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Canção: a palavra

cantada Ilustração: Paulo Sérgio Talarico

Júlio Cesar Valladão Diniz O produtivo diálogo entre sonoridades, textualidades e imagens E mais:

Santuza Cambraia Naves >> Massimo Di Felice: A estreita correlação entre a música As redes digitais vistas a partir de e as questões culturais, sociais e políticas uma perspectiva reticular

380 Alexandre Graça Faria >> José Eustáquio Diniz Alves: Ano XI Decrescimento e a busca de

A palavra escrita, falada e cantada como 14.11.2011 uma sociedade convivial ISSN 1981-8769 realizações da arte literária Canção: a palavra cantada

“Há canções e há momentos Eu não sei como explicar Em que a voz é um instrumento Que eu não posso controlar”

É ao som de e que a IHU On-Line desta semana traz como tema de capa a canção. A “palavra cantada” e a intensa relação entre música, literatura, cultura e sociedade é o assunto desta edição feita em parceria com Pedro Bustamante Teixeira, doutorando do Programa de Pós-Graduação em Letras: Estudos Literários e Representações Culturais da Universidade Federal de Juiz de Fora – UFJF. Contribuem nesta edição os professores e pesquisadores Alexandre Faria, da Universidade Federal de Juiz de Fora, Carlos Sandroni, da Universidade Federal da Paraíba e da Universidade Federal de Pernam- buco, Christopher Dunn, professor de literatura e estudos culturais brasileiros na Tulane University, de Nova Orleans, Estados Unidos, Luiz Augusto de Morais Tatit, professor do Departamento de Linguística da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da USP, Pedro Bustamante Teixeira, supracita- do, Santuza Cambraia Naves, professora no Departamento de Sociologia e Política da PUC-Rio, Walter Garcia da Silveira Junior, professor da área temática de Música do Instituto de Estudos Brasileiros da Universidade de São Paulo – USP, e Júlio Cesar Valladão Diniz, professor e diretor do Departamento de Letras da PUC-Rio. A vítima da violência: testemunha do incomunicável, critério ético de justiça é o tema do artigo de Castor Bartolomeu Ruiz, filósofo e professor dos cursos de graduação e pós-graduação em Filosofia da . Conclui-se, desta maneira, a série de artigos publicados pela IHU On-Line, neste ano, sobre a obra Homo Sacer I, II e III, de Giorgio Agamben. Bruno Lima Rocha, jornalista e cientista político, professor da Unidade de Ciências da Comunicação da Unisinos, á autor do artigo A arqueologia de ideias: a ancestralidade recente do Núcleo de Estudos Interdisciplinares da Globalização Transnacional e da Cultura do Capitalismo – NIEG. “A revolução digital é hoje a última revolução comunicativa que alterou, pela primeira vez na história da humanidade, a própria arquitetura do processo informativo”, constata Massimo Di Felice, professor na Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo onde coordena o Centro de Pesquisa Atopos. Alfredo Culleton, filósofo e coordenador da graduação em Filosofia da Unisinos, expõe a proposta do bacharelado premium nessa área a ser iniciado no primeiro semestre de 2012. O demógrafo José Eustáquio Diniz Alves, professor da Escola Nacional de Ciências Estatísticas – Ence/ IBGE aborda o decrescimento e a busca de uma sociedade convivial, tema que continuará a ser debatido pelo sociólogo e economista francês Serge Latouche, que estará nesta semana no Centro de Pesquisa e Apoio aos Trabalhadores – CEPAT, em Curitiba e na Unisinos nos dias 21 a 25-11-2011. O professor Guilherme Luís Roehe Vaccaro recorda sua trajetória de vida e conta aspectos de sua vivência de seis anos na Unisinos. A ilustração da capa desta edição é de Paulo Sérgio Talarico, cartunista, pintor, caricaturista e ins- trutor de oficinas e desenhista de Histórias em Quadrinhos, nascido em Cataguases e criado em Juiz de Fora, . As outras ilustrações são de Pedro Bustamante Teixeira. A todas e todos uma ótima leitura e uma excelente semana, temperada por um oportuno feriado!

IHU On-Line é a revista semanal do Instituto Humanitas Unisinos – IHU – Universidade do Vale do Rio dos Sinos - Unisinos. ISSN 1981-8769. Diretor da Revista IHU On-Line: Inácio Neutzling (inacio@uni- sinos.br). Editora executiva: Graziela Wolfart MTB 13159 ([email protected]). Redação: Márcia Junges MTB 9447 ([email protected]), Patricia Fachin MTB 13062 ([email protected]) e Thami- ris Magalhães ([email protected]). Revisão: Isaque Correa ([email protected]). Colaboração: César Sanson, André Langer e Darli Sampaio, do Centro de Pesquisa e Apoio aos Trabalhadores – CE- PAT, de Curitiba-PR. Projeto gráfico: Bistrô de Design Ltda e Patricia Fachin. Atualização diária do sítio: Inácio Neutzling, Rafaela Kley e Stefanie Telles. IHU On-Line pode ser acessada às segundas- feiras, no sítio www.ihu.unisinos.br. Sua versão impressa circula às terças-feiras, a partir das 8h, na Unisinos. Apoio: Comunidade dos Jesuítas - Residência Conceição. Instituto Humanitas Unisinos - Diretor: Prof. Dr. Inácio Neutzling. Gerente Administrativo: Jacinto Schneider (jacintos@unisinos. br). Endereço: Av. Unisinos, 950 – São Leopoldo, RS. CEP 93022-000 E-mail: [email protected]. E x p e dFone: i e n t e 51 3591.1122 – ramal 4128. E-mail do IHU: [email protected] - ramal 1173. Leia nesta edição

PÁGINA 02 | Editorial

A. Tema de capa

» Entrevistas PÁGINA 05 | Alexandre Graça Faria: A palavra escrita, falada e cantada como realizações da arte literária PÁGINA 08 | Carlos Sandroni: , MPB e Mangue Beat: a cultura em permanente transformação PÁGINA 10 | Christopher Dunn: Fazer música: uma prática de cidadania PÁGINA 12 | Luiz Tatit: A canção fica melhor com a passagem do tempo PÁGINA 14 | Pedro Bustamante Teixeira: O samba como símbolo de brasilidade PÁGINA 17 | Santuza Cambraia Naves: A estreita correlação entre a música e as questões culturais, sociais e políticas PÁGINA 19 | Walter Garcia: O complexo caminho da bossa nova ao rap PÁGINA 20 | Júlio Cesar Valladão Diniz: O produtivo diálogo entre sonoridades, textualidades e imagens

B. Destaques da semana

» Entrevistas da Semana PÁGINA 24 |Massimo Di Felice: As redes digitais vistas a partir de uma perspectiva reticular PÁGINA 30 |Alfredo Culleton: Um bacharelado premium para a Filosofia

» Livro da Semana PÁGINA 32 | Rodrigo Coppe: Deus, uma invenção?

» Artigo da Semana PÁGINA 34 | Castor Bartolomé Ruiz: A vítima da violência: testemunha do incomunicável, critério ético de justiça

» Coluna do Cepos PÁGINA 38 | Bruno Lima Rocha: Arqueologia de ideias: a ancestralidade recente do NIEG

» Destaques On-Line PÁGINA 40 | Destaques On-Line

C. IHU em Revista

» Eventos PÁGINA 45 | José Eustáquio Diniz Alves: Decrescimento e a busca de uma sociedade convivial PÁGINA 47 | Elenita Malta Pereira: Luiz Henrique Roessler, um protetor da natureza

» IHU Repórter PÁGINA 50 | Guilherme Luís Roehe Vaccaro

SÃO LEOPOLDO, 14 DE NOVEMBRO DE 2011 | EDIÇÃO 380   SÃO LEOPOLDO, 14 DE NOVEMBRO DE 2011 | EDIÇÃO 380 A palavra escrita, falada e cantada como realizações da arte literária

“Qual canção, qual literatura ou qual arte, das que se fazem hoje em dia no país, consegue romper os limites da recepção na esfera privada e deslocar a reflexão e o debate para e sobre o domínio pú- blico?”, questiona Alexandre Graça Faria

Por Graziela Wolfart e Pedro Bustamante Teixeira

m entrevista concedida por e-mail para a IHU On-Line, o professor Alexandre Faria, da Universidade Fe- deral de Juiz de Fora, afirma que, no caso brasileiro, “a inserção da canção nos estudos literários é, antes de tudo, uma estratégia política de formação de leitor e de construção de autoestima em relação à pró- pria cultura”. Ele acredita que “não precisamos esconder ou tratar como menor todo um saber popular que circula nos , valsas e boleros cantados por nossos avós ou pais, ou no funk e no rap das novas Egerações”. Para Alexandre “como as artes em geral, a literatura não pode ser reduzida a um olhar historiográfico, mas deve circular como elemento de desautomatização e de ampliação das percepções e dos sentidos, de forma que o leitor possa, com sua leitura, contribuir com alternativas para a realidade utilitária, pragmática e mercantil que limita a compreensão do humano”. Alexandre Faria graduou-se em Letras pela Universidade do Estado do – UERJ. Em seguida cursou mestrado em Literatura Brasileira na PUC-Rio. Publicou o livro Literatura de subtração: experiência urbana e lite- ratura contemporânea (Rio de Janeiro: Papel Virtual, 1999), resultante de sua dissertação de mestrado. Em 1998, ingressou no doutorado em Letras, também na PUC-Rio. Desenvolveu pesquisa sobre a representação da identidade nacional na cultura brasileira contemporânea, que resultou na tese O Brasil presente: construções-ruínas do imaginá- rio nacional contemporâneo. No Rio de Janeiro, atuou como docente em cursos livres e no ensino superior. Em 2004, ingressou na Universidade Federal de Juiz de Fora, Departamento de Letras – ICHL, onde está atualmente. Confira a entrevista.

IHU On-Line – Como você analisa a reconhecer que parte significativa da literatura se restringisse à produção inserção da canção nos estudos lite- tradição lírica no país se consolidou escrita. Ora, na medida em que o país rários? Será que, no caso brasileiro, pela oralidade. Seja através da pala- vence o analfabetismo e que as pro- incluir a canção unicamente como vra falada ou cantada, é forte a cir- postas de inclusão, através de ações objeto de análise dos estudos cultu- culação e mesmo a construção da ex- afirmativas, vão reconfigurando os rais é suficiente para se compreen- pressão literária e poética em saraus, valores e as relações sociais, insistir der a canção no século XX, ou ainda feiras, etc. A base desse fato poderia nessa restrição seria continuar com a a literatura brasileira no século XX? ser vista no histórico analfabetismo perspectiva elitista, pois o saber lite- Alexandre Faria – No caso brasileiro, da maioria da população brasileira, rário estaria associado a uma forma de a inserção da canção nos estudos lite- mas me parece mais produtivo loca- escolarização e de ascensão sociocul- rários é, antes de tudo, uma estraté- lizá-la na elitização da palavra escri- tural. Para recorrer a uma dicotomia gia política de formação de leitor e de ta. De fato, a quase inacessibilidade oswaldiana, a da escola e da floresta, construção de autoestima em relação do letramento e da formação escolar, através da qual o poeta modernista à própria cultura. Mas não deixa de ser para significativa parcela de negros e busca sintetizar elementos díspares da também uma opção de quem busca pobres no Brasil, foi o que contribuiu nossa formação cultural, estaríamos alguma coerência teórica e histórica tanto para a permanência do analfa- insistindo apenas em nosso lado esco- em relação à proposta de um conceito betismo como para o afastamento das la. Reconhecer a tradição oral, falada mais amplo de literatura. formas orais de literatura do cânone ou cantada, é uma forma de investir Como estratégia política, significa escolar. Isso permitiu que a ideia de também em nosso lado floresta. E isso

SÃO LEOPOLDO, 14 DE NOVEMBRO DE 2011 | EDIÇÃO 380  tem um alcance político muito signi- dos para contos ou romances. Há ain- ficativo com relação à construção de “Parte significativa da da fortes evidências de que os jovens uma autoestima nacional. Não preci- poetas iniciaram sua formação através samos esconder ou tratar como menor tradição lírica no país se da canção e só depois foram procurar todo um saber popular que circula nos a poesia nos livros. Há ritmos, corte sambas, valsas e boleros cantados por consolidou pela de versos, recursos de rimas, típicos nossos avós ou pais, ou no funk e no da canção, mas pouco presentes na rap das novas gerações. oralidade” poesia modernista, que caracterizam as primeiras realizações dos poetas O gênero lírico não com a música? Nesse sentido, o iniciantes que apresentam suas cria- Do ponto de vista teórico e da histó- currículo disciplinar das escolas tradi- ções nas oficinas que eventualmente ria da literatura, sabe-se que o gênero cionais ainda está muito aquém do que ofereço. lírico originalmente foi realizado atra- se espera para a formação de leitores, No caso de autores das periferias vés do canto, em paralelo com a mú- consequentemente de cidadãos. urbanas que venho estudando atual- sica (e entre os gregos antigos com a Diante dessa constatação, e voltando à mente, é muito evidente a referên- dança também). O próprio termo líri- pergunta, “compreender a canção no cia a elementos da cultura de massa. co deriva de lira, instrumento naquela século XX, ou ainda a literatura brasi- Lembro agora a citação do Ultraman época usado para acompanhar o canto leira no século XX” não podem ser os em um poema do Sérgio Vaz. Há tam- dos poemas. Da mesma forma, na Ida- objetivos da inserção desses saberes bém um diálogo muito estreito entre de Média é riquíssimo o repertório de no currículo. Como as artes em geral, a literatura das periferias e a cultura cantigas dos trovadores. Foi somente a literatura não pode ser reduzida a Hip Hop. Não há dúvida de que é forte com a Renascença (e a invenção da um olhar historiográfico, mas deve cir- o apelo à tradição oral e que o próprio imprensa, é claro) que a poesia foi se cular como elemento de desautomati- domínio da escrita é objeto de proble- deslocando da voz e se fixando na pá- zação e de ampliação das percepções matização em muitos textos, dos quais gina. É claro que a notação linguística e dos sentidos, de forma que o leitor vale citar a peça Da cabula, de Allan se fixou e se difundiu de forma muito possa, com sua leitura, contribuir com da Rosa. Por outro lado, também é mais ampla do que a escrita musical. alternativas para a realidade utilitá- frequente na literatura das periferias Por isso muito se perdeu da composi- ria, pragmática e mercantil que limita a referência à leitura de autores do ção antiga e medieval escrita para voz a compreensão do humano. cânone literário, principalmente os ou instrumento. E continuaria se per- realistas e neorrealistas, mais críticos dendo não fossem os meios técnicos de IHU On-Line – Podemos dizer que ain- do sistema social. gravação e difusão, que garantiram a da há entre os estudantes, de todas popularização massiva da informação as classes sociais, a formação de um IHU On-Line – O que a canção brasi- poético-musical. repertório a partir do contato com a leira traz da literatura? O que a lite- Por outro lado, apenas defender que a canção? Você percebe essa formação ratura traz da canção? canção é uma forma de literatura não em seus alunos, na literatura produ- Alexandre Faria – Essas questões par- resolve a questão descritiva ou analíti- zida a partir das periferias do Rio e tem de uma lógica a qual tenho me ca do objeto. É claro que não se pode de São Paulo? esforçado para evitar. Tendo a consi- ler uma canção levando em conta ape- Alexandre Faria – De forma geral, in- derar tanto a palavra escrita como a nas sua camada verbal. Há toda uma dependentemente de classes sociais, falada e a cantada como realizações informação melódica, rítmica, harmô- percebo que o repertório do estudan- da arte literária. Há literatura escrita nica, pertencente ao domínio da mú- te é formado pelos meios de comuni- cação de massa, não necessariamente Ultramen: banda brasileira de rock and roll, sica, que deve ser abordada. E se se formada em Porto Alegre, RS. É composta por tratar de uma apresentação ao vivo? apenas com a canção. Se o referencial Tonho Crocco (vocal), Zé Darcy (bateria), Júlio Porto (guitarra), Pedro Porto (baixo), Marcito Elementos da performance cênica do lírico, por exemplo, está nas canções, o narrativo e o dramático estão no ci- e Malásia (percussão), DJ Anderson (scratches) intérprete e/ou da banda também po- e o músico convidado (teclado). dem interferir na leitura. Ora, sempre nema e na telenovela. Isso é algo que Surgida em 1991, estréia com o álbum honôni- mo em 1998. Em 2008 a banda pára por tempo foi ponto pacífico a vocação interdisci- se reflete, inclusive, em novos auto- res e em novas investidas editoriais. indeterminado e sem previsão de voltar. (Nota plinar da literatura. Com exceção dos da IHU On-Line) exageros de algumas correntes críticas É cada vez mais frequente a obser-  Sérgio Vaz: poeta brasileiro, natural de São Paulo, idealizador do maior movimento de do século XX, que almejavam a formu- vação de jogos alusivos, na literatura contemporânea, que estão em franco literatura periférica do Brasil – o Cooperifa. lação de uma ciência da literatura, (Nota da IHU On-Line) de natureza exclusivamente textual e diálogo com os meios de comunicação  Allan Santos da Rosa: escritor brasileiro no movimento de literatura das “beiradas paulis- linguística, sempre foi comum que o de massa, especialmente com a TV. Muitas narrativas tangenciam o rotei- tanas”, integrante do grupo de capoeira ango- leitor de literatura buscasse diálogos la Irmãos Guerreiros e do Sarau da Cooperifa, com outros saberes, como a sociologia, ro, por exemplo. Da mesma maneira, organizador do selo Edições Toró. É mestrando canções e filmes originais são adapta- em Cultura e Educação na Universidade de São a psicanálise, a filosofia, etc. Por que Paulo – USP. (Nota da IHU On-Line)

 SÃO LEOPOLDO, 14 DE NOVEMBRO DE 2011 | EDIÇÃO 380 e oral. Ambas têm a mesma importân- cia. Prefiro dizer que não há permuta entre elementos do mesmo ser. Falar da contribuição de uma à outra leva ao risco de hierarquizar os discursos a partir de valores e preconceitos. Pre- firo evitá-lo. Não existiria Guimarães Rosa se não fosse a riqueza da orali- dade brasileira. Também não existiria sem a palavra escrita e a literatura francesa. É claro que ler com os ouvidos requer uma habilida- de específica para a qual o leitor nem sempre teve formação adequada. E a grande vantagem de aproximá-las em um mesmo escaninho disciplinar é o fato de ampliar a possibilidade da for- mação de leitores.

IHU On-Line – Quais são as relações entre o movimento modernista bra- sileiro e a canção produzida nos anos música urbana), Oswald, Drummond, do nosso modernismo literário. Como 1960? Para onde foi o modernismo Bandeira, Cabral, e mesmo prosado- previra Oswald, a massa, enfim, comia brasileiro? res, como Guimarães Rosa e Clarice seus biscoitos finos. Nesse sentido, um Alexandre Faria – No caso específico Lispector. Fenômeno semelhante se dá ciclo iniciado em 1922 encontra seu clí- do Brasil, há uma geração de compo- com o Cinema Novo. É forte a presença max em 1968. Nesse período funda-se e sitores com forte formação literária. de diretores que irão adaptar as obras difunde-se uma tradição estética e po- Chico Buarque, , Fer- dos modernistas. Dessa forma, entendo lítica para o Brasil. De lá pra cá, o que nando Brant, Aldir Blanc, Fausto Nilo, que as realizações culturais dos anos aconteceu na cultura brasileira ainda Tom Zé são alguns dos nossos composi- 1960/1970 foram processos de demo- não está bem respondido. Há bons ma- tores herdeiros diretos da tradição lite- cratização, disseminação, massificação peamentos dos anos 1970/1980, mas rária modernista. Estão em suas letras nenhuma análise de fôlego ainda surgiu Mario (que também era músico, porém  Oswald de Andrade (1890-1954): poeta, ro- mancista e dramaturgo. Nasceu em São Paulo, para dar conta de como se conjugaram pensava a cultura popular mais em di- e estudou na Faculdade de Direito do Largo fatos políticos, culturais, sociais, para reção ao folclore do que em função da São Francisco. Sua poesia é precursora do mo- resultar no mundo que vivemos hoje. vimento que marcou a cultura brasileira na década de 1960, o concretismo. (Nota da IHU Muitos críticos insistem em julgar ne-  João Guimarães Rosa (1908-1967): escritor, On-Line) gativamente a qualidade da produção médico e diplomata brasileiro. Como escritor,  Carlos Drummond de Andrade (1902-1987): cultural mais recente. Não acho essa criou uma técnica de linguagem narrativa e poeta brasileiro, nascido em Minas Gerais. descritiva pessoal. Sempre considerou as fon- Além de poesia, produziu livros infantis, con- avaliação da produção suficiente nem tes vivas do falar erudito ou sertanejo, mas, tos e crônicas. Confira a edição 232 da Revista produtiva. Creio que compreenderiam sem reproduzi-las num realismo documental, IHU On-Line, de 20-08-2007, intitulada Carlos melhor o quadro aqueles que investis- reutilizou suas estruturas e vocábulos, estili- Drummond de Andrade: o poeta e escritor que zando-os e reinventando-os num discurso mu- detinha o sentimento do mundo, disponível sem no estudo das transformações do sical e eficaz de grande beleza plástica. Sua em http://migre.me/qR6O. (Nota da IHU On- sistema de circulação e de recepção obra parte do regionalismo mineiro para o uni- Line) das obras, tentando avaliar o quanto versalismo, oscilando entre o realismo épico Manuel Carneiro de Sousa Bandeira Filho e o mágico, integrando o natural, o místico, (1886-1968): poeta, crítico literário e de arte, que essas transformações interferiram o fantástico e o infantil. Entre suas obras, ci- professor de literatura e tradutor brasileiro. na construção da esfera pública no Bra- tamos: Sagarana, Corpo de baile, Grande ser- Considera-se que Bandeira faça parte da ge- sil. Qual canção, qual literatura ou qual tão: veredas, considerada uma das principais ração de 22 da literatura moderna brasileira, obras da literatura brasileira, Primeiras estó- sendo seu poema Os Sapos o abre-alas da Se- arte, das que se fazem hoje em dia no rias (1962), Tutaméia (1967). A edição 178 da mana de Arte Moderna de 1922. Juntamen- país, consegue romper os limites da re- IHU On-Line, de 02-05-2006, dedicou ao autor te com escritores como João Cabral de Melo cepção na esfera privada e deslocar a a matéria de capa, sob o título “Sertão é do Neto, , Gilberto Freyre e José Con- tamanho do mundo”. 50 anos da obra de João dé, representa o que há de melhor na produ- reflexão e o debate para e sobre o do- Guimarães Rosa, disponível para download em ção literária do estado de Pernambuco. (Nota mínio público? Em certo sentido, buscar http://migre.me/qQX8. De 25 de abril a 25- da IHU On-Line) a resposta a essa pergunta é também 05-2006 o IHU promoveu o Seminário Guima-  Cinema Novo: movimento cinematográfico rães Rosa: 50 anos de Grande Sertão: Veredas. brasileiro, influenciado pelo neo-realismo ita- ter uma orientação crítica para investi- Confira, ainda, a edição 275 da Revista IHU liano e pela “Nouvelle Vague” francesa, com gar sobre a permanência de importan- On-Line, de 29-09-2008, intitulada Machado reputação internacional. Surge em circuns- tes aspectos da tradição modernista. de Assis e Guimarães Rosa: intérpretes do tâncias idênticas ao do movimento homônimo Brasil, disponível em http://bit.ly/mBZOCe. português, também referido como Novo Cine- (Nota da IHU On-Line) ma. (Nota da IHU On-Line) SÃO LEOPOLDO, 14 DE NOVEMBRO DE 2011 | EDIÇÃO 380  Samba, MPB e Mangue Beat: a cultura em permanente transformação

Carlos Sandroni fala sobre a literatura como forma de registro musical, comparando com outras for- mas de resgate das canções do passado, como as partituras e as gravações

Por Graziela Wolfart e Pedro Bustamante Teixeira

o fundo, tradição e modernidade são elementos que têm muito mais interação do que geral- mente se fala. Costuma-se apresentá-los como sendo coisas opostas. Na realidade, um conceito depende do outro. Tradição é uma expressão que começa a ser usada justamente com mais força no sentido que é dado hoje em dia junto com a modernidade. A ideia de tradição é algo que pressupõe uma transformação constante. As coisas, para permanecerem, precisam mudar. “NA alternativa para isso é a morte. E tradição pressupõe a mudança”. A reflexão é do professor e músico Carlos San- droni, em entrevista concedida por telefone para a IHU On-Line. Carlos Sandroni possui graduação em Sociologia pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro – PUC-Rio, mestrado em Ciência Política pelo Instituto Universitário de Pesquisas do Rio de Janeiro e doutorado em Musicologie pela Université de Tours (Universite Francois Rabelais). Atualmente é colaborador da Universidade Federal da Para- íba e professor adjunto da Universidade Federal de Pernambuco. Entre seus livros publicados citamos Mário contra Macunaíma – cultura e política em Mário de Andrade (São Paulo, Vértice, 1988) e Feitiço decente: transformações do samba no Rio de Janeiro, 1917-33 (Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2001). É também compositor e letrista. Algumas de suas produções lítero-musicais foram gravadas por artistas como Adriana Calcanhoto, Olívia Byington, Clara Sandroni e Milton Nascimento. Confira a entrevista.

