no mesmo barco, como a conduta e o conhecimento mútuo co- espanhol, e reviu um pouco as outras traduções do original em espa- pandemia tornou ainda mais evidente. mo método e critério. nhol. Faço-o em sinal de gratidão a toda a Primeira Secção da Secre- A forma para não se render à tentação Contudo, seria redutivo relegar a taria de Estado, que trabalhou nesta redação e tradução. do homo homini lupus, de novos muros, nova encíclica apenas para o âmbito [Depois assina a Encíclica]. do isolamento e, ao contrário, olhar do diálogo inter-religioso. A mensa- Estes tradutores são humildes: escondem-se! para o ícone evangélico do Bom Sa- gem de Fratelli tutti diz respeito a cada um de nós. E contém também páginas esclarecedoras sobre o compromisso social e político. Pode parecer parado- xal que é o Bispo de Roma, voz no deserto, que relança hoje o projeto de Síntese carta encíclica do Santo Padre Francisco uma boa política. Uma política capaz de retomar o próprio papel, durante demasiado tempo deixado às finanças CO N T I N UA Ç Ã O DA PÁGINA 2 Parte do sétimo capítulo se de- bem como a políticas de fome, po- e à fábula dos mercados que produzi- tém, então, sobre a guerra: «uma breza, injustiça e opressão (282- rão bem-estar para todos sem necessi- porque é «uma estrela na escuri- ameaça constante», que representa 283). Um caminho de paz entre a dade de ser governados. Há um capí- dão» e uma «libertação da cruelda- a «negação de todos os direitos», religiões é, portanto, possível; por tulo inteiro dedicado à ação política de, da ansiedade que não nos dei- «o fracasso da política e da huma- isso, é necessário garantir a liberda- vivida como serviço e testemunho de xa pensar nos outros, da urgência nidade», «a vergonhosa rendição de religiosa, direito humano funda- caridade, que se alimenta de grandes distraída» que prevalecem em épo- às forças do mal». Além disso, de- mental para todos os crentes (279). ideais e planifica o amanhã, pensando ca contemporânea (222-224). Refle- vido às armas nucleares, químicas e Uma reflexão, em particular, a En- não na pequena vantagem eleitoral, te sobre o valor e a promoção da biológicas que afetam muitos civis cíclica faz sobre o papel da Igreja: mas no bem comum e especialmente paz, o sétimo capítulo, intitulado inocentes, hoje já não podemos ela não relega a sua missão à esfera no futuro das novas gerações. Mais «Percursos dum novo encontro», pensar, como no passado, numa privada e, embora não fazendo po- uma vez, num momento em que tantos no qual o Papa sublinha que a paz possível «guerra justa», mas temos lítica, não renuncia à dimensão po- países se fecham, é precisamente o Pa- é «proativa» e visa formar uma so- de reafirmar fortemente «Nunca lítica da existência, à atenção ao pa que formula o convite a não perder a confiança nos organismos internacio- ciedade baseada no serviço aos ou- mais a guerra! A eliminação total bem comum e à preocupação pelo nais, embora necessitados de reformas tros e na busca da reconciliação e das armas nucleares é «um impera- desenvolvimento humano integral, para que não sejam considerados ape- do desenvolvimento mútuo. A paz tivo moral e humanitário»; em vez segundo os princípios evangélicos disso — sugere o Papa — com o di- (276-278). nas os mais fortes. Entre as páginas é uma «arte» em que cada um de- mais poderosas da encíclica estão as nheiro do armamento deveria ser Por fim, Francisco cita o «Docu- ve desempenhar o seu papel e cuja dedicadas à condenação da guerra e à criado um Fundo Mundial para mento sobre a fraternidade humana tarefa nunca termina (227-232). Li- rejeição da pena de morte. Na esteira gado à paz está o perdão: devemos acabar de vez com a fome (255- em prol da paz mundial e da con- 262). Francisco expressa uma posi- da Pacem in terris, de João XXIII, par- amar todos sem exceção — lê-se na vivência comum», assinado por ele ção igualmente clara sobre a pena tindo de um olhar realista sobre os re- Encíclica —, mas amar um opressor mesmo em 4 de fevereiro de 2019 sultados catastróficos que tantos con- de morte: é inadmissível e deve ser significa ajudá-lo a mudar e não em Abu Dhabi, junto com o Gran- flitos nas últimas décadas tiveram para abolida em todo o mundo. «O ho- permitir que ele continue a oprimir de Imã de Al-Azhar, Ahmad Al- a vida de milhões de pessoas inocen- micida não perde a sua dignidade Tayyib: desta pedra miliar do diá- tes, Francisco recorda que hoje é mui- o seu próximo (241-242). Perdão pessoal — escreve o Papa — e o não significa impunidade, mas jus- logo inter-religioso, o Pontífice re- to difícil manter os critérios racionais próprio Deus Se constitui seu ga- toma o apelo para que, em nome amadurecidos noutros séculos para fa- tiça e memória, porque perdoar rante» (263-269). Ao mesmo tem- não significa esquecer, mas renun- da fraternidade humana, o diálogo lar de uma possível “guerra justa”. Tal po, a necessidade de respeitar «a seja adotado como caminho, a co- ciar à força destrutiva do mal e da como é injustificado e inadmissível o sacralidade da vida» (283) é reafir- laboração comum como conduta, e vingança. Nunca esquecer «horro- recurso à pena capital, que deve ser mada onde «partes da humanidade o conhecimento mútuo como mé- abolida no mundo inteiro. res» como a Shoah, os bombardea- parecem sacrificáveis », tais como todo e critério (285). É verdade, como afirma o Papa, «no mentos atómicos em Hiroshima e os nascituros, os pobres, os defi- mundo atual, esmorecem os sentimen- Nagasaki, perseguições e massacres cientes, os idosos (18). tos de pertença à mesma humanidade; étnicos — exorta o Papa — devem No oitavo e último capítulo, o e o sonho de construirmos juntos a ser sempre recordados, novamente, Pontífice se detém sobre «Religiões O nline justiça e a paz parece uma utopia de para não nos anestesiarmos e man- ao serviço da fraternidade no mun- o texto integral outros tempos». Mas há necessidade terem viva a chama da consciência do» e reitera que o terrorismo não de voltar a sonhar e, sobretudo, de coletiva. E também é importante se deve à religião, mas a interpreta- A carta ecníclica do Santo Padre realizar este sonho em conjunto. Antes fazer memória do bem. (246-252). ções erradas de textos religiosos, encontra-se no site www.vatican.va que seja demasiado tarde. página 4 L’OSSERVATORE ROMANO terça-feira 6 de outubro de 2020, número 40

A urgência de parar e refletir

CO N T I N UA Ç Ã O DA PÁGINA 1 co, indica tanto a misericórdia como do mundo, onde se encontra com as pessoas e dos acontecimentos, rejei- as entranhas). É precisamente daqui outras religiões; na quinta-feira à tar- tando preconceitos», a fim de «fo- blinha o papel decisivo das religiões que se deve recomeçar, a partir do de “La settimana di Papa Frances- mentar uma cultura do encontro “ao serviço da fraternidade do mun- gesto visceral do samaritano, que na- co”, para realçar palavras e gestos do através da qual é possível conhecer a do” (cap. 8). da mais faz do que parar em con- Pontífice; na sexta-feira à tarde realidade com um olhar confiante». Um texto muito denso que obriga traste com os outros personagens, “Atlante”, um semanário internacio- “L’Osservatore Romano” faz suas es- o leitor a parar e ler cuidadosamente provavelmente apressados; num nal de notícias que relata as crónicas tas palavras do Papa e compromete- para refletir, meditar e depois, final- mundo que corre incessantemente, a de um mundo globalizado. se a narrar as histórias de hoje e de mente, agir. Neste jornal, a partir do Papa é uma voz que pede, implo- Duas palavras-chave podem expli- ontem (a história da Igreja é sempre dos próximos dias, de todo o texto ra urgentemente para parar a fim de car o significado deste projeto de contemporânea) com uma perspetiva com os seus oito capítulos serão ofe- recuperar o sentido da dignidade atualização e renovação: integração e positiva, voltada para o futuro. Por- recidas ao leitor chaves de leitura, a humana, da sua, dos outros. Perma- esperança. A primeira refere-se a tanto, uma abordagem profissional fim de o aprofundar, ativando um necendo fiel a si mesmo, a essa “ca- uma dupla relação: uma entre jor- que se baseia na imaginação e na processo de conhecimento não su- raterística essencial do ser humano”, nais de papel e digitais e outra rela- criatividade que procura dar voz perficial nem emocional. Agora, é o Papa diz-nos que hoje é absoluta- tiva à integração de “L’O sservatore àqueles que não a têm, para narrar o suficiente uma primeira reflexão sim- mente necessário restituir ao homem Romano” no sistema dos meios de bem que silenciosamente abre cami- ples, quase uma impressão, sobre o a dignidade, um bem precioso e frá- comunicação social do Vaticano. O nho, iluminar a esperança que flores- tema da dignidade, uma das pala- gil que deve ser preservado e ali- período de suspensão devido à pan- ce até nas situações mais dramáticas, vras mais recorrentes na encíclica, mentado todos os dias, em todos os demia causou um forte impulso ao fazer ouvir o grito e as expetativas tendo em consideração apenas um lugares, sempre. desenvolvimento do jornal no mun- dos últimos e dos descartados, que trecho, o ponto 68 do texto, tirado do digital, pelo que hoje o diário es- muitas vezes lutam para encontrar do segundo capítulo, onde o Santo *** tá disponível na rede (www.osserva- espaço no fluxo das notícias diárias. Padre medita sobre o conteúdo do Domingo de manhã, na praça de toreromano.va) graças à nova app, Precisamente neste tempo tão acele- Evangelho de Lucas dedicado à pa- São Pedro, houve uma bonita festa que pode ser descarregada gratuita- rado em que o ritmo frenético da in- rábola do Bom Samaritano. O capí- popular, no momento do Angelus, mente tanto na AppStore como na formação nos parece submergir, te- tulo intitula-se “Um estranho no ca- uma dupla festa para a redação de PlayStore. Por outro lado, o jornal, mos que parar para refletir e assim minho” e começa com uma verda- “L’Osservatore Romano” que final- fundado em julho de 1861, durante ver dentro e fora das notícias para deira exegese das palavras de Jesus, mente, após um lockdown de seis muitas décadas o único meio de co- compreender, permitindo que a rea- que permite ao Papa refletir com o meses que impediu a impressão do municação da Santa Sé, está hoje lidade nos surpreenda, nos interro- leitor sobre o facto de a ajuda dada jornal, volta à publicação também circundado por uma série de outros gue, nos comova. Só se conseguir- pelo samaritano «revelar-nos uma em papel com novo formato e nova meios de comunicação social, a par- mos evitar o fluxo de ativismo que caraterística essencial do ser huma- configuração. Não é um mero “re - tir da Rádio Vaticano e do portal corre o risco de nos atordoar e en- no, frequentemente esquecida: fomos g re s s o ” ao papel, mas a realização Vatican News, e com eles integra-se torpecer a nossa sensibilidade, sere- criados para a plenitude, que só se de um projeto de reforma que come- num processo que coordena os vá- mos capazes de agir como o Bom alcança no amor. Viver indiferentes à çou há muito tempo. Um jornal, rios meios, exaltando a própria pe- Samaritano, percebendo que há um dor não é uma opção possível; não também por motivos etimológicos, culiaridade de cada um. A lógica é, estranho pelo caminho, mas que se podemos deixar ninguém caído “nas não pode deixar de se “atualizar”, para o dizer com as palavras do Pa- nos aproximarmos, ele deixará de ser margens da vida”. Isto deve indig- especialmente se for um jornal inter- pa Francisco, tirada também desta um estranho mas tornar-se-á nosso nar-nos de tal maneira que nos faça nacional que sai em sete línguas e última encíclica, a da perspetiva semelhante e, afinal, um amigo. Ca- descer da nossa serenidade alteran- chega aos seus leitores nos cinco mais ampla e complexa que sobres- so contrário, corremos o risco de do-nos com o sofrimento humano. continentes do planeta. sai da figura do poliedro, que «não agir como os dois discípulos viajan- Isto é dignidade». A atualização inclui uma renova- é a esfera global que anula, nem a tes de Emaús, que se encontram São palavras chocantes, que inver- ção na gráfica e no conteúdo, a fim parcialidade isolada que a torna es- com um “f o r a s t e i ro ” pelo caminho e tem a nossa ideia de dignidade. As- de oferecer ao leitor informações téril», mas é precisamente «o polie- não se apercebem de que é Jesus. sociamos frequentemente dignidade mais aprofundadas. Esta é a palavra, dro onde, enquanto cada um é res- Sabem tudo sobre as notícias do dia, com frieza, com imperturbabilidade, aprofundar, querida a São Paulo VI, peitado no seu valor, “o todo é mais estão “informados”, mas não conse- diz-se de um homem que “não per- que inspirou o projeto do “novo” do que as partes, e é também mais guem compreender o seu significa- deu a dignidade”, porque permane- Osservatore Romano. O jornal que do que a sua simples soma”». do. Eis o desafio de um jornal como ceu sereno e não deixou transparecer tendes nas mãos (finalmente pode- Por fim, a esperança. Também “L’Osservatore Romano” que é “fo- sentimentos de raiva nem de sofri- mos pronunciar esta frase), tem um aqui as palavras do Papa podem ser- r a s t e i ro ” porque vive neste mundo mento. E, ao contrário, aqui o Papa formato ligeiramente menor do que vir para esclarecer. Falando à revista mas olha para ele, julgando-o não só vai além e apresenta-nos outra face, o anterior, o que significa um au- belga “Te r t i o ”, a 18 de setembro, com uma lógica mundana mas tam- paradoxal, de dignidade: da sereni- mento do número diário de páginas Bergoglio afirmou: «O profissional bém com um olhar que “não é deste dade é preciso “descer”, é necessário que se tornam 12. Destas, as quatro cristão da informação deve ser um mundo”. Portanto, um grande obje- perder o fleuma para nos “p ertur- páginas centrais tornar-se-ão um su- porta-voz de esperança, um portador tivo: amplia a perspetiva com que se bar” com o sofrimento dos outros. plemento extraível com um fundo de confiança no futuro. Pois só observa o mundo, oferecendo a ótica Dignidade é algo quente, físico, vis- temático: na terça-feira à tarde quando o futuro é aceite como reali- que se vê de Roma, do coração da ceral. Tal como a misericórdia, pro- “Q u a t t ro p a g i n e ”, o semanário cultu- dade positiva e possível, também o catolicidade, procurando tocar a tagonista da parábola, que é algo ral; na quarta-feira à tarde “Religio”, presente se torna viável». Para ser mente e o coração dos leitores com que tem a ver com as entranhas (ra - dedicado à Igreja como hospital de porta-voz da esperança, o cristão de- uma comunicação curiosa, honesta e chamin, é a palavra que, em hebrai- campanha a caminho pelas estradas ve procurar «uma visão positiva das ab erta. número 40, terça-feira 6 de outubro de 2020 L’OSSERVATORE ROMANO página 5

C AT E Q U E S E

Necessidade de curar o mundo em tempo de pandemia

Uma sociedade solidária é muito mais resistente a qualquer vírus

«Uma sociedade solidária e equitativa é uma sociedade mais sadia. Uma sociedade participativa fortalece a comunhão» e «é muito mais resistente a qualquer tipo de vírus», afirmou o Papa na audiência geral de quarta-feira, 30 de setembro, no pátio de São Dâmaso no Vaticano. Prosseguindo o ciclo de catequeses sobre a necessidade de «curar o mundo» neste tempo de pandemia, o Pontífice — inspirando-se para a reflexão num trecho da Carta aos Hebreus (12, 1-2) — aprofundou o tema «Preparar o futuro juntamente com Jesus que salva e cura».

Amados irmãos e irmãs, bom dia! mano e de cada criatura. Fomos concebidos no coração de Deus Nas últimas semanas, refletimos (cf. Ef 1, 3-5). «Cada um de nós é juntos, à luz do Evangelho, sobre o fruto de um pensamento de como curar o mundo que sofre de Deus. Cada um de nós é querido, um mal-estar que a pandemia real- cada um de nós é amado, cada um çou e acentuou. Já havia o mal-es- é necessário» (Bento XVI, Homilia não pode ser, porque esta normali- nos fazem ir em frente e dos quais tar: a pandemia realçou-o mais, para o início do ministério petrino [24 dade estava doente de injustiças, não devemos ter medo — mas sa- acentuou-o. Percorremos os cami- de abril de 2005]; cf. Laudato si’, desigualdades e degradação am- bendo que os meios mais sofistica- nhos da dignidade,da solidariedade 65). Além disso, cada criatura tem biental. A normalidade a que so- dos poderão fazer muitas coisas, e da subsidiariedade, caminhos in- algo a dizer-nos sobre Deus Cria- mos chamados é a do Reino de mas uma coisa eles nunca poderão dispensáveis para promover a dig- dor (cf. Enc. Laudato si’, 69.239). Deus, onde «os cegos veem e os fazer: a ternura. E a ternura é o nidade humana e o bem comum. E, Reconhecer esta verdade e dar gra- coxos andam, os leprosos ficam próprio sinal da presença de Jesus. como discípulos de Jesus, começa- ças pelos vínculos íntimos da nossa limpos e os surdos ouvem, os mor- Aproximar-se do outro para cami- mos a seguir os seus passos, optan- comunhão universal com todas as tos ressuscitam e a Boa Nova é nhar, para curar, para ajudar, para do pelos pobres, reconsiderando o uso pessoas e todas as criaturas ativa anunciada aos pobres» (Mt 11, 5). se sacrificar pelo outro. dos bens e cuidando da casa comum. «um cuidado generoso e cheio de E ninguém faz de contas olhando Assim, a normalidade do Reino No meio da pandemia que nos afli- ternura» (ibid., 220). Ajuda-nos para o outro lado. É isto que te- de Deus é importante: que o pão ge, ancorámo-nos nos princípios da também a reconhecer Cristo pre- mos de fazer para mudar. Na nor- chegue a todos, a organização so- doutrina social da Igreja, deixando- sente nos nossos irmãos e irmãs malidade do Reino de Deus o pão cial se baseie em contribuir, parti- nos guiar pela fé, pela esperança e pobres e sofredores, a encontrá-los chega a todos e sobra, a organiza- lhar e distribuir, com ternura, e pela caridade. Aqui encontramos e a ouvir o seu clamor e o clamor ção social baseia-se em contribuir, não em possuir, excluir e acumular. uma ajuda sólida para sermos da terra que lhes faz eco (cf. ibid., partilhar e distribuir, não em pos- Pois no final da existência nada le- agentes de transformação que fa- 49). suir, excluir e acumular (cf. Mt 14, varemos para a outra vida! zem sonhos grandiosos, que não se Mobilizados interiormente por 13-21). O gesto que faz progredir detêm nas mesquinharias que divi- Um pequeno vírus continua a estes clamores que reclamam de uma sociedade, uma família, um dem e magoam, mas encorajam a causar feridas profundas e a expor nós outra linha de ação (cf. ibid., bairro, uma cidade, todos, é doar- gerar um mundo novo e melhor. as nossas vulnerabilidades físicas, 53), reclamam uma mudança, po- se, dar, que não é dar esmola, mas sociais e espirituais. Pôs a nu a Gostaria que este percurso não deremos contribuir para a cura das uma dádiva que vem do coração. grande desigualdade que reina no terminasse com estas minhas cate- relações com os nossos dons e ca- Um gesto que afasta o egoísmo e a mundo: desigualdade de oportuni- queses, mas que pudéssemos conti- pacidades (cf. ibid., 19). Poderemos ansiedade de possuir. Mas o modo dades, de bens, de acesso aos cui- nuar a caminhar juntos, «manten- regenerar a sociedade e não voltar cristão de o fazer não é um modo dados médicos, à tecnologia, à do os olhos fixos em Jesus» (Hb à chamada “normalidade”, que é mecânico: é um modo humano. educação: milhões de crianças não 12, 2), como ouvimos no início; o uma normalidade doentia, aliás, es- Nunca conseguiremos sair da crise podem ir à escola, e assim por nosso olhar em Jesus que salva e tava doente já antes da pandemia: que emergiu da pandemia, mecani- diante. Estas injustiças não são na- cura o mundo. Como o Evangelho a pandemia realçou-a! “Agora vol- camente, com novos instrumentos turais nem inevitáveis. São obra do nos mostra, Jesus curou os doentes temos à normalidade”: não, assim — que são muito importantes, que homem, vêm de um modelo de de todos os tipos (cf. Mt 9, 35), crescimento separado dos valores restituiu a vista aos cegos, a pala- mais profundos. O desperdício das vra aos mudos e a audição aos sur- sobras de refeições: com esse des- dos. E quando curava doenças e perdício podemos dar de comer a enfermidades físicas, também cura- toda a gente. E isto fez com que va o espírito perdoando os peca- muitas pessoas perdessem a espe- dos, porque Jesus perdoa sempre, rança e aumentou a incerteza e a bem como as «dores sociais» in- angústia. É por isso que, para sair cluindo os marginalizados (cf. Ca- da pandemia, temos de encontrar a tecismo da Igreja Católica, 1421). Je- cura não só para o c o ro n a v í r u s — sus, que renova e reconcilia cada que é importante! — mas também criatura (cf. 2 Cor 5, 17; Cl 1, 19- para os grandes vírus humanos e 20), concede-nos os dons necessá- socioeconómicos. Não devemos es- rios para amar e curar como ele sa- condê-los, dando uma pincelada bia fazer (cf. Lc 10, 1-9; Jo 15, 9-17), para que não possam ser vistos. E para cuidar de todos sem distinção certamente não podemos esperar de raça, língua ou nação. que o modelo económico subjacen- Para que isto aconteça realmen- te ao desenvolvimento injusto e in- te, precisamos de contemplar e apreciar a beleza de cada ser hu- CO N T I N UA NA PÁGINA 12 página 6 L’OSSERVATORE ROMANO terça-feira 6 de outubro de 2020, número 40

Introdução ao documento Albrecht Dürer «São Jerónimo» Como uma (1521) «biblioteca de Cristo»

Biblia Parisiensis GIANFRANCO RAVA S I um ciceroniano, não um cristão». , em «Senhor — respondi — se continuar uso na Universidade ra o dia 30 de setembro de a ter livros mundanos nas minhas de Paris, contudo uma 420 e em Belém, perto da gru- mãos, se os ler, será como se vos ti- das formas menos per- E ta da Natividade de Cristo, o vesse renegado!». Assim, o santo re- feitas da longa vida da dálmata Jerónimo terminava a sua latou o grande ponto de viragem na Vu l g a t a . existência terrena, cuja trama tinha sua vida numa carta, a N. 22 do ca- Foi apenas no Con- sido particularmente variada e até tálogo tradicional, dirigida à fiel dis- cílio de Trento que, atormentada. Exatamente mil e seis- cípula Eustóquio. após a «autenticida- centos anos após aquele dia de outo- «Tornei-me então», escreveu nou- de» da Vu l g a t a ter si- no, o Papa Francisco quis dedicar- tra epístola, «discípulo de um irmão do afirmada como tex- lhe uma ampla e intensa Carta judeu convertido para aprender, de- to bíblico oficial da Apostólica, que constitui a substân- pois das subtilezas de Quintiliano, Igreja católica (8 de cia deste pequeno volume. De facto, dos rios de eloquência de Cícero, da abril de 1546) — s o b re o título Scripturae Sacrae affectus, ti- gravidade de Frontão e da agradabi- cujo valor específico a rado da liturgia da memória do san- lidade de Plínio, um novo alfabeto e Carta Apostólica ofe- to, constitui uma síntese extraordiná- para praticar a pronúncia de sons es- rece uma indicação es- ria da sua experiência pessoal e da tridentes e aspirantes. Que cansaço sencial e exata — que sua obra, quase uma bandeira em- foi para mim, que dificuldades en- o voto foi expresso blemática daquele que está na me- contrei, quantas vezes parei e de- para uma «edição típi- mória de todos como o tradutor por pois, devido ao desejo de aprender, quantas condenações e conflitos sur- ca» mais rigorosa. O desejo dos Pa- excelência da Bíblia através daquela recomecei, só a minha consciência o gem por ignorarmos a língua dos dres conciliares só se realizou a 9 de Vu l g a t a que atravessou os séculos. pode testemunhar, a qual suportou outros e por não nos aplicarmos, novembro de 1592, após aconteci- Precisamente por esta razão a sua tudo, mas também a daqueles que com tenaz esperança, a esta intermi- mentos conturbados que envolveram figura tem sido um ponto de refe- foram meus companheiros na vida». nável prova de amor que é a tradu- cinco papas (Pio I V, Pio V, Sisto V, rência capital para a história da cul- Assim começou a grande aventura ção!». Gregório X I V, Clemente VIII). A edi- tura ocidental e também para a arte, que se tornou famosa com o nome Com todas as reservas críticas, ção definitiva foi então publicada e é verdadeiramente surpreendente Vu l g a t a , ou seja, a elaboração de muitas vezes compreensíveis conside- com o título Biblia Sacra Vulgatae que o próprio Papa tenha querido uma tradução «popular» latina da rando as diferentes coordenadas cro- editionis Sixti Quinti Pont. iussu recog- evocar alguns aspetos «sapienciais» Bíblia. nológicas e culturais e a nossa sensi- nita atque edita. Na edição de Lião artísticos, partindo da «comovedora A partir desse momento, o Papa bilidade filológica diferente, a Vu l g a - de 1604 também foi acrescentado o obra-prima» do quadro de Jerónimo segue todo o itinerário, nalguns as- ta não só constituiu um monumento nome de Clemente VIII e a partir de penitente no deserto, que Leonardo petos fascinante e cheio de aconteci- literário do latim tardio, como tam- então foi chamada «Bíblia sisto-cle- da Vinci executou por volta de 1482 mentos, da experiência cristã de Je- bém plasmou a linguagem teológica mentina». Nos séculos seguintes as e que teve uma vicissitude com con- rónimo, que tem o seu coração no do Ocidente cristão. Na verdade, o revisões foram incessantes até à pro- tornos romanescos. As últimas horas amor pela Sagrada Escritura enfren- sucesso chegou à obra de Jerónimo posta particular da Neovulgata p ro - da vida do santo foram representa- tado na sua dupla dimensão de «le- apenas alguns séculos mais tarde. mulgada por S. João Paulo II em das pelo imponente retábulo no qual tra» e «espírito». O eixo fundamen- Foi São Gregório Magno, Papa de 1979 e explicitamente mencionada na Domenichino, entre 1611 e 1614, fi- tal da sua vicissitude humana e espi- 590 a 604, que utilizou a tradução Carta. xou a extrema Comunhão de São Je- ritual encontra-se na sua obra de tra- de Jerónimo para os seus escritos É um facto que, apesar da dife- ró n i m o , obra preservada, como a ou- dução, encarnada precisamente na exegéticos e espirituais. Seguiram-no rença de épocas, a Vulgata ainda ho- tra, na Pinacoteca do Vaticano. Nu- Vu l g a t a , «o fruto mais doce da árdua o quase contemporâneo Isidoro de je exerce um indubitável fascínio li- ma atmosfera hierática o célebre sementeira» dos seus estudos literá- Sevilha e Beda, o Venerável, que terário, também pelo seu uso na his- «Leão de Belém», já debilitado, re- rios e histórico-críticos. A este res- morreu em 735. O rio de cópias cres- tória da arte e da música. Além dis- cebe a Eucaristia rodeado pelos seus peito, o Papa Francisco oferece não ceu sem medida, arrastando com ele so, como foi dito, condicionou de al- discípulos e pela fiel Paula, testemu- só uma série de preciosas anotações todo o tipo de detritos, ou seja, er- guma forma o pensamento e o voca- nhas das comunidades monásticas sobre a importância desta operação ros dos escribas, alterações intencio- bulário teológico. Agora, o estudioso por ele fundadas. nas suas caraterísticas básicas, mas nais, variações marginais, contamina- francês Georges Mounin definiu iro- A Carta Apostólica é um verda- também na importância eclesial por ções com outras antigas versões lati- nicamente cada boa tradução como deiro retrato histórico-teológico des- ela registada. Acima de tudo, capta nas. Foi então necessário proceder a uma belle infidèle, bela, sim, mas com te apaixonado cultor da Palavra de a sua alma muito original, que está revisões e codificações, o que deu um grau de infidelidade em compa- Deus, é uma guia para a sua vasta também na raiz de cada tradução origem a verdadeiras tipologias tex- ração com a matriz original, espe- atividade exegética e espiritual, é um qualificada que continua a revelar-se tuais representadas por famílias de cialmente quando se trata de siste- apelo a seguir os seus passos «aman- ainda hoje através das versões inces- códices, agrupadas convencional- mas linguísticos e culturais diferen- do o que ele amou». A clareza do santes da Bíblia nas mais diversas mente de acordo com as áreas geo- tes. Prosseguiu na esteira do grande ditado e da estrutura do texto papal línguas. gráficas. Cervantes, o autor de Dom Quixote, é tal que não requer comentários, A tradução, de facto, é um ato de Assim nasceu o chamado modelo que estava convencido de que cada mas apenas uma leitura cuidadosa: inculturação e, a este respeito, ao re- «italiano», que recebeu o nome da versão era como o reverso desbotado cada página está impregnada de ci- cuperar explicitamente uma reflexão área primária de difusão da Vu l g a t a : de uma bela tapeçaria. Os proble- tações muito evocativas tiradas dos significativa desenvolvida pelo pen- não se deve esquecer que o historia- mas levantados pela tradução de um escritos jeronimitas. Por esta razão é samento contemporâneo (P. Ricoeur, dor e teólogo Cassiodoro, no século texto não são, de facto, apenas lin- realmente possível quase ouvir a sua L. Wittgenstein, G. Steiner) o Papa VI, foi, com São Gregório, um cria- guístico-literários mas hermenêuti- voz, com a multiplicidade de tons, estabelece «uma analogia entre a tra- dor da adoção da versão jeronimita cos, especialmente quando no meio ênfases, os mesmos sentimentos de dução, como ação de hospitalidade para leitura e estudo da Bíblia no há uma Escritura «sagrada». No en- uma personalidade tão forte e as ca- linguística, e outras formas de aco- seu Vivarium, a «universidade» por tanto, ainda hoje, Jerónimo perma- raterísticas típicas dos profetas bíbli- lhimento. Por esta razão, a tradução ele fundada nas suas terras de Squil- nece, neste sentido, um emblema de cos com a sua veemência e paixão. não é uma obra que diz respeito lace na Calábria. Havia uma tipolo- mérito e método, com o seu rigor e A complexa sequência de eventos apenas à língua, mas corresponde, gia «Gálica» ligada a Alcuin, encar- liberdade, com o seu conhecimento biográficos distribuídos sobretudo na verdade, a uma decisão ética mais regado para esta operação por Car- e criatividade. entre Roma e a Terra Santa é re- ampla, que está ligada à inteira visão los Magno (séculos VIII-IX); outros Mas indo além das questões estri- construída de forma exata e vivaz, da vida. Sem tradução, as diferentes modelos apareceram na Espanha e tamente críticas, o Papa, quase como partindo do famoso ponto de vira- comunidades linguísticas seriam in- na Irlanda. Não é necessário para os pano de fundo de todo o texto, nes- gem da quaresma de 375, que tam- capazes de se comunicarem entre nossos propósitos traçar o perfil des- ta celebração centenária, orienta a bém nós queremos recordar. Sono- elas; fechariam as portas da história te delta ramificado no qual o rio da comunidade eclesial a retomar o le- lento devido à febre, na sua mente umas às outras e negariam a possibi- Vulgata desembocou, nem descrever gado substancial de São Jerónimo, tinha-se aberto uma espécie de vi- lidade de construir uma cultura do as revisões feitas por várias persona- ou seja, o amor feito de estudo e de são. Em pé diante do Juiz divino, encontro. Com efeito, sem tradução, gens, tais como São Pier Damiani e adesão vital à Palavra de Deus. Este «fui interrogado sobre a minha con- não há hospitalidade, aliás, refor- Lanfranco de Pavia no século XI.O é um tema constantemente exaltado dição; respondi que era cristão!». çam-se as práticas de hostilidade. O texto mais difundido que continuou pelo Magistério eclesial. Em particu- Mas Aquele que presidia a essa as- tradutor é um construtor de pontes. o seu caminho nos séculos seguintes sembleia retorquiu: tu mentes! És Quantos julgamentos imprudentes, até ao Renascimento foi a chamada CO N T I N UA NA PÁGINA 7 número 40, terça-feira 6 de outubro de 2020 L’OSSERVATORE ROMANO página 7

