UNIVERSIDADE REGIONAL INTEGRADA DO ALTO URUGUAI E DAS MISSÕES-

CAMPUS DE FREDERICO WESTPHALEN

PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM LETRAS

MESTRADO EM LETRAS

ÁREA DE CONCENTRAÇÃO EM LITERATURA COMPARADA

A REPRESENTAÇÃO DO CASAMENTO NA OBRA A MEGERA DOMADA E NA O CRAVO E A ROSA

Mestrando: Valtenir Muller Pernambuco Orientadora: Prof. Dra. Denise Almeida Silva

Frederico Westphalen, novembro de 2016.

Valtenir Muller Pernambuco

A REPRESENTAÇÃO DO CASAMENTO NA OBRA A MEGERA DOMADA E NA TELENOVELA O CRAVO E A ROSA

Dissertação de Mestrado apresentada ao Programa de Pós- graduação em Letras – Mestrado em Letras, área de concentração em Literatura Comparada, sob a orientação da Prof. Dra. Denise Almeida Silva, como requisito parcial para realização do exame de qualificação de dissertação.

Frederico Westphalen, novembro de 2016.

AGRADECIMENTOS

A Deus, por ter me dado saúde e muita força para superar todas as dificuldades; À minha orientadora, doutora Denise Almeida Silva, por todo o tempo que dedicou a me ajudar durante o processo de realização deste trabalho, pelos diálogos, pelos conselhos, pela compreensão e dedicação, sem os quais este trabalho não teria se concretizado; À professora doutora Rosangela Fachel de Medeiros, pelas orientações iniciais sobre o gênero telenovela; A esta faculdade e ao Programa de Pós-Graduação em Letras e todo o seu corpo docente, além da direção e administração, que me proporcionaram as condições necessárias para que eu pudesse alcançar os meus objetivos; A meus pais, por todo amor que me deram, além da educação, ensinamentos e apoio; Aos familiares e amigos, fundamentais nesta trajetória, e, em especial a minha amiga Márcia Ávila e aos meus colegas de curso do Mestrado em Letras da turma 2014 – 2016; À Diretora Alexandra F. Rafaelli e à Escola Érico Veríssimo, de Vista Gaúcha, pelo apoio durante a trajetória do curso; E enfim, a todos que contribuíram para a realização deste trabalho, seja de forma direta ou indireta, fica registrado aqui o meu muito obrigado.

RESUMO

Esta dissertação tem como objetivo geral analisar a representação do casamento na peça A megera domada, de , e na telenovela O cravo e a rosa, de . Propomos a análise do casamento como fenômeno social, e procuramos problematizar até que ponto as estruturas patriarcais e econômicas permeiam as relações de gênero, influenciando na promoção e continuidade do casamento; empregamos, como metodologia, a pesquisa bibliográfica e estudo analítico de textos. A dissertação divide-se em três capítulos. No primeiro, abordamos as características da comédia romântica shakespeariana e da telenovela brasileira; no segundo, estudamos o casamento e suas relações na sociedade da renascença inglesa, e como estas são abordadas na peça A megera domada. Finalmente, o terceiro capítulo é dedicado ao estudo da evolução do casamento, sociedade e família no Brasil, e da forma como o casamento, e as relações sociais em seu entorno, estão presentes na telenovela O cravo e a rosa. Constatamos que a representação do casamento é muito mais complexa na obra de Shakespeare, em que um jogo entre aparência e realidade problematiza o significado real da submissão (ou não) da mulher na relação conjugal, ao passo que a releitura de Walcyr Carrasco, embora apresente, inicialmente, o que parece ser uma defesa do feminismo, acaba se submetendo ao gosto popular, concluindo com a visão tradicional da missão da mulher como esposa e mãe.

Palavras-chave: A megera domada. O cravo e a rosa. Comédia romântica. Telenovela. Casamento.

ABSTRACT

This thesis aims at analyzing the representation of marriage in William Shakespeare's play The taming of the and in Walcyr Carrasco´s soap opera O cravo e a rosa. We propose the analysis of marriage as a social phenomenon, and question to what extent patriarchal and economic structures permeate the generic relations, influencing the promotion and continuity of marriage. The study relied on bibliographical research and the analytical study of texts. The thesis is divided into three chapters. In the first, we discuss the features of the Shakespearean romantic comedy and of the Brazilian soap opera; in the second, we studied marriage and its relationships with the English Renaissance society, and how these are addressed in the play . Finally, the third chapter is devoted to the study of the evolution of marriage, family and society in Brazil, and of how marriage and its social relations are present in the soap opera O cravo e a rosa. We concluded that marriage representation is much more complex in Shakespeare for, in The taming of the shrew, the oscillation between appearance and reality questions the real meaning of the submission (or not) of women in the marital relationship, while in Walcyr Carrasco´s reading of the play what initially appears to be a defense of feminism ends up by submitting to the popular taste, and concluding with the traditional vision of the mission of the woman as a wife and a mother.

Keywords: The taming of the shrew. O cravo e a rosa. Romantic comedy. Soap opera. Marriage.

SUMÁRIO

INTRODUÇÃO...... 6 1 A COMÉDIA ROMÂNTICA SHAKESPEARIANA E A TELENOVELA BRASILEIRA: CARACTERIZAÇÃO INICIAL...... 13 1.1 A COMÉDIA ROMÂNTICA SHAKESPEARIANA: CARACTERÍSTICAS ...... 13 1.2 A TELENOVELA COMO GÊNERO: CARACTERÍSTICAS ...... 26 1.3 ATELENOVELA NO BRASIL: O CRAVO E A ROSA ...... 30 1.3.1. A TELENOVELA NO BRASIL...... 30 1.3. 2 SHAKESPEARE NA TELENOVELA BRASILEIRA: O CRAVO E A ROSA ... 34 2 O CASAMENTO, FAMÍLIA E SOCIEDADE NA RENASCENÇA INGLESA: A MEGERA DOMADA ...... 38 2.1. CASAMENTO NA RENASCENÇA: FAMÍLIA E SOCIEDADE ...... 38 2.2. CASAMENTO, FAMÍLIA E SOCIEDADE EM A MEGERA DOMADA ..... 46 3 CASAMENTO, FAMÍLIA E SOCIEDADE NO BRASIL: O CRAVO E A ROSA ...... 74 3.1. CASAMENTO, FAMÍLIA E SOCIEDADENO BRASIL ...... 74 3.2 CASAMENTO, FAMÍLIA E SOCIEDADE EM O CRAVO E A ROSA ...... 80 ANÁLISE COMPARATISTA COMPARATISTA ENTRE AS OBRAS: REFLEXÕES CONCLUSIVAS...... 99 REFERÊNCIAS ...... 106

INTRODUÇÃO

Na Literatura encontramos um amplo quadro de temáticas sociais que podem ser discutidas em comparação com outros meios de produções artísticas. Dentre estes temas, a pobreza, a riqueza, a crescente disparidade entre classes sociais, as características da sociedade patriarcal, dentre as quais um modelo específico de casamento, têm sido representados em inúmeras obras e em diferentes contextos históricos com a finalidade de refletir sobre o comportamento da sociedade. Nesta pesquisa destacamos o teatro, bem como a televisão, e mais especificamente, a telenovela, como gêneros que têm interrogado as estruturas sociais. Esta dissertação tem como tema a representação do casamento na obra A megera domada e na telenovela O cravo e a rosa. Este tema tem destaque nas obras em análise e retrata uma instituição social que ultrapassou muitas gerações e, por isso, compreendemos que é relevante trazê-lo a debate. A megera domada é uma das primeiras comédias de Shakespeare, escrita entre 1590 e 1592. A trama recorre a elementos cômicos, típicos das comédias de Shakespeare, como o casamento e a . O enredo central da peça apresenta Petrúquio, um nobre que beira a falência, que conquista Catarina, A megera, filha de Batista, um nobre rico. O casamento acontece por interesses econômicos; por outro lado, Catarina apresenta-se como a precursora na luta pelos direitos da mulher. Dessa forma, escolhemos esta peça, pois a comedia romântica A megera domada é uma forma de denúncia e crítica social que analisa o casamento e as relações que acontecem em torno dele, como a escolha direcionada pelos pais e pretendentes, a submissão da mulher ao marido após o casamento, bem como o papel dos membros familiares estipulados pela sociedade renascentista inglesa. Através da análise sobre o casamento, na obra de Shakespeare, será possível identificar também as mudanças e as conquistas ocorridas dentro das relações matrimoniais. Uma vez que A megera domada é uma das peças mais conhecidas de Shakespeare, realizamos um levantamento para ver se a obra já tinha sido estudada, por quem e a partir de que problema de pesquisa. Sem pretender que este levantamento seja exaustivo, na amostragem percebe-se que a peça tem sido estudada especialmente nos cursos de Letras na área literária, e a grande parte das análises dedica-se a estudar o comportamento da mulher e as atribuições dadas a ela na sociedade. A seguir

mencionaremos alguns dos estudos referentes à peça A megera domada, com seus títulos, respectivos programas de pós-graduação e universidades. Agnes Bessa Silva Feitosa (2008), em sua dissertação do curso de pós- graduação- Mestrado Acadêmico em Linguística Aplicada da Universidade Estadual do Ceará, analisa como Shakespeare constrói suas personagens através de um paralelo entre a questão histórica e social da mulher da Idade Média aos dias atuais, enfocando, especialmente, o sujeito, a ideologia e o discurso na caracterização da mulher: sua relação de submissão e sua posição dentro da sociedade patriarcal da época. Luciana Neves Mendes (2011) abordou, em sua dissertação do curso de pós- graduação Mestrado em Linguística Aplicada da Universidade Federal do Rio de janeiro, a representação das personagens femininas principais em duas obras que correspondem a versões cinematográficas da peça de Shakespeare: A megera domada, de David Richards (2005), e 10 coisas que eu odeio em você (1999) ,de Gil Junger, uma análise feita a partir da visão de teóricas feministas do cinema e de outros estudiosos sobre a mulher, sua representação nas telas através da teoria psicanalítica, criticando o patriarcalismo na produção audiovisual. A autora apresenta um cenário histórico que mostra uma mulher descrita como megera por não concordar com as regras e ditos impostos pela sociedade patriarcal da época, a partir de um discurso que a marginalizava e a relegava a um papel secundário. Também Grace Cruz Stolze Franco (2013), do curso de pós-graduação Mestrado em Letras e Linguística da Universidade Federal da Bahia, em sua dissertação analisa a obra A megera domada em quatro traduções da peça para o cinema – A megera domada (Franco Zeffirrelli, 1967), 10 coisas que odeio em você (Gil Junger, 1999), Kiss me Kate (George Sidney, 1953) e The taming of the shrew (David Richards, 2005). Contrastando com os trabalhos citados, todos eles produzidos por acadêmicos pertencentes à Área de Letras, Clarissa Cecília Ferreira Alves (2012), alude à peça de William Shakespeare, A megera domada, em sua dissertação de Mestrado em Ciências Jurídicas da Universidade Federal de Paraíba, para abordar uma análise feminista acerca do casamento como manifestação contratual. A autora investiga o posicionamento do direito brasileiro acerca da existência de uma obrigação de caráter sexual decorrente do contrato de casamento, enquanto principal acordo que cria a família nos moldes patriarcais, e conclui que o ordenamento jurídico brasileiro mostra-se conservador e sexista ao dignificar o casamento como principal forma de constituição da família e ao

servir de respaldo ao direito sexual masculino de acesso sistemático ao corpo das mulheres. Além de estudada em cursos de pós-graduação, a peça tem sido alvo de estudos por estudantes de graduação. Mônica de Aguiar Moreira Garbelini (2013), em um estudo apresentado no X Seminário de Iniciação Científica Sóletras, na Universidade Estadual do Norte do Paraná, analisou a exploração de Shakespeare sobre alguns códigos sociais que remontavam à Antiguidade e ainda vigoravam no Renascimento: o costume da filha mais velha ter que se casar antes da mais nova; a necessidade de se obter a permissão do pai para cortejar a filha; a submissão da mulher em relação ao pai e ao marido; o dote que a noiva deveria levar para o marido ao se casar. A autora aborda a mulher na Idade Média, considerando que a função da peça era influenciar o público feminino sobre o comportamento que este grupo deve adotar na sociedade em que vive, ou seja, submissão e obediência total ao marido. Além disso, faz uma análise filosófica da obra e um estudo sobre as personagens, que eram compostos por reis, rainhas, prostitutas, assaltantes, cavaleiros, dentre outros. Flavia Peres Pregnolatto, (2012) da Universidade Metodista de Piracicaba- SP, analisa a peça A megera domada, como uma crítica e sátira do machismo e da submissão das mulheres no período Renascentista. Nesta análise a autora considerou os fatos históricos da época em que a obra foi realizada e as características próprias de Shakespeare. Segundo ela, a maioria das análises sobre a obra A megera domada de William Shakespeare, julga a obra como um retrato do machismo da era renascentista. Porém, a obra em questão é uma comédia com a presença de muitas ambiguidades, ironias e sarcasmos; características muito específicas do autor e por isto, segundo Pregnolatto, podem sugerir uma conotação diferente à obra. Com relação à telenovela, verificamos que foi alvo de estudo em meios acadêmicos, grande parte deles estudos comparatistas que enfatizam O cravo e a rosa como releitura de Shakespeare, tanto na área de Letras como na de comunicação. Após realizarmos um levantamento sobre os estudos que tomaram a telenovela como objeto de estudo destacamos alguns deles: Liliam Cristina Marins Prieto, do Curso de Doutorado em Estudos Literários pelo Programa de Pós-graduação em Letras da Universidade Estadual de Maringá analisa a interface literatura/telenovela na peça The Taming of the Shrew (aproximadamente 1593), de William Shakespeare, e sua versão para a telenovela O

cravo e a rosa (2000), de Walcyr Carrasco e Mário Teixeira, a fim de verificar relações existentes entre literatura e multimodalidades. Ligia Maria Prezia Lemos, do Curso de Doutorado em Ciências da Comunicação pela Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo, ECA, USP, analisa a telenovela brasileira em múltiplas plataformas a partir da semiótica da comunicação estética por meio de um breve exercício de decomposição estrutural. Após explanação sobre as linguagens da arte, ela apresenta a decomposição de tema arquetípico relacionado à disputa entre os sexos, presente em diversas obras, entre elas, O cravo e a rosa. Silvana Lopes, em sua dissertação no Programa de Pós-Graduação Mestrado em Comunicação, da UNIP, estuda o formato da telenovela de época O cravo e a rosa dentro do quadro histórico da telenovela brasileira. Neste contexto geral, o trabalho analisa o padrão de produção estético e temático desta telenovela bem como o seu aspecto comercial com o propósito de verificar se o formato televisivo modifica a integridade e adequação dos elementos originais. Os seguintes aspectos são tratados como objetivos específicos: a) a constituição da telenovela de época no Brasil, seus problemas singularidades b) os elementos que estruturam o formato telenovela, o formato mini-série: ganchos, clichês, repetitividade, cenário, figurino e iluminação. c) o contexto histórico da cultura dos anos 20 em relação aos temas tratados na telenovela O cravo e a rosa d) a adequação do cenário, figurino e iluminação com os temas tratados na telenovela O cravo e a rosa. Marly Custódio da Silva e Nataniel dos Santos Gomes, participantes do Círculo Fluminense de Estudos Filológicos e Linguísticos da Universidade Estadual de Minas Gerais, analisam a vida do homem do campo e suas relações com a cidade grande, bem como o nascimento e desenvolvimento do "caipira" no Brasil rural. Para contextualizar a pesquisa, eles buscam nas histórias em quadrinhos de Chico Bento clássico, de Maurício de Sousa e na telenovela de Walcyr Carrasco, O cravo e a rosa (2000) em seu núcleo rural, a relação de amor à terra e aos animais e a busca pela conquista do seu amor, sendo que nos quadrinhos de Chico Bento, de Maurício de Sousa, o amor nasce naturalmente na infância, enquanto que em O cravo e a rosa deverá travar uma "batalha" para conquistar a mulher amada. A proposta analítica por que optamos difere das demais, porque analisa a instituição do casamento no teatro e na telenovela, uma possibilidade comparatista não

explorada pelos trabalhos já citados, os quais se ativeram a outros objetivos em suas comparações entre a peça de Shakespeare a versão televisiva. Nesta proposta, pretendemos analisar o casamento enquanto fator de mobilidade social, distinguindo o casamento baseado no amor do casamento motivado pelo interesse econômico, identificar as possíveis relações entre a obra literária e a telenovela que apontam para uma reflexão crítica sobre o comportamento humano nas respectivas sociedades, identificar o efeito dos papéis sociais sobre a individual e familiar, estudar o contraste entre aparência e realidade no contexto da transgressão, como representado pela troca de identidade e que tem o objetivo de negociar o casamento, analisar as relações sociais e o lugar da mulher na relação amorosa, na peça e na telenovela. Ao estudar a peça de Shakespeare tendo como enfoque o casamento como instituição econômica e as relações sociais que se estabelecem a partir dessa instituição social, objetivam-se distinguir o casamento baseado no amor (Bianca e Lucêncio) e o casamento motivado pelo interesse econômico (Petrúquio e Catarina), enquanto fator de mobilidade social. Propomos a análise do casamento como fenômeno social, e desse modo, mesmo entendendo que o casamento possui relações com outros fatores sociais já discutidos em outros estudos acadêmicos, procuramos problematizar até que ponto as estruturas patriarcais e econômicas permeiam as relações de gênero, influenciando na promoção e continuidade do casamento. Nesse sentido, entendemos que a análise das relações sociais, especialmente o relacionamento pai-filha, o lugar da mulher na relação amorosa, e a exploração da dimensão social do amor no enfoque do casamento como instituição econômica far-se-á necessário. Através desses enfoques analíticos, pretendemos estabelecer uma relação entre o teatro elisabetano e a telenovela brasileira, com o propósito de identificar como as relações tecidas em torno do casamento são representadas, bem como possíveis diferenças e/ou semelhanças com relação a essa instituição em cada um desses contextos. É nossa preocupação verificar como as relações entre os pares românticos vieram a acontecer, para então concluirmos se resultaram de motivação amorosa, se foram motivadas pelo interesse econômico, ou se há um cruzamento com relação a tais fatores. Analisamos, a partir do viés literário, como Walcyr Carrasco faz a releitura do teatro shakespeariano do século XVI, mantendo a abordagem sobre o casamento como instituição econômica para os dias atuais. Apesar dos objetos terem títulos diferentes,

Carrasco mantém os nomes dos protagonistas e apresenta um novo olhar a partir do contexto social brasileiro. Para tanto, acrescenta subenredos, os quais, como na peça de Shakespeare, têm como objetivo contrastar o comportamento e posicionamento social dos pares românticos. Como já exposto, este estudo parte da percepção de relevância sobre o estudo do comportamento da sociedade, especialmente as relações sociais. Com este enfoque, queremos abordar dois diferentes gêneros textuais, o teatro e a telenovela. O estudo se desenvolverá através de uma análise comparatista dos respectivos gêneros no século XVI na Inglaterra e no Século XX no Brasil. Sabendo que a Literatura discute as ações do homem ao longo dos anos e que ela é capaz de conduzir uma reflexão significante sobre as transformações vividas em diferentes lugares e diferentes períodos, queremos estudar as relações entre as classes sociais em uma obra literária e inglesa em comparação com um texto não-literário brasileiro. Isto fará refletir sobre a desigualdade social e outros comportamentos vivenciados ao longo da história nos dois países. Assim, é nosso intuito apontar as possíveis relações entre a obra literária e o gênero não literário, da indústria televisiva, que direcionam para uma reflexão crítica sobre o comportamento humano. Entendemos que esta proposta é relevante pelo fato de que todos têm vivenciado, em algum momento, a desigualdade entre classes sociais. Justifica-se a adoção desta abordagem comparatista, pois o Programa de Pós- Graduação em Letras em nível de Mestrado da Universidade Regional Integrada do Alto Uruguai e das Missões – URI – Campus de Frederico Westphalen tem como Área de Concentração a Literatura Comparada. Esta disciplina objetiva, como H. H. Remak (1961) afirma, relacionar a literatura a outros campos de conhecimento, uma possibilidade que se abre, inclusive, ao cruzamento de um tema em diferentes suportes, como o literário e o da telenovela. A pesquisa vincula-se à linha de pesquisa Comparatismo e Processos Culturais, a qual tem como objetivo investigar os diálogos da literatura processos culturais, socioculturais e econômicos, buscando entender os discursos que integram o campo da cultura e as interrelações entre cultura/poder. Sem dúvida, o discurso sobre o casamento na renascença inglesa e no século XX, no Brasil enquadra-se nessa proposta analítica. Ademais, a linha de pesquisa abrange as textualidades contemporâneas, nelas incluindo literaturas de língua português e inglesa, como as estudadas nesta pesquisa.

A metodologia empregada foi a da pesquisa bibliográfica e estudo analítico de textos. Os gêneros textuais distintos a que pertencem as obras em análise levaram à opção por metodologia analítica diferenciada para cada uma delas: a peça A megera domada será analisada a partir do texto teatral escrito, o que se delimita na análise dos diálogos, na narração do espaço, descrição dos personagens e dados de catálogo como ano e personagens. Já a telenovela será analisada a partir dos vídeos originais, o que possibilita o estudo das falas, cenas, cenários, figurinos, características visuais, trilha sonora, movimentos de câmera, entre outras características que o gênero proporciona. No primeiro capítulo abordaremos as características da comédia romântica shakespeariana e as características gerais da telenovela brasileira, a qual tem como função representar momentos da sociedade brasileira. No segundo capítulo faremos um estudo sobre o casamento e suas relações na sociedade da renascença inglesa, abordados pelo teatro shakespeariano e estudaremos, também, sobre como este tema é abordado na telenovela que retrata a sociedade brasileira na década de 20. E, no terceiro capítulo faremos a análise entre os objetos para apontar relações e diferenças, a partir dos temas já mencionados. Para isto, faremos a análise a partir de trechos que apresentam situações sobre a temática escolhida a partir do enredo de Shakespeare para serem comparados com recortes da telenovela. No entanto, sabendo que a telenovela é uma releitura do teatro, apontamos as diferenças e semelhanças entre os contextos, a partir da análise dos objetos distintos.

1 A COMÉDIA ROMÂNTICA SHAKESPEARIANA E A TELENOVELA BRASILEIRA: CARACTERIZAÇÃO INICIAL

Este capítulo tem como objetivo conceituar as características do teatro shakespeariano e da telenovela brasileira. Inicialmente apresentaremos as características do teatro elisabetano, com ênfase na comédia romântica shakespeariana, gênero ao qual pertence A megera domada, que será analisada neste trabalho. A seguir, serão apresentadas as características da telenovela brasileira, dedicando-se, ainda, parte deste capítulo à identificação das produzidas no Brasil a partir da adaptação de obras de Shakespeare. Pretende-se, com este capítulo, iniciar a construção de arcabouço conceitual, a partir do qual será possível desenvolver a análise comparatista.

1.1 A COMÉDIA ROMÂNTICA SHAKESPEARIANA: CARACTERÍSTICAS

O Renascimento foi um movimento filosófico e cultural dos séculos XV e XVI, o qual evidenciou transformações que não mais correspondiam ao conjunto de valores apregoados pelo pensamento medieval. Um aspecto fundamental do pensamento renascentista é o privilégio dado às ações humanas, o que frequentemente se traduziu na valorização de situações do cotidiano e, na arte, na reprodução dos traços e formas humanas. Por outro lado, a valorização das ações humanas é evidência de ainda outra característica do nascente individualismo burguês: o exercício da capacidade de questionar o mundo, aspecto que fica particularmente patente na comédia escolhida para estudo neste trabalho, como se analisará mais tarde. A valorização das ações humanas, ou humanismo, acompanha o florescimento da burguesia, o que já vinha acontecendo desde a Baixa Idade Média. De acordo com Souza (2016) a razão era uma manifestação do espírito humano que colocava o indivíduo mais próximo de Deus. Ao exercer sua capacidade de questionar o mundo, o homem distanciava-se da razão e privilegiava as ações humanistas que eram representadas na reprodução de situações do cotidiano e na rigorosa reprodução dos traços e formas humanas, através de um conjunto de temas e interesses aos meios científicos e culturais de sua época. A relação do Renascimento com a burguesia é perceptível no desenvolvimento das grandes cidades comerciais. Na Itália, Gênova, Veneza, Milão, Florença e Roma tornaram-se grandes centros de comércio, nos quais a intensa circulação de riquezas e

ideias promoveram o desenvolvimento das artes. Mais do que enfatizar o mecenato, através do qual até mesmo algumas famílias comerciantes da época, como os Médici e os Sforza, patrocinaram o desenvolvimento da arte e estudos renascentistas, queremos acentuar o papel social dado a essa classe dos negociantes: não é à toa que Shakespeare escolhe a Itália, e a família do rico Batista Minola, como cenário para a análise social levada a efeito em A megera domada. Iniciado na Itália, o Renascimento espalhou-se por toda a Europa. De acordo com Leandro Luz (2002), a Renascença inglesa teve três principais pilares de sustentação: a razão, como manifestação do espírito humano, que aproximava o indivíduo de Deus; o privilégio às ações humanas – humanismo e o elogio às concepções artísticas da Antiguidade Clássica. Dentro do período abarcado pela Renascença na Inglaterra, o período de maior desenvolvimento econômico e político foi o que corresponde ao reinado da rainha Elizabeth I da Inglaterra, de 1558 a 1603, razão pela qual recebe o nome de período elisabetano. Dado o foco do presente trabalho, limitaremos esta apresentação inicial à exposição acerca do desenvolvimento do teatro na Renascença inglesa, enfocando de modo especial a Shakespeare, o mais destacado dos dramaturgos do período, e autor da peça que é objeto deste estudo. Ainda outro recorte se faz necessário: embora Shakespeare tenha produzido tragédias, comédias e peças históricas, além de poemas, este estudo se limitará a caracterizar a comédia romântica shakespeariana, uma vez que é a esse gênero que pertence A megera domada. Para dimensionar esse desenvolvimento, será necessário, inicialmente, reportar-nos aos primórdios do teatro inglês na Idade Média. Segundo Barbara Heliodora (2009), o teatro elisabetano começou a aparecer na metade da década de 1580 quando o teatro medieval já tinha passado. Nos primeiros trinta anos do reinado de Elisabete I, ou seja, até meados da década de 1580, não ocorreram mudanças significativas no teatro inglês. Durante essa época, no entanto, o terreno estava sendo preparado para os acontecimentos que estavam por vir, por meio de uma série de fatores decisivos: em primeiro lugar, data de 1500 o surgimento do inglês moderno. Os ingleses estavam encantados com a grande potência e beleza de sua língua, (HELIODORA, 2008); poetas que surgiram por volta da metade do século encontraram a grafia e a gramática normatizada – a língua se desenvolvia e se tornava um instrumento cada vez mais maleável a serviço da imaginação.

Em segundo lugar, outro elemento fundamental era a possibilidade de trânsito social: a Idade Média se caracterizara pela fossilização da estrutura social, mas o crescimento do comércio e a possibilidade de aquisição de riquezas trouxeram consigo a possibilidade de se alcançar altos cargos, boa posição social e, com sorte, até mesmo a admissão à nobreza. Com estas perspectivas em vista, os que tinham condições iam se preocupando em ter casas mais bonitas, roupas com maior estilo e atividades culturais e artísticas. (HELIODORA, 2008). Segundo a crítica Bárbara Heliodora, em 1576 um ex-carpinteiro, James Burbage, que optara pelo teatro, considerou que Londres já tinha condições para sustentar um teatro, ou seja, um edifício dedicado à apresentação de espetáculos teatrais. E foi a definição do palco elisabetano, inspirado no uso das carroças dos mambembes medievais, que tornou possível o aparecimento regular de atividades cênicas profissionais. Uma década após ser construído o primeiro edifício teatral batizado de teatro, e graças a todas as experimentações que vinham sendo realizadas por jovens poetas, aparece o fenômeno que chamamos de teatro elisabetano, com a montagem do Tamerlão de Christopher Marlowe, e da Tragédia espanhola de Thomas Kyd. A forma do palco e a dramaturgia foram mutuamente enriquecedoras: por vezes, as facilidades do palco permitiam ao autor ousar mais em seu texto, por outras, o texto provocava alguma extensão no aproveitamento do espaço cênico, ou seu aprimoramento. Para Heliodora (2009), uma das marcas básicas do teatro renascentista foi a transição do religioso para o secular, das glórias da vida futura para o gozo da vida presente. A ótica medieval é radicalmente diversa da renascentista em relação a tudo o que acontece, e o ponto de referência agora é o homem. As descobertas abrem horizontes de aventuras, a feição do mundo muda quase que diariamente. Surge nesse período um primeiro esboço do capitalismo, o dinheiro passa a ter o mesmo valor que a terra, e aparece como força libertadora, já que o comércio rompe não só o imobilismo econômico como também o social. O enriquecimento e o acesso à educação permitem o trânsito de uma classe para outra. Depois de séculos de rígida hierarquia feudal, o homem descobre que tem potencial para alcançar praticamente tudo. (HELIODORA, 2009). Na qualidade do primeiro país totalmente independente, não subordinado a Roma, a Inglaterra pode permitir ao teatro uma liberdade que o teatro espanhol, por exemplo, não conheceu. O grande florescimento do teatro inglês só chegou, no entanto,

no reinado da filha de Henrique VIII, Elizabeth I. A era elisabetana e o século de ouro espanhol formam juntos o último período do teatro autenticamente popular que o mundo conheceu: merece esse nome o teatro que produz obras de alta qualidade, e, conquanto escrito em termos de preocupação estética, é acessível e reflete pensamentos e sentidos da vasta maioria da sociedade de sua época, sendo visto e apreciado por uma porcentagem significativa dessa mesma sociedade. É um teatro que atinge o mais alto nível, e por meio do qual as necessidades do gosto popular são atendidas, no entanto sem fazer concessões. Nas considerações de Heliodora, na história do teatro do ocidente é sempre possível constatar uma notável coincidência entre o melhor teatro até hoje escrito e o mais popular, como, por exemplo, com Sófocles, Shakespeare e Molière. O teatro elisabetano chegou a dominar um país inteiro, em uma época de comunicações precárias, muito diferentes das de hoje. Tornou-se de tal forma popular que conseguiu atrair para si talentos que encontraria sua expressão mais feliz, talvez, em outras formas literárias. Contudo, naquele momento esses escritores sentiram que era preciso escrever para o teatro. É interessante destacar o uso do termo “elisabetano”, normalmente usado a respeito das, aproximadamente, seiscentas peças escritas entre a segunda metade da década de 1580 e 1642, quando foram definitivamente fechados e destruídos pelos puritanos, todos os teatros na Inglaterra. Os Stuarts receberam pronto o ambiente propício e o magistral drama produzido em seu reino foi o impulso inicial do período elisabetano. O teatro no período da Renascença Inglesa cresceu a partir da tradição medieval estabelecida do mistério e da moralidade. Embora tanto o mistério como a moralidade fossem espetáculos públicos que focavam temas religiosos, havia uma diferença fundamental entre eles: o mistério focava na representação de peças bíblicas e com acompanhamento musical e tratava de assuntos como Adão e Eva, Caim e Abel, enquanto a moralidade alegorizava as virtudes cristãs. Influenciado pela Igreja católica, o teatro medieval foi essencialmente um teatro litúrgico, articulado com os ritos e celebrações da Igreja Católica. Os mistérios eram atos que envolviam centenas de figurantes em inúmeros episódios que reproduziam, de forma mais ou menos realista, a natividade de Jesus, sua vida e seus milagres e a Paixão de Cristo, encenada no ritual da Semana Santa. Os autos natalinos que ainda se encenam no interior do Brasil, a representação da Via-Sacra, as procissões

do Senhor Morto e do Encontro, descendem dessa tradição litúrgica medieval, comum a toda a Europa católica romana e que os colonizadores trouxeram para o Novo Mundo. Outra forma de teatro medieval foi a moralidade. As representações desse gênero se desenvolveram no século XIV, ou seja, mais tarde que o mistério, de modo que serviu de continuação a esse gênero. Embora as moralidades estivessem repletas de ensinamentos cristãos, os acontecimentos bíblicos dão lugar a figuras que personificavam defeitos, virtudes, acontecimentos e ações do homem, em conflito com as correntes opostas do Bem e do Mal pela posse da alma humana no momento da morte. Desta forma, podemos dizer que as moralidades baseavam-se no princípio universal decorrente da queda e da redenção da humanidade: o homem é destinado a morrer em pecado, a menos que seja salvo pela intervenção divina. Assim, os temas tinham sempre intenção didática pretendiam transmitir lições morais e religiosas, e até, por vezes, políticas. (SÉRGIO, 2009). Tanto o mistério como a moralidade eram, geralmente, encenados por coristas, monges ou comerciantes de uma cidade. No final do século quinze, novos modelos de peças apareceram, os quais receberam o nome de interlúdio. Estas peças eram realizadas nas casas de famílias nobres e na corte, especialmente em épocas de férias. Os interlúdios começaram a afastar-se do caráter didático das peças tradicionais, constituindo-se na primeira manifestação teatral puramente secular do teatro medieval inglês. Embora o riso não estivesse de todo ausente nos mistérios, nos quais as histórias bíblicas eram, por vezes, apresentadas com certo humor, é com o advento dos interlúdios que o elemento cômico passa a se fazer mais presente no teatro inglês. Na Renascença, o teatro inglês sofre um avanço considerável, especialmente se consideradas as formas rudimentares praticadas na Idade Média. Como o próprio nome Renascimento sugere, e como já registrado anteriormente, a Renascença caracterizou-se, em parte, pelo retorno ao humanismo clássico. O interesse pelo clássico cresceu e pelas peças de antiguidade clássica, especialmente nas universidades. Os textos latinos foram traduzidos para o inglês e a poesia latina e as peças começaram a ser adaptadas em peças inglesas. Em 1553, um professor chamado Nicholas Udall escreveu uma comédia em inglês intitulada Ralph Roister Doister com base nas comédias latinas tradicionais de Plauto e Terêncio. Neste mesmo tempo, em Cambridge, a comédia Gammer Gurton´s Needle, possivelmente escrita por William Stevens, do Colégio de Cristo, divertia os alunos. Dá mais atenção à estrutura das peças latinas, e foi o primeiro a adotar a divisão em cinco atos.