IHU On-Line – Em que medida a lite- beiro e Aloísio Azevedo. Esses autores, possível tentar enxergar, através dos ratura serve como documento histó- por exemplo, repercutem no seu texto olhos do escritor, alguma coisa do que rico e como as partituras e gravações literário as impressões que lhes foram seria essa vida musical também. Até contribuíram para a formação de causadas por vivências musicais. Outra porque outras fontes às quais a gente uma música popular brasileira? questão é saber até que ponto essa re- recorre para falar da música do passa- Carlos Sandroni – A literatura serve percussão representaria o documento do também não deixam de transfigu- como documento, lembrando que o da vida musical, que é um pouco di- rar. Nunca se alcança o passado em si, registro é feito a partir da maneira ferente, porque essa música que apa- mas sempre através de alguma fonte como o autor do texto literário vê ou rece no texto vem transfigurada pela que o transfigure. Do mesmo jeito que repercute os elementos musicais que experiência do autor e pela escrita recorremos a partituras, recorrem-se insere. Temos no Brasil uma série de literária, que não é a própria música, também a escritores. A música do sé- escritores que falaram, de uma manei- mas a transfiguração feita pelo autor culo XIX, quando não tinha gravação, ra ou outra, sobre música: o próprio literário. Com essa ressalva, ainda é é uma presa arisca, difícil de alcançar. Machado de Assis, Freire Jr., Julio Ri- Com relação às partituras, também Academia Brasileira de Letras. Confira a entre- são uma fonte muito rica. No entanto,  Joaquim Maria Machado de Assis (1839- vista especial realizada pela IHU On-Line com 1908): escritor brasileiro, considerado o pai do Maílde Trípoli, em 20-04-2007, no link http:// mais uma vez, constituem uma fonte realismo no Brasil, escreveu obras importantes migre.me/qR3n, intitulada O negro na obra de parcial, porque muita música que era como Memórias póstumas de Brás Cubas (Rio Machado de Assis. Sobre o escritor, foram pro- feita no século XIX, principalmente a de Janeiro: Ediouro, 1995), Dom Casmurro duzidas duas edições especiais: edição 262, de (Erechim: Edelbra, 1997), Quincas Borba (15. 16-06-2008, sob o título de Machado de Assis: música popular, não era transcrita em ed. São Paulo: Atica, 1998) e vários livros de um conhecedor da alma humana, disponível partitura. contos, entre eles a obra-prima O Alienista em http://migre.me/qR47, e edição número (32. ed. São Paulo: Ática, 1999), que discute 275, intitulada Machado de Assis e Guimarães a loucura. Também escreveu poesia e foi um Rosa: interprétes do Brasil, de 29-09-2008, IHU On-Line – Em um artigo famoso ativo crítico literário, além de ser um dos cria- disponível em http://migre.me/qR4B. (Nota intitulado Adeus à MPB você proble- dores da crônica no país. Foi o fundador da da IHU On-Line)  SÃO LEOPOLDO, 14 DE NOVEMBRO DE 2011 | EDIÇÃO 380 matiza esta sigla tão consagrada já conotação po- que observa que ela não se susten- lítica forte, ou ta mais, principalmente pelo uso do seja, era um qualificativo popular. Como você vê popular qua- essa questão hoje? O que é e o que litativo. Não não é MPB na produção atual? dependia de Carlos Sandroni – A minha abordagem quantos dis- com relação a isso é a de observador. cos se vendia. Minha preocupação principal não é Ao passo que criar uma definição do que é MPB, mas quando se fala procurar observar como socialmente no popular dos essas definições são usadas. Em minha anos 1990, já formação, feita nos anos 1970, 1980, tem um senti- na faculdade e nos meus estudos como do quantitati- músico, o sentido que aprendi de MPB vo, ou seja, é era uma simples abreviação da ideia popular o que de música popular brasileira, que era vende muito, muito ampla e abrangia todo um leque que é o po- muito diverso do que podia se fazer no pular do axé, Brasil enquanto música popular, difun- do brega, do dida amplamente através dos meios de sertanejo, que comunicação modernos. Portanto, era está um pouco margem a muitas dissertações e teses popular nesse sentido. Ao mesmo tem- esvaziado do conteúdo político. em Sociologia e em Comunicação. po, era brasileira, porque eram gêne- ros musicais em sua maioria criados no IHU On-Line – Como vão os estudos IHU On-Line – Como você avalia o Brasil. O caso emblemático, sem dúvi- da canção brasileira ou que tratam tombamento do samba do recônca- da, é o samba, com algumas variantes, do diálogo entre música popular e vo baiano como patrimônio histórico e abria para músicas que tendiam des- literatura no Nordeste? Quais são as imaterial da humanidade? de estilo erudito, de Tom Jobim, até perspectivas? Como é acompanhar o Carlos Sandroni – O termo “tomba- autores que podiam quase ter sido cria- debate fora do eixo Rio-São Paulo? mento” vem sendo usado popularmen- dos numa experiência de tradição oral. Carlos Sandroni – É bastante interes- te, mas tecnicamente não é correto, Todo esse espectro entrava nessa ideia sante, sobretudo por causa das teses porque justamente por ser patrimônio de MPB. Dos anos 1990 para cá essa e dissertações que vêm sendo produ- imaterial o termo legal é “registro” ideia de um espectro muito amplo, mas zidas na área de Letras, de História, e não tombamento, já que a ideia de que pode ser resumido e unificado pela de Sociologia. Do meu conhecimen- tombamento, usada para cultura mate- expressão “música popular brasileira”, to, o único polo aqui do Nordeste que rial, pressupõe a restrição a qualquer perdeu muito da sua vigência. Nos anos vem fazendo dessa discussão um tema tipo de alteração. Não se pode mexer 1990 os gêneros que se tornaram mais central é no Ceará, com o professor num prédio tombado sem autorização. populares, como o axé, o sertanejo, o Nelson Barros da Costa, na Universi- No caso da cultura imaterial não exis- brega e até mesmo o pagode românti- dade Federal do Ceará. Lá se criou um te essa restrição. As pessoas que fazem co, também foram criados no Brasil e núcleo de pesquisa sobre essa questão tura ritmos regionais com rock, hip hop e mú- sica eletrônica. Esse estilo tem como ícone o tinham um apelo popular muito forte da canção popular. O Nelson é da área músico Chico Science, vocalista da banda Chi- e uma difusão nacional. Mas, diferente de Letras e tem feito vários encon- co Science e Nação Zumbi, idealizador do ró- da MPB, eles não serviam como identi- tros em torno disso. Fora do Ceará há tulo mangue e principal divulgador das ideias, ritmos e contestações do manguebeat. Outro ficação de uma ideia de povo brasileiro trabalhos na área de História aqui na grande responsável pelo crescimento desse no sentido mais político que a MPB ini- Paraíba, e na área de Sociologia, no movimento foi Fred 04, vocalista da banda cialmente teve. Até por causa do mo- Recife, sobre o manguebeat, que deu Mundo Livre S/A e autor do primeiro manifes- to do Mangue de 1992, intitulado Caranguejos mento nos anos 1960 e 1970, pelo con-  Nelson Barros da Costa: graduado em Letras com cérebro. O objetivo do movimento surgiu texto ditatorial que se vivia, quando e mestre em Educação pela Universidade Fe- de uma metáfora idealizada por Zero Quatro, se fala em “povo brasileiro” tinha uma deral do Ceará – UFC, é doutor em Ciência da ao trabalhar em vídeos ecológicos. Como o Linguagem pela Universidade de Rouen, Fran- mangue era o ecossistema biologicamente  Antônio Carlos Brasileiro de Almeida Jobim ça, doutor em Lingüística Aplicada e Estudos mais rico do planeta, o manguebeat precisava (1927-1994): mais conhecido como Tom Jobim, da Linguagem pela Pontifícia Universidade Ca- formar uma cena musical tão rica e diversifi- foi um compositor, maestro, pianista, cantor, tólica de São Paulo – PUCSP, e pós-doutor pela cada como os manguezais. Devido a principal arranjador e violonista brasileiro. É conside- Universidade de Paris XII, Paris-Val-de-Marne. bandeira do mangue ser a diversidade, a agi- rado o maior expoente de todos os tempos da Leciona na UFC e é autor de Música popular, tação na música contaminou outras formas de música brasileira pela revista Rolling Stone, e linguagem e sociedade: analisando o discurso expressão culturais como o cinema, a moda e um dos criadores do movimento da bossa nova. literomusical brasileiro (Curitiba: Editora Ap- as artes plásticas. Confira a entrevista conce- É praticamente uma unanimidade entre críti- pris, 2011). (Nota da IHU On-Line) dida por 04 às Notícia do Dia 25-01-2010, dis- cos e público em termos de qualidade e sofisti-  Manguebeat: movimento musical surgido no ponível em http://migre.me/69sIe. (Nota da cação musical. (Nota da IHU On-Line) Brasil na década de 1990, em Recife, que mis- IHU On-Line) SÃO LEOPOLDO, 14 DE NOVEMBRO DE 2011 | EDIÇÃO 380  e praticam o samba de roda e outros gêneros musicais que foram registra- dos como patrimônio imaterial podem alterar e fazer como quiserem. O pa- trimônio imaterial pressupõe uma cul- Fazer música: uma prática de cidadania tura viva, um patrimônio vivo, e assim sendo está sempre sendo mudado e mexido pelas pessoas que o fazem. E Na visão do professor norte-americano Christopher Dunn, a sobre isso, eu avalio muito positiva- canção brasileira é uma boa indicação da diversidade do povo mente. A partir do reconhecimento brasileiro que a Unesco deu ao samba de roda e que contribuiu muito com a mobi- lização dos próprios sambadores, le- Por Graziela Wolfart vou-se à criação de uma associação de sambadores e do chamado “pontão de cultura do samba de roda”, além da studioso da música e da cultura brasileira, o professor Christopher casa do samba em Santo Amaro. Todo Dunn percebe que “além de tratar de temas políticos e sociais que esse movimento foi visto como muito têm a ver com a temática da cidadania, a própria prática de fazer positivo. música, muitas vezes, sobretudo no Brasil contemporâneo, é uma prática de cidadania”. Na entrevista que concedeu por telefone IHU On-Line – Como tradição e mo- Epara a IHU On-Line, ele afirma que “há uma tradição muito forte na música dernidade interagem no discurso popular brasileira de se apropriar de estilos e gêneros do exterior e fazer com Mangue Beat? Carlos Sandroni – Há uma interação eles música nova. Podemos remeter isso à tradição antropofágica do Brasil, muito forte. No fundo, tradição e de deglutir o que vem de fora e fazer algo novo”. E completa: “o Brasil é modernidade são elementos que têm um país completamente integrado na economia mundial e está muito ligado muito mais interação do que geral- à internet, sobretudo a classe média. Então não há dúvidas de que tais ten- mente se fala. Costuma-se apresen- dências culturais globalizadas irão exercer uma influência muito forte sobre tá-los como sendo coisas opostas. a cultura brasileira”. Na realidade, um conceito depende Christopher Dunn é professor de literatura e estudos culturais brasileiros na do outro. Tradição é uma expressão Tulane University, de Nova Orleans, Estados Unidos. É autor do livro Brutality Gar- que começa a ser usada justamen- den: Tropicália and the emergence of a Brazilian Counterculture (University of te com mais força no sentido que é North Carolina Press, 2001) e coorganizador de Brazilian popular music and globa- dado hoje em dia junto com a mo- lization (Routledge, 2001). Atualmente trabalha com a questão da contracultura dernidade. A ideia de tradição é algo dos anos 1970. Confira a entrevista. que pressupõe uma transformação constante. As coisas, para permane- cerem, precisam mudar. A alternativa IHU On-Line – O que a canção brasi- uma tradição de fazer música sobre para isso é a morte. A única maneira leira revela sobre as características a sociedade e sobre a situação social de algo permanecer é mudar. E tradi- de seu povo? do brasileiro. Mas isso não é somente ção pressupõe a mudança. O Mangue Christopher Dunn – Há tantas di- no Brasil, então se torna difícil dis- Beat é um exemplo muito bom disso, mensões na música popular brasileira tinguir precisamente uma caracterís- na medida em que começou a usar que é difícil resumir, mas acho que tica brasileira. É melhor ver simples- elementos considerados tradicionais, podemos dizer que a canção brasi- mente as tendências. como os tambores de maracatu, junto leira é uma boa indicação da diver- com uma postura de banda de palco, sidade do povo brasileiro, porque é IHU On-Line – Em que sentido a can- com guitarra, bateria e baixo elétri- muito variada. Eu acabo de terminar ção é uma forma de exercer a cida- co. Isso ocasionou uma valorização e um livro sobre a música popular e dania? uma repercussão positiva nas pessoas a cidadania, que tem vinte artigos, Christopher Dunn – Além de tratar que estavam fazendo esses movimen- tanto de pesquisadores brasileiros de temas políticos e sociais que têm tos e que estavam num momento de como de americanos, e nossa pesqui- a ver com a temática da cidadania, desvalorização por parte da socieda- sa revelou que há uma tradição na a própria prática de fazer música, de. Na medida em que o Mangue Beat canção moderna brasileira de refletir muitas vezes, sobretudo no Brasil foi para os festivais de rock, também profundamente sobre a condição de contemporâneo, é uma prática de os maracatus passaram a ser mais va- cidadania no Brasil. Além de canções cidadania. Como, por exemplo, o lorizados nas próprias comunidades de amor, que são muitas, há canções movimento hip hop, em São Paulo, que os praticavam. satíricas, humorísticas, e há também que é um verdadeiro movimento so-

10 SÃO LEOPOLDO, 14 DE NOVEMBRO DE 2011 | EDIÇÃO 380 cial, que envolve a comunidade, que no início dos anos 1920, apesar de ser busca trabalhar com jovens que estão “Há uma tradição na totalmente enraizado nas tradições em risco. O mesmo se pode dizer so- brasileiras, até a bossa nova, que foi bre o grupo Afro Reggae, do Rio de canção moderna uma maneira de trabalhar com alguns Janeiro, que é um grupo cultural, mas aspectos do norte-americano. A também tem um papel social muito brasileira de refletir Tropicália é um exemplo disso. Po- importante na comunidade das favelas demos ver também o rock brasileiro do Rio de Janeiro. A mesma coisa pode profundamente sobre a dos anos 1980, o movimento Mangue ser dita sobre o movimento dos blo- Beat, que está totalmente inserido cos afro, que desde os anos 1970, na condição de cidadania no dentro de um contexto internacional Bahia, em Salvador, funcionam como de música popular, e o movimento uma espécie de movimento social mui- Brasil” rap. O Brasil é um país completamen- to voltado para questões de cidadania pós-moderna, no sentido de que, em te integrado na economia mundial e e acabam envolvendo pessoas que não vez de desenvolver um estilo pró- está muito ligado à internet, sobre- têm nada a ver com música em si, mas prio, como a Bossa Nova, produziu tudo a classe média. Então, não há que têm mais a ver com outras ativi- um som muito baseado na estética dúvidas de que tais tendências cul- dades, sempre voltadas para questões do pastiche. A estética do pastiche turais globalizadas irão exercer uma de consciência social, política e racial. é justamente citar, sem necessa- influência muito forte sobre a cultura Com isso procuramos ver a música po- riamente parodiar, uma variedade brasileira. pular como uma espécie de exercício muito grande de sons. Existem aí de cidadania, tanto do ponto de vista citações de rock, de músicas latino- IHU On-Line – Qual a principal con- de canções e músicas que tematizam hispano-americana, de música nor- tribuição da canção para as transfor- essa questão como de movimentos ou destina, a bossa nova, o samba. A mações culturais de um país? Qual a grupos culturais que funcionam com característica fundamental da Tropi- especificidade brasileira nesse caso? essa prática. cália é justamente essa flexibilida- Christopher Dunn – Não sei se a can- de, esse trânsito entre vários sons e ção é o motor transformador de uma IHU On-Line – O que caracteriza a vários estilos, sem propor um estilo cultura, ou se é um reflexo de trans- canção durante o movimento Tropi- próprio e novo. É justamente essa formações culturais que estão em cur- cália? multiplicidade da Tropicália à justa so, ou ainda se se trata de uma rela- Christopher Dunn – Com a Tropicá- posição de sons, estilos e referên- ção dialética, com movimentos pelos  lia há uma tentativa de redimen- cias que é a característica principal dois lados. Os tropicalistas encararam sionar a canção brasileira de forma do movimento. as transformações do Brasil que de- totalmente híbrida e, por que não, correram da ditadura e da implanta- IHU On-Line – Que relação pode ser ção e instauração de um regime de  O Grupo Cultural Afro Reggae, ou apenas Afro modelo de modernização autoritária Reggae, é uma ONG que também atua como estabelecida entre a música popular banda musical surgida em 1993 inicialmente brasileira e a globalização? e que produziu ou exacerbou algumas como um jornal informativo (Afro Reggae No- Christopher Dunn – Há uma tradição contradições dentro da sociedade. tícias) das festas que o grupo realizava e tam- Mas, ao captar, também conseguiram bém a valorização da cultura negra voltada, muito forte na música popular bra- sobretudo, aos jovens ligados a música como sileira de se apropriar de estilos e de alguma forma transformar a cul- reggae, soul e hip hop. O site oficial é www. gêneros do exterior e fazer com eles tura brasileira e propor novos mode- afroreggae.org (Nota da IHU On-Line) los de entender a sociedade. O mes-  Tropicalismo ou movimento tropicalista: música nova. Podemos remeter isso à movimento cultural brasileiro que surgiu sob tradição antropofágica do Brasil, de mo ocorre em relação a esses grupos a influência das correntes artísticas de van- deglutir o que vem de fora e fazer mais contemporâneos que, respon- guarda e da cultura pop nacional e estrangeira dendo ao recuo do Estado em relação (como o pop-rock e o concretismo); misturou algo novo. Vemos isso desde o samba, manifestações tradicionais da cultura bra-  Bossa Nova: subgênero musical derivado do à participação social, as comunidades sileira a inovações estéticas radicais. Tinha samba e com forte influência do jazz estadu- muito marginalizadas, praticamente objetivos comportamentais, que encontraram nidense, surgido no final da década de 1950 excluídas do Estado, começaram a eco em boa parte da sociedade, sob o regi- no Rio de Janeiro. De início, o termo era ape- me militar, no final da década de 1960. O nas relativo a um novo modo de cantar e tocar trabalhar a cultura como uma forma movimento manifestou-se principalmente na samba naquela época, ou seja, a uma refor- de exercer a cidadania. Essa foi uma música (cujos maiores representantes foram mulação estética dentro do moderno samba resposta às condições materiais, so- Caetano Veloso, , Torquato Neto, carioca urbano. Com o passar dos anos, a Bos- Os Mutantes e Tom Zé); manifestações artís- sa Nova tornar-se-ia um dos movimentos mais ciais da sociedade durante a época ticas diversas, como as artes plásticas (desta- influentes da história da música popular brasi- posterior à ditadura, depois dos anos que para a figura de Hélio Oiticica), o cinema leira, conhecido em todo o mundo e, eswpe- 1980. Esses grupos acabaram tendo (o movimento sofreu influências e influenciou cialmente, associado a João Gilberto, Nara o Cinema novo de Gláuber Rocha) e o teatro Leão, , , Antonio uma influência muito grande sobre a brasileiro (sobretudo nas peças anárquicas de Carlos Jobim, Baden Powell, Bebel Gilberto e forma como os brasileiros entendem José Celso Martinez Corrêa). Um dos maiores Luiz Bonfá. Sobre o tema, confira a edição 272 sua condição social. É um reflexo que exemplos do movimento tropicalista foi uma da revista IHU On-Line, 08-09-2008, intitulada das canções de Caetano Veloso, denominada Chega de saudade... Bossa nova, 50 anos, dis- acaba também captando um proces- exatamente de “Tropicália”. (Nota da IHU On- ponível para download em http://bit.ly/rCnq- so, dessa forma transformando a so- Line) Mi (Nota da IHU On-Line). SÃO LEOPOLDO, 14 DE NOVEMBRO DE 2011 | EDIÇÃO 380 11 “A característica fundamental da A canção fica melhor com a Tropicália é justamente essa passagem do tempo flexibilidade, esse trânsito Para Luiz Tatit, não há canção mais autêntica que o rap, o gênero que se arriscou a chegar mais próximo da fala entre vários sons e vários

estilos, sem Por Graziela Wolfart e Pedro Bustamante Teixeira propor um estilo próprio e canção é uma linguagem que se caracteriza por efe- novo” tuar necessariamente uma integração entre melo- dia e letra para ser veiculada pela voz”. A definição é do músico, linguista e professor universitário Luiz ciedade ou, pelo menos, transformando Tatit, em entrevista concedida por e-mail para a nossa percepção da sociedade. “AIHU On-Line. A seu ver, “bossa nova e tropicalismo tornaram-se nossa régua e compasso que retornam de tempo em tempo para corrigir ór- IHU On-Line – Como a música brasileira é vista no exterior? bitas equivocadas. O interesse da bossa nova e do tropicalismo é para Christopher Dunn – Com muito interesse, a história da canção brasileira”. E dispara: “MPB me parece um gênero muita fascinação, muita alegria. A músi- datado (e superado), próprio de uma época em que se buscava uma ca brasileira sempre terá um público no canção nacionalista urbana”. exterior muito grande. Não posso falar Luiz Augusto de Morais Tatit é graduado em Letras (Linguística) pela Fa- muito de outros países. Sei que em qua- culdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas – FFLCH da Universidade de se todos os outros países há pessoas que São Paulo e em Música (Composição), pela Escola de Comunicações e Artes apreciam a música brasileira, sobretudo da mesma instituição. Obteve seu doutorado na FFLCH da USP, com a tese na Europa e nos Estados Unidos. Aqui nos Elementos semióticos para uma tipologia da canção popular brasileira. É Estados Unidos, já há uma tradição bem professor titular do Departamento de Linguística da Faculdade de Filosofia, estabelecida, desde a bossa nova. De- Letras e Ciências Humanas da USP. Dentre seus livros publicados citamos pois tem o caso de Milton Nascimento, A canção: eficácia e encanto (São Paulo: Ed. Atual, 1986); Semiótica da que foi muito apreciado. Já no final dos anos 1980, o surgimento de um fenôme- canção: melodia e letra (São Paulo: Ed. Escuta, 1994); O cancionista: com- no muito curioso aqui no EUA, chamado posição de canções no Brasil (São Paulo: Edusp, 1996); Análise semiótica de World Music, mostra um interesse em através das letras (São Paulo: Ateliê Editorial, 2001); e O século da canção música popular de outros países. E o Bra- (São Paulo: Ateliê Editorial, 2004). Seu site oficial é www.luiztatit.com.br/ sil estava envolvido com isso. Quase to- home. Confira a entrevista. das as cidades grandes aqui no país têm suas próprias escolas de samba, todas as cidades grandes ou mesmo as medianas, IHU On-Line – Seria a canção um IHU On-Line – Como foi estudar a têm escolas de capoeira, em que se canta gênero? canção a partir da faculdade de música popular brasileira. Meu filho, que Luiz Tatit – Não considero assim. linguística? tem 6 anos, está fazendo capoeira com A canção é uma linguagem que se Luiz Tatit – Fiz pós-graduação um grupo do Paraná e estão aprendendo caracteriza por efetuar necessaria- no departamento de linguística a cantar as cantigas de capoeira. É mais mente uma integração entre melo- da USP, mas na área de semióti- uma forma de a música popular brasileira dia e letra para ser veiculada pela ca. Essa ciência tem como objeto circular nos Estados Unidos. voz. Ela tem uma história própria de estudo o “sentido” construído e exige recursos específicos que os pelos diversos discursos sociais, músicos ou os poetas raramente do- verbais ou não verbais (literatura, minam. A canção é considerada um cinema, teatro, história em qua- gênero no âmbito da música eru- drinhos, música, artes plásticas, dita, já que essa linguagem tem etc.). Mergulhei nos modelos ana- como núcleo a sonoridade em si e líticos da semiótica e tentei propor  Milton Nascimento (1942): cantor e compositor bra- sileiro, reconhecido mundialmente como um dos mais não particularmente o canto. uma metodologia adequada ao es- influentes e talentosos cantores e compositores da tudo específico da canção. A semi- Música Popular Brasileira. (Nota da IHU On-Line) 12 SÃO LEOPOLDO, 14 DE NOVEMBRO DE 2011 | EDIÇÃO 380 ótica me parece bem mais apta para a tornam-se símbolos de outros momentos pesquisa cancional que a musicologia “A semiótica me parece históricos. Outras há que poucos conhe- ou a teoria literária. Pelo menos, den- cem, mas que influenciam gerações fu- tro do enfoque que eu adotei. bem mais apta para a turas. Não são todas as boas criações que cabem no mercado, mas normalmente IHU On-Line – Em que medida a se- pesquisa cancional que a as que desfrutam um grande consumo miótica pode contribuir nos estudos trazem sempre aspectos interessantes. da canção e em que sentido a canção musicologia ou a teoria Veja a canção “Devolva-me” (Leno e Li- pode ajudar na promoção dos estu- lian), solenemente ignorada pela intelli- dos da semiótica no Brasil? literária” gentsia brasileira dos anos 1960, voltou Luiz Tatit – A semiótica oferece um recentemente como canção cult na voz pop, do mundo brega, da canção inter-  meio de compreensão do sentido em nacional, do rock, etc.) apresentadas de Adriana Calcanhoto . São numero- geral que pode ser muito bem esten- em concomitância, sem nenhuma ex- sos os exemplos. Na base do ensaio e dido para o campo da canção. Como clusão. Bossa nova e tropicalismo tor- erro, o mercado faz a mediação entre a canção é o nosso principal meio de naram-se nossa régua e compasso que artistas e público definindo, em últi- expressão, a explicitação metódica do retornam de tempo em tempo para ma instância, os traços que compõem seu funcionamento chama a atenção corrigir órbitas equivocadas. O inte- a linguagem da canção. para o potencial de uma teoria bem resse da bossa nova e do tropicalismo A canção só fica melhor com a passa- formulada. Já percebemos um con- é para a história da canção brasileira. gem do tempo. Claro, os cancionistas siderável aumento de interesse pela “MPB” me parece um gênero datado de hoje aproveitam as experiências dos semiótica, na área de pós-graduação, (e superado), próprio de uma época anteriores e já partem de um nível bem graças à difusão dos trabalhos aplica- em que se buscava uma canção nacio- mais elevado. A diferença é de ordem dos à canção. nalista urbana. extensiva. Antes, todas as correntes cancionais estavam concentradas numa IHU On-Line – A bossa nova e o tropi- IHU On-Line – Em O século da canção só emissora de TV (Record) e desfruta- calismo são descritos em seus traba- você traz uma visão sempre generosa vam uma visibilidade nacional nunca lhos como movimentos cruciais para com as canções que caíram no gosto mais alcançada. Hoje, há uma imensa a configuração da Moderna Música do público, como é o caso do axé, do diversidade de produção totalmente Popular Brasileira. Você pode falar pagode e da música sertaneja. Seria dispersa nos sítios virtuais, nos peque- um pouco sobre a importância dos o mercado um bom parâmetro para a nos teatros e casas de show, em algu- movimentos na configuração de uma identificação das canções que mere- mas emissoras de rádio e nada mais há música popular moderna brasileira? cem ser estudadas? Que mecanismos na televisão. Daí a impressão de ausên- Luiz Tatit – A bossa nova reflete a fase operam essa triagem mercadológica? cia do que já tivemos no passado. Mas em que nossa canção atingiu a matu- Há um empobrecimento da canção basta se inteirar dessa produção difusa ridade a ponto de poder operar com brasileira? Ou se trata de algo que para se dar conta de que a canção de os seus componentes essenciais: me- poderíamos denominar como Pós- agora é igual ou superior à do passado. lodia, letra e canto (e, claro, acom- Canção? Em tempo, não há canção mais autên- panhamento). Eliminou toda sorte Luiz Tatit – O mercado é um dos prin- tica que o rap, o gênero que se arris- de excesso (semântico, musical, tim- cipais parâmetros que regulam o in- cou a chegar mais próximo da fala. brístico, interpretativo) e baseou sua gresso das canções em nosso mundo  Leno e Lílian: dupla de cantores que come- eficácia estética e comunicacional no subjetivo e identitário. Só lembramos çou a se apresentar nos anos 1960 no programa dizer mais com o mínimo de recursos. em geral das canções que o mercado Jovem Guarda. Era formada por Gileno Osório O tropicalismo assimilou o gesto geral Wanderley de Azevedo (1949) e Sílvia Lília Barrie selecionou. Mesmo as características Knapp (1948). (Nota da IHU On-Line) da bossa nova, mas apontou para o ca- que fizeram da canção uma linguagem  Adriana da Cunha Calcanhotto (1965): canto- minho contrário, a mistura, como se a cultural de extrema importância fo- ra e compositora brasileira. As suas composições fecundidade de nossa canção precisas- abordam estilos variados: samba, bossa nova, ram depuradas por esse mercado. Mas rock, pop e baladas. Dentre as características se de todas as dicções (do presente, não é o único parâmetro. Há canções de repertório, observa-se a regravação de an- do passado, da vanguarda, do universo desprezadas em uma época que, depois, tigos sucessos da MPB e arranjos diferencia- dos. (Nota da IHU On-Line)

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SÃO LEOPOLDO, 14 DE NOVEMBRO DE 2011 | EDIÇÃO 380 13 O samba como símbolo de brasilidade Cantar pode ser uma forma de ler, de comunicar, de contar uma história, de expressar opini- ões e sentimentos, defende Pedro Bustamante Teixeira

Por Graziela Wolfart

a tentativa de definir o que seria a canção, o músico Pedro Bustamante Teixeira afirma que “a adequação de um discurso oral a uma determinada sequência melódica é o primeiro passo para a confecção de uma obra musical breve que chamamos de canção”. Em entrevista concedida por e-mail para a IHU On-Line ele declara que “analisar a literatura brasileira produzida no século XX sem contemplar, em um momento ou outro o cancioneiro popular, é impensável”. NPara Pedro, “a ascensão do samba no Rio de Janeiro via fonógrafo e o seu seguinte sucesso no Carnaval de 1917 revelaram toda uma cultura afro-brasileira que se preservava às escondidas”. E continua: “o samba percorre um caminho que vai da sua marginalidade à sua consagração como símbolo de brasilidade. Nesse percurso, o samba força a inscrição de toda uma cultura afro-brasileira na identidade nacional”. Pedro Bustamante Teixeira possui graduação em Língua Portuguesa e em Língua Italiana (e em suas res- pectivas literaturas), e mestrado em Letras: Estudos Literários pela Universidade Federal de Juiz de Fora – UFJF. Atualmente é doutorando do Programa de Pós-Graduação em Letras: Estudos Literários e Represen- tações Culturais na mesma instituição. Confira a entrevista.

IHU On-Line – Didaticamente, como cias da indústria fonográfica. Fundava-se por ser uma expressão da oralidade, podemos definir canção? uma nova tradição. Na origem da canção pôde sempre contar com um público Pedro Bustamante Teixeira – O can- moderna brasileira, por exemplo, en- muito mais numeroso. Diante da reali- to sempre foi uma possibilidade do contraremos um samba, Pelo telefone, dade do analfabetismo no Brasil, mui- discurso. Cantar pode ser uma forma gravado em 1917. De samba em samba tos poetas brasileiros recorreram ao de ler, de comunicar, de contar uma se desenvolve a canção brasileira mo- canto para propagarem seus poemas. história, de expressar opiniões e sen- derna. Gregório de Matos, por exemplo, ento- timentos. Assim como a poesia, a can- ava seus versos sob o acompanhamen- ção apreende e reúne palavras em um IHU On-Line – Que relações podem ser es- to de um violão que ele mesmo tocava. determinado suporte. No caso da can- tabelecidas entre a canção e a literatura? Muitos dos seus poemas eram a princípio ção, o suporte é musical. A adequação Pedro Bustamante Teixeira – A cultura canções. Como hoje restaram apenas as de um discurso oral a uma determinada letrada no Brasil por muito tempo foi palavras desse discurso “litero-musical”, sequência melódica é o primeiro passo um privilégio da elite. Tanto a literatura tendemos a não pensar que esses poe- para a confecção de uma obra musical como a canção foram, ao longo da his- mas eram originalmente canções. breve que chamamos de canção. A can- tória brasileira, suportes para determi- Enquanto o modernismo paulista ção como linguagem, “canto do povo de nados discursos. Enquanto a literatura pregava a afirmação da língua coloquial um lugar”, é de tempos imemoriais. Já no Brasil, em razão do elevado índice de na literatura brasileira, os sambistas já a canção moderna, tal qual a reconhe- analfabetismo entre os brasileiros, foi recorriam ao português falado na con- cemos hoje, é fruto da união da música por muito tempo um privilégio de uma fecção de suas primeiras canções. Muitos popular com o fonógrafo, que permitiu, elite bem informada, a canção, tanto desses sambistas flertaram com a poesia no início do século XX, que as expressões em sua forma originária – como manifes- romântica ou parnasiana. No entanto, musicais populares pudessem ser, enfim, tação folclórica – quanto em sua forma estava na oralidade, na língua falada por gravadas. Até a invenção do fonógrafo, o moderna – como canção comercial –, seus iguais, a variante linguística que registro musical só era possível median- cristalizariam em canções. Daí o nas-  Pelo Telefone: considerado o primeiro sam- te tradução da escrita musical – muitas ba a ser gravado na Brasil segundo os registros cimento de um modernismo popular, vezes insuficiente diante das expressões da Biblioteca Nacional. O samba de Ernesto que, certamente, tem em o musicais não ocidentais. Em contraparti- Joaquim Maria dos Santos () e Mauro de seu maior expoente. Almeida foi registrado em 27 de novembro de da, coube aos compositores populares a 1916 como sendo de autoria de Donga. (Nota adaptação do canto folclórico às exigên- da IHU On-Line) Canção popular 14 SÃO LEOPOLDO, 14 DE NOVEMBRO DE 2011 | EDIÇÃO 380 Nos anos 1950, diante de uma rea- caram refazer o caminho da música po- lidade não tão diversa em relação ao “Assim como a poesia, pular brasileira que a levou do samba ao índice de analfabetismo no Brasil, o bolero, ao tango, à canção norte-ameri- poeta Vinicius de Morais, adere à can- a canção apreende e cana e à canção francesa com a hegemo- ção popular no intuito de atingir com nia do estilo samba-canção. Diante de a sua poesia não somente uma minoria reúne palavras em um um amadurecimento da canção popular letrada, mas também, à parte, grande brasileira e o esgotamento do estilo do- maioria da população brasileira exclu- determinado suporte. minante nos anos 1940 e 1950, o samba- ída da prática literária pelo seu bai- canção, a bossa nova propõe a retomada xo índice de letramento. Exitoso em No caso da canção, o do samba-samba, do compasso binário, seu projeto, Vinicius torna-se um dos da alegria. A bossa nova rompe com a poetas mais populares da história do suporte é musical” interpretação operística do samba-can- Brasil. Poeta da palavra escrita e da ção, evita os seus arranjos suntuosos palavra cantada, Vinicius de Morais foi templar, em um momento ou outro o e o tom melancólico e desesperado de um dos que mais contribuíram para cancioneiro popular, é impensável. suas canções. Por um lado, a bossa nova reaproximar a poesia brasileira de sua promove a redescoberta do samba com origem cantada, para dissolver os pre- IHU On-Line – Há canções de samba e o enxugamento dos excessos do samba- conceitos que cercavam o exercício do de bossa nova, estilos tipicamente bra- canção. Por outro, projeta a sua moder- compositor popular, o primeiro a trans- sileiros? O que as caracterizam? nização através da incorporação de uma cender a divisão basilar entre a cultu- Pedro Bustamante Teixeira – Dada a série de elementos técnicos, estéticos e ra brasileira letrada e não letrada no origem da canção moderna brasileira, musicais do jazz. Brasil contemporâneo. Um expoente, no Brasil samba e canção por muito tem- po foram sinônimos. O samba está na tanto do alto modernismo brasileiro IHU On-Line – Quais os principais as- gênese da canção moderna brasileira. como da música popular. Recuperava- pectos literários e musicais do samba A ascensão do samba no Rio de Janeiro se o sentido da palavra trovador. como canção, e o que dizem sobre o via fonógrafo e o seu seguinte sucesso A partir do gesto de Vinicius foi Brasil e seu povo, no sentido de contri- no Carnaval de 1917 revelaram toda uma possível também ao brasileiro letra- buir para o processo de “invenção” ou cultura afro-brasileira que se preservava do perceber a poesia de compositores construção identitária do brasileiro? às escondidas. No entanto, os primeiros populares anteriores a ele. , Pedro Bustamante Teixeira – O samba Noel Rosa e , que em sambas gravados ainda pareciam estar percorre um caminho que vai da sua suas respectivas comunidades já eram em busca de uma identidade própria, marginalidade à sua consagração como reconhecidos como poetas, passaram muitas vezes eram reuniões arbitrárias símbolo de brasilidade. Nesse percurso, a ser reconhecidos como tais também de refrões, sem uma segunda parte, an- o samba força a inscrição de toda uma em outros circuitos. Foi possível a jo- tecedidos por uma introdução e finaliza- cultura afro-brasileira na identidade vens artistas deslumbrarem o exer- dos por improvisos instrumentais. Com nacional. Enquanto uma significativa cício poético através da composição um ritmo ainda muito semelhante ao parte da elite branca flertava com as de canções. Vinicius coloca em xeque maxixe, esses sambas frequentemente ideias eugenistas, caminhando para o toda uma concepção modernista para foram taxados de sambas-amaxixados. fascismo e a segregação das raças, o a música e para a literatura e promove No final da década de 1920, quando os samba, essencialmente híbrido, cele- uma celeuma na literatura brasileira, sambas de um novo grupo de compo- brava a mistura: o nascimento de um que é obrigada, por ele, a aceitar a sitores radicados no bairro do Estácio povo pela mistura. Assim como Gilberto canção popular em seu campo de es- começam a ser gravados, o ritmo en- Freyre, no final da década de 1930, os tudo. Hoje, analisar a literatura brasi- fim se desvincula de seus ritmos ances- trais. A partir de então, o samba ganha  Gilberto Freyre (1900-1987): escritor, pro- leira produzida no século XX sem con- fessor, conferencista e deputado federal.  Marcus Vinícius da Cruz e Mello Moraes características próprias. Torna-se mais Colaborou em revistas e jornais brasileiros. (1913-1980): diplomata, dramaturgo, jorna- ligeiro, mais contramétrico e sincopa- Foi professor convidado da Universidade de lista, poeta e compositor brasileiro. Poeta es- do. As segundas partes se incorporam Stanford (EUA). Recebeu vários prêmios por sencialmente lírico, também conhecido como sua obra, entre os quais, em 1967, o prêmio “poetinha”, apelido que lhe teria atribuido ao gênero fazendo par com o refrão. Aspen, do Instituto Aspen de Estudos Huma- Tom Jobim, notabilizou-se pelos seus sonetos. Consagrado nas ondas do rádio e nas nísticos (EUA) e o Prêmio Internacional La Ma- (Nota da IHU On-Line) escolas de samba recém-fundadas, o doninna, em 1969. Entre seus livros, citamos:  Angenor de Oliveira (1908-1980): mais co- Casa grande & Senzala e Sobrados e Mocam- nhecido como Cartola, foi um cantor, compo- estilo novo, por fim, torna-se o mais bos. O Prof. Dr. Mário Maestri, do PPG em His- sitor e violonista brasileiro. (Nota da IHU On- característico: samba-samba. tória da Universidade de Passo Fundo (UPF), Line) apresentou o segundo livro na programação  Noel de Medeiros Rosa (1910-1937) foi um do II Ciclo de Estudos sobre o Brasil, promo- sambista, cantor, compositor, bandolinista, A bossa nova e o cancioneiro vido no dia 15-04-2004, pelo IHU. Sua palestra violonista brasileiro e um dos maiores e mais brasileiro originou o artigo publicado no Cadernos IHU importantes artistas da música no Brasil. (Nota A bossa nova, por sua vez, é fruto de nº 6, de 2004, intitulado Gilberto Freyre: da da IHU On-Line) Casa-Grande ao Sobrado. Gênese e Dissolução  Mílton de Oliveira Ismael Silva (1905-1978): uma releitura crítica da tradição do do Patriarcalismo Escravista no Brasil. Algu- conhecido como Ismael Silva, foi um músico do cancioneiro brasileiro. Seus artífices bus- mas Considerações, disponível para download Brasil. (Nota da IHU On-Line) em http://migre.me/69teH. (Nota da IHU On- SÃO LEOPOLDO, 14 DE NOVEMBRO DE 2011 | EDIÇÃO 380 15 sambistas irão refutar um pensamento o acontecimento religioso da raça”. Ge- Assim, passará a se afirmar mais pelo seu muito em voga na época que creditava túlio faria de tudo para coordenar tanto exotismo sensualista do que pelas suas à mestiçagem as razões do nosso atra- o carnaval como o samba. O povo brasi- virtudes “litero-musicais”. so. Como Freyre, os sambistas viam na leiro, segundo Oswald, acontecia como A bossa nova, ao buscar o samba an- afirmação da mestiçagem a promessa raça no carnaval. Poderíamos acrescen- terior a essa estandardização, procurou de uma nova civilização. O populista tar ainda: mediante o batuque dos sam- também desvencilhar o samba e, conse- Getúlio Vargas encontra no ritmo um bistas. O carnaval e o samba, portanto, quentemente, a música brasileira de um espaço capaz de reunir os brasileiros contribuíram de maneira decisiva para a exotismo artificial. Daí a ausência das pe- tão heterogêneos. Daí a sacada de invenção de um povo orgulhoso de seu nas, do pandeiro e das dançarinas. Com Oswald de Andrade, explicitada no caráter híbrido. a decantação estética da bossa nova, Manifesto da Poesia Pau-Brasil (1924) a música brasileira é reconhecida inter- de que “o carnaval do Rio de Janeiro é O samba e o projeto nacionalista nacionalmente não mais apenas pelo seu Line) Como a construção de uma identida- exotismo, mas também pelo valor intrín-  Getúlio Dornelles Vargas (1882-1954): po- de brasileira se dava, basicamente, seco de suas canções. Com a bossa nova, lítico gaúcho, nascido em São Borja. Foi pre- o movimento concretista, a construção de sidente República nos seguintes períodos: a partir da exaltação do carnaval e do 1930-1934 (Governo Provisório), 1934-1937 samba, coube ao governo Vargas tentar Brasília e o triunfo do futebol brasileiro na (Governo Constitucional), 1937-1945 (Regime organizar este ideário para irem ao en- Copa do Mundo de 1958, o Brasil parecia de Exceção), 1951-1954 (Governo eleito po- superar um complexo de inferioridade pularmente). Sobre Getúlio o IHU promoveu o contro do projeto nacionalista do Esta- Seminário Nacional A Era Vargas em Questão dista. Desde então, o samba e o carnaval histórico. No entanto, a crise política dos – 1954-2004, realizado de 23 a 25 de agosto carioca são legitimados como símbolos anos 1960, seguida pela implantação de de 2004. Paralela ao evento aconteceu a Expo- uma ditadura militar no Brasil, comprome- sição Eu Getúlio, Ele Getúlio, Nós Getúlios, no identitários da nação. Em contrapartida, Espaço Cultural do IHU. A revista IHU On-Line o governo passa a organizar o carnaval teria essas promessas de felicidade, de publicou os seguintes materiais referentes a do Rio de Janeiro e a interferir na te- modernidade e harmonia e configuraria Vargas: edição 111, de 16-08-2004, intitulada mática das canções, incentivando os um caos, magistralmente captado por A Era Vargas em Questão – 1954-2004, disponí-  10 vel em http://migre.me/QYAi, e a edição 112, sambas de exaltação à pátria, aos bons em Terra em transe e de 23 -08-2004, chamada Getúlio, disponível costumes e ao trabalho, em detrimento pela tropicália. em http://migre.me/QYBn. Na edição 114, de 06-09- 2004, em http://migre.me/QYCb, Da- aos numerosos sambas de incentivo à va- niel Aarão Reis Filho concedeu a entrevista O diagem, à orgia e à insubmissão. Quan- desafio da esquerda: articular os valores de- to mais o samba se consagrava como o mocráticos com a tradição estatista-desenvol- vimentista, que também abordou aspectos do ritmo nacional, mais se tornava um ins-  Glauber de Andrade Rocha (1939-1981): político gaúcho. Em 26-08-2004 o Prof. Dr. Ju- trumento da ideologia varguista. Conse- cineasta brasileiro e também ator e escritor. remir Machado da Silva, da PUCRS, apresentou quentemente se dá a monumentalização Começou a realizar filmagens (seu filme Pátio, o IHU Ideias Getúlio, 50 anos depois. O evento de 1959, ao mesmo tempo em que ingressou gerou a publicação do número 30 dos Cader- do samba, evidente no samba-exaltação na Faculdade de Direito da Bahia, hoje da nos IHU Ideias, chamado Getúlio, romance ou de Aquarela do Brasil. Por fim, o samba Universidade Federal da Bahia, entre 1959 a biografia?, também de autoria de Juremir, dis- é limitado pelo seu próprio estereótipo. 1961), que logo abandonou para iniciar uma ponível em http://migre.me/QYDR. Vale des- breve carreira jornalística, em que o foco era tacar o Caderno IHU em formação número 1,  Aquarela do Brasil: também conhecida como sempre sua paixão pelo cinema. (Nota da IHU publicado pelo IHU em 2004, intitulado Popu- “Aquarela Brasileira” é uma da mais populares On-Line) lismo e Trabalho. Getúlio Vargas e Leonel Bri- canções brasileiras de todos os tempos, escrita 10 Terra em Transe: filme brasileiro de 1967, zola, disponível em http://migre.me/QYEE. pelo compositor mineiro em 1939. do gênero drama, roteirizado e dirigido por (Nota da IHU On-Line) (Nota da IHU On-Line) Glauber Rocha. (Nota da IHU On-Line)

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16 SÃO LEOPOLDO, 14 DE NOVEMBRO DE 2011 | EDIÇÃO 380 A estreita correlação entre a música e as questões culturais, sociais e políticas

“A canção popular tornou-se um espaço crítico em relação ao seu meio de produção, consumo e circulação”, constata Santuza Cambraia Naves

Por Graziela Wolfart

professora e pesquisadora Santuza Cambraia Naves acredita que, pelo menos no caso brasileiro, “as canções têm a mesma importância da literatura e dos ensaios sociológicos no sentido não apenas de comentar aspectos importantes da cultura local, mas também de criá-la”. Ela fez essa e outras afirmações na entrevista que se segue, concedida por e-mail àIHU On-Line. Segundo ela, “os anos 1960 foram marcados por uma consciência nacionalista muito forte, o que levou essa geração de Acompositores emepebistas a proceder à maneira de Mário de Andrade, procurando representar o Brasil através das sonoridades oriundas das três raças (a ameríndia, a africana e a europeia)”. Santuza Cambraia Naves realiza pesquisas na área de Antropologia da Música e da Antropologia da Arte desde os anos 1980. Defendeu dissertação de mestrado no Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social do Museu Nacional, da Universidade Federal do Rio de Janeiro – UFRJ, intitulada Objeto não identificado: a tra- jetória de Caetano Veloso, e tese de doutorado em Sociologia no Instituto Universitário de Pesquisas do Rio de Janeiro, intitulada O violão azul: modernismo e música popular. Integra o quadro permanente de professores do Departamento de Sociologia e Política da PUC-Rio. É autora de, entre outros: O violão azul: modernismo e música popular (Rio de Janeiro: Editora FGV, 1998); Da bossa nova à tropicália. (Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2001); e Canção popular no Brasil (Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 2010). Confira a entrevista.

IHU On-Line – Como é que você che- cotidiano; ora ao comentário de tex- intertextuais e metalinguísticos. gou ao conceito de canção crítica? tos que constam do repertório musical, Santuza Cambraia Naves – Após pes- jornalístico e cinematográfico, entre ou- IHU On-Line – Até que ponto as “di- quisar sonoridades criadas em diver- tros; ora também à metalinguagem. retrizes” de Mário de Andrade para a sos momentos no século XX, concluí Esse tipo de procedimento foi reto- música brasileira contribuíram para a que, principalmente após a bossa nova, mado pela geração seguinte que criou a sustentação da MPB? Podemos afirmar a canção popular tornou-se um espaço MPB e uma década depois pelos músicos que com o tropicalismo pela primeira crítico em relação ao seu meio de pro- tropicalistas, que também recorreram vez são questionadas essas diretrizes? dução, consumo e circulação. A música ao comentário crítico e, de maneira inu- O que prevalece no cenário atual? É popular passou não só a dialogar com a sitada, à metalinguagem. Tal maneira de ainda produtiva a escolha do termo crítica, como a incorporar elementos e operar a canção popular caracterizou o MPB? referências de outras áreas, como a li- fenômeno cultural que se desenvolveu Santuza Cambraia Naves – Uma série de teratura, as artes plásticas, o teatro e no Brasil pelo menos a partir do final dos procedimentos que, no período moder- o cinema. Ao proceder dessa maneira, anos 1950, quando o compositor popular nista, era restrita à música erudita pe- o compositor popular passou a contar passou a ser reconhecido como um inte- netrou, principalmente a partir dos anos com uma pluralidade de interlocutores lectual, um crítico da cultura. Não se 1950, no terreno da canção popular. Se — do universo “elevado” das discussões trata de uma crítica que se restringe à Mário de Andrade defendia a transfigu- eruditas ao menos nobre da comunica- participação do intelectual na vida pú- ração erudita do “populário” (a cultura ção de massa — e introduziu, no terre- blica, como de fato ocorre, mas tam- popular não contaminada pelo proces- no da música popular, um componente bém de operar com o pensamento crí- so civilizatório) em prol de um projeto crítico, recorrendo ora à referencialida- tico no próprio processo criativo, como construtivo (no caso, de construção da de, buscando tematizar fragmentos do já vimos, lidando com procedimentos identidade nacional), o que se aplica-

SÃO LEOPOLDO, 14 DE NOVEMBRO DE 2011 | EDIÇÃO 380 17 va com perfeição à música de Villa-Lo- da poesia pau-brasil, de 1924. rais — para não dizer sociais, e também bos, mais tarde, principalmente a par- Quanto ao cenário atual, podemos políticas — mais abrangentes. Acredito tir do final dos anos 1950, essa proposta dizer que nele nada é hegemônico; pelo que, pelo menos no caso brasileiro, as passou a ser colocada em prática, de contrário, vemos a proliferação hoje em canções têm a mesma importância da maneira atualizada, pelos compositores dia das mais diversas tendências musi- literatura e dos ensaios sociológicos no populares. Assim, a ideia modernista de cais. O termo MPB continua sendo usa- sentido não apenas de comentar aspec- “transfiguração” do elemento popular do como rótulo classificatório de estilos tos importantes da cultura local, mas para uma linguagem erudita atualizou- musicais, embora a sigla não tenha mais também de criá-la. se na prática dos músicos populares que o conteúdo semântico de quando foi criaram a MPB, através da recriação de criada, em meados da década de 1960. IHU On-Line – Estaria a canção brasilei- sonoridades legadas pela tradição. Hoje, por exemplo, considera-se MPB o ra ou a canção crítica, perdendo a sua Os anos 1960 foram marcados por chamado “rock brasileiro anos 1980”, força na atual conjuntura, momento uma consciência nacionalista mui- o que seria impensável nos anos 1960, em que começamos a vislumbrar a al- to forte, o que levou essa geração de quando a Jovem Guarda era considerada fabetização total da população? compositores emepebistas a proceder uma traição aos pressupostos nacionalis- Santuza Cambraia Naves – Tenho dúvi- à maneira de Mário de Andrade, procu- tas da MPB. das com relação aos resultados alcança- rando representar o Brasil através das dos via alfabetização. Será que o indiví- sonoridades oriundas das três raças (a IHU On-Line – Por que não considerar a duo alfabetizado vai utilizar esse recurso ameríndia, a africana e a europeia). O bossa nova um movimento? para a fruição de literatura, ou poesia? tropicalismo questionou as premissas na- Santuza Cambraia Naves – A ideia de Não saberia responder a essa pergunta, cional-populares que fundamentaram a movimento pressupõe programas, ma- mas poderia dizer, isto sim, que costumo MPB, pensando o Brasil pela perspectiva nifestos e alguns outros procedimentos identificar alguns procedimentos críti- de Oswald de Andrade. Assim, em vez comprometidos com a ruptura com de- cos em criações musicais as mais diver- da síntese promovida pelas três cultu- terminadas tradições e a construção de sas, e às vezes não necessariamente na ras constitutivas do país, como se vê na uma nova ordem, política, estética ou tradição do nosso cancioneiro. Credito proposta de Mário de Andrade, os músi- cultural. A bossa nova tem uma sensibili- a Marcelo D2, por exemplo,a atuação cos tropicalistas aceitaram a proposta dade parecida, mas falta-lhe um tipo de crítica em diversas composições,embora oswaldiana de conectar elementos apa- organização que poderia caracterizá-la ele seja um rapper,e não propriamente rentemente díspares: o local e o global, como movimento. cancionista. o arcaico e o moderno, e os “bárbaros”  Marcelo D2: nome artístico de Marcelo Mal- e os “meigos”, como se vê no Manifesto IHU On-Line – Como você avalia os tra- donado Gomes Peixoto (1967), rapper brasilei- balhos resultantes das suas orienta- ro e ex-vocalista da banda Planet Hemp, que  Heitor Villa-Lobos (1887-1959): compositor hoje segue em carreira solo. “D2”, no jargão brasileiro. Aprendeu as primeiras lições de ções relacionados ao assunto música dos usuários de maconha, significa dar apenas música com seu pai, Raul Villa-Lobos, funcio- popular brasileira? Qual a importância alguns “tragos” na droga; Marcelo é assumi- nário da Biblioteca Nacional. Ele lhe ensinara dessa produção? Por que é preciso es- damente usuário da droga, e teria colocado o a tocar violoncelo usando improvisadamente D2 em seu nome como forma de expressar que uma viola, devido ao tamanho de “Tuhu” (ape- tudar canção no Brasil? fuma maconha - e foi falando dela que ele co- lido de origem indígena que Villa-Lobos tinha Santuza Cambraia Naves – Os trabalhos meçou nos palcos. Célebre por misturar o sam- na infância). Sozinho, aprendeu violão na ado- que orientei até agora partem do pres- ba com a black music, fez várias parcerias com lescência, em meio às rodas de choro cariocas, artistas de outros gêneros, como o axé music, às quais prestou tributo em sua série de obras suposto de que há uma estreita correla- e com pessoas que fazem batidas de música mais importantes: Os Choros, escritos na déca- ção entre a música e as questões cultu- eletrônica com a boca, popularmente conheci- da de 1920. (Nota da IHU On-Line) do como beatbox. (Nota da IHU On-Line)

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18 SÃO LEOPOLDO, 14 DE NOVEMBRO DE 2011 | EDIÇÃO 380 O complexo caminho da bossa nova ao rap Para Walter Garcia, a canção popular brasileira extrapolou a banalidade que se espera das produções feitas para competir no mercado

Por Graziela Wolfart e Pedro Bustamante Teixeira

o estabelecer possíveis relações entre a bossa nova e o rap, o professor da USP, Walter Garcia, afirma que “se formaram dois sistemas na canção brasileira de mercado (...). Num desses sis- temas, João Gilberto ocupa o lugar central. Noutro, o Racionais MC’s”. A afirmação foi feita em entrevista concedida por e-mail para a IHU On-Line. Walter Garcia da Silveira Junior é professor da área temática de Música do Instituto de Estudos ABrasileiros da Universidade de São Paulo – USP, pesquisa a canção popular comercial e a canção popular tradi- cional brasileira. Violonista e compositor, é doutor e mestre em Literatura Brasileira pela USP. Publicou o livro Bim Bom: a contradição sem conflitos de João Gilberto(São Paulo: Paz e Terra, 1999). Confira a entrevista.

IHU On-Line – Quais foram as maiores contribui ou não para o estudo dos Ra- tando-a evidentemente às condições dificuldades para conciliar os estudos cionais MC’s. Mas penso que não há exa- de realização da canção popular). Num da linguística aos estudos da música tamente um caminho da “bossa nova” desses sistemas, João Gilberto ocupa o popular brasileira e do rap? ao “rap”. Aliás, como não é nada fácil li- lugar central. Noutro, o Racionais MC’s Walter Garcia – Sou formado em jorna- dar com esses rótulos, seria melhor afir- ocupa o lugar central. lismo pela Universidade de São Paulo. mar que não vejo um caminho que vá de Desde quando iniciei o mestrado na área João Gilberto aos Racionais MC’s. Penso, IHU On-Line – Haveria algo em co- de literatura brasileira, em 1993, tam- sim, que se formaram dois sistemas na mum entre o gesto de João Gilberto bém na USP e sob orientação de José canção brasileira de mercado (remeto- e o gesto de ? Antonio Pasta, sujeitei o meu (limitado) me à noção de sistema trabalhada por Walter Garcia – Sim, o fato de ambos estudo de linguística à compreensão do Antonio Candido na literatura, adap- serem grandes artistas. Nesse senti- trabalho de análise da canção desenvol- Perfeccionista, apresenta-se com sucesso em ta Clima (1941-4) e dos jornais Folha da Ma- vido por Luiz Tatit. Assim, não houve todo o mundo (Nota da IHU On-Line) nhã (1943-5) e Diário de São Paulo (1945-7). nenhuma dificuldade, uma vez que nun-  Racionais MC’s: grupo brasileiro de rap, fun- Na vida política, participou de 1943 a 1945 na dado em 1988 na periferia da cidade de São luta contra a ditadura do Estado Novo no grupo ca estudei qualquer tópico de linguísti- Paulo por Mano Brown (Pedro Paulo Soares Pe- clandestino Frente de Resistência. Escreveu o ca senão para estudar a canção popular reira), Ice Blue (Paulo Eduardo Salvador), Edy clássico Parceiros do Rio Bonito (1964). Sobre brasileira. Rock (Edivaldo Pereira Alves) e KL Jay (Kleber ele, conferir as entrevistas “A literatura é um Geraldo Lelis Simões). Suas letras falam sobre direito do cidadão, um usufruto peculiar”, a realidade das periferias urbanas brasileiras, concedida por Flávio Aguiar à IHU On-Line IHU On-Line – Em que medida o seu discutindo temas como o crime, pobreza, pre- nº 278, de 20-10-2008, intitulada A financei- estudo sobre João Gilberto, trazido conceito social e racial, drogas e consciência rização do mundo e sua crise. Uma leitura a política. Usando a linguagem da periferia, partir de Marx, e “Antonio Candido e a crítica no livro Bim Bom, contribui para o com expressões típicas das comunidades po- cultural contemporânea”, concedida por Célia estudo da música dos Racionais MC’s? bres com o objetivo de comunicar-se de for- Pedrosa à IHU On-Line nº 283, de 24-11-2008, Como é percorrer o caminho que vai ma mais eficaz com o público jovem de baixa intitulada As Ciências Sociais, hoje. Os 50 anos renda, as letras do grupo fazem um discurso do curso de Ciências Sociais da Unisinos. (Nota da bossa nova de João Gilberto ao contra a opressão à população marginalizada da IHU On-Line) rap dos Racionais MC’s? na periferia e procuram passar uma postura  Mano Brown: nome artístico de Pedro Paulo Walter Garcia – Não sei avaliar se a mi- contra a submissão e a miséria. Apesar de atu- Soares Pereira (1970), rapper brasileiro, voca- ar essencialmente na periferia paulistana, de lista dos Racionais MC’s, grupo de rap formado nha dissertação de mestrado sobre João não fazer uso de grandes mídias e se recusar na capital paulista em 1988. É autor de canções Gilberto, depois publicada em livro, a participar de grandes festivais pelo Brasil, como “Vida Loka I”, “Vida Loka II”, “Negro  Confira sua entrevista concedida nesta edi- o grupo vendeu durante a carreira cerca de 1 Drama” (com Edy Rock), “A Vida é Desafio”, ção. ��������(Nota da IHU On-Line) milhão e 700 mil cópias de seus álbuns. (Nota “Jesus Chorou”, “Da Ponte pra Cá”, “Capítulo  João Gilberto: João Gilberto Prado Pereira da IHU On-Line) 4, Versículo 3”, “Tô Ouvindo Alguém Me Cha- de Oliveira, conhecido como João Gilberto,  Antonio Candido de Mello e Souza (1918): mar”, “Diário de um Detento”, “Homem na Es- violonista e cantor, é considerado um dos pais escritor, ensaísta e professor universitário, um trada”, “Fim de Semana no Parque” (com Edy da bossa-nova brasileira, juntamente com Tom dos principais críticos literários brasileiros. É Rock), “Mano Na Porta do Bar”, “Negro Limi- Jobim. Nasceu em Juazeiro (BA), em 1931, professor emérito da USP e UNESP, e doutor tado” (com Edy Rock) e “Pânico na Zona Sul”, mudando-se para o Rio de Janeiro, em 1950. honoris causa da Unicamp. Foi crítico da revis- entre outras. (Nota da IHU On-Line) SÃO LEOPOLDO, 14 DE NOVEMBRO DE 2011 | EDIÇÃO 380 19 do, aguçar a sensibilidade ouvindo um pode ajudar no reconhecimento da qualidade artística de outro. Mas é lógico que, para tanto, a sensibilidade deve ultrapassar de- terminações de classe que, muitas vezes, se confundem com o chamado gosto pessoal. O produtivo diálogo entre

IHU On-Line – De que se servem os Racio- sonoridades, textualidades e imagens nais MC’s em termos literários e musicais, na tentativa de traduzir esse olhar a par- Júlio Cesar Valladão Diniz entende que o conceito de li- tir da periferia de São Paulo? teratura como lugar estabilizado do cânone e da tradição Walter Garcia – Sem nenhuma pretensão de identificar todos os elementos, é possível di- não reflete mais os deslizamentos e transformações das ar- zer que o Racionais MC’s, até o momento, se tes na contemporaneidade. “A literatura é uma prática em serviu de: a) coragem para cantar a relação rotação, linguagem nômade, estética em processo”, define entre a vida nas periferias e a vida no centro expandido de São Paulo – ou, de modo mais amplo, entre a vida nas periferias urbanas Por Graziela Wolfart e Pedro Bustamante Teixeira e a vida das classes A e B no Brasil; b) in- teligência para identificar a amplitude dessa relação econômica e social, uma relação que a visão do professor da PUC-Rio, Júlio Cesar Valladão Diniz, se estabelece de vários modos mas sempre “os desafios para o alargamento do diálogo música/litera- com desvantagem para a vida nas periferias, tura que se apresentam neste século dizem respeito a dois sobretudo para a vida dos negros que nelas itens principais. O primeiro aponta para a necessidade de habitam; c) coragem e inteligência para con- aumentar os núcleos, laboratórios e grupos de pesquisa com verter em orgulho diversas marcas de humi- perfil transdisciplinar. O segundo vai ao encontro da demanda de um lhação; d) talento para cantar a violência, N sem deixar de ser contundente, sem fazer público, especializado ou não, que quer saber mais sobre as transfor- melodrama e sem vender sadismo; e) talen- mações da cultura contemporânea, e o lugar e papel da música po- to, outra vez, para rimar e para ritmar pala- pular nessas mudanças e reorganizações sociopolíticas e econômicas”. vras de rua, comunicando-se assim de forma Na entrevista a seguir, concedida por e-mail para a IHU On-Line, Diniz simples e bastante eficiente com quem lhe percebe que “no momento atual dos estudos de literatura e cultura, interessa; f) talento, uma vez mais, para uti- não há como considerar que o interesse por temas ligados ao diálogo lizar figuras da mídia (propagandas comer- literatura/música popular/ linguagens nos programas de pós é enorme ciais, marcas de sucesso, personagens de e crescente. Ninguém precisa mais se desculpar ou ficar se justificando filmes) na construção poética, desmitifican- do porquê pesquisar música no mestrado ou doutorado”. do-lhes o poder de encantamento. Júlio Cesar Valladão Diniz formou-se em Letras pela UFRJ e concluiu o mestrado e o doutorado em Literatura Brasileira pela Pontifícia Uni- IHU On-Line – Para você, o rap produzido no versidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-Rio), onde, desde 1987, é Brasil extrapola os domínios da canção? professor. Atualmente exerce o cargo de Diretor do Departamento de Walter Garcia – Para mim, nos melhores mo- Letras. Foi professor visitante na Universidad de Salamanca, Espanha, mentos dos dois sistemas aos quais aludi, a onde fez o pós-doutorado em 2000. Entre seus livros publicados citamos canção popular brasileira extrapolou a banali- Estudo de textos literários (Niterói: EDA, 1996) e Literatura linguagem dade que se espera das produções feitas para cultura (Niterói: EDA, 2000). Confira a entrevista. competir no mercado. Para citar um só dis- co de João Gilberto, é o caso de seu “Album Branco”, de 1973. Mas também se poderia ci- IHU On-Line - Quais foram as for- Em outras palavras, há pouquíssi- tar Caymmi e seu violão, lançado por Dorival mas de pensar o diálogo entre lite- mo tempo os pesquisadores aca- Caymmi em 1959, ou ainda Clara Crocodilo, ratura e música popular durante o dêmicos perceberam que a nossa lançado por Arrigo Barnabé e Banda Sabor século XX, e quais seriam as novas formação cultural passa obriga- de Veneno em 1980, como exemplos de pro- formas de pensar o diálogo entre toriamente pelo diálogo (quase dução artística desse sistema. Já para citar música popular e literatura no sé- sempre produtivo) entre sonorida- um só disco do Racionais MC’s, é o caso de culo XXI? des, textualidades e imagens. E o Sobrevivendo no inferno, de 1997. E também Júlio Cesar Valladão Diniz - A lei- interesse em observar, estudar e se poderia citar Tarja Preta, CD duplo lançado tura crítica da relação entre músi- pesquisar essas zonas de intersec- por Gog em 2004, como exemplo de produção ca popular e literatura é muito re- ção tem muito a ver com o Brasil. artística do outro sistema. cente e localizada espacialmente. Não há, com exceção dos Estados

20 SÃO LEOPOLDO, 14 DE NOVEMBRO DE 2011 | EDIÇÃO 380 Unidos, Inglaterra e alguns países la- “Não há, com exceção Santiago, José Miguel Wisnik, Luiz Ta- tino-americanos, lugar em que a mú- tit, Cláudia Neiva de Matos, Fred Góes, sica popular tenha tanta importância dos Estados Unidos, entre outros, ajudaram a pavimentar quanto aqui. Eu falo da música popular uma estrada que, hoje, aponta para sofisticada, complexa e sociocultural- Inglaterra e alguns países inúmeros caminhos. No momento atual mente crítica. Não me refiro aos hits dos estudos de literatura e cultura, não da indústria massiva do entretenimen- latino-americanos, lugar há como considerar que o interesse por to, quase sempre banais e alienados. temas ligados ao diálogo literatura/mú- Se tivéssemos que citar o iniciador das em que a música popular sica popular/ linguagens nos programas pesquisas sobre a relação música, li- de pós é enorme e crescente. Ninguém teratura e cultura, diríamos que Mário tenha tanta importância precisa mais se desculpar ou ficar se jus- de Andrade ocupa com justiça esse lu- tificando do porquê pesquisar música no gar. Mário foi o primeiro a se dedicar quanto aqui (Brasil)” mestrado ou doutorado. à matéria nos anos 1920 e 1930. Du- rante muito tempo os seus ensaios e clara a diferença, eu diria que analisar IHU On-Line - As faculdades de Letras livros foram as únicas referências mais somente a letra da canção é possível, estariam se preparando para a forma- consistentes na área. A partir do Ba- mas se resume a um exercício de fa- ção de críticos culturais? A crítica cul- lanço da bossa e outras bossas, de Au- lar sobre a música, sem considerar os tural tornou-se uma perspectiva para gusto de Campos, na década de 1960, atores, forças e estruturas linguísticas os acadêmicos da área? a produção analítica e crítica ganhou e sonoras que formam e atuam na can- Júlio Cesar Valladão Diniz - Tenho a cer- impulso. Antropólogos, sociólogos, his- ção. O diálogo mais produtivo e inven- teza que sim. A crítica cultural é, para toriadores, teóricos da literatura, filó- tivo se dá no em, que é quase sinônimo mim, o caminho mais fértil e potente sofos, pensadores na área de comuni- de com, e não no sobre. que as faculdades e departamentos de cação e mídia, além dos musicólogos Letras têm de tratar essa coisa nada fácil e etnomusicólogos, contribuíram em IHU On-Line - O que significa pesquisar de definir que é a literatura. O conceito muito para o amadurecimento e con- e produzir crítica não mais sobre, mas de literatura como lugar estabilizado do solidação desse campo de saber que em música - música popular, música cânone e da tradição não reflete mais os já nasceu interdisciplinar. Os desafios pop - no espaço dos Programas de Pós- deslizamentos e transformações das ar- para o alargamento do diálogo músi- Graduação em Letras? tes na contemporaneidade. A literatura ca/literatura que se apresentam nes- Júlio Cesar Valladão Diniz - Acho que a é uma prática em rotação, linguagem te século dizem respeito a dois itens entrada dos estudos em/de/com música Globo desde 1988. Foi considerado pelo críti- principais. O primeiro aponta para a popular nos departamentos de letras foi, co Wilson Martins como o sucessor de Carlos necessidade de aumentar os núcleos, Drummond de Andrade, no sentido de desen- no início, muito difícil. O preconceito volver uma “linhagem poética” que vem de laboratórios e grupos de pesquisa com era grande. Alguns doutos professores Gonçalves Dias, Bilac, Bandeira e Drummond. perfil transdisciplinar. O segundo vai e pesquisadores, que sofriam de torci- De sua obra, composta por cerca de 30 livros ao encontro da demanda de um pú- de ensaios, poesia e crônicas, destacamos Que colo intelectual, ou seja, olhavam para fazer de Ezra Pound? (São Paulo: Imago, 2003), blico, especializado ou não, que quer o Brasil com o pescoço inclinado para Desconstruir Duchamp (Rio de Janeiro: Vieira saber mais sobre as transformações a Europa e Estados Unidos, torciam os & Leme, 2003) e A cegueira e o saber (Rio de da cultura contemporânea, e o lugar Janeiro: Rocco, 2006). Sant’Anna esteve pre- seus preciosos narizes quando um jovem sente na Unisinos, participando do Simpósio e papel da música popular nessas mu- doutorando e/ou um jovem docente Internacional O Futuro da Autonomia. Uma danças e reorganizações sociopolíticas propunham estudar MPB. Ainda bem que sociedade de indivíduos? Nesta ocasião, o jor- nalista foi entrevistado pela IHU On-Line, com e econômicas.  Affonso Romano de Sant’Anna , Silviano o título “Pensar que o artista é mais livre que  Affonso Romano de Sant’Anna (1937): po- um engenheiro é uma temeridade”. A entre- IHU On-Line - Qual seria a diferença eta, jornalista brasileiro. Nos anos 1960, par- vista pode ser conferida na edição 220, de 21 entre produzir crítica sobre, e crítica ticipou dos movimentos que transformaram a de maio de 2007. Confira, ainda, nesta edição, poesia brasileira, interagindo com os grupos uma crônica de Sant’Anna sobre Drummond. em música? de vanguarda e construindo sua própria lingua- (Nota da IHU On-Line) Júlio Cesar Valladão Diniz - Produzir gem e trajetória. Também data desta época  Silviano Santiago (1936): ensaísta, poeta, crítica sobre música não contempla, sua participação nos movimentos políticos e professor contista e romancista brasileiro. sociais. Como poeta e cronista, foi conside- (Nota da IHU On-Line) para mim, o necessário diálogo entre rado pela revista Imprensa, em 1990, um dos  José Miguel Soares Wisnik (1948): músico, os componentes básicos e os campos dez jornalistas que mais influenciam a opinião compositor e ensaísta brasileiro. É também de construção, significação e desloca- de seu país. Dirigiu o Departamento de Letras professor de Literatura Brasileira na Universi- e Artes da Pontifícia Universidade Católica do dade de São Paulo. Graduado em Letras (Por- mento do largo constructo a que deno- Rio de Janeiro (PUC-Rio) na década de 1970, tuguês) pela Universidade de São Paulo, mes- minamos concisamente “música popu- organizou a “Expoesia”, evento que reuniu tre e doutor em Teoria Literária e Literatura lar”. Produzir crítica em música é levar 600 poetas num balanço da poesia brasileira Comparada, pela mesma Universidade. (Nota e trouxe ao Brasil conferencistas estrangei- da IHU On-Line) em conta todas as etapas do complexo ros como Michel Foucault. Como jornalista  Fred Góes (1948): professor da Faculdade sistema inter-semiótico e autopoiético trabalhou nos principais jornais e revistas do de Letras da Universidade do Rio de Janeiro - que faz as paisagens sonoras e os signos país: Jornal do Brasil, Senhor, Veja, Isto É e UFRJ, onde lidera, com apoio do CNPq, o Gru- O Estado de São Paulo. Foi cronista da Man- po Interdisciplinar de Estudos Carnavalescos. textuais circularem. Para deixar mais chete e do Jornal do Brasil. Está no jornal O (Nota da IHU On-Line) SÃO LEOPOLDO, 14 DE NOVEMBRO DE 2011 | EDIÇÃO 380 21 “Há pouquíssimo tempo os pesquisadores acadêmicos perceberam Confira outras edições que a nossa formação da IHU On-Line cultural passa obrigatoriamente pelo diálogo entre sonoridades, textualidades e imagens” nômade, estética em processo.

IHU On-Line - Neste contexto, como você avalia essa produção em música na área de Letras? Júlio Cesar Valladão Diniz - A produção nesse campo do saber é crescente e de incrível qualidade. Não gostaria de citar nenhum nome em especial, mas basta entrar no site da PUC-Rio e da biblio- teca central da universidade para saber quem está fazendo a história da pes- quisa música popular/literatura na pós- graduação em Letras no Rio e no Brasil. “Evoé, jovens à vista”, como já disse seu Chico em Paratodos.

IHU On-Line - Neste contexto, qual é a importância do Núcleo de Estudos em Li- teratura e Música - NELIM? Júlio Cesar Valladão Diniz - O NELIM é um centro de pesquisa sediado na Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro. Ele foi criado originalmente em 2008 no Departamento de Letras, e hoje conta com a parceria dos departamentos de So- ciologia e Política, Engenharia Elétrica e pesquisadores da área de História. O Nú- cleo tem três linhas básicas de atuação, todas voltadas para a relação entre cultu- ra, literatura e música: pesquisa e divulga- ção de conteúdo, produção de eventos e consultoria de projetos. O NELIM mantém convênios de cooperação acadêmica e parcerias específicas com órgãos federais e estaduais de fomento, instituições públi- cas e privadas e organizações não gover- Elas estão disponíveis na página eletrônica namentais. Estamos fazendo um trabalho bem dinâmico lá e contamos com o apoio www.ihu.unisinos.br e a participação de todos que se interes- sam pelo tema.

22 SÃO LEOPOLDO, 14 DE NOVEMBRO DE 2011 | EDIÇÃO 380 SÃO LEOPOLDO, 14 DE NOVEMBRO DE 2011 | EDIÇÃO 380 23 Entrevistas da Semana As redes digitais vistas a partir de uma perspectiva reticular “A revolução digital é hoje a última revolução comunicativa que alterou, pela primeira vez na história da humanidade, a própria arquitetura do processo informativo”, constata o sociólogo

Por Moisés Sbardelotto

revolução digital é hoje a última revolução comunicativa que alterou, pela primeira vez na história da humanidade, a própria arquitetura do processo informativo”. Isso se deu pela “substituição da forma frontal de repasse das informações (teatro, livro, imprensa, cine- ma, TV) por aquela reticular, interativa e colaborativa”. É a partir desse contexto que o sociólogo ítalo-brasileiro Massimo Di Felice explica o “Asurgimento de “uma nova forma de interação, consequência de uma inovação tecnológica que altera o modo de comunicar e seus significados, estimulando, ao mesmo tempo, inéditas práticas interativas entre nós e as tecnologias de informação”. Nesta entrevista, concedida por e-mail à IHU On-Line, Di Felice, que também é coordenador do Centro de Pesquisa Atopos (ECA/USP), repassa diversos conceitos e abordagens pesquisados por ele, como netativismo, sujeito e território, pós-humanismo, redes digitais e sustentabilidade. E também aprofunda sua reflexão sobre os desdobramentos das redes digitais, que exigem uma perspectiva reticular de análise, o que leva a uma superação da complexidade moriniana. “Quando falamos de rede não estamos falando de um sistema. Estamos, portanto, perante um tipo de complexidade não sistêmica, enquanto não composta nem subdivisível num conjunto de partes interdependentes, pois seus fluxos informativos não são lineares e suas dinâmicas interativas não são frontais”. Massimo Di Felice é sociólogo pela Universidade La Sapienza de Roma e doutor em Comunicação pela Uni- versidade de São Paulo. É professor na Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo onde coordena o Centro de Pesquisa Atopos (ECA/USP), que desenvolve estudos sobre as transformações sociais pro- movidas pelo advento das novas tecnologias comunicativas digitais. É professor visitante da Libera Università di Lingue e Comunicazione (IULM) de Milão. É autor de ensaios e artigos editados na Itália em revistas acadêmi- cas tais como La Critica Sociológica e Agalma. No Brasil, coordena a coleção Era Digital, na qual é organizador das obras Do público para as redes (2008) e Pós-humanismo (2010); e a coleção Atopos (Editora Annablume), na qual publicou os livros Paisagens pós-urbanas: O fim da experiência urbana e as formas comunicativas do habitar (2009) (obra traduzida em italiano e em espanhol) e Redes digitais e sustentabilidade: As relações com o meio ambiente na época das redes (2011). Confira a entrevista.

IHU On-Line – Como podemos com- formação social. Nas ciências sociais, McLuhan, a função social das mídias preender a importância e o signifi- como é conhecido, difundiu-se no sé- não se limita ao seu conteúdo ou ao cado das redes digitais no contexto culo XX um paradigma interpretativo seu impacto social: “As sociedades atual? que analisava a função social das mí- sempre foram influenciadas mais pela Massimo Di Felice – Como aconteceu dias a partir de uma perspectiva ins- natureza dos media, através dos quais em outras épocas da história, o adven- trumental que julgava a comunicação os homens comunicam, do que pelo to de uma nova tecnologia comunica- como uma simples atividade de re- conteúdo da comunicação”. Daqui a tiva gera transformações qualitativas passe das informações entre os atores necessidade de repensar a função so- em todos os setores da sociedade. sociais e, portanto, atribuindo-lhes a cial da comunicação que se estende Marshall McLuhan foi um dos poucos simples função de veículo e represen- para além do impacto social de seu autores do século XX, junto a Walter tando-as como um conjunto de canais conteúdo ou da sua função política. Benjamin, a observar a importância passivos e jamais intervenientes como Descobre-se, assim, a partir dessa das mídias a das formas comunicati- partes ativas no processo. ótica, a importância estrutural da in- vas no interior dos processos de trans- Ao contrário, como observado por trodução de uma nova tecnologia da