Carta Apostólica do Santo Padre Francisco no XVI centenário da morte de São Jerónimo «Scripturæ Sacræ affectus»

I n t ro d u ç ã o comparação com os quais os escritos duro a Deus e à comunidade ecle- da Bíblia, num primeiro tempo, se sial. A 30 de setembro de 420, termina- lhe apresentavam rudes e sem sinta- va a vida terrena de Jerónimo em Por isso, São Jerónimo conta-se, a xe, grosseiros demais para os seus Belém, na comunidade que ele fun- pleno título, entre as grandes figuras refinados gostos literários. dara na gruta da Natividade. Assim da Igreja antiga, no período defini- se entregava àquele Senhor que nun- Aquele episódio da sua vida con- do como o século áureo da Patrísti- ca cessara de procurar e conhecer na corre para a decisão de se dedicar ca, verdadeira ponte entre o Oriente Escritura; o mesmo que ele, febrici- inteiramente a Cristo e à sua Pala- e o Ocidente: é amigo de juventude tante, tinha contemplado como Juiz, vra, consagrando a sua existência a de Rufino de Aquileia, encontra numa visão, talvez na Quaresma de tornar as palavras divinas cada vez Ambrósio e troca intensa correspon- 375. Naquele acontecimento, que mais acessíveis aos outros, com o seu dência com Agostinho. No Oriente, marcou uma viragem decisiva na sua trabalho incansável de tradutor e co- conhece Gregório Nazianzeno, Dídi- vida, momento de conversão e mu- mentador. Aquele acontecimento im- mo o Cego, Epifânio de Salamina. Assim o consagra a tradição icono- dança de perspetiva, sentiu-se arras- prime na sua vida uma orientação gráfica cristã ao representá-lo, junta- tado até à presença do Juiz. «Inter- nova e mais convicta: tornar-se servi- Carta Apostólica mente com Agostinho, Ambrósio e rogado sobre a minha condição, res- dor da Palavra de Deus, como ena- Gregório Magno, entre os quatro SCRIPTURÆ SACRÆ AFFECTUS pondi que era cristão. Mas, Aquele morado da «carne da Escritura». As- grandes doutores da Igreja do Oci- do Santo Padre Francisco que presidia retorquiu: “Mentes… sim, na investigação contínua que dente. no XVI centenário da morte Tu és ciceroniano; não, cristão!”».2 caraterizou a sua vida, valoriza os Já os meus antecessores quiseram, de São Jerónimo Na realidade, desde muito jovem, seus estudos da juventude e a forma- Jerónimo apreciara a beleza cristali- ção recebida em Roma, orientando o em várias circunstâncias, lembrar a na dos textos clássicos latinos, em seu saber para um serviço mais ma- sua figura. Há um século, por oca- O afeto à Sagrada Escritura, um ter- sião do décimo quinto centenário da no e vivo amor à Palavra de Deus morte, Bento XV dedicou-lhe a carta escrita é a herança que São Jeróni- encíclica Spiritus Paraclitus (15 de se- mo, com a sua vida e as suas obras, tembro de 1920), apresentando-o ao deixou à Igreja. Tais expressões, tira- mundo como «doctor maximus expla- das da memória litúrgica do Santo,1 nandis Scripturis — doutor eminente dão-nos uma chave de leitura indis- na interpretação das Escrituras».3 pensável para conhecermos, no XVI Mais recentemente, Bento XVI a p re - centenário da morte, a sua figura sa- sentou a personalidade dele e as liente na história da Igreja e o seu suas obras, em duas catequeses su- grande amor a Cristo. Este amor ra- cessivas.4 Agora, no décimo sexto mifica-se, como um rio em muitos centenário da morte, desejo também canais, na sua obra de incansável es- eu recordar São Jerónimo e repropor tudioso, tradutor, exegeta, profundo a atualidade da sua mensagem e en- conhecedor e apaixonado divulga- sinamentos, a começar pelo seu dor da Sagrada Escritura; na sua grande afeto às Escrituras. obra de intérprete primoroso dos Neste sentido, é possível relacio- textos bíblicos; de defensor ardente ná-lo idealmente, como guia seguro e por vezes impetuoso da verdade e testemunha privilegiada, com a XII cristã; de eremita asceta e intransi- Assembleia do Sínodo dos Bispos, 5 gente, bem como de sábia guia espi- dedicada à Palavra de Deus, e com ritual, na sua generosidade e ternu- a exortação apostólica Verbum Domi- ra. Passados mil e seiscentos anos, a ni do meu predecessor Bento XVI, sua figura continua a ser de grande publicada precisamente na memória atualidade para nós, cristãos do sé- do Santo, em 30 de setembro de 2010.6 culo XXI. Caravaggio, «São Jerónimo» (1606)

De Roma a Belém A vida e o itinerário pessoal de São Jerónimo consumam-se ao lon- Introdução ao documento go das estradas do Império Roma- no, entre a Europa e o Oriente. Nas- cido por volta de 345 em Estridão, CO N T I N UA Ç Ã O DA PÁGINA 6 Escrituras, conhecia os profetas e procurada no apelo conclusivo da na fronteira entre a Dalmácia e a Pa- lembrava-se do que o anjo Carta. Retomando a imagem que nónia, no território atual da Croácia lar, sobressaem as confirmações do lhe tinha anunciado e do que tinha acaba de ser proposta da «bibliote- ou da Eslovénia, recebe uma sólida Concílio Vaticano II com a Dei Ver- sido dito pelos profetas». Um tra- ca de Cristo», o Papa recorda-nos educação na sua família cristã. Se- bum, a Exortação Apostólica Ve r b u m ço, geralmente menos acentuado e que a de Jerónimo é uma biblioteca gundo o costume de então, é batiza- Domini que Bento XVI p ro m u l g o u que o Papa Francisco desenvolve, é viva que «continua a ensinar-nos o do em idade adulta, nos anos que precisamente em memória do santo, a ligação do santo com a Cátedra transcorre em Roma como estudante que significa o amor de Cristo, um a 30 de setembro de 2010, a Evan- de Pedro. Também predomina no de retórica, entre 358 e 364. É preci- gelii Gaudium e a Aperuit illis do Padre da Igreja aquele eixo cristo- amor que é inseparável do encontro samente neste período romano que próprio Papa Francisco, nem se po- lógico que guiará não só a sua fé com a sua Palavra». Por esta razão se torna leitor insaciável dos clássi- de esquecer que no paralelo do XV mas inclusive a sua exegese. À sua o atual centenário representa um cos latinos, que estuda sob a orienta- centenário da morte de Jerónimo, figura aplica-se, de facto, o que ele apelo a amar o que Jerónimo amou, ção dos mestres de retórica mais em 1920, Bento XV promulgou a en- próprio escreveu sobre o seu amigo redescobrindo os seus escritos e ilustres da época. cíclica Spiritus Paraclitus. De facto, Nepociano: «Com leitura assídua e Terminados os estudos, empreen- «o traço distintivo da figura espiri- meditação constante, ele fez do seu deixando-nos tocar pelo impacto de uma espiritualidade que pode ser de uma longa viagem pela Gália que tual de São Jerónimo permanece coração uma biblioteca de Cristo». o leva à cidade imperial de Tréveros, descrita, no seu núcleo mais vital, sem dúvida o seu amor apaixonado Esta nossa premissa — dedicada a hoje na Alemanha. Aqui entra em pela Palavra de Deus, transmitido à um texto verdadeiramente luminoso como o desejo inquieto e apaixona- contacto, pela primeira vez, com a Igreja na Sagrada Escritura». como o são estas páginas consagra- do de um maior conhecimento do experiência monástica oriental, di- Nas páginas da Carta Apostólica das pelo Papa Francisco a um Pa- Deus da Revelação. Não podemos fundida por Santo Atanásio. Ama- sobressaem outras caraterísticas. Em dre da Igreja, com um tempera- deixar de ouvir, nos nossos dias, durece assim nele um desejo profun- particular o seu compromisso teóri- mento ardente e até provocador, aquilo a que Jerónimo exortava in- do que o impele até Aquileia, onde co e prático pela vida monástica, mas também com uma fé límpida e com alguns amigos seus — «um coro cessantemente os seus contemporâ- bem como o seu amor vivo pela calorosa como era São Jerónimo — de bem-aventurados»7 — começa um Virgem Mãe que «ponderava no poderia facilmente ter um selo no neos: “Lê com frequência as Divi- período de vida comunitária. seu coração» (Lc 2, 19.51), «pois ela próprio documento pontifício. A nas Escrituras; aliás, as tuas mãos era santa e tinha lido as Sagradas síntese final, com efeito, deve ser nunca abandonem o livro sagrado”. CO N T I N UA NA PÁGINA 8 página 8 L’OSSERVATORE ROMANO terça-feira 6 de outubro de 2020, número 40

«Scripturæ Sacræ affectus»

CO N T I N UA Ç Ã O DA PÁGINA 7 por vezes com excessos e rispidez, deve ganhar sabor graças à leitura mentos como o saque de Roma, em mas sempre movido sinceramente das Escrituras. Não quero que sejas 410, que o abalou profundamente. Por volta do ano 374, passando pelo desejo de defender a verdadeira um declamador ou um charlatão Às cartas confia as polémicas dou- por Antioquia, decide retirar-se para fé e o depósito das Escrituras. com muitas palavras, mas alguém trinais, sempre na defesa da reta fé, o deserto de Cálcida, a fim de se en- Este período intenso e fecundo in- que entende a doutrina sagrada revelando-se homem de relações, vi- tregar, de forma cada vez mais radi- terrompe-se com a morte do Papa (mysterii) e conhece profundamente vidas com força e doçura, num en- cal, a uma vida ascética em que se Dâmaso. Vê-se forçado a deixar Ro- os ensinamentos (s a c ra m e n t o r u m ) do volvimento pleno, sem formas adoci- reserva grande espaço para o estudo ma e, seguido por amigos e algumas teu Deus. É típico dos ignorantes jo- cadas, experimentando que «o amor das línguas bíblicas: primeiro, o gre- mulheres desejosas de continuar a gar com as palavras e ganhar a ad- não tem preço».24 Vive os seus afe- go e, depois, o hebraico. Confia-se a experiência espiritual e de estudo bí- miração do povo inexperiente com tos assim com ímpeto e sinceridade. um irmão judeu, batizado, que o in- blico iniciada, parte para o Egito — uma declamação rápida. Os desaver- Este envolvimento nas situações em troduz no conhecimento da nova onde encontra o grande teólogo Dí- gonhados muitas vezes explicam o que vive e labuta constata-se tam- língua — o hebraico — e dos seus dimo o Cego — e depois a Palestina, que não conhecem e pretendem ser bém no facto de oferecer o seu tra- sons, que define «estridentes e aspi- acabando por se estabelecer definiti- grandes peritos só porque conse- balho de tradução e comentário co- 8 17 rados» . vamente em Belém no ano 386. Re- guem persuadir os outros». mo munus amicitiæ. Éumdom,em O deserto, com a subsequente vi- toma os seus estudos filológicos, an- Em Belém, Jerónimo vive — até à primeiro lugar, para os amigos, des- da eremita, é escolhido e vivido por corados aos lugares físicos que fo- morte, em 420—operíodo mais fe- tinatários a quem dedica as suas Jerónimo no seu significado mais ram o cenário daquelas narrações. cundo e intenso da sua vida, total- obras pedindo-lhes que as leiam profundo: o lugar das opções exis- A importância dada aos Lugares mente dedicado ao estudo da Escri- com um olhar mais benévolo do que tenciais fundamentais, de intimidade Santos é evidenciada não só pela es- tura, empenhado na obra monumen- crítico; e, depois, para os leitores, e encontro com Deus, onde, através tal da tradução de todo o Antigo seus contemporâneos e de todos os colha de morar na Palestina, de 386 25 da contemplação, das provações in- até à morte, mas também pelo servi- Testamento a partir do original he- temp os. teriores, do combate espiritual, che- ço a favor das peregrinações. Preci- braico. Ao mesmo tempo, comenta Gasta os últimos anos da sua vida ga ao conhecimento da fragilidade, samente em Belém, lugar privilegia- os livros proféticos, os salmos, as na leitura orante, pessoal e comuni- com uma maior consciência das limi- do para ele, junto da gruta da Nati- obras paulinas; escreve subsídios pa- tária, da Escritura, na contemplação, tações próprias e alheias, reconhe- ra o estudo da Bíblia. O precioso no serviço aos irmãos através das 9 vidade funda dois mosteiros «gé- cendo a importância das lágrimas. meos», masculino e feminino, com trabalho recolhido nas suas obras é suas obras. E realiza tudo isto em Deste modo, no deserto, sente a pre- hospedarias para o acolhimento dos fruto de comparação e colaboração, Belém, junto da gruta onde o Verbo sença concreta de Deus, a necessida- peregrinos que vinham ad loca sanc- desde copiar e agrupar manuscritos foi dado à luz pela Virgem, ciente de do relacionamento do ser huma- ta, revelando a sua generosidade em até à reflexão e debate: «Nunca me de que «feliz é aquele que carrega no com Ele, a sua misericordiosa hospedar as pessoas que chegavam fiei das minhas próprias forças para no seu íntimo a cruz, a ressurreição, consolação. A propósito, gosto de àquela terra para ver e tocar os luga- estudar os livros divinos, (...) tenho o lugar do nascimento e da ascensão lembrar uma história, de tradição res da história da salvação, unindo o hábito de questionar-me mesmo de Cristo! Feliz é aquele que tem apócrifa. Jerónimo pergunta ao Se- assim a investigação cultural com a sobre o que eu pensava saber e, com Belém no seu coração, em cujo cora- nhor: «Que quereis de mim?». E Ele 26 espiritual.12 maior razão, sobre aquilo que não ti- ção nasce Cristo cada dia!». responde: «Ainda não Me deste tu- nha certeza».18 Por isso, ciente das do». «Mas, Senhor, já Vos dei isto… Colocando-se à escuta na Sagrada próprias limitações, pede apoio con- isto… e isto…» – «Falta uma coisa!» Escritura, Jerónimo encontra-se a si tínuo na oração de intercessão pelo A chave sapiencial do seu retrato — «O quê?» — «Dá-Me os teus pe- mesmo, encontra o rosto de Deus e bom sucesso da sua tradução dos Para uma plena compreensão da cados, para que Eu possa ter a ale- o dos irmãos, e apura a sua predile- textos sagrados «no mesmo Espírito personalidade de São Jerónimo, é gria de voltar a perdoá-los».10 ção pela vida comunitária. Daqui o com que foram escritos»,19 sem se seu desejo de viver com os amigos, necessário combinar duas dimensões Em seguida vamos encontrá-lo em esquecer de traduzir também obras como sucedia já no período de caraterísticas da sua existência de Antioquia, onde é ordenado sacerdo- de autores indispensáveis ao traba- Aquileia, e fundar comunidades mo- crente: por um lado, a consagração te pelo bispo Paulino; depois em lho exegético, como Orígenes, para násticas, encalçando o ideal cenobíti- absoluta e rigorosa a Deus, renun- Constantinopla por volta do ano «colocar este material à disposição co de vida religiosa que vê o mostei- ciando a qualquer satisfação huma- 379, onde conhece Gregório Nazian- de quem deseja aprofundar os estu- ro como «ginásio» onde formar pes- 20 na, por amor de Cristo crucificado zeno e onde continua os seus estu- dos científicos». soas «que, para ser a primeira de to- (cf. 1 Cor 2, 2; Fl 3, 8.10); por outro, dos, dedica-se à tradução em latim O estudo de Jerónimo aparece co- das, se consideram inferiores a to- o empenho assíduo no estudo, vi- de importantes obras do grego (ho- mo um esforço realizado em comu- das», felizes na pobreza e capazes sando exclusivamente uma compre- milias de Orígenes e a crónica de nidade e ao serviço da comunidade, de ensinar com o próprio estilo de ensão cada vez maior do mistério do Eusébio), respira o clima do Concí- modelo de sinodalidade também pa- vida. Na verdade, considera formati- Senhor. É precisamente este duplo lio celebrado naquela cidade em 381. ra nós, para os nossos dias e para as vo viver «sob o governo de um úni- testemunho, admiravelmente ofereci- Nestes anos, é no estudo que se re- diferentes instituições culturais da do por São Jerónimo, que se propõe velam a sua paixão e a sua generosi- co superior e na companhia de mui- Igreja, para que sejam sempre «um tos» para aprender a humildade, a como modelo, antes de tudo, para dade. Trata-se duma bendita inquie- lugar onde o conhecimento se torna os monges, a fim de encorajar quem tude, que o guia e torna incansável e paciência, o silêncio e a mansidão, serviço, porque, sem conhecimento na consciência de que «a verdade vive de ascese e oração a dedicar-se apaixonado na investigação: «De nascido da colaboração e resultando ao labor assíduo da pesquisa e do vez em quando desesperava-me; vá- não gosta dos cantos escuros, nem em cooperação, não há desenvolvi- escolhe os murmuradores».13 Além pensamento; e, depois, para os estu- rias vezes desisti; mas depois reto- mento humano genuíno e inte- diosos a fim de se recordarem que o mava pela obstinada decisão de disso, confessa «ansiar pelas peque- gral».21 O fundamento de tal comu- nas celas do mosteiro, (...) desejar a conhecimento só é válido religiosa- aprender», levado pela «semente nhão é a Escritura, que não pode- mente se estiver fundado no amor solicitude das formigas, onde se tra- amarga» de tais estudos a colher mos ler sozinhos: «A Bíblia foi escri- exclusivo a Deus, no despojamento balha juntos e nada há que seja pro- «frutos saborosos».11 ta pelo Povo de Deus e para o Povo de toda a ambição humana e de to- priedade duma pessoa, mas tudo é de Deus, sob a inspiração do Espíri- da a aspiração mundana. Em 382, Jerónimo volta a Roma, de todos».14 colocando-se à disposição do Papa to Santo. Somente com o “nós”, isto Estas dimensões foram recebidas No estudo, Jerónimo encontra, Dâmaso que, apreciando as suas é, nesta comunhão com o Povo de no campo da história da arte, onde é não um deleite efémero como fim grandes qualidades, faz dele seu es- Deus podemos realmente entrar no frequente a presença de São Jeróni- em si mesmo, mas um exercício de treito colaborador. Aqui Jerónimo núcleo da verdade que o próprio mo: grandes mestres da pintura oci- vida espiritual, um meio para chegar 22 empenha-se numa atividade inces- Deus nos quer dizer». dental deixaram-nos as suas repre- a Deus; e, assim, a própria formação sante, sem esquecer a dimensão espi- Aquela robusta experiência de vi- sentações. Poderíamos organizar as clássica dele ordena-se para um ser- ritual: no Aventino, graças ao apoio da, alimentada pela Palavra de várias tipologias iconográficas se- de mulheres da aristocracia romana viço mais maturo à comunidade Deus, faz com que Jerónimo, por gundo duas linhas distintas. Uma desejosas de radicais opções evangé- eclesial. Pensemos na ajuda prestada meio duma intensa correspondência define-o sobretudo como monge e licas, como Marcela, Paula e sua fi- ao Papa Dâmaso, no ensino que de- epistolar, se torne guia espiritual. penitente, com um corpo macerado lha Eustóquia, ele cria um cenáculo dica às mulheres, especialmente do Faz-se companheiro de viagem, con- pelo jejum, retirado no deserto, de baseado na leitura e estudo rigoroso hebraico, desde o primeiro cenáculo vencido de que «não há arte que se joelhos ou prostrado por terra, em da Escritura. Jerónimo é exegeta, no Aventino, a ponto de fazer entrar aprenda sem mestre», como escreve muitos casos segurando uma pedra professor, guia espiritual. Neste pe- Paula e Eustóquia «nas lutas dos a Rústico: isto mesmo «desejo fazer- 15 na mão direita para bater no peito e ríodo, empreende uma revisão das t r a d u t o re s » e, coisa então inaudita, te compreender, tomando-te pela com os olhos voltados para o Cruci- traduções latinas anteriores dos garantir-lhes a possibilidade de ler e mão, como se eu fosse um marinhei- fixo; coloca-se nesta linha a tocante Evangelhos, e mesmo talvez doutras cantar os Salmos na língua origi- ro que, tendo já passado pela expe- 16 obra-prima de Leonardo da Vinci partes do Novo Testamento; conti- nal. riência de vários naufrágios, tenta conservada na Pinacoteca do Vatica- nua o seu trabalho como tradutor de A sua é uma cultura colocada ao instruir um navegante inexperien- no. Outra forma de representar Jeró- homilias e comentários das Escritu- serviço dos outros, insistindo na ne- te».23 A partir daquele pacífico re- nimo é a que no-lo mostra nas vestes ras de Orígenes, desdobra-se numa cessidade dela para todo o evangeli- canto do mundo, acompanha a hu- de estudioso, sentado à sua escriva- frenética atividade epistolar, discute zador. Assim o recorda ao amigo manidade numa época de grandes publicamente com autores heréticos, Nepociano: «A palavra do sacerdote convulsões, marcada por aconteci- CO N T I N UA NA PÁGINA 9 número 40, terça-feira 6 de outubro de 2020 L’OSSERVATORE ROMANO página 9

Leonardo da Vinci «São Jerónimo penitente» (1480)

Deus. Na esteira de Elias, de João ler uma passagem de Isaías (53, 7-8), Batista e também do apóstolo Paulo, mas sem poder desvendar o seu sig- a indignação de Jerónimo perante a nificado. «Compreendes verdadeira- mentira, a hipocrisia e as falsas dou- mente o que estás a ler?»: pergunta trinas inflama o seu discurso, tor- Filipe; e o eunuco responde: «E co- nando-o provocatório e aparente- mo poderei compreender, sem al- mente rude. A dimensão polémica guém que me oriente?» (At 8, 30- dos seus escritos compreende-se me- 31).32 lhor, se for lida como uma espécie Jerónimo é o nosso guia, porque de cópia e atualização da mais au- conduz cada leitor ao mistério de Je- têntica tradição profética. Assim, Je- sus, como Filipe fez (cf. At 8, 35), e rónimo é modelo de testemunho in- adota responsável e sistematicamente flexível da verdade, que assume a se- as mediações exegéticas e culturais veridade da censura para induzir à necessárias para uma leitura correta conversão. Na intensidade das frases e enriquecedora da Sagrada Escritu- e imagens, manifesta-se a coragem ra.33 A competência nas línguas em do servidor que deseja agradar, não que foi comunicada a Palavra de aos homens, mas exclusivamente ao Deus, a análise e avaliação acuradas seu Senhor (cf. Gl 1, 10), por amor dos manuscritos, a investigação ar- de quem gastou todas as suas ener- queológica exata, para além do co- gias espirituais. nhecimento da história da interpre- tação, enfim todos os recursos meto- dológicos então disponíveis são utili- O estudo da Sagrada Escritura zados por ele, de forma harmoniosa O amor apaixonado de São Jeró- e erudita, em ordem a uma justa CO N T I N UA Ç Ã O DA PÁGINA 8 mente pela sua qualidade expressiva; nimo às divinas Escrituras está im- compreensão da Escritura inspirada. Jerónimo, ao contrário, destacava buído de obediência: antes de tudo, Esta dimensão exemplar da ativi- ninha, empenhado a traduzir e co- mais, na Escritura, o caráter humilde obediência a Deus, que Se comuni- dade de São Jerónimo é muito im- mentar a Sagrada Escritura, rodeado com que Deus Se revelou expressan- cou em palavras que exigem escuta portante também na Igreja de hoje. de livros e pergaminhos, investido do-se na natureza áspera e quase re v e re n t e 31 e, consequentemente, Se a Bíblia, conforme ensina a Dei na missão de defender a fé através primitiva da língua hebraica, quando obediência também a quantos na Ve r b u m , constitui «como que a alma do pensamento e da escrita. Albre- comparada com o primor do latim Igreja representam a tradição inter- da sagrada teologia»34 e a espinha cht Dürer — para citar outro exem- ciceroniano. Portanto, não é por um pretativa viva da mensagem revela- dorsal espiritual da prática religiosa plo ilustre — representou-o mais de gosto estético que ele se dedica à Sa- da. Entretanto a «obediência da fé» cristã,35 é indispensável que a ação uma vez nesta postura. grada Escritura, mas apenas — como (Rm 1, 5; 16, 26) não é uma mera re- de interpretar a Bíblia seja sustenta- Os dois aspetos evocados encon- é bem sabido — porque ela o leva a ceção passiva daquilo que é conheci- da por específicas competências. tram-se reunidos na pintura de Cara- conhecer Cristo, pois a ignorância do; mas exige o empenho ativo da Para isso, servem certamente os vaggio, na Galeria Borghese de Ro- das Escrituras é ignorância de Cris- investigação pessoal. Podemos con- 28 centros especializados da investiga- ma: com efeito, numa única cena, o to. siderar São Jerónimo um «servidor» ção bíblica (como o Pontificio Istituto idoso asceta é apresentado sumaria- Jerónimo ensina-nos que não se da Palavra, fiel e diligente, inteira- Biblico de Roma e, em Jerusalém, a mente coberto por um pano verme- hão de estudar apenas os Evange- mente consagrado a favorecer nos École Biblique eo Studium Biblicum lho, tendo sobre a mesa uma caveira, lhos, nem se deve comentar só a tra- seus irmãos de fé uma compreensão Fra n c i s c a n u m ) e patrística (como o símbolo da vaidade das realidades dição apostólica presente nos Atos mais adequada do «depósito» sagra- Au g u s t i n i a n u m de Roma), mas tam- terrenas, mas ao mesmo tempo é po- dos Apóstolos e nas Cartas, uma vez do que lhes foi confiado (cf. 1 Tm 6, bém cada Faculdade de Teologia de- derosamente representada também a que todo o Antigo Testamento é in- 20; 2 Tm 1, 14). Sem compreender o ve empenhar-se para que o ensino qualidade do estudioso, que conser- dispensável para penetrar na verda- que foi escrito pelos autores inspira- da Sagrada Escritura se encontre de va os olhos fixos no livro enquanto a de e na riqueza de Cristo.29 As pró- dos, a própria Palavra de Deus care- tal modo programado que garanta sua mão, no ato caraterístico do es- prias páginas do Evangelho o ates- ce de eficácia (cf. Mt 13, 19) e o aos alunos uma capacidade interpre- critor, molha a pena no tinteiro. tam: falam-nos de Jesus como Mes- amor a Deus não pode brotar. tativa competente, tanto na exegese De modo análogo — um modo tre que, para explicar o seu mistério, Ora, as páginas bíblicas nem sem- dos textos como nas sínteses de teo- que se poderia designar sapiencial recorre a Moisés, aos profetas e aos pre são imediatamente acessíveis. logia bíblica. Infelizmente, a riqueza —, devemos compreender o duplo Salmos (cf. Lc 4, 16-21; 24, 27.44-47). Como se diz em Isaías (29, 11), mes- da Escritura é ignorada ou minimi- perfil da trajetória biográfica de Je- Também nos Atos, a pregação de mo para quantos sabem «ler» — isto zada por muitos, porque não lhes rónimo. Quando, como verdadeiro Pedro e Paulo radica-se emblemati- é, aqueles que receberam uma sufi- foram fornecidas as bases essenciais «Leão de Belém», exagerava nos camente nas antigas Escrituras; sem ciente formação intelectual — o livro para o seu conhecimento. Por conse- tons, fazia-o em prol duma verdade elas, não se pode compreender ple- sagrado apresenta-se «selado», her- guinte, a par dum incremento dos da qual se considerava servidor in- namente a figura do Filho de Deus, meticamente fechado à interpreta- estudos eclesiásticos, dirigidos a sa- condicional. E, como ele próprio ex- o Messias Salvador. O Antigo Testa- ção. Por isso, é necessário que inter- cerdotes e catequistas, que propor- plica no primeiro dos seus escritos — mento não deve ser visto como um venha uma testemunha habilitada cionem de forma mais adequada a A Vida de São Paulo, Eremita de Te- amplo repertório de citações que de- para trazer a chave libertadora, a de competência na Sagrada Escritura, bas —, os leões são capazes de «for- monstram o cumprimento das profe- Cristo Senhor, o único capaz de deve ser promovida uma formação tes rugidos», mas também de lágri- cias na pessoa de Jesus de Nazaré; quebrar os selos e abrir o livro (cf. alargada a todos os cristãos, para 27 mas. Por isso, as duas fisionomias pelo contrário, e mais radicalmente, Ap 5, 1-10), para desvendar a prodi- que cada um se torne capaz de abrir que aparecem justapostas na sua fi- só à luz das «figuras» veterotesta- giosa efusão da graça (cf. Lc 4, 17- o livro sagrado e colher os seus fru- gura, na realidade, são elementos mentárias é possível conhecer em 21). Aliás muitos, mesmo entre os tos inestimáveis de sabedoria, espe- com os quais o Espírito Santo lhe plenitude o sentido do evento de cristãos praticantes, declaram-se rança e vida.36 permitiu maturar a sua unidade inte- Cristo, que se realizou na sua morte abertamente incapazes de ler (cf. Is r i o r. Quero lembrar aqui o que o meu e ressurreição. Daí a necessidade de 29, 12), não por analfabetismo, mas Predecessor deixou expresso na redescobrir, na práxis catequética e por não estarem preparados para a exortação apostólica Verbum Domini: na pregação bem como nos estudos linguagem bíblica, os seus modos de Amor à Sagrada Escritura «É possível compreender a sacra- teológicos, a contribuição indispen- se expressar e as tradições culturais mentalidade da Palavra através da O traço peculiar da figura espiri- sável do Antigo Testamento, que há antigas, pelo que o texto bíblico re- analogia com a presença real de tual de São Jerónimo é, sem dúvida, de ser lido e assimilado como ali- sulta indecifrável, como se estivesse Cristo sob as espécies do pão e do o seu amor apaixonado à Palavra de mento precioso (cf. Ez 3, 1-11; Ap 10, escrito num alfabeto desconhecido e vinho consagrados. (…) Referindo- 30 Deus, transmitida à Igreja na Sagra- 8-11). numa língua enigmática. se à atitude que se deve adotar tanto da Escritura. Se todos os Doutores A dedicação total de Jerónimo à Por isso, torna-se necessária a me- em relação à Eucaristia como à Pala- da Igreja — e de forma particular os Escritura manifesta-se numa forma diação do intérprete que exerça a vra de Deus, São Jerónimo afirma: da primeira época cristã — extraíram de expressão apaixonada, semelhan- sua função «diaconal», colocando-se “Lemos as Sagradas Escrituras. Eu explicitamente da Bíblia os conteú- te à dos antigos profetas. É deles ao serviço de quem não consegue penso que o Evangelho é o Corpo dos do seu ensinamento, Jerónimo que o nosso Doutor extrai o fogo in- compreender o sentido daquilo que de Cristo; penso que as santas Escri- fê-lo de maneira mais sistemática e, terior, que se torna palavra impetuo- foi escrito profeticamente. A figura turas são o seu ensinamento. E de certa forma, única. sa e explosiva (cf. Jr 5, 14; 20, 9; 23, que se pode evocar, a este respeito, é quando Ele fala em ‘comer a minha Nos últimos tempos, os exegetas 29; Ml 3, 2; Sir 48, 1; Mt 3, 11; Lc 12, a do diácono Filipe, solicitado pelo carne e beber o meu sangue’ (Jo 6, descobriram a genialidade narrativa 49), necessária para expressar o zelo Senhor para ir ao encontro do eunu- e poética da Bíblia, exaltada precisa- ardente do servidor pela causa de co que, sentado no seu carro, está a CO N T I N UA NA PÁGINA 10 página 10 L’OSSERVATORE ROMANO terça-feira 6 de outubro de 2020, número 40

«Scripturæ Sacræ affectus»

CO N T I N UA Ç Ã O DA PÁGINA 9 gall), onde foram beber a cultura e a munidades linguísticas ver-se-iam túnica inconsútil da Igreja muitas arte cristã».42 A literatura, as artes e impossibilitadas de comunicar entre vezes acaba dilacerada pelas divisões 53), embora estas palavras se possam a própria linguagem popular inspira- si; fecharíamos as portas da história entre os cristãos, Jerónimo olha para entender do Mistério [Eucarístico], ram-se constantemente na versão je- uns aos outros e negaríamos a possi- a Cátedra de Pedro como ponto de todavia também a palavra da Escri- ronimiana da Bíblia, deixando-nos bilidade de construir uma cultura do referência seguro: «Eu, que não sigo tura, o ensinamento de Deus, é ver- tesouros de beleza e devoção. e n c o n t ro . 49 Com efeito, sem tradu- mais ninguém senão Cristo, uno-me dadeiramente o corpo de Cristo e o ção, não se dá hospitalidade, antes em comunhão com a Cátedra de Pe- 37 Reconhecendo este facto incontes- seu sangue”». tável, o Concílio de Trento estabele- pelo contrário, reforçam-se as ações dro. Eu sei que sobre esta pedra está Infelizmente, em muitas famílias ceu o caráter «autêntico» da Vulgata de hostilidade. O tradutor é um edificada a Igreja». No meio das cristãs — ao contrário do que se no decreto I n s u p e r, prestando home- construtor de pontes. Quantos juí- disputas com os arianos, escreve a prescreve na To ra h (cf. Dt 6, 6) —, nagem ao uso secular que a Igreja zos precipitados, quantas condena- Dâmaso: «Quem não junta contigo, desperdiça; quem não é de Cristo, é não há ninguém que se sinta capaz dela fizera e atestando o seu valor ções e conflitos nascem do facto de do anticristo».54 Por isso, pode tam- de dar a conhecer aos filhos a Pala- como instrumento para o estudo, a ignorarmos a língua dos outros e de bém afirmar: «Eu estou com todo vra do Senhor com toda a sua bele- pregação e as controvérsias públi- não nos aplicarmos, com tenaz espe- aquele que estiver na cátedra de Pe- za e força espiritual. Por isso, quis cas.43 Com isso, porém, não se pro- rança, a esta prova de amor infindá- d ro » . 55 instituir o Domingo da Palavra de curava minimizar a importância das vel que é a tradução! D eus,38 para encorajar a leitura oran- línguas originais, como aliás Jeróni- O próprio Jerónimo teve de se Jerónimo encontrou-se frequente- te da Bíblia e a familiaridade com a mo não cessava de lembrar, e muito opor ao pensamento dominante do mente envolvido em ásperas dispu- Palavra de Deus.39 Assim todas as menos proibir novos empreendimen- seu tempo. Se, nos alvores do Impé- tas pela causa da fé. O seu amor à outras manifestações de religiosidade tos de tradução integral no futuro. rio Romano, era relativamente co- verdade e a defesa ardente de Cristo talvez o tenham levado a algum ex- serão enriquecidas de sentido, orien- São Paulo VI, assumindo o mandato mum saber grego, já no tempo dele cesso de violência verbal nas suas tadas segundo a hierarquia dos valo- dos Padres do Concílio Vaticano II, isso constituía uma raridade. E, con- cartas e livros. Contudo o objetivo res e dirigidas para o vértice da fé, quis que o trabalho de revisão da tudo, ele tornou-se um dos melhores que guia a sua vida é a paz: «A paz, ou seja, a plena adesão ao mistério tradução da Vulgata fosse concluído conhecedores da língua e literatura quero-a também eu; e não só a dese- de Cristo. e colocado à disposição de toda a greco-cristãs e empreendeu uma via- jo, mas imploro-a! Entendo, porém, Igreja. E, em 1979, São João Paulo gem ainda mais árdua quando, sozi- a paz de Cristo, a paz autêntica, II, mediante a constituição apostóli- nho, se dedicou ao estudo do he- A Vulgata 44 uma paz sem resíduos de hostilida- ca Scripturarum thesaurus, p ro m u l - braico. Se, como está escrito, «os li- de, uma paz que não abrigue em si O «fruto mais doce da árdua se- gou a edição típica chamada Neovul- mites da minha linguagem são os li- a guerra; não a paz que subjuga os 40 50 menteira» que foi o estudo do gre- gata. mites do meu mundo», pode-se di- adversários, mas a que nos une em go e do hebraico, feito por Jeróni- zer que devemos ao poliglotismo de amizade!».56 mo, é a tradução do Antigo Testa- São Jerónimo uma compreensão do O nosso mundo precisa, mais do mento em latim a partir do original A tradução como inculturação cristianismo mais universal e, simul- que nunca, do remédio da misericór- hebraico. Até então, os cristãos do taneamente, mais coerente com as Com esta sua tradução, Jerónimo dia e da comunhão. Deixai-me repe- Império Romano podiam ler inte- suas fontes. conseguiu «inculturar» a Bíblia na tir uma vez mais: ofereçamos um gralmente a Bíblia apenas em grego: língua e cultura latinas, tornando-se Com a celebração do centenário testemunho de comunhão fraterna, quanto aos livros do Novo Testa- esta operação um paradigma perma- da morte de São Jerónimo, o olhar que se torne fascinante e luminoso.57 mento, foram escritos em grego; pa- nente para a ação missionária da volta-se para a vitalidade missionária «Por isto é que todos conhecerão ra os do Antigo, havia uma versão Igreja. Na verdade, «quando uma extraordinária que se manifesta na que sois meus discípulos: se vos completa, a chamada Septuaginta (ou comunidade acolhe o anúncio da tradução da Palavra de Deus em amardes uns aos outros» (Jo 13, 35). seja, a versão dos Setenta), feita pela salvação, o Espírito Santo fecunda a mais de três mil línguas. Muitos são Foi o pedido que Jesus fez ao Pai comunidade judaica de Alexandria sua cultura com a força transforma- os missionários, a quem se deve o numa intensa oração: «Que todos por volta do século II (a.C.). Mas, dora do Evangelho»,45 estab elecen- precioso trabalho de publicação de sejam um só (...) em Nós e o mundo para os leitores de língua latina, não do-se assim uma espécie de circulari- gramáticas, dicionários e outros ins- creia» (Jo 17, 21). existia uma versão completa da Bí- dade: se a tradução de Jerónimo é trumentos linguísticos que propor- blia na sua língua; havia apenas al- devedora à língua e à cultura dos cionam as bases para a comunicação gumas traduções, parciais e incom- clássicos latinos, cujos vestígios são humana e são um veículo para o Amar o que Jerónimo amou pletas, feitas a partir do grego. Cabe bem visíveis, por sua vez ela, com a «sonho missionário de chegar a to- Ao concluir esta Carta, desejo fa- a Jerónimo — e, depois dele, aos sua linguagem e o seu conteúdo dos».51 É necessário valorizar todo seus continuadores — o mérito de ter zer mais um apelo a todos. Entre simbólico e rico de imagens, tornou- este trabalho e investir nele, contri- empreendido uma revisão e uma no- muitos elogios feitos a São Jerónimo se um elemento criador de cultura. buindo para a superação das frontei- va tradução de toda a Escritura. pelos seus vindouros, encontra-se es- A obra de tradução de Jerónimo ras da incomunicabilidade e falta de te: não foi considerado simplesmente Tendo começado em Roma, com o encontro. Ainda há muito que fazer. encorajamento do Papa Dâmaso, a ensina-nos que os valores e as for- um dos maiores cultores da «biblio- mas positivas de cada cultura consti- Como foi dito, não existe entendi- teca» de que se nutre o cristianismo revisão dos Evangelhos e dos Sal- mento sem tradução:52 não nos com- mos, depois, já no seu retiro em Be- tuem um enriquecimento para toda ao longo dos tempos, a começar pe- a Igreja. As várias maneiras, em que preenderíamos a nós mesmos nem lo tesouro da Sagrada Escritura, mas lém, lançou-se à tradução de todos aos outros. os livros veterotestamentários direta- é anunciada, compreendida e vivida aplica-se-lhe aquilo que ele mesmo mente do hebraico; uma obra, que a Palavra de Deus em cada nova tra- escreveu sobre Nepociano: «Com a dução, enriquecem a própria Escritu- leitura assídua e a meditação cons- se prolongou por vários anos. Jerónimo e a Cátedra de Pedro ra, pois esta, segundo a conhecida tante, fizera do seu coração uma bi- Na realização deste trabalho de 58 expressão de Gregório Magno, cres- Jerónimo teve sempre uma relação blioteca de Cristo». Jerónimo não tradução, Jerónimo pôs a render o 46 poupou esforços para enriquecer a seu conhecimento do grego e do he- ce com o leitor, recebendo novas particular com a cidade de Roma: acentuações e tonalidades ao longo Roma é o porto espiritual aonde sua biblioteca, vendo nela um labo- braico, bem como a sua sólida for- ratório indispensável para a compre- mação latina, e serviu-se dos instru- dos séculos. A inserção da Bíblia e volta continuamente; em Roma, for- do Evangelho nas diferentes culturas mou-se o humanista e forjou-se o ensão da fé e para a vida espiritual; mentos filológicos que tinha à sua e, nisto, constitui um exemplo admi- disposição, em particular as Hexapla faz com que a Igreja se manifeste cristão; ele é homo romanus. Esta li- cada vez mais como «sponsa ornata gação verifica-se, de modo muito pe- rável também para o presente. Mas de Orígenes. O texto final combina- ele foi mais longe! O estudo não se va a continuidade nas fórmulas já de monilibus suis — uma noiva que se culiar, com a língua da cidade, o la- adorna com as suas joias» (Is 61, 10). tim, de que foi mestre e cultor, mas limitou aos anos juvenis da forma- uso comum com uma maior aderên- ção, mas foi um compromisso cons- cia ao ditame hebraico, sem sacrifi- E simultaneamente atesta que a Bí- verifica-se sobretudo com a Igreja de blia precisa de ser constantemente Roma, designadamente a Cátedra de tante, uma prioridade de cada dia da car a elegância da língua latina. O sua vida. Enfim, podemos dizer que traduzida nas categorias linguísticas Pedro. Embora anacronicamente, a resultado é um verdadeiro monu- ele assimilou uma biblioteca inteira e e mentais de cada cultura e de cada tradição iconográfica retratou-o com mento que marcou a história cultural tornou-se dispensador de ciência pa- geração, mesmo na cultura seculari- a púrpura cardinalícia, para eviden- do Ocidente, modelando a sua lin- ra muitos outros. No século I V, Pos- zada global do nosso tempo.47 ciar a sua pertença ao presbitério de guagem teológica. Superadas algu- tumiano, que viajou pelo Oriente mas repulsas iniciais, a tradução de Foi lembrado, justamente, que é Roma junto do Papa Dâmaso. Foi para descobrir movimentos monásti- Jerónimo tornou-se imediatamente possível estabelecer uma analogia em Roma que começou a revisão da cos, foi testemunha ocular do estilo património comum tanto dos erudi- entre a tradução, enquanto ato de tradução. E mesmo quando as inve- de vida de Jerónimo, com quem vi- tos como do povo cristão: daí o no- hospitalidade linguística, e outras jas e incompreensões o forçaram a veu alguns meses, tendo-o descrito me de Vu l g a t a .41 A Europa da Idade formas de acolhimento.48 Por isso, a deixar a cidade, sempre permaneceu assim: «Encontra-se todo embrenha- Média aprendeu a ler, rezar e racio- tradução não é um trabalho que tem intensamente ligado à Cátedra de do na leitura, todo embrenhado nos cinar nas páginas da Bíblia traduzi- a ver unicamente com a linguagem, Pe d ro . livros; não descansa de dia nem de da por Jerónimo. «A Sagrada Escri- mas corresponde verdadeiramente a Para Jerónimo, a Igreja de Roma noite; sempre está a ler ou a escrever tura tornou-se, assim, uma espécie uma decisão ética mais ampla, que é o terreno fecundo onde a semente qualquer coisa».59 de “dicionário imenso” (P. Claudel) está ligada com a visão inteira da vi- de Cristo produz fruto abundante.53 e de “atlas iconográfico” (M. Cha- da. Sem tradução, as diferentes co- Num período turbulento, em que a CO N T I N UA NA PÁGINA 11 número 40, terça-feira 6 de outubro de 2020 L’OSSERVATORE ROMANO página 11

«Scripturæ Sacræ Affectus»

CO N T I N UA Ç Ã O DA PÁGINA 10 dias, aquilo a que Jerónimo instiga- va sem cessar os seus contemporâ- A propósito, penso muitas vezes neos: «Lede com muita frequência na experiência que pode fazer hoje as divinas Escrituras; aliás, que o Li- um jovem quando entra numa livra- vro Sagrado nunca seja deposto das ria da sua cidade ou num site da In- vossas mãos»?60 ternet e procura lá o sector dos li- vros religiosos. Quando existe, na Exemplo luminoso é a Virgem maioria dos casos trata-se de um sec- Maria, evocada por Jerónimo sobre- tor que não só é marginal, mas care- tudo na sua maternidade virginal, ce de obras substanciosas. Exami- mas também na sua atitude de leito- nando aquelas estantes ou as pági- ra orante da Escritura. Maria medi- nas em rede, dificilmente um jovem tava no seu coração (cf. Lc 2, 19.51) poderia compreender como a inves- «porque era santa e lera a Sagrada tigação religiosa seja uma aventura Escritura, conhecia os profetas e apaixonante que une pensamento e lembrava-se do que o anjo Gabriel coração; como a sede de Deus tenha Lhe anunciara e fora vaticinado pe- inflamado grandes mentes no decur- los profetas (...), via o recém-nascido so dos séculos até hoje; como o que era seu filho, o seu único filho amadurecimento da vida espiritual que jazia e chorava naquele presé- tenha contagiado teólogos e filóso- pio, mas verdadeiramente a quem fos, artistas e poetas, historiadores e Ela via ali deitado era o Filho de cientistas. Um dos problemas atuais Deus. O que Ela via comparava-o — e não só da religião — é o analfa- com quanto lera e ouvira».61 Confie- betismo: faltam as habilitações her- mo-nos a Ela, que pode, melhor do menêuticas que nos tornem intérpre- que ninguém, ensinar-nos como ler, tes e tradutores credíveis da nossa Tintoretto, «São Jerónimo no deserto» própria tradição cultural. De forma meditar, rezar e contemplar a Deus especial aos jovens, quero lançar um que Se faz presente na nossa vida, desafio: parti à procura da vossa he- quanto possuía para comprar a «pé- atual constitui um apelo a amar o sem nunca Se cansar. rança. O cristianismo torna-vos her- rola de grande valor» (Mt 13, 46). que Jerónimo amou, redescobrindo Roma, em São João de Latrão, deiros dum património cultural insu- Verdadeiramente Jerónimo é a os seus escritos e deixando-se tocar perável, do qual deveis tomar posse. «Biblioteca de Cristo», uma biblio- pelo impacto duma espiritualidade na Memória litúrgica de São Apaixonai-vos por esta história, que teca perene que, passados dezasseis que se pode descrever, no seu núcleo Jerónimo, 30 de setembro do ano é vossa. Tende a ousadia de fixar o séculos, continua a ensinar-nos o mais vital, como o desejo inquieto e 2020, oitavo do meu pontificado. olhar naquele jovem inquieto que foi que significa o amor de Cristo, um apaixonado dum conhecimento Jerónimo; ele, como a personagem amor inseparável do encontro com a maior do Deus da Revelação. Como da parábola de Jesus, vendeu tudo sua Palavra. Por isso, o centenário podemos deixar de ouvir, em nossos

1 «Deus qui beato Hieronymo 14 Idem, Vita Malchi monachi capti- re di San Girolamo» (Città Nuova, 43 Cf. Denzinger-Schönmetzer, presbitero suavem et vivum Scrip- vi 7, 3: PL 23, 59-60; ou então B. De- Roma 2014), 111. Enchiridion Symbolorum, 1506. turæ Sacræ affectum tribuisti, da, ut górski (ed.), Opere storiche e agiogra- 28 Cf. São Jerónimo, In Isaiam 44 Publicada em 25 de abril de populus tuus verbo tuo uberius ala- fiche, vol. XV da coletânea «Opere di P ro l .: PL 24, 17; ou então R. Maisano 1979; cf. AAS 71 (1979), 557-559. San Girolamo» (Città Nuova, Roma tur et in eo fontem vitae inveniet — (ed.), Commento a Isaia (1-4), vol. 45 Francisco, Exort. ap. Evangelii Ó Deus, que destes ao presbítero 2014), 196-199. IV/1 da coletânea «Opere di San Gi- gaudium, 116: AAS 105 (2013), 1068. São Jerónimo um terno e vivo afeto 15 São Jerónimo, Praef. Esther, 2: rolamo» (Città Nuova, Roma 2013), 46 Cf. Hom. in Ezech. I, 7: PL 76, à Sagrada Escritura, fazei que o vos- PL 28, 1505. 52-53. 29 843D. so povo se alimente cada vez mais 16 CSEL Cf. Conc. Ecum. Vat. II, Const. Cf. Idem, Epistula 108, 26: 47 com a vossa palavra e encontre nela 55, 344-345. dogm. Dei Verbum, 14. Cf. Francisco, Exort. ap. Evan- a fonte da vida»: Oração Coleta da 30 gelii gaudium, 116: AAS 105 (2013), 17 Idem, Epistula 52, 8: CSEL 54, Cf. ibidem. Missa de São Jerónimo, Missale Ro- 1068. 428-429; cf. Bento XVI, Exort. ap. 31 Cf. ibid., 7. manum, editio typica tertia (Cidade 48 Cf. P. Ricœur, Sur la traduction pós-sinodal Verbum Domini, 60: AAS 32 do Vaticano 2002). Cf. São Jerónimo, Epistula 53, 5: (Bayard, Paris 2004). 102 (2010), 739. CSEL 2 54, 451; ou então S. Cola (ed.), São Jerónimo, Epistula 22, 30: 18 49 São Jerónimo, Praef. Paralipome- Le Lettere, vol. II da coletânea Cf. Francisco, Exort. ap. Evan- CDEL 54, 190. non LXX, 1.10-15: SCh 592, 340. «Opere di San Girolamo» (Città gelii gaudium, 24: AAS 105 (2013), 3 1029-1030. Cf. AAS 12 (1920), 385-423. 19 São Jerónimo, Praef. in Penta- Nuova, Roma 1997), 54. 50 4 Audiências Gerais de 7 e 14 de teuchum: PL 28, 184. 33 Cf. Conc. Ecum. Vat. II, Const. L. Wittgenstein, Tractatus logico- philosophicus, 5.6. novembro de 2007: Insegnamenti, 20 Idem, Epistula 80, 3: CSEL 55, dogm. Dei Verbum, 12. III/2 (2007), 553-556; 586-591. 105. 34 Ibid., 24. 51 Francisco, Exort. ap. Evangelii 5 Cf. Sínodo dos bispos — XII as- 21 Francisco, Mensagem por ocasião 35 Cf. ibid., 25. gaudium, 31: AAS 105 (2013), 1033. 52 sembleia geral ordinária, Me n s a g e m da XXIV Sessão Pública solene das 36 Cf. ibid., 21. Cf. G. Steiner, After Babel. As- ao Povo de Deus (24 de outubro de Academias Pontifícias (4 de dezembro pects of language and translation (O x- 37 N. 56. A citação de São Jeróni- 2008). de 2019): L’Osservatore Romano ford University Press, New York mo encontra-se In Psalmum 147: CCL 6 XII 1975). Cf. AAS 102 (2010), 681-787. (ed. portuguesa de 10/ /2019), 16. 78, 337-338; ou então A. Capone 22 53 7 São Jerónimo, C h ro n i c u m 374: PL Bento XVI, Exort. ap. pós-sino- (ed.), 59 Omelie sui Salmi (119-149), Cf. São Jerónimo, Epistula 15, 1: 27, 697-698. dal Verbum Domini, 30: AAS 102 vol. IX/2 da coletânea «Opere di CSEL 54, 63. (2010), 709. San Girolamo» (Città Nuova, Roma 54 CSEL 8 Idem, Epistula 125, 12: CSEL 56, Idem, Epistula 15, 2: 54, 62- 23 2018), 171. 131. São Jerónimo, Epistula 125, 15.2: 64. 38 CSEL 56, 133. Cf. Carta ap. sob forma de mo- 55 CSEL 9 CSEL Idem, Epistula 16, 2: 54, 69. Cf. Epistula 122, 3: 56, 63. 24 Idem, Epistula 3, 6: CSEL 54, 18. tu proprio Aperuit illis (30 de setem- 56 10 Cf. Francisco, Homilia na Missa Idem, Epistula 82, 2: CSEL 55, 25 Cf. São Jerónimo, Praef. Josue 1, bro de 2019). 109. matutina (10 de dezembro de 2015). 39 9-12: SCh 592, 316. Cf. Francisco, Exort. ap. Evan- 57 A história é contada por A. Louf, Cf. Exort. ap. Evangelii gau- 26 gelii gaudium, 152; 175: AAS 105 São Jerónimo, Homilia in Psal- dium, 99: AAS 105 (2013), 1061. Sotto la guida dello Spirito (Qiqajon, (2013), 1083-1084; 1093. Magnano-BI 1990), 154-155. mum 95: PL 26, 1181; ou então A. Ca- 58 São Jerónimo, Epistula 60, 10: pone (ed.), 59 Omelie sui Salmi (1- 40 São Jerónimo, Epistula 52, 3: 11 São Jerónimo, Epistula 125, 12: CSEL 54, 561. 115), vol. IX/1 da coletânea «Opere CSEL 54, 417. CSEL 56, 131. 59 Sulpicius Severus, Dialogus I, 9, di San Girolamo» (Città Nuova, 41 Cf. Bento XVI, Exort. ap. pós-si- 12 SC Cf. Bento XVI, Exort. ap. pós-si- Roma 2018), 357. nodal Verbum Domini, 72: AAS 102 5: h 510, 136-138. 60 nodal Verbum Domini, 89: AAS 102 27 Idem, Vita S. Pauli primi eremi- (2010), 746-747. São Jerónimo, Epistula 52, 7: (2010), 761-762. tae, 16, 2: PL 23, 28; ou então B. De- 42 São João Paulo II, Carta aos ar- CSEL 54, 426. 13 São Jerónimo, Epistula 125, górski (ed.), Opere storiche e agio- tistas (4 de abril de 1999), 5: AAS 91 61 Idem, Homilia de nativitate Do- 9.15.19: CSEL 56, 128.133-134.139. grafiche, vol. XV da coletânea «Ope- (1999), 1159-1160. mini I V: PL Suppl. 2, 191. página 12 L’OSSERVATORE ROMANO terça-feira 6 de outubro de 2020, número 40

Na tarde de 26 de setembro, o Papa Francisco celebrou a missa no altar da Cátedra da Basílica de São Pedro, com o Corpo da Gendarmaria, por ocasião da festa do santo padroeiro, São Miguel Arcanjo. Eis a homilia improvisada pelo Sumo Pontífice. As Leituras deste domingo falam- nos da conversão. Conversão do co- ração; conversão significa “mudar de vida”, ou seja, o coração que não se- gue um bom caminho deve encon- trar um bom caminho. Mas não se trata apenas da nossa conversão: é também a conversão de Deus. «Mas, convertendo-se o ímpio da impiedade que cometeu — ouvi- Missa do Pontífice para o Corpo da Gendarmaria mos na primeira Leitura — e proce- dendo com retidão e justiça, conser- vará viva a sua alma. E refletindo, converter-se-á de todas as transgres- A vossa autoridade consiste no serviço sões que cometeu; assim, certamente viverá» (Ez 18, 27-28). O malvado minha, como nós caminhamos, para porque o filho sentia que devia vol- Ele: fortes, disciplinados, mas humil- converte-se. Digamos mais facilmen- se encontrar connosco. tar para o seu pai; tinha que voltar des e servidores. te: o pecador converte-se e Deus por necessidade, mas de qualquer também se converte ao pecador. O Este é o perdão de Deus, o modo Uma vez ouvi um idoso que, fa- modo o filho deu o passo — o pai, encontro com Deus, a conversão, de se converter. “Mas como posso lando do filho que repreendia os que estava no terraço, desceu ime- existe em ambos os lados; ambos eu ir ter com Deus? Sou tão peca- próprios filhos, dizia: “O meu filho diatamente e foi ao seu encontro. não compreendeu que todas as vezes procuram encontrar-se. O perdão dor!”. É isto que Deus quer: que Não o esperou à porta apontando o que repreende os filhos, perde a au- não consiste só em ir, bater à porta e vás, que vás ao seu encontro. O que dedo, mas abraçou-o! E quando o fi- toridade”. A vossa autoridade con- dizer: “Pe rd o a - m e ”, e pelo interco- fez o pai do filho pródigo? — Aque- lho lhe pediu perdão, o abraço fe- siste no serviço: estabelecer limites, municador respondem: “Perdo o-te. le que saiu com o dinheiro e gastou chou-lhe a boca. Esta é a conversão. fazer com que as coisas aconteçam, Vai-te embora!”. O perdão é sempre a sua fortuna em vícios — O que fez Este é o amor de Deus. É um cami- mas no serviço, na caridade, na ama- um abraço de Deus. Mas Deus ca- o pai? Quando viu o filho chegar — nho de encontro mútuo. bilidade. E esta é uma grande voca- E sobre isto gostaria de salientar: ção. Para mim seria muito triste se um coração sempre aberto ao encon- alguém me dissesse: “Não, o vosso tro com Deus — esta é a conversão, Corpo da Gendarmaria... são empre- estar aberto ao encontro com Deus gados, empregados que cumprem o Audiência geral de 30 de setembro — qual é o modelo? O modelo é o horário e depois não se interes- sam...”. Não, não! Este não é o mo- do Evangelho, do rico, do pobre, o do de converter, nem de levar os ou- modelo é Jesus Cristo. Ele veio ao CO N T I N UA Ç Ã O DA PÁGINA 5 Coloquemos este caminho de cu- tros a converter-se. O vosso caminho nosso encontro. Ouvimos a segunda ra sob a proteção da Virgem Maria, é o serviço, como o pai que vai ao sustentável resolva os nossos pro- Nossa Senhora da Saúde. Ela, que Leitura: «Que haja em vós o mesmo encontro do filho, como o irmão que blemas. Não o fez nem o fará, pois carregou Jesus no seu ventre, nos sentimento que houve também em vê algo e diz: “Não, isto não se po- não o pode fazer, apesar de alguns ajude a ter confiança. Animados Cristo Jesus que, sendo de condição de fazer, isto não é bom”. O cami- falsos profetas continuarem a pro- pelo Espírito Santo, poderemos divina — Jesus era Deus — não con- nho é este, mas dito com o coração, meter “o efeito dominó” que nunca trabalhar juntos para o Reino de siderou um privilégio ser como Deus com humildade, com proximidade. — ou seja, permanecer ali — mas es- chega (“Trickle-down effect” em in- Deus que Cristo inaugurou, vindo A Bíblia diz, no Evangelho, que vaziou-se a si mesmo, assumindo a glês, “d e r ra m e ” em espanhol (cf. até nós, neste mundo. É um Reino Jesus estava sempre com os pecado- condição de servo, fazendo-se seme- Evangelii gaudium, 54). Ouvistes o de luz no meio da escuridão, de res, também com os malfeitores, mas lhante aos homens; [...] humilhou-se teorema do copo: o importante é justiça no meio de tantos ultrajes, eles sentiam-se próximos de Jesus, que o copo se encha e assim de- de alegria no meio de tanta dor, de a si mesmo, tornando-se obediente não se sentiam julgados. Contudo, pois cai sobre os pobres e sobre os cura e salvação no meio da doença até à morte, e morte de cruz» (Fl 2, Jesus nunca disse uma mentira, uma demais, e recebem riquezas. Mas e da morte, de ternura no meio do 5-8). falsidade. Não: “Esta é a verdade, há um fenómeno: o copo começa a ódio. Que Deus nos conceda “vira- O caminho da conversão é aproxi- este é o caminho”. Mas dizia-o com encher-se e quando está quase lizar” o amor e globalizar a esperan- mar-se, é a proximidade, mas trata- bondade, com o coração, como um cheio, cresce, cresce e cresce mas ça à luz da fé. se de uma proximidade que consiste irmão. nunca acontece o efeito dominó. no serviço. Esta palavra leva-me a Obrigado pelo vosso serviço. Deve-se ter cuidado. No final da catequese o Santo Padre dirigir-me a vós, caros irmãos Gen- Obrigado, porque vejo que o vosso Precisamos de trabalhar urgente- saudou em várias línguas os fiéis, darmes. Cada vez que vos aproxi- serviço segue este caminho. Por ve- mente para gerar boas políticas, dirigindo aos de língua portuguesa as mardes para servir, imitai Jesus Cris- zes alguém pode deslizar um pouco, para conceber sistemas de organi- seguintes palavras. to. Cada vez que derdes um passo mas na vida quem não desliza? To- zação social que recompensem a Dirijo uma cordial saudação aos para resolver uma questão, pensai dos! Mas levantemo-nos: “Não me participação, o cuidado e a genero- fiéis de língua portuguesa. Hoje que prestais um serviço, que fazeis comportei bem, mas agora...”. É sidade, e não a indiferença, a ex- celebramos a memória de São Jeró- uma conversão, a qual é um serviço. preciso retomar sempre este caminho ploração e os interesses particula- nimo que nos lembra que a igno- E segundo o vosso modo de agir, fa- para a conversão das pessoas e tam- res. Devemos ir em frente com ter- rância das Escrituras é ignorância reis o bem aos outros. É por isto bém para a própria conversão. No nura. Uma sociedade solidária e de Cristo. Queridos amigos, de que vos agradeço. O vosso serviço é serviço nunca se erra, porque o ser- equitativa é uma sociedade mais bom grado fazei da Bíblia o ali- uma dupla conversão: uma conver- viço é amor, é caridade, é proximi- saudável. Uma sociedade participa- mento diário do vosso diálogo com são vossa — como a de Jesus Cristo dade. O serviço é o caminho que tiva — onde os “últimos” são consi- o Senhor, assim vos convertereis — deixar as comodidades, deixar... Deus escolheu em Jesus Cristo para derados os “p r i m e i ro s ” — fortalece em colaboradores sempre mais dis- “Vou servir”; e a outra conversão, a nos perdoar, para nos converter. a comunhão. Uma sociedade onde poníveis para trabalhar pelo Reino do próximo, que no início não se Obrigado por este vosso serviço, e a diversidade é respeitada é muito que Jesus inaugurou neste mundo. sente castigado, mas ouvido, corrigi- continuai sempre com esta proximi- mais resistente a qualquer tipo de Que Deus vos abençoe a vós e a do, com a humildade de Jesus. Por dade humilde mas forte que Jesus v í ru s . vossos entes queridos! isso, Jesus pede-vos que sejais como Cristo nos ensinou. Obrigado! número 40, terça-feira 6 de outubro de 2020 L’OSSERVATORE ROMANO página 13

Mensagem do Papa por ocasião do centenário da aprovação canónica da congregação de São Miguel Arcanjo À escuta das crianças e dos jovens descartados da sociedade

Uma exortação a dar continuidade às pelos seus filhos durante estes cem no crescimento humano e religioso. Neste vosso Ano jubilar, cada um «obras a favor das crianças» e dos anos, adaptando-o sabiamente à rea- A tal respeito, apraz-me recordar as de vós possa colocar-se docilmente à jovens «pobres e abandonados» foi lidade e às renovadas urgências pas- palavras com que o vosso Fundador escuta do Espírito Santo, deixando- dirigida pelo Santo Padre à torais, inclusive à custa do dom su- resumia a sua missão: «Gostaria de se plasmar por Ele, a fim de renovar congregação de São Miguel Arcanjo, premo da vida, como foi testemu- reunir milhões de crianças órfãs de a necessária comunhão fraterna, em que celebra o centenário da sua nhado pelo martírio dos vossos Bea- todas as nações e raças para as con- vista de uma missão cada vez mais aprovação canónica. Publicamos em tos Ladislau Błądziński e Adalberto duzir a Deus» (Carta à Madre Isa- fecunda. Não vos canseis de ouvir o seguida o texto da mensagem enviada Nierychlewski. bel, 11 de abril de 1910, in: Epistulae, “brado” que as crianças e os jovens para esta circunstância ao superior- O vosso carisma, atual comonun- V, p. 91). indefesos trazem impresso nos seus geral e divulgada no dia 27 de ca, carateriza-se pela solicitude para Hoje, os mais necessitados assu- olhos, tornando-se para eles porta- setembro, na qual Francisco recordou o com as crianças pobres, órfãs e mem o rosto não apenas de quantos dores de esperança e de futuro. Não vínculo que unia o fundador, beato abandonadas, não desejadas por nin- vivem na carência material, mas são vos esqueçais que «Jesus quer que Bronislau Markiewicz, a dom Bosco. guém e muitas vezes consideradas frequentemente escravos dos condi- toquemos a miséria humana, que to- descartes da sociedade. Enquanto cionamentos e dependências moder- quemos a carne sofredora dos ou- tros. Espera que renunciemos a pro- me regozijo por tudo o que fizestes nos. Por isso, o vosso Instituto é ao longo destas décadas a favor das curar aqueles abrigos pessoais ou co- chamado a dedicar todo o cuidado e crianças abandonadas, convido-vos a munitários que permitem que nos atenção às realidades juvenis e so- continuar com entusiasmo renovado mantenhamos à distância do nó do ciais expostas ao perigo do mal e do o vosso compromisso educativo em drama humano, a fim de aceitarmos afastamento de Deus. Outro impor- prol daqueles que muitas vezes nin- verdadeiramente entrar em contacto tante campo de apostolado que cul- guém quer acolher nem defender, com a vida concreta dos outros e de tivais, e que vos exorto a continuar, mediante escolas, oratórios, lares de conhecermos a força da ternura» acolhimento, estruturas de hospitali- é o cuidado pastoral através da pala- (Evangelium gaudium, 270). Vivendo dade e outras realidades assistenciais vra impressa. A Editora Michalineum assim, sereis verdadeiras testemunhas e formativas. A educação humana e e as duas revistas: Temperanza e La- de Cristo e defensores dos homens. cristã, especialmente em benefício voro (“Temperança e Trabalho”) e Os tempos atuais precisam de pes- dos pobres e em lugares onde, por Chi come Dio (“Quem como Deus”), soas consagradas que saibam olhar vários motivos, ela é carente e deixa não são somente a herança do Fun- cada vez mais para as necessidades dador, mas preciosos meios de co- Ao Reverendo Padre de ser adequadamente garantida pe- dos últimos, que não tenham medo la sociedade, constitui o maior dom municação social que, adaptados às DARIUSZ WILK, C.S.M.A. de cumprir o carisma dos seus Insti- que ainda hoje sois chamados a ofe- necessidades do presente e enrique- Superior-Geral da Congregação tutos nos modernos hospitais de recer às crianças e aos jovens ignora- cidos pelas tecnologias modernas, de São Miguel Arcanjo camp o. dos. Eles precisam continuamente de podem alcançar muitos, dando fru- Para alcançar esta finalidade apos- Desejo unir-me espiritualmente a si formadores que os orientem com tos de bem na mente e na consciên- tólica é necessário ser homens de co- e aos Irmãos, em vista do Centená- amor paterno e bondade evangélica cia das pessoas. munhão, superar as fronteiras, cons- rio da aprovação desta Congregação truir pontes e derrubar os muros da que vos preparais para celebrar me- indiferença. No itinerário de uma re- diante um Ano jubilar. Esta circuns- tância significativa oferece-me a novada fidelidade ao carisma, não oportunidade de me unir à vossa deixeis de fazer referência às pala- ação de graças ao Senhor pelas ma- vras que, ao longo destes cem anos, ravilhas por Ele levadas a cabo atra- iluminaram o caminho da vossa be- vés da obra do vosso Instituto. Ao nemérita Congregação: o grito vito- mesmo tempo, desejo encorajar-vos rioso de São Miguel Arcanjo, a continuar a trilhar com convicção, «Quem como Deus!», que preserva alegria e renovada fidelidade o cami- o homem do egoísmo, e o princípio nho traçado pelo Fundador, Beato de «Temperança e trabalho», que in- Bronislau Markiewicz. Tal como o dica as modalidades a seguir no evangélico grão de mostarda, lança- cumprimento do vosso carisma. A do ao solo, cresce até se tornar uma coerência de vida inspirada por estes árvore frondosa e abrigo para os valores tornará credível e atraente a pássaros do céu (cf. Lc 13, 18-19), as- vossa obra apostólica, suscitando in- sim a obra deste zeloso sacerdote da clusive novas vocações. Nesta ótica, Diocese de Przemyśl, semeada pri- faço votos a fim de que a vossa Fa- meiro na terra da Polónia, continua mília religiosa possa continuar a pro- a dar frutos, através do vosso servi- pagar o apostolado de São Miguel ço, em numerosos países espalhados Arcanjo, poderoso vencedor das for- pelos vários Continentes. ças do mal, vendo nisto uma grande obra de misericórdia para a alma e A Providência Divina plantou esta para o corpo. semente na vida do Padre Mar- kiewicz, que primeiro a cultivou me- Resplandeça nos vários campos diante a experiência de vida religiosa do vosso serviço eclesial a adesão na Congregação salesiana e na sua fiel a Cristo e ao seu Evangelho. A amável relação direta com São João Virgem Santa e o Arcanjo Miguel Bosco. Regressando da Itália para a vos protejam e sejam guias seguros Polónia como primeiro salesiano, no caminho da vossa Congregação, deu continuidade à sementeira atra- para que ela possa cumprir todos os vés das obras a favor das crianças seus projetos de bem. Com estes vo- pobres e abandonadas, reunindo ao tos, enquanto asseguro a minha re- seu redor homens e mulheres, cola- cordação na oração por cada um de boradores do primeiro núcleo dos vós e pelas iniciativas do vosso Ano ramos masculino e feminino das fu- jubilar, concedo-vos de coração a turas Congregações de São Miguel minha Bênção, que de bom grado Arcanjo. Faleceu em 1912, alguns estendo a quantos encontrardes no anos antes que o Instituto religioso, vosso apostolado de todos os dias. por ele tão desejado, fosse oficial- mente aprovado a 29 de setembro de Roma, São João de Latrão, 1921 pelo então Arcebispo de Cracó- 29 de julho de 2020. via, Stefan Sapieha. No en- tanto, o legado espiritual do Funda- dor foi vivido com ardor apostólico Guercino, «São Miguel Arcanjo» (1664) página 14 L’OSSERVATORE ROMANO terça-feira 6 de outubro de 2020, número 40

Discurso à Inspetoria de segurança pública do Vaticano Sinal da colaboração frutuosa entre a Itália e a Santa Sé

«Um caminho no sinal da colaboração regime peculiar para a Praça de São frutuosa entre a Itália e a Santa Sé»: Pedro, com livre acesso para peregri- assim o Papa definiu os 75 anos de nos e turistas, sob a vigilância das atividade da Inspetoria de segurança autoridades italianas. pública do Vaticano, recebendo — na Olhando para o passado, pode-se manhã de 28 de setembro, na sala ver que a origem da Inspetoria de Paulo VI — dirigentes, funcionários e Segurança Pública “Va t i c a n o ” se in- agentes, com os seus familiares. sere num contexto de precariedade e de emergência nacional, quando as Estimados irmãos e irmãs! forças políticas e sociais estavam em- Sinto-me feliz por me encontrar com penhadas na retomada democrática. a grande família da Inspetoria de Se- Em março de 1945, concretizou-se o gurança Pública “Va t i c a n o ”, que co- projeto de dar autonomia e configu- memora o seu 75º aniversário de ins- ração jurídica a este serviço de polí- tituição. Saúdo-vos a todos com afe- cia. O Ministério do Interior, guiado to: Dirigentes, Funcionários, Agen- pelo próprio Presidente do Conselho tes, com os vossos familiares. Dirijo de Ministros, Ivanoe Bonomi, insti- um deferente pensamento ao Minis- tuiu o Gabinete Especial de Segurança tro do Interior, a quem agradeço as Pública “São Pedro”. suas palavras, bem como ao Chefe da Polícia. E também gostaria de Deste modo, reforçou-se e tornou- Finalmente, a 4 de junho de 1944 sumiu outras denominações até à vos agradecer porque foi agradável se mais eficaz o serviço que as forças Roma foi libertada, mas a guerra atual, percorreu-se um caminho em para mim entrar na sala com a nos- de polícia há muito tempo presta- deixou feridas profundas nas cons- sinal de colaboração frutuosa entre a talgia do outono de Buenos Aires vam na Praça de São Pedro e nas ciências, escombros nas ruas, pobre- Itália e a Santa Sé, e entre a Inspe- [refere-se a uma peça musical tocada áreas próximas do Vaticano. A ocu- za e sofrimento nas famílias. O fruto toria e os organismos do Vaticano pela Banda da Polícia]. Obrigado! pação de Roma por parte das tropas da guerra é este! Os romanos e os responsáveis pela ordem pública e Ao recordar a fundação desta Ins- alemãs em 1943 tinha criado muitas peregrinos que podiam chegar à ca- pela segurança do Papa. Embora os petoria, espontaneamente dou graças dificuldades e preocupações: surgiu pital, afluíam cada vez mais numero- cenários nacionais e internacionais e ao Senhor pelos 75 anos de história o problema do respeito dos soldados sos a São Pedro também para mani- os requisitos de segurança tenham e pelo trabalho de tantos homens e alemães pela neutralidade e sobera- festar gratidão ao Papa Pio XII, pro- mudado, não se alterou o espírito mulheres da Polícia Estatal Italiana. nia da Cidade do Vaticano, assim clamado “defensor Civitatis”. Assim, o com que os homens e as mulheres Na sequência da profunda ligação como pela pessoa do Papa. Durante novo Gabinete da Polícia do Estado da Inspetoria implementaram o seu que existe entre a Santa Sé e a Itá- nove meses, a fronteira entre o Esta- junto do Vaticano foi capaz de res- apreciado trabalho. ponder adequadamente às novas exi- lia, levaram a cabo, com competên- do italiano e a Cidade do Vaticano, Estimados Funcionários e Agen- gências e de prestar um serviço im- cia e paixão, uma missão que tem traçada no chão da Praça de São Pe- tes, muito obrigado pelo vosso servi- portante tanto à Itália como à Santa origem nos Pactos de Latrão, de dro, foi um lugar de tensões e de te- ço valioso, caraterizado pela diligên- Sé. 1929. Com efeito, sancionando o mores. Os fiéis não podiam aceder cia, profissionalismo e espírito de sa- nascimento do Estado da Cidade do facilmente à Basílica para rezar, e Desde o dia da instituição deste crifício. Acima de tudo, admiro a Vaticano, estes acordos previram um por isso muitas pessoas desistiam. Departamento, que gradualmente as- paciência que exercitais ao lidar com pessoas de diferentes origens e cul- turas e — ouso dizer — ao lidar com os sacerdotes! A minha gratidão es- Madre Maria Luísa Velotti beatificada em Nápoles tende-se também ao vosso compro- misso de me acompanhar nos meus deslocamentos em Roma e durante Santidade periférica as visitas a dioceses ou comunidades na Itália. Uma tarefa difícil, que re- quer discrição e equilíbrio, para asse- «A maturidade social expressa pela beata Maria Luísa «juntamente com o pão para a alimentação corporal, gurar que os itinerários do Papa não Velotti do Santíssimo Sacramento no século XIX, na di- soube partir o pão da Palavra para a nutrição espiri- percam o seu caráter específico de fícil realidade napolitana, numa das periferias onde a tual», afirmou o cardeal. Com efeito, promoveu «uma encontro com o Povo de Deus. Mais Igreja ainda hoje é chamada a dar testemunho da vida atividade catequética válida na área napolitana, dirigin- boa do Evangelho, é atual porque ainda existem mui- do-se de modo especial às crianças». uma vez, estou-vos grato por tudo tas periferias geográficas mas também existenciais — «O serviço da catequese, continuou, é uma das cara- isto. tão queridas ao Santo Padre Francisco — que precisam terísticas mais importantes da missão de Maria Luísa: Que a Inspetoria de Segurança Pú- de um testemunho cristão vivo e eficaz». Eis o retrato educar para a fé através do trabalho e da palavra; uma blica “Va t i c a n o ” continue a trabalhar da nova beata (1826-1886), fundadora da congregação palavra que, embora fosse simples devido à escassez de acordo com a sua história lumi- das irmãs Franciscanas adoradoras da Santa Cruz, deli- dos seus recursos culturais, soube alcançar o coração, nosa, sabendo haurir dela frutos no- neado pelo cardeal arcebispo de Nápoles, Crescenzio comunicando o essencial. Com acentuada sensibilidade vos e abundantes. Estou certo de Sepe, que na manhã de 26 de setembro presidiu à cele- e movida por uma fé inabalável, soube reconhecer em que trabalhar neste lugar é uma lem- bração na catedral partenopeia. cada indivíduo, até no mais excluído ou malvado, um brança constante dos valores mais «Primeiro “monja de casa”, depois retirada em co- fragmento daquela humanidade da qual é necessário elevados: dos valores humanos e es- munidade, mais tarde fundadora, atingida pelo sofri- testemunhar a verdade evangélica e a possibilidade de pirituais que devem ser acolhidos e mento, viveu uma existência baseada na oração, no salvação». testemunhados todos os dias. Espero dom total de si a Deus, segundo a espiritualidade fran- «A beata Maria Luísa, afirmou, é uma mensagem de que a vossa labuta, muitas vezes de- ciscana, profundamente amada por ela», explicou o Deus para todos nós e para as suas irmãs, especialmen- sempenhada com sacrifício e risco, cardeal na homilia. «Uma mensagem que a nova beata te neste momento difícil marcado pela precariedade de- seja animada por uma fé cristã viva: nos oferece, salientou, é a de nos doarmos aos outros vido à pandemia. Humilde e silenciosa, identificou-se é o tesouro espiritual mais precioso através da caridade. Esta mulher deixou um sinal tan- sem demora nas incertezas e misérias do seu tempo, que as vossas famílias vos confiaram gível da sua caridade. No decurso da sua difícil exis- com uma marcada sensação de concretude, mas total- e que sois chamados a transmitir aos tência, abriu-se gradualmente ao amor ao próximo, co- mente abandonada a Deus. A vida contemplativa e a vossos filhos. locando-se ao serviço dos pobres, indigentes, sofredo- atividade apostólica desta beata do século XIX são mais res no espírito, valorizando os que se encontravam à um exemplo da florescente vida religiosa das mulheres Que o Senhor vos recompense, margem da sociedade, com especial cuidado pelas mu- na Igreja em tempos especialmente conturbados». como só Ele sabe fazer. Que o vosso lheres». E «temperada por provações pessoais, prestou «A sua casa e o seu convento — concluiu o cardeal — padroeiro São Miguel Arcanjo vos atenção especial ao género feminino, numa época em foram meta de um fluxo contínuo de pessoas de todas proteja e que a Virgem Santa vele que as mulheres ainda não gozavam de uma considera- as classes e condições para pedir conselhos. Não era a sobre vós e as vossas famílias. E vos ção consciente na sociedade». sua cultura nem as suas particulares qualidades huma- acompanhe também a minha Bên- «Atenta às necessidades dos outros, especialmente nas que atraíam as pessoas, mas a consciência de esta- ção. Por favor, não vos esqueçais de das camadas mais frágeis e indigentes», a nova beata, rem perante uma “santa monja”». rezar por mim. Obrigado! número 40, terça-feira 6 de outubro de 2020 L’OSSERVATORE ROMANO página 15

INFORMAÇÕES em Tola, Diocese de Granada (Nicará- Primeiro Bispo da Diocese de Sicua- gua), e foi ordenado Sacerdote em 4 de ni (Peru), D. Pedro Alberto Busta- dezembro de 1993. mante López, até agora Bispo Prela- do da homónima Prelazia Territo- A 25 de setembro rial. Sua Ex.cia a Senhora Alexandra Val- kenburg-Roelofs, Embaixadora, Membro Ordinário da Pontifícia Vigário Apostólico de Gambella Chefe de Delegação da União Euro- Academia das Ciências, o Prof. Jür- (Etiópia), D. Roberto Bergamaschi, peia, para a apresentação das Cartas gen Knoblich, atualmente Diretor S.D.B., Bispo Titular de Ambia, até à C re d e n c i a i s . científico do «Institute of Molecular presente data Vigário Apostólico de Biotechnology» (IMBA), em Viena Awasa. D. Giovanni d’Aniello, Arcebispo (Áustria). Titular de Pesto, Núncio Apostólico Membro Ordinário da Pontifícia na Federação Russa; e D. Francisco A 26 de setembro Academia das Ciências, a Professora M. Padilla, Arcebispo Titular de O Senhor Cardeal Dominique Fabiola Gianotti, Diretora-Geral do Nebbio, Núncio Apostólico na Gua- «Conseil européen pour la recherche temala. Mamberti, Prefeito do Supremo Tri- bunal da Assinatura Apostólica, En- nucléaire» (Cern) em Genebra (Suí- E re ç õ e s viado Especial para presidir à cele- ça). bração da Santa Missa que terá lu- Sua Santidade erigiu: gar a 28 de novembro, na Basílica Prelados falecidos de Koekelberg em Bruxelas, por A 29 de setembro ocasião do 150° aniversário de Fun- Adormeceram no Senhor: A Diocese de Sicuani (Peru), até à dação da Associação Pro Petri Sede. No dia 24 de setembro Audiências presente data Prelazia Territorial Membro Ordinário da Pontifícia com a mesma denominação. Academia das Ciências, o Prof. Da- D. John Myers, Arcebispo O Papa Francisco recebeu em audiên- vid Charles Baulcombe, Docente de cias particulares: Emérito de Newark, nos Estados Renúncias Botânica na Universidade de Cam- Unidos da América. bridge (Grã-Bretanha). No dia 24 de setembro O Sumo Pontífice aceitou a renúncia: O ilustre Prelado nasceu no dia 26 Sua Ex.cia a Senhora Eunisis Vás- A 28 de setembro de julho de 1941, em Ottawa, Diocese quez Acosta, Embaixadora da Repú- No dia 24 de setembro de Peoria (Estados Unidos da Améri- Núncio Apostólico nas Filipinas, D. ca). Foi ordenado Presbítero em 17 de blica Dominicana, para a apresenta- Do Senhor Cardeal Giovanni Ange- Charles John Brown, Arcebispo Ti- ção das Cartas Credenciais. lo Becciu, ao cargo de Prefeito da dezembro de 1966 e recebeu a Ordena- tular de Aquileia, até esta data Nún- ção episcopal a 3 de setembro de 1987. D. Giacomo Morandi, Arcebispo Ti- Congregação para as Causas dos cio Apostólico na Albânia. Santos e aos direitos inerentes ao D. Capistrano Francisco Heim, da tular de Caere, Secretário da Con- Promotor de Justiça Aplicado do C a rd i n a l a t o . Ordem dos Frades Menores, Bispo gregação para a Doutrina da Fé; e Tribunal do Estado da Cidade do Prelado Emérito da Prelazia Territo- D. Waldemar Stanisław Sommertag, Vaticano, o Adv. Gianluca Perone, No dia 25 de setembro rial de Itaituba, no Brasil. Arcebispo Titular de Traiectum ad atualmente Professor de Direito Co- Mosam, Núncio Apostólico na Nica- De D. Jebamalai Susaimanickam, ao mercial na Universidade de Estudos O venerando Prelado nasceu a 21 de governo pastoral da Diocese de Si- rágua. de Roma “Tor Vergata”. janeiro de 1934, em Catskill, Diocese vagangai (Índia). de Albany (Estados Unidos da Améri- No dia 25 de setembro De D. Jean-Claude Bouchard, A 29 de setembro ca). Emitiu os votos solenes no dia 22 Sua Ex.cia o Senhor Andrzej Duda, O.M.I., ao governo pastoral da Dio- Núncio Apostólico na Malásia e em de agosto de 1963 e foi ordenado Sa- Presidente da República da Polónia, cese de Pala (Chade). Timor Leste, e Delegado Apostólico cerdote em 18 de dezembro de 1965. com o Séquito. no Brunei Darussalam, D. Wojciech Recebeu a Ordenação episcopal a 17 de setembro de 1988 e renunciou ao go- O Senhor Cardeal Salvatore De Nomeações Załuski, Arcebispo Titular de Dio- cletiana, até hoje Núncio Apostólico verno pastoral da sua Sede no dia 8 Giorgi, Arcebispo Emérito de Paler- O Santo Padre nomeou: no Burundi. de dezembro de 2010. mo (Itália). A 24 de setembro No dia 27 de setembro Bispo da Diocese de Juigalpa, na Sua Santidade Karekin II, Patriarca Nicarágua, o Rev.do Pe. Marcial Supremo e Catholicos de todos os Humberto Guzmán Saballos, do cle- Credenciais da embaixadora chefe Arménios, com o Séquito. ro da Diocese de Granada (Nicará- gua), até agora Chanceler diocesano No dia 28 de setembro e Reitor do Santuário Nacional de da delegação da União Europeia O Senhor Cardeal Marc Ouellet, “Jesús del Rescate” em Popoyuapa. Prefeito da Congregação para os D. Marcial Humberto Guzmán Sa- Na manhã de 28 de Bisp os. ballos nasceu a 15 de fevereiro de 1965, setembro, o Papa Francisco recebeu em audiência Sua Excelência a senhora Alexandra Valkenburg- Roelofs, nova Embaixadora, Congregação para as causas dos santos chefe da delegação da União Europeia, por ocasião da apresentação das cartas com Promulgação de decretos as quais foi acreditada junto da Santa Sé. A 29 de setembro, o Santo Padre Francisco autorizou a Congregação para as causas dos santos a promulgar os seguinte decretos relativos: — ao milagre, atribuído à intercessão da venerável serva de Deus Gaetana Sua Excelência a senhora Alexan- ministério dos Negócios estrangei- Tolomeo, chamada Nuccia, fiel leiga; nascida a 10 de abril de 1936 em Ca- dra Valkenburg-Roelofs, embaixa- ros, na missão permanente junto tanzaro (Itália) e ali falecida a 24 de janeiro de 1997; dora, chefe da Delegação da União das Nações Unidas em Nova Ior- — ao martírio dos servos de Deus Francis Cástor Sojo Lópeze3compa- Europeia junto da Santa Sé, nas- que e na embaixada no Suriname nheiros, sacerdotes da Associação Secular dos Sacerdotes Operários Dioce- ceu a 1 de junho de 1970 em Rhe- (1996-2009); vice-chefe de missão e sanos; assassinados, por ódio à Fé, na Espanha, entre 1936 e 1938; den, Países Baixos. É casada e tem chefe da cooperação para o desen- — às virtudes heroicas da serva de Deus Francisca da Conceição Pascual 3 filhos. volvimento na embaixada na Gua- Doménech, Fundadora da Congregação das Irmãs Franciscanas da Imacula- Licenciou-se em estudos japone- da; nascida a 13 de outubro de 1833 em Moncada (Espanha) e ali falecida a ses na Erasmus University de Ro- temala (2010-2012); chefe da secção 26 de abril de 1903; e terdão (1993) e obteve o doutora- dos direitos humanos e dos assun- — às virtudes heroicas da serva de Deus Maria Dolores Segarra Gestoso, mento em economia na mesma tos políticos e legais da Onu no Fundadora das Irmãs Missionárias de Cristo Sacerdote; nascida a 15 de mar- universidade (1995). ministério dos Negócios estrangei- ço de 1921 em Melilla (Espanha) e falecida em Granada (Espanha) a 1 de Desempenhou os seguintes car- ros (2012-2016); e embaixadora em março de 1959. gos: serviço em várias posições no Cuba e na Jamaica (2016-2020). página 16 L’OSSERVATORE ROMANO terça-feira 6 de outubro de 2020, número 40

ANGELUS

O Papa ofereceu aos fiéis presentes a encíclica impressa em «L’Osservatore Romano»

Fraternidade humana e cuidado pela criação, único caminho para a paz

«Fraternidade humana e cuidado pela criação, único caminho para o desenvolvimento integral e a paz», reiterou o Papa no final do Angelus de 4 de outubro, falando sobre a nova encíclica, “i n s p i ra d a ”como a precedente por São Francisco, e anunciando a sua intenção de a oferecer na edição extraordinária de «L’Osservatore Romano» — que recomeçou a publicação em papel — aos fiéis presentes na praça de São Pedro. Antes da recitação mariana, em união espiritual com o santuário de Nossa Senhora do Rosário em Pompeia, onde teve lugar a tradicional Súplica, o Pontífice comentou o Evangelho do domingo sob re a parábola dos vinhateiros homicidas. uma certa autoridade. Deste modo, Encíclica, na edição extraordinária tornar-nos-emos uma Igreja cada vez de L’Osservatore Romano. E com esta Amados irmãos e irmãs, bom dia! semos que esta admoestação não se mais rica nos frutos da santidade, edição começa novamente a edição aplica apenas àqueles que rejeitaram No Evangelho de hoje (cf. Mt 21, daremos glória ao Pai que nos ama diária em papel de L’Osservatore Ro- Jesus naquele momento. É válido mano 33-43) Jesus, prevendo a sua paixão com infinita ternura, ao Filho que . Que São Francisco acompa- para todos os tempos, também para continua a dar-nos salvação, ao Es- nhe o caminho da fraternidade na e morte, relata a parábola dos vinha- o nosso. Ainda hoje Deus espera os pírito que nos abre o coração e nos Igreja, entre os crentes de todas as teiros homicidas, para admoestar os frutos da sua vinha daqueles que en- impele para a plenitude do bem. religiões e entre todos os povos. chefes dos sacerdotes e os anciãos viou para trabalhar nela. Todos nós. do povo que estão prestes a tomar o Dirijamo-nos agora a Maria San- Conclui-se hoje o Tempo da Cria- caminho errado. Estes, de facto, nu- Em cada época, aqueles que têm tíssima, espiritualmente unidos aos ção, que começou no passado dia 1 trem más intenções em relação a ele autoridade, qualquer autoridade, fiéis reunidos no Santuário de Pom- de setembro, no qual celebrámos um e procuram o modo de o eliminar. também na Igreja, no povo de Deus, peia para a Súplica, e neste mês de “Jubileu da Terra” juntamente com podem ser tentados a fazer os pró- outubro renovemos o nosso compro- os nossos irmãos de diversas Igrejas A história alegórica descreve um prios interesses e não os de Deus. E misso de recitar o santo Rosário. cristãs. Saúdo os representantes do senhor que, depois de ter cuidado Jesus diz que a verdadeira autorida- Movimento Católico Mundial pelo muito da sua vinha (cf. v. 33), parte, de é quando se faz o serviço, é ser- Clima, os vários círculos Laudato si’ confiando-a aos vinhateiros. Em se- No final do Angelus, o Papa falou da vir, e não explorar os outros. A vi- e as associações de referência, empe- guida, no momento da colheita, ele nova encíclica assinada um dia antes nha é do Senhor, não nossa. A auto- em Assis e da conclusão do “Tempo da nhados em percursos de ecologia in- envia alguns servos para recolher os ridade é um serviço, e como tal deve Criação” iniciado em setembro; depois, tegral. Regozijo-me pelas iniciativas frutos; mas os vinhateiros recebem ser exercida, para o bem de todos e recordou o centenário da obra “Stella que hoje são realizadas em diferentes os servos com bastões e até matam para a difusão do Evangelho. É ter- Ma r i s ” e a beatificação do sacerdote lugares, em particular recordo aquela alguns. O senhor envia outros ser- rível ver quando na Igreja as pessoas Olinto Marella, em Bolonha. na zona do Delta do Pó. vos, mais numerosos, mas também que têm autoridade procuram os A 4 de outubro, há cem anos, nas- eles recebem o mesmo tratamento próprios interesses. Estimados irmãos e irmãs! cia na Escócia a Obra Stella Maris (cf. vv. 34-36). O clímax é atingido para apoiar o povo do mar. Neste quando o senhor decide enviar o seu São Paulo, na segunda Leitura da Ontem fui a Assis para assinar a no- importante aniversário, encorajo ca- filho: os vinhateiros não o respeitam, liturgia de hoje, diz-nos como ser va Encíclica, Ffratelli tutti sobre a pelães e voluntários a testemunhar pelo contrário, pensam que ao elimi- bons trabalhadores na vinha do Se- fraternidade e a amizade social. Ofe- com alegria a presença da Igreja nos ná-lo podem apoderar-se da vinha, e nhor: o que é verdadeiro, nobre, jus- reci-a a Deus junto do túmulo de to, puro, amável, honrado; o que é São Francisco, que me inspirou, co- portos, entre os marinheiros, os pes- por isso também o matam (cf. vv. 37- cadores e as suas famílias. 39). virtude e merece louvor, que tudo is- mo a precedente, Laudato si’. Os si- to seja o objeto diário do nosso Hoje, em Bolonha, foi beatificado A imagem da vinha é clara: repre- nais dos tempos mostram claramente compromisso (cf. Fl 4, 8). Repito: o que a fraternidade humana e o cui- o padre Olinto Marella, presbítero senta o povo que o Senhor escolheu que é verdadeiro, nobre, justo, puro, dado pela criação formam o único da diocese de Chioggia, pastor se- e formou com tanto cuidado; os ser- amável, honrado; o que é virtude e caminho para o desenvolvimento in- gundo o coração de Cristo, pai dos vos mandados pelo senhor são os merece louvor, que tudo isto seja o tegral e a paz, já indicado pelos pobres e defensor dos fracos. Que o profetas, enviados por Deus, en- objeto diário do nosso compromisso. Santos Papas João XXIII, Paulo VI e seu extraordinário testemunho seja quanto o filho é a figura de Jesus. E É a atitude da autoridade e também João Paulo II. Hoje, a vós que estais um modelo para muitos sacerdotes, tal como os profetas foram rejeita- de cada um de nós, porque cada um na Praça — e também fora da Praça chamados a ser humildes e corajosos dos, assim também Cristo foi rejeita- de nós, nas suas competências, tem — tenho o prazer de oferecer a nova servos do povo de Deus. Agora uma do e morto. salva de palmas para o novo Beato! No final da história, Jesus pergun- Saúdo todos vós, romanos e pere- ta aos chefes do povo: «Quando vier grinos de vários países — vejo muitas o dono da vinha, que fará àqueles bandeiras... —: famílias, grupos paro- vinhateiros?» (v. 40). E eles, toma- quiais, associações e fiéis. Em parti- dos pela lógica da narrativa, pronun- cular, saúdo os familiares e amigos ciam eles mesmos a própria conde- dos guardas suíços, que hoje vieram nação: responderam-lhe: mandará assistir ao juramento dos novos re- matar sem piedade aqueles miserá- crutas. Estes rapazes são bons! A veis e arrendará a sua vinha: «Dará Guarda Suíça realiza um percurso morte afrontosa aos malvados, e ar- de vida ao serviço da Igreja, do Su- rendará a vinha a outros vinhateiros mo Pontífice. São jovens bondosos que lhe entregarão os frutos na altu- que vêm aqui por 2, 3, 4 anos ou ra devida» (v. 41). mais. Peço uma calorosa salva de Com esta parábola muito dura, palmas para a Guarda Suíça. Jesus coloca os seus interlocutores Desejo a todos bom domingo. face à sua responsabilidade, e fá-lo Por favor, não vos esqueçais de rezar com extrema clareza. Mas não pen- por mim. Bom almoço e até à vista!