De acordo com Barbara Heliodora (2009), o teatro na Renascença, influenciado pelos autores romanos, adotou a noção de uma ação em cinco atos, a ideia de um grande protagonista, e a preocupação com a beleza da linguagem utilizada. Os escritores também estavam desenvolvendo tragédias em inglês pela primeira vez, influenciados por autores gregos e latinos; dentre estes se destaca o dramaturgo romano Sêneca, cujas obras foram traduzidas para o inglês por Jasper Heywood, filho do dramaturgo John Heywood, em 1589. As peças de Sêneca incorporavam discursos retóricos, sangue e violência, e muitas vezes fantasmas; componentes que deviam figurar com destaque no drama elisabetano. (JOKINEN, 2010). Dessa forma, o teatro elisabetano pode ser considerado uma mistura de tradições poéticas e teatrais da cultura clássica, no qual, com a imaginação do público, os autores podiam contar qualquer história, esquadrinhando romances e tragédias gregas, contos medievais e comédias italianas, dentre outros. Passada a fase inicial do Renascimento inglês, com a ascensão ao trono da rainha Elizabeth I, grande apreciadora e encorajadora do gênero dramático, o teatro inglês sofreu grande impulso. Durante esse período, destaca-se a figura de William Shakespeare, embora a Renascença inglesa tenha conhecido outros dramaturgos que contribuíram para o avanço do gênero teatral na Inglaterra, como Christopher Marlowe. A carreira de Marlowe como dramaturgo encontra-se entre os anos de 1587 e 1593, e a sua fama reside especialmente em quatro grandes peças: Tamburlaine the great, um épico heróico em forma dramática dividida em duas partes de cinco atos cada (1587, impressa em 1590); Doctor Faustus (1588) entrou no Hall Stationers (1601); A tragédia famosa The Jew of Malta (que data talvez de 1589, mas estreou em 1592, e foi impressa em 1633); e Edward II(impresso em 1594). Cada uma dessas peças apresenta características singulares e inovadoramente criativas. Tamburlaine the great é a primeira peça escrita em inglês, sem rimas decassilábicas. A qualidade do Fausto de Marlowe é atestada pelo julgamento generoso que dele faz Goethe; embora tenha quase a estrutura de uma peça, é realmente um poema dramático, dotado de grande intensidade de propósito, como, por exemplo, a concepção e expressão das agonias sofridas por Fausto sob a iminência imediata de sua desgraça. Quanto a The Jew of Malta, é opinião de Swinburne que a última parte da peça declina em energia, mas os dois primeiros atos seriam suficientes para justificar a fama da obra; além disso, o retrato do herói antes que degenere em caricatura é marcante. Prova da maestria de Marlowe é o fato, ainda, de que em Edward II a cena da

deposição do rei em Kenilworth é quase tão efetiva em seu efeito trágico e qualidade poética quanto à cena correspondente no Richard II, de Shakespeare, ainda que seja menor e menos elaborada que esta última. (SWINBURNE, in JOKINEN, 2010) O surgimento de Shakespeare só foi possível graças às condições e circunstâncias sociais, culturais, intelectuais e estéticas, que se formaram a partir de dois mundos: a Idade Média e o Renascimento. Diferentemente das dramaturgias francesas e italianas, que seguiam de perto os princípios básicos sobre o drama teorizados por Aristóteles, transformados em regras prescritivas pelas poéticas barroco-classicistas, o teatro inglês encontrou seu destino aproveitando o melhor dos dois. Passamos, agora, à exposição e caracterização do teatro daquele cujo nome se tornou quase sinônimo desse gênero na era elisabetana – William Shakespeare. Como Paula Mathenhauer Guerreiro (2012) registra, o teatro de Shakespeare mantém os cinco atos do teatro clássico, mas não as unidades de tempo, lugar e ação. Enquanto as peças gregas e latinas, até então, desenvolviam-se em um único espaço, normalmente em frente a um palácio, em Shakespeare os cenários são múltiplos. Com a unidade de ação, a ruptura também é clara: enquanto no drama grego a ação deve ser centrada no personagem principal – rei, rainha ou outra figura nobre – na dramaturgia de Shakespeare personagens secundários têm autonomia de confabular e determinar novos rumos. Ademais, a tragédia grega desenvolve a trama no período de um dia, porque está centrada na solução do conflito; ainda aqui, Shakespeare rompe com as normas do teatro clássico, prolongando a ação de suas peças para além do período de vinte e quatro horas. É assim, por exemplo, que em A megera domada não só os cenários são múltiplos, como há múltiplos cursos paralelos de ação, a qual se desenvolve em período superior a um dia. A ruptura com o espaço único permitiu a Shakespeare não só dotar os personagens de maior mobilidade, permitindo-lhes deslocamentos que acabam desencadeando cursos de ação, bem como proporcionou-lhe um meio suplementar de caracterização dos personagens. Lucêncio vem de Pisa para Pádua, sem o que seu encontro com Bianca seria impossível; também Petrúquio se desloca de Verona para Pádua com o intuito de encontrar uma esposa rica. Além de possibilitar a formação dos dois principais pares românticos da peça, o deslocamento de lugar permite a aproximação entre personagens de culturas diferentes. Em A megera domada o deslocamento dos personagens vindo de Pisa para morar em Pádua, permite-lhes apreciar essa cidade, sua grande economia e oportunidades de negócios e estudos. O

deslocamento possibilita também a aproximação entre a vida urbana e a vida camponesa, como é o caso de Petrúquio que, sendo camponês, vem à cidade em busca de uma esposa. Já as cenas em praça pública permitem a cumplicidade entre personagem e público. No entanto, a praça pública representa o local de encontro e relações entre as diversas classes sociais representadas na peça. Quando os personagens assumem essas características estão representando a sociedade. Através da caracterização da casa de Batista é possível identificar o perfil da classe alta, nobreza, envolvida em relações de mercantilização do casamento. Quanto à casa de Petrúquio, é possível identificar o perfil da classe média. A fazenda, em situação econômica precária, traz à tona os problemas enfrentados na classe baixa. As relações entre os personagens permitem o encontro das classes sociais. De acordo com Bárbara Heliodora (2014) em Londres, ao tempo de Shakespeare, a população já chegava a quase 300 mil habitantes; as numerosas hospedarias desempenhavam papel importante na vida social e econômica da cidade, nos negócios como nas diversões, correspondendo aos hotéis, restaurantes e clubes dos , além de atraírem todos aqueles que queriam se divertir. Batista é apresentado como um nobre rico em Pádua, tendo uma grande e luxuosa casa onde habita com as filhas e com a empregada doméstica. Vários detalhes de riqueza são descritos. Percebe-se que, pela descrição do ambiente e condições sociais, Batista possui empregados, que as filhas de Batista ocupam-se em estudar e ler. Batista apresenta-se como dono de muitas terras, as quais correspondem a vinte mil coroas. O confronto entre a propriedade de Batista e a de seu genro Petrúquio apresenta contraste que contribui para caracterizar as classes sociais a que pertencem. Petrúquio é apresentado como dono de uma casa de campo, proprietário de cavalos fatigados, homem cansado e próximo à falência. A introdução desses personagens possibilita uma demonstração do contexto da sociedade do período elisabetano, uma sociedade em que se manifestavam claramente a discriminação social e a discriminação de gênero (HELIODORA, 2014). Enquanto o teatro grego tratava especialmente da elite, o teatro shakespeariano insere personagens da classe burguesa, os quais têm posicionamentos críticos em relação aos acontecimentos da sua época. Em A megera domada esses personagens

pertencentes à classe burguesa, e assumem uma personalidade falsa para aderir aos costumes e serem prestigiados pela elite. Por outro lado, o rompimento com a unidade de ação contribui para a formação do que viria a ser uma das características da comédia romântica shakespeariana, ou seja, a exposição de múltiplos cursos de ação, com a presença do enredo principal e subenredos. Como se percebe em A megera domada, o enredo principal narra o relacionamento entre Petrúquio e Catarina, e como subenredo narra o romance entre Bianca e seus pretendentes, especialmente Lucêncio. Esta característica do teatro shakespeariano possibilita um olhar ao casamento sobre vários ângulos. Por outro lado, percebemos o interesse econômico como responsável pelos pares românticos: Petrúquio e Catarina e Lucêncio e Bianca. Mesmo que na narrativa de Shakespeare, Lucêncio e Bianca apresentam-se, inicialmente, como um par movido pelo amor, entende-se, também, que Lucêncio possui interesses sociais ao agregar-se à família Minola. A quantidade de personagens no teatro de Shakespeare proporciona uma análise da sociedade. Enquanto algumas peças representavam apenas personagens da burguesia, as peças de Shakespeare representam a multiplicidade dos grupos sociais. Batista, pai de Catarina e Bianca, é rico comerciante de Pádua; os tutores que se apresentaram para instruir as irmãs Minola na intimidade do lar, por sua nobre função, apresentam-se como pertencentes à classe média; o músico que vem a fazer o papel de Vicêncio ( pai de Lucêncio) é um nobre muito rico de Pisa; Petrúquio, pretendente de Catarina, é pobre, e Cristopher , um funileiro. Na peça também há personagens representantes de alfaiates, lojistas, hotelaria, caldeireiro, viúvas e criados. Estes personagens entram em cena para representar a classe baixa. Sly é apresentado como pobre que sofre o engano de estar rico; a viúva e criados entram em cena como empregados que estão preparados e aptos a servir a classe alta; Biondelo, criado de Batista, o serve com tranquilidade e disposição. Assim, a relação entre estes personagens demonstra o encontro entre classes sociais, mesmo que em contraste. Quanto ao rompimento da unidade de tempo, o teatro shakespeariano proporciona ao leitor/espectador um contexto sobre os fatos que estavam acontecendo na sociedade. É possível perceber o planejamento dos personagens ao envolverem-se em uma falsa identidade para alcançar seus interesses econômicos. Em A megera domada Shakespeare apresenta uma história inicial e, a partir dela, passa a narrar a história principal. A esta característica Patrícia Barth Radaelli de Oliveira (2005), dá o nome de indução, ou seja, um direcionamento que leva o público a

entender o enredo como uma narração dirigida a outros personagens e não diretamente ao público. Nenhuma das outras peças de Shakespeare começa com uma história na qual uma peça completa de cinco atos é realizada dentro de outra peça. Nas cenas iniciais da Indução - I e II–, são apresentados personagens que estão em uma cervejaria, dentre os quais , um mendigo bêbado que, ao dormir, é criticado pelos demais personagens. Estes decidem pregar-lhe uma peça: estando Sly em profundo sono, decidem transformar-lhe a vida, de forma que, ao despertar do sono, estivesse transposto a um ambiente em que poderia se julgar um nobre. Transportado para a cama de um aristocrata, e vestido com suas roupas, ao despertar Sly recebe, ainda, tratamento especial. Para explicar a troca de situação, levam-no a acreditar que estivera em profundo sono por quinze anos. Enquanto todos os personagens se divertem com a surpresa e reações de Sly, propõem apresentar peça em sua homenagem, a qual vem a ser os cinco atos de A megera domada. Dessa forma, esta se apresenta como uma peça dentro de outra peça. A indução cumpre o propósito de direcionar o público a compreensão dos temas que a peça aborda. Como em A megera domada, a situação inicial induz o público à percepção da situação social do personagem Sly. Quando este adormece, os demais personagens o enganam, realizando uma transformação social, a qual induz o público a refletir sobre a mudança social e econômica realizada por meio do casamento mercantilizado da sociedade inglesa. Na comédia há dois tipos essenciais de humor: o cômico, decorrente de situação que envolve a trama, ou seja, enredo cômico, e o cômico, decorrente do caráter dos personagens. A comédia Shakespeariana é de situação, portanto, uma pessoa é colocada em circunstâncias sobre as quais tem pouco ou nenhum controle, como por exemplo, o conflito de Bianca e Catarina, e/ou dos pretendentes a elas com o senhor Batista. Mesmo os inúmeros episódios de engano a que ocorrem pairam em torno de Batista, já que, no afã de conquistar a mulher que desejam, os pretendentes fazem parecer a ele que o que aparentam ser é realidade, quando, na verdade, não passa de farsa. É assim que ante a proibição do casamento, e o anúncio da contratação de tutores que ensinem as moças no recôndito do lar, surgem dois tutores, com identidades falsas, além de um falso Lucêncio, cuja identidade é assumida por Trânio, seu empregado. Com a mercantilização do casamento, Petrúquio aparenta uma riqueza que na verdade

não tem com o propósito de conquistar a família de Catarina e receber o dote. Lucêncio, para conquistar Bianca, recorre a um falso pai para sustentar sua oferta de dote. A presença de tais enganos e confusões constitui-se em outra das características da comédia romântica, a existência de um elemento às avessas, no qual os papeis sociais são invertidos. Nessa convulsão da ordem social, a estrutura social, que uma vez impedia os jovens amantes de se casar, é transformada, e os problemas são resolvidos, de forma que o ato final muitas vezes inclui um casamento e uma celebração. É assim que, na peça em estudo, Batista, o nobre e rico homem de Pádua é enganado e dominado pelos pretendentes de sua filha Bianca. Por outro lado, Petrúquio aceita a condição e desafio de conquistar a nobre Catarina, quebrando a ordem social de celebrar o casamento entre a nobreza. Na qualidade de comédia romântica, A megera domada concentra-se principalmente nas relações amorosas entre homens e mulheres e como elas se desenvolvem a partir do interesse inicial sobre o casamento. No entanto, ao contrário de outras comédias de Shakespeare, A megera domada não idealiza os desejos de amor, e o casamento é visto como uma resolução para as situações financeiras dos envolvidos. Assim, o desejo emocional desempenha apenas um papel secundário de exploração do amor. Em vez disso, a comédia enfatiza os aspectos econômicos, especificamente o modo pelo qual as considerações econômicas determinam quem casa com quem. A peça tende, assim, a explorar relacionamentos românticos a partir de uma perspectiva social, abordando as instituições de namoro e casamento, além das paixões internas dos amantes. No entanto, explora como o namoro não apenas afeta os amantes, mas também os seus pais, seus servos, e seus amigos. O relacionamento de namoro é negociado entre o futuro marido e pai da futura esposa. Como tal, o casamento torna-se uma transação que envolve a transferência de dinheiro. É necessário tanto a Petrúquio como a Lucêncio/Trânio negociar o casamento com Batista. Nesse caso, como Trânio, a serviço de seu senhor Lucêncio, passa-se por este último, a negociação do casamento, em que a presença de seu pai é requerida para confirmação do dote oferecido, requer a busca de um falso pai que confirme a transação. Lucêncio ganha o coração de Bianca, mas a ele é dada a permissão para casar com ela só depois que ele é capaz de convencer Batista de que é fabulosamente rico. Já Hortênsio, que tinha oferecido dote maior, desiste de suas intenções de casar-se com Bianca, pois percebe que esta amava Lucêncio, e opta pelo casamento com uma rica viúva, inominada, o que se constitui em

outro exemplo claro da mercantilização do casamento e do lugar irrelevante dado ao desejo romântico. Apesar da tematização do casamento como instituição econômica e dos efeitos dos bens financeiros sobre a felicidade individual, A megera domada é uma comédia romântica. Conforme Willian C. Carroll (2003) ressalta, o que define a comédia romântica shakespeariana não é a presença do humor, mas a presença da transição da desarmonia (as comédias tendem a começar em um tumulto) para a harmonia final representada pelo casamento ou pela promessa de uma união conjugal. Essa característica associa-se a outras ainda, como a existência de impedimentos, de várias naturezas, para a concretização do casamento, e a consequente jornada dos amantes para a superação desses bloqueios. Entre esses obstáculos, figuram leis sociais, acidentes naturais, como naufrágios, ou a existência de pais despóticos e insensíveis, como é o caso com Batista. Por vezes, os personagens fogem ou são exilados, ou saem de um contexto tradicional para um mundo mais moderno, "civilizado". Assim, têm de escolher (ou são forçados) a fugir para uma distante nova realidade, muitas vezes, obrigados a vestir disfarces, o que dá origem, como já assinalado, a confusões e identidades trocadas, mas sem mortes de personagens. Pode haver, também, conflito entre dois grupos sociais opostos: governantes e súditos, mais velhos e mais jovens, ricos e pobres – as duas últimas situações ocorrem na peça em estudo, como representado pelo conflito entre Batista Minola e suas filhas e/ou pretendentes, menos abastados do que ele. Fatos como este último evidenciam que o casamento é uma questão que envolve não apenas contextos amorosos, mas, em muitos casos, contextos sociais influenciam estas relações. Outro tema explorado por Shakespeare tende a apresentar o efeito de papeis sociais sobre a felicidade individual entre os envolvidos no casamento. Cada pessoa na peça ocupa uma posição social específica que carrega consigo certas expectativas sobre como deve se comportar. A posição social de uma personagem é definida por dados como a sua riqueza, idade, sexo, profissão, parentesco e educação. Estas questões envolvem os personagens ricos, como Batista e seu parentesco; o sexo masculino na sociedade patriarcal; as profissões, como músicos e professores, que eram prestigiadas pela classe alta, e a educação como ferramenta dos filhos e filhas da elite. (CARROLL, 2003). As normas que regem a forma como cada um deve se comportar são duramente impostas pela família, amigos e a sociedade como um todo. Por exemplo, na peça em

análise, Lucêncio ocupa o papel social de um jovem estudante rico, Trânio a de um servo, e Bianca e Catarina os de moças de classe alta à espera do casamento. Parte do conflito existente na peça prende-se ao fato de que Catarina recusa-se a exercer seu papel social do modo como se espera que o cumpra, e suas atitudes ásperas são os resultados de sua frustração a respeito de sua posição. Como ela não vive as expectativas de comportamento da sua sociedade, enfrenta a desaprovação acerca das opiniões que defende, e, devido a sua posição e comportamento, torna-se miseravelmente infeliz: o papel social que deveria ocupar não condiz com sua personalidade. Por isto ela é vista como umA megera, que precisa ser domesticada ao padrão esperado pela sociedade da época. (CARROLL, 2003) Embora Catarina seja a única dos muitos personagens em A megera domada que tentam burlar ou negar seus papeis socialmente definidos, há outras instâncias de burla dos papeis sociais com o intuito de obtenção de vantagens pessoais, a que já nos referimos, anteriormente, no quadro da discussão do mundo às avessas apresentado pela comédia: Lucêncio transforma-se em um professor de Latim, Trânio se transforma em um jovem rico aristocrata, ao assumir a identidade de seu patrão Lucêncio, Christopher Sly é transformado de um funileiro a um senhor, e assim, a peça apresenta outras mudanças de identidade dos personagens. Os temas abordados por Shakespeare foram válidos para sua época e podem ser perfeitamente apreciados ainda nos dias atuais. As comédias shakespearianas não apresentam clara delimitação entre comédia e tragédia; ao contrário, os limites entre elas são muitas vezes borrados, já que o dramaturgo observa que, na vida, comédia e tragédia não andam separadamente, mas, antes, ocorrem simultâneas, segundo a realidade da vida. Assim, através do teatro, apresenta os grupos e as classes sociais de sua época de modo crítico, trágico e cômico. O modo como a comédia shakespeariana presta-se à crítica social e pode ser retomada em contextos históricos diferentes fica particularmente claro quando se considera como, em pleno século XX, no Brasil, uma rede televisiva de prestígio retomou a comédia A megera domada, reapresentando-a, em forma de telenovela, em O cravo e a rosa, com intento de crítica social. Antes de analisar como tal crítica social se desenvolve, torna-se necessário entender a natureza da telenovela, e as oportunidades de crítica social que esse gênero vem a oferecer, pelo que, a seguir, abordamos as características de tal gênero televisivo.

1.2 A TELENOVELA COMO GÊNERO: CARACTERÍSTICAS

Segundo Marques (2012), telenovela é uma narrativa seriada, ou seja, uma história contada em fragmentos, os quais se ligam um ao outro por compartilharem elementos dramáticos em comum. Tanto o teatro como o folhetim exerceram grande influência no desenvolvimento da telenovela brasileira, o que pode ser percebido através da manutenção de estrutura narrativa essencialmente dramatúrgica. Especialmente no que tange ao tratamento da organização dos capítulos, cenas, cenários, além da ênfase no desenvolvimento psicológico dos personagens. Outra manifestação importante desse aspecto está na relevância que o texto tem nas produções e do papel do autor dentro de todo processo de realização da concepção à produção. O teatro é uma arte em que um ator, ou conjunto de atores, interpreta uma história ou atividades, com auxílio de dramaturgos, diretores e técnicos, que têm como objetivo apresentar uma situação e despertar sentimentos no público. A palavra teatro define tanto o prédio onde podem se apresentar várias formas de artes quanto uma determinada forma de arte: o vocábulo grego Théatron estabelece o lugar físico do espectador, "lugar onde se vê". Entretanto, o teatro também é o lugar onde acontece o drama frente aos espectadores, complemento real e imaginário que acontece no local de representação. Ele surgiu, supõe-se, na Grécia antiga, no século IV a.C. Toda reflexão que tenha o drama como objeto precisa se apoiar numa tríade: quem vê, o que se vê, e o imaginado. O teatro é um fenômeno que existe nos espaços do presente e do imaginário, e nos tempos individuais e coletivos que se formam neste espaço. A literatura de folhetim, que influenciou a produção da telenovela, surgiu em 1836, na França e logo em seguida veio para o Brasil. Folhetins eram publicados em jornais do Rio de Janeiro nos espaços para entretenimento. O folhetim possui duas características essenciais: quanto ao formato, é publicado de forma parcial e sequenciada em periódicos (jornais e revistas); quanto ao conteúdo, apresenta narrativa ágil, profusão de eventos e ganchos intencionalmente voltados para prender a atenção do leitor. Sendo assim, passou-se a adotar o rótulo folhetim à própria noção de uma nova modalidade textual: o romance folhetim. Quanto aos aspectos estruturais, o

romance-folhetim, possui características particulares: tipologia textual em narrativa com a presença dos diálogos; o elemento suspense de episódio para episódio, o que atiça a curiosidade do leitor; a presença da figura do herói – homem de gênio superior, solitário entre os medíocres, triunfante entre os vencidos. O herói move-se em dois mundos antitéticos: a classe baixa e a alta sociedade, extremos da escala social que se apresentam em tensão caracterizada por alta conflitualidade; a par disso, há oposições binárias como: bem x mal, felicidade x amargura, perseguidor x perseguido, generosidade x mesquinhez, resolvidas pela ação heróica de uma individualidade poderosa. (FARIA, 2005). Marques (2012) enfatiza que a telenovela é um dos mais importantes produtos de entretenimento no Brasil, e que, ao longo de sua existência, consolidou um espaço representacional incisivo no cotidiano dos brasileiros. Segundo ela, a telenovela adquiriu um formato especial que ajuda os telespectadores a compreender o mundo e sua realidade através de tematizações dos assuntos do cotidiano, promovendo uma aproximação e identificações múltiplas. De acordo com Marques, é impossível caracterizar a telenovela brasileira a partir do conjunto de gêneros e estilos que servem à literatura e ao cinema. Pode antes, ser definida como um gênero próprio, ou como contendo uma bricolagem de gêneros e estilos. O que se pode observar é que se utiliza, se não de todos, de muitos dos gêneros e estilos convencionais numa mesma obra. A narração, o sonoro e o visual conferem-lhe um conjunto de características que configuram um subgênero. Por outro lado, é a existência de combinações tais como a mistura do popular com o erudito e de fatos reais e ficcionais que dão a telenovela seu estilo próprio. Entre os diversos gêneros televisivos estudados por Souza (2004), há algumas categorias que têm os objetivos de entretenimento, informação, educativo, publicidade e outros. A telenovela pertence à categoria entretenimento. Entretanto, dentro dessa categoria mais genérica, a telenovela conserva ainda diferenciais que a distanciam de outras formas de dramas seriados televisivos, por apresentar um enredo linear com duração maior, enquanto que outros dramas, como por exemplo, o filme, os programas interativos e seriados, que possuem características específicas. É possível ver que o melodrama, gênero originário da mesma categoria de entretenimento, foi sendo transformado por meio de elementos como a imediatez, o simulacro e as releituras de aspectos da contemporaneidade que está inserida. Contudo, perduram algumas peculiaridades advindas do melodrama, como a recapitulação, que

visa informar os telespectadores eventualmente esquecidos e, ainda há, em algumas telenovelas, outra característica do melodrama: a presença da redundância. Com relação a outros dramas televisivos, uma das grandes distinções é a presença do que Pallottini (1998) chamou de unitários (cada fragmento tem a história apresentada e resolvida nele mesmo, embora conserve personagens, ambientação e temáticas comuns aos outros). Na telenovela tais fragmentos são pequenos pedaços de uma história que só se completa no conjunto, às vezes em poucos capítulos ou podendo durar quase todo o período de exibição. Como uns exemplos citam-se as relações românticas, os enredos e subenredos amorosos. Outra característica fundamental que diferencia a telenovela é ser uma obra aberta. Ao mesmo tempo em que há evidentemente um exaustivo planejamento e a previsibilidade de autores e produtores de como a história deve se desenrolar (quais desfechos e futuro dos personagens), essa previsibilidade não dá conta do projeto inteiro, e mudanças de curso, até mesmo radicais, não só são permitidas, como são ingredientes para seu sucesso. Ser obra aberta pode ser visto como uma condição de um produto que é forjado para a aceitação da audiência, e assim precisa reagir e estar sujeito a ela, mesmo que quase nunca profundamente. Há alterações em função dessa aceitação (medida pelos índices de audiência e grupos de discussão promovidos pela emissora). Contudo, não é só a audiência que contribui para que essa condição permaneça: tendo duração normalmente longa, e sendo uma produção que envolve um número grande de profissionais e enorme infraestrutura, a telenovela está sujeita a toda sorte de imprevistos - da censura que ocorria no período da ditadura, até mudanças, doença, morte e outros incidentes com a equipe de produção, atores e atrizes. Marques (2012) aponta o gancho como outra característica indispensável da telenovela. Segundo ela, o propósito do gancho é fazer com que o leitor ou telespectador acompanhe a história capítulo após capítulo, deixando-se seduzir pelo hábito que, de alguma forma, cria a ritualização desse consumo. Mas isso não significa que a existência explícita do gancho como recurso seja imprescindível ao final de cada capítulo, ou de cada semana, como se só ele fosse capaz de manter o público atento à história. Podemos entender o gancho como um conceito mais amplo, dizendo respeito a todo e qualquer elemento ou ação dramática que seja capaz de estabelecer com o público essa relação entre o suspense, a vontade de saber, e o efetivo desenrolar de uma determinada ação.

A criatividade e modificação em relação ao texto original, quando se trata de uma adaptação de uma obra literária, também pode ser apontada como característica da telenovela. Este é o caso, por exemplo, da telenovela O cravo e a rosa, uma adaptação da peça A megera domada, que adiciona ao texto original de Shakespeare subenredos e alusões de nosso contexto cultural contemporâneo e brasileiro. Nesses casos, é característico da telenovela criar não mais do que um vínculo de inspiração para a história ou parte dela, e acabar se desenrolando independente dos desfechos que o escritor tenha originalmente concebido. Pode-se dizer que a telenovela só é realmente fiel e íntegra a ela mesma, em sua própria coerência narrativa, por mais que possa ter sido inspirada em referências externas muito claras. Uma característica fundamental da telenovela, enfatizada por Marques e Lisboa Filho, é a construção de “mundos” que fazem relação ou não com o mundo real. A produção televisiva é responsável por esta construção de mundo, estabelecendo, segundo as autoras, uma perspectiva na mente do leitor. Marques aponta três possíveis mundos: o real, o ficcional e o lúdico. O primeiro corresponde a aspectos que estão presentes no cotidiano. Já o mundo ficcional por vezes é tomado como uma mentira, no entanto, não se trata de uma mentira propagada de forma midiática, especificamente televisiva, mas sim uma construção narrativa que não possui vínculos concretos com a realidade existente. E, o último, o lúdico, seria o mundo intermediário entre o real e a ficção, em uma busca de recursos que propiciem sua construção; procura constituir um elo direto com o social. Sobre esta característica da produção telenovelística, Kegler e Araújo afirmam que:

[...] a telenovela conta histórias de vida, e, através de personagens, tenta reproduzir fatos e acontecimentos da vida de pessoas reais, a fim de que as pessoas se identifiquem e acabem acompanhando o desencadear dessas histórias. Essa narrativa, muitas vezes, transporta os receptores para um mundo fantasioso, pois, na maioria das histórias, personagens ricos são infelizes e de mau caráter, enquanto que os pobres são honestos e felizes, ou seja, há a ênfase dos extremos, os quais revelam somente uma das faces do ser humano. Vê-se, então, a presença de estereótipos, de relações, e de papéis sociais nesses enredos. (2007, p. 6).