24 SÃO LEOPOLDO, 14 DE NOVEMBRO DE 2011 | EDIÇÃO 380 comunicação, do advento da escrita uma importante dimensão social da estamos incluindo nesse o conjunto na cultura ocidental, da impressão no técnica que as ciências sociais aborda- de populações vegetais, animais e mi- século XV, através da invenção de Gu- ram geralmente de forma superficial, nerais aí residentes. Porém, ao fazer tenberg, assim como da eletricidade preferindo se concentrar na análise po- esta soma, devemos incluir também as e das mídias de massa no século XX. líticas dos impactos e de seus efeitos, aves, parte das quais por metade do A cada uma dessas revoluções comuni- valendo de uma perspectiva dialética ano emigram para outras localidades, cativas alterou-se não apenas a forma que compreendia a técnica como algo modificando com as suas ausências o de comunicar – isto é, a quantidade externo ao social e, consequentemen- meio ambiente, como também a ação do público atingido pela informação, te, como uma ameaça às atividades do animal humano que resultará nas reduzindo-se o tempo e os custos ne- humanas e à sociedade como todo. Se emissões de CO2, pela eletricidade cessários a difusão –, mas também a continuarmos a concentrar nossa aten- pela difusão no território de elemen- sociedade inteira que passou por qua- ção apenas nos efeitos dos “meios” e tos químicos, etc., estendendo o mi- litativas transformações. na dimensão política de suas mensa- croclima e a delimitação ecológica dos gens, não conseguiremos mais enten- ecossistemas, para além do perímetro Revolução digital, revolução co- der as transformações sociais em ato e da própria lagoa. Se acrescentamos a municativa suas dimensões tecnossociais. esses elementos a quantidade de chu- A revolução digital é hoje a última va ou a luz do sol, elementos funda- revolução comunicativa que alterou, IHU On-Line – Em conferência recen- mentais para o normal funcionamento pela primeira vez na história da huma- te, o senhor abordou o conceito de do ciclo de vida dos ecossistemas, en- nidade, a própria arquitetura do pro- “pós-complexidade”, propondo um tendemos que ele seja um conjunto de cesso informativo, realizando a substi- modo de pensar a comunicação digi- redes de redes indelimitável. Quando tuição da forma frontal de repasse das tal a partir de um “paradigma reti- falamos de comunicação em rede de- informações (teatro, livro, imprensa, cular”. O paradigma complexo está vemos ter presente tudo isso. cinema, TV) por aquela reticular, inte- superado? Que questionamentos as rativa e colaborativa. Surge, portanto, redes colocam à reflexão contempo- “Somos rede” uma nova forma de interação, consequ- rânea? Mas existe outro elemento decisi- ência de uma inovação tecnológica que Massimo Di Felice – As redes digitais, vo que devemos levar em conta e que altera o modo de comunicar e seus sig- isto é, o conjunto de redes de redes, nos leva a superar a lógica do siste- nificados, estimulando, ao mesmo tem- apresentam-se, antes de tudo, como ma. Esse elemento está relacionado po, inéditas práticas interativas entre um problema hermenêutico. Quando à impossibilidade da visão externa do nós e as tecnologias de informação. falamos de rede não estamos falando conjunto de redes de redes. A única É evidente como, perante tais pers- de um sistema. A forma rede é sempre forma para observar um processo reti- pectivas, se faz necessária uma nova um conjunto de redes de redes, isto cular é fazer parte dele, experimentá- teoria social das mídias e uma nova é, um conjunto de conjunto de inter- lo e, portanto, alterá-lo, modificá-lo, perspectiva dos estudos de comunica- relações, cujos limites ou perímetros aspecto este que impossibilita a sua ção. Não podemos mais pensar as mí- são ilimitados e remetem, sobretudo, percepção objetiva. Acontece numa dias como “ferramentas”, instrumentos a mais de um sujeito. arquitetura reticular algo próximo ao a serem utilizados, pois, ao utilizarmos Uma vez que o repasse de informa- que aconteceu no estudo da matéria na novos meios, passamos a desenvolver ções não é mais frontal (emissor-re- física, em particular, algo próximo ao novas formas de interação e experi- ceptor), este acontece entre diversos princípio de indeterminação de Wer- mentamos novos modos de comuni- membros e coletivos; a digitalizar-se ner Heisenberg, que estabelece uma car, por exemplo, as redes sociais e os não são apenas as relações comunica- relação dialógica entre o observador e smartphones são portadores de inova- tivas entre as pessoas, mas também os o objeto observado. Tal relação se dá ção não apenas no âmbito tecnológico, territórios, as mercadorias, os obje- não apenas no momento da observa- mas também no social, sensorial, polí- tos, o meio ambiente, a natureza etc. ção, mas também na fase anterior e tico, econômico e cultural. Devemos pensar, portanto, o processo em todas as fases da pesquisa. Evidencia-se em tal perspectiva comunicativo em rede como um ecos- Como é conhecido, o estudo das sistema e, portanto, sujeito como to- partículas subatômicas pressupõe a es-  Johannes Gutenberg (1398-1468): inventor e gráfico alemão que introduziu a forma mo- dos os ecossistemas a um conjunto de colha prévia de uma específica teoria derna de impressão de livros - a prensa móvel- relações com os outros ecossistemas que possibilitou a divulgação e cópia muito no interior da biosfera que torna cada  Werner Heisenberg: físico alemão encarre- mais rápida de livros e jornais. Sua invenção gado do programa nuclear de Hitler. Durante o do tipo mecânico móvel para impressão come- um parte de uma rede de redes. Simpósio Internacional Terra Habitável: um çou a Revolução da Imprensa e é amplamen- A delimitação de um ecossistema desafio da humanidade, realizado na Unisi- te considerado o evento mais importante do é uma operação arbitrária, legítima, nos em maio de 2005, foi apresentada a peça período moderno. Teve um papel fundamental teatral Copenhagen, que teve como temas no desenvolvimento da Renascença, Reforma e contudo, não objetiva. Como nos ex- centrais a questão nuclear, a ética e a respon- na Revolução Científica e lançou as bases ma- plicam as ciências biológicas, quando sabilidade dos cientistas, remetendo-se a um teriais para a moderna economia baseada no nós falamos de um ecossistema qual- misterioso encontro, em 1941, entre os pais conhecimento e a disseminação da aprendiza- da física quântica, Niels Bohr e Werner Heisen- gem em massa. (Nota da IHU On-Line) quer, por exemplo, uma lagoa, nós berg. (Nota da IHU On-Line) SÃO LEOPOLDO, 14 DE NOVEMBRO DE 2011 | EDIÇÃO 380 25 da matéria, cuja opção irá determinar de conflitualidade e práticas partici- e como cenário único a luta pela con- o tipo de objeto a ser observado. Por- pativas horizontais. quista do poder. Às vezes através da tanto, o resultado do nosso pesquisar Há anos venho estudando tais mo- busca da hegemonia por meio do de- mudará conforme a nossa ideia de rede vimentos e tais práticas de conflitu- bate e da confrontação democrática, e o tipo de concepção de rede que ele- alidade que hibridizam nas ações as outras vezes, através da luta armada. gemos antes de começar a observação. arquiteturas informativas virtuais com Esses movimentos não aspiram a con- Como observou George Bateson, não aquelas também virtuais dos espaços quista do poder – e isso é praticamen- podemos nos colocar externamente a nacionais ou com aquelas arquitetô- te comum a todos –, mostrando uma um processo comunicativo reticular, nicas dos espaços urbanos. São movi- preocupação mais profunda com uma pois estamos nele, fazemos parte dele, mentos e ações muito distintas entre transformação mais radical que rea- assim como ele nos compõe. si, surgidos em contextos diferentes e lize mudanças mais profundas do que Estamos, portanto, perante um com tipologias e finalidades diversas. aquela alcançável com a mudança de tipo de complexidade não sistêmica Mesmo assim podemos distinguir algu- um governo para outro. enquanto não composta nem subdivi- mas características comuns destas no- sível num conjunto de partes interde- vas formas de conflitualidade social. Nova democracia pendentes, pois seus fluxos informati- A primeira está ligada ao aspecto Nesse sentido e coerentemente com vos não são lineares e suas dinâmicas de que são movimentos e formas de isso, tais movimentos não são partidá- interativas não são frontais. Parece- protagonismo que exprimem uma ex- rios, não possuem bandeiras políticas me que a perspectiva reticular supe- periência de um tipo de cidadania tec- ou ideológicas, mas fazem parte de ra a dimensão multicausal e aquela nológica e de um tipo de ação social um dinamismo que se articula ou pela da reversibilidade da complexidade, informativa realizada por um tecnoa- resolução de problemas concretos ou apresentada por Edgar Morin na obra tor, cujo âmbito de ação é expressão pela mudança de posturas. Em todos os “O Método”. de um social não apenas antropomór- casos, enquanto fora das instituições fico, mas tecnoinformativo que nasce, políticas tradicionais, inauguram outra IHU On-Line – Em seu livro Do público multiplica-se e encontra seus signifi- forma de conflitualidade, geralmente para as redes, o senhor propõe o con- cados em simbiose com as tecnologias não violenta, e podem ser já conside- ceito de “netativismo”. Em termos da informação, numa dimensão que rados como o início de uma nova época políticos, quais os avanços e os limi- podemos definir transorgânica. da democracia, que parece se apresen- tes oferecidos pelas tecnologias digi- A segunda característica está no tar como a superação da democracia tais? Qual a sua análise das recentes caráter atópico dessas formas de ações representativa e opinativa, uma vez mobilizações políticas ao redor do que superam o espaço nacional e ur- que as tecnologias da informação per- mundo, como o 15-O, e os novos flu- bano, ligando-se a outros movimentos mitem a participação direta e digital xos comunicacionais possibilitados parecidos ou expandindo o mesmo de todos. Tais movimentos não elegem pela internet? movimento em localidades diferentes, representantes, mas exprimem a von- Massimo Di Felice – Esse antecipou e como no caso dos Indignados e da Pri- tade de transformar os processos sem conseguiu descrever o que hoje está mavera Árabe. Além da esfera pública se limitar a opinar sobre os assuntos na mídia do mundo inteiro. Do wikile- nacional, tais formas de conflitualida- públicos, organizando-se em rede para aks até a Primavera Árabe, aos Movi- des apresentam-se ao mesmo tempo as mudanças reais. mentos dos indignados e às centenas como globais e locais. É necessário um novo olhar e no- de formas de ativismo e de conflitu- A terceira característica é que são vas teorias para compreendê-los. As alidade que surgem e se multiplicam movimentos sem líderes nem hierar- sentenças de alguns teóricos que de- na rede, invadindo sucessivamente as quia oficial. Às vezes existem porta- vem a sua fama às suas posições po- praças e as ruas, derrubando governos vozes, na maioria dos casos nem estes, líticas, como Slavoj Zizek, erraram o e antigos ditadores ou criando movi- e ninguém pensaria de se apresentar alvo, demonstrando a distância entre mentos que impulsionam novas formas como o líder do movimento. Esse as- as ideologias políticas modernas e as pecto é absolutamente novo e incom- dinâmicas das conflitualidades con-  Edgar Morin (1921-): sociólogo francês, au- tor de O Método. Os seis livros da série foram preensível no interior da lógica políti- temporâneas. tema do Ciclo de Estudos sobre “O Método”, ca partidária e representativa. promovido pelo Instituto Humanitas Unisinos A quarta característica é que são IHU On-Line – Já em seu livro Paisa- em parceria com a Livraria Cultura, de Por- to Alegre, em 2004. Embora seja estudioso ações que não têm como objetivo, em gens pós-urbanas, o senhor faz uma da complexidade crescente do conhecimento sua maioria, a luta pela conquista do científico e suas interações com as questões poder. Também esta é uma grande no-  Slavoj Žižek (1949): filósofo e teórico críti- humanas, sociais e políticas, se recusa a ser co esloveno. É professor da European Gradu- enquadrado na sociologia e prefere abarcar vidade se pensarmos que toda a his- ate School e pesquisador senior no Instituto um campo de conhecimentos mais vasto: filo- tória da conflitualidade no interior do de Sociologia da Universidade de Liubliana. É sofia, economia, política, ecologia e até bio- ocidente – desde as disputa política no também professor visitante em várias univer- logia, pois, para ele, não há pensamento que sidades estadunidenses, entre as quais estão a corresponda à nova era planetária. Além de O interior do Império Romano até a revo- Universidade de Columbia, Princeton, a New Método, é autor de, entre outros, A religação lução iluminista e aquelas socialistas School for Social Research, de Nova Iorque, e dos saberes. O desafio do século XXI (Bertrand – teve como espaço de confrontação a Universidade de Michigan. (Nota da IHU On- do Brasil, 2001). (Nota da IHU On-Line) Line) 26 SÃO LEOPOLDO, 14 DE NOVEMBRO DE 2011 | EDIÇÃO 380 análise das diversas formas de rela- existência de três épocas habitativas, ção entre sujeito, mídia e território. a primeira ligada à época midiática da HU On-Line – No contexto do advento Como sujeito e território se relacio- leitura, a segunda àquela da eletrici- das mídias digitais, o senhor propõe nam e que papel as mídias desempe- dade e da mídia de massa, e a terceira repensar o humanismo e o antropo- nham nesse contexto? que se difundiu em seguida ao advento centrismo, como abordado em seu Massimo Di Felice – Esse livro foi o das mídias digitais. Três formas comu- livro Pós-humanismo. Em que o hu- resultado de uma ampla pesquisa que nicativas e três práticas habitativas manismo e o antropocentrismo se durou dez anos e que havia como ob- diversas. tornaram “obsoletos” ou “supera- jetivo verificar a importância e o pa- A primeira eu defini empática e que dos”? Por outro lado, como podemos pel das mídias na construção das re- se caracteriza como a condição habi- pensar hoje a relação entre o huma- lações com o território e nas práticas tativa ligada à interação com o meio no e técnica? habitativas. O livro foi bem recebido, ambiente através da leitura que reduz Massimo Di Felice – Longe de apresen- traduzido na Itália e está em fase de o mundo e a paisagem ao texto, crian- tar-se como uma questão de fáceis so- publicação na Argentina, em Portugal do o processo de transformação do luções, a relação entre sujeito e meio e na França, dada a originalidade do território à imagem dos livros (cidades ambiente apresenta-se como uma argumento. Um dos conceitos-chave ideais), instituindo uma ligação entre questão, além de econômica, política foi aquele do habitar, desenvolvido o habitar, a escrita e o construir. e social, de qualidade filosófica. por Martin Heidegger que, ao analisar A segunda difunde-se com o advento A concepção antropocêntrica – que a dimensão relacional do ser e eviden- da eletricidade e do processo industrial marca a cultura ocidental, desde a ati- ciando seu dinamismo transformador, que inaugurou a experiência habitativa vidade filosófica de Sócrates, passan- reflete sobre sua dimensão habitativa. exotópica que descreve a experiência do pelo pensamento medieval (Santo Nela o ser encontrava sua essência di- própria do indivíduo que habita um Agostinho) até o cogito cartesiano e nâmica e não metafísica, na medida espaço desconhecido e autônomo que a filosofia moderna reduzindo o mun- em que habitava em cima da terra em se apresenta a ele como paisagem em do à “coisa” pensada e ao “objeto” baixo do céu, perto de deuses e dos movimento e independente (cinema, externo, excluindo, portanto, por mortais. escadas rolantes, elevadores e espaços inteiro do seu convívio os elementos Tal dimensão comunicativa do ha- metropolitanos modernos). não humanos, biológicos e ambientais bitar abriu a possibilidade de pensar Enfim, a terceira forma comunica- –, parece-nos hoje um dos principais o papel da mídia como um elemento tiva do habitar, a atópica, surge com a obstáculos ao desenvolvimento de um interveniente nas práticas habitativas, digitalização dos territórios e marca o pensamento ecológico. E, segundo capaz de alterar a percepção do lugar advento de uma interação com o ter- o filósofo Michel Serres, deveria ser e, ao mesmo tempo, de influenciar ritório e o meio ambiente em geral, posto em debate: as relações com o meio ambiente. A não mais transitiva nem externa, ca- “Esqueçamos, pois, a palavra am- partir de tais premissas, apontei para racterizada por um “genius loci tecno- biente (...). Ela pressupõe que nós,  Martin Heidegger (1889-1976): filósofo lógico”, que intervém para permitir e homens, estamos no centro de um sis- alemão. Sua obra máxima é O ser e o tempo alterar a condição habitativa. A nossa tema de coisas que gravitam à nossa (1927). A problemática heideggeriana é am- experiência do lugar e a nossa condi- volta, umbigos do universo, donos e pliada em Que é Metafísica? (1929), Cartas sobre o humanismo (1947), Introdução à meta- ção habitativa é, assim, resultado de possuidores da natureza. Isso lembra física (1953). Sobre Heidegger, a IHU On-Line uma mediação entre a nossa expe- uma época passada, em que a terra publicou na edição 139, de 2-05-2005, o artigo riência com um determinado tipo de colocada no centro do mundo refletia O pensamento jurídico-político de Heidegger e Carl Schmitt. A fascinação por noções fun- interface utilizada e o território. Algo o nosso narcisismo, esse humanismo dadoras do nazismo, disponível para download que experimentamos nas nossas inte- que nos promove no meio das coisas em http://migre.me/uNtf. Sobre Heidegger, rações nos espaços wireless ou através confira as edições 185, de 19-06-2006, intitula-  Sócrates (470 a. C. – 399 a. C.): filósofo da O século de Heidegger, disponível para do- da utilização dos smartphones e das ateniense e um dos mais importantes ícones wnload em http://migre.me/uNtv, e 187, de tecnologias de sistemas informativos da tradição filosófica ocidental. Sócrates não 3-07-2006, intitulada Ser e tempo. A descons- geográficos. Nesta a nossa condição valorizava os prazeres dos sentidos, todavia trução da metafísica, que pode ser acessado escalava o belo entre as maiores virtudes, jun- em http://migre.me/uNtC. Confira, ainda, o habitativa é determinada e negociada to ao bom e ao justo. Dedicava-se ao parto nº 12 do Cadernos IHU Em Formação intitula- com os fluxos informativos midiáticos, das ideias (Maiêutica) dos cidadãos de Atenas. do Martin Heidegger. A desconstrução da me- cuja consequência é a instauração de O julgamento e a execução de Sócrates são tafísica, que pode ser acessado em http://mi- eventos centrais da obra de Platão (Apologia gre.me/uNtL. Confira, também, a entrevista uma nova interação com o meio am- e Críton). (Nota da IHU On-Line) concedida por Ernildo Stein à edição 328 da biente e um novo tipo de ação, nem  Aurélio Agostinho (354-430): Conhecido revista IHU On-Line, de 10-05-2010, disponí- ativa nem passiva, mas informativa e como Agostinho de Hipona ou Santo Agostinho, vel em http://migre.me/FC8R, intitulada O bispo católico, teólogo e filósofo. É considera- biologismo radical de Nietzsche não pode ser não mais em direção ao externo. Tor- do santo pelos católicos e doutor da doutrina minimizado, na qual discute ideias de sua con- nou-se, portanto, necessária uma nova da Igreja. (Nota da IHU On-Line) ferência A crítica de Heidegger ao biologismo teoria da ação que no livro sintetiza-se  Michel Serres (1930): filósofo francês. - Es de Nietzsche e a questão da biopolítica, parte creveu entre outras obras O terceiro instruído integrante do Ciclo de Estudos Filosofias da no conceito de atopia, do greco a-to- e O contrato natural. Atuou como professor diferença - Pré-evento do XI Simpósio Inter- pos (algo fora de lugar, indizível, es- visitante na USP. Desde 1990 ele ocupa a pol- nacional IHU: O (des)governo biopolítico da tranho). trona 18 da Academia francesa. (Nota da IHU vida humana. (Nota da IHU On-Line) On-Line) SÃO LEOPOLDO, 14 DE NOVEMBRO DE 2011 | EDIÇÃO 380 27 ou no seu excelente acabamento (...). alterações das percepções da nature- plena da nossa condição contempo- É necessário mudar de direção e aban- za produzidas através da técnica. rânea, mas também para repensar, a donar o rumo imposto pela filosofia de Como observado no texto Pós-hu- partir de um ponto de vista histórico Descartes” (Serres, 1990, p. 100). manismo (Ed. Difusão, 2010): “estas mais amplo, a relação entre o homem Por outro lado, a origem tecnoló- alterações se iniciaram, portanto, e o mundo ao seu redor. gica da nossa percepção da natureza não apenas na época das redes e nos começa com o telescópio de Galileu10. contextos comunicativos digitais. Pelo IHU On-Line – Uma de suas últimas Desde então a técnica deixou de ser contrário, para dizê-lo, através de pesquisas trata das “redes digitais algo externo ao homem e começou a uma expressão concisa: sempre fomos e sustentabilidade”. Como o senhor influenciar a sua forma de perceber e pós-humanos. Pode se dizer que a par- percebe as interações sociais no am- de habitar, estabelecendo em seu uso, te ‘vencedora’ do humanismo, aquela biente digital nesse período de crise para questões e projetos ambientais, que mais se impôs e se tornou hege- ambiental? uma nova aliança entre o orgânico e o monia cultural, foi um longo parênte- Massimo Di Felice – Uns dos campos inorgânico, a técnica, a informação e se do antropocentrismo, a síntese e o que melhor exprime o reducionismo o meio ambiente. ápice do nosso narcisismo de espécie. epistêmico da razão moderna é, sem Pensarmo-nos a medida de todas as dúvida, a dificuldade com a qual o “Homem fora de si” coisas teve efeitos e consequências pensamento antropocêntrico e positi- A partir daí, não somente a técni- sobre o nosso ‘falar de nós’, sobre a vista abordou a questão da natureza. ca e os instrumentos de observação, nossa ‘autoconstrução’, e tem tam- A dramática urgência da questão am- como amplamente demonstrado pela bém permitido a edificação de uma biental que caracteriza a nossa época física, passaram a alterar a nossa con- estrutura conceitual certamente forte é o desvelamento do fracasso da ló- cepção da natureza, mas também co- e útil, mas, ao mesmo tempo, rígida e gica antropocêntrica e separacionista meçaram a estender o homem fora de exclusiva, fundada sobre a pretensão imposta pela razão e pelo pensamento si e, sobretudo, a produzir alterações de autarquia em relação ao mundo, ocidental. Na modernidade, o triunfo técnicas da percepção do humano e a à vida e às coisas. As tecnologias da da razão instrumental (Theodor Ador- tornar esse último não mais o centro comunicação ajudam-nos agora a lem- no11) e a imposição de uma separação da natureza, mas parte de um proces- brar que o lugar do homem no mundo identitária entre o homem (sujeito ati- so revelador que acabava reinventado é algo de diferente do que definimos vo e racional) e o meio ambiente (ma- cada vez mais o humano, através das a partir do humanismo e durante toda téria-prima, recursos) amplificaram  René Descartes (1596-1650): filósofo, físico a modernidade” (Di Felice & Pireddu, a concepção do caráter unidirecional e matemático francês. Notabilizou-se sobretu- do pelo seu trabalho revolucionário da Filoso- 2010, p. 15). dessa relação. fia, tendo também sido famoso por ser oin- O conjunto de inovações tecnoló- No entender de Serge Latouche12 ventor do sistema de coordenadas cartesiano, gicas e comunicativas que se difunde [que estará no IHU entre os dias 22 que influenciou o desenvolvimento do cálculo moderno. Descartes, por vezes chamado o fun- em nossa contemporaneidade redefine a 25 de novembro], um economista dador da filosofia e matemática modernas, ins- e altera o nosso cotidiano e os nossos 11 Theodor Wiesengrund Adorno (1903- pirou os seus contemporâneos e gerações de sentidos, mostrando-nos a inadequa- 1969): sociólogo, filósofo, musicólogo e com- filósofos. Na opinião de alguns comentadores, positor, definiu o perfil do pensamento alemão ele iniciou a formação daquilo a que hoje se ção e os limites dessa percepção histó- das últimas décadas. Adorno ficou conhecido chama de racionalismo continental (suposta- rica e nos obrigando a repensar o abso- no mundo intelectual, em todos os países, em mente em oposição à escola que predomina- lutismo do princípio de autoformação especial pelo seu clássico Dialética do Ilumi- va nas ilhas britânicas, o empirismo), posição nismo, escrito junto com Max Horkheimer, pri- filosófica dos séculos XVII e XVIII na Europa. e autodeterminação do humano. meiro diretor do Instituto de Pesquisa Social, (Nota da IHU On-Line) que deu origem ao movimento de idéias em fi- 10 Galileu Galilei (1564-1642) físico, matemá- Redefinição do humano losofia e sociologia que conhecemos hoje como tico, astrônomo e filósofo italiano que teve um Escola de Frankfurt. (Nota da IHU On-Line) papel preponderante na chamada revolução Desde a medicina, a biologia, a eco- 12 Serge Latouche: economista, sociólogo e científica. Desenvolveu os primeiros estudos nomia, a política até a comunicação, antropólogo, professor na Universidade de Pa- sistemáticos do movimento uniformemente os elementos tecnocomunicativos nos ris-Sul e presidente da Associação Linha do Ho- acelerado e do movimento do pêndulo. Des- rizonte. É autor de, entre outros, Les Dangers cobriu a lei dos corpos e enunciou o princípio permitem hoje o desenvolvimento de du marché planétaire (Os perigos do mercado da inércia e o conceito de referencial inercial, funções e atividades – anteriormente planetário. Paris: Editora Presses de Sciences, ideias precursoras da mecânica newtoniana. impossíveis –, que são a evidência do 1998). Latouche concedeu uma entrevista à Galileu melhorou significativamente o telescó- IHU On-Line n.º 100, de 10-05-2004, Como sal- pio refrator e terá sido o primeiro a utilizá-lo surgimento de uma nova relação (não var o planeta e a humanidade? Decrescimento para fazer observações astronómicas. Com ele mais definível em termos instrumen- ou desenvolvimento sustentável?, disponível descobriu as manchas solares, as montanhas tais) entre o orgânico e o inorgânico, para download em http://bit.ly/n1Zh6T. Con- da Lua, as fases de Vênus, quatro dos satéli- fira, também, a edição nº 56 dos Cadernos tes de Júpiter, os anéis de Saturno, as estrelas entre o sujeito e o território, e que IHU Ideias, intitulado O decrescimento como da Via Láctea. Estas descobertas contribuíram está contribuindo de forma qualitativa condição de uma sociedade convivial, dispo- decisivamente na defesa do heliocentrismo. para a redefinição da nossa condição nível para download em http://bit.ly/qGBHiJ. Contudo a principal contribuição de Galileu Latouche será conferencista do evento Ciclo foi para o método científico, pois a ciência humana. de Palestras: Economia de Baixo Carbono. se assentava numa metodologia aristotélica A abordagem de um pensamento Limites e Possibilidades, de 22 a 25-11-2011, de cunho mais abstrato. Por essa mudança de além do humanismo torna-se necessá- na Unisinos. Confira a programação completa perspectiva é considerado o pai da ciência mo- em http://migre.me/69uxi. (Nota da IHU On- derna. ��������(Nota da IHU On-Line) ria não somente para a compreensão Line) 28 SÃO LEOPOLDO, 14 DE NOVEMBRO DE 2011 | EDIÇÃO 380 estudioso das teorias do desenvolvi- figura-se a formação de um habitar sa época como marcada pela volta de mento e um dos teóricos da chamada informativo, pós-arquitetônico e pós- uma “pulsão selvagem”. Uma pulsão décroissance sereine (decrescimen- geográfico que, multiplicando os sig- selvagem que transita ao mesmo tem- to sereno), a hybris, a desmedida do nificados e as práticas de interações po no animal e no tecnológico, uma homem no confronto com a natureza, com o ambiente, nos conduz a habi- ecosofia que proporciona contempora- praticamente tomou o lugar da antiga tar naturezas diferentes e mundos no neamente uma heteronomia das natu- sabedoria da inserção em um ambien- interior dos quais nos deslocamos in- rezas e o surgimento de novas peles, te desfrutado de modo racional. O que formativamente. Esse habitar atópico nem orgânicas nem inorgânicas, nem leva à pergunta: Teria sido, portanto, não constitui um “não lugar”, nem sedentárias nem nômades, nem inter- a nossa racionalidade enquanto “me- um metaterritório, mas é um outro nas nem externas, mas atuais. Esse dida de todas as coisas” a fazer-nos ecossistema construído através de in- novo tipo de pulsão selvagem, animal perder a mesura, fazendo-nos destruir terações entre territórios, indivíduos e tecnológica ao mesmo tempo, marca a capacidade de regeneração dos ecos- e tecnologias informativas. o advento de um novo tipo de ativis- sistemas dos quais dependemos? Esse processo de conectividade e mo. A proeminência das tecnologias de interações dinâmicas resulta numa comunicativas digitais se caracteri- concepção e numa cultura de um novo Nova sensibilidade ecológica ge- za essencialmente pela consolidação tipo de ecologia que compreende tan- neralizada de uma rede cibernética que conecta to os elementos orgânicos como aque- A teoria de fundo presente em meu seus usuários por meio de arquiteturas les tecnoinformativos. último livro, Redes digitais e susten- computacionais. Nesse contexto, fica Por meio dos fluxos informativos tabilidade (resultado de uma pesquisa praticamente impossível desassociar presentes nas redes digitais – e que que obteve o patrocínio da Petrobras), sujeitos, indivíduos, comunidades, expressam os próprios fluxos da vida no prelo pela editora Annablume e es- circuitos eletrônicos, computadores, do planeta, enquanto também siste- crito em conjunto com os pesquisado- celulares, interfaces, cabos de fibra ma comunicativo tecnobiológico, tem res do Atopos e doutorandos, Julliana ótica, ondas de rádios e todos os de- mostrado, através de um processo de Cutolo e Leandro Yanaze, é que há mais elementos que fazem parte do comunicação, o quanto o desenvolvi- uma relação estreita entre a cultura fluxo informacional que ocorre nas re- mento antropocêntrico colocou o pró- comunicativa – que se difundiu em des digitais. prio homem em risco de extinção. E a seguida ao advento das redes digitais Em uma percepção mais conceitu- própria Gaia tem nos revelado que o – e a difusão contemporânea de uma al, fica muito difícil definir (dar fim) equilíbrio sustentável só é possível se- nova sensibilidade ecológica generali- e determinar onde terminam os dedos gundo um viés ecossistêmico no qual, zada, visível nos conjuntos de práticas das mãos e onde começam as teclas do seguindo a mesma lógica das redes di- e presente nas preocupações políticas teclado enquanto se produz um texto gitais, não é possível considerar, pen- de governos e empresas, conhecidas já que ambos elementos, tanto o or- sar ou agir fora do próprio contexto pelo termo sustentabilidade. gânico como o inorgânico, só são re- coletivo da rede. Essa sensibilidade, de fato, apre- levantes ao processo proposto quando Aparecem assim os elementos para senta-se como a expressão de uma funcionam em uma associação tran- o desenvolvimento de uma nova cultu- nova cultura ecológica que exprime a sorgânica. ra ecológica, feita não por elementos percepção de uma sinergia reticular de diversas naturezas, interdependen- que não contrapõe mais o indivíduo Digitalização, conectividade e in- tes entre si e “interdialogantes”, mas ao território e ao meio ambiente, mas terações por elementos simbioticamente unidos que parece substituir a esta oposição, A digitalização do território, a pelos fluxos informativos de redes que, as dimensões interativas de relações partir da introdução das tecnologias comunicando-se, criam dinâmicas nem interdependentes e comunicantes. digitais de comunicação que trans- internas, nem externas. Torna-se ne- A difusão da demanda de produtos formaram o ambiente em código in- cessário pensar um novo tipo de physis e alimentos biológicos, as políticas formativo, produziu, pela primeira e, consequentemente, um novo tipo de redução de emissões de CO2, as vez, uma superação da distância en- de ação não mais deslocativa e transi- práticas de reciclagem e a difusão tre sujeito e território, permitindo a tiva, mas atópica e reticular. das coletas seletivas municipais, as alteração da natureza desse último e Michel Maffesoli13 descreve a nos- campanhas internacionais em defesa a interação e interdependência entre 13 Michel Maffesoli: sociólogo francês. Lecio- das florestas e espécies ameaçadas, indivíduo e ambiente. Tal interação na na Sorbonne - Paris V, é diretor do Centro independentemente de seus impac- de Estudos sobre o Atual e o Quotidiano (CEAQ) constitui uma prática comunicativa e edita a revista Sociétés. Escreveu inúmeros tos reais, são ao mesmo tempo a ex- em que a relação entre o sujeito e livros importantes para a compreensão da pressão de uma diversa concepção do o território deixa de ser dicotômica, mutabilidade social moderna e pós-moderna, como A conquista do presente (Rio de Janei- e pós-moderno (Rio de Janeiro: UERJ, 1994). correspondendo a um tipo de forma ro: Rocco, 1984); A contemplação do mundo A edição 162 da IHU On-Line, de 31-10-2005, comunicativa do habitar. Uma vez (Porto Alegre: Artes & Ofícios, 1995); A trans- publicou uma entrevista exclusiva com Maffe- reproduzido digitalmente o espaço, figuração do político: a tribalização do mundo soli sob o título Culturas locais estão sendo (Porto Alegre: Sulina, 1997); Lógica da domi- revalorizadas, disponível em http://migre. transformado-o em informação, con- nação (Rio de Janeiro: Zahar, 1978); Moderno me/69ujD. (Nota da IHU On-Line) SÃO LEOPOLDO, 14 DE NOVEMBRO DE 2011 | EDIÇÃO 380 29 meio ambiente e o perfil de uma nova dimensão habitativa. Na tradição ocidental, como conhe- cido, a nossa percepção do território e do meio ambiente, em geral, foi carac- Um bacharelado premium para terizada pela invenção da externalida- de, isto é, da suposta separação entre o a Filosofia homem e a natureza, baseada no mito bíblico da superioridade da espécie hu- Novo curso de Filosofia da Unisinos inicia no primeiro semestre mana sobre as demais ou, no caso da de 2012 e terá professores tutores acompanhando os alunos filosofia, na redução dos elementos não humanos a objeto, “a coisa” inanima- individualmente, a exemplo de universidades europeias como da, matéria a ser moldada, transforma- Oxford da e dominada. A supremacia do huma- no sobre a natureza e o território foi, por séculos, o pressuposto da condição Por Márcia Junges habitativa que se manifestou através a manipulação e a domesticação do mun- do “externo”. á uma demanda crescente por profissionais que desenvolvam re- Paralelamente à crise da externa- flexões críticas e amparadas em referencial teórico filosófico. lidade e da separação entre nós e o “Áreas como o direito, letras, psicologia, economia, comunica- meio ambiente, que se exprime hoje ção, as ciências exatas e, surpreendentemente, a informática na consciência dos limites do desenvol- têm procurado a filosofia para compreender e pensar melhor vimento e na mensuração constante de Hos seus próprios problemas”. A constatação é do filósofo Alfredo Culleton, seu impacto, a presença da questão da coordenador do curso de graduação em Filosofia da Unisinos, na entrevista sustentabilidade em diversos contex- a seguir, concedida por e-mail à IHU On-Line. Esse é um dos motivos que tos e setores exprime a consciência de norteia o lançamento do bacharelado premium em Filosofia, cujas inscrições uma dimensão habitativa relacional e estão abertas. De acordo com Alfredo, o curso foi nomeado como premium conectiva. pois trata-se de algo diferenciado, “sem precedentes no país, apenas com- parável aos melhores cursos de Filosofia da Europa, aos moldes dos tutoriais da Universidade de Oxford, Inglaterra”. E acrescenta: “Queremos que o es- tudante se constitua progressivamente num pesquisador autônomo capaz de Leia Mais... pensar sistemática e criticamente problemas na perspectiva filosófica e que Confira outras publicações realizadas pela seja capaz de expressar isso de forma escrita. Por esse motivo a figura de um IHU On-Line relacionadas às temáticas abordadas nessa entrevista. magister que orienta esse processo é fundamental”. Alfredo Culleton é graduado em Filosofia, pela Universidade Regional no Noro- “Uma forma de democracia direta é algo que hoje pode ser tecnologicamente possível”. Entrevista es- este do Estado do Rio Grande do Sul – Unijuí, mestre em Filosofia, pela Universi- pecial com Massimo di Felice, disponível em http:// dade Federal do Rio Grande do Sul – UFRGS, e doutor em Filosofia, pela Pontifícia migre.me/69yJA A utopia da sociedade em rede: Um mundo sem Universidade Católica do Rio Grande do Sul – PUCRS, com a tese Fundamentação fronteiras? Entrevista especial com André Lemos, ockhamiana do Direito Natural. Atualmente, leciona nos cursos de graduação e disponível em http://migre.me/69yPZ “As redes sociais e a internet deram ao mundo um mestrado em Filosofia na Unisinos e é coordenador da graduação em Filosofia. novo fôlego em termos de cidadania”. Entrevista É colaborador na Universidade Regional Integrada do Alto Uruguai e das Missões especial com Paulo Faustino, disponível em http:// – URI e na Universidade de Buenos Aires – UBA, Argentina. Atua como assessor do migre.me/69yQW A cidadania transitiva no contexto da comunicação escritório da Sociedade Internacional para Estudos da Filosofia Medieval – SIEPM. digital. Entrevista especial com Massimo Canevacci, Confira a entrevista. disponível em http://migre.me/69yTw “O conceito da Internet é liberador”. Entrevista es- pecial com João Bittencourt, disponível em http:// migre.me/69yUi Rumos e muros da filosofia na era digital. A aventura IHU On-Line – Por que a Unisinos Para garantir a sustentabilidade do do pensamento - Revista IHU On-Line nº. 379, dispo- decidiu iniciar o curso de bachare- curso e buscando responder às no- nível em http://migre.me/69yVI lado premium em Filosofia? vas demandas da sociedade, e sem Midiatização. Um modo de ser em rede comunica- cional - Revista IHU On-Line nº. 289 Alfredo Culleton – O curso de Filoso- abrir mão da licenciatura, a Unisinos Twitter, Facebook, MySpace e Orkut. As redes sociais fia da Unisinos tem 60 anos, forman- oferece um Bacharelado diferencial na web - Revista IHU On-Line nº. 290, disponível em do professores e intelectuais críticos. que chamamos premium, capaz de http://migre.me/69yWr O Pós-humano - Revista IHU On-Line nº. 200, dispo- Há muitos anos tem Cinco Estrelas instrumentalizar o discente com os nível em http://migre.me/69yXr na avaliação do Guia de Estudantes. melhores meios disponíveis de for-

30 SÃO LEOPOLDO, 14 DE NOVEMBRO DE 2011 | EDIÇÃO 380 mação, para habilitá-lo à carreira de as instituições conveniadas; mente problemas na perspectiva filo- pesquisador mediante a capacitação — a possibilidade de participar na Re- sófica que e seja capaz de expressar para pensar sistemática e criticamen- vista Controvérsia, revista-escola onde isso de forma escrita. Por esse motivo te temas e problemas da tradição filo- o estudante se familiariza com o pro- a figura de um magister que orienta sófica e do mundo contemporâneo. cesso de editoração de periódicos cien- esse processo é fundamental. tíficos, entre outras oportunidades. IHU On-Line – Por que o curso rece- IHU On-Line – Quando é o vestibular beu essa nomenclatura? IHU On-Line – Poderia comentar essa para a primeira turma do bacharela- Alfredo Culleton – Premium porque preocupação/objetivo em formar pes- do premium? é um bacharelado diferenciado, sem quisadores na área de filosofia? Alfredo Culleton – As inscrições vão precedentes no país, apenas compa- Alfredo Culleton – Temos visto crescer até 22 de novembro e o vestibular será rável aos melhores cursos de Filosofia significativamente a demanda por uma realizado no dia 26 deste mês. da Europa, aos moldes dos tutoriais da formação mais crítica e inteligente em Universidade de Oxford, Inglaterra. varias áreas da academia e da socie- IHU On-Line – Gostaria de acrescen- dade. Varias áreas de conhecimen- tar algum outro aspecto não questio- IHU On-Line – Quais serão seus dife- to estão sendo demandadas a pensar nado? renciais em relação ao curso de gradu- melhor, entender sistemas, esmiuçar Alfredo Culleton – Dos cinco melhores ação já existente? conceitos e compreender detalhes cursos de graduação em Filosofia do Alfredo Culleton – São vários os dife- aparentemente insignificantes, mas Brasil, três são jesuítas: FAJE de Belo renciais. determinantes num processo seja ele Horizonte, PUC-Rio e Unisinos. Isso — cada aluno ingressante terá, desde o social ou técnico. Áreas como Direito, muito nos honra e estimula a buscar primeiro semestre, um professor tutor Letras, Psicologia, Economia, Comuni- melhores padrões de qualidade. que o acompanhará de maneira perso- cação, Ciências Exatas e surpreenden- nalizada na sua formação; temente a Informática têm procurado Leia Mais... — a possibilidade de participar do gru- a Filosofia para compreender e pensar po de pesquisa do professor tutor jun- melhor os seus próprios problemas. Confira outras entrevistas concedidas por tamente com os demais orientandos Alfredo Culleton à Revista IHU On-Line. * Em nome de Deus: um retrato de época. Edição de mestrado e doutorado; IHU On-Line – Como a figura desse pro- número 160, Revista IHU On-Line, de 17-10-2005, — a possibilidade de cursar, a partir de fessor tutor pode ajudar na formação disponível em http://migre.me/62j5K; 70% do curso realizado, das disciplinas dos alunos em pesquisadores? * A interculturalidade medieval. Edição número 198, Revista IHU On-Line, de 02-10-2007, disponível em da pós-graduação oferecidas na espe- Alfredo Culleton – Tendo como modelo http://migre.me/62j7u; cialização e no mestrado; as universidades clássicas, os estudan- * Ninguém aceita a morte por suposição. Edição — 40% de desconto além de uma pre- tes não ingressam num curso que ofe- número 269, Revista IHU On-Line, de 18-08-2008, disponível em http://migre.me/62j6v; cificação diferenciada para alunos que rece uma série de disciplinas a serem * Ninguém aceita a morte por suposição. Edição estejam cursando a Filosofia como se- aprovadas, mas num ambiente aca- número 269, Revista IHU On-Line, de 18-08-2008, gundo curso na Unisinos; dêmico de formação integral onde as disponível em http://migre.me/62j6v; * “A verdade é uma formulação de linguagem”. — um maior envolvimento com a pes- disciplinas são um auxílio em sua for- Edição número 363, Revista IHU On-Line, de 30-05- quisa desenvolvida na pós-graduação mação como pesquisador. Queremos 2011, disponível em http://migre.me/62j8D; através da iniciação cientifica volun- que o estudante se constitua progres- * A memória como possibilidade de crítica à filosofia. Edição número 379, Revista IHU On-Line, de 07-11- tária ou remunerada; sivamente num pesquisador autônomo 2011, disponível em http://migre.me/67rpH. — a possibilidade de intercâmbio com capaz de pensar sistemática e critica-

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SÃO LEOPOLDO, 14 DE NOVEMBRO DE 2011 | EDIÇÃO 380 31 Livro da Semana

GIRARD, R.; GOUNELLE, A.; HOUZIAUX, A. Deus: uma invenção?. São Paulo: É Realizações, 2011.

Deus: uma invenção?

ublicamos a seguir o comentário de Rodrigo Coppe, doutor em Ciência da Religião e professor da PUC Minas, sobre o livro Deus: uma invenção?, de René Girard, André Gournelle e Alain Houziaux. Para Coppe, a obra é “uma ótima aproximação da teoria de René Girard, fornecendo os elementos principais para a compreensão de reflexão seminal para o momento em que vivemos, marcado por inúmeras questões no que diz respeito, especialmente, à crise de memória e aos debates em torno Pdo multiculturalismo”. Confira o artigo.

Caiu-me às mãos um livro que traz questão proposta em seu título, que se as sociedades estão em crise, quando uma interessante coleção de três en- concentra, especialmente, em apre- seus participantes desejam a mesma saios: do pensador católico René Gi- sentar as bases de sua teoria. coisa e buscam obtê-la forçosamente, rard, do teólogo protestante André As primeiras, e peremptórias, pa- ocorre o que chama de crise miméti- Gournelle e do pastor Alain Houziaux, lavras de Girard são: “‘Deus é uma ca, marcada por violência extrema. assim como um debate entre eles, que invenção?’, eis uma pergunta à qual Em sua análise das narrativas mitológi- foi realizado num templo da Èglise respondo sem hesitar: ‘Não’”. A fim cas, Girard concluiu que a maioria co- Réforme de l’Étoile de Paris. Os três de qualificar sua resposta, o pensador meça por uma crise deste tipo, como buscaram, em suas respectivas falas, francês traz em sua fala os vários ele- por exemplo a peste do mito edipiano. responder a uma intricada pergunta fi- mentos que compõem sua teoria so- Para não desaparecerem totalmente losófica: “Deus: uma invenção?”. Meus bre a fundação das sociedades e das devido à instalação da crise mimética, primeiros contatos com o pensamen- civilizações. Inicialmente, apresenta a Girard acredita que uma solução foi to de René Girard se deu faz uns três pedra fundamental de sua construção elaborada. O objeto pelo qual a luta se anos. De fato, confesso que de lá para teórica: o mimetismo. Tal capacidade instala devido ao desejo compartilha- cá não pude me dedicar da maneira de imitar, especialmente a imitação do, desaparece num estágio da crise, que gostaria, nessa, que para mim, é do desejo alheio é o que leva, para e o antagonismo torna-se puro entre uma das reflexões mais profundas – e Girard, à rivalidade mimética, pois, os contentadores. Assim afima: “Uma de tal modo intelectualmente exigente diz, “quanto mais desejo esse objeto reconciliação paradoxal torna-se pos- – e originais do pensamento do século que você deseja, mais ele lhe parece- sível: se todos os homens que desejam XX. Ler e tirar consequências práticas rá desejável, e mais, por sua vez, ele a mesma coisa nunca se entendem, da leitura da obra girardiana demanda se mostrará desejável aos meus olhos” porém, aqueles que odeiam juntos o um longo caminho. Deparar-se a pri- (p. 67). Esta rivalidade pode tender mesmo adversário se entendem com meira vez, por exemplo, com Coisas ao infinito, levando à experiência da muita facilidade. De certa forma, essa ocultas desde a fundação do mundo vingança, a primeira invenção humana harmonia é o que chamamos de políti- e Eu via Satanás cair do céu como um de acordo com o intelectual. Levada ca! Também é o que chamo de meca- raio e não ficar, de certa forma, per- ao extremo, transcendendo tempo e nismo da vítima única, o mecanismo doe-me a expressão, embasbacado espaço, recaindo em parentes e famí- do bode expiatório” (p. 69). com a complexidade e eloquência da lias, a vingança tem algo de religioso. Eis um dos pontos centrais da te- proposta Girard é não compreender o Sendo tolerada, a espécie humana se oria girardiana. O herói mítico torna- mínimo das possíveis consequências destruiria. Para Girard, vivemos atu- se a vítima unânime e será morto por que podem advir da sua leitura. O que almente numa situação apocalíptica, todos aqueles que, ao esquecerem o proponho neste breve texto é apenas a “no sentido de revelação drástica da seu próprio adversário, adotam o ad- apresentação deste livro, focando, em violência humana” (p. 68). Se pode- versário do vizinho, levando assim especial, na resposta de Girard para a mos observar a perpetuação da huma- toda a comunidade a se posicionar  GIRARD, R. Coisas ocultas desde a fundação nidade é porque em algum momento de um mesmo lado contra um único do mundo. São Paulo: Paz e Terra, 2008. (Nota do autor) algo interrompeu o processo, impe- indivíduo. Girard dá um nome a este  GIRARD, R. Eu via Satanás cair do céu como dindo que os homens matassem-se uns fenômeno: “linchamento unânime”. O um raio. Lisboa: Instituto Piaget, 2002. (Nota aos outros. Girard nos diz que quando papel extraordinário de tal fenômeno do autor) 32 SÃO LEOPOLDO, 14 DE NOVEMBRO DE 2011 | EDIÇÃO 380 pode ser lido nos grandes textos sagra- enderam as diferenças entre os mitos, de deixarem enganar por essa menti- dos, também nos textos bíblicos, nos a Bíblia e o cristianismo. Estes dois úl- ra, como fazem os mitos e as religiões mitos e nos próprios Evangelhos, de timos “têm uma dimensão da verdade arcaicas, denunciam na crucificação o forma mais atenuada. Tal linchamento que nenhuma outra religião pode ter, que ela é de fato: uma injustiça de- reconcilia a comunidade pelo seu as- pois retomam o mesmo fenômeno, e testável que os homens devem agora pecto unânime, já que a vítima é vista em vez de ir até o fim da mentira, eles evitar, pois ela nunca será compensa- como mau, pois aquele que causou a a contradizem e na realidade revelam dora” (p. 74). violência. Por outro lado, torna-se um a mentira tal como ela é” (p. 72). O Como uma primeira leitura, este deus, ao mesmo tempo mau e bom, já intelectual francês explica que pela texto editado pela É Realizações, que que seu sacrifício gera a paz e reconci- Paixão de Cristo reconheceu-se que os tomou decididamente a frente destas lia a comunidade. Por trás deste deus homens desempenham papel de cria- importantes publicações do pensa- existe um mecanismo, que chama de dores de vítimas e perseguidores. As- mento girardiano no Brasil, considero bode expiatório. Ter um bode expia- sim, “é por proclamar as regras do Rei- como uma ótima aproximação da teo- tório “é não saber que se tem um, no e renunciar totalmente à violência ria de René Girard, fornecendo os ele- é ver essa vítima como o verdadeiro sacrificial, que o próprio Cristo é sacri- mentos principais para a compreensão culpado” (p. 71). Assim, para Girard, ficado” (p. 72). Para Girard, é possível de reflexão, para mim, seminal para o sacrifício é a primeira instituição hu- apontar inúmeros trechos evangélicos o momento em que vivemos, marca- mana e a repetição do mecanismo se a fim de sustentar sua tese, como “A do por inúmeras questões no que diz dá pela procura da comunidade de ex- pedra desprezada pelos construtores respeito, especialmente, à crise de perimentar novamente a reconciliação tornou-se a pedra angular”, “É melhor memória e aos debates em torno do inicial trazida por ele. que um só homem morra e que o povo multiculturalismo. Tal dinâmica é observada também seja salvo”. É a experiência da Paixão no cristianismo. Tendo no centro de pela qual Cristo mostra o que todos sua narrativa o desejo de uma comu- nós fazemos. Por outro lado, Girard Leia Mais... nidade pela morte de sua vítima, os diz que os deuses arcaicos, “mesmo >> Rodrigo Coppe Caldeira já concedeu en- Evangelhos reformulam o ciclo que não sendo reais, não são de forma al- trevistas para a IHU On-Line: leva ao “linchamento unânime”. Por guma inventados” (p. 74), mas são as • Tradicionalismo e conservadorismo católicos: as isso, muitos antropólogos assumiram a interpretações equivocadas de nossa ideologias em jogo. Entrevista publicada em 30-07- ideia de que o cristianismo e os mitos própria violência. O cristianismo e o 2011, disponível em http://bit.ly/ocnr8j eram muito parecidos “e que o erro Antigo Testamento podem ser muito • “A Igreja Católica encontrou o seu papel no sé- culo XX?’’. A atualidade do Vaticano II. Entrevista dos cristãos foi buscar um mito a mais parecidos com as narrativas míticas, publicada em 26-03-2011, disponível em http://bit. para ter a verdade” (p. 72). Para Gi- porém, são também muito diferentes, ly/dEXDwV rard, estes antropólogos não compre- pois, no caso dos Evangelhos, “em vez

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SÃO LEOPOLDO, 14 DE NOVEMBRO DE 2011 | EDIÇÃO 380 33 Artigo da Semana A vítima da violência: testemunha do incomunicável, critério ético de justiça Torturar sem matar, sofrer sem morrer até o limite da vida, essa é a grande técnica aprendida como arte biopolítica, constata Castor Bartolomé Ruiz

Por Castor Bartolomé Ruiz

pelido pejorativo dado àqueles prisioneiros dos campos de concentração que, em função de sua debilidade física e mental, não passavam de “esqueletos ambulantes”, o muçulmano é o paradigma da biopolítica. “Nele a vida humana fica reduzida ao limiar de pura sobrevivência biológica. Eram meros corpos ambulantes. Em seu estado esquelético, como instinto último e metarracional de sobrevivência, permaneciam longos períodos dobrados sobre os joelhos com a cabeça inclinada, Aa modo do muçulmano na sua oração diária”. A explicação é do filósofo espanhol Castor Bartolomé Ruiz, no artigo que escreveu para a IHU On-Line, a modo de conclusão do evento Giorgio Agamben: “O Homo Sacer I, II, III. A exceção jurídica e o governo da vida humana”. E questiona: “Como um ser privado da linguagem pode ser humano se a linguagem constitui o humano? Ainda, como poderá ser o muçulmano uma testemunha se está privado da palavra? Ou por acaso o muçulmano, como pretendiam os nazistas, já não era mais humano?” Professor dos cursos de graduação e pós-graduação em filosofia da Unisinos, Castor Bartolomé Ruiz é gradu- ado em curso de Filosofia, pela Universidade de Comillas, na Espanha, mestre em História, pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul – UFRGS, e doutor em Filosofia, pela Universidade de Deusto, Espanha. É pós- doutor pelo Conselho Superior de Investigações Científicas. Escreveu inúmeras obras, das quais destacamos: Os paradoxos do imaginário (São Leopoldo: Unisinos, 2003); Os labirintos do poder. O poder (do) simbólico e os modos de subjetivação (Porto Alegre: Escritos, 2004); As encruzilhadas do humanismo. A subjetividade e alteridade ante os dilemas do poder ético (Petrópolis: Vozes, 2006); e Propiedad o alteridad, un dilema de los derechos humanos (Bilbao: Universidad de Deusto, 2006). Leia, ainda, o livro eletrônico do XI Simpósio Internacional IHU: o (des) governo biopolítico da vida humana, no qual Castor contribui com o artigo A exceção jurídica na biopolítica moderna, disponível em http://bit.ly/a88wnF. Confira o artigo.

Agamben, em sua obra O que resta O muçulmano é o paradigma da todos seriam muçulmanos. de Auschwitz. O arquivo e a testemu- biopolítica. Nele a vida humana fica Eles eram testemunhas indesejadas nha, propõe-se dar destaque, entre reduzida ao limiar de pura sobrevivên- de um destino evitado. Sua presença outros aspectos, à testemunha por ex- cia biológica. Eram meros corpos am- corroborava a eficiência da maquina- celência dos campos de extermínio na- bulantes. Em seu estado esquelético, ria biopolítica do campo para reduzir zistas, o muçulmano. Muçulmano era como instinto último e metarracional a vida humana ao limite da mera vida o apelido que recebiam nos campos de sobrevivência, permaneciam lon- natural. Para os deportados, a presen- aquelas pessoas que por seu grau de gos períodos dobrados sobre os joelhos ça dos muçulmanos testemunha um degradação física e psíquica tinham se com a cabeça inclinada, ao modo do destino programado pelo campo. Sua debilitado ao extremo de parecerem religioso muçulmano em suas orações mera presença já constituía uma ame- “esqueletos ambulantes”. A debilidade diárias. O muçulmano era a meta a aça. Todos viam no muçulmano o ter- física atingia suas funções neuronais que ninguém queria chegar e o obje- rível espelho do seu futuro no campo. ao extremo de perderem a capacidade tivo que pretendia atingir o campo. O Era uma testemunha indesejável por- de raciocínio e sobreviverem numa es- muçulmano aterrorizava aos deporta- que testemunhava o intestemunhável. pécie de autismo biológico extremo. dos porque lhes indicava o destino a Sua existência é o testemunho mudo  AGAMBEN, Giorgio. O que resta de Aus- que conduzia sua condição biopolítica dos ápices do horror. chwitz. O arquivo e a testemunha. São Paulo: no campo. Mais cedo ou mais tarde, Quando uma pessoa atingia a con- Biotempo, 2008, p. 49-91. 34 SÃO LEOPOLDO, 14 DE NOVEMBRO DE 2011 | EDIÇÃO 380 dição de muçulmano, sua debilidade onde a exceção é a norma, a tortura neuronal era tal que perdia a condi- “O torturado tornou-se a técnica biopolítica cujo ção de articular uma linguagem com trunfo maior é fazer sobreviver a vida sentido. Suas palavras, quando as con- comparte com o no limite do sofrimento. Torturar sem seguia pronunciar, eram sem sentido. matar, sofrer sem morrer até o limite Meros sons articulados ao azar sem um muçulmano a condição da vida, essa é a grande técnica apren- nexo lógico. Se, segundo Aristóteles, a dida como arte biopolítica. No corpo linguagem com sentido é o que dife- de uma vida capturada do torturado se ensaiam as técnicas rencia o humano do animal, o muçul- limiares da vida e da morte. A arte do mano é o limite da condição humana pela estratégia torturador se consuma quando conse- que desafia a compreensão dos limites gue fazer sofrer mais por mais tempo. da linguagem. No muçulmano concen- biopolítica do campo. O bom torturador é aquele que con- tram-se questões e questionamentos segue levar a vida ao limite da morte éticos e filosóficos de grande calado. O O campo do torturado sem fazê-la morrer. O que assusta na primeiro deles diz respeito a seu pró- tortura não é a morte, mas a vida que prio estatuto humano. Como um ser são os porões. Nos sofre sem poder morrer. O refinamen- privado da linguagem pode ser huma- to da tortura é conseguir que o corpo no se a linguagem constitui o humano? porões o direito fica do torturado reclame pela morte para Ainda, como poderá ser o muçulmano pôr fim a seu sofrimento, sem conse- uma testemunha se está privado da suspenso e a exceção gui-lo. Torturar ao extremo é manter palavra? Ou por acaso o muçulmano, a vida no limite de seu sofrimento. A como pretendiam os nazistas, já não se transforma em vida do torturado fica pendente de um era mais humano? Ou era talvez uma tênue fio, mas rasgada pela dor insu- espécie de humanidade menor, míni- norma” portável. ma, exibida pela violência biopolítica titudes latino-americanas na figura do como seu trunfo mais evidente? O mu- Marcas silenciosas torturado. O torturado compartilha çulmano, no limiar da vida, tornou-se Os presos que habitam os espaços da com o muçulmano a condição de uma uma vítima cujo testemunho privado tortura percebem no torturado o des- vida capturada pela estratégia biopo- da palavra interpela eticamente a nos- tino indesejável. Os gritos que ecoam, lítica do campo. O campo do tortura- sa contemporaneidade. O muçulmano o corpo arrastado, o vazio de quem foi do são os porões. Nos porões o direito constitui o paradigma das vítimas da levado, são marcas de uma linguagem fica suspenso e a exceção se transfor- violência biopolítica ainda hoje. que está além e aquém do significado ma em norma. A vida capturada nos racional do sentido. Os porões são o porões está sob o arbítrio da vontade Meros corpos vivos campo onde a exceção fez da tortura de um soberano que decide fora de As questões éticas e filosóficas pos- a norma biopolítica de governo. Não qualquer direito. O estado de exceção tas pela condição do muçulmano são bastava deixar morrer, tem que fazer vigora nos porões como norma biopo- atuais. Agamben lembra que a condi- sofrer. Nos porões da tortura não se lítica que submete todas as vidas ali ção extrema que a vida humana atinge é suficiente com a ameaça da morte: conduzidas. Os porões estão represen- no muçulmano está presente entre nós essa deve ser reclamada como um de- tados pelo Dops no Brasil, pela Esman nas vidas dos enfermos comatosos ou sejo que liberte da tortura. O horror da Argentina, por Guantânamo em ultracomatosos. Pergunta-se se esses dos porões não é a morte, mas a tortu- Cuba ou ainda pelos inúmeros espaços corpos que têm vida, mas que não re- ra. A sofisticação da tortura faz dos po- “anônimos” em que ainda se aplica agem nem se comunicam, são ou não rões o espaço biopolítico em que viver a tortura. Todos eles se reconhecem pessoas humanas? Quem decide se são se torna mais doloroso do que morrer. como campos em que a exceção vi- ou não pessoas humanas ou são meros O corpo do torturado exibe as marcas gora como norma e a vida humana se corpos vivos? Tais questionamentos se silenciosas de uma linguagem indes- encontra sob o arbítrio de uma vonta- deslocam a outros âmbitos em que se critível porque as palavras perderão de soberana. Neles a tortura se tornou deve decidir se um feto é ou não vida a capacidade de descrever o horror. uma técnica biopolítica normal. A tor- humana. Quando se lhe há de reco- Ainda, os torturados que sobreviverem tura e o torturado constituem a norma nhecer como pessoa humana? Só no terão de carregar consigo as marcas dos porões biopolíticos. ato do nascimento, um pouco antes, invisíveis de um horror indescritível. A A condição a que ficam reduzidos quando e quem decide se é vida hu- sombra do torturador estará marcada os torturados dos porões antes de se- mana e se essa vida humana é pessoa no corpo e na alma do torturado em rem mortos ou desaparecidos tem si- ou não? Essas questões bioéticas estão proporção direta ao horror do sofri- milaridade com a condição do muçul- latejantes na condição biopolítica do mento. Algo de inominável permanece mano descrita pelos sobreviventes dos muçulmano. na narrativa do torturado. Seu maior campos, mas também marca diferen- A condição biopolítica do muçul- testemunho é o que não pode dizer ças. Se o campo é o espaço biopolítico mano tem seu paralelo em nossas la- porque a linguagem não alcança. Ele SÃO LEOPOLDO, 14 DE NOVEMBRO DE 2011 | EDIÇÃO 380 35 é testemunha daquilo que não é capaz sibilidade de objetivar em linguagem tal condição. Por isso só a vítima pode de testemunhar. a exterioridade do acontecido. Mas a testemunhar plenamente do aconteci- O muçulmano do campo e o tortu- característica das vítimas da violência mento sofrido. rado dos porões são testemunhas do é que sua incapacidade de testemu- O testemunho da vítima revela o que não pode ser testemunhado. Elas nhar objetivamente é proporcional à lado oculto da violência e da injustiça estão incapacitadas de testemunhar crueldade sofrida. Ao extremo de que que a mirada objetiva da exteriorida- a totalidade do testemunho. Precisa- a “testemunha integral” é aquela que de não capta. A vítima testemunha o mente essa condição de impossibilida- ficou incapacitada de testemunhar por inominável da violência. Seu teste- de de testemunhar as torna autênticas causa da violência sofrida. Adorno quis munho excede todas as formas de lin- testemunhas. As verdadeiras teste- mostrar essa aporia ética, política e guagem para tornar-se uma linguagem munhas são aquelas cujo testemunho até estética quando afirmou que “de- própria. A linguagem da testemunha consiste em não ter a possibilidade da pois de Auschwitz não se pode escre- vítima da violência é paradoxal porque linguagem. As marcas mudas do corpo ver mais poesia”. a integralidade de seu testemunho é torturado, o vazio dos corpos desapa- Os testemunhos dos sobreviventes inversamente proporcional à sua inca- recidos se tornam testemunhas exem- insistem sobre as sombras de silêncio pacidade de dizer o acontecido. O tor- plares de algo que não pode ser teste- que permanecem em suas próprias pa- turado e o muçulmano testemunham munhado pela palavra. lavras. Não porque não queiram con- integralmente pela incapacidade de O verdadeiro sentido do sofrimen- tar o que aconteceu, mas porque não dizer tudo o acontecido que lhes con- to padecido pelas vítimas da violência têm a capacidade de dizê-lo. A lingua- duz a essa situação. permanece na impossibilidade de di- gem não é suficiente para expressar o Nietzsche não soube captar a singu- zer. A palavra nunca poderá dizer a to- testemunho. O acontecimento que os laridade do testemunho da vítima que talidade do sofrimento das vítimas. O tornou torturados ou muçulmanos não transvalora todos os valores ao tornar-se testemunho sempre esconde uma zona pode ser objetivado em linguagem. A ela o critério ético por excelência. A re- oculta de sentido em que a vítima tes- linguagem, sendo o modo de ser do latividade dos valores perde tal condição temunha pelo puro silêncio. A vítima humano, é incapaz de expressar todo quando confrontada com a objetividade coexiste com a incapacidade de dizer o humano de uma vítima da violência. do sofrimento humano da vítima. Rela- a totalidade do sofrimento que lhe Nesse sentido que Levi afirma em seus tivizar o sofrimento das vítimas como atingiu. Ela se torna verdadeira tes- escritos que só o muçulmano é a “tes- algo normal ou natural, significaria na- temunha precisamente porque não é temunha integral”. Seu testemunho turalizar a barbárie como norma moral capaz de testemunhar a totalidade da não tem valor jurídico, a verdade que da política. A aporia do relativismo ético violência sofrida. Há um paradoxo na sua incapacidade de dizer testemunha fica ao descoberto perante a condição condição testemunhal da vítima. Esta não pode ser aferida como prova de de indignidade das vítimas da injustiça. é pura testemunha, no entanto não é um processo. Contudo, só eles, as víti- É nesse sentido que as testemunhas in- capaz de testemunhar a totalidade do mas extremas da violência são verda- tegrais representadas pelo muçulmano e sofrimento. A testemunha mais radical deiras testemunhas integrais do acon- pelo o torturado se tornam paradigmas é aquela que não pode mais dizer uma tecimento. éticos de justiça. palavra por causa da violência sofrida. O silêncio do corpo torturado, a inca- Falsas vítimas pacidade da linguagem do muçulmano, A testemunha apresenta-se, em pri- Leia Mais... inclusive o vazio dos desaparecidos, meiro lugar, como vítima. A condição de Confira os outros artigos de Castor Bartolo- torna-os testemunhas exemplares. Seu vítima não é algo subjetivo que invoca, mé Ruiz sobre o evento Giorgio Agamben: “O Homo Sacer I, II, III. A exceção jurídica e o governo da vida silêncio é um testemunho. Sua condi- mas que se viu reduzida a tal situação humana” ção de vítimas desprovidas da palavra em virtude de uma imposição objetiva. * Homo sacer. O poder soberano e a vida nua. Revis- as torna testemunhas paradigmáticas. Ela é vítima apesar de si. Reduzida à ta IHU On-Line, edição 371, de 29-08-2011, disponí- vel em http://bit.ly/naBMm8 O que está em questão nas figuras condição de vítima da violência, tem * O campo como paradigma biopolítico moderno. do muçulmano e do torturado é o esta- que testemunhar como tal. A condição Revista IHU On-Line, edição 372, de 05-09-2011, tuto epistemológico do testemunho e a de vítima tem que ser testemunhada. disponível em http://bit.ly/nPTZz3 * O estado de exceção como paradigma de governo. própria condição filosófico-política da O seu testemunho desvela as condições Revista IHU On-Line, edição 373, de 12-09-2011, testemunha. O valor do testemunho é injustas que a levam a sofrer a situa- disponível em http://bit.ly/nsUUpX reconhecido pelo caráter jurídico que ção de vítima. A crítica de Nietzsche à * A exceção jurídica e a vida humana. Cruzamentos e rupturas entre C. Schmitt e W. Benjamin. Revista se outorga a sua verdade. A verdade condição da vítima como algo subjetivo IHU On-Line, edição 374, de 26-09-2011, disponível jurídica do testemunho está encharca- que pode ser utilizado como artifício em http://bit.ly/pDpE2N da de objetividade. O testemunho tem para culpar os outros das próprias in- * A testemunha, um acontecimento. Revista IHU On-Line, edição 375, de 03-10-2011, disponível em que ser objetivo para ser reconhecido competências pode, de fato, consta- http://bit.ly/q84Ecj como verdadeiro pelo direito. Para o tar-se em muitas situações. Contudo, * A testemunha, o resto humano na dissolução pós- direito, quanto mais distante da obje- estas são falsas vítimas. A vítima existe metafísica do sujeito. Revista IHU On-Line, edição 376, de 17-10-2011, disponível em http://migre. tividade menos valor de verdade tem o de forma objetiva porque houve uma me/66N5R testemunho. A objetividade exige pos- injustiça ou violência que a reduziu a

36 SÃO LEOPOLDO, 14 DE NOVEMBRO DE 2011 | EDIÇÃO 380 Ciclo de Palestras: Economia de Baixo Carbono. Limites e Possibilidades

Por outro modo de consumir: descrição de algumas experiências alternativas

Prof. Dr. Serge Latouche - Professor de Economia na Universidade de Paris XI - Sceaux/Orsay

Horário: das 16h às 18h Local: Sala Ignacio Ellacuría e Companheiros, no IHU

Data: 22/11/2011

Informações em www.ihu.unisinos.br

SÃO LEOPOLDO, 14 DE NOVEMBRO DE 2011 | EDIÇÃO 380 37 Arqueologia de ideias: a ancestralidade recente do NIEG

Por Bruno Lima Rocha�* Este texto é um ensaio a respei- tiveram ao dar suporte ao contrato de to de uma ancestralidade recente, a empréstimo que o estado fizera jun- criação de uma fonte de crítica teóri- to ao Grupo Banco Mundial. Naquele ca e ativismo político, indo de encon- momento, corria o mês de novembro tro à hegemonia do capital financei- de 2007 e publiquei um artigo de opi- ro dentro do pensamento econômico nião afirmando o absurdo do alargue vinculado ao status quo. A história é da dívida interna, entre dois níveis de relativamente simples. Em março do governo (União e RS), servir de cabe- corrente ano, o Grupo Cepos me dele- ça de ponte para a internacionaliza- gou a tarefa de construir uma propos- ção de tal endividamento e a perda ta ousada, germinada em Seminário da soberania do governo estadual so- Internacional que realizamos com o bre os fundos captados mediante ta- Grupo coirmão Tecmerín, localizado xação impositiva. Para minha alegria, na Universidade Carlos III, no campus deparei-me com outro cidadão – este de Getafe, Comuna de Madri (Espa- sim um especialista na matéria – em- nha) em janeiro último. Na ocasião, punhando a lança da razão contra os ao ser questionado a que tema me de- moinhos do silêncio midiático. Trata- dicava como pesquisador, afirmei que se do fiscal de tributos aposentado, gostaria de analisar as relações cru- João Pedro Casarotto, hoje um dos zadas entre mídia hegemônica (cor- maiores especialistas em dívida inter- porate media) e a financeirização da na do Brasil e à época um paladino economia capitalista, reproduzindo a quase solitário. naturalização do capital na sua forma O dirigente sindical do fisco fez de bem simbólico. Três meses depois uma representação explicando todos e a ideia que surgira por evidências os motivos e razões para ser adver- empíricas e urgências teóricas e polí- so ao contrato e enviou o estudo para ticas toma a forma de um Núcleo de órgãos de Estado e veículos de comu- Estudos dentro de um consagrado gru- nicação. Dos primeiros, não recebera po de pesquisa. resposta e da indústria da mídia, o A origem dessa preocupação locali- retorno foi o silêncio. Após esse epi- za-se na relação propagandista que os sódio, verifiquei um padrão quando o grupos de mídia do Rio Grande do Sul tema em pauta é o capital financeiro.

* Bruno Lima Rocha é mestre e doutor em Ciência Política pela UFRGS, jornalista graduado na UFRJ e docente de comunicação social na Unisinos. Membro-pesquisador do Grupo Cepos e vogal da dire- toria da Ulepicc-Brasil. No momento, coordena no Cepos o Núcleo de Estudos Interdisciplinares da Globalização Transnacional e da Cultura do Capitalismo - NIEG. E-mail: .

38 SÃO LEOPOLDO, 14 DE NOVEMBRO DE 2011 | EDIÇÃO 380 Os poderes constituídos legalmente “As empresas de Real Já! Não por acaso, compreen- não debatem a fundo o modelo de en- demos estas companhias – algumas dividamento e as empresas de comu- comunicação silenciam, de capital aberto e ações em bolsa nicação silenciam, desinformam e des- – como pilares do modus vivendi atu- viam quanto as mais simples relações desinformam e desviam al: voltado para o mercado, consumo causais por onde os recursos oriundos suntuoso e endividamento em todos da materialidade produtiva simples- quanto as mais simples os níveis. mente se tornam rarefeitos, passando Em termos de infraestrutura, o a existir apenas como dígitos ou cer- relações causais por padrão se assemelha. As mesmas tificados de compromisso (como nos plataformas que permitem a co- títulos da dívida pública). Estudar es- onde os recursos municação digital em banda larga sas relações implícitas, mas evidentes foram, antes, desenvolvidas pelas para especialistas, transformou a in- oriundos da redes interbancárias, possibilitando dignação em vontade de fazer ciência a compensação e transferência de social comprometida, dentro e fora da materialidade produtiva recursos em escala global; incluin- academia. do a evasão de divisas com origem O projeto de nuclear a pesquisa em simplesmente se tornam duvidosa e destino sigiloso, todas torno do problema central do capita- devidamente asseguradas nos “pa- lismo contemporâneo (reconfigurado rarefeitos” raísos fiscais”. O tráfego de dados pela tecnociência e subordinado aos binários pode implicar na circulação controladores do capital financeiro acelerada tanto de bens simbólicos outrora fictício) veio ao encontro de Derivativos, o valor de face destes, em na forma comunicacional (produtos um objeto maior do que o escandaloso escala planetária, subiu de 866 bilhões midiáticos) como representações de volume do endividamento brasileiro. de dólares, em 1987, para 454 trilhões valor na forma simbólica (capital Enquanto o orçamento consolidado do em 2007. Em vinte anos, uma versão financeiro). Diz-se que no auge das Sistema Integrado de Administração de capital simbólico sem lastro e nem transações de derivativos – na verda- Financeira do Governo Federal - SIAFI resgate possível tem a dimensão de de, um Esquema Ponzi de pirâmides aponta que o orçamento da União, em “valor” equivalente a mais de 32 ve- em nível global – a cada 4 segundos 2010, teve o total de 1,414 trilhão de zes o Produto Interno Bruto dos EUA, um operador negociava um pacote reais, o volume de recursos gastos na ainda o maior do mundo! de títulos representando uma casa rolagem e amortização da dívida foi Aumenta o objeto, cresce o tama- já mais de dez vezes hipotecada. de 44,93%, equivalentes a 635 bilhões nho do problema e segue o padrão de Diante de tanta evidência foi ine- de reais. Já a dimensão dos derivati- domínio. As empresas de mídia brasi- vitável nos debruçarmos sobre o fenô- vos de balcão, os produtos exóticos leiras – e uma boa parte das que es- meno que gerara a maior transferência que representam contratos muitas ve- tudamos, nós ou colegas da economia de renda da história da humanidade. zes inexistentes, fórmulas de apostas política da comunicação em termos Eis a ancestralidade e as bases de puramente especulativas que escapam globais – silenciam quanto aos fato- motivação acadêmica e política para da definição de seus criadores, éas- res causais da “fraude com nome de criar o Núcleo de Estudos da Globali- sustadoramente maior. De acordo com crise”, como dizem os manifestantes zação Transnacional Corporativa e da a Associação Internacional de Swaps e espanhóis do movimento Democracia Cultura do Capitalismo - NIEG.

SÃO LEOPOLDO, 14 DE NOVEMBRO DE 2011 | EDIÇÃO 380 39 Destaques On-Line

Essa editoria veicula entrevistas que foram destaques nas Notícias do Dia do sítio do IHU. Apresentamos um resumo delas, que podem ser conferidas, na íntegra, na data correspondente.

Entrevistas especiais feitas pela IHU On-Line e disponíveis Acesse no link http://migre.me/683yV nas Notícias do Dia do sítio do IHU (www.ihu.unisinos.br) Ainda não existe um status legal de refugiado climático, mas de 08-11-2011 a 12-11-2011. fenômenos extremos como secas e tempestades estão poten- cializando o deslocamento populacional interno em diversas regiões do mundo. No Brasil, o deslocamento de populações Código Florestal: “a discussão é feita a partir de um crono- provavelmente ocorrerá “intra e entre regiões. grama político” Entrevista especial com Bazileu Margarido, engenheiro de A era do lixo. “Ele está visceralmente associado ao atual produção, presidente do Ibama em 2008 modo de vida” Confira nas Notícias do Dia de 08-11-2011 Entrevista especial com Maurício Waldman, cientista social, Acesse no link http://migre.me/683qb colaborador do site Geografia e Cartografia – Geocarto e do A urgência em votar o novo Código Florestal na Comissão de Centro de Estudos Africanos da USP – CEA-USP Meio Ambiente – CMA e, posteriormente, no Senado, quer im- Confira nas Notícias do Dia de 11-11-2011 pedir que o projeto de reforma do Código vigente seja discu- Acesse no link http://migre.me/683BW tido na Rio+20, alerta o pesquisador. A humanidade está movimentando cerca de 48 bilhões de tone- ladas de materiais por ano, mas, desse valor, “30 bilhões viram O Protocolo de Kyoto e a COP-17, em Durban. Desafios e lixo”, informa Waldman. Na era do consumo descartável, as perspectivas em vista da Rio+20 classes “abastadas” geram cerca de 1,5 a 2,0 kg/hab/dia de Entrevista especial com Marcelo Montenegro, assessor do resíduos, enquanto entre os mais pobres o grau de resíduos programa de Direito e Alimentação da Actionaid Brasil despenca para 0,3 kg/hab/dia. Confira nas Notícias do Dia de 09-11-2011 Acesse no link http://migre.me/683uv Os desafios da participação nas sociedades democráticas Segundo avalia o assessor da Actionaid Brasil, “tanto o Pro- Entrevista especial com Wilson Gomes, pesquisador e do- tocolo de Kyoto quanto as negociações climáticas deram aos cente da Faculdade de Comunicação da Universidade Fed- países vulneráveis a oportunidade de atuarem com força em eral da Bahia relação aos acordos climáticos”. Confira nas Notícias do Dia de 12-11-2011 Acesse no link http://bit.ly/tJwSm1 Os refugiados climáticos e o paradoxo da imobilidade Conforme constata o pesquisador, “há, efetivamente, mais Entrevista especial com Márcia Castro, demógrafa, profes- iniciativas patrocinadas pelos governos para promover sora assistente na Harvard School of Public Health transparência do que para produzir ou demandar partici- Confira nas Notícias do Dia de 10-11-2011 pação civil”.

Um Protetor da Natureza: Trajetória e memória de Henrique Luiz Roessler IHU ideias - Novembro 2011 Data: 17/11/2011 MS Elenita Malta Pereira – Mestre e Doutoranda em História pela UFRGS

Informações em www.ihu.unisinos.br

40 SÃO LEOPOLDO, 14 DE NOVEMBRO DE 2011 | EDIÇÃO 380 SÃO LEOPOLDO, 14 DE NOVEMBRO DE 2011 | EDIÇÃO 380 41 Agenda da Semana

Confira os eventos desta semana realizados pelo IHU. A programação completa dos eventos pode ser conferida no sítio do IHU (www.ihu.unisinos.br).

Dia 14-11-2011 Evento: EAD - Jesus e o reino no Evangelho de Marcos - 2011 Organização: Equipe de Espiritualidade do IHU Tema: Jesus, o messias crucificado e ressuscitado: compromisso para hoje (Mc 14,1-16,20) Local: Plataforma Moodle Maiores informações: http://migre.me/683Md Dia 17-11-2011 Evento: IHU ideias Palestrante: MS Elenita Malta Pereira – Mestre e doutoranda em História pela UFRGS Tema: Um protetor da natureza: trajetória e memória de Henrique Luiz Roessler Horário: 17h30min às 19h Local: Sala Ignacio Ellacuría e Companheiros - IHU Maiores informações: http://migre.me/683PI Dia 18-11-2011 Evento: Ciclo de Palestras: Economia de Baixo Carbono. Limites e Possibilidades Palestrante: Dr. Serge Latouche - Professor de Economia na Universidade de Paris XI - Sceaux/Orsay Tema: Uma sociedade do decrescimento. Uma utopia ou uma necessidade? Horário: 20 às 22h Local: Faculdade de Administração e Economia – FAE em parceria com CEPAT/Curitiba-PR Maiores informações: http://migre.me/684n3 Evento: Gênero e Cinema Debatedora: Darli Sampaio Exibição do filme: Menina de Ouro (Direção: Clint Eastwood) Horário: 20 às 22h Local: Sindicato dos Engenheiros - Senge - PR (Edif. CCI - Mal. Deodoro, 630, 22º andar) Maiores informações: http://migre.me/684rj Dia 19-11-2011 Evento: Escola de Formação Fé, Política e Trabalho 2011 Palestrante: Prof. Dr. Aloísio Ruscheinsky - Unisinos Tema: Sociedade sustentável e fundamento ético de uma consciência planetária. Conceito de desenvolvimento. Redefinição de necessidades básicas. Biodiversidade. Dimensão espiritual da ecologia Horário: das 8h30min do sábado às 14h do domingo Local: Centro Diocesano de Formação Pastoral, Rua Emílio Ataliba Finger, 685 – Bairro Colina Sorriso, CEP 95032-470, Caxias do Sul-RS Maiores informações: http://migre.me/684wy Dia 20-11-2011 Evento: Escola de Formação Fé, Política e Trabalho 2011 Palestrante: Profa. Dra. Cleusa Maria Andreatta – Unisinos Tema: O homem e a mulher no horizonte de um novo paradigma civilizacional Horário: das 8h30min do sábado às 14h do domingo Local: Centro Diocesano de Formação Pastoral, Rua Emílio Ataliba Finger, 685 – Bairro Colina Sorriso, CEP 95032-470, Caxias do Sul-RS Maiores informações: http://migre.me/684wy

42 SÃO LEOPOLDO, 14 DE NOVEMBRO DE 2011 | EDIÇÃO 380 Serge Latouche no Brasil: peregrinação pelo decrescimento

No último sábado, 12-11-2011, Cesar Sanson, diz ainda que a op- Dia 14-11-2011 Serge Latouche iniciou uma jornada ção pelo debate na FAE deve-se ao brasileira para debater o decresci- fato de que o programa de mestra- Evento: EAD - Jesus e o reino no Evangelho de Marcos - 2011 mento sustentado, teoria pela qual do da instituição incorpora a preo- Organização: Equipe de Espiritualidade do IHU é mundialmente conhecido como cupação com o tema da “sociedade Tema: Jesus, o messias crucificado e ressuscitado: compromisso para hoje (Mc 14,1-16,20) autor. Na manhã de sábado, esteve sustentável”. Local: Plataforma Moodle no Centro Cultural da Universidade Maiores informações: http://migre.me/683Md Federal de Mato Grosso – UFMT, em Em 21-11-2011 a temática abor- Dia 17-11-2011 atividade promovida em parceria dada será Desenvolvimento huma- com o Centro Burnier Fé e Justiça - no, decrescimento e a sociedade Evento: IHU ideias Cuiabá/Mato Grosso, falando sobre convivial, dessa vez no campus Por- Palestrante: MS Elenita Malta Pereira – Mestre e doutoranda em História pela UFRGS Decrescimento sustentado, bioética to Alegre da Unisinos. Tema: Um protetor da natureza: trajetória e memória de Henrique Luiz Roessler e biopolítica: conversas com Merle- Horário: 17h30min às 19h au-Ponty. No campus São Leopoldo Latou- Local: Sala Ignacio Ellacuría e Companheiros - IHU che inicia sua jornada na terça-fei- Maiores informações: http://migre.me/683PI No dia 18-11-2011, o pensador ra, 22-11-2011, e se estende até o Dia 18-11-2011 francês irá para Curitiba, Paraná, dia até 25-11-2011. Confira a pro- Evento: Ciclo de Palestras: Economia de Baixo Carbono. Limites e Possibilidades na Faculdade de Administração e gramação completa das atividades Palestrante: Dr. Serge Latouche - Professor de Economia na Universidade de Paris XI - Sceaux/Orsay Economia – FAE, em parceria com em http://migre.me/685L2. Tema: Uma sociedade do decrescimento. Uma utopia ou uma necessidade? Centro de Pesquisa e Apoio ao Tra- Horário: 20 às 22h balhador - CEPAT, para falar sobre De acordo com Gilberto Faggion, Local: Faculdade de Administração e Economia – FAE em parceria com CEPAT/Curitiba-PR Uma sociedade do decrescimento. professor de Gestão da Inovação, Maiores informações: http://migre.me/684n3 Uma utopia ou uma necessidade? Metodologia de Pesquisa e Teorias da Administração na Unisinos e coordenador do Pro- Evento: Gênero e Cinema Segundo Cesar Sanson, coordenador do CEPAT, par- grama Repensando os Clássicos da Economia, do IHU, a Debatedora: Darli Sampaio ceiro do IHU, na promoção dos debates que o professor presença de Latouche no Brasil (e particularmente na Exibição do filme: Menina de Ouro (Direção: Clint Eastwood) fará no Brasil, “a vinda de Latouche tem despertado Unisinos) “possibilitará que a comunidade reflita sobre Horário: 20 às 22h bastante interesse em função da atualidade da temáti- pressupostos tidos como grandes verdades na socieda- Local: Sindicato dos Engenheiros - Senge - PR (Edif. CCI - Mal. Deodoro, 630, 22º andar) ca que abordará”. O coordenador do CEPAT destaca que de contemporânea, a qual é dominada e absorvida por Maiores informações: http://migre.me/684rj a opção de realizar o debate com Latouche em Curitiba uma economia de crescimento, que se tornou um obje- Dia 19-11-2011 na Faculdade de Administração e Economia – FAE é uma tivo primordial da vida. No entanto, essa é uma ideia Evento: Escola de Formação Fé, Política e Trabalho 2011 tentativa de levar para dentro do debate econômico muito questionável, artificial e que traz consequências Palestrante: Prof. Dr. Aloísio Ruscheinsky - Unisinos uma outra variante de reflexão. Segundo ele, “via de devastadoras para o planeta e para nós enquanto espé- Tema: Sociedade sustentável e fundamento ético de uma consciência planetária. Conceito de regra prevalece no mundo da economia a ortodoxia da cie viva”. De acordo com o professor, “o nosso modo de desenvolvimento. Redefinição de necessidades básicas. Biodiversidade. Dimensão espiritual da ecologia economia neoclássica e se perdeu o conteúdo da econo- produzir e consumir ameaça a capacidade de regenera- Horário: das 8h30min do sábado às 14h do domingo mia política, e as propostas de Latouche, entre outras, ção da biosfera, assim como não é nada equitativo em Local: Centro Diocesano de Formação Pastoral, Rua Emílio Ataliba Finger, 685 – Bairro Colina Sorriso, recupera a essência de que as opções econômicas apre- termos socioeconômicos. Assim, Latouche usa o termo CEP 95032-470, Caxias do Sul-RS sentam consequências sociais”. decrescimento justamente para contrastar com esse Maiores informações: http://migre.me/684wy discurso dominante, para nos fazer questionar sobre Dia 20-11-2011 Particularmente, destaca o pesquisador do Cepat, nossa fé cega na ciência e no futuro como meios para Latouche instiga a percepção de que “impulsionada resolver os problemas do presente. Temos que pensar: Evento: Escola de Formação Fé, Política e Trabalho 2011 pela ideia de progresso linear e quantitativo assenta- onde nos tem levado o objetivo do crescimento pelo Palestrante: Profa. Dra. Cleusa Maria Andreatta – Unisinos do sobre o crescimento econômico e recursos naturais crescimento? E mais: que sociedade podemos construir Tema: O homem e a mulher no horizonte de um novo paradigma civilizacional ilimitados, a economia, na sociedade industrial, foi se considerando o humano no lugar que hoje é ocupado Horário: das 8h30min do sábado às 14h do domingo desvencilhando gradativamente da economia política e pelo mercado?” Local: Centro Diocesano de Formação Pastoral, Rua Emílio Ataliba Finger, 685 – Bairro Colina Sorriso, passou a ser orientada e regida tão somente pelo mer- CEP 95032-470, Caxias do Sul-RS cado, e essa lógica tem levado à crise ecológica, que Marilene Maia, assistente social, professora no curso Maiores informações: http://migre.me/684wy por sua vez, tem levado o planeta ao esgotamento”. de Serviço Social da Unisinos e coordenadora do Progra-

SÃO LEOPOLDO, 14 DE NOVEMBRO DE 2011 | EDIÇÃO 380 43 ma Trabalho, do IHU e do Observatório de Políticas So- Horário: 20h ciais do Vale do Rio dos Sinos – ObservaSinos, acrescenta Local: Faculdade de Administração e Economia – FAE em que Latouche irá contribuir enormemente nos processos parceria com CEPAT/Curitiba-PR de estudo, debate e projeção que a Unisinos está rea- Inscrições pelo email: [email protected] lizando junto ao V Congresso da Cidade de Porto Alegre , a partir da tematização do Desenvolvimento Huma- 21 de novembro no. Sua palestra Desenvolvimento humano, decresci- mento e sociedade convivial encerrará um conjunto de Palestra: Desenvolvimento Humano, Decrescimento e a atividades promovidas pela Unisinos as quais buscaram Sociedade Convivial analisar a realidade do desenvolvimento que se tem e Debatedor: Plinio Alexandre Zalewski Vargas - Diretor apontaram perspectivas para que Porto Alegre alcance da Secretaria de Governança da Prefeitura Municipal de o ano de 2022 com novas marcas de sustentabilidade e Porto Alegre inclusão. Horário: Das 19h 30min às 22h Local: Unisinos - Campus Porto Alegre/RS Confira a seguir, uma entrevista que debate a temáti- ca do decrescimento, concedida pelo professor Dr. José 22 de novembro Eustáquio Diniz Alves, da Escola Nacional de Ciências Estatísticas – Ence/IBGE, adiantando aspectos que serão Palestra: Por outro modo de consumir: descrição de al- debatidos pelo pensador francês nos próximos dias. gumas experiências alternativas Horário: Das 16h às 18h Confira a programação das atividades de Latouche no Local: Sala Ignacio Ellacuría e Companheiros, no IHU Brasil 23 de novembro 12 de novembro Palestra: Sociedade convivial e economia de baixo car- Palestra: Decrescimento sustentado, bioética e biopolí- bono: uma relação convivial? tica: conversas com Merleau-Ponty Horário: Das 19h às 20h - Recepção e credenciamento Horário: Das 8h às 12h Das 20h às 22h - Palestra Local: Centro Cultural da UFMT em parceria com Centro Local: Auditório Central - Unisinos Burnier - Cuiabá/Mato Grosso 24 de novembro 16 de novembro Palestra: IHU ideias - A atualidade da obra de Ivan Illich Palestra: Sociedade do Decrescimento: Uma utopia ou Horário: 17h30min às 19h uma necessidade? Local: Sala Ignacio Ellacuría e Companheiros, no IHU Horário: 20h Local: Auditório César Lattes - PTI 25 de novembro Parceria: Diálogos de Fronteira - UNILA Palestra: Sociedade convivial: uma perspectiva eco-teoló- 18 de novembro gica Horário: 15h às 17h Palestra: Uma sociedade do decrescimento. Uma utopia Local: Sala Ignacio Ellacuría e Companheiros, no IHU. ou uma necessidade?

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44 SÃO LEOPOLDO, 14 DE NOVEMBRO DE 2011 | EDIÇÃO 380 Decrescimento e a busca de uma sociedade convivial Ao discutir as possibilidades do decrescimento, “a comunidade internacional precisa superar a Era do Petróleo e avançar na Era do Sol/Vento”, adverte José Eustáquio Diniz Alves

Por Graziela Wolfart e Patricia Fachin

iscutir o decrescimento é “essencial para desmistificar o ‘fetiche do crescimento ilimitado da popu- lação e do consumo’” e o “fetiche da exploração ilimitada dos recursos naturais”, diz José Eustáquio Diniz Alves à IHU On-Line, em entrevista concedida por e-mail. A teoria do decrescimento, explica, “visa garantir a qualidade de vida das pessoas e a preservação ambiental sem reproduzir a lógica do crescimento infinito do consumo”. DRecordando Karl Marx, Alves diz que a sociedade capitalista “funciona na base do ‘fetichismo da mercadoria’ e da ‘coisificação das pessoas’”. Nesse sentido, assinala, na sociedade do crescimento econômico “a convivência humana é intermediada pela posse de bens de consumo e pelo domínio das outras espécies vivas da Terra. (...) Na sociedade antropocêntrica não existe convivência harmônica entre o homo sapiens e as demais espécies, mas sim relações de dominação e exploração. Uma sociedade convivial tem que romper com essa lógica e estabelecer os princípios da solidariedade ecocêntrica”. José Eustáquio Diniz Alves é doutor em Demografia e professor titular do mestrado em Estudos Populacionais e Pesquisas Sociais da Escola Nacional de Ciências Estatísticas – Ence/IBGE. Confira a entrevista.

IHU On-Line – Considerando a presen- IHU On-Line – Qual a diferença entre com a expansão do consumo, mas com ça de Serge Latouche no Brasil, qual decrescimento e desaceleração do a liberação da criatividade humana, a importância de debater a teoria do crescimento? eliminando os grilhões do totalitaris- decrescimento em nossos dias? José Eustáquio Diniz Alves – Desace- mo econômico. José Eustáquio Diniz Alves – O debate leração do crescimento é o que está sobre a teoria do decrescimento é não acontencendo nos Estados Unidos, IHU On-Line – Como o descrescimen- apenas oportuna, mas também essen- onde o endividamento crescente das to pode ser associado à questão da cial para desmistificar o “fetiche do famílias, das empresas e do setor mudança da matriz energética mun- crescimento ilimitado da população e público colocou um limite prático à dial? do consumo” e o “fetiche da explora- continuidade do modelo de desen- José Eustáquio Diniz Alves – Um dos ção ilimitada dos recursos naturais”. O volvimento com base na expansão do principais componentes do crescimen- nível e o padrão de produção de bens crédito e da emissão de moeda e títu- to da Pegada Ecológica é o aumento e serviços da economia mundial já ul- los fictícios. Decrescimento do PIB é o dos gases de efeito estufa e, especial- trapassaram em 50% a capacidade de que está acontecendo na Grécia, que mente, do CO2 liberado na queima de regeneração do Planeta. A perda de tem sofrido o terceiro ano seguido de combustíveis fósseis (lenha, carvão biodiversidade é espantosa. A humani- recessão. Em ambos os países quem mineral, gás e petróleo). Foram os dade está caminhando para o precipí- “paga o pato” da recessão são os tra- combustíveis fósseis que viabilizaram cio e o suicídio, provocando também balhadores que perdem o emprego, os o grande crescimento populacional o biocídio. Como disse recentemente cidadãos e cidadãs que perdem direi- e econômico do século XX, quando a o prestigiado demógrafo George Mar- tos e o sistema de proteção social e população cresceu cerca de quatro tine: “A solução passa pela revisão ambiental que perde os investimentos vezes e a economia cresceu aproxima- radical do nosso modelo de desenvol- necessários para a sua consolidação. damente 18 vezes. Mas os combustí- vimento e da sereia que o estimula – o A teoria do decrescimento visa garan- veis fósseis são finitos e já chegaram consumismo”. tir a qualidade de vida das pessoas e ao seu pico de produção. No século a preservação ambiental sem repro- XXI, o consumo desse tipo de energia  Confira o artigoConsumismo é maior ameaça duzir a lógica do crescimento infinito tem crescido acima da produção, daí à sustentabilidade, publicado nas Notícias do do consumo. A sociedade do decresci- o aumento dos preços. Combustíveis Dia 30-10-2011, disponível em http://migre. me/69v7t. (Nota da IHU On-Line) mento é aquela que não se preocupa mais caros significam alimentos mais SÃO LEOPOLDO, 14 DE NOVEMBRO DE 2011 | EDIÇÃO 380 45 caros, como mostra o índice de preços cerca de 30 países e que pode ser so- prefeitos e vereadores só pensam nos da Food and Agriculture Organization lucionado com vontade política e uma royalties do pré-sal para continuar in- - FAO. Dessa forma, a população mun- fração dos recursos mundiais gastos vestindo no modelo de crescimento do dial vai enfrentar um grande desafio com despesas militares. consumo ilimitado que provoca a de- nas próximas décadas, que é o elevado As populações pobres, de modo ge- gradação ambiental e a perda de bio- preço da energia e dos alimentos. ral, e os pobres dos países pobres, em diversidade. O mundo vai enfrentar também o particular, têm muitos filhos por falta de enorme desafio das consequências do acesso aos métodos de regulação da fe- IHU On-Line – Em que medida o de- aquecimento global e dos eventos cli- cundidade, falta de acesso aos direitos crescimento pode ser apontado máticos extremos. Os cenários para as sexuais e reprodutivos e falta de acesso como condição para uma sociedade próximas décadas não são nada ani- à educação, saúde e trabalho. Existem convivial? madores, mas podem ser mitigados se cerca de 215 milhões de mulheres no José Eustáquio Diniz Alves – A socie- houver uma rápida e ampla mudança mundo sem acesso aos métodos contra- dade capitalista, como disse Karl Marx, na matriz energética mundial. A co- ceptivos. Portanto, com inclusão social funciona na base do “fetichismo da munidade internacional precisa su- as famílias tendem a limitar seu tama- mercadoria” e da “coisificação das pes- perar a Era do Petróleo e avançar na nho pelos seus próprios meios. A cidada- soas”. O processo de alienação faz com Era do Sol/Vento. Juntamente com a nia é o melhor contraceptivo. que os indivíduos não se relacionem redução do consumo conspícuo, so- como seres humanos, mas sim como mente as energias limpas e renováveis IHU On-Line – Como vê a postura “pró- proprietários de bens de consumo, que podem ajudar a evitar que o desastre crescimento” e das “grandes obras” são os marcadores de status social mais do aquecimento global, com o conse- por parte dos governantes de vários valorizados. Seguindo as regras da con- quente aumento do nível dos oceanos países hoje, inclusive o Brasil? tabilidade, o sucesso dos indivíduos, das e a acidificação das águas, atinja pro- José Eustáquio Diniz Alves – Infeliz- empresas e do governo é medido pela porções apocalípticas. mente a maior obra que o Brasil está quantidade de bens acumulados e pe- realizando não é promoção da cida- los direitos a receber. A solidariedade é IHU On-Line – O decrescimento deve dania e da solidariedade universal, ofuscada pelo “efeito demonstração”. ser aplicado a toda a população mun- mas sim o tão alardeado projeto de O aumento do patrimônio e da riqueza dial? exploração do “petróleo do pré-sal”. é a referência máxima de aceitação e José Eustáquio Diniz Alves – Embora A Petrobrás, o BNDES e o povo brasilei- reconhecimento social. tenhamos atingido sete bilhões de habi- ro (que paga impostos) estão jogando Portanto, na sociedade do cresci- tantes no mundo, já existem países nos todas as fichas na exploração das ja- mento econômico a qualquer custo, quais a população está decrescendo, o zidas de petróleo localizadas a cente- a convivência humana é intermediada que é o case de Cuba, Rússia, Japão, nas de quilômetros da costa brasileira pela posse de bens de consumo e pelo Ucrânia, entre outros. Existem outros e a milhares de metros no fundo do domínio das outras espécies vivas da que vão ter suas populações caindo mar. É um investimento monstruoso, Terra. Os animais e plantas são con- num futuro próximo, pois já possuem de centenas de bilhões de dólares, em siderados apenas como insumos para taxas de fecundidade abaixo do nível uma fonte energética poluidora e que melhorar o padrão econômico da hu- de reposição, tais como: Brasil, Chi- está com os dias (ou anos) contados. manidade, especialmente das cama- le, China, Coreia do Sul, Irã e Vietnã. A Era do Petróleo representa o passa- das mais privilegiadas. Na sociedade Também há um grande grupo de países do. Com uma fração de tais recursos o antropocêntrica não existe convivên- que estão em processo de transição de Brasil poderia impulsionar uma grande cia harmônica entre o homo sapiens e altas para baixas taxas de fecundidade mudança na matriz energética brasi- as demais espécies, mas sim relações e devem atingir o nível de reposição leira, avançando na produção de ener- de dominação e exploração. Uma so- em um espaço curto de tempo. Na ver- gia solar e eólica e criando empregos ciedade convivial tem que romper com dade, o problema de alto crescimento e tecnologias verdes. Mas o governo essa lógica e estabelecer os princípios demográfico é um fato localizado em central, os deputados, governadores, da solidariedade ecocêntrica.

Oficina sobre os dados censitários 2010 da Região do Vale do Sinos

Data: 1/12/2011

Prof. MS Ademir Barbosa Koucher – Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística - IBGE

Informações em www.ihu.unisinos.br

46 SÃO LEOPOLDO, 14 DE NOVEMBRO DE 2011 | EDIÇÃO 380 Luiz Henrique Roessler, um protetor da natureza Ambientalista avant la lettre gaúcho, fundador da União Protetora da Natureza – UPN, Roes- sler foi um dos precursores da proteção ambiental no Brasil, destaca Elenita Malta Pereira. Sua luta para conscientizar a população se dava através de artigos em jornais e em fiscaliza- ções a campo

Por Márcia Junges

onhecido em todo o Rio Grande do Sul nos anos 1940-60, Luiz Henrique Roessler atuava como fiscal das contravenções à natureza no estado. Em sua trajetória “prática e escrita estavam imbricadas de maneira indissociável, como armas em sua luta para defender a natureza dos devastadores”, explica Elenita Malta Pereira na entrevista que concedeu, por e-mail, à IHU On-Line. Munido de leituras e co- nhecimentos, Roessler tinha um grande diferencial: “aplicar, na prática, o conteúdo dessas leituras e, Catravés das crônicas jornalísticas, difundir esses conhecimentos para o público em geral”. Já àquele tempo ele queixava-se da falta de verbas e, inclusive, de um veículo para fazer as fiscalizações a campo. Fundou a União Protetora da Natureza – UPN e foi incansável na denúncia dos ataques contra o patrimônio natural gaúcho. Para Elenita, “hoje, quando as consequências dos exageros na exploração da natureza estão visíveis a todos, provo- cando situações ainda não dimensionadas pelo homem, como as mudanças climáticas e o colapso de inúmeros ecossistemas, o discurso de Roessler ainda faz sentido”. Graduada, mestre e doutoranda em História pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul – UFRGS, Elenita é autora da dissertação Um protetor da natureza: trajetória e memória de Henrique Luiz Roessler, que intitula sua palestra nesta quinta-feira, 17-11-2011, no IHU ideias, das 17h30min às 19h, na Sala Ignácio Ellacuría e Com- panheiros, no Instituto Humanitas Unisinos – IHU. Confira a entrevista.

IHU On-Line – Quem foi Henrique meçou a ser publicado pelo governo de te como há hoje. O termo “ecologia”, Luiz Roessler? Qual é o contexto de Getúlio Vargas, como o Código de Caça até o início dos anos 1970, estava restri- sua vida, luta e origens? e Pesca e o Código das Águas. Também to ao meio acadêmico e, pelo que pude Elenita Malta Pereira – Roessler era filho nesse ano apareceu o primeiro Código verificar, nunca foi utilizado por Roess- de descendentes de imigrantes alemães Florestal brasileiro, que previa a for- ler. Ele se apoiava em leituras de revis- oriundos da região próxima à fronteira mação de uma polícia florestal em todo tas de divulgação, como “Caça e Pesca”, com a França. Sua família era proprietá- o Brasil. Em 1939, Roessler, que já era editada por Monteiro Lobato, “Chácaras ria da empresa Pedro Blauth & Compa- capataz do Rio dos Sinos – remunerado e quintais”, uma das mais importantes nhia, que atuava no ramo da navegação – desde 1937, ofereceu-se para trabalhar publicações da época, e de livros escri- no Rio dos Sinos. Nasceu em Porto Ale- gratuitamente nessa polícia, ocupando o tos por autores brasileiros e estrangeiros gre em 1896, mas ainda bebê veio com cargo de delegado florestal. Cinco anos sobre conservação dos elementos natu- os pais morar em São Leopoldo, cidade depois, acumulou a função de fiscal de rais. O seu grande diferencial foi aplicar, onde, mais tarde, foi desenhista, cons- caça e pesca. Os dois cargos eram vin- trutor de barcos, escultor e contabilista. culados ao Ministério da Agricultura, na  José Bento Monteiro Lobato (1882-1948): escritor brasileiro popularmente conhecido Estudou no colégio jesuíta Nossa Senhora época o órgão responsável pela proteção pelo tom educativo, bem como divertido de da Conceição, onde passeios ao ar livre e à natureza no país. sua obra de livros infantis, o que seria, apro- banhos no Rio dos Sinos faziam parte da ximadamente, metade de sua produção lite- rária. A outra metade, composta de romances rotina dos estudantes. IHU On-Line – Em que aspectos é pos- e contos para adultos, foi menos popular, mas A atividade que o tornou um persona- sível dizer que Roessler foi um dos um divisor de águas na literatura brasileira. gem conhecido em todo o Rio Grande do precursores da proteção ambiental Entre seus livros, destacamos: O picapau ama- relo (34. ed. São Paulo: Brasiliense, 2001); Sul nos anos 1940-60 foi uma eficiente no Brasil? Dom Quixote das crianças (27. ed. São Paulo: atuação como fiscal das contravenções à Elenita Malta Pereira – No contexto em Brasiliense, 2001); Viagem ao céu (45. ed. São natureza no estado. Em 1934, um con- que Roessler viveu já havia discussão Paulo: Brasiliense, 1995); Memórias da Emilia (42. ed. São Paulo: Brasiliense, 1994). (Nota junto de leis de proteção à natureza co- ambiental, mas não da forma abrangen- da IHU On-Line) SÃO LEOPOLDO, 14 DE NOVEMBRO DE 2011 | EDIÇÃO 380 47 na prática, o conteúdo dessas leituras e, tornar a situação, entre as alternativas reza: para ele, era preciso criar, forjar, através de crônicas jornalísticas, difun- possíveis, Roessler, espelhando-se em o amor à natureza e a mentalidade de dir esses conhecimentos para o públi- iniciativas semelhantes no exterior e conservação dos elementos naturais. co em geral. Na trajetória de Roessler, no Brasil, fundou a União Protetora da prática e escrita estavam imbricadas de Natureza – UPN, em 01-01-1955. A UPN, IHU On-Line – Como essas críticas maneira indissociável, como armas em sediada em São Leopoldo, foi a primei- eram recebidas pelas empresas e sua luta para defender a natureza dos ra entidade de proteção à natureza do pelo poder público? Ele tinha apoio devastadores. Rio Grande do Sul em sentido amplo: da população em sua causa? sua militância abrangia a defesa de to- Elenita Malta Pereira – Essa foi uma IHU On-Line – Quais eram suas prin- dos os elementos naturais. Em 1955, questão interessante que apareceu em cipais atitudes de denúncia e cons- Roessler conseguiu, pelo menos, reaver minha pesquisa. Havia empresas que o cientização sobre o cuidado com o uma das credenciais perdidas. Através apoiavam, como fabricantes de armas ambiente? do contato com amigos influentes, con- e vendedores de artigos para a caça Elenita Malta Pereira – Fiscalizando tan- seguiu continuar como fiscal de caça e e pesca em geral. Essas empresas pa- to as margens do Rio dos Sinos como o pesca, no âmbito da Secretaria de Agri- trocinavam seus cartazes e panfletos desmatamento, as queimadas, a caça e cultura estadual. Dessa forma, atuan- educativos, numa espécie de “marke- a pesca ilegais, Roessler viajou por todos do na UPN e na fiscalização, ao mesmo ting socioambiental”, parecido com o os cantos do Rio Grande do Sul, aplicando tempo, pôde aliar a atuação prática, que vemos atualmente. Por mais pa- autos de infração, multas e se envolven- coibindo as transgressões das leis pro- radoxal que isso possa parecer hoje, do em conflitos com quem não aceitava tetoras, com uma série de campanhas Roessler não era contra a caça legali- sua fiscalização rigorosa. Um dos maio- educativas pela proteção dos elemen- zada, e sim contra a caça ilegal, fora res problemas que ele enfrentou foram tos naturais, através de palestras e de época e que matasse espécies não as “passarinhadas”, uma prática muito distribuição de panfletos em escolas, permitidas por lei. Mas houve conflitos apreciada nas cidades que receberam clubes assistencialistas, a agricultores com curtumes da região do Vale do Rio grupos étnicos italianos no estado. Ro- e ao público em geral. dos Sinos, que despejavam seus resí- essler e os “passarinheiros” protagoniza- Em fevereiro de 1957, Roessler se tor- duos in natura, contaminando a água ram episódios de violência física e, prin- nou colunista do jornal Correio do Povo, bebida pelas populações ribeirinhas. cipalmente, simbólica em xingamentos na seção “Assuntos Rurais”, publicando Em fevereiro de 1961, houve uma de ambas as partes: para os caçadores, crônicas sobre os problemas ambientais grande mortandade de peixes no Rio Roessler era um “cangaceiro”, “autori- do Rio Grande do Sul daquele contexto, dos Sinos provocada pelos detritos dos tário”, “nazista”, que atrapalhava suas sempre às sextas-feiras. Esse espaço foi curtumes, segundo Roessler. Ele che- passarinhadas. Para Roessler, os caça- importantíssimo em sua trajetória, por- gou a enviar carta a Jânio Quadros, dores eram “tarados de alma negra”, que tornou seu trabalho conhecido por solicitando providências. O presidente “assassinos”, movidos por uma “herança um número bem maior de pessoas. Ao sensibilizou-se com o ocorrido e san- maldita” de seus antepassados. todo, ele publicou cerca de 300 textos, cionou um decreto (50.877/61) com Em uma dessas fiscalizações, em abordando a questão florestal (desmata- medidas mais rigorosas para a punição 1952, Roessler sofreu um acidente em mento, queimadas, reflorestamento), o dos estabelecimentos que lançassem que perdeu o pé direito. Isso o obrigou drama dos rios (poluição industrial, mor- resíduos nos rios. Quando ele renun- a ficar dez meses afastado da fiscaliza- te de peixes envenenados, projetos de ciou, Roessler ficou desolado, porque, ção (o que foi uma tortura para ele!) retificação do Rio dos Sinos), a matança em sua opinião, foi o único presidente e a usar uma prótese mecânica para de pássaros motivada pela “passarinha- que se importou com os recursos na- o resto da vida. A perna substituta da”, a pesca ilegal (utilização de objetos turais do país. No entanto, em geral, provocava dores, mas não o suficiente proibidos, dinamite), a matança de ale- o governo apoiava mais no discurso do para afastá-lo das diligências de fisca- vinos nas bombas de sucção nas lavouras que na prática, porque criava órgãos e lização. Depois do período de repouso, de arroz, o impacto da moda (casacos de publicava leis, mas Roessler queixava- ele voltou a fiscalizar e, em abril de peles, adereços com penas de pássaros), se constantemente da falta de verbas 1954, sofreu um processo judicial mo- os direitos dos animais (utilização de ani- e até de um veículo para realizar as vido pelos caçadores de passarinhos, mais como cobaias, vivissecção, cruelda- diligências de fiscalização. Pelo que vivendo um dos períodos mais difíceis des), a constituição de parques e reser- pude apurar, seus leitores no Correio da sua vida. vas naturais, a educação de crianças e do Povo o apoiavam, especialmente os jovens para a proteção da natureza e o professores, que, aliás, eram funda- Amor à natureza questionamento da noção de “progres- mentais para o sucesso das campanhas Em dezembro de 1954, ele foi des- so”. Essa variedade de temas era trata- educativas da UPN. tituído dos cargos de delegado florestal da com uma linguagem ácida, corrosiva  Jânio da Silva Quadros (1917-1992): 22º pre- e de fiscal de caça e pesca, por conta até, permeada de ironia muitas vezes. sidente do Brasil, entre 31 de janeiro de 1961 de um novo estatuto dos funcionários É que Roessler queria muito chamar a e 25 de agosto de 1961 — data em que renun- ciou, alegando que “forças terríveis” o obriga- públicos, que não permitia funções não atenção das pessoas sobre a urgência de vam a esse ato. Em 1985 elegeu-se prefeito de remuneradas (Lei 1.711/52). Para con- se mudar a conduta em relação à natu- São Paulo pelo PTB. (Nota da IHU On-Line) 48 SÃO LEOPOLDO, 14 DE NOVEMBRO DE 2011 | EDIÇÃO 380 IHU On-Line – Quais são as principais çando a culpa humana pela destruição legado para as gerações que o suce- atividades da Fundação Estadual de dos elementos naturais, visava atingir dem? Proteção Ambiental Henrique Luis o maior número possível de adeptos Elenita Malta Pereira – Hoje, quando Roessler? para sua crença: a religião da prote- as consequências dos exageros na ex- Elenita Malta Pereira – A Fundação ção à natureza. ploração da natureza estão visíveis a Estadual de Proteção Ambiental - Fe- todos, provocando situações ainda não pam, além de conceder licenças am- IHU On-Line – Em que medida ele in- dimensionadas pelo homem, como as bientais, é um dos órgãos responsáveis fluenciou a criação de ONGs e entida- mudanças climáticas e o colapso de pela fiscalização e aplicação das leis des voltadas à proteção ambiental? inúmeros ecossistemas, o discurso de de proteção ambiental no estado. Ela Elenita Malta Pereira – Em 1971, a Roessler ainda faz sentido. Esquadri- faz mais ou menos o que Roessler fa- Agapan homenageou Roessler, ao lado nhando o Rio dos Sinos em sua canoa zia, através do Serviço Florestal e da do Padre Balduíno Rambo, como pa- e dormindo muitas noites de verão na Divisão de Caça e Pesca. Por isso o ho- trono. A Agapan-NL, de São Leopoldo, casinha de Tarzan que construiu em menageou Roessler em seu nome. hoje UPAN, fez o mesmo. Em 1978, cima de uma árvore, ele buscou a in- quando um grupo de jovens alunos do tegração máxima com a natureza. Fez IHU On-Line – Em que ideias se base- Prof. Kurt Schmeling resolveu fundar muito mais do que o possível em sua ava a produção escrita de Roessler? uma entidade ecológica, seu nome breve vida (63 anos), divulgando a pro- Elenita Malta Pereira – Um aspecto foi escolhido para designá-la: Movi- teção à natureza em todos os recantos que não havia sido previsto no início de mento Roessler. Algumas das pessoas do estado do RS, em todos os supor- meu trabalho, mas que acabou ocupan- que fundaram essas entidades eram tes ao seu alcance. Seus textos, no do um espaço importante na pesquisa, ex-integrantes da UPN, que não con- mínimo, podem nos mobilizar à ação foi a “ideia de natureza” de Roessler. A seguiram reorganizar-se depois da ainda, mesmo que os problemas atu- partir da análise de uma amostragem morte de Roessler, em 1963 (Roessler ais sejam outros, bem mais difíceis, de textos correntes no Rio Grande do se mostrou insubstituível em sua luta aliás. A paixão com que denunciava Sul e no Brasil, bem como de autores obstinada contra os transgressores das negociatas de madeira, muitas vezes citados em suas crônicas jornalísticas, leis ambientais; ele era quase um ho- estimuladas pelo próprio estado, ou foi possível constatar que ele estava mem-entidade, centralizando todas as com que defendia a educação de jo- muito bem sintonizado com o que se decisões e atividades). Outros eram vens e crianças pela proteção à natu- produzia sobre o tema. Seu discurso ligadas ao naturismo e eram leitores reza ainda podem nos inspirar na luta se alicerçava no nacionalismo, na edu- das crônicas dele no Correio do Povo. por justiça ambiental e pela difusão cação e na religião. Articulando esses Um dos fundadores da Agapan, Augus- de uma postura responsável para com três elementos, formulou sua concep- to Carneiro, afirmou ter sido “ecologi- a biodiversidade que nos cerca. Como ção de natureza: uma criação divina, zado” por Roessler. Roessler fez muitas vezes, podemos e uma dádiva de Deus aos humanos e, ao devemos cobrar atitudes corretas de mesmo tempo, o patrimônio maior da IHU On-Line – Qual é o seu principal políticos e de empresas que, muitas nação, por isso o incentivo à sua pro-  Agapan: Associação Gaúcha de Proteção ao vezes, usam a palavra “sustentabilida- teção, através de campanhas educati- Ambiente Natural. Fundada em abril de 1971 de” – hoje extremamente vulgarizada vas, era fundamental. Somente quan- por José Lutzenberger, Augusto Carneiro, Hil- – como uma estratégia de promoção da Zimmermann e outros, em Porto Alegre. do as pessoas entendessem o quanto É considerada uma das primeiras entidades de suas imagens, e não realmente pre- a natureza era importante, haveria ecológicas do Brasil. Luiz Henrique Roessler é ocupadas com a manutenção da vida esperança de um amanhã; o uso res- homenageado pela Agapan como seu patrono. em todas as suas formas. (Nota da IHU On-Line) ponsável dos elementos naturais era  Balduíno Rambo: sacerdote jesuíta, profes- De forma contundente e apaixona- necessário para que as gerações futu- sor, jornalista, escritor, botânico e geógrafo da, seus escritos apresentavam os pro- ras não sofressem com a falta deles, brasileiro. Sobre ele, consultar o livro de Luiz blemas, denunciavam transgressões e Osvaldo Leite Jesuítas cientistas no sul do Bra- bem como a reserva de áreas natu- sil (São Leopoldo: Unisinos, 2005). Rambo pu- sugeriam soluções para acabar com a rais, ainda “intocadas” pelo homem. blicou um livro de contos em dialeto alemão, devastação. Seu mérito foi justamente Esses dois princípios nortearam toda em dois volumes, intitulado O rebento do car- oferecer informações sobre a situação valho (São Leopoldo: Unisinos, 2002). Em 1942 sua atuação e pensamento: conserva- publicou sua primeira grande obra, A fisiono- ambiental do Rio Grande do Sul naque- ção e preservação; eram seus manda- mia do Rio Grande do Sul, uma descrição deta- le momento, na esperança de cons- mentos, sua profecia, que ele seguia lhada da geografia do estado, incluindo mapas cientizar as pessoas da necessidade de e 30 ilustrações paisagísticas, feitas a partir e anunciava à sociedade. Roessler se de fotos aéreas tiradas por ele em viagens por transformação. Com toda a destruição sentia um predestinado, apresentava- todo o território, realizadas com um avião do ambiental a que estamos assistindo, se mesmo como um profeta, prevendo terceiro Regimento de Aviadores de Canoas. principalmente nos recentes episódios (Nota da IHU On-Line) que, se o homem não fizesse sua par-  Agapan-NL: Hoje intitulada União Protetora de morte de toneladas de peixes no te, a terra se tornaria um deserto, um do Ambiente Natural – UPAN, foi fundada em seu querido Rio dos Sinos, podemos inferno. Incorporando um discurso que julho de 1971. Foi renomeada UPAN em 1987. perceber que essa era uma tragédia Luiz Henrique Roessler é homenageado pela sacralizava a natureza, através da uti- UPAN como seu patrono. (Nota da IHU On- anunciada por Roessler. Cabe pergun- lização de imagens religiosas e refor- Line) tar: ainda dá tempo de ouvi-lo? SÃO LEOPOLDO, 14 DE NOVEMBRO DE 2011 | EDIÇÃO 380 49 IHU Repórter Guilherme Luís Roehe Vaccaro

Por Thamiris Magalhães | Foto Arquivo pessoal

inda que vivamos mais de 100 anos, nunca devemos deixar de aprender”. Para Guilherme Luís Roehe Vaccaro, essa frase tornou-se inesquecível e pode ser dita como sendo aquela que o define. Trabalhando há seis anos na Unisinos, o docente frisa que o seu maior sonho é daqui a alguns anos poder olhar para “Atrás e perceber como o Brasil melhorou. “Essa é uma das coisas que me motiva a levantar todo o dia de manhã”. Feliz, Vaccaro afirma que sua sorte foi ter casado com a sua melhor amiga, que foi sua colega de faculdade. Confira a entrevista com o professor, concedida pessoalmente à IHU On-Line.

Origem – Sou natural de Porto Ale- casado com a minha melhor amiga. aqui na Unisinos. Então, indiretamente gre. Passei um período, quando criança, acabo tendo uma relação com os coor- em Veranópolis, uma cidadezinha no in- Formação – Sou bacharel em mate- denadores de vários trabalhos. Também terior do Rio Grande do Sul, terra natal mática aplicada, fiz minha graduação coordeno um projeto estratégico na Uni- de minha mãe. Ela mora aqui e meu pai, no período de 1990 a 1993 e, e depois sinos, que é vinculado ao Laboratório de que era de Marau, morou durante muitos disso, fiz um ano do curso de Estatísti- Ensaios de Confiabilidade e, além disso, anos em Porto Alegre, mas já é falecido. ca. Notava que fazia falta algo que me tenho outras tarefas como pesquisador. Tenho um irmão, Fernando, quatro anos aproximasse mais do mundo real e fiz o Hoje, tenho um projeto, junto ao Hospi- mais velho que eu, que mora em Porto mestrado em Engenharia de Produção, tal Mãe de Deus, em que estudo a inova- Alegre e é médico urologista. Hoje, moro que durou de 1995 a 1997. Toda a minha ção em ambientes hospitalares. Trata-se com minha esposa, Debora Azevedo, e formação foi realizada na Universidade de um trabalho que tem duração de cin- duas gatas. Não temos filhos. Federal do Rio Grande do Sul – UFRGS. co anos. Ao final, devemos entregar dez De 1998 até 2001 fiz o doutorado em Ci- estudos diferentes para beneficiar não Autodefinição – Sou uma pessoa ho- ência da Computação e trabalho com a só o hospital, mas a sociedade. Estamos nesta, séria, trabalhadora, obstinada, às área de modelagem de problemas. Ade- no nosso quarto estudo. Além desses, te- vezes, obstinada demais em querer ver mais, trabalho como consultor de em- nho outro projeto que estuda a questão as coisas acontecerem. Então, eu me presas desde 1998. de biocombustíveis, que analisa como as enxergo como alguém que procura estar cadeias de produção de etanol e biodie- o tempo inteiro disponível para auxiliar Docência – Em 1994, comecei a dar sel no estado são e como podem ser mais outros a realizar algo. Constantemente, aula na Pontifícia Universidade Católi- competitivas. questiono-me entre aquilo que deveria ca do Rio Grande do Sul - PUC/RS onde ser o ideal e o que é o real. Mas, me vejo fiquei até final de 2004. No início de Coreia do Sul – Passei cinco meses na como uma pessoa, sobretudo, feliz. 2005, comecei a lecionar na Unisinos, Coreia do Sul junto de outros colegas da onde sou muito feliz. Leciono para os Unisinos, em um movimento importante Destino – Minha esposa e eu já so- cursos de Engenharia de Produção, no feito pela universidade. Nós fomos em mos casados há seis anos; nos conhe- mestrado em Engenharia de Produção março deste ano e voltamos em agosto. cemos há quase 22. Fomos colegas de e Sistemas e no Mestrado Profissional Esse foi meu estágio pós-doutoral. Uma graduação e, quando nos formamos, em Gestão e Negócios. Além disso, le- experiência de vida. Em primeiro lugar, cada um seguiu a sua vida, com rotas ciono em alguns cursos de extensão, porque eu nunca imaginei viajar para completamente diferentes. Há quase especialização e MBA. um lugar tão distante, literalmente do sete anos atrás, nós nos reencontra- outro lado do mundo. É uma experiên- mos, começamos a namorar e casa- Projetos – Estou gerente de Pesquisa, cia muito rica. Depois, porque se trata, mos. É uma história interessante por- Desenvolvimento e Inovação. Sou respon- além de tudo, de um país que tem uma que nós realmente nos conhecemos há sável pelo acompanhamento de vários cultura muito diversa da nossa, que não 21 anos e meio. Tenho a sorte de ter dos projetos que estão sendo realizados chega a ser parecida com a japonesa e

50 SÃO LEOPOLDO, 14 DE NOVEMBRO DE 2011 | EDIÇÃO 380 nem com a chinesa. É diferente. como uma série de coisas da es- A oportunidade que a Unisinos me tatística está presente em nosso Sonho – Seria daqui a 40 anos deu de vivenciar e passar seis me- cotidiano. poder olhar para trás e perceber ses no país foi ímpar. Sem contar, como o Brasil mudou e melhorou. é claro, toda a parte técnica e de Filme – Gosto bastante de fil- Essa é uma das coisas que me formação profissional que, sem mes mais antigos. Então, para motiva a levantar todo o dia de dúvida, também foi muito impor- mim, o melhor filme de todos os manhã. Acredito que isso seja o tante. Tive a oportunidade de ir tempos ainda é My Fair Lady, que suficiente para um sonho. para uma das melhores universi- é um longa bastante antigo. Apre- dades daquele país, a mais anti- cio muito todos os filmes com a Unisinos – Representa, hoje, a ga, a Sungkyunkwan University Audrey Hepburn. Gostei também minha casa. Minha esposa traba- (Skku), que foi fundada em 1398. do A noviça rebelde e Moça com lha aqui; eu já estou aqui há seis Uma instituição que é mais anti- brinco de pérola. anos. Gosto muito deste ambien- ga que o próprio Brasil enquanto te. Praticamente todos os meus país. Além disso, essa academia é Política no Brasil – É um pro- amigos estão aqui. Ela representa realmente muito interessante. Pri- blema sério. O Brasil como país o lugar onde eu prefiro passar a meiro, pelo seu histórico, por ter ainda é muito jovem. As pessoas maior parte do meu tempo. É o mais de 600 anos, e por ser uma precisam aprender a ter o senso ambiente onde eu me sinto bem, instituição que tem hoje uma par- de coletivo. Faço um paralelo com onde encontro os meus desa- ceria muito forte com uma grande a vivência que tivemos na Coréia, fios para melhorar e onde tenho empresa, que é a Samsung. Então, onde muito se perguntava se uma chance de poder também contri- ela tem um modelo de gestão e determinada ação que o governo buir com os outros. É hoje o lu- inovação muito inspirador. iria fazer ou não seria boa para o gar que me faz, talvez, mais feliz, todo. E as pessoas, em função da- durante seis dias da semana. E é Lazer – Gosto de ouvir músi- quilo que é bom para o coletivo, onde eu encontro muitas oportu- ca, caminhar, ler bastante. Infe- fazem ou não fazem. No Brasil, nidades. Se eu precisasse definir a lizmente, não tenho tido tanto a nossa política ainda é bastante Unisinos de algum jeito, creio que tempo quanto gostaria de ter. permeada pelos interesses indivi- seria dessa forma: um lugar que Para mim, uma das melhores coi- duais, pessoais. Nosso país preci- oferece oportunidades. sas que se tem a fazer é tomar um sa rapidamente ter um plano de chimarrão, sentado num parque, governo que dure mais do que um IHU – Acredito que o Instituto com um livro embaixo do braço. mandato; que dure 20 ou 30 anos. cumpre um papel importantíssi- Essa é uma das coisas que gosto Creio que o Brasil precisa muito mo. Percebo que o IHU cumpre muito de fazer. Adoro viajar tam- fortemente rever os seus valores um papel muito importante, por- bém. Para mim, essa experiência éticos e morais, principalmente que tem uma representatividade, de ter ido para outro país foi me- no que tange à política. Hoje, o um protagonismo, seus canais de lhor ainda, porque uniu uma coi- principal problema é a corrup- comunicação que são revistas ou sa que eu gosto muito de fazer à ção. E, a parte mais triste disso, o próprio site, que as pessoas minha atividade profissional. Nos é que nada do que estou dizendo leem e podem acessar. E o Bra- fins de semana, quando possível, é, de fato, novidade. Lembro-me sil é muito carente disso. Se nós minha esposa e eu fazemos uma de quando era pequeno e via o quisermos realmente desenvolver viagem para algum lugar próximo meu pai falando exatamente so- um país melhor, as pessoas preci- ou certamente estamos em algum bre as mesmas coisas, há 30 anos sam ter mais consciência dessa lugar caminhando e tomando um ou mais. É triste vermos que uma formação e visão integral do ser chimarrão. geração passou e, ainda assim, humano. Eu vejo o Instituto como discutimos os mesmos problemas um ator muito importante nesse Autor e livros – Têm vários. sem uma visão muito clara de um sentido. Por exemplo, quando se trata de avanço. No entanto, a implemen- história de ficção, gosto muito da tação de uma nova visão é mui- Frase – Tem uma frase que eu Jane Austen, uma autora inglesa to complexa. Não se faz com 29 gosto muito e nunca esqueci. Ouvi que tem histórias muito interes- partidos políticos. Então, entendo quando era muito pequeno, esta- santes. Aprecio muito uma auto- que a reforma política é um ele- va terminando minha primeira sé- ra inglesa recente chamada Kate mento extremamente importante rie do primeiro grau e foi a minha Mosse, que também escreve livros para o país e que precisa aconte- então professora que disse: “Ain- de ficção. Gosto de ler muitos li- cer em curtíssimo prazo. da que vivamos mais de 100 anos, vros sobre curiosidades históricas nunca devemos deixar de apren- ou estatísticas. Um livro que li há Religião – Católico, convencido der”. Então, se vale alguma coi- pouco tempo foi O andar do bê- de minha fé. Talvez, infelizmen- sa, creio que seja isso. Devemos bado, que é de um autor chama- te, não seja tão praticante como continuar sempre aprendendo e do Leonard Mlodinow, que mostra gostaria de ser. buscando sermos melhores. Destaques

Latouche no Brasil e na Unisinos. Confira a programação das atividades

12 de novembro

Palestra: Decrescimento sustentado, bioética e biopolítica: conversas com Merleau-Ponty Horário: Das 8h às 12h Local: Centro Cultural da UFMT em parceria com Centro Burnier - Cuiabá/Mato Grosso

16 de novembro

Palestra: Sociedade do Decrescimento: Uma utopia ou uma necessidade? Horário: 20h Local: Auditório César Lattes - PTI Parceria: Universidade Federal da Inte- gração Latino-americana

18 de novembro

Palestra: Uma sociedade do decrescimento. 23 de novembro Uma utopia ou uma necessidade? Horário: 20h Palestra: Sociedade convivial e economia Local: Faculdade de Administração e Econo- de baixo carbono: uma relação convivial? mia – FAE. Evento promovido pelo CEPAT/ Horário: Das 19h às 20h - Recepção e cre- Curitiba-PR em parceria com a FAE. denciamento Inscrições pelo email: [email protected] Das 20h às 22h - Palestra Local: Auditório Central - Unisinos 21 de novembro 24 de novembro Palestra: Desenvolvimento Humano, De- crescimento e a Sociedade Convivial Palestra: IHU ideias - A atualidade da obra Debatedor: Plinio Alexandre Zalewski Var- de Ivan Illich gas - Diretor da Secretaria de Governança Horário: 17h30min às 19h da Prefeitura Municipal de Porto Alegre Local: Sala Ignacio Ellacuría e Companhei- Horário: Das 19h 30min às 22h ros, no IHU Local: Unisinos - Campus Porto Alegre/RS 25 de novembro 22 de novembro Palestra: Sociedade convivial: uma perspec- Palestra: Por outro modo de consumir: de- tiva eco-teológica scrição de algumas experiências alternativas Horário: 15h às 17h Horário: Das 16h às 18h Local: Sala Ignacio Ellacuría e Companhei- Local: Sala Ignacio Ellacuría e Companhei- ros, no IHU. ros, no IHU