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O artista da mestiçagem Li l i a Mo r i t z Sc h w a r c z

Durante as gravações do filme Dona Flor e seus dois maridos, Jorge Amado, José Wilker e Sônia Braga visitam dona Edna Leal de Melo em sua escola de culinária, que inspirou a escola do romance. Salvador, 1975

34 Ca d e r n o d e Le i t u r a s Jo r g e Am a d o n u n c a p r e t e n d e u s e r i n t é r p r e t e do Brasil, mas sempre o foi. Suas personagens são pessoas retiradas das ruas de Salvador; a que descreveu foi aquela dos costumes misturados, dos credos cruzados e das gentes de muitas cores e mistérios. Sua ficção é sempre repleta de atores tão reais como imaginados e seu mundo de romance é povoado de um universo a um só tempo pessoal e par- tilhado socialmente. Por isso, em se tratando da obra de Jorge Amado, é sempre difícil dizer onde começa a ficção e quando termina a realidade. Seus amigos se destacam como personagens principais nas histórias; seu convívio familiar vira matéria de romance; sua visão da história parece metáfora; sua experiência social escorrega para o enredo e ganha vida na trama de cada obra. Por outro lado, o romancista tem o dom de criar uma sociabilidade de equilí- brios entre opostos. O mundo de Jorge Amado é feito de trabalhadores, pescado- res, prostitutas, bêbados, boêmios, mulatas fogosas, morenos espertos, professores ingênuos, mães de santo, quituteiras; mas também da elite, dos políticos e dos coronéis do , com seu poder e hierarquia absolutamente estabelecidos e jamais questionados. Assim, sem desconhecer a diferença social e a desigualdade existentes no país, Amado dá a seus personagens uma convivência pouco imaginada e que dialogaria com a famosa representação criada nos anos 1930 por Gilberto Freyre, que apostou na singularidade brasileira a partir da ideia da “democracia racial”. Quem sabe nunca tenha existido efetivamente tal democracia, mas a sua utopia sempre fez parte do “programa” amadiano. Se Jorge Amado nunca deixou de ser um autor empatado com as questões sociais de seu tempo — e jamais desconheceu as profundas diferenças sociais que marcam a população brasileira e em especial a baiana —, também criou em seus livros um espaço quase onírico para localizar na mestiçagem a nossa mais marcante particularidade. Em seus romances, a mestiçagem aparece sob muitas faces e com direito a várias versões. Em Gabriela, cravo e canela vemos surgir não só o romance entre o estrangeiro e a morena brejeira, mas a mestiçagem se

Este texto retirou dados e depoimentos do vídeo Jorge Amado, realizado pela Vídeo filmes, dirigido por João Salles, e cujo argumento é de minha autoria.

Jo r g e Am a d o 35 apresenta a partir de uma mistura de sabores, cores e aromas. Da comida à cama, um dialeto mestiço se apresenta, como se aqui residisse nossa “especificidade nacional”. Em Compadre de Ogum, o próprio padre, em determinado momento, incorpora um orixá, mostrando de que maneira o sincretismo religioso brasileiro significava uma maneira especial de entender a Bahia; um modelo dileto para pensar o Brasil. Em do Agreste vemos a elevação de um local perdido no tempo, onde não existem, ao menos na superfície, distinções de raça ou cor. Também Tereza Batista é uma heroína da cor do cobre; essa falta ou excesso de cor que faz que inventemos sempre um arco-íris de tons e subtons. No livro A morte e a morte de Quincas Berro Dágua está contemplada, e de certa maneira condensada, toda a arquitetura de Amado, com seus mulatos boêmios, prostitutas doces, cozinheiras solidárias, pescadores e marinheiros mancomunados, o compadrio da pobreza, a avareza dos grupos mais abonados e o largo mar. O mar que distingue e socializa.