De acordo com estes autores, a telenovela reproduz fatos ou acontecimentos reais com o propósito de criar uma aproximação com o interlocutor. E sobre este aspecto James Lull (1995, p.101) afirma que a os meios de comunicação massiva refletem a realidade social e reúnem fragmentos da realidade para produzir relatos que assemelham em alguns sentidos ao que nos rodeia. Nessa perspectiva, percebemos a

relevância de estudar este gênero, pois ele pode influenciar o comportamento social, mesmo que reconheçamos suas características lúdicas, as quais mencionamos anteriormente. Ao considerar a telenovela como uma representação de fragmentos históricos e reunidos para discutir situações sociais, entendemos que ela não apenas reproduz, mas cria outro enredo a partir da contextualização social. Para Marcondes Filho (1994) “a diferença agora é esta: ela não transmite o mundo, ela fabrica mundos”. Surge então, uma grande fábrica de imaginários, verdades e estímulos, que delineia um caminho peculiar para o formato da telenovela brasileira. Por este motivo, a produção televisiva é capaz de caracterizar a telenovela como um gênero de acordo com os avanços tecnológicos da televisão. Com base no arcabouço teórico a que recorremos para este estudo, pretendemos estabelecer as características da telenovela brasileira. No entanto, é interessante reconhecer que, nas colocações de Marques (2012), as telenovelas podem ser consideradas como processos capazes de ocasionar ordens e desordens: a partir do instante que entram nos lares influenciam cotidianos, desenham novas imagens, pro- põem comportamentos e, de alguma forma, consolidam um padrão de narrativa considerado dissonante, tanto para os modelos clássicos e cultos, quanto para os po- pulares. Isso implica a aceitação do gênero pela sociedade e a compreensão do mesmo simplesmente como gênero que, inúmeras vezes, se apropria da realidade efetuando o seu recorte sobre ela e disseminando aos telespectadores novas visões; por outro lado, pode ocorrer uma influência na sociedade a partir da mensagem recebida.

1.3 ATELENOVELA NO BRASIL: O CRAVO E A ROSA

1.3.1. A TELENOVELA NO BRASIL

Nesta caracterização inicial da telenovela partimos das características gerais do gênero; no entanto as características deste gênero podem variar segundo a esfera de produção. Por exemplo, no Brasil, segundo Marques (2012), as primeiras telenovelas seguiam a linha já instituída pelo modelo do folhetim e abordavam temas em torno do romance. O ano de 1970 foi um marco na telenovela brasileira, quando a rede Globo exibiu a telenovela Véu de noiva, inicialmente feita para o rádio e escrita por uma autora

brasileira, Janete Clair. A trama narrativa, além da central, possuía outras tramas paralelas. A partir desta produção, são integradas às tramas enredos semelhantes aos aspectos presentes no cotidiano, ou seja, estabelece-se uma proximidade com os telespectadores. De acordo com Paula Salazar (2008), o Brasil, de modo semelhante a alguns outros países da América Latina, teve na produção televisiva nacional seu ponto forte, ancorado nas narrativas seriadas melodramáticas que ainda predominam no horário nobre dos canais abertos. A telenovela emerge como um objeto de padrão massivo, constituído em constante diálogo com matrizes populares: para considerar o quadro conceitual anteriormente referido, uma manifestação da “cultura popular de massa” (MARTÍN-BARBERO, 1987). Além de produto da indústria cultural, a telenovela – forma seriada, território de ficcionalidade – constitui-se em elemento de mediação entre produtores e o cotidiano dos receptores. Foi no dia 18 de setembro do ano de 1950, em São Paulo, o empresário Assis Chateaubriand inaugurava a televisão Tupi Difusora, a primeira televisão a entrar no ar no Brasil, a primeira da América Latina e a quarta do mundo. Segundo a autora, no início a televisão não teve modelos externos como referência. Nestes primeiros passos a televisão aproveitou algumas bem-sucedidas experiências radiofônicas, bem como avanços feitos pelo cinema e teatro. Ao longo do tempo as emissoras e produtoras brasileiras foram desenvolvendo padrões e modelos próprios para o meio televisivo. (SALAZAR, 2008). Em 1951 foi ao ar a primeira telenovela na TV brasileira: Sua vida me pertence, escrita por Walter Foster. Durante toda a década de 1960, as telenovelas foram transmitidas duas vezes por semana e cada capítulo tinha duração de vinte minutos. Nesse momento, a televisão era uma aquisição recente e não havia conhecimentos técnicos suficientes para a exploração do novo meio. Marques (2012) salienta que a característica da telenovela brasileira, especialmente no tocante à linguagem deste gênero, foi se formando a partir das influências daqueles que lhe deram suporte para existir, sendo que alguns aspectos permanecem. O melodrama clássico foi sendo constantemente reformulado pelo fazer televisual brasileiro. Mesmo passando por inúmeras reciclagens, algumas características do melodrama permanecem. Marques e Lisboa Filho afirmam que:

A produção televisiva de telenovela no Brasil acabou por criar uma linha de diversos subgêneros para além do melodrama, que contribuem para a formação diferenciada do formato da telenovela brasileira. Através de diversos deles buscam sua diferenciação dentro do que parece ser corriqueiro na sociedade. No entanto, não se limita somente às instâncias nacionais, mas transcende-as, o que permite afirmar que o gênero não é fixo, mas um processo que pode ser transformado em decorrência da trama narrativa, denotando deste modo a comunicabilidade presente na telenovela. (MARQUES; LISBOA FILHO, 2012, p. 79)

Inicialmente a telenovela era caracterizada por possuir poucos personagens, que se delimitavam em desempenhar papéis duais contrastantes, “bons” ou “maus”, bandidos ou heróis, vilões ou mocinhos, dentre outros. Logo, todo o enredo girava em torno destes poucos personagens; assim se tornava previsível o destino dos mesmos, pois a falta de personagens secundários não contribuía para a extensão de atributos como, por exemplo, o suspense. Muitas vezes, a telenovela, como gênero, transporta os receptores para um mundo fantasioso, pois, na maioria das histórias, personagens ricos são infelizes e de mau caráter, enquanto que os pobres são honestos e felizes, ou seja, há a ênfase nos extremos, os quais revelam somente uma das faces do ser humano. Vê-se, então, a presença de estereótipos, de relações, e de papéis sociais nesses enredos. (SALAZAR, 2008). Segundo o Guia Ilustrado TV Globo (2010) as telenovelas, com o decorrer dos anos, foram aderindo a narrativas complexas, que se distanciavam do modelo atrelado a apenas uma trama central. Atualmente há uma rede de tramas paralelas que circundam e coexistem com o enredo principal, o que, consequentemente, resulta em um número maior de personagens, e em capítulos igualmente maiores. Isso requer rigor estético mais aperfeiçoado e alta tecnologia em sua produção, essas adaptações contribuíram para que as telenovelas obtivessem o aprimoramento visualizado na tela da tevê hoje em dia. (GLOBO, 2010). Quanto ao seu formato, pode-se dizer que, desde o seu início, a telenovela é pautada por diálogos. Assim como o teatro, é dividida em cenas, enredos, personagens e espaço, no entanto, ela difere do teatro por apresentar uma narrativa mais extensa, assim também, a telenovela apresenta vários enredos que ao longo da narrativa estabelecem conexões entre si. O enredo é desenvolvido de maneira sequencial, sendo que em determinados momentos da narrativa alguns recursos que quebrem essa sucessividade de acontecimentos podem ser empregados. O espaço e tempo na telenovela são

indissociáveis. A pluralidade dramática definirá a pluralidade espacial, pois, de acordo com as ações, os personagens podem ser continuamente deslocados para diferentes ambientes na narrativa, enquanto que no teatro o espaço é reduzido pelo palco. Dentre outras características fundamentais da telenovela podemos destacar as trilhas sonoras, figurinos, cenários, movimentos e câmera-narrador. Em relação às trilhas sonoras, Maria Cristina Aguiar afirma:

O nosso sentido de sintaxe musical depende da afinidade entre os sons. Ouvir música é um processo cognitivo, em que todos os dados se relacionam com a estrutura em si. Nas nossas actividades cognitivas, agrupamos sons, tempos fortes e harmonias e ouvímo-los como um todo. Este fenómeno é essencial para perceber a música e remete-nos para uma comparação com a linguagem, onde se agrupam palavras em frases, elaborando um discurso coerente. Na nossa memória retemos algumas peças musicais no seu todo, mas quando as ouvimos somos capazes de descodificar as suas partes e a sua estrutura. (AGUIAR, 2001, p. 129-130).

OBS: a partir disso definir trilha sonora

De acordo com Aguiar, através da trilha sonora somos capazes de associar a cena fílmica e os personagens que a ela se relacionam. Desse modo, a trilha sonora prepara, de forma introdutiva, o telespectador para a apresentação do cenário e dos personagens. Ou seja, o som e a imagem agregam-se e se relacionam para construção cinematográfica. Os cenários e figurinos são fundamentais na análise da telenovela. As roupas denotam a marca de uma época e fornecem aos personagens a possibilidade de criar diversas personalidades. Segundo Nélio Pinheiro,

O vestuário denota uma presença, influenciam, determinam, constroem fatos, cenas, personagens, realidades, imaginações. Registram maneiras de ser e viver de diversas culturas em seus diferentes tempos, apresentando características próprias. Diferentes papéis cumpriram e cumpre o vestuário nas diferentes produções, sejam elas teatrais, televisivas, cinematográficas, sendo que em todas elas, está contido a função de compor, criar um personagem, identificar aquele que veste pelo que veste. O vestuário nesse caso tem a incumbência de representar, informar, simbolizar, expressar, capacitar aquele que de posse daquele traje, possa se fazer outro, nesse caso o personagem que ele representa. (PINHEIRO, 2010)

Segundo Pinheiro, o figurino retrata um período e expressa características distintas dos personagens. Em O cravo e a rosa, considerada uma telenovela de época, estes elementos visuais e audiovisuais favorecem a compreensão do enredo. O cenário inicial de apresentação e o figurino dos personagens, como roupas, cabelos, e acessórios

representam a década de 1920. Na cena de abertura, apresenta-se pelos movimentos de câmera, a rua de São Paulo que representa a característica urbana com carros e trem que passam pelo centro da cidade. A câmera-narrador movimenta-se para apresentar os usos e costumes da população.

1.3. 2 SHAKESPEARE NA TELENOVELA BRASILEIRA: O CRAVO E A ROSA

Assim como no teatro shakespeariano, a telenovela brasileira apostou no gênero melodramático, para tratar sobre a história e o cotidiano; ação e humor fazem parte da telenovela. Desde suas primeiras manifestações, a telenovela brasileira marca sua diferença, abordando temas polêmicos e sociais, mas sem deixar de enfatizar os enredos românticos dentro da trama, muitas vezes de forma paralela, ou seja, vários romances amorosos acontecem como subenredos a partir dos protagonistas. Entre as telenovelas produzidas do Brasil, algumas se distinguiram como recriações de dramas shakespearianos. De acordo com Resende (2009), Shakespeare aos poucos vai ocupando lugar na televisão brasileira, referenciado em telenovelas e filmes, ou em cenas inseridas na trama. Entre as produções podemos destacar algumas que foram adaptações feitas pela Rede Globo a partir das peças de Shakespeare. Romeu e Julieta é uma adaptação livre da peça de Shakespeare, feita por Walter George Durst. Dirigida por Paulo Afonso Grisolli, com Fábio Junior e Lucélia Santos nos papeis principais, a história dos amantes de Verona foi transportada para a cidade de Ouro Preto, e sua abertura se faz através da alusão em off, a palavras de Guimarães Rosa: “Minas são muitas, mas Ouro Preto com um pé no século XVIII e outro no ano 2000, com certeza é uma só.”1 Esta adaptação livre foi apresentada em 24 de Dezembro de 1980 no Caso Especial. Caso Especial foi um programa (1971 a 1995) da TV Globo que recriava textos do dramaturgo de forma clara, mantendo sua temática. foi uma telenovela inspirada em Rei Lear, de Shakespeare. Ela foi dirigida por Daniel Filho e Ricardo Waddington, e exibida pela rede Globo no período de 18/01/1999 a 17/09/1999. O enredo traz a drama de um poderoso homem ameaçado por disputas familiares, o qual construiu seu império e, de repente, se viu

1As palavras originais de Guimarães Rosa , em Poemas e contos de Minas,são: “Minas são muitas. Porém, poucos são aqueles que conhecem as mil faces das Gerais.”

ameaçado de perdê-lo devido a conflitos familiares. Waldomiro Cerqueira é um empresário pernambucano que chegou pobre ao Rio de Janeiro e fez fortuna comercializando mármore. É o presidente da Marmoreal, uma empresa que já há 30 anos explora jazidas de minério e o vende para empresários estrangeiros. Orgulhoso tanto de sua origem e trajetória quanto do seu patrimônio, o “Imperador do Mármore”, como é chamado pela imprensa, tenta manter hábitos simples, como rodar pelas ruas do Rio de Janeiro sem se preocupar em ser reconhecido. A alusão ao Rei Lear de Shakespeare se dá através do paralelo entre Lear, que decide dividir o reino entre suas três filhas, e Waldomiro Cerqueira, também pai de três filhas, as quais, ao início da telenovela, interrogam o pai sobre a divisão dos bens da Marmoreal. No ano 2000, finalmente, a Rede Globo decidiu produzir uma telenovela baseada em A megera domada de Shakespeare. Contextualizada nos anos de 1920, palco de diversos movimentos sociais e políticos no Brasil, como o feminismo, O cravo e a rosa, foi escrita por Ivani Ribeiro e dirigida por Walter Avancini, tendo sido exibida pela Rede Globo entre 26 de junho de 2000 e 9 de março de 2001. (RESENDE, 2009). O texto de Walcyr Carrasco e Mário Teixeira foi, por sua vez, baseado nas duas transposições anteriores para a televisão. Teve claras referências ao folhetim A Indomável, telenovela brasileira que foi produzida pela Rede Excelsior e exibida durante março e abril de 1965. O roteiro foi escrito por Ivani Ribeiro, baseado, também, na peça teatral A megera domada de William Shakespeare; a telenovela foi dirigida por Walter Avancini. Como Alves e Viana (2002) percebem, o diálogo intertextual com Shakespeare é evidente:

[...] o papel que justifica o título fica a cargo de sua tia mesquinha, avarenta, invejosa, falsa, intolerante, enfim, a grande vilã da história, Maria Altiva Pedreira de Mendonça e Albuquerque. Em mais um desfiguramento deliberado pelos autores, é Altiva o contraponto brasileiro de Katharina, protagonista da peça inglesa. Como o próprio nome indicia e contrariamente à personagem Shakespeariana, Altiva jamais se deixa domar. Nem pelo marido, nem pelos familiares, tampouco pela sociedade. Essa sua resistência e o diabolismo de sua mente “assoberbadíssima” em maquinar contra todos os seus supostos inimigos, são elementos definidores do final fantástico da trama (ALVES, 2002, p. 64).

Outro folhetim ao qual a telenovela O cravo e a rosa teve referências foi O Machão, produzido e exibido pela Rede Tupi de 05 de Fevereiro de 1974 a 15 de Abril de 1975, às 20h30, em 371 capítulos, escrito por Sérgio Jockymen e Dárcio Ferreira. Conforme informa o registro sobre a telenovela no site brasileiro da Wikipedia

(2015), O Machão foi baseado na telenovela A indomável, cujos quarenta primeiros capítulos foram aproveitados, como se fosse um remake. A partir daí, Jockyman assumiu o texto, imensamente exitoso. O enredo lembra, em muito, o drama de Shakespeare:

O rude e determinado Julião Petrúquio, na iminência de perder suas terras numa dívida, recebeu uma missão aparentemente impossível: domar A megera Catarina, uma moça temperamental que tem aversão por homens e casamento. Feminista convicta na rígida moral da década de 20, a moça faz de tudo para espantar todos os seus pretendentes, que são vários, pois é filha de Batista, um rico fazendeiro do café que pagará uma fortuna a quem desposar sua filha. Por isso a ardilosa Dinorá, sabendo da situação de Petrúquio, sobrinho de seu submisso marido Cornélio, lhe propõe conquistar Catarina em troca do pagamento de suas dívidas. É essa também a maneira que Dinorá encontrou para casar seu irmão mais novo, Heitor, com a caçula dos Batista, Bianca. A jovem moça está apaixonada, mas o pai só permite o namoro entre ela e Heitor depois que Catarina se casar. Mas não será fácil para o machão Petrúquio dobrar a indomável Catarina, mesmo depois que se descobrem apaixonados um pelo outro. (O MACHÃO, 2015).

O cravo e a rosa caracteriza-se como telenovela de época, a qual se caracteriza como uma interpretação histórica ou ficcional de uma determinada sociedade, seus valores, utilizando-se de uma narrativa dramatúrgica de obras literárias que alcançam telespectadores que tem acesso a esses fatos que foram importantes na história do país somente nesse momento. Contudo, o que se mostra quando se produz uma ficção histórica não é a realidade do passado, mas o que ele diz sobre o presente: as telenovelas de época nos oportunizam observar de que forma o passado é representado e implica entender esse passado como um espaço que está ligado ao presente, que é descrito a partir de referências mantidas na memória. Nesse sentido, busca resgatar o sentido de pertencimento, relembrar situações que aconteceram e trazer a memória que se fica perdido através dos tempos. (MUJICA, 2007). As telenovelas de época podem retratar uma obra literária ou apenas um contexto histórico e cultural. Em O cravo e a rosa, podemos observar que retratou a década de 1920 no Brasil Por outro lado, baseou-se em A megera domada, peça de teatro inglesa, escrita por Shakespeare; portanto, constitui-se uma telenovela com releitura de uma obra literária. Na adaptação de O cravo e a rosa poucos nomes foram mudados. Batista, Catarina, Bianca e Petrúquio são nomes próprios da peça de Shakespeare. Contudo a

inclusão de novos subenredos, adaptados ao contexto nacional e ao gosto do público, determinou a inclusão de novos personagens, como, dentre outros: Dinorá, esposa de um nobre chamado Cornélio; Heitor, irmão de Dinorá e pretendente de Bianca; Dalva, uma costureira e mãe de Candoca; Carlixto, criado de Petrúquio que se envolve num romance com Mimosa, empregada de Batista; Joana, amante de Batista, a qual tem dois filhos; Serafim, um jornalista e pretendente de Catarina. Assim como no contexto histórico e social do período elisabetano, caracterizado por movimentos e manifestações da Inglaterra renascentista, período em que Shakespeare manifesta as opiniões e críticas em suas peças teatrais, o período da história do Brasil que serve de pano de fundo para a recriação do drama de Shakespeare é um momento em que movimentos sociais estão a exigir mudanças na sociedade. Nesse sentido, a cena de abertura, com a passeata das feministas, induz o telespectador ao contexto histórico em que, entre nós, as mulheres manifestavam-se na busca por seus direitos, para introduzir o perfil da heroína que seria retratada na telenovela. Julião Petrúquio, que ao início busca a salvação financeira ao se casar com Catarina, é a imagem do patriarcalismo. Até o século XX, o casamento passava a noção de união indissolúvel, na qual a figura masculina, por convenções sociais, era a cabeça da relação. Não necessariamente deveria haver sentimento entre o casal, até porque em alguns casos, como o de Petrúquio e Catarina, a união tinha foco na divisão dos bens. Além disso, Petrúquio é a representação do contraste entre o grosseiro homem do campo e a cortesia da cidade, diferenças que ficam latentes no início do século XX. A industrialização, expressa ainda que timidamente (só vai se tornar atividade principal no Brasil com os governos populistas a partir dos anos 50), afirmou ainda mais essa dicotomia e criou estereótipos para cada um desses espaços geográficos. A economia rural encontrava-se em decadência e a produção industrial crescia e levava consigo homens e mulheres para a cidade. (SOUSA, 2014) Por isso, a importância da telenovela como instrumento de crítica social, especialmente quanto se relaciona com a literatura para retratar as questões sociais. Destas, como já comentado na introdução a este trabalho, escolhemos o casamento como foco analítico orientador desta dissertação. No próximo capítulo, estudaremos o período renascentista inglês e, a partir deste, direcionaremos nossa pesquisa sobre as relações matrimoniais, a constituição da família e o papel atribuído a mulher nesse período. Desse modo, analisaremos estas questões introduzidas na peça A megera domada, a qual é uma representação da sociedade inglesa.

2 O CASAMENTO, FAMÍLIA E SOCIEDADE NA RENASCENÇA INGLESA: A MEGERA DOMADA

Neste capítulo será abordado o casamento e, por derivação, a família, na sociedade inglesa renascentista. O capítulo está divido em duas seções. A primeira trata da família a partir do pensamento patriarcal. A segunda seção aborda os rituais reais e costumes associados com cerimônias de casamento na obra A megera domada. Esta pesquisa bibliográfica será direcionada a partir do olhar crítico realizado pelo teatro shakespeariano sobre a história do casamento como uma instituição e sobre a experiência feminina. O casamento, a submissão da mulher e a família são temas que são apresentados pelo teatro shakespeariano como crítica social e econômica.

2.1. CASAMENTO NA RENASCENÇA: FAMÍLIA E SOCIEDADE

Durante a Renascença inglesa, a Inglaterra foi governada durante meio século por rainhas; contudo, como Susanne Hull (1996) observa, as mulheres não tinham quase nenhum poder legal. O casamento era sua principal vocação, e a sociedade renascentista constituiu a família como a união de bens entre marido e mulher. Nessa época, o olhar para a vida das mulheres resume-se a três configurações: família, religião e acultura de elite. As mulheres desempenhavam vários papéis em suas famílias, em função da sua idade e estado civil. Primeiro, uma mulher era uma filha e, em seguida, uma esposa, mãe, ou viúva. Filhas de classe alta, esposas e viúvas tinham participação na propriedade da família, para o que elas eram consideradas principalmente como uma maneira de agregar ou expandir. Por isso, suas vidas eram estritamente reguladas e controladas. Por outro lado, as mulheres camponesas geralmente tinham mais liberdade. Esposas, filhas e até mesmo viúvas estavam ativamente envolvidas em ajudar a sustentar a família, manter a casa e trabalhar junto com os homens na fazenda ou na loja. Sobre este aspecto Shakespeare apresenta, na peça A megera domada, a submissão de Catarina ao seu esposo Petrúquio. A vida camponesa requer a ajuda da esposa nos trabalhos do campo, além dos trabalhos domésticos.

Segundo Kathryn Martin (2002), na Inglaterra renascentista a relação entre pais e filhos era muito diferente da que conhecemos hoje. Na sociedade moderna, essa relação está em constante mudança, e os pais devem orientar seus filhos à medida que crescem, seja como professor, confidente, amigo, e até mesmo um disciplinador. Na Inglaterra renascentista, a relação pai-filho era baseada no quinto mandamento, que declara: "Honra teu pai e tua mãe", mas o mais importante foi "honra teu pai." A Inglaterra, nesse momento, era uma sociedade patriarcal e as filhas eram, talvez, as maiores vítimas da família patriarcal. Martin (2002) afirma que, durante este tempo, na Inglaterra, o pai era o chefe da família, e sua esposa e filhos estavam a responder a ele. A menina era sempre dependente de uma figura masculina. Tudo era baseado na linha masculina e as meninas eram tratadas como seres inferiores dentro do agregado familiar, e eram essencialmente preparadas para serem boas futuras esposas. Nesta sociedade centrada no homem, as mulheres eram mantidas num estado inferior, e sempre tiveram que responder a seu pai. Um homem tinha o controle completo sobre sua família; e as mulheres eram consideradas sua propriedade para fazer o que quisesse. Seus filhos herdavam terras e títulos, mas suas filhas eram “vendidas” para viver na casa de outro homem quando se casassem. Os meninos eram educados para assumir a herdade em lugar de seus pais; às meninas eram ensinadas habilidades para ajudar a gerenciar as suas próprias famílias e agradar seus maridos. Nesse processo educativo, o mais importante era O artesanato têxtil, em trabalhos tais como fiação, tecelagem e bordado, que eram geralmente ensinadas pelas mulheres mais velhas da família às mais novas. As mulheres também aprendiam a gerir as finanças, para supervisionar servos, e para cuidar de membros da família em dificuldade. Finalmente, as meninas eram instruídas em castidade, obediência e silêncio. Como se vê, as esposas tinham muitas responsabilidades enquanto trabalhadoras e gestoras de uma família. As mulheres camponesas realizavam inúmeros deveres, desde o atendimento às aves, ovelhas e horta; produziam, ainda, cerveja e ajudavam na colheita. As esposas, artesãs, faziam trabalho habilidoso ao lado de seus maridos, ou realizavam os trabalhos durante a ausência deste. Às vezes tornavam-se membros de corporações de ofício desta forma. As corporações (guilds) eram organizações que treinavam aprendizes para um ofício ou profissão, e estabeleciam padrões de qualidade. Esposas de comerciantes prestavam atendimento em lojas, ajudavam a manter contas, ou geriam outros documentos profissionais.

Entre as famílias aristocráticas mais ricas, as mulheres realizavam o trabalho têxtil, e produziam itens de luxo, como bordados de ouro. Seu papel principal era, porém, o funcionamento da casa: realizar as compras, armazenar e repor os suprimentos para a família. Outras atividades da mulher eram entreter os visitantes de seus maridos, supervisionar os servos e prestar auxílio de enfermagem aos doentes, servos ou membros da família. (DEL PRIORI, 2001) Pregadores, humanistas e outros instrutores morais promoviam o ideal de uma estreita relação entre marido e mulher. Pregavam contra o adultério (ter relações sexuais fora do casamento), a bigamia (ter mais de um cônjuge), abandono e abuso. O adultério era constantemente visto como crime, e muito grave, de uma esposa. Em muitos locais, um marido era inocentado por matar sua esposa se ela tivesse sido apanhada em flagrante adultério. Em alguns lugares, esse assassinato não era nem designado como crime. Abuso poderia ser encontrado em toda parte, e entre todas as classes. Bater na esposa era permissível, como era o castigo físico de crianças e servos. Contudo, alguns moralistas pediam moderação e outros deploravam o uso de surras por completo. Os homens podiam, além disso, aprisionar, deixar morrer de fome, e degradar as mulheres e outros membros da família. Embora as mulheres fossem consideradas inferiores aos homens, tinham papeis diferentes em diferentes classes. Esperava-se das mulheres de classe baixa que se tornassem donas de casa e cuidassem de tudo o que se relacionava com a casa. A expectativa quanto a mulheres da classe trabalhadora era um pouco diferente. Esperava- se que trabalhassem para seus maridos e ajudassem a gerir os seus negócios. Elas iam trabalhar juntas a eles e, em seguida, voltavam para casa. Já as mulheres da classe alta poderiam ter servos e trabalhadores que trabalhavam para elas, mas ainda deveriam cuidar de algumas tarefas específicas, como ordenar o que cabia no porão da casa. As mulheres não podiam ter profissões próprias e nem poderiam viver em paz se não fossem casadas. Se uma mulher permanecia solteira, deveria mudar-se para a casa de um de seus parentes masculinos, ou aderir a um convento e se tornar freira. Não havia outra opção naquele momento para as mulheres, e o casamento era a opção para as mulheres que não pretendiam seguir a vida religiosa. De acordo com o pertencimento a diferentes classes sociais, as únicas mulheres que gozavam de direito para se expressar eram as e classe alta, mas não o suficiente. Por outro lado, era muito raro a uma mulher de classe média ser vista ou ser ouvida. Quando se expressava, era influenciada pelos homens. (MAZZOCCO, s. d.).

Em contraste, os papéis do sexo masculino eram geralmente definidos pela posição social ou ocupação: comerciante, cavaleiro, padre, camponês, fabricante barril, tecelão, e assim por diante. No teatro shakespeariano, os jovens eram apresentados com profissões definidas; ter uma ocupação representava uma estabilidade e, por isso, a farsa para demonstrar o fator econômico e sustentável para o casamento torna-se parte deste gênero. Por outro lado, os papéis femininos eram mais bem definidos na sociedade de classe alta do que na sociedade camponesa. Em A megera domada, as mulheres da classe alta apresentavam-se como estudantes, como por exemplo, o fazem as filhas de Batista Minola. No Renascimento, quando o sistema político mudou a partir dos sistemas feudais medievais, as mulheres de todas as classes sociais viram uma mudança em suas opções sociais e políticas: "as relações entre os sexos foram reestruturadas para uma relação de dependência do sexo feminino e dominação masculina" (KELLY,1977). Os homens governaram acima de tudo, até mesmo durante o meio século governado por rainhas. A megera domada, escrita em meados do século XVI, tem como personagem principal Catarina. Ela é a uma mulher que luta por seus direitos, por isso é considerada como indomável, ou em necessidade de ser domada, como sugere o título da peça. Mesmo no Renascimento, a palavra “megera” é muito negativa quando empregada com relação a uma mulher: quando as pessoas olhavam negativamente para as mulheres referiam-se a elas como megeras. (THOMAS, 1995). Essas mulheres eram muito abertas e expressavam aquilo que queriam. A sociedade, porém, fortemente reprovava as mulheres como estas no renascimento. Os homens eram as únicas pessoas com voz “alta” o suficiente para serem francos e expressivos. Catarina é apresentada na peça de Shakespeare como umA megera. Às vezes, suas palavras e ações eram extremamente violentas. Ela representa uma mulher muito abusiva, de sorte que havia um forte sentimento de desaprovação de todos com respeito à Catarina. Ninguém queria receber a tarefa de 'domesticar' a ela, isto é, até que Petrúquio chega e decide que fará a tarefa, a fim de casar-se com sua fortuna. Neste tempo, as mulheres deviam ser vistas e não ouvidas. A mulher ideal deveria ser calma e respeitosa, e aceitar sem recalcitrância ser controlada por um homem. Tal mulher apreciava a atenção recebida dos homens por ser uma mulher delicada. Esta mulher ideal é Bianca, irmã de Catarina.

Shakespeare decidiu ter dois personagens contrastantes para representar a luta das mulheres. Mostra ao leitor os dois perfis diferentes: Catarina, em comparação com Bianca, parece-se como uma louca. Em A megera domada, os homens almejavam casar- se com Bianca por sua beleza e seu dote. Ela é de fala mansa e doce, enquanto Catarina é justamente o oposto: decidida e com muita força de vontade. Em consequência, os homens não querem Catarina, a quem temem, ainda que almejem seu dote. Shakespeare usou os dois tipos diferentes de personagens, a saber, umA megera e uma mulher ideal, as quais, em conjunto, mostram o que representava ser mulher então. Se a mulher não fosse de classe alta, era considerada incapaz de falar o que pensava; mesmo quando partilhava desse privilégio social, os homens ditavam como deveriam proceder ao expressar opiniões. As mulheres deviam ser donas de casa, e esperava-se delas a submissão aos maridos. Como se viu, se uma mulher não se conformava com o seu marido, seria chamada de umA megera. Estamos referindo à situação social no início dos tempos contemporâneos. As coisas mudaram, mas assim era então. Segundo Kirsti S. Thomas (1995), o casamento na Europa era visto como estrutura econômica. Uma mulher não tinha praticamente nenhum papel na escolha de seu marido. Nas classes altas, a maioria dos casamentos era arranjada pelos pais dos noivos e, talvez, em consulta com a mãe dos noivos. Muitas mulheres se casaram com homens que mal conheciam ou nunca conheceram. Na maior parte dos camponeses europeus o casamento se dava antes dos vinte anos. Thomas (1995) define o casamento, segundo o New Shorter Oxford Dictionary, como "União pessoal legalmente reconhecida entre um homem e uma mulher. Com a intenção de viverem juntos e ter relações sexuais, e que impliquem direitos de propriedade e herança" (p. 1209). O Arcebispo de Rheims, Hincmar, (845-882) declarou que o casamento legítimo tinha de cumprir quatro condições e que consistia em três elementos: os parceiros tinham de ser de categoria igual e livre e deviam dar o seu consentimento; a mulher devia ser dada por seu pai e dotada; o casamento devia ser honrado publicamente; a união deveria ser completada pela consumação sexual. Reconhecia-se, assim, tanto a tradição romana, que exige o consentimento, como a tradição germânica que exige consumação. Além disso, Hincmar afirmava que o casamento devia ser celebrado em público, em vez de em segredo. Assim como hoje, o casamento de uma mulher era um dos dias mais importantes de sua vida. A principal diferença entre os costumes de casamento

Elisabetano para um dia de casamento ocidental moderno é que a mulher tinha poucas opções em relação à escolha do marido. As mulheres eram subservientes aos homens. Elas eram dependentes de seus pais para apoiá-las. As mulheres eram criadas para acreditar que eram inferiores aos homens, os quais tinham conhecimento superior da vida. A desobediência era vista como um crime contra a religião. Os casamentos eram frequentemente dispostos de modo que ambas as famílias envolvidas seriam beneficiadas. Eram dispostos para trazer prestígio ou riqueza para a família - um fato surpreendente é que os homens jovens eram tratados de uma forma semelhante às mulheres. Muitos casais se encontram pela primeira vez no dia do casamento. Este costume elisabetano, em particular, era normalmente aplicado à nobreza, mas a vida de casado ou religioso eram as únicas opções reais para o período elisabetano e, independentemente de sua posição social, mulheres e homens deveriam se casar. Segundo Kirsti S. Thomas (1995), os casamentos eram sempre uma cerimônia religiosa, conduzida por um ministro. Nas diferentes religiões, o processo legal antes do casamento era sempre o mesmo. Não havia casamentos em cartórios ou casamentos realizados por um juiz de paz. A primeira etapa era o anúncio sobre a intenção de se casar. O mesmo procedimento aplica-se ainda aos casamentos da Igreja na Inglaterra hoje. A intenção do casal para se casar deveria ser anunciada na igreja três vezes, em três domingos ou dias santos consecutivos. Qualquer casamento não publicado previamente era considerado clandestino e ilegal. Os convites do casamento não eram emitidos, já que as pessoas viviam em pequenas comunidades e sabiam o que estava acontecendo na vida comum. Presentes eram ocasionalmente dados à noiva e ao noivo. Era costume a realização de uma festa de casamento. A festa especial deveria ser cuidadosamente planejada. O cardápio era discutido e arranjado para adquirir o conteúdo dos pratos mais exóticos, como pavão. Pães e doces também seriam preparados. Os alimentos doces e picantes eram extremamente populares e muitos dos pratos eram altamente aromatizados. A bebida típica elisabetana era o vinho, encomendado para a festa de casamento. As culturas da Europa Ocidental durante a Idade Média e do Renascimento reconheciam duas fases distintas no processo de uma união entre o casal: o noivado e o casamento. O noivado era realizado com diferentes níveis de formalidade em diferentes lugares e épocas. Na Inglaterra anglo-saxã, por exemplo, não há nenhuma evidência conhecida de que o noivado era celebrado formalmente. Eles trocaram palavras

prometendo a união das duas famílias e objetos eram passados de mão em mão para simbolizar a transferência de bens (DUBY, p. 45). Na história da Europa ocidental medieval, muitos rituais estão associados mais com o noivado do que com o casamento. Segundo Thomas (1995), os rituais eram mais associados com a celebração do casamento, em vez de o noivado. O casamento decorre diretamente da aprovação da Igreja do direito romano sobre o casamento. O noivado cristão era considerado dissolúvel, enquanto o casamento era indissolúvel. Então, uma vez que o noivado era a cerimônia de ligação, com uma celebração da união física seguindo depois, o foco mudou para uma cerimônia em que o casal afirma o seu consentimento mútuo, a fim de estabelecer um vínculo longo da vida. Um casamento pode refletir a glória dos pais da noiva, ganhá-los aliados políticos e acesso ao poder, ou aumentar a riqueza da família. Se a família de uma mulher não podia pagar um marido de alto status, ela teria que se contentar com um que poderia ser adquirido com um dote menor. Mesmo entre as fileiras mais pobres, era esperado que uma noiva trouxesse alguns bens materiais para o casamento, mesmo se apenas alguns vasos para sua nova casa. De acordo com Thomas (1995), o dote era muito comum na maioria das regiões da Europa. Quando uma mulher da classe alta se casava era esperado que ela trouxesse para a casa de seu novo marido uma porção da riqueza de seu pai. A função do dote era remover uma mulher da linha de sucessão de seu pai, para que ela não tivesse mais o direito sobre a propriedade dos pais. A parte legal de sua herança era para ser tão pequena quanto possível, para minimizar a carga na propriedade do pai. Ao mesmo tempo, o dote tinha que ser grande o suficiente para atrair pretendentes que possuíssem o mais alto status social. Na peça de Shakespeare, Catarina possui um grande dote. No entanto, como precursora futurista, ela considera que o casamento não era obrigatório. O perfil de mulher que ela representa está direcionado para a liberdade da mulher na escolha do futuro marido. Ela vê no casamento uma negociação e não aceita, pelo menos inicialmente, a submissão da mulher ao marido. O dote tecnicamente permaneceu propriedade da mulher para a vida, mas na verdade era gerido pelo marido. No falecimento da mulher, a propriedade passava para seus herdeiros. Em algumas regiões da Europa, uma esposa podia, porém, possuir propriedade em seu próprio nome, além do dote. Às vezes, essa propriedade era concedida a ela por seu pai, que determinou o valor do dote. Mais uma vez, dependendo

do costume local, a mulher era capaz de passar a propriedade aos seus herdeiros quando morresse. As mulheres tiveram muitas vezes o direito de utilizar imóveis, joias e roupas que pertenciam a um parente do sexo masculino, que tinha o direito de recuperá-lo conforme necessário. Entre as classes superiores, no entanto, uma adolescente casava-se com um homem mais velho que já estava com estabilidade econômica ou era pertencente da sociedade aristocrática. Às vezes, uma jovem se casava com um homem que já tinha sido casado. Nessas circunstâncias, é difícil saber se o amor desempenhou um papel no casamento. Na peça A megera domada, podemos perceber claramente esta circunstância econômica. No entanto, percebemos que o casamento entre os protagonistas da peça envolve uma questão financeira, mas por interesse do noivo. Muitas esposas e maridos de classe alta levavam vidas separadas devido à disparidade de idade entre eles, a falta de conhecimento prévio ao casamento, e as diferentes ocupações diárias. Por exemplo, o marido podia estar envolvido em seu trabalho ou em atividades políticas, enquanto a vida da esposa estava voltada para a casa. Companheirismo parecia ser mais possível em casamentos entre as classes mais baixas. Muitas vezes, os cônjuges estavam envolvidos no mesmo tipo de ocupação, ambos eram artesãos qualificados, ou eles operavam em uma taberna ou em uma loja juntos. Uma vez que o casamento era visto quase como uma transação comercial entre duas famílias, os interesses das mesmas prevaleciam sobre os interesses pessoais dos envolvidos diretos. Casados, os jovens deviam produzir um herdeiro e dar, portanto, continuidade à linhagem familiar. Caso esse objetivo não fosse atingido, a esposa se tornava indesejável e o divórcio ocorria. Entretanto, a partir de 1090, com Yves de Chartres, começou a surgir um modelo matrimonial diferente, definido pelo consentimento dos envolvidos. Somente a partir do século XII, quando a Igreja estendeu sua jurisdição aos assuntos matrimoniais e tornou o casamento um sacramento, o consentimento dos noivos foi levado em conta, situação que perdura até hoje. Como R. Howard Bloch (1995) apontou, a teologia possuía duas visões sobre o consentimento. Para Pedro Lombardo, bastava o consentimento das partes para a união ser considerada válida; para Graciano, além do consentimento, a consumação do casamento era essencial para torná-lo válido. A ideia de que as mulheres podiam aceitar propostas de casamento sem o consentimento dos pais, porém, não correspondia à realidade da prática social.

Como exposto na caracterização do teatro romântico shakespeariano, sua principal característica não era a presença do humor, mas, sim, a harmonia final, assinalada pelo casamento. Shakespeare, por meio da comédia, representou o perfil e visão da sociedade inglesa sobre essa instituição, utilizando elementos cômicos dos pares românticos para refletir sobre as questões econômicas envolvidas no casamento.

2.2. CASAMENTO, FAMÍLIA E SOCIEDADE EM A MEGERA DOMADA

Pretendemos analisar a seguir o casamento e as relações sociais que se constrói em torno dele na sociedade inglesa renascentista, como representados na peça A megera domada. Entendemos que, dentre os temas relacionados ao período renascentista inglês, a peça possibilita uma reflexão sobre o casamento no contexto de uma sociedade patriarcal e, nesta, a ordem para o casamento das filhas, a relação entre pais e filhos e o papel atribuído à mulher. Escolhemos a tradução de Millôr Fernandes por ser recente e por considerarmos que o tradutor, humorista, teatrólogo e jornalista interpreta com muita propriedade o texto shakespeariano. Para esta análise, selecionamos alguns recortes, , os quais queremos analisar por serem trechos da peça que se mostraram especialmente relacionados aos objetivos desta pesquisa. O primeiro destes recortes refere-se ao sistema patriarcal, evidenciado, ao início da peça, no modo como se processa a escolha e aprovação, por parte de Batista Minola, dos pretendentes para o casamento de suas filhas. No primeiro ato, e na primeira cena, a peça apresenta Lucêncio e Trânio, recém chegados em Pádua. Sua vinda a essa cidade é resultado da busca pela educação, já que a cidade era reconhecida intelectualmente, e estava em desenvolvimento econômico e artístico. A chegada de jovens na cidade sugere o desenvolvimento de Pádua e Shakespeare enfatiza na peça esta representatividade enquanto os jovens buscam acomodação para estarem ali em busca do desenvolvimento intelectual. Após conversarem sobre a nova cidade e trocarem conselhos sobre a permanência em Pádua, Lucêncio e Trânio assistem à chegada de Batista com as duas filhas, Catarina e Bianca. São acompanhados, ainda, por Grêmio, um pantalão, e Hortênsio, ambos pretendentes a Bianca. Esta é a cena inicial da peça principal, já que, como explicado em capítulo anterior, a peça inicia com a Indução, na qual, a partir da

brincadeira feita com o bêbado Sly, vários temas da peça, como o embaralhamento entre aparência e realidade e a crítica às classes sociais, são introduzidos. Nessa cena inicial de A megera domada propriamente dita - a peça dentro da peça que é encenada para Sly -, mesmo não havendo uma contextualização anterior sobre o diálogo entabulado entre Batista e os pretendentes, subentende-se que Batista e as filhas, juntamente com Grêmio e Hortênsio, estavam conversando sobre o casamento de Catarina e Bianca. É neste momento do diálogo que Lucêncio e Trânio percebem que, em Pádua, o casamento é tratado pelos pais e pretendentes. Por isto consideramos esta análise especialmente sobre o sistema patriarcal, no que diz respeito ao relacionamento pai e filhas. No entanto, direcionaremos esta análise, também, sobre os posicionamentos de Catarina em relação ao sistema patriarcal. Vejamos:

Recorte 01: Ato I, Cena 1:

[...] LUCÊNCIO: Agradecido, Trânio, aconselhas bem. Ah, se Biondello já tivesse chegado poderíamos estar prontos sem demora. Arranjar uma casa onde ficarmos, local digno de receber os amigos que a permanência em Pádua há de trazer-nos. Mas, espera um pouco; quem será essa gente? TRÂNIO: Na certa uma delegação para nos receber. (Entra Batista com as duas filhas, Catarina e Bianca; Grêmio, um pantalão. E Hortênsio, pretendente a Bianca. Lucêncio e Trânio põem-se de lado.) BATISTA: Cavalheiros, não me aborreçam mais, pois sabem como é firme o meu propósito; isto é, não ceder minha filha mais jovem enquanto a mais velha não tiver marido. Se um dos dois gosta de Catarina, porque eu os conheço e os estimo, concedo a permissão de cortejá-la. GRÊMIO: Ou esquartejá-la? É grosseira demais para meu gosto; não é você, Hortênsio, quem procura esposa? CATARINA: (A Batista.) Eu pergunto, senhor, é seu intuito transformar-me em brinquedo desses pretendentes? (SHAKESPEARE, 2008, p. 23-24)

Das quatro personagens femininas presentes em A megera domada (a Taberneira, presente no Prólogo, as irmãs Catarina e e a viúva) estão presentes nesta cena as duas principais. É em torno dessas irmãs que se concentram a maioria dos estudos sobre a peça, uma vez que são as protagonistas dos dois enredos principais e as personagens-chave da representação da mulher nesta peça. Elas possuem um número maior de falas e as outras personagens da peça expressam suas opiniões sobre elas. De acordo com Mendes (2011), o texto de Shakespeare gira em torno de Catarina: ela é a personagem principal e influencia tanto o seu enredo quanto o da irmã.

Catarina é um problema para a relação amorosa de Bianca, que somente poderia se casar após a irmã. No entanto, para Petrúquio, Catarina é a solução para a situação financeira, e desse modo, a trama favorece o casamento, o principal tema da peça. Neste contexto, Catarina é apresentada como megera. Sua inconformidade com relação ao tratamento dado as mulheres, ao modo como é tratada pelo pai e especialmente à forma como se dá o casamento revelam-na se tornar uma mulher de firme postura. O propósito inicial de Batista é o casamento bem sucedido financeiramente, e isto para Catarina é inaceitável por não oportunizar sua tomada de decisão sobre o casamento. Este conflito leva Batista a pensar em um casamento forçado e seu propósito, apesar da revolta de Catarina, é tão somente casá-la. Nessa cena inicial de A megera domada propriamente dita - a peça dentro da peça que é encenada para Sly -, mesmo não havendo uma contextualização anterior sobre o diálogo entabulado entre Batista e os pretendentes, subentende-se que Batista e as filhas, juntamente com Grêmio e Hortênsio, estavam conversando sobre o casamento de Catarina e Bianca. Percebe-se, através da fala de Batista, a sua insistência em casar a filha mais velha, Catarina. Mesmo que ao leitor, ou espectador, não seja dado ler ou escutar o trecho anterior da conversação encenada na peça, percebemos que a fala de Batista é a continuação de um diálogo. Este pretende apresentar a cultura e até mesmo o costume sobre as regras do casamento. Para Lucêncio e Trânio, este foi o primeiro contato com os habitantes de Pádua, exatamente no clímax da conversa entre Batista, as filhas, Grêmio e Hortênsio. Na cena que introduz a visão desse cortejo, Lucêncio lamenta o atraso de Biondello, outro de seus servos, o qual, se já houvesse chegado, poderia ter-lhes preparado um lugar em que pudessem morar e receber os amigos. O local da cena é a praça pública de Pádua, ambiente capaz de impressionar viajantes, e a primeira impressão apresentada aos novos moradores que acabam de chegar à cidade é uma donzela sendo influenciada pelo pai a casar-se, a fim de que a filha mais nova possa também casar-se. Lucêncio e Trânio observam a cena à distância, e conversam sobre as moças, filhas de Batista. Segundo Mendes:

[...] até mesmo quem acaba de chegar a Pádua logo adquire uma opinião negativa sobre a protagonista. Ao presenciar a cena entre ela, Bianca, Batista, GrêmioHortênsio; Trânio, o criado particular de Lucêncio, diz que Catarina é completamente louca, crosta e perspicaz. Em suas quatro falas na Cena 1 Catarina nos revela ser alguém que se sente injustiçada: todos

preferem Bianca, mesmo ela sendo uma pessoa falsa. Isso vai de encontro à descrição de Trânio que declara sua opinião com base na ideologia da época – uma mulher deveria ser silenciosa, quieta, de maneira alguma poderia expressar suas opiniões livremente. As personagens Trânio e Lucêncio têm a função do coro, isto é, suas falas instruem o espectador quanto à maneira como devem ser lidas as personagens. (MENDES,2011)

Trânio e Lucêncio passam a conversar sobre os perfis das moças. Enquanto comentavam sobre as características assombrosas de Catarina, falam também sobre o comportamento gentil de Bianca, vendo-a como uma donzela cheia de recato, cuja aparência lhe agradara a vista. Shakespeare, em toda a peça, deixa claro o contraste entre as irmãs. Embora ambas sejam representadas como belas, cada personagem que conhece as filhas de Batista percebe as diferenças psicológicas entre as jovens. Batista mantém firme o seu propósito: não ceder a filha mais nova enquanto a mais velha não tiver marido. Ao afirmar isto, podemos perceber a autonomia de Batista em relação às filhas. E, através desta representação, é possível perceber que em Pádua, nos tempos de Shakespeare, o casamento é tratado pelos pais, configurando-se assim, como uma sociedade patriarcal. Ansioso por casar a filha mais velha, Batista oferece-a aos pretendentes que, sabe, disputam a mão de sua outra filha, a mais jovem e suave Bianca. Postada ao lado do pai, Catarina ouve Grêmio pronunciar palavras pouco corteses sobre ela– antes que desposá-la, preferiria esquartejá-la, já que, como declara, ela é “muito grosseira”. O personagem oferece à moça ao outro pretendente. O fato de que seja oferecida como mercadoria pelo pai e em seguida por Grêmio já é rude, e de molde a ferir os sentimentos de Catarina. Contudo, a ofensa ainda é maior por vir de um “pantalão”. O pantalão era uma figura da tradição cômica da commedia dell´arte, e constituía-se em figuras risíveis, velhos que eram punidos e feitos objeto de chacota por, inapropriadamente, procurarem casar-se com jovens como Bianca. Tipicamente, os pantalões vestiam calcas grandes e folgadas – daí o nome atribuído a tais tipos. (COMMEDIA DEL ARTE, s. d.). Assim, o fato de que é uma figura risível como Grêmio que continua a oferecê- la como objeto de consumo – de namoro e casamento, no caso – a outro pretendente é especialmente agressiva. É por essa razão que Catarina discorda da atitude do pai em relação aos pretendentes que lhe são apresentados e passa a interrogá-lo. No contexto histórico da peça, e contrastando com a habitual relação patriarcal entre pais e filhas,

Catarina é representada como uma donzela que luta e discorda dos padrões sociais da época. Por este motivo, discute com seu pai e defende seus ideais. Bárbara Heliodora (1998) comenta que a revolta e a violência de Catarina são produto da disparidade do tratamento que recebem de Batista, seu pai, as duas irmãs, sendo a caçula, que o sabe adular, clamorosa do velho. Para a autora, Catarina deveria ser tratada como a primogênita da casa, o que não acontece na casa dos Minola. As decisões de Batista em reunir pretendentes para a filha demonstram o tratamento dado à Catarina, e isto causa revolta, a qual é possível ver na fala de Catarina. Maya Tzur (2013) considera que a atitude de Catarina é apenas uma consequência de sua tensão com relação ao tratamento dado a Bianca. Catarina poderia ser uma percursora dos direitos das mulheres para o seu tempo, como ela subverte a autoridade abusiva, tendencioso de seu pai. Ela quer escolher com quem se casar, em vez de ser obrigada a casar-se com um homem escolhido por seu pai, a fim de abrir espaço para o grande casamento de sua irmã. Na verdade, ela é espirituosa e agressiva com os homens que a caluniavam, mas só queria mostrar que ela não deveria ser tratada como lixo. Conforme Tzur, a filosofia de Catarina era combater o preconceito contra a mulher. Na fala de Batista, evidencia-se o interesse em casar as filhas. Sua intenção primeira é encontrar um pretendente para Catarina. Percebemos isto quando ele concede a Grêmio e Hortênsio a permissão para cortejar a filha, mesmo sem saber se algum deles aceitaria. No entanto, como já comentado, percebemos que Grêmio e Hortênsio não estão interessados em cortejar Catarina, porque esta se apresenta como umA megera, grosseira, alguém que discute com seus pretendentes. Esta situação em que o casamento é retratado convida a pensar sobre o papel do casamento, e como este ilustra as relações entre Batista e as filhas. Para Batista, o casamento é um símbolo de honra, e, para o prestigio da família, ele pretende casar as filhas, mas mantém a ordem social de casar a mais velha antes que a mais nova seja dada em casamento. O segundo recorte selecionado continua a enfocar as relações entre pais e filhas; a cena reforça a postura patriarcal de Batista, a qual influi diretamente nos planos matrimoniais das filhas. Perante os questionamentos de Catarina sugere um conflito familiar, neste caso entre pai e filha; fica visível, também, conflito de relacionamento entre as irmãs Catarina e Bianca.

Recorte 02: Ato I, Cena 1:

[...] BATISTA: Cavalheiros, para mostrar que pretendo cumprir bem depressa... Bianca, para dentro. E não fique aborrecida com a minha decisão, pois continuo a te amar mais do que nunca, minha filha. CATARINA: Que linda bonequinha! E tão mimada! É só enfiar-lhe um dedo no olho e deixará de ser tão delicada. BIANCA: Alegre-se, irmã, com minha tristeza. Senhor, para lhe agradar me curvo humildemente. Meus livros e instrumentos serão minha companhia: neles aprenderei e tocarei, sozinha. [...] BATISTA: Conformem-se, senhores: estou resolvido — entra, Bianca! (Sai Bianca.) E, como eu sei que seus maiores prazeres são a música e a poesia, contratarei professores capazes, para instruir sua juventude. Se tu, Hortênsio — ou o Signior Grêmio — conhecem alguns em condições, mandem-nos aqui. Sou sempre amigo dos homens de cultura e nada poupo para que minhas filhas recebam boa educação. E com isso, adeus. Você pode ficar, Catarina. Tenho que conversar com tua irmã. (Sai) CATARINA: Ué, e por que não vou embora também eu? Por quê? Como se alguém pudesse me dizer o que devo fazer. Como se eu não soubesse o que devo pegar e o que devo largar. Ora! (Sai) (SHAKESPEARE, 2008, p. 25-26)

Neste recorte da peça, é possível identificar a relação entre Batista e Bianca, nas duas primeiras falas de Batista; a relação entre Catarina e Bianca nas falas de ambas; e nas últimas duas falas, a relação entre Batista e Catarina. Também fica claro, mais uma vez, o desgosto de Catarina por estar sendo tratada por seu pai como um objeto, um ser totalmente desprovido de vontade e afetos. Inicialmente, Batista deixa claro que está decidido em relação ao assunto do casamento. Para muitos o casamento é tratado, pelos envolvidos, com dignidade, diálogo, acertos e com muitos planejamentos; no entanto, Batista trata este assunto como um acordo breve e apenas burocrático. Demonstra autoridade sobre as filhas, mas apenas Bianca, a mais nova, parece ser submissa ao pai. Batista mantém autoridade sobre Bianca e parece estimá-la e tratá- la carinhosamente, mais do que a Catarina. Nesta relação é possível perceber a submissão de Bianca ao seu pai. Esta submissão demonstra o perfil ideal da mulher, segundo a sociedade patriarcal, no momento histórico da peça. Além disso, a jovem é retratada como formosa e delicada: tem, portanto, um perfil altamente desejável por seus pretendentes, tendo em mente que à submissão feminina, ideal para um casamento bem sucedido à época, a jovem une gentileza e beleza. Bianca, a filha mais nova e a

preferida de Batista, como já apontado, ao contrário de sua irmã mais velha, Bianca é descrita como uma criatura adorável. Segundo Maya Tzur (2013), é possível perceber que Bianca destaca-se diante de sua irmã visando ser o objeto de afeto de todos. Ironicamente, no decorrer da peça, Bianca recebe todos os elogios para o seu "bom comportamento", enquanto Catarina é ridicularizada e humilhada, como umA megera. Porém, ao final da peça essa caracterização é questionada, já que Bianca, e não Catarina recusa-se a cumprir uma ordem do esposo. Essa reversão alinha-se a uma das caraterísticas da comedia, a das identidades equivocadas, mas contribui, também, para questionar não só o conceito de megera como a questão da submissão feminina, como se verá ao longo da análise presente neste capítulo. A megera, segundo Cegala, (2005) pela definição da era elisabetana, poderia simplesmente ser uma mulher de mau gênio, mulher perversa ou má. De acordo com essa definição, uma mulher era considerada umA megera se não seguisse os padrões sociais impostos pela sociedade centrada no homem, mas hoje, o termo megera é substituído pela expressão feminista. Já na telenovela, o termo usado por Carrasco para referir-se a Catarina é fera que, segundo Cegala (2005), significa uma pessoa irascível, pessoa que se distingue numa atividade muito competente, pessoa feroz, extremamente enraivecida, descontrolada. Nestes termos a fera representa a mulher feminista no século XXI é lutar pelos interesses das mulheres e pela igualdade de direitos entre os gêneros. A diferença dos conceitos representa uma mudança sobre o status da mulher em cada uma das sociedades enfocadas. Lucêncio compara Bianca à Minerva, deusa da sabedoria. Mendes (2011) ainda destaca que Lucêncio usa o verbo “ver”, uma indicação de que o que está diante de seus olhos naquele momento pode não corresponder à realidade, o que acontece no final da peça. Podemos apontar a primeira questão sobre Bianca: a diferença entre sua aparência e sua essência. Catarina é a única que conhece a irmã e suas artimanhas para enganar todos e ser considerada bela e doce. Ela revela a personalidade de sua irmã ao dizer que ao colocar um dedo no olho deixaria de ser tão mimada. Isso revela o conhecimento que Catarina tem de sua irmã, o que vai além da beleza. Já as características de Catarina parecem ser indesejáveis aos pretendentes, que almejavam casar e manter um relacionamento harmônico. Conquanto ela seja apresentada com uma donzela bonita e rica, seu caráter não submisso, e sua disposição

para defender seus posicionamentos fazem com que seja considerada uma moça arrogante para um casamento harmonioso. Tais opiniões não deixam de afetar Catarina, que, no íntimo, sente-se humilhada por não ter pretendentes, enquanto a irmã possui mais de um. Ademais, percebe a predileção do pai pela filha mais moça; vê que Bianca é mimada por Batista. Catarina e Bianca não possuem uma boa relação, justamente porque Bianca é submissa ao seu pai, enquanto que Catarina discorda das decisões de Batista em relação ao casamento das filhas. Isso fica evidente, na cena, quando Bianca chama ao pai de senhor e afirma que, como de sempre, para agradá-lo curva-se às suas ordens. A relação entre Batista e Catarina é o resultado do conflito de opiniões. Bianca tenta fazer a irmã compreender que também ela sofre com as decisões do pai, e pede-lhe que, se lhe serve de consolo, apiede-se com sua tristeza. Batista procura manter a ordem sobre as decisões do lar, da família e inclusive sobre o casamento das filhas. Catarina não aceita receber ordens, e não permite que outros lhe orientem na tomada de decisões. Por este motivo, ela é vista na peça como umA megera. No entanto, Shakespeare pretende apontar as características de Catarina como uma representação dos direitos de igualdade de gênero, como uma mulher que assume um posicionamento contra as normas estáveis do período elisabetano. Catarina não apenas discorda, mas manifesta-se contra o pai e contra os demais homens que lhe tratam como objeto. Por outro lado, Shakespeare representa Bianca como submissa, suave e prestativa aos desejos da sociedade patriarcal. A construção deste contraste pretende demonstrar o perfil almejado na mulher da sociedade renascentista. Catariana representa o desejo por igualdade de gêneros, enquanto Bianca representa a submissão da mulher. Percebe-se neste contraste que o autor pretende apresentar as manifestações e os direitos das mulheres, no entanto, ainda mantém a crítica sobre o comportamento feminino. Durante o início do Ato I, cena 1, Catarina não age como umA megera e não há nenhuma razão para duvidar de seu comportamento; ela ainda educadamente se dirige ao pai e aos pretendentes como "senhor". Só quando as pessoas começaram a murmurar sobre sua insolência que a aparência dA megera começa a se manifestar. No entanto, pode ser interpretado como a frustração que seu comportamento está sendo estritamente ditada nas declarações pejorativas, quando ela realmente não está sendo compreendida corretamente. Tzur (2013) questiona: Será que a peça se tornaria uma interpretação mais cômica e plausível se o título representa Bianca como A megera? Pelo que sabemos

sobre ela, Bianca tem o cuidado para apaziguar seu pai, seus pretendentes, e, o mais importante a si mesma. Todos à sua volta colocam-na como superior à sua irmã mais velha, que percebe a situação a sua volta, mas é ingênua, através do disfarce. Na realidade, acredito que Bianca é umA megera. Ela é uma menina mimada que gosta de manipular aqueles que ofertam dotes sobre ela, a fim de subestimar-se e prender o melhor, e mais rico possível marido. Como Catarina afirma no encerramento de seu monólogo (V, ii, 169), fortuna e um bom marido favorecem a esposa obediente, que “são obrigadas a servir, amar e obedecer ao seu marido " (SHAKESPEARE, 2008, p. 128). Bianca deve estar de acordo com a imagem ideal de uma mulher; ela disfarça-se de meiga e ingênua e continua a persuadir até conseguir o que ela mais precisa. "Ela tem, numa primeira concepção, todas as características de uma jovem modéstia, mas a ao conhecê-la, é possível ver nela todas as características que se iguala a personalidade de marcas internas de seu pai”. (TZUR, 2013, p. 17). Ao seguirmos a perspectiva de Tzur, até o final do ato V, quando Bianca finalmente está casada com o rico, belo marido que ela desejava, ela não tem que mostrar-se falsa para atrair os pretendentes. Devido ao fato de que sua personalidade é, na verdade, uma regressão da submissa à megera, apesar de seu perfeito casamento, pode-se dizer que Bianca nunca mais foi a moça submissa, como todos a consideravam, um fato que volto a discutir no decorrer desta análise. No final da peça, na cena em que uma aposta entre os maridos para demonstrarem a submissão das mulheres, Bianca não se submete a obedecer ao marido e considera a aposta de Petrúquio tola. Ainda no Ato 1, momento em que se apresentam os personagens e o motivo desencadeador da ação dramática – no caso, os obstáculos colocados por Batista para a obtenção da mão de suas filhas –encontram-se outros momentos em que o casamento está sendo tratado como resolução dos problemas econômicos, ou seja, o dinheiro está em questão. Os pares conjugais se formam a partir dos interesses econômicos dos pretendentes ou de seus pais. Embora ainda não patente nas cenas do Ato I, Batista virá a negociar o casamento de Bianca com ênfase no dote a receber; em um primeiro momento da peça, contudo, a mercantilização do casamento se faz visível a partir da atitude de alguém que se dispõe a casar com quem quer que seja, desde que rica. Desviando o olhar de Bianca, Catarina e Batista, a segunda cena do Ato 1 introduz a figura de Petrúquio. No momento da cena escolhida como o Recorte 03, citada abaixo, Petrúquio está juntamente com seu criado Grúmio em frente à casa de Hortênsio, com quem fala sobre sua vinda a Pádua. O propósito da viagem é a busca de

fortuna através do casamento, tendo em vista que Petrúquio encontrava-se à beira da falência, devido à morte de seu pai. Encontrar um casamento em Pádua, onde não era conhecido, seria uma grande solução, considerando a rapidez dos contratos de casamento. Petrúquio poderia, de fato, conseguir casamento mais rico em Pádua do que em Verona, sua terra natal. A amizade entre Petrúquio e Hortênsio oportuniza uma conversa franca sobre o casamento por interesse e é nesta conversa inicial que falam sobre Catarina, a jovem rica. Petrúquio não demonstra interesse de conhecê-la por suas qualidades, mas claramente afirma suas intenções em ser feliz com um casamento rico. Sendo assim, a trama explora a dimensão social do amor no enfoque do casamento como instituição econômica. É exatamente essa instituição que é alvo de análise no recorte 3, o qual enfoca o diálogo entre Hortênsio e Petrúquio, no qual este último relata sua intenção de alcançar prosperidade através do casamento:

Recorte 03: Ato I, cena 2.

Hortênsio: [...] E agora me diga, bom, amigo, que bons ventos o sopraram da velha Verona até aqui, em Pádua? Petrúquio: O vento que espalha os jovens pelo mundo em busca de fortuna fora da própria terra, onde não há mais o que aprender. Em resumo, velho Hortênsio, eis o que há comigo: Antônio, meu pai, acaba de morrer. Atirei- me, então ao caos, decidido a casar do melhor modo e prosperar o mais possível. Tenho dinheiro na bolsa e bens na pátria. Resolvi viajar e ver o mundo. Hortênsio: Então, Petrúquio, devo eu, sem rodeios, aconselhar-te uma mulher grosseira e detestável? Sei que não parece um conselho aconselhável; garanto porém que ela é rica, e muito rica: mas qual, és muito amigo meu para que eu queira apresentar-te a ela. Petrúquio: Signor Hortêncio, entre amigos, como nós, poucas palavras bastam. Assim, se conhece uma mulher bastante rica para ser esposa de Petrúquio, como essa mulher pode ser tão feia como a amada de Florêncio, tão velha ou mais velha como a Sibila, tão abominável e feroz quanto Xantipa, companheira de Sócrates, que não me movera do meu intento e nem removerá minha afeição, mesmo que tão perigosa quanto o Adriático. Vim arranjar em Pádua um casamento rico: se o casamento é rico, estou feliz em Pádua. (SHAKESPEARE, 2008, 34-35.)

Neste recorte, percebemos um deslocamento de lugar. Petrúquio deixa Verona e vai a Pádua rever amigos, especialmente seu amigo Hortênsio. A visita ao seu amigo em Pádua possui outros interesses que estão claros nos diálogos entre eles. Este deslocamento de Verona à Pádua sugere uma motivação baseada na diferença das condições econômicas entre as duas cidades. O interesse de Petrúquio, demonstrado na

peça, pode indicar que Pádua possui mais riquezas, o que facilitaria a tarefa de encontrar ali moças ricas para casar. Ainda através da fala de Petrúquio, ao responder sobre sua vinda à Pádua, percebemos que o interesse principal dele é a busca de fortuna fora da própria terra (Verona), através do casamento. A cidade de Verona foi o local ideal para que Petrúquio resolvesse a sua situação econômica. Petrúquio perdera o pai e estava com sua fazenda beirando à falência e, por esse motivo, estava decidido a casar-se do melhor modo possível, para prosperar o mais possível. Petrúquio revelou isto ao amigo Hortênsio, considerado o mais fiel de todos. Nesta relação amigável, o diálogo flui e eles passam a tratar o casamento apenas como uma negociação: “a riqueza deve ser a chave de ouro do meu soneto matrimonial”, Petrúquio confessa a Hortênsio. As palavras usadas por Petrúquio demonstram que o interesse pelo casamento era apenas financeiro. Em seu vocabulário ele usa o termo Xantipa. Segundo Brisolara (2014), etimologicamente o nome Xantipa significa cavalo loiro. Porém, como usada na peça de Shakespeare, a referência parece ser a Xantipa, a irascível mulher de Sócrates; Xenófanes, no Symposium refere-se a ela como "a pessoa mais difícil de se relacionar de todas as mulheres que existem". Ainda, conforme afirma Diógenes Laércio (2014), Sócrates dizia que vivia com uma mulher desse feitio da mesma forma que os cavaleiros gostam de cavalos fogosos e "do mesmo jeito que, quando conseguem domá-los, podem facilmente dominar o resto, também eu, na companhia de Xantipa, hei de aprender a adaptar-me ao resto da humanidade." (LAERCIO, apud BRISOLARA, 2014) Neste diálogo, Shakespeare enfatiza a causa do casamento como instituição financeira, aproveitando da conversa entre os personagens para representar como o casamento e a mulher eram tratados. Hortênsio aconselha para Petrúquio uma mulher com características detestáveis e grosseiras, diferentes das demais, porém rica. Tão detestável a moça parece a Hortênsio, que este salienta que tomar a moça como esposa possa não parecer um conselho para um amigo; sustenta a Petrúquio, porém, que a moça é rica. Catarina não é apenas caracterizada por Hortênsio como umA megera, mas vista por toda a sociedade como tal, como descrita na peça. A postura adotada por ela para tratar sobre questões sociais como o casamento e o papel da mulher eram considerados inconvenientes para uma mulher de sua época, já que o casamento era tratado pelos pais das moças e pretendentes. No entanto, como Catarina participa da tomada de decisões, contrariando as intenções de seu pai e até mesmo envolvia-se em

discussões com seus pretendentes, ela era considerada como uma fera. Shakespeare caracteriza Catarina, com exagero em sua personalidade para demonstrar que a sociedade ignora as relações sociais e o amor quando beneficiada pelo dinheiro. Percebemos que Shakespeare pretende demonstrar, também, que em sua época, havia mulheres que lutavam pelos direitos entre os gêneros e liberdade de pensamento. Continuando na análise da mercantilização do casamento, passamos a uma seleção que é continuação da anterior, razão pela qual consideramos como uma subdivisão do recorte 3B. Enquanto Petrúquio e Hortênsio conversam sobre a moça rica de Pádua, Grúmio, criado de Petrúquio, que os observa, participa da conversa:

Recorte 04: Ato I cena 2

Grúmio: Veja, senhor, que ele lhe diz francamente o que tem na cabeça: dê- lhe ouro bastante que ele se casa com um espantalho, uma réstia de cebola ou uma velha de um dente só, mesmo que tenha as cinquenta e duas doenças do cavalo. Nada disso lhe importa, se vier com dinheiro. Hortênsio: [...] Posso ajudar-te a conseguir uma mulher bastante rica, jovem e bem bonita. Educada como convém a uma dama. Seu único defeito - e é defeito demais – é ser brusca, teimosa e violenta. Isso a tal ponto que, fosse minha situação ainda pior, não me casaria com ela nem por uma mina de ouro. Petrúquio: Já chega, Hortênsio! Tu não conheces o poder do ouro. Diz-me o nome do pai, isto me basta. Eu a dominarei, inda que berre mais alto que o trovão ribombando pelos céus de outono. Hortênsio: Seu pai é Batista Minola, cavalheiro gentil e educado. Ela se chama Catarina Minola, famosa, em Pádua, por sua língua viperina. Petrúquio: Eu conheço o pai dela, embora não a conheça. Ele se dava bem com meu defunto pai. Não dormirei, Hortênsio, antes de vê-la. Assim, perdoa-me a ousadia de abandonar-te aqui neste primeiro encontro. A menos que me acompanhes até lá. Grúmio: Eu lhe peço, senhor, deixe-o partir quando quiser. Palavra de honra que, se ela o conhecesse como eu, saberia que com ele de nada valem insultos. Pode chamá-lo de canalha vinte vezes que pouco se lhe dá; quando ele começa não pára antes do fim. E garanto, senhor, que se ela resistir um só momento ele lhe marcará o rosto de tal modo que ficará mais cega do que um gato cego. Ah, o senhor não o conhece. (SHAKESPEARE, 2008, p. 36-37)

Ao perceber o interesse econômico de Petrúquio no casamento, Grúmio, criado de Petrúquio, participa do diálogo, confirmando as intenções de seu amo. Através deste diálogo podemos perceber que, para Petrúquio, o casamento era apenas por interesse econômico, enquanto na maioria dos casamentos o interesse inicial partia de uma relação afetuosa entre os pares apaixonados. De acordo com Grúmio, a condição física e

sentimental da moça desejada não influenciava na decisão do pretendente, desde que a jovem lhe somasse uma grande quantia em dinheiro. Em sua linguagem, Grúmio utiliza um vocabulário que remete a elementos do campo, tais como: espantalho, uma réstia cebola, cavalo. O uso destes adjetivos aponta a frieza de Petrúquio a respeito do casamento. Ao mesmo tempo em que Shakespeare reproduz na peça o encontro entre o campo e a cidade, especialmente a agricultura, produtos agrícolas e animais, os quais são símbolos da produção alimentícia, ainda, através de Grúmio, há a alusão à riqueza encontrada na cidade, através da palavra “ouro”, com a qual refere-se ao dinheiro ou à fortuna. O contraste entre a descrição da moça e de seu pai representa uma desordem familiar, segundo a sociedade patriarcal do período elisabetano. Batista Minola é apresentado como cavalheiro gentil e educado. Tem o perfil ideal do homem da época, com autoridade familiar, porém com serenidade de espírito. Já Catarina Minola é conhecida e famosa, em Pádua, por sua língua viperina; suas atitudes parecem não proceder da educação dada por seu pai. No entanto, entendemos que as atitudes de Catarina são, de um lado, consideradas incoerentes pelos homens e, por outro lado, vistas como uma manifestação de seus direitos, pelas mulheres. Batista também considerava a condição social dos pretendentes de suas filhas, no entanto, devido à situação em que Catarina se apresentava, ele estava determinado a casá-la sem dar muita importância para as questões econômicas. Batista almejava manter sua postura social de ter suas filhas casadas, de acordo com os costumes de sua época. Nesse contexto, Grêmio garante a Hortênsio que Catarina aceitará conhecer Petrúquio. Um dos aspectos relacionados à mercantilização do casamento, se bem que herdeiro de uma tradição secular é o dote. Este é um costume antigo, ainda em vigor em algumas regiões do mundo, nas quais ocorre a transferência da propriedade parental por ocasião do casamento de uma filha. Na ocasião, uma quantia de bens e dinheiro é oferecida a um noivo pela família da noiva, como parte do acerto do casamento etnr ambops. Em algumas culturas, como entre os muçulmanos, é o noivo que entrega à família da noiva ou à própria noiva um dote. (DOWRY, s. d.). O recorte a seguir (recorte 5) tem como objetivo analisar o costume do dote como representado na peça A megera domada. Nesta cena, em um aposento na casa de Batista, Trânio e Grêmio se apresentam e discutem seus dotes perante Batista para conquistar a filha Bianca

Recorte 05:Ato II cena 1

Trânio: E eu sou aquele que ama Bianca mais do que podem exprimir simples palavras. Grêmio: Rapazinho, não podes amar da maneira intensa com que eu amo. Trânio: Vovozinho, o teu amor congela. Grêmio: E o teu derrete. Para trás, doidivanas: o que fecunda é a idade. Trânio: Mas para o olhar das mulheres o que faz florescer é a juventude. Batista: Contenham-se, cavalheiros, eu decido a questão. O que importa são os atos; o que garantir dote maior, terá o amor de Bianca. Diga, signor Grêmio, que tem a oferecer? [...] Batista: Bem, cavalheiros, eis minha resolução; como ouviram, minha filha Catarina casa-se no domingo que vem: assim no domingo seguinte, Bianca será a sua noiva, se você me trouxer uma garantia. Se não, será do Signor Grêmio. E assim, senhores, eu me despeço, agradecido a ambos. (SHAKESPEARE, 2008, p. 60-62)

Diante da discussão entre os cavalheiros, os quais dialogavam sobre o amor que tinham a oferecer a Bianca, Batista decide a questão evidenciando o materialismo como bem estar de Bianca e da família. Como vimos, na sociedade renascentista, o dote era um dos principais assuntos de contratos de casamento e era tratado francamente entre os pais e pretendentes das filhas. O dote, no entanto, era o critério de escolha utilizado pelo pai da filha mulher, sem que esta pudesse influenciar nas decisões do pai. Na fala de Batista fica evidente a franqueza com que o dote era tratado: “[...] O que importa são os atos; aquele dos dois que garantir dote maior terá o amor de Bianca.” [...] (SHAKESPEARE, 2008, p. 60). Batista deixa clara a questão da negociação ao afirmar que a garantia do maior dote receberia em troca o amor de Bianca, segundo ele, o que importava de fato não era o que eles tinham a oferecer sentimentalmente, mas sim os atos financeiros. Diante da proposta de Batista, Trânio e Grêmio, pretendentes de Bianca, apresentam seus bens financeiros. Seus argumentos, no entanto, se invertem e a disputa sobre quem possuía maior amor a oferecer passa a ser, a partir de então, sobre quem possuía maior riqueza. E, nesta discussão, Batista analisa, atenciosamente, os casos e decide que sua filha Bianca seria noiva de Trânio, se este lhe garantisse uma quantia como contrato de noivado; caso contrário, seria de Signior Grêmio. Shakespeare retrata, na peça, o dote como recurso para um casamento, e, nesta condição, a jovem era tratada como mercadoria entre as famílias dos noivos. O texto em análise refere-se à Bianca, uma jovem aparentemente submissa e disposta a casar por amor; sua submissão e os padrões sociais de sua época oportunizaram a decisão de seu pai, Batista, a realizar contratos de casamento.

A peça tende a explorar relacionamentos românticos a partir de uma perspectiva social, abordando as instituições de namoro e casamento, em vez de enfocar as paixões internas de amantes. Além disso, ressalta como a corte não apenas afeta os amantes, mas também seus pais, seus servos, e seus amigos. Em geral, o marido e a esposa conduzem o relacionamento conjugal após o casamento, mas o relacionamento de namoro é negociado entre o futuro marido e o pai da futura esposa. Como tal, o casamento se torna uma transação envolvendo a transferência de dinheiro. Lucêncio ganha o coração de Bianca, mas ele é dado permissão para se casar com ela só depois que ele é capaz de convencer Batista que ele é muito rico. Hortênsio ofereceu mais dinheiro, ele teria se casado com Bianca, independentemente se ela amava Lucêncio. Na peça, Shakespeare enfatiza o casamento da sociedade renascentista, especialmente o dote, e neste recorte da peça, esse tema é retratado com reflexões; os contratos de casamento são negociados entre Batista e os pretendentes de Bianca. No entanto, através da personagem protagonista, é apresentada uma nova forma de pensar o casamento: Catarina introduz um pensamento social que foge aos padrões do casamento de sua época e assim, segundo a personagem, o casamento deveria ser assunto a ser tratado pelos envolvidos, especialmente os noivos. Em toda a peça é possível comparar a submissão de Bianca e a imposição de Catarina. Ambas da mesma família, mas com personalidades diferentes, Bianca aceita ser tratada como submissa e entende que o casamento é uma instituição que lhe trará felicidade. Catarina impõe seu pensamento e discorda com as regras normatizadas pela sociedade em que vive, ela vê o casamento como uma submissão da mulher ao marido. Contudo, a aparente submissão de Bianca pode, também, ocultar uma discordância íntima com a forma como o casamento era negociado. No recorte 06, que corresponde ao Ato III, cena 1, pretendemos analisar o contraste entre aparência e realidade no contexto da transgressão, como representado pela troca de identidade que tem o objetivo de negociar o casamento. Nesta farsa, Lucêncio assume o papel de professor de Filosofia e Literatura; Hortênsio assume o papel de professor de música para que tenham acesso ao interior da casa de Batista, e assim, na proximidade de Bianca, possam conquistar-lhe o coração. Nota-se que Bianca, assim que inteirada da farsa, reage positivamente, aproveitando a ocasião para encontrar-se livremente com seu amado. No recorte a seguir analisaremos como as identidades dos personagens são representadas na peça. Cada pessoa na peça ocupa uma posição social específica que

traz consigo certas expectativas sobre como essas pessoas devem se comportar. A posição social de um personagem é definida por coisas como a sua riqueza, idade, sexo, profissão, filiação e educação; as normas que regem a forma como cada um deles devem se comportar é duramente imposto pela família, amigos, e da sociedade como um todo. Por exemplo, Lucêncio ocupa o papel social de uma jovem estudante rico, Trânio a de um servo, e Bianca e Catarina os papéis de moças solteiras da classe alta. No mínimo, elas deveriam ocupar esses papéis, mas, como mostra a peça, na realidade, Catarina não se importa com seu papel social e sua indignação é o resultado de sua frustração a respeito de sua posição (SHAKESPEARE, 1966) Catarina não vive as expectativas de comportamento de sua sociedade, ela enfrenta a desaprovação sociedade a seu respeito, e, devido a esta alienação, ela torna-se miseravelmente infeliz. Ela é apenas um dos muitos personagens em A megera domada que tentam contornar ou negar seus papéis socialmente definidos, no entanto: Lucêncio transforma-se em um tutor de Latim da classe trabalhadora, Trânio se transforma em um jovem rico aristocrata, Christopher Sly é transformado a partir de um funileiro em um senhor, e assim por diante. Em comparação com a angústia mais grave de Catarina sobre o seu papel, as tentativas dos outros personagens para contornar as expectativas sociais parecem ser uma diversão inofensiva. No entanto, a peça ilustra que cada disfarce deve ser desfeito e a vida convencional pode retomar nos personagens no final da peça. Em última análise, a felicidade da sociedade depende de todos atuando em seus papéis prescritos. Através do motivo do disfarce, a peça entretém a ideia de que uma pessoa determina a sua posição social, mas em última análise, afirma que este não é o caso. Um servo pode colocar-se sobre a roupa de um senhor, mas ele continua a ser um servo, aquele que deve retornar ao seu lugar, como podemos ver com Trânio. Da mesma forma, Lucêncio deve revelar seu subterfúgio para seu pai e para Batista antes de conquistar Bianca. O desenvolvimento de Catarina ao longo da peça é basicamente determinado pela sua adaptação gradativa ao seu novo papel social como mulher. Ela está em conformidade com regime humilhante de Petrúquio de domesticar, porque ela sabe em algum nível que, se ela gosta do papel de esposa ou não, ela será mais feliz aceitar suas obrigações sociais do que viver como ela tem sido em desacordo com todos ligados a ela. Na verdade, a emoção primária em A megera domada decorre de suas fronteiras sociais permeáveis, atravessada continuamente por aqueles que empregam um

disfarce ou uma mentira inteligente. No final, no entanto, a ordem convencional se restabelece, e aqueles personagens que se harmonizam com essa ordem alcançam a felicidade pessoal. Apesar das desvantagens de estar no extremo inferior da hierarquia social, Trânio, e até mesmo sem dúvida Biondello e Grêmio, são muitas vezes mais inteligentes do que seus mestres. Grêmio muitas vezes interpreta mal as coisas excessivamente literalmente, mas isso também pode ser visto como um jogo ou brincadeira com Petrúquio, sob o pretexto de não o compreender. Trânio, entretanto, surge com o plano pelo qual Lucêncio corteja com sucesso Bianca e, na elaboração dos vários disfarces pelos quais ele e Lucêncio enganam Batista, Na peça de Shakespeare há uma rígida hierarquia social entre nobres e personagens de classe baixa, como os servos, mas também transforma essa hierarquia de cabeça para baixo. O Senhor se veste como um servo, Lucêncio se veste como o de classe baixa ligeiramente Cambio, Trânio se veste como Lucêncio, e os antigos comerciantes se veste como Vicêncio. Além disso, todo a peça é realizada para o entretenimento de Christopher Sly, um mendigo bêbado que tem sido levado a pensar que ele é um nobre senhor. Tal como acontece com o sexo, as categorias que a sociedade pode muitas vezes julgam ser natural são revelados no jogo como identidades que têm de ser executadas e colocar como uma fantasia. A classe social é tanto uma questão das roupas que usam e o modo como se comportam. Assim, mesmo que a comédia de Shakespeare mostra com leveza cômica o tratamento brutal de funcionários, ele expõe a arbitrariedade deste tipo de hierarquia social. Na troca de identidade, que tem o objetivo de negociar o casamento para conquistar Bianca, Lucêncio se disfarça de tutor para que possa ficar perto de sua amada e conquistá-la, assim como Hortênsio. Na trama que envolve Bianca há um grande número de personagens que se disfarçam para enganarem os outros. Lucêncio se disfarça de Câmbio, enquanto Hortênsio adota o nome de Lítio, ambos fingirão ser os professores de latim e música, respectivamente. Mas além dessas duas personagens, o criado de Lucêncio, Trânio, adota a identidade de seu amo; e para conseguir casar com Bianca, Lucêncio e Trânio convencem um transeunte a se passar por Vincêncio, pai de Lucêncio, para garantir o dote do filho. Pode-se ver então que nesta trama ninguém é o que parece ser. A seguir analisaremos o recorte que retrata a cena em que Bianca recebe os professores em sua casa para aprender latim e música, e como característica da comédia

romântica shakespeariana, pretendemos discorrer sobre a troca de identidade e especialmente caracterizar a personalidade de Bianca, bem como seu posicionamento diante do casamento.

Recorte 06: Ato III cena 1

Bianca: Como, senhores, me fazem dupla ofensa, discutindo uma primazia que depende só de mim; não estão ensinando a uma aluna de escola; não quero que me amarrem a horas ou horários. Desejo aprender minhas lições como mais me agradar. E para acabar a discussão, sentemo-nos aqui. Pegue seu alaúde e vá tocando; nossa leitura não demorará mais do que o tempo de afinar o instrumento. Hortênsio: quando estiver afinada acabará a lição? (sai) Lucêncio: então a lição não acabará nunca- vai afinando. Bianca: onde tínhamos parado? Lucêncio: Aqui senhorita. (Lê) Hac ibat Simois: hic est Sigeia tellus; Hic seterat Priami regia celsa senis. Bianca: Traduz. Lucêncio: Hac ibat – como lhe disse antes – Simois – eu sou Lucêncio – hic est – filho de Vicêncio de Pisa – Sigeia tellus – disfarçado assim para conseguir seu amor – hic steterat – e esse Lucêncio que se apresenta como pretendente, - Priami – é meu criado Trânio, - regia – que tomou o meu nome, - celsa senis – para que juntos pudéssemos enganar o velho pantalão. Hortênsio: (Entrando.) Senhora, o instrumento está afinado. [...] Hortênsio: (A Lucêncio.) Quer ir andando agora e nos deixar sozinhos um momento? Minhas lições não servem para três vozes. Lucêncio: É tão formal assim, senhor? Bem, fico esperando (À parte) – e vigiando: pois, salvo engano, nosso belo músico está enamorado. [...] Hortênsio: Contudo, leia a escala de Hortênsio. Bianca: (Lendo.) “Escala”: Sou a magia que invade o silêncio. Para encantar o grande amor de Hortênsio: B mi, Bianca, aceita-o como teu senhor. C fá dó, porque te ama com imenso ardor. D sol ré, pus em você meu ideal do mundo. E lá mi, tem pena de mim, ou eu sucumbo. E chama isto de escalas? Qual, não me agrada: prefiro ficar com a tradição; não sou leviana para trocar regras antigas por longas invenções. (Entra um criado.) (SHAKESPEARE, 2008, p. 65-68)

A partir deste recorte podemos estudar a personalidade de Bianca, que aos poucos é revelada. É durante sua primeira aula com Lucêncio e Hortênsio que Bianca começa a demonstrar sua verdadeira natureza aos seus pretendentes. Inicialmente, tal como Catarina já o fizera reiteradamente, Bianca reclama acerca do fato de ter sua subjetividade ignorada. Seu comportamento é tão altivo e decidido quanto o da irmã “megera” quando claramente reclama a si o direito de escolher o curso de seus estudos, e a ordem em que este se cumprirá. É enfática ao afirmar que o dom da escolha é dela, e

que ignorá-lo constitui-se em ofensa, pois retira de si uma primazia que só a ela pertence. Na sequência, é Bianca que passa a dar ordens aos mestres, ordenando a um que pegue seu instrumento e vá tocando enquanto ela passa a ser ensinada por Litio, cujas classes escolhe. Assim, Bianca demostra sua decisão diante dos homens. Ao analisar as características de Bianca, Mendes (2011), afirma:

A personagem de Bianca é mais um enigma shakespeariano. Queria ele dizer que todas as mulheres são “megeras”? Não importando a resposta, Bianca pode ser analisada como o estereótipo da mulher enganadora, que consegue as coisas por meio da mentira e do ardil. Mas em uma sociedade patriarcal, na qual a mulher não era livre para escolher seu futuro, haveria outra opção? É interessante destacar, contudo, que em sua trama, as personagens masculinas também fazem uso da mentira para conseguirem o que querem, em especial Lucêncio. (MENDES, 2011, p. 89)

Na escolha pela primazia dos mestres, Bianca demonstra clara preferência por Lítio/Hortênsio, o que pode insinuar que já tenha percebido a realidade por trás do disfarce. Bianca é esperta e sabe o que cada um pretende com as supostas aulas. Como não lhe agrada a companhia de Cambio/Lucêncio, com muita determinação afasta-o de si, ordenando-lhe que vá afinar o instrumento. Como Hortênsio, tomando literalmente a declaração de Bianca, de que a aula de latim duraria apenas o tempo necessário para que afinasse o instrumento, indaga se a lição de música efetivamente começará quando a afinação estivesse concluída, Bianca grosseiramente desfaz de sua capacidade de afinar o instrumento, dizendo-lhe que, a depender disso, a lição nunca terminará. É novamente grosseira quando Hortênsio retorna, interrompendo seu diálogo com Lucêncio, ocasião em que manda-o embora, sob a alegação de que pratica um dueto, e não um trio. Por outro lado, a imagem da doce e meiga Bianca também não se confirma no tratamento dado a Hortênsio, que tenta cortejá-la com um poema usando as notas musicais. Quando, ao expor a tradução das notas musicais, Hortênsio declara-lhe seu amor, Bianca desdenha a escala musical assim apresentada, declarando preferir a tradição a novas invenções. Essa declaração que Bianca prefere a tradição da sociedade em que os pais ajudavam na decisão e escolha dos pretendentes das filhas. Prosseguimos, agora, deslocando-nos de cena que envolvem a corte às pretendentes para uma cena que enfoca o casamento. Trata-se do Ato III, cena 2, a qual a cena acontece em frente à casa de Batista, no contexto do dia do casamento de Petrúquio e Catarina.

Recorte 07, Ato III cena 2

Batista: (Para Trânio) Signior Lucêncio, é hoje o dia do casamento de Petrúquio e nem sabemos onde está meu genro. Que irão falar? Que zombaria não farão ao saber que o sacerdote aguarda e não há noivo para cumprir o cerimonial do enlace? Que diz Lucêncio diante dessa vergonha que passamos? Catarina: A vergonha é toda minha: obrigada a conceder a mão, contra a vontade, a um maluco, estúpido e cheio de capricho que ficou noivo às pressas mas pretende casar bem devagar. Eu bem dizia que era um louco varrido, escondendo sentimentos vis sob a capa de um comportamento excêntrico. Para ter fama de engraçado é bem capaz de cortejar mil moças marcar o dia dos enlaces, organizar as festas, convidar amigos e espalhar os proclamas; sem ter sequer intenção de casar com quem antes noivou. Agora o mundo pode apontar para a pobre Catarina e dizer: “olhem, aí vai a mulher do doido Petrúquio se a Petrúquio lhe agradar e se casar com ela. ” Trânio: Paciência, boa Catarina, e o senhor também, Batista. Por minha vida, as intenções de Petrúquio são honradas, seja qual for o azar que impede de cumprir sua palavra: embora um tanto brusco e mais do que sensato e, apesar de suas brincadeiras e um homem muito sério. Catarina: Ah, antes não tivesse visto nunca! (Sai chorando, seguida por Bianca e ouros.) Batista: Vai, filha, vai: não posso censurá-la por chorar. Pois tal afronta envergonharia um santo, quanto mais um gênio impaciente como o seu. (Entra Biondello.) (SHAKESPEARE, 2008, p. 60-70)

O casamento de Catarina foi um dos eventos esperados por Batista. A cena permite ainda analisar a alternância de sentimentos de preocupação, vergonha (de Batista frente ao atraso de Petrúquio), humilhação e revolta (de Catarina, ante a aparente ausência do noivo), bem como de alívio pela chegada deste último, e inconformidade com a maneira como se veste. Na alegria aliviada de Batista queremos discutir o prestígio social obtido por um pai que casa a filha; na revolta de Catarina, evidenciar a desconsideração para com a situação social e emocional da mulher. O recorte evidencia o constrangimento e a desconsideração para com os sentimentos da mulher no dia de seu casamento. O contexto desta cena se dá em torno do atraso de Petrúquio no dia de seu próprio casamento, o que parece ser uma grande preocupação e vergonha para Batista, pai da noiva, já que tudo sugeria a desistência do noivo. Catarina declara toda a sua a frustração por ter sido obrigada a consentir em casar, mesmo contra sua vontade, contra alguém que considera maluco, estúpido e cheio de caprichos. A descrição que faz de Petrúquio é perfeita, considerando-se a maneira como Petrúquio sistematicamente ignorou sua vontade e palavras no único momento em

que esteve a sós com ela anteriormente. Também a decisão do casamento foi tomada unilateralmente, por Petrúquio, que, aliás, já se decidira a desposá-la, a despeito de quão geniosa se demonstrasse, antes mesmo de tê-la encontrado, já que não queria a ela, mas a seu dinheiro. Além disso, Catarina demonstra vergonha por parecer-lhe ter sido abandonada no dia do casamento. Imagina que o noivo esconde sentimentos vis, e é alguém dado a contratar casamento sem intenção alguma de cumprir com sua palavra. Imagina-se uma a mais na sequência de mulheres enganadas e abandonadas por Petrúquio. Ademais, fica humilhada pela vergonha de seu abandono ser público e notório a todos; mesmo que o noivo aparecesse ficaria conhecida como a que casou como um doido, e apenas porque a este agradou casar com ela, uma descrição que, além de retirar todo o seu poder de agência, a humilha, reduzindo-a ao status de um joguete nas mãos de um maluco. No entanto, o insulto parece não ser preocupante para Batista que, nesta situação, apenas esperava pela realização de seu grande desejo de casar a filha Catarina. O prestígio da família de Batista Minola, de acordo com os padrões sociais da época, se completa a partir desse momento, quando a filha estivesse casada. A felicidade pessoal e individual está em segundo plano, ante a necessidade de se conformar aos padrões sociais estabelecidos. Catarina casa-se para o bem-estar da família, no entanto o casamento não é algo planejado por ela e por isso não se encaixa na sua realização como esposa. O casamento consuma-se, uma vez que Petrúquio comparece, embora seu modo de vestir (com roupas velhas), seu comportamento inconveniente durante o casamento e sua retirada intempestiva com a noiva ao início do banquete nupcial caracterizem um deboche quanto ao casamento e descaso absoluto para com os sentimentos da noiva. Petrúquio obriga Catarina a deixar a festa nupcial e os convidados e leva-a para a casa de campo, desse modo desconsidera a formalidade do casamento, o que para Catarina é desonroso. Esta situação introduz o modo como se dá a relação matrimonial do casal. A roupa ridícula que Petrúquio usa no dia do seu casamento com Catarina simboliza seu controle sobre ela: vestindo a fantasia, ele é capaz de humilhá-la. Mesmo sendo vergonhoso para Catarina estar casando com alguém em tal vestimenta, ela sabe que não tem outra escolha, se não deseja permanecer solteira. Ela consente deixar a cerimônia de prosseguir, mesmo com Petrúquio vestido como um palhaço, e, portanto, cede à sua autoridade mesmo antes do casamento (Shakespeare, 2013).

Na alegria aliviada de Batista queremos discutir o prestígio social para um pai que casa a filha; na revolta de Catarina, evidenciar a desconsideração para com a situação social e emocional da mulher e, como representado nesta cena, ela demonstra a insatisfação em casar com Petrúquio. Além disso, a revolta e insatisfação de Catarina se dão a partir do atraso de Petrúquio que a faz esperar diante dos convidados e o modo como Petrúquio está vestindo-se para o casamento. No próximo recorte, correspondente ao ato IV, cena 1, avançamos para a análise da relação matrimonial entre Petrúquio e Catarina. Na casa de campo, Petrúquio inicia sua tarefa de domesticar Catarina. Shakespeare narra esta cena com o propósito de representar a posição da mulher com relação ao cônjuge no período elisabetano; analisaremos o tratamento dispensado por Petrúquio a Catarina, e o vocabulário por ele utilizado para enfatizar o status dela como objeto (e não sujeito), submissa ao marido:

Recorte 08: Ato IV cena 1

Petrúquio: Assim, com muita astúcia, começo meu reinado e espero termina- lo com sucesso. Meu falcão agora está faminto, de barriga vazia. E enquanto não ficar bem amestrado, não mandarei matar a sua fome. Assim, aprenderá a obedecer ao dono. Outra maneira que tenho de amansar meu milhafre, de ensiná-lo a voltar e a conhecer meu chamado, é obrigá-lo a vigília como se faz com os falcões que bicam e batem as assas para não obedecer. Ela não comeu nada hoje, nem comerá. Não dormiu a noite passada, também não dormirá esta. Como fiz com a comida ei de encontrar também algum defeito na arrumação da cama. Atirarei pra cá o travesseiro, pra lá as almofadas, pum lado o cobertor, para os lençóis. Ah, no meio de infernal balbúrdia não esquecerei de mostrar que faço tudo por cuidado e reverencia a ela. Concluindo, porém, ficará acordada a noite inteira. E se por um acaso cochilar, me imponho aos gritos e aos impropérios, com tal furor que a manterei desperta. Assim se mata uma mulher com gentilezas. Assim eu dobrarei seu gênio áspero e raivoso. Se alguém conhece algum modo melhor de domar umA megera, tenha a palavra. (Sai.) (SHAKESPEARE, 2008, p. 88)

Petrúquio compara o casamento a um reinado, e, portanto, a ele com um rei cujas ordens e atitudes evidenciam sua superioridade em relação a sua esposa Catarina. O vocabulário usado por ele demonstra que sua tarefa a partir do casamento é a domesticação da mulher. Neste recorte, alguns comparativos são utilizados por Petrúquio para definir sua mulher, entre eles, a expressão “falcão faminto”, o que sugere Catarina como uma mulher com garra e opiniões para atacar a presa, mas que nesse momento estava sob comando do marido. A palavra “milhafre” é utilizada para expressar uma ave de rapina que persegue a caça miúda e pequenos roedores, e ao

referir-se a Catarina que, neste momento, estava faminta, Petrúquio considera-a como submissa e dependente, desesperadamente em busca da “caça”, por miúda que seja, que possa mitigar-lhe a fome. Desde o início, Petrúquio quis dominar uma relação de duas personalidades dominantes. Ele tentou domá-la de uma forma não-violenta, mas ainda um pouco cruel. O método que Petrúquio utilizou para a "domesticação" de Catarina foi privá-la das coisas que ela tinha ou que lhe eram concedidas em toda a sua vida, e ele sarcasticamente agiu a favor de seu interesse. Em nome do amor, Petrúquio se recusou a deixá-la comer, sob o pretexto de que ela merecia mais alimentos do que o que estava sendo dado a ela. E, da mesma forma, Petrúquio não achou que sua cama era adequada para ela dormir, de modo que seus servos se revezaram para mantê-la acordada e negando-lhe o sono que ela tanto precisava. Petrúquio tomou a posição de que Kate era sua propriedade, como demonstrou, também na segunda cena do terceiro ato. (FONTE) As pretensões de Petrúquio eram, de fato, domesticar Catarina, e como sugere a peça, ele realizou a doma. De acordo com Gaberlini (2013), Catarina e Petrúquio possuíam fortes personalidades, pois seus temperamentos eram exagerados e quando brigavam, alguém sempre apanhava inocentemente. Sendo assim, ao estudarmos sobre o comportamento da sociedade elisabetana, entendemos que Shakespeare faz uma crítica social sobre o comportamento conjugal, no entanto, deixa prevalecer a posição machista, na qual o marido mantém o domínio sobre a esposa. Isso indica que sua peça analisa as ações do homem ao mesmo tempo em que deixa permanecer, até mesmo no título, os padrões sociais representados através dos personagens. Garbelini (2013) afirma que A megera domada é uma comédia de aprendizado, pois sua principal função, na sua época de produção, era influenciar o público feminino, por via oral ou visual, acerca do comportamento que devia adotar na sociedade em que vivia, ou seja, submissão e obediência total ao marido. Acreditamos que a peça, de fato, intenta em influenciar o comportamento social, mas a reversão do comportamento da personagem Catarina é uma forma usada por Shakespeare para reivindicar os direitos de igualdade entre os gêneros, já na sua época, no século XVI. Na sequência, avançamos para outra cena de casamento, o banquete de casamento de Bianca, com a presença dos três pares românticos da peça: Petrúquio e Catarina, Bianca e Lucêncio e Hortêncio e a viúva rica, além de demais familiares dos noivos. Enfoca-se, em especial, a aposta de Petrúquio acerca da obediência das mulheres a seus maridos e senhores. Ainda que a situação tenha sido o resultado de uma

aposta entre os homens, não deixa de evidenciar o comportamento da mulher esperado por seus maridos no período renascentista inglês.

Recorte 09: Ato V cena 2 – Banquete do casamento

Batista: Agora, bom Petrúquio, fala a sério; acho que a mais megera é mesmo a que te coube Petrúquio: Não discuto; vamos verificar. Cada um de nós manda chamar a esposa. Aquele cuja esposa for mais obediente, vindo assim que chamada, ganhará prêmio que nós combinarmos. [...] Batista: Por Nossa Senhora, lá vem Catarina (Entra Catarina.) Catarina: Que deseja, senhor, para que me chama? Petrúquio: Onde está tua irmã e a mulher de Hortênsio? Catarina: Conversam, senhor, junto a lareira do salão. Petrúquio:Vai busca-las; se recusarem vir, podes bater-lhes com vontade, desde que venham ter os maridos. Vai, anda; que venham sem demora! (Sai Catarina.)

[...]

Viúva: Meu Deus, não me dê jamais o infortúnio de padecer semelhante humilhação! Bianca: Que vergonha! Isso é uma obediência estúpida. Lucêncio:Gostaria que tua obediência fosse igualmente estúpida, formosa Bianca. Pois tua obediência sábia já me custou cem coroas. Bianca: Pois mais estúpido é você que aposta em minha obediência. Petrúquio: Catarina, encarrego-te de dizer a estas senhoras cabeçudas as obrigações que têm para com seus maridos e senhores. Viúva: Vamos, vamos, está zombando. Não queremos sermão. Petrúquio: Estou mandando, vamos; e começa com ela. Viúva: Não o fará. Petrúquio: Fará: e começa com ela. Catarina:Tem vergonha? Desfaz essa expressão ameaçadora e não lance olhares desdenhosos para ferir teu senhor, teu rei, teu soberano, isso corrói tua beleza, como a geado queima o verde prado, destrói tua reputação como redemoinho os botões em flor; e não é em sensato, nem gracioso. A mulher irritada e uma fonte turva, enlameada, desagradável de aspecto, ausente de beleza. E enquanto está assim não há ninguém, por mais seco e sedento que, que toque os lábios nela, e lhe beba uma gota. O marido é teu senhor, tua vida, teu protetor, teu chefe e soberano. É quem cuida de ti, e, para manter-te, submete seu corpo a trabalho penoso seja em terra ou no mar. Sofrendo a tempestade a noite, de dia o frio, enquanto dormes no teu leito orno, salva e segura, segura e salva. E não exige de ti outro atributo se não amor, beleza, sincera obediência. Pagamento reduzido demais para tão grande esforço. Mesmo dever que prende o servo ao soberano prende, ao marido, a mulher. E quando ela é teimosa, impertinente, azeda, desabrida, não obedecendo as suas ordens justas, que é então senão rebelde, infame, uma traidora que não merece as graças de seu amo e amante? Tenho vergonha de ver mulheres tão ingênuas que pensam em fazer guerra quando devia ajoelhar e pedir paz. Ou procurando poder, supremacia e força, quando deviam amar, servir, obedecer. Por que razão o nosso corpo é liso, macio, delicado, não preparado para a fadiga, e a confusão do mundo, senão para que o nosso coração e o nosso espírito tenham delicadeza igual ao exterior, vamos, vamos, vermes teimosas e impotentes. Também já tive um gênio tão difícil, um coração pior. E mais razão, talvez, para revidar, palavra por palavra, ofensa por ofensa. Vejo

agora, porém que nossas lanças são de palhas. Nossa força é fraqueza, nossa fraqueza sem remédio. E quanto mais queremos ser, menos nós somos. Assim, compreendido o inútil desse orgulho, devemos colocar as mãos, humildemente, sobre os pés do senhor. Para esse dever, quando meu esposo quiser, a minha mão está pronta. (SHAKESPEARE, 2008, p. 125-128)

Um dos pontos da peça que enfatiza a domesticação da mulher está no desfecho. Entre as críticas apresentadas por Shakespeare, percebemos que o autor pretende denunciar a sociedade de sua época, mas cuidadosamente mantém o enredo de acordo com a sociedade. Este cuidado demonstrado pelo autor indica que sua obra, além de uma comédia, é também uma representação da sociedade de sua época, por isso, o enredo de A megera domada encerra-se assim. Entendemos que, mesmo diante dessa situação, Shakespeare representa, através de Catarina, uma mulher que, no percurso da peça não está inteiramente submissa ao marido. Sua obra poderia receber críticas ainda maiores caso não representasse Catarina com esta nova postura ao final da peça. Flavia Peres Pregnolato, ao analisar a peça, considera que:

A maioria das análises sobre a obra A megera domada de William Shakespeare, julga a obra como um retrato do machismo da era renascentista. Porém, a obra em questão é uma comédia com a presença de muitas ambiguidades, ironias e sarcasmos; características muito específicas do autor e que podem sugerir uma conotação diferente à obra. Foi provada na análise que Shakespeare tinha uma admiração muito grande pela Rainha Elizabeth I que foi um símbolo muito forte do poder feminino em uma época em que as mulheres não tinham espaço. Começando por esse fato é possível gerar uma primeira hipótese: se Shakespeare admirava a Elizabeth I, faria ele uma obra machista? Catarina é a principal personagem da trama e a ironia está sempre presente em sua fala. Com isso, pode-se gerar uma nova hipótese: teria Catarina sido realmente domada por Petrúquio? Portanto, a principal discussão em torno da obra é se ela é apenas um retrato da época Renascentista, sendo assim uma obra machista ou se a obra trata de um tema a frente de seu tempo (o feminismo), e critica os padrões exigidos na época pela sociedade. (PREGNOLATTO, 2012)

Segundo Pregnolatto, a ironia está sempre presente na fala de Catarina e é possível que em seu discurso ela esteja sendo submissa ao marido enquanto usa a ocasião para descrever algumas responsabilidades do parido para com a esposa, quando ela declara:

O marido é teu senhor, tua vida, teu protetor, teu chefe e soberano. É quem cuida de ti, e, para manter-te, submete seu corpo a trabalho penoso seja em terra ou no mar. Sofrendo a tempestade a noite, de dia o frio, enquanto dormes no teu leito orno, salva e segura, segura e salva. (SHAKESPEARE, 2008, p. 127)

No entanto, nesta declaração ela enfatiza o tratamento que a mulher deve receber. Quando ela declara o marido como senhor, que cuida da esposa, aquele que submete o corpo a trabalho penoso enquanto a mulher e dorme no leito morno, salva e segura, ela enfatiza os cuidados e o tratamento que a mulher deve receber. Para Petrúquio, este era um discurso genuíno de submissão, mas nas entrelinhas, há uma sequência de responsabilidades a que o marido deveria submeter-se para os cuidados com a esposa. Assim como afirma o mesmo autor, Shakespeare tinha uma admiração muito grande pela Rainha Elizabeth I que foi um símbolo muito forte do poder feminino em uma época em que as mulheres não tinham espaço, e nesse sentido Shakespeare não representaria o machismo em sua peça, mas demonstraria uma admiração às mulheres através da comédia que representa a relação genérica através de seus personagens. Na fala de Petrúquio ocorrida antes deste discurso, em tom machista ele ordena: “Catarina, encarrego-te de dizer a estas senhoras cabeçudas as obrigações que têm para com seus maridos e senhores”. (SHAKESPEARE, 2008, 127). No entanto, ao discursar, Catarina não apresenta as obrigações da mulher em relação ao marido, mas enfatiza que num casamento a relação deve ser harmoniosa para que a reputação da mulher não seja destruída como o redemoinho destrói os botões em flor. Esta bela comparação da mulher com a flor, já caracteriza o discurso plausível de Catarina. Ela compara a mulher irritada como uma fonte turva, enlameada, desagradável de aspecto, ausente de beleza. Estas comparações caracterizam a mulher sábia, o que não é sinônimo de submissa. Na mesma declaração, Catarina apresenta os deveres dos maridos. Os sinônimos: senhor, soberano, chefe e protetor que ela utiliza para descrevê-los, não isentam das obrigações e deveres que os mesmos devem ter para com suas esposas. Todas as declarações que descrevem a mulher estão representadas em um relacionamento recíproco de cuidados que os maridos devem lhe proporcionar. É possível perceber que Bianca, em suas falas, tem um posicionamento diante do marido, o que já acontece em toda a peça, quando dialoga com outros do gênero oposto. A posição assumida por ela reflete o feminismo de sua época. Suas decisões são claras em diversos assuntos. Nesta cena, ela declara que submeter-se a obedecer ao marido através do discurso declarado de Catarina é uma obediência estúpida. E ao marido, ela o considera mais estúpido por apostar nesta obediência.

A partir desta declaração feita por Bianca, alguns analistas, como por exemplo, Tzur (2013) questionam: Será que a peça se tornaria uma interpretação mais cômica e plausível se o título representa Bianca como A megera? Pelo que sabemos sobre ela, Bianca tem o cuidado para apaziguar seu pai, seus pretendentes, e, o mais importante a si mesma. Todos à sua volta colocam a em um pedestal acima sua irmã mais velha. Tzur (2013) acredita que Bianca é umA megera. Segundo ele, Bianca é uma menina mimada que gosta de manipular aqueles que ofertam dotes sobre ela, a fim de subir até o topo e prender o melhor, e mais rico possível marido. Como Catarina afirma ao fim de seu monólogo, fortuna e um bom marido favorecem as esposas obedientes que "são obrigadas a servir, amar e obedecer" ao seu marido. Bianca deve estar de acordo com a imagem ideal de uma mulher; como Tzur (2013) percebe, ela coloca máscara e é extremamente persuasiva até conseguir o que sente que ela mais precisa. Ao seguirmos a perspectiva de Tzur, até o final do ato V, quando Bianca finalmente está casada com o rico e belo marido que desejava, ela não necessita mais mostrar-se falsa para atrair os pretendentes. Devido ao fato de que sua personalidade é na verdade, uma regressão da submissa à megera, apesar de seu perfeito casamento, é seguro dizer que Bianca nunca mais foi a bela moça que todos esperavam que ela fosse. Segundo Maya Tzur (2013), mesmo que outras pessoas consideram Catarina como umA megera, não significa que ela é a personagem do título; Bianca, por suas atitudes demonstra ser uma raposa de língua afiada, se não moreso. Segundo Tzur, Shakespeare propositalmente induziu o público para que eles pudessem ver que as aparências não definem uma pessoa. Durante o início do Ato I, cena 1, Catarina não age como umA megera e não há nenhuma razão para duvidar de seu comportamento; ela ainda educadamente aborda o pai e a pretendentes como "senhor". Só quando as pessoas começaram a murmurar sobre sua insolência que a aparência dA megera começa a se manifestar. No entanto, seu comportamento pode ser compreendido como resultado da frustação que ela vem enfrentando no meio social onde não é compreendida. Com base na leitura de A megera domada e nos estudos aqui referenciados entendemos que a peça proporciona uma compreensão sobre a sociedade renascentista inglesa. O fato de que uma das características da comédia romântica é que as aparências e realidade estão em desacordo, não só é motivo para riso como para reflexão, já que a irmã que se mostrava submissa revela-se depois tão megera quanto a outra, e A megera, em sua aparente submissão final, na verdade continua defendendo uma posição feminista.

Shakespeare relata o comportamento e os padrões da sociedade, contrastando com a opinião e os ideais de Catarina. Até este ponto, é possível caracterizar facilmente a comédia como uma crítica à sociedade da época. Porém, a partir do momento que Catarina casa-se com Petrúquio e muda de comportamento, indaga-se: se ela foi domada pelo marido, como poderíamos considerar a obra como uma crítica à sociedade? Afinal, ao Catarina ser domada, Shakespeare estaria elaborando um final de acordo com os padrões renascentistas. (PREGNOLATTO, 2012). Contudo, por meio de seu último discurso, Catarina não deve ser compreendida como uma mulher vencida pela sociedade machista. Acreditamos que Shakespeare intenciona, desde o princípio, mostrar como a sociedade pode precipitar-se com julgamentos. Desde o início da obra, formamos a imagem da Catarina pelo o que a sociedade diz a respeito dela, sem conhecermos sua real natureza. Shakespeare sugere a insatisfação da mulher com a falsa obediência das mulheres e com o julgamento feito pela sociedade.

3 CASAMENTO, FAMÍLIA E SOCIEDADE NO BRASIL: O CRAVO E A ROSA

O casamento e as relações de gênero e sociais que se estabelecem a partir dele, dentre as quais relações familiares de ordem diversa, bem como a independência ou submissão da mulher, são temas presentes na telenovela O cravo e a rosa, de Walcyr Carrasco, a qual faz crítica social à sociedade brasileira do século XX. Para analisar o casamento como uma instituição e a forma com este tema foi abordado na telenovela, dividimos este capítulo em duas seções. A primeira, introdutória, trata sobre os costumes associados ao casamento a partir do pensamento patriarcal no Brasil. A segunda seção é o resultado das análises dos diferentes casamentos e relações sociais associadas a ele na telenovela O cravo e a rosa.

3.1. CASAMENTO, FAMÍLIA E SOCIEDADE NO BRASIL

Como já estabelecido neste estudo, O cravo e a rosa é uma reescritura de A megera domada, a qual aborda, também, em outro contexto, o casamento e as relações em seu entorno. Focamos, agora, o olhar para esta instituição na sociedade brasileira. No Brasil, assim como na Inglaterra, a sociedade segue os padrões da família e do casamento europeu e, ao longo da história, algumas mudanças ocorreram a partir de movimentos sociais de vários grupos, entre eles, as mulheres. Entendemos que estudar, neste trabalho, a história do casamento na sociedade brasileira de forma geral, em um percurso histórico que englobasse do Brasil colônia aos dias atuais, desviaria o foco deste estudo, quando consideramos o contexto histórico da telenovela a que pretendemos recorrer. Por isso, direcionamos prioritariamente esta análise em torno da década de 1920, palco histórico de O cravo e a rosa, e especialmente sobre o casamento e as relações que dele fazem parte, para então, relacionarmos com as mudanças que ocorreram no Brasil a partir desse período até o final do século XX, momento histórico em que a telenovela foi lançada e ao qual, ultimamente, fazia referência. Contudo, entendemos ser necessária breve menção às concepções que presidiram o casamento no período colonial, dada a persistência de alguns desses fundamentos no imaginário social. Enfocamos, sobretudo, os desenvolvimentos que têm lugar na transição do século XIX para o início do século XX, já que este último é o período em que se situa, temporalmente, O cravo e a rosa.

Tal como ocorria no período renascentista na Inglaterra, no Brasil, desde o período colonial até o final do século XIX, o casamento também era tratado pelo pai da noiva (PIMENTEL, 2005). Evidencia-se, já aí, desigualdade entre os sexos, a qual, segundo Pimentel (2005) associava-se à interferência da Igreja, que mantinha autonomia e controle sobre a sociedade e através do casamento. Priorizava os direitos dos homens na relação conjugal e implantava normas morais e sociais. Pimentel afirma que:

O casamento se constitui assim em um espaço de interferência ativa da Igreja, dentro do qual era possível controlar a luxúria, educar os instintos, criminalizar o prazer e comprometer as pessoas com o caráter “civilizador” e “catequético” das normas morais e sociais que estavam sendo impostas. Nestas matrizes, reprodução, fidelidade mútua, indissolubilidade, domesticação do desejo, encontramos disposições gerais que, entretanto, em sua aplicabilidade impõem margens de tolerância diferenciadas, criando assim práticas sociais hierarquizadas e assimétricas. (PIMENTEL, 2005, p. 25)

Contudo, ainda segundo Pimentel (2005), a discussão a respeito da importância e da forma pela qual deve ser realizado o casamento atravessou séculos e não ocupou apenas teólogos e concílios, mas também legisladores leigos. Assim, no Brasil, foi um instrumento tanto de aquietação da população como de preservação da estrutura social portuguesa, assim como de implantação dos princípios cristãos entre os colonos. Mesmo que a normatização do casamento esteja presente em alguns documentos oficiais, sua valorização era mais tradicionalista. Pimentel afirma que:

A quantidade de processos impetrados pelos Tribunais Eclesiásticos e pelo Santo Ofício em decorrência de irregularidades relativas à sexualidade é impressionante. Homens e mulheres eram chamados a regularizar sua situação por meio do casamento ou a abandonar o “comportamento escandaloso” que vinham apresentando. As leis civis e eclesiásticas, as pregações dos moralistas e os processos conduzidos pelo clero são todos discriminatórios com relação às mulheres, aos negros, índios, judeus e aos pobres em geral. O casamento, objeto de tantas preocupações no período, serve de parâmetro para a análise da vida no Brasil colonial, principalmente com relação aos desclassificados sociais. (PIMENTEL, 2005, p. 29)

Ainda segundo este autor, no caso de adultério, a prática judiciária estabeleceu enorme diferença entre os sexos, castigando levemente a fornicação eventual do marido e fixando rigorosas punições para a transgressão da esposa, assimilada à prostituição e admitida como causa justa para o divórcio.

Também a pesquisadora Clarissa Cecília Ferreira Alves (2016) enfatiza a presença de uma sociedade machista que, ao longo dos anos no poder, mantinha a autoridade na vida política e social. Nesse contexto, o casamento caracteriza-se como instituição que favorecia o sexo masculino:

O casamento enquanto contrato situa-se no centro de um debate histórico acerca das contraditórias relações de igualdade e consentimento das partes ao pactuarem a constituição de uma relação conjugal, referindo-se a um contexto ainda mais amplo, que diz respeito não só à esfera familiar, mas a relações que repercutem fortemente no mundo político. Em meio a isso, há o fato de que a história da teoria contratual mostra-se ambígua quando funda uma instituição que supostamente cria relações entre iguais, mas que, a despeito disto, garante a manutenção de diversas formas de desigualdades, de modo não assumido. (ALVES, 2012, p. 96)

Alves (2012) afirma que o contrato de casamento, enquanto principal acordo que cria a família nos moldes patriarcais tem sido, desde o início da teorização contratual, concebido possuindo como pressuposto a subordinação feminina ao domínio dos homens, como se isso resultasse de uma ordem natural, desde sempre existente. Levando-se em consideração o contexto temporal e social a partir do qual Walcyr Carrasco optou por situar a telenovela, não podemos falar sobre o casamento sem retratarmos a posição da mulher na constituição da família e especialmente sobre o movimento feminista da década de 1920, no Brasil. É nosso objetivo verificar se, dadas as diferenças de contexto social e temporal em que cada uma dessas obras foi escrita, há significativa diferença no modo como o casamento e as relações sociais dele decorrentes são retratadas em cada uma dessas obras. Vemos, assim, que a desigualdade entre os sexos não é característica apenas do contexto do século XVI na Inglaterra, conforme retratado na peça de Shakespeare. Por outro lado, como já exposto, um pensamento de resistência a um contexto machista é sutilmente introduzido por Shakespeare em sua construção da personagem. Viés semelhante é adotado na telenovela O cravo e a rosa, no qual Catarina é apresentada, também, como uma feminista. Considerando-se o quadro social já delineado, percebe-se, como Alves (2012) chama a atenção, que no imaginário social ao qual o movimento feminista buscou combater, evidencia-se o casamento como instituição inserida em uma conjuntura tradicionalista, pautado pelos ideais burgueses de felicidade e privacidade, e defendido como o modo mais legítimo para a constituição da família. Esta última é, por sua vez,

largamente protegida dentro dos ordenamentos jurídicos ocidentais, inclusive do brasileiro. Em O cravo e a rosa, além de Catarina, duas outras mulheres, Lourdes e Bárbara, alinham-se aos ideais feministas. Essa opção proporciona a discussão dos movimentos feministas que ocorreram em vários países no final do século XIX e início do século XX através de diferentes olhares, já que, com suas diferenças individuais, essas três mulheres virão a sugerir, na telenovela, que, assim como os seres humanos não são todos iguais, também o feminismo pode assumir diferentes contornos, conforme praticado por mulheres com diferentes formações e históricos de vida. Táboas, no tocante as questões feministas, tomando o sufrágio como conquista feminina máxima, afirma:

A indignação feminina com sua situação de propriedade legal dos homens, marginalização da educação, salários muito mais baixos que o masculino, obrigação de casar-se, ou, então, a miséria e a intolerância destinadas às profissionais liberais solteiras, cria um contexto propício para a organização do sufrágio feminino. (TÁBOAS, 2011, p. 270)

O destaque para o feminismo situa-se em um contexto histórico em que, de acordo com Macedo (2013), já no início do século XIX uma autonomia feminina maior começou a ser vista no Brasil. Segundo Del Priori (2001), com o desenvolvimento das cidades no século XIX, novos modelos de construções de casas influíram na disposição do espaço no interior da residência, tornando-a mais aconchegante, o que deixou mais claro o limite do convívio e as distancias sociais entre a nova classe e o povo. Segundo a autora,

A mulher de elite passou a marcar presença em cafés, bailes, teatros e certos acontecimentos da vida social. [...] não só o marido ou o pai vigiavam seus passos, sua conduta era também submetida aos olhares atentos da sociedade. Essas mulheres tiveram de aprender a comportar-se em público, a conviver de maneira educada. (DEL PRIORI, 2001, p .228)

Se, por um lado, os espaços sociais foram abertos às mulheres e estas passaram a frequentar bailes, teatros e cafés, é de se notar, também, que as mulheres da classe média foram valorizadas pela responsabilidade a elas atribuídas para o cuidado com a

família e filhos, desse modo, algumas oportunidades surgiram como, por exemplo, uma nova forma de pensar o amor. Sobre esta mentalidade Del Priori afirma:

Durante o século XIX, a sociedade brasileira sofreu uma série de transformações: a consolidação do capitalismo; o incremento de uma vida urbana que oferecia novas alternativas de convivência social; a ascensão da burguesia e o surgimento de uma nova mentalidade –burguesia – reorganizadora das vivencias familiares e domésticas, do tempo e das atividades femininas; e, por que não, a sensibilidade e a forma de pensar o amor (DEL PRIORI, p. 223, 2001)

No Brasil, no século XIX, o casamento era tratado a partir dos interesses econômicos.

O casamento entre famílias ricas e burguesas era usado como um degrau de ascensão social ou uma forma de manutenção do status (ainda que os romances alentassem, muitas vezes, uniões por amor). Muitas mulheres casadas ganhavam uma nova função: contribuir para o projeto familiar de mobilidade social através de sua postura nos salões como anfitriãs e na vida cotidiana, em geral, como esposas modelares e boas mães. (DEL PRIORI, p. 229. 2001)

Segundo a autora, a mãe era a responsável para cuidar e supervisionar a primeira educação dos filhos para que não deixassem simplesmente soltos sobre a influência de amas, negras, ou “estranhos”, “moleques” de rua. O sucesso da família também dependia das mulheres esposas de ricos comerciantes, ou de profissionais liberais, cabia a elas a responsabilidade em manter o elevado nível de prestigio social da família. Os casamentos eram considerados uma forma de ascender socialmente ou manter o status e eram realizados entre as famílias que possuíam patrimônios e bens materiais. Com isso, a mulher era instrumental em ajudar a família a ter reconhecimento perante a sociedade, sendo necessário ser uma boa anfitriã e portar-se de maneira requintada. Além disso, nesse período, além da valorização da intimidade, percebe-se a exaltação da maternidade, uma vez que ela passa a ser cobrada como mãe cuidadosa e zelosa. (MACEDO, 2013) A partir destas considerações, entendemos que a sociedade patriarcal foi um fator que favoreceu o desenvolvimento de uma desigualdade genérica. Segundo Del Priori (2001), no sertão nordestino, no século XIX, a mulher de elite, mesmo com certo grau de instrução, estava restrita a esfera do espaço privado, pois a ela não se destinava

a esfera pública do mundo econômico, político, social e cultural. A mulher não era considerada cidadã política. Em questões de educação, as mulheres não estudaram nem mesmo as primeiras letras do alfabeto, enquanto os homens recebiam noções do grego e do pensamento de Platão e Aristóteles, aprendiam ciências naturais, filosofia, geografia e francês, elas aprendiam a bordar em branco, o crochê, o matiz a costura e a música. Del Priori, afirma que o casamento passou a ser visto de forma diferente a partir do século XX,

Na passagem do século XIX para o XX, ocorrem mudanças comportamentais e o casamento não poderia ficar imune a elas. “Os casais começam a se escolher porque as relações matrimoniais tinham sido fundadas no sentimento recíproco. O casamento de conveniência passa a ser vergonhoso e o amor... bem, o amor não é mais uma ideia romântica, mas o cimento de uma relação” (DEL PRIORI, p. 231. 2005).

Mesmo com estas mudanças que favoreceram as mulheres, ainda, segundo Del Priori (2005), em meados do século XX, apesar de todos os avanços, o melhor lugar para a mulher ainda era o lar e como destaca a autora, alguns casamentos ainda aconteciam de acordo com a opinião da família.

Apesar de todas as mudanças comportamentais, os casamentos ainda aconteciam de acordo com a opinião da família, isto é, a paixão ainda deveria estar submetida à razão. À mulher estava reservado o maior quinhão de responsabilidade para com a felicidade no lar. Ela deveria estar à disposição de seu marido e da família a qualquer momento. Deveria ser prendada, recatada, mas, ao mesmo tempo, esmerada em sua aparência, para que o homem não se sentisse atraído pelas mulheres da rua. (DEL PRIORI, p. 322. 2005)

Contudo, por limitadas que fossem, aos olhos da sociedade atual, essas oportunidades beneficiaram a atuação da mulher na vida social, o que mais tarde deu origem ao movimento feminista da década de 1920. O encontro entre as mulheres de elite oportunizou o desenvolvimento de um espaço de segredo e individualidade, ambiente oportuno e privado para debates sobre sentimentos. Passamos agora a comentar como esse contexto histórico se faz presente na telenovela de Walcyr Carrasco, e a forma como ele optou por enfocar a sociedade brasileira, considerando-se o contexto das relações tecidas a partir do casamento.

3.2 CASAMENTO, FAMÍLIA E SOCIEDADE EM O CRAVO E A ROSA

Telenovelas de época, como é o caso de O cravo e a rosa, oportunizam não só observar de que forma o passado é representado, mas, acima de tudo, implicam entender esse passado como um espaço que está ligado ao presente. Assim, o que se mostra quando se produz uma ficção histórica não é a realidade do passado, mas o que ele diz sobre o presente (MUJICA, 2007). A telenovela em análise contextualiza-se na década de 1920; foi, contudo, levada ao ar pela Rede Globo entre 2000 a 2001: o distanciamento temporal pode ter sido usado como uma forma favorável para comentar, através do passado, fatos do presente. Entendemos que a telenovela possibilita uma reflexão sobre muitos temas que se relacionam com a década de 1920 no Brasil, porém, como já destacado, escolhemos analisar o relacionamento entre homens e mulheres como evidenciado através do casamento. Há a representação de casamentos por interesses econômicos, como há aqueles que se realizaram por amor; há, no caso de alguns pares românticos, uniões que são mantidas em segredo para atender à normatização social do momento histórico, por serem oriundas de traição ou envolverem classes sociais distintas, dentre outros fatores. Em O cravo e a rosa, assim como evidenciado na peça de Shakespeare, a trama central acontece em torno do casamento de Petrúquio e Catarina, protagonistas que fazem parte do enredo principal. Contudo, como acontece na comédia romântica shakespeariana, Carrasco opta por introduzir múltiplos subenredos. Além dos pares românticos representados por Catarina e Petrúquio e sua irmã e Bianca e Edmundo, há outros subenredos envolvendo relações amorosas que, além de acentuarem o contexto brasileiro em que se desenvolve a telenovela, duplicam os subenredos originalmente propostos por Shakespeare, analisando-os, assim, a partir de mais de um olhar. Passamos agora a descrever os casamentos relatados na telenovela. Iniciamos com aqueles que fazem um paralelo com a peça de Shakespeare e posteriormente com os demais, os quais foram introduzidos na telenovela e que se diferenciam do enredo shakespeariano. Os protagonistas do principal subenredo de A megera domada, Julião Petrúquio e Catarina Batista, são personagens de Shakespeare mantidos por Carrasco. Evidentemente, a telenovela introduz alterações, como fica evidente já nos nomes dos personagens, que apresentam adições bem brasileiras: o Julião, adicionado ao nome

Petrúquio, e a substituição do sobrenome italiano Minola por Batista. Como em Shakespeare, o casamento é baseado em interesses econômicos: Petrúquio, fazendeiro tão falido como o Petrúquio de Shakespeare, interessa-se em conquistar a Catarina para, com o dote do casamento, evitar que sua fazenda seja leiloada. Esta é, pelo menos inicialmente, a motivação de Petrúquio, o qual buscava um relacionamento baseado nos bens financeiros de Catarina. Tal motivação fica clara em diálogos como o que tem lugar na casa de Cornélio, para onde Petrúquio retorna depois de ter sido informado sobre a rica herdeira, e abruptamente retoma o diálogo enfocando os benefícios econômicos que tal casamento traria. A cena que retrata este momento acontece na casa de Cornélio. O ambiente luxuoso, e a arquitetura atraente contribuem para a representação da classe alta. A câmera focaliza, inicialmente, o bolo que está posto sobre a mesa do café e aos poucos, a refeição sobre mesa, de forma panorâmica. Os alimentos, as xícaras e o bule de louça, formam o conjunto de uma mesa farta e luxuosa aparência. Os móveis da casa representam o estilo social da família e a presença de uma empregada é uma característica das famílias nobres. As telas artísticas sobre as paredes e as luminárias confirmam a situação econômica privilegiada da família. A câmera introduz em cena os personagens, que se alimentam. Os homens usam paletós; no caso das personagens femininas, chama atenção o uso de joias. O figurino acentua a ideia da opulência, primeiro sugerida pelo cenário. A presença de Petrúquio no ambiente de jantar, causa espanto e admiração, pois o figurino em que ele se apresenta forma um contraste na ocasião. Sua roupa representa o estilo do campo, pois, espera-se que o figurino, composto por roupas de aparência velha, foi uma forma de enfatizar as diferenças entre a vida do campo e a vida da cidade. Petrúquio caminha pela sala e os movimentos de câmera contribuem para a apresentação do ambiente. Nesta cena, não há trilha sonora musical, pois, a ênfase está nos sons dos talheres, e nos sons dos passos de Petrúquio, que formam o suspense para a fala dos personagens. A seguir, transcreve-se o diálogo no momento em que esta cena acontece.

Recorte 01. Cap 002. 00:16:15’- 00:17:35’

(Entra Petrúquio na casa de Cornélio) Dinorá: Ora, ora, ora, quem vejo! Petrúquio: Ela é rica? Tem dote? Dinorá: Ela, quem? Cornélio: Ele só pode estar falando de Catarina. Dinorá: Áh! A Catarina, o pai é banqueiro, se tem dote?

Josefa: O dote de Catarina é mais que o suficiente para salvar dez fazendas iguais a sua. Dinorá: Eu fico espantadíssima de ouvir esta pergunta. Ontem mesmo você gritou que não queria saber de Catarina. Disse que ela é uma fera! Petrúquio: É uma fera que eu sei, um demônio de saia. Mas eu não tenho medo de cobra, não tenho medo de onça braba, não vou ter medo de mulher. Se ela é rica eu caso! Eu caso com a fera!

Neste diálogo, Carrasco enfatiza a causa do casamento como instituição financeira. Petrúquio, mesmo conhecendo o perfil de Catarina, mas motivado pelo dinheiro, pretende se casar com Catarina. Nesta cena em análise, percebemos que Petrúquio não tinha nenhum interesse amoroso por Catarina, almejava apenas o dinheiro para solucionar seus problemas financeiros. Diferentes motivações levam parentes e amigos dos protagonistas a se posicionarem a favor do romance entre Petrúquio e Catarina. Batista quer vê-la casada, livrar-se do constrangimento que passa por causa das atitudes da filha. Ademais, espera- se de alguém de sua classe social, que constitua família, pelo que tanto a insistência da filha em permanecer solteira como sua atitude são estorvos para seus planos de lançar sua candidatura a prefeito. Bianca, a irmã mais nova, quer noivar e casar, mas só terá permissão após a filha mais velha arrumar um pretendente. Já Cornélio, tio de Petrúquio, torce pelo sobrinho, assim como o faz Calixto, velho empregado da fazenda, que considera Petrúquio como um filho. Também apoiam o romance Dinorá e Josefa, irmã e mãe do esportista Heitor, já que as duas querem vê-lo casado com Bianca, por causa da fortuna dos Batista. Essas motivações sugerem, ainda, a posição ocupada pela mulher na sociedade. O fato de que ao pai é dado o direito de decidir sobre o casamento da filha caracteriza a situação da mulher como “propriedade legal dos homens”, um fato que não é aceito tanto por Catarina, que abertamente posiciona-se como feminista, como por Bianca, inconformada com a impossibilidade de se casar, dado o costume social invocada e defendido por Batista. A cena em análise acontece na nobre casa de Batista, ambiente luxuoso e caracterizado pelas riquezas materiais, como já descrito anteriormente. A cena que antecede ao diálogo, focaliza de forma panorâmica a casa de Batista e em seguida o interior da sala, com ênfase na magnifica escadaria pela qual hão de descer Batista e Bianca. A arquitetura da casa é moderna, se considerada a época; representa estilo e riqueza, no entanto os móveis são em grande parte uma combinação de estofados com madeiras envernizadas.

A câmera focaliza Batista no alto da escada como sinal de autoridade, enquanto suas empregadas esperam para atendê-lo quando da sua chegada à sala de recepção. Batista veste terno e Bianca usa vestido branco, botas e chapéu e estão preparados para participarem de uma regata. Batista parece demonstrar cavalheirismo quando segura a mão de Bianca ao descer a escada, mas isso demonstra a submissão dela ao pai. As empregadas da casa usam vestidos com cores cinza e uniformes, os quais contrastam com os de seus patrões e demonstram sua posição de servas. Durante o diálogo, ouve-se, também, o barulho de objetos sendo quebrados por Catarina, e, no desfecho da cena, vê-se um vaso com flores ser jogado por ela até a sala de recepção. A cena é gravada em câmera lenta, para demonstrar e reconhecer o objeto caindo. Vejamos a transcrição do diálogo que acontece neste ambiente, onde Batista debate com Bianca (e não com Catarina, cuja opinião também desconsidera) o aparecimento de um candidato para esta última.

Recorte 02: Cap 001, 07:15 – 7:35

(Na casa de Batista)

[...]

Batista: Eu não posso deixar de escapar esse, esse pretendente, é carioca, acaba de se mudar pra São Paulo, não conhece a fama de fera de Catarina. Bianca: Você não me deixa namorar, se casar, insiste que Catarina se case primeiro, assim, vou acabar ficando encalhada. Batista: Mas é a lei da vida! A filha mais velha tem que se casar antes da mais nova! Bianca: Áh! Que diabo de lei da vida é esta que o senhor tanto fala e que só me atrapalha.

Neste discurso Batista evidencia o modo como se processa a escolha e aprovação dos pretendentes para Catarina. Apesar da telenovela não apresentar em cena uma sequência de pretendentes, subentendemos, através da fala de Batista, que à Catarina foram apresentados diversos pretendentes para o casamento e isto se justifica na expressão “não posso deixar de escapar esse”, referindo-se ao pretendente carioca que chegou em São Paulo. Na cena, está evidenciado o perfil de fera de Catarina, característica desconhecida desse pretendente. Na fala de Batista está subentendido o respeito de Batista às normas sociais; parte dessa preocupação é a defesa da própria posição que ocupa na sociedade. Como evidenciado em outros diálogos da telenovela, é uma desonra para uma família de classe

alta ter filhas solteironas, fato que o impele a arranjar casamento para as filhas, e obedecer ao critério de ordem do casamento por ordem de idade. Por esse motivo, casamento de Catarina como resolução da possibilidade de casamento de Bianca. O perfil de Bianca representa uma mulher submissa às normas sociais. Ela não afronta seu pai com palavras, mas acredita e defende, através do diálogo, que uma mulher será feliz em um casamento baseado no amor. Bianca é caracterizada como uma jovem calma e inocente, mas apesar da submissão e respeito, ela assume posição diante de suas escolhas. Observamos isto quando ela encontra Heitor no quintal, conta a vontade de seu pai Batista e quando questiona sobre a lei da vida que seu pai tanto fala, ao seguir a ordem de casar as filhas por ordem de idade. Para Batista, toda mulher necessita de um marido para ser completa. Contudo, Catarina não pretende se casar. É interessante destacar que ela é privilegiada pela situação econômica da família: enquanto as mulheres da classe baixa subordinavam-se ao casamento para não sofrerem as condições financeiras que lhes cabiam, Catarina não sofreria as consequências de seus atos, caso viesse a permanecer solteira. Contraria a sociedade de sua época ao defender a ideia de que uma mulher não necessita estar em um casamento para ser bem sucedida. A transcrição abaixo é uma parte do diálogo que acontece na chegada de Batista e filhas em casa, após a regata. Na cena em que este diálogo acontece, Catarina entra em casa empurrando a porta com os pés. Ela carrega uma sombrinha, está usando botas, com as quais caminha de modo deselegante; usa saia cinza sobre meias pretas e um blazer marrom claro com gravata, figurino com tons escuros que enfatizam sua posição feminista. Ao chegar, Catarina deita-se sobre o sofá e retira as botas, jogando-as para o alto, isto demonstra a sua postura inconformada com as pretensões do pai em arranjar um casamento. A sua volta, estão Batista, Bianca e Mimosa, que conversam com Catarina sobre a situação que ocorrera na regata, na qual Catarina derruba na água um de seus pretendentes que de modo cortês pretendia auxiliar o desembarque de Catarina. Em contraste com Catarina, o figurino de Bianca é caracterizado por cores claras, chapéu branco, bolsa de mãos, vestido rosa sobre meias brancas e botas claras. Assim, visualmente, sugere-se que as diferenças entre o modo de vestir das irmãs, demostram que Catarina, sendo feminista, não segue os padrões das mulheres cujo modo de vestir é suave e delicado. Os personagens demonstram preocupação e contrariam o pensamento de Catarina, que parece star inconformada com os discursos da sociedade, que mantém

visão pré-definida sobre o casamento e a vida das mulheres. Vejamos a transcrição da cena em que é possível identificar este pensamento.

Recorte 03. Cap 001, 00:23: 00’ – 00: 23:34’

(Na casa de Batista) [...] Catarina: Não sei por que ficar me arrumando pretendentes, papai, não quero e não vou me casar nunca! E vou logo avisando, este eu atirei no rio, o próximo eu afogo! Batista: Eu ainda vou enrolar essa tua língua com um tapete. Você vai se casar, sim! Um homem como eu, um banqueiro, numa posição social, não pode ter uma filha solteirona. [...] Batista: Minha filha, eu sou seu pai e me preocupo com você. Uma mulher sem marido é uma faca sem ponta, galinha sem pé! Catarina: Quer saber! Está pra nascer o homem capaz de me levar pro altar, Tenho dito!

Neste recorte são apresentadas características de Catarina, bem como sua posição feminista em relação ao casamento, ao relacionamento com o seu pai, Batista, quando contraria o pensamento de que as mulheres estão destinadas a criar filhos e dedicarem-se às tarefas domésticas. Sua personalidade forte e língua ferina dominam a trama e as pessoas com as quais ela se relaciona demonstram temor, e aos poucos vão se adequando a sua personalidade. Com base nela e nas personagens Lourdes e Bárbara, Walcyr Carrasco, mantém a temática feminista no decorrer da telenovela. Assim como na primeira cena, em que Carrasco apresenta o movimento feminista, no decorrer da telenovela o tema continua em evidência e uma nova proposta é traçada entre os enredos a fim de tornar o movimento feminista frágil e ressaltar a imagem de que o homem é capaz de contornar o movimento e controlar as ações promovidas pelas mulheres. Isso está representado através de Catarina, que inicialmente é apresentada com uma simpatizante do movimento feminista e contrária ao casamento, mas que no decorrer da telenovela é influenciada pelo romantismo e conduzida a assumir uma nova visão sobre o casamento. Catarina, juntamente com Barbara e Lourdes está presente na cena inicial do primeiro capítulo da telenovela, que inicia com uma manifestação de mulheres pela busca dos direitos e igualdade entre os sexos, o que já sugere o foco temático adotado pela adaptação brasileira do drama de Shakespeare. Carrasco direciona as personagens feministas para assumirem uma nova postura como representada por Lourdes e Bárbara,

que são as líderes do movimento feminismo apresentadas na cena inicial, mas que no decorrer da telenovela transmitem a imagem de que as mulheres não resistem aos encantos masculinos. Assim, o feminismo, na telenovela, aos poucos vai se enfraquecendo. Isso demonstra, de forma cômica, como o movimento foi retratado e como as atitudes feministas foram representadas para desfavorecer os ideais feministas. Uma cena que representa este viés da representação das mulheres é o momento em que Catarina questiona o porquê de apenas os homens dirigirem, e em seguida pede ao empregado que colocasse o carro de Batista em ordem para que ela pudesse aprender a dirigir, mas quando dirige atropela as pessoas na rua e sobe nas calçadas demonstrando, assim, ser incapaz para a função de motorista. O feminismo de Catarina, como o que ocorre com o da Catarina de Shakespeare, é posto à prova, e melhor exposto quando testado frente à imposição do casamento, e à sua vivência. Nesse contexto, é indispensável considerar a figura de Petrúquio, e a forma como desenvolve seu relacionamento com Catarina. Petrúquio é um jovem órfão de pais e dono de uma fazenda que está à beira da falência, mas que, em meio à crise, trabalha juntamente com seus empregados para resolver a situação financeira. Entre as atividades do campo estão a produção e a comercialização de queijos. O Petrúquio representado na telenovela é submisso, inteligente e romântico. É um homem cuja crença é a de que a mulher deve ser a rainha do lar; embora tente, depois de casado, impor-se à mulher, fica claro que a teme. Contrasta, assim, com o Petrúquio de Shakespeare, machão que não se submete à mulher, e é autoritário. Dessa forma, o processo de “doma” de Catarina assume feições diferentes na telenovela brasileira, o que será comentado mais tarde. Por outro lado, Catarina Batista é a mulher moderna, na sociedade paulista da década de 20; recusa o papel feminino e não aceita os costumes normatizados quanto ao tratamento dado à mulher. Ela não concordava que única função da mulher era estar voltada para os serviços domésticos e aos cuidados com o marido. Conhecida como ‘a fera’ por botar todos os seus pretendentes para correr, a jovem, como a protagonista shakespeariana, agia dessa maneira porque estava certa que o casamento não estava entre os seus objetivos. Mesmo assim, alguns pretendentes acabaram se apaixonando, como é o caso do jornalista Serafim que, ao visitar Catarina pela primeira vez, é recepcionado por ela, disfarçada de louca e, com uma melancia sobre a barriga para criar um disfarce de grávida e assim surpreender o pretendente. Em Petrúquio, Catarina atirava vasos e quaisquer objetos que encontrasse por perto, comportamento que, mais

uma vez, replica o da protagonista de Shakespeare. Como os pretendentes não dão o braço a torcer e continuam a visitá-la, há cenas muito bem-humoradas de discussões e brigas. Ainda em relação aos protagonistas e para destacar a influência feminista sobre Catarina, destacamos que, antes do casamento de Petrúquio, outros interessados disputavam a mão de Catarina para receberem a herança; entre eles estava Serafim, diretor de uma Revista Feminina de São Paulo. Na tentativa de conquistar Catarina, ele prometeu publicar um artigo dela na revista, mas não cumpriu seu propósito. A ideologia da revista estava sob o comando dos homens daquele período. Isto demonstra uma sociedade influenciada e controlada pelo pensamento machista, além de ser um comentário irônico. A revista feminista não tinha nenhuma funcionária mulher e nem mesmo dava voz às próprias feministas, como evidenciados ao evitar a publicação do artigo da feminista Catarina. No artigo, Catarina escreveu que os maridos devem ajudar a lavar a louça da casa, a cozinhar o feijão e encerar o assoalho. O artigo não pode ser publicado, e o jornalista Serafim argumenta que essas são tarefas da rainha do lar. Esta declaração revolta Catarina, que começa a discutir com Serafim, declarando ainda que a revista é mal escrita, mal feita e não serve para nada, além das palavras; derruba, ainda, os documentos da mesa de Serafim. Batista priorizava, inicialmente, um casamento em que o genro tivesse uma posição social digna e reconhecida na sociedade, mas, devido a tantas tentativas frustradas, concede a mão de Catarina a Petrúquio. Ao saber do interesse de Batista em casar as filhas, Catarina decide contrariar a vontade do pai, mas este, conforme combinado com Petrúquio, decide proibir a presença do pretendente em casa. Sabia que Catarina iria contrariar suas ordens e exigiria a presença de Petrúquio como visita de honra, o que acabaria por tornar realidade o plano de aproximação que tramara. Com relação a Petrúquio, apesar de suas intenções para domar a fera, podemos perceber que há um propósito inicial baseado nos bens materiais que se transforma em uma paixão e posteriormente em amor. Petrúquio, em Shakespeare, não se submete aos desejos de Catarina, mas segue com o processo de doma. Já o Petrúquio de Carrasco submete-se às vontades de Catarina e declara que as palavras e os pedidos da amada seriam como ordens e com todo esforço possível as cumpriria. O recorte a seguir retrata o momento em que Catarina está na casa de Petrúquio pela primeira vez após o casamento, momento em que o processo de doma se inicia. Este não é o único episódio que trata sobre a domesticação, mas por ser um dos

momentos após o casamento faremos a análise sobre ele e de modo geral sobre este assunto em toda a telenovela. Vejamos parte do diálogo que se passa na sala de estar da casa de Petrúquio. A cena inicia com Catarina olhando o ambiente da sala de estar. O ambiente é apresentado pelas câmeras, que mostram a simplicidade da casa de sítio. Petrúquio encontra-se na sala, sentado em uma cadeira, usando botas e com os pés estendidos sobre a mesa do centro, sem formalidade. Ele usa chapéu velho e sujo, paletó velho e calças cinza. Seu figurino representa a vida campeira, na qual a importância pela terra e pelos animais prevalece em relação ao apuro no vestuário. A sala de jantar é composta por sofás e móveis de madeira antigos, alguns armários de madeira em cujas portas, entreabertas, estão penduradas cordas. Há uma galinha sobre uma caixa, que parece ser o animal de estimação da sala de jantar. O assoalho é de madeira, há algumas caixas sobre os cantos, roupas penduradas. Apesar do acentuado contraste entre a magnificência da casa de Batista e a rusticidade da de Petrúquio, este último tem, como Batista, uma empregada, a qual se chama Neca e trabalha na preparação do alimento.

Nesta cena a trilha sonora consiste nos sons dos passos dos personagens e o canto de pássaros, galinha e grilos, os quais enfatizam a vida no campo. A seguir há a transcrição do diálogo que corresponde a esta cena:

Recorte: 04: Cap 030. 00:56:45 – 00: 58: 57 Catarina: Mande servir o jantar, eu tô morta de fome! Petrúquio: Áh! Não, morta você não tá não, tá bem viva pelo que eu tô vendo Catarina: Você entendeu perfeitamente o que eu disse! Petrúquio: (risos) Tá certo! Neca! Neca: Sim senhor! Petrúquio: Neca, você pode servir o jantar! Neca: Ahm, o jantar tá servido lá na cozinha. Petrúquio: Mas que disparate é esse, dona Neca? Como é que a senhora se atreve a servir o jantar na cozinha pra minha esposa, pra minha doce Catarina Batista? Catarina: Eu não me importo Petrúquio, hoje eu posso comer na cozinha. Meu estômago está roncando de fome. Petrúquio: Não, não, de jeito nenhum, de jeito nenhum meu favo de mel. Você disse qual eram as suas condições na hora de casar, eu ouvi, eu concordei, eu prometi e vou cumprir. Não, não, não! Neca! Você coloca o jantar, jantar não porque nem é mais a essa altura das horas. Você bota a ceia é na mesa aqui da sala. Ouviu? Muito bem disposta, muito bem arrumada, e muita apetitosa porque é pra tá a altura da minha Catarina Batista. Neca: Mas, a gente sempre comeu na cozinha. Petrúquio: Pois não vai mais comer, Neca! Vai começar a comer na sala. Se você quiser, você pede ajuda pra quem você quiser, pra Carlixto, pra

Januário, pra quem você quiser. Mas quantas vezes eu vou ter que repetir que eu quero que tudo esteja na altura da minha adorada Catarina! Catarina: já que insiste, Petrúquio, pois muito bem, eu como na sala de jantar como compete a minha pessoa, e você, (à Neca) nunca mais comete o erro de servir na cozinha. Neca: com licença! Catarina: Pelo menos tá prendendo a lidar com alguém assim do meu nível social néh?

Inicialmente, Petrúquio parece ter deixado que Catarina passasse fome. Assim como também acontece na peça de Shakespeare, ela diz estar morta de fome. Um dos propósitos de Petrúquio é demonstrar preocupação com Catarina, para que esta veja nele um marido dedicado e preocupado, para então obter completa confiança. Como vimos na comédia romântica shakespeariana, Petrúquio é machista e, ao final da peça, se considera um vencedor por ter domado A megera. Já na telenovela ele propõe a mesma tarefa, domesticar a fera, e para isso demonstra ser romântico ao atender aos pedidos de Catarina Batista. Neste processo, Catarina se submete ao marido por entender que a forma como é tratada e respeitada é digna para uma mulher. Um dos pedidos de Catarina foi o de ser tratada como rainha e, atendendo a isto, Petrúquio a trata como uma donzela digna de respeito. O mesmo discurso que Catarina expressa sobre a condição da mulher é em expresso, também, na telenovela. No entanto, nesta última, seu discurso perde a complexidade da ambivalência, pois a personagem parece ter sido, efetivamente, “domada” pelo discurso e ações do esposo que, mesmo com a postura machista, preocupa-se com o tratamento dado à mulher. Ao contrário, em Shakespeare, a “doma” é aparente e adaptada às conveniências imediatas. Com base na análise sobre o comportamento desse par, podemos concluir que tanto Catarina quanto Petrúquio se submeteram ao processo de domesticação. Ela, por se submeter ao casamento, constituir família e acreditar no amor, e ele por se submeter aos desejos de Catarina, corresponder como cavalheiro e quebrar os tabus até então pregados pela sociedade machista. Outro casamento representado na telenovela acontece entre Bianca Batista e Edmundo, o professor. Este romance é evidenciado por Carrasco como o resultado do amor, diferente do que percebemos inicialmente no casamento de Catarina. Edmundo, de classe média baixa, professor de poesia e música, apaixona-se por Bianca, mas não foi correspondido porque Bianca, no início da telenovela, era apaixonada por Heitor. O

casamento entre Edmundo e Bianca baseado no amor só aconteceu no final da telenovela, com a ajuda de Catarina. O recorte a seguir retrata o momento em que Catarina discursa sobre o amor como o principal motivo para a felicidade em um casamento e convence Batista a permitir que Bianca case com Edmundo. Batista, motivado pelas filhas e por sua esposa Joana, permite o casamento após o pedido formal de Edmundo:

Recorte 05 Cap 114, 00: 25: 28’ – 00 27: 48’

Batista: Agora eu entendi o que você fez. Você tirou a Joana da fazenda para levar a convenção. Catarina:Eu sabia, papai, que se pudesse pesar as duas coisas, o seu coração falaria mais alto. Só que falta uma coisa! Batista: Falta o que Catarina? Catarina: Por que pensa que eu trouxe o professor Edmundo até aqui? Hum? Batista: Ah, sim, sim, O que quer professor? Edmundo: Nada do senhor. Catarina: Papai, eu falei com o Cornélio. E a Dinorá confessou que tudo o que fez foi para atrapalhar a vida do professor Edmundo. E foi por causa de tudo o que fizeram contra ele que ele foi parar na cadeia. Papai, agora que o senhor sabe que o amor é mais importante do que tudo, não pense mais em dote! Não pense em casar a Bianca com qualquer pessoa que seja rica! Pense! Pense na felicidade de sua filha, papai, Bianca: Catarina, você falou as palavras que estão no meu coração. Batista: Eu não, o caso do professor é diferente. Joana: Diferente coisa nenhuma, senhor Batista! O professor é um homem bom! E o professor vai casar com a Bianca de qualquer jeito, ou você quer brigar com a sua filha o resto da vida? Hum? Batista: É, então, rapaz! Faça pelo menos o pedido. Edmundo: Doutor Batista, o senhor me concede a mão de Bianca em casamento? Batista: E tem outro jeito? Se eu não disser sim, as minhas filhas me matam! Então é, é um sim!

Catarina compreende que o amor é o principal motivo para a felicidade e convivência do casamento. Ela declara que a riqueza não traz felicidade e que o amor é mais importante do que tudo, e pede a Batista que não pense mais em dote ou em casar a Bianca com qualquer pessoa que seja rica, mas que pensasse na felicidade de Bianca. Com a permissão de Batista, Bianca e Edmundo se casam. Esse casamento é uma relação baseada no amor. Edmundo é pobre, e não tem nada a oferecer além do sentimento que tem por Bianca. Assim como na trama de Shakespeare, na telenovela Bianca também tem outros pretendentes, não apenas por ser bela e meiga, mas porque os interessados em sua mão desejavam ter parte da herança de Bianca. Antes de Bianca perceber o amor

que sentia por Edmundo, ela vive uma paixão por Heitor Lacerda de Moura, filho de Josefa e irmão de Dinorá. O personagem é influenciado por sua irmã Dinorá a casar com Bianca para receber a herança da família Batista. Este romance se configura como um relacionamento cujo interesse é baseado nos bens materiais de Bianca, por parte do pretendente. Bianca, ao perceber as intenções de Heitor, abandona-o e casa-se com Edmundo. O recorte a seguir retrata o momento em que Heitor vai até a casa de Bianca e revela as intenções de fugir com ela. Eles se encontram no pátio dos fundos da casa, às escondidas. Neste momento em que Heitor propõe fugir, Bianca declara o grande desejo de casar tradicionalmente e oferecer uma festa a amigos e familiares. A trilha sonora é a música O que o amor me faz, de Sandy e Junior, que sonoriza o momento do encontro entre Heitor e Bianca. É interessante lembrar que esta música foi também escolhida como a trilha sonora para Bianca e Edmundo, ao final do enredo. Bianca está usando vestido azul claro, longo, com laços em volta da cintura e babados nas mangas, figurino que representa a delicadeza feminina; Heitor veste terno e chapéu, figurino que representa a classe alta. Esta cena acontece no quintal da casa de Batista, cenário composto pelo verde das árvores e que, com a combinação da trilha sonora e figurino dos personagens, acentua o caráter romântico do encontro.

Recorte: 05, Cap 003: 00: 17: 40’ - 00: 19:20’ Bianca: Eu quase não acreditei quando você jogou pedrinhas na minha janela e vi que estava aqui no jardim Heitor: Eu não suportei esperar, conte-me tudo, Catarina aceitou o pretendente? Bianca: Ah, Heitor, o dia que Catarina aceitar um pretendente, vai chover dinheiro. Imagina que ela colocou uma melancia na barriga pra se fingir de grávida. Heitor: Mas que falta de compostura. Bianca: Catarina não vai casar nunca Heitor, nunca vou poder me noivar, casar, papai põe na cabeça que eu só posso me comprometer depois de Catarina, não há quem faça mudar de ideia. Eu não sei, eu acho que vou enlouquecer! Heitor: Bianca, você confia em mim, não confia? Bianca: Mais que em nenhum outro, Heitor. Heitor: Então só temos uma saída, amor! Bianca: Qual? Heitor: Vamos fugir, vamos embora juntos! Bianca: Papai morreria de desgosto, Heitor. Heitor: Morre nada! Teu pai vai querer é me matar, mas depois acaba se conformando. Bianca: A vida inteira eu sonho em casar de véu e grinalda, oferecer uma festa para muitos convidados a minhas amigas, um bolo de três andares com dois noivinhos em cima,

Heitor: Bianca, eu fico triste porque noiva fugida não tem nada disso, o casamento é rápido não tem nada de festa, mas em compensação, Bianca, nós vamos estar juntos! Já pensou? Eu e você juntos!

Neste recorte podemos entender que Heitor tem interesse nos bens que Bianca possui; não a respeita como mulher, nem se importa com o desgosto que causaria à família Batista: tudo o que quer é garantir o casamento. Bianca é apaixonada por Heitor, seu primeiro romance, e, de forma ingênua, se entrega a ele. O encontro narrado nesta cena proporciona entender que Heitor tem muita pressa em consumar o noivado, que é proibido pelo pai de Bianca, Nicanor Batista. Bianca acredita no amor e entende que o casamento e a constituição da família são a base para a felicidade das mulheres. Prefere realizar tudo segundo a tradição, noivado, casamento, igreja e festa. Heitor não suporta esperar pelo casamento de Catarina e propõe a ela fugirem. Esta atitude que, mesmo não consumada, reflete muitos casamentos que ocorreram no Brasil no século passado, os quais eram proibidos pelos pais, devido ao desencontro das classes sociais. Heitor e Bianca sonham em se casar, mas sem que antes Catarina se casasse eles não poderiam namorar, por este motivo sues encontros são às escondidas e influenciados por dona Mimosa, empregada da casa de Batista. O romance entre Heitor e Bianca não resultou em casamento, pois Bianca conheceu as intenções de Heitor as quais eram por interesse nos bens financeiros da família Batista. Bianca então conheceu Edmundo, o professor de música e latim com quem se casa ao final da telenovela, por amor. Um casamento baseado nos interesses econômicos e sociais está representado pelo par Cornélio e Dinorá, uma trama paralela acrescentada na telenovela, mas que, assim como o casamento entre Petrúquio e Catarina na comédia romântica de Shakespeare, enfoca o casamento como entidade financeira em que a relação acontece motivada pelo dinheiro. Assim como Petrúquio, que tem interesse nos bens econômicos de Catarina, Dinorá depende da riqueza de Cornélio e mantém um relacionamento em troca de recompensas financeiras como joias, casa. Dinorá, filha de Josefa, é uma jovem linda casada com Cornélio, um senhor rico. Dinorá, como representada na telenovela, não é uma mulher realizada em seu romance, por isso ela busca outras relações fora do casamento em um romance com Celso, um estudante que mora na pensão de Dalva. Cornélio, sendo rico, mantém controle sobre Dinorá através dos bens materiais; no entanto, ela mantém um controle maior sobre Cornélio através da paixão que ela desperta nele. A submissão de Cornélio por amor a Dinorá o faz aceitar as propostas

para beneficiar a sua mãe e ao seu irmão Heitor. Cornélio vive em sua grande e luxuosa casa com sua esposa Dinorá, sua sogra Josefa e seu cunhado Heitor os quais dependem das economias de Cornélio. A cena a seguir retrata um dos momentos em que Cornélio é submetido a obedecer a esposa e oferecer-lhe presentes em troca de carinho e atenção. A casa contém lindas decorações, quadros, poltronas e tapetes, ambiente da classe alta. O quarto é grande, e contém quadros, luminárias, piano e móveis clássicos. As roupas de dormir são de tecidos caros e ajudam a caracterizar honra, estilo e riqueza. A câmera, movendo-se, apresenta o ambiente luxuoso que os personagens percorrem. Neste momento em que o diálogo acontece, não há trilha sonora musical para o casal Cornélio e Dinorá, pois, o propósito é enfatizar as falas dos personagens, bem como os ruídos dos movimentos que eles realizam.

Recorte 06: Cap 04 53: 32’ - 54: 32’ Cornélio: Abra minha divina, abra! Seja boazinha comigo, Dinorá! Dinorá:Me chorominga, eu estou com dor de cabeça! Cornélio: Minha divina, minha querida! (Dinorá bate a porta em Cornélio) Cornélio: Minha divina, abra, abra, que amanhã eu te dou um presente, abra! (Dinorá abre a porte e Cornélio entra) Dinorá: Entra Cornélio! Mas não é por causa do presente, é porque você me deixa exausta de tanta lamentação. Mas você vai dormir no tapete! Cornélio: Deixa eu dormir na cama, deixa! Dinorá: No tapete!

A cena retrata um momento em que Dinorá, ao ir dormir, deixa Cornélio para fora do quarto para dormir no sofá. Após muito insistir e prometer presentes a amada, ele consegue a permissão para entrar no quarto, mas com a condição de dormir sobre o tapete. Nesta relação que representa a classe alta, identificamos um amor baseado pela troca de favores. Em outras cenas estão evidenciadas as chantagens de Heitor e Josefa sobre Cornélio, que também recebem dinheiro, presentes e favores de Cornélio. O relacionamento deste par romântico representa o casamento entre membros da classe alta, o qual está retratado na telenovela como uma relação frustrada, com hipocrisia, traição e separação. Ao final da telenovela Dinorá torna-se dependente e submissa a trabalhar para Cornélio. Nisto se compara ao processo de “doma” entre Petrúquio e Catarina. Em ambos os enredos, o início da relação é marcado pelo domínio das mulheres sobre os maridos, mas que no decorrer da trama os papeis se invertem.

Cornélio conquista esta autoridade sobre Dinorá porque esta perdeu sua reputação como mulher por trair o esposo. A trama entre Cornélio e Dinorá, rompida pela traição, é reestabelecida no final da telenovela e Dinorá submete-se a Cornélio, de quem recebe uma nova chance. Desse modo, a mulher, devido ao fator econômico se submete ao marido. O recorte a seguir retrata o momento em que ocorre esta reconciliação:

Recorte 07: Cap 114, 00: 04: 00’ – 00: 05: 21’

Cornélio: eu estou disposto a dar uma nova oportunidade pra você, Dinorá, apenas uma nova oportunidade, você tem que andar nos trilhos. Dinorá: Eu vou andar nos trilhos, como uma locomotiva, Cornélio. Cornélio: amanhã mesmo eu vou falar com a prima Dalva, vou pedir a nossa casa, mudaremos para lá. Josefa: Ótimo, eu fico tão feliz, por voltarmos novamente a sermos uma família de verdade. Cornélio: Quem falou que a senhora vai? Josefa: Cornélio? Conélinho! Eu sempre amei você! Dinorá: Cornélio, a mamãe já está mais pra lá do que pra cá, eu não posso abandoná-la. Você não quer que eu tenha bons sentimentos? Quem tem bons sentimentos não abandona a própria mãe! Cornélio: Está bem! É, vou pensar no seu caso. Bom, se a senhora me contradisser vi para rua, vai pedir esmolas na porta da igreja. [...] Então Dinorá, decida-se! Dinorá: Está decidido Cornélio, farei como você quiser! [...]

Para se beneficiar dos bens de Cornélio, Dinorá está disposta a ser submissa às ordens do marido. Em um casamento no qual os bens materiais estão em destaque, a felicidade e a igualdade entre marido e mulher não está em vigor, mas sempre há a dependência e a troca de favores. Neste diálogo, que evidencia a reconciliação do casal, Dinorá compromete-se a ser fiel e servir ao marido. Algumas expressões na fala de Dinorá mostram a submissão dela a Cornélio como, por exemplo: “andar nos trilhos como um locomotiva” e “ farei como você quiser”, as quais declaram que, neste momento, Cornélio está com a autoridade e que a esposa deve estar completamente submissa a ele. A telenovela possibilita este olhar sobre os gêneros. Enquanto, na peça de Shakespeare, apenas os homens submetem-se ao casamento por interesse econômico, Carrasco, a partir das novas tramas, acrescenta também as mulheres que se submetem ao casamento por questões econômicas, como é o caso de Dinorá e também de sua mãe Josefa, que se casa por interesses econômicos. Isso reflete a condição financeira da mulher brasileira, com salários baixos ou poucas oportunidades de empregos.

Se a motivação econômica para o casamento, bem como a dependência final ao marido, aproxima o subenredo de Cornélio e Dinorá do de Catariana e Petrúquio, o casamento baseado no amor representado pelo par Calixto e Mimosa duplica, em outro contexto social, o relacionamento que se desenvolve entre Bianca e Edmundo. Carlixto é um empregado de Petrúquio, mas também considerado como um pai para ele. Já, Mimosa é empregada da casa de Batista. Ambos são de classe operária, mas com sentimento de amor, assim como no romance entre Bianca e Edmundo. Os sentimentos do casal são incentivados por Petrúquio e Catarina para que o casamento se constitua. Carlixto é um antigo criado da casa de Petrúquio, tio de Lindinha. Gosta de Mimosa, empregada da casa de Batista. O casal não possui dotes ou qualquer outro bem, pois são dependentes de seus senhores e ao longo da trama, eles vivem um romance lírico fundamentado no sentimento amoroso. O casamento entre Carlixto e Mimosa representa o amor na classe operária. Ao evidenciar essa trama, Carrasco insere na telenovela um novo modelo de casamento baseado inteiramente no amor. É diferente dos demais casamento, nos quais o fator econômico era necessário para que o romance ocorresse. Outras tramas da telenovela também evidenciam o amor, o fator econômico e as classes sociais, as quais interferem no prestígio entre os envolvidos. Um desses subenredos é o do romance entre Batista e Joana, o qual se configura como uma relação amorosa entre diferentes classes sociais e, por este motivo, é mantido em segredo. Batista revela apenas a Cosme, seu motorista, a paixão que sente por Joana, a qual não quer revelar com o propósito de concorrer ao cargo de prefeito da cidade de São Paulo. A seguir analisaremos a cena que retrata a questão social como problemática para o relacionamento entre o casal. Batista tem um motorista particular e um carro luxuoso, um dos poucos da cidade. A cena retrata o momento em que o personagem muda de figurino para visitar Joana. Troca o terno azul por um terno cinza, caracterizando-se como caixeiro viajante, modo pelo qual Batista se apresenta a sua esposa e amante Joana. Embarcados em destino a casa de Joana, a câmera capta de baixo para cima a passagem do carro, o que demonstra grandeza. A cena se passa no interior do carro, cuja aparência é de um carro novo, com bancos em couro, e muito bem encerrado, o que contribui para sugerir a riqueza de seu dono. Contudo, como já comentado, ele se veste pobremente para apresentar-se a sua segunda família, como caixeiro viajante, na

tentativa de esconder a sua vida de banqueiro reconhecido da cidade de São Paulo. Batista demonstra preocupação e conversa com Cosme, seu motorista, sobre a vida de Joana. Nesta cena, a câmera está dentro do carro, posicionada em frente aos dois, focalizando suas faces, e ao fundo, com o movimentar do carro, percebe-se a cidade. Vejamos a seguir a transcrição deste diálogo:

Recorte 08: cap. 14, 00: 01:55 – 00: 02: 52’

Cosme: Doutor Batista, hoje o senhor se trocou tão depressa que nem parece um banqueiro. Batista: Minha pressa é pura saudade Cosme, pura saudade. Tenho tanta vontade de ver a Joana e meus filhos. Sabe, às vezes penso que seria tão bom seu eu pudesse viver com ela, como marido e mulher. Cosme: Mas doutor, o senhor é viúvo, é um homem desimpedido, se quiser casar com ela é só pedir! Batista: Não, não, eu não posso, eu tenho minha posição social. A Joana é uma simples lavadeira. O que a sociedade iria dizer? Minhas ambições políticas estariam acabadas para sempre! Cosme: Isso é verdade! E dona Catarina que já é tão brava, na havia de perdoar o senhor! Batista: Nem a Bianca me perdoaria! Como explicar que tenho outra família, outros filhos? È melhor continuar assim, mesmo porque se a Joana fosse rica, talvez perdesse essa simplicidade, essa pureza, que me traz tanta felicidade.

Em um casamento, no início do século XX, as famílias prezavam pela igualdade econômica entre as famílias dos noivos e, como sabemos, o romance entre Batista e Joana é um encontro de indivíduos pertencentes a diferentes classes. Batista evidencia a importância de viver um amor público, levar uma vida como marido e mulher assumidos diante da sociedade, mas que por questões políticas e sociais ele não pode assumir esta relação. Cosme, seu motorista, questiona sobre a impossibilidade disso, por ser Batista viúvo e desimpedido, acreditava que não haveria problemas. Os problemas que Batista evita são devido ao questionamento da sociedade sobre o envolvimento dele, um homem de posição social, com uma simples lavadeira. A preocupação de Batista é o que a sociedade irá dizer de seu segundo casamento e, além disso, ele acredita que assumir uma relação com Joana, a lavadeira, atrapalharia a sua candidatura a prefeito, pois é banqueiro de renome na cidade de São Paulo. Outro problema que Batista acredita enfrentar é sobre o posicionamento das filhas em relação à nova família. Como percebemos, a relação entre Batista e Joana enfrenta um problema social, no entanto, está enraizada por um sentimento verdadeiro baseado no amor.

Batista afirma em seu diálogo com Cosme, que pretende continuar assim, com seu relacionamento ocultado socialmente, e acredita que se Joana fosse rica, talvez perdesse essa simplicidade, essa pureza, que traz a ele tanta felicidade. Batista encontra a felicidade na simplicidade de Joana, que considera uma mulher pura, que possui sinceridade em um amor não fingido, sem traições e sem interesses econômicos, tendo em vista que ela não sabia a real condição econômica de Batista. Walcyr Carrasco, juntamente com o diretor Walter Avancini, optaram por ambientar todos os subenredos conforme a época e a sociedade da década de 20, de forma a reproduzir o comportamento de toda uma sociedade, além de acontecimentos históricos como a transformação da arte, a luta pelo voto feminino e a mudança no papel da mulher. O foco feminista aparece já na primeira cena do primeiro capítulo da telenovela, na qual um grupo de mulheres, do qual Catarina faz parte, clama: “Abaixo à supremacia dos homens, pelo voto, pela igualdade dos sexos, igualdade, igualdade, igualdade”. A imagem de mulher independente é, aparentemente, mais reforçada na telenovela quando comparada à peça. Na telenovela, a primeira cena do primeiro capítulo é a de um movimento feminista, uma característica da adequação espacial da peça ao contexto brasileiro da década de 20, mais precisamente, de 1927, época em que vive a personagem Catarina, que é filha de um banqueiro, e não de um mercador, como em Shakespeare. A profissão de mercador na década de 20 não era mais uma profissão de prestígio; por isso, é substituída pela de banqueiro. Considerando que a telenovela é ambientada na década de 20, Catarina aparece no capítulo III liderando um movimento feminista a favor das mulheres no mercado de trabalho. Ela grita em praça pública: “Homens no fogão. Mulheres na profissão”. Na década de 20, surgiram os primeiros movimentos feministas no Brasil em busca de melhor reconhecimento das mulheres no mercado de trabalho. Parte-se, nesse sentido, da hipótese de que a telenovela tenha sido bem aceita pelo público (fato confirmado pela audiência) por ser baseada em uma história pertencente a sociedade brasileira e com temáticas sociais pertinentes ao debate e, também por ter sido comercializada como uma comédia romântica, o que acontece com a maioria das adaptações literárias, tanto cinematográficas quanto televisivas. Assim como A megera domada, comédia romântica que apresentar uma crítica subliminar às relações entre homem e mulher na sociedade patriarcal do século XVI, O cravo e a rosa também segue esta proposta em relação a sociedade brasileira.

Na telenovela, Petrúquio e Catarina têm, no desfecho, filhos gêmeos (um casal), estereótipo de uma família feliz. Catarina se revela uma mãe exemplar (no casamento de Bianca, ela mostra estar preocupada com o fato de ter de deixar os filhos com uma babá) e eles são felizes para sempre. Para completar esse ar romântico, depois do beijo dos dois na cena final, um casal de beija-flores sobrevoa a fazenda carregando um camafeu dourado e o abrem, revelando as fotos de Petrúquio e Catarina. Em justificativa à forma como adaptou a história shakespeariana, Carrasco afirma: “Eu atualizei o cerne da telenovela, colocando uma Catarina mais simpática em seus ideais, com os quais muitas telespectadoras vão se identificar”. A opção acaba por construir uma Catarina muito diferente da altiva mulher concebida por Shakespeare, que se mantém fiel a seu ideal feminista. Na obra de Carrasco, ao final da telenovela, há uma (ex-) feminista que está feliz e acomodada no papel de esposa e mãe. Ao observarmos esta transformação, concluímos que, dentro do casamento, Carrasco privilegia as ações românticas e direciona para um desfecho que resulta em uma família feliz, o qual parece, ainda, encontrar eco na mentalidade da família brasileira. Apesar dos séculos que separam a peça de Shakespeare de sua releitura por Carrasco, o ideal de uma família constituída pela mulher no papel de esposa e mãe submissa continua bem vivo.

ANÁLISE COMPARATISTA ENTRE AS OBRAS: REFLEXÕES CONCLUSIVAS

No presente trabalho, nos propusemos a analisar a representação do casamento na obra A megera domada, escrita por William Shakespeare, e, também em uma adaptação para a telenovela da obra – O cravo e a rosa, escrita por Walcyr Carrasco, o qual adaptando o texto de Shakespeare ao contexto brasileiro. Embora a telenovela retroceda à década de 1920, a qual escolhe como referência temporal, na verdade, na qualidade de telenovela de época, comenta o presente, ou seja, a sociedade brasileira do final do século XX, a partir de um momento do passado. Em um primeiro momento, apresentamos um breve panorama da história da sociedade renascentista inglesa do século XVI para que pudéssemos entender o posicionamento da mesma sobre o casamento. Além disso, estudamos algumas relações sociais que ocorreram em virtude do casamento, tais como: a figura da mulher, o modelo de sociedade patriarcal, a constituição da família, os quais são temas importantes que influenciaram a sociedade, com o passar dos anos, para uma nova visão sobre o matrimônio. Estudamos as relações matrimoniais na obra de Shakespeare e, como resultado, pudemos perceber que o casamento foi tratado como uma instituição que mantinha o controle social, econômico e familiar e que através dele as demais relações eram submetidas. Do mesmo modo, estudamos o comportamento da sociedade brasileira a fim de averiguarmos se alguns desses fatores sociais ainda estariam presentes no fim do século XIX e início do XX. Pudemos perceber a realidade vivida no casamento em tempos passados e em sociedades distintas. Através deste processo comparatista, estudamos o casamento representado na telenovela O cravo e a rosa e concluímos que Carrasco, em sua abordagem sobre o casamento, representou-o a partir de uma perspectiva de transformações políticas e dos movimentos sociais ocorridos no Brasil em 1920. O ano 2000, quando O cravo e a rosa teve sua primeira exibição, foi marcado pela retomada dos movimentos sociais no Brasil, como Maria da Glória Gohn afirma:

Já nos anos 90, existiam inúmeras organizações, fundações, associações e movimentos criados para promover o desenvolvimento econômico local, impedir a degradação ambiental, defender os direitos civis e atuar em áreas

onde o Estado é incipiente, como em relação aos idosos, à mulher, aos índios e aos negros. (GOHN, 2000, p. 21).

Nesse sentido, a telenovela propôs uma releitura dos movimentos sociais acorridos na década de 1920. Veremos agora algumas características que pudemos relacionar entre os gêneros. Salientamos que, mesmo considerando as características de cada gênero, a análise terá ênfase nos aspectos sociais retratados nas diferentes as obras e em diferentes contextos. A megera domada possui um número restrito de personagens e os enredos estão em torno das personagens Petrúquio, Catarina, Bianca, Batista, pretendentes de Bianca, servos e os personagens do prólogo: um lorde, Cristóvão Sly, hoteleira, comediantes, caçadores e servidores. Já a telenovela, por ser um enredo mais complexo e de maior duração, possui maior número de personagens. Com esta característica é possível desenvolver outros enredos, bem como a representação de um número maior de personagens mulheres, com ideais diferenciados. A grande duração do gênero possibilita, também, representar os diversos setores da sociedade, e a representação do casamento em diversas camadas da sociedade. Os nomes de quase todos os personagens são diferentes. Na peça, os pretendentes de Bianca são três: Hortênsio, Lucêncio e Grêmio; na telenovela são dois: Heitor que tinha interesses no casamento motivado pelo fator econômico, e o professor Edmundo que tinha sentimento verdadeiro e amor por Bianca. A diminuição dos pretendentes representa a dignidade da mulher do século XX, período em que as mulheres passavam a conquistar direitos e já não eram submetidas às negociações de casamento do modo como eram vistas no período elisabetano. O pai de Catarina na peça é Batista Minola e na telenovela Nicanor Batista. Já Petrúquio na telenovela é Julião Petrúquio. As adaptações dos nomes correspondem a nomes brasileiros, com os quais o ouvinte brasileiro pode se identificar, porém os nomes dos protagonistas, assim como os de alguns personagens primários, permaneceram os mesmos, para garantir a associação com a obra de Shakespeare. Tramas secundárias são criadas e se entrelaçam no desenrolar da história. Esta adaptação possibilita o estudo ampliado das relações amorosas na telenovela. Enquanto em Shakespeare três casamentos foram retratados, os quais se configuram, especialmente, com base no fator econômico, Carrasco insere outros pares nos quais

pudemos estudar e identificar uma nova visão sobre o casamento, e aqueles que são baseados no amor como principal motivação. Além disso, na telenovela é possível identificar a traição e a separação, em alguns dos casamentos, questões que não foram abordadas na peça, mas que são atinentes à realidade social brasileira do século XX. Entendemos que, ao considerarmos as características dos gêneros, e as adaptações do teatro para a telenovela, percebemos que estas possibilitaram a contextualização das respectivas sociedades e a adaptação da peça a um contexto histórico distinto. Por outro lado, a partir da proposta comparatista foi possível identificar as diferentes concepções de Shakespeare e de Carrasco sobre o casamento. Tanto a peça quanto a telenovela enfatizaram o casamento e, com grande ênfase, representaram as lutas de poder que ocorrem dentro dos relacionamentos conjugais. A peça promove ideias do século XVI, típicas do que era tomado como relações adequadas entre homem e mulher no matrimônio. No entanto, a peça também é oportuna para criticar e pôr em evidência algumas das atitudes difundidas sobre os casamentos arranjados e intermediados entre homens, sem qualquer iniciativa de mulheres, e as formas como homens e mulheres lutam por posições de poder. Uma dessas críticas é apresentada através dos personagens do sexo masculino, que tratam o casamento como uma transação financeira ou de negócios, na qual as mulheres são mercadorias para serem comercializadas. Desse modo, as obras em análise enfatizaram como as considerações econômicas influenciam o casamento. No entanto, Shakespeare e também Carrasco inovaram em relação às estruturas sociais de suas épocas quando representaram o casamento de pessoas de diferentes classes sociais, entre camponeses e moradores da cidade, e, no caso de Carrasco, entre o banqueiro e a lavadeira. Na peça, enquanto Catarina e Petrúquio, marido e a esposa, conduzem o relacionamento conjugal após o casamento, o relacionamento de namoro de Bianca é negociado entre o futuro marido e o pai de sua futura esposa. Como tal, o casamento se torna uma transação envolvendo a transferência de dinheiro. Já na telenovela, esta perspectiva tem um novo direcionamento por Carrasco, e mesmo que o fator econômico inicialmente esteja em destaque para alguns pares, como Petrúquio e Catarina, ou apareça como problema social, como no relacionamento de Batista e Joana, no decorrer da trama o amor direciona os encontros amorosos, que resultam em casamento. Isso, como já comentado, parece satisfazer a mentalidade das espectadoras da novela, que era apresentada às 18h, horário que, provavelmente, é constituído de uma audiência

feminina mais jovem ou que não trabalha, dado que neste horário aqueles que detêm uma atividade remunerada fora de casa muitas vezes encontram-se ainda em processo de deslocamento do trabalho para o lar. Em relação ao casamento, percebemos que o dote não mais é um requisito para os contratos de casamento; no entanto, o condicionamento social ainda contribui ou interfere em algumas relações representadas na telenovela, como acontece com Batista e Joana, Cornélio e Dinorá e mesmo Edmundo, que, devido a sua condição social, tinha vergonha de declarar seu amor a Bianca. Atrelado ao casamento, estudamos as relações que dele decorrem para o processo de estruturação social. Entre elas, o papel da mulher no casamento e na sociedade. Apesar de sua importância em determinados papéis sociais, de maneira geral, as mulheres eram vistas como uma ameaça, e por isso deveriam ser mantidas sob controle. Na peça de Shakespeare, os assuntos eram tratados pelos homens, e na telenovela, em pleno século XX, a revista feminina era controlada por homens. Tanto na peça quanto na telenovela, as mulheres desejáveis eram aquelas fracas, submissas, caridosas, silenciosas, virtuosas e recatadas, e suas tarefas eram as de cuidar da casa, do marido e dos filhos. Aquelas mulheres que transgrediam as normas e desequilibravam a ordem social vigente eram indesejáveis, como o caso das feministas Lourdes e Bárbara; no entanto Catarina, mesmo sendo uma simpatizante do movimento feminista, era almejada, devido a sua fortuna. Com o passar do tempo e as mudanças sociais, econômicas e políticas, tornou- se inevitável que as mulheres ganhassem um papel de destaque na sociedade. O movimento feminista, em suas diversas ondas, só acelerou o processo. Todavia, algumas noções estereotipadas em relação às mulheres não foram abolidas e permanecem até hoje. Em relação ao casamento, na peça, Petrúquio se casa para viver feliz em Pádua com fortunas advindas do casamento, enquanto na telenovela ele se casa pelo dote e por amor. Batista, tanto na peça como na telenovela é viúvo, no entanto somente na telenovela possui esposa e filhos escondidos da família, porque sua esposa Joana é humilde e sem estudos. Assim, Batista se casa com Marcela, ex- amante de Petrúquio, e só mais tarde assume a relação com Joana. Na peça, Catarina tem Petrúquio como único pretendente, porém na telenovela há um outro pretendente, o jornalista Serafim, que se envolve na tentativa de interromper a relação de Catarina e Petrúquio. É notável que o jornalista, sendo de

classe alta, tem, como o falido Petrúquio, intenções ao casamento com Catarina também devido às condições econômicas da jovem. Nesse sentido, Carrasco duplica a ênfase na motivação econômica, que perpassa a classe alta e baixa. Com a intenção de conquistar Petrúquio, Lindinha, a empregada dele e, também Marcela, a ex-namorada de Petrúquio, atrapalham o romance dos protagonistas. Nestes casos, ambas por sentimentos amorosos; socialmente, pertencem à mesma classe que Petrúquio. Lindinha não corresponde ao sentimento de Januário, colega de trabalho na fazenda de Petrúquio, mas busca concretizar seu amor pelo patrão. Estas novas tramas, inseridas por Carrasco, representam os perfis de mulheres que buscam a felicidade no amor e no casamento, além do condicionamento social. Catarina se casa obrigada, na peça de Shakespeare, porém na telenovela brasileira, casa-se por solidariedade a Bianca, que está com sopro no coração e sonha em se casar. Esta diferença representa uma nova concepção de mulher; a solidariedade de Catarina por sua irmã, a ponto de ceder ao casamento, indica um novo conceito de mulher. Certamente esta mudança de personalidade de Catarina, da peça para a telenovela, foi possível devido às possibilidades da mulher tomar decisões, segundo seus próprios desejos. Contudo, paradoxalmente, permanece o adjetivo empregado com para descrever Catarina, embora adaptado ao contexto e cultura brasileiros: ao invés de megera, ela é apresentada como fera e, portanto, uma pessoa a ser temida. Ainda na telenovela, Catarina faz exigências a Petrúquio: dormir em quartos separados e viver como rainha; ele as aceita e se casam. Este acordo para o casamento indica uma diferente posição das mulheres do século XX em relação às do século XVI, que eram controladas pelos maridos. Nesse sentido, a presença de argumentos feministas está presente na telenovela. Porém, como já registrado, o movimento feminista, como representado pelas personagens Lourdes e Bárbara, perde em intensidade e coerência, já que estas se dizem feministas e independentes dos homens e assumem posicionamentos em prol das mulheres, mas depois verifica-se que seus envolvimentos românticos se assemelham ao das outras mulheres, não declaradas feministas. Bianca, na peça, tem dois professores, mas na telenovela tem apenas um, pelo qual se apaixona e casa com a permissão do pai. No entanto, ela tem dois pretendentes, o Heitor e o professor. Em relação a esta trama, em Shakespeare os dois professores são apaixonados e declaram amor por Bianca; Carrasco opta por um professor, Edmundo, que não tem liberdade de demonstrar seu amor a Bianca e, além disso, é obrigado a

escrever poemas de amor, a pedido de Heitor, o qual proíbe uma possível aproximação romântica entre ele e Bianca. Carrasco, direciona a trama no sentido de que, a par dos interesses econômicos por parte de Heitor, o amor verdadeiro de Edmundo aconteça paralelamente à trama com motivação monetária. A partir da análise dos comportamentos entre os personagens em ambos os objetos, podemos perceber outras mudanças em O cravo e a rosa, oportunizadas por uma representação social que se distancia por aproximadamente quatro séculos da obra de Shakespeare, e também pelo novo contexto geográfico. A presença de múltiplos enredos, na telenovela, que mostram os romances e as separações entre os pares demonstram que o casamento não se constitui apenas sobre contratos, mas que as regras decorrentes dele são flexíveis. Podemos verificar que a mulher representada em O cravo e a rosa tem maior influência nas decisões sobre o casamento, como representada na decisão de Bianca em se casar com Edmundo, e na decisão de Catarina em se casar com Petrúquio, por solidariedade para com a irmã Bianca. Isto indica que, no momento histórico brasileiro representado na telenovela, a mulher estava conquistando seu espaço e adquirindo direitos. Na peça de Shakespeare, uma das possibilidades de compreensão do enredo é a submissão da mulher, submetida ao casamento por obrigação do pai e submissa ao marido, a quem serve e diante do qual declara submissão. Já na telenovela, o enredo encerra-se com uma mulher feliz, realizada e mãe de família. Assim, em relação ao movimento feminista destacado e louvado no capítulo inicial da telenovela, concluímos que, no decorrer da mesma, este movimento não continua sendo exaltado e perde forças. Observamos isto no modo como Carrasco direciona as personagens feministas. Catarina, defensora do movimento, casa-se e constitui família, as amigas Lourdes e Bárbara apaixonam-se por Fábio, mas, comprometidas com o movimento, escondem o romance. Elas são tratadas como objetos de engano, o que as torna fúteis em seus papeis como feministas. Pudemos perceber que, em O cravo e a rosa, Carrasco instigou-nos a uma releitura da peça de Shakespeare, tendo a sociedade brasileira como cenário histórico. Nesse sentido, a visão sobre o casamento permanece, mas na telenovela Carrasco pode representar o movimento feminista, a luta das mulheres e, através da tram,a criou um novo olhar sobre os relacionamentos entre as classes sociais. Em ambos os gêneros, a ênfase sobre o relacionamento conjugal permanece e, de acordo com os autores William

Shakespeare e Walcyr Carrasco, o casamento é uma instituição necessária para a constituição da família; em ambos os autores podemos entender que a cada um dos cônjuges são atribuídos papeis que definem as regras normatizadas pelo casamento. Apesar dos cerca de quatrocentos anos que separam a peça de sua adaptação, parece que os papeis sociais esperados da mulher no casamento assemelham-se aos vigentes na época elisabetana: enquanto o homem tem liberdade para ocupar cargos, conduzir espaços sociais, cabe à mulher assumir a responsabilidade com as tarefas da casa, cuidados com os filhos e atenção ao marido. Em Carrasco, a sociedade patriarcal tem menos poder em um casamento, como representado nos pares aqui estudados. O estudo sobre o casamento a partir das obras já mencionadas nos possibilitou um olhar crítico sobre as diferentes sociedades e nos habilitou a estudar a peça teatral e a telenovela como gêneros. Nesse sentido, justificamos a escolha dos gêneros, pois a função social deles não é apenas para o entretenimento, mas resultaram em debates e tramas que têm interrogado as estruturas sociais. Na forma teatral, Shakespeare pode retratar um contexto histórico da sociedade elisabetana, assim como Carrasco faz com a sociedade brasileira. Enquanto gêneros, o teatro contribuiu para um debate crítico sobre a mulher, no século XVI até o presente momento e, como proposta deste trabalho, para uma análise sobre o modo em que o casamento era tratado, tanto em questões contratuais tratadas pelos familiares, quanto em relações matrimoniais e constituição da família. Do mesmo modo, a telenovela enquanto entretenimento, tem interrogado e feito refletir sobre este tema, o casamento. Esse gênero tem ocupado espaço na casa de várias famílias brasileiras, que mergulham nas histórias de amor, nos romances, nas injustiças sofridas pelos personagens. Dessa forma, percebemos a importância de relacionar literatura com a telenovela brasileira, visto que pessoas de todos os segmentos sociais, pobres, ricos, homens, mulheres, jovens, crianças, com maior ou menor ou sem escolaridade, e residentes nas mais diferentes regiões do país, discutem a temática social pautada pela telenovela.

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