A Ba h i a e o Cí r c u l o d a Ba i a n i d a d e . Parece a atuação do Estado na preservação do patrimônio haver uma elite principalmente intelectual, mas cultural brasileiro. Santos sugere que, dos anos também econômica e política, autorreferente e 1970 até metade dos anos 1980, teria havido uma produtora de uma certa “baianidade”, na qual espécie de revival da década de 1930: o regime Jorge Amado, Pierre Verger, os artistas plásticos militar consolidou sua hegemonia cultural através Mestre Didi, Carybé, Floriano Teixeira, Calasans do controle do processo cultural, incentivando a Neto, Mário Cravo, entre outros, tomaram parte. criação de centros de folclore e casas de cultura, do Sempre houve grande solidariedade e autorrefe- tombamento de monumentos e assim por diante. rência nesse círculo de criadores e formadores de Tentou-se conciliar a preservação de valores tra- opinião e isso fica patente quando se analisa com dicionais com o desenvolvimento econômico das cuidado o universo amadiano. regiões através do turismo interno e externo. Nas primeiras edições, as ilustrações de Tenda Na Bahia esse movimento levou à apropriação dos Milagres eram de Carybé, as de Dona Flor, de elementos cotidianos da cultura “afro-baiana” de Floriano Teixeira, e Calasans Neto ilustrou para construir uma imagem de baianidade sin- Tereza Batista. O pintor Carybé é personagem gular e exótica: docilidade, ritmo, sensualidade, de Dona Flor, junto com o político Jorge Calmon feitiço, afetividade, capoeira e candomblé estili- e o banqueiro Jorge Celestino. Já o gravador e zados passaram a ser acionados na publicidade cenógrafo Calasans Neto é citado em Dona Flor do “viver baiano”. Daí o interesse do governo e Tenda dos Milagres, o músico , baiano em patrocinar e promover manifestações que fez a trilha sonora de Gabriela para a televi- populares, convocando inclusive seminários com são, é homenageado em Velhos marinheiros, e o os produtores — artistas, artesãos, cozinheiros, fotógrafo Pierre Verger, por sua vez, está em A mestres de saveiro — e permitindo a participação morte e a morte de Quincas Berro Dágua. Sem con- de representantes dos meios intelectuais e artís- tar Mestre Didi, escultor e grande conhecedor ticos em cargos de direção. Tal política cultural, da cultura afro-brasileira, que habita pelo menos voltada para o turismo e para a integração da Dona Flor e Os pastores da noite. arte e da cultura popular, emoldura a restauração É possível compreender melhor esse cenário a do Pelourinho, promovida por Antonio Carlos partir do estudo de Jocélio Teles dos Santos sobre Magalhães no final da década de 1980.

36 Ca d e r n o d e Le i t u r a s Mas é Tenda dos Milagres que representa, no campo da ficção, o exemplo mais acabado desse tipo de postura amadiana. O casal central é composto por um baiano e uma escandinava­ (representação máxima da brancura que se mistura com a “cor do Brasil”). Esse é inclusive o ponto central do romance, que chega até a ser didático na maneira como opõe o herói da obra, Pedro Archanjo — com sua visão positiva da miscigenação — ao professor Nilo Argolo, que acreditaria nas teorias que afirmavam que o cruza- mento de raças levaria à degeneração. Como se vê, Amado não só “cria” sua mestiçagem e a insere no corpo de seus personagens como mistura ficção e realidade. Nilo Argolo seria, na verdade, uma referência explícita a Nina Rodrigues, médico maranhense, famoso professor na Escola de Medicina da O médico Bahia e que no início do século x x ainda defendia esse tipo de visão e antropólogo negativa do cruzamento. Para Nina, o país, assim misturado, não tinha futuro; já Nina Rodrigues para Jorge Amado (e Pedro Archanjo) ocorria exatamente o oposto: era a mistura (1862-1906) que representava nosso “humanismo” e a lição que teríamos a dar para o resto do mundo. Portanto, sem negar os problemas sociais brasileiros, Jorge Amado sempre foi um grande otimista da mistura. No mesmo romance, em determinado momento, o herói Pedro Archanjo empresta sua voz para fazer uma verdadeira declaração dos princípios defendidos por Jorge Amado: “Se o Brasil concorreu com alguma coisa válida para o enriquecimento da cultura universal foi com a miscigenação — ela marca nossa presença no acervo do humanismo, é a nossa contribuição para a humanidade”. Contra as teorias deterministas em voga até os anos 1930, Amado compactuava com o antídoto da época modernista que mudaria a imagem do país; do pessimismo à redenção. E Jorge Amado não escaparia à orquestração da época, que passava por cima das profundas diferenças e estratificações econômico-sociais para destacar uma sociabilidade ímpar e sem fronteiras de cor. Não por coincidência, o jornal Libération o elegeu “embaixador simbólico do Brasil”. Afinal, Jorge Amado é no exterior um dos autores brasileiros mais conhecidos e traduzidos, e seu Brasil mestiço tem a cara deste “país para expor- tação”, porque marcado pela originalidade da convivência cultural e racial da sua população. Em 1972, por exemplo, durante um discurso na universidade de Bari, afirmou que “a nação brasileira vem se construindo e afirmando como o resultado da mistura, persistente e sempre maior de sangues e de raça, da mistura de culturas. [...] Dessa nossa originalidade racial e cultural [...] nasce a criação brasileira: a música, a dança, a literatura, a arte, o cinema, o carnaval, o ritmo”. O Brasil de nosso autor é, não por acaso, feito de várias misturas; misturam-se não

Jo r g e Am a d o 37 Me s t i ç a g e m . Antes de o “ ser Brasil”, degeneração. Buffon e o abade Corneille de Paw quando era apenas a América portuguesa, já foram os primeiros a acenar para a falta de futuro costumava ser descrito por sua mestiçagem. de uma nação mestiçada. A interpretação entraria Nos relatos seiscentistas de Gandavo, Thevet em voga no Brasil de finais do séculox i x — com e De Léris, a colônia era caracterizada a partir a interpretação de autores como Nina Rodrigues, do processo de mistura; primeiro entre brancos e João Batista Lacerda — e e indígenas e, depois, entre brancos e africanos. competiria com a visão romântica, que elevava o Esse “amalgamento” foi visto, porém, sob óticas indígena nobre como símbolo nacional; ao con- distintas. Até o século x v i i pairou um olhar sobre- trário, segundo essa visão, seria preciso intervir tudo curioso sobre essas populações de costumes na realidade e evitar a mistura. misturados e que praticavam a poligamia, o cani- Tal situação seria profundamente alterada na balismo e, ainda mais, andavam nuas. Famoso é década de 1930, quando novos projetos moder- o texto de Montaigne, “Dos canibais” (1580), em nistas alterariam a percepção. Em Macunaíma que o autor elogia a maneira como os tupinambás (1928) Mario de Andrade mostrava um país de fazem a guerra adotando uma verdadeira postura costumes, raças e culturas cruzados, assim como relativista, mas em que termina lamentando o Gilberto Freyre, em Casa-grande & senzala (1933), fato de eles não usarem, afinal, calças. em vez de entender o cruzamento como defeito, o O debate sobre essa outra “humanidade” transformava em saída para um mundo em guerra ganharia uma versão romântica no século x v i i i , e marcado pelas perversidades do racismo. De lá quando o filósofo da Ilustração Jean-Jacques para cá, as duas versões proliferaram, mas não Rousseau viu nos indígenas brasileiros descritos há como negar que a visão oficial do país guar- por De Léris um modelo para pensar, por con- dou e selecionou uma representação positiva da traposição à civilização. Se a civilização ocidental mestiçagem não só biológica, como cultural. É havia se conspurcado, os nativos brasileiros se- certo que ela não anula as diferenças econômicas riam, agora, “os bons selvagens” a inspirar novos e sociais existentes no Brasil, como bem mostrou modelos e utopias. No entanto, ao lado dessa lite- Florestan Fernandes e todo o grupo da escola de ratura mais positiva — e que fez muitos seguidores sociologia paulista já nos anos 1960, mas anun- no Brasil —, ganhava força uma visão negativa, cia uma especificidade deste país que sempre se que entendia a mistura de raças como signo de comportou como um laboratório de raças.

só amores e seduções, mas alimentos, música, pintura e credos. Em Navegação de cabotagem, uma espécie de “quase-memória” do autor, escreveu Amado: “onde quer que esteja levo o Brasil comigo mas, ai de mim, não levo farinha de mandioca e sinto falta todos os dias, ao almoço e ao jantar”. Grande pregador da ideia da mestiçagem, Jorge Amado fez de sua experiência particular um modo especial de “ser brasileiro”. Oriundo de famílias enriquecidas pelas fazendas de cacau, o escritor, sem jamais ter deixado seu universo cultural, foi ao encontro de outro. Nesse novo cenário está o cais de Salvador, o candomblé, a capoeira, as festas religiosas, os heróis de cada dia, as prostitutas e os malandros. É assim que em seus livros, sem abandonar o mundo dos coronéis — como em O menino grapiúna, ou mesmo em Tereza Batista cansada de guerra, quando “a vida de um homem não valia mais do que 1 000 réis” —, Jorge Amado adiciona um novo tempero, dado pelo cotidiano mestiço da Bahia. Fortemente influenciado pela geração conhecida como “Academia dos

38 Ca d e r n o d e Le i t u r a s Rebeldes” — esses jovens meninos que com seus dezesseis anos experi- mentavam a realidade para enten- der a literatura —, Jorge Amado acabou sendo porta-voz de uma grande reviravolta. Com efeito, até os anos 1930 as elites intelectuais nacionais eram profundamente influenciadas por teorias raciais que viam com descrédito o sangue negro que corria em nossas veias. Pensadores como Sílvio Romero, , Euclides da Cunha, João Batista Lacerda entendiam o cruzamento racial como fator de desequilíbrio Com Gilberto Freyre e Anísio e de degeneração da nação; sem falar de Nina Rodrigues, médico radicado na Teixeira, em 1958 Bahia, que, como vimos, acabou virando personagem de Tenda dos milagres. No depoimento que dá para o filme Jorge, de João Moreira Salles, Amado brinca com o fato de que apenas depois dos anos 1930 teríamos deixado de pen- sar que éramos gregos, latinos ou espanhóis. Passávamos — sobretudo a partir da divulgação dos escritos de autores como Arthur Ramos, Gilberto Freyre ou Donald Pierson — a veicular não só as desvantagens, mas, sobretudo, as virtudes e a originalidade dessa brasilidade mestiça. Tal qual um verdadeiro passe de má- gica, a mestiçagem extremada existente no país representava, a partir de então, um modelo de convivência harmoniosa; um exemplo a ser seguido. De mácula a ícone, o Brasil era apresentado como um modelo de liberalismo na convivência entre as raças. Além disso, com o término dos anos 1940 e o fim da Segunda Guerra Mundial, essa nação tropical transfigurava-se em exemplo de fraternidade e irmandade em um mundo profundamente dividido. Assim, se Freyre foi um dos “pais da ideia” — ou ao menos aquele que a ba- tizou —, Jorge Amado foi seu grande artista e divulgador, sobretudo a partir de meados da década de 1950, quando rompe com o stalinismo e entra em sua “fase tropical”, inaugurada em 1958 com Gabriela, cravo e canela. Em seus livros, tudo parece ter resultado da mistura: as culturas, as religiões, o sangue dos diferentes grupos, a história, as festas, as relações afetivas, a cultura popular, a culinária, as religiões. Nas obras de Jorge Amado coabitam não só o pessoal e o oficial; o presente e o passado; o conflito e o milagroso; as clivagens sociais que dividem e as festas que irmanam; as diversidades e os mitos comuns e partilhados pelo coletivo dos brasileiros. Quase como um panfleto contra o preconceito, Amado vai expondo — à sua moda — as armas contra o racismo: a mistura de grupos e culturas, a mistura de

Jo r g e Am a d o 39 credos. Mais eficientes do que um bom manual, os romances de Jorge, ao mesmo tempo que prendem o leitor na trama, o transportam para o polê- mico terreno do sincretismo religioso, que o autor tanto advoga. É então que o obá de Xangô Jorge Amado mistura materialismo com fetichismo, catolicismo com cultos afro, e revela como o encontro de credos pode levar ao surgi- Jorge Amado mento de uma nova religião. Ao contrário dos que defendem a pureza religiosa, com os pais, João e Eulália, e os até nesse terreno Jorge Amado é paradoxal, ao se transformar no arauto da mis- irmãos, Joelson e tura de religiões e de sua constante “tradução” em termos locais. Em Tenda dos James Milagres mais uma vez Jorge Amado apresenta não só a violência dos brancos em face desses rituais de origem africana como oferece o bilhete de entrada para um outro mundo, onde a mistura também inclui a religião católica. Jorge Amado é, assim, o grande “campeão da mestiçagem”, como uma vez definiu o fotógrafo e amigoPierre Verger. Em suas obras ela é tão evidente que muitas vezes não precisa ser afirmada. Todos sabem que Tereza Batista e Tieta são mulatas “arretadas”, e que Dona Flor é cabo-verde (essa mistura particular de branco com negro e índio). O autor não introduz, porém, tais termos como se fossem definições rígidas. Ao contrário, no universo de Jorge não existem classi- ficações precisas, que descrevam cores como se fossem gradientes regulares. Na verdade, o papel das características físicas aparentes na identificação das pessoas — cor da pele, lábios, cabelo, nariz — não escapa a Jorge Amado. O escritor frequentemente descreve os cabelos das personagens: a “carapinha branca” de Jubiabá e os “cabelos vermelhos” de Lindinalva, no mesmo romance; os “cabelos finos” de Lívia, emMar morto; os “cabelos escorridos, negros e finos” de Otália, de Os pastores da noite, e muitas outras cabeleiras crespas, lisas, brancas, altas. É possível encontrar uma verdadeira “aquarela do Brasil” nos livros do romancista: “alva”, “brancarrona”, “bronzeado”, “cabocla”, “cafuzo”, “cor de bronze”, “cor de formiga”, “encardida”, “loiraça”, “mulato claro”, “mulato escuro”, “mulato quase branco”, “mulato pardo”, “negra azulada”, “pele trigueira”, “sarará”, “pálido”, “tição” e “vermelho”. Amado parece preferir entender as cores como relações inseridas em contextos que se estabelecem cotidianamente, e que fazem delas mera circunstância passível de mudança. A situação social, o capital de relações sociais, o evento particular...

40 Ca d e r n o d e Le i t u r a s tudo permite mudar a percepção das cores que, no Brasil, seria basicamente alte- rativa. Em Tenda dos Milagres, o literato apresenta um diálogo interessante entre Lu, a noiva branquinha e aristocrática de Tadeu Canhoto — afilhado de Archanjo formado em engenharia —, e uma amiga. A noivinha menciona a dificuldade para convencer os pais a aceitar o noivo negro. Mas a mãe de Lu “promove” Tadeu de negro a “moreno queimado”, à medida que Tadeu se aproxima do fim dos estudos de engenharia!

— Pode ser que nesses meses eu convença os velhos. — Acredita possível? — E se eu lhe disser que mamãe já está meio abalada? Ainda ontem me disse que Tadeu é um bom rapaz, não fosse... — ...negro? — Imagine que ela, falando de Tadeu, já não diz negro. Disse: “se não fosse moreno tão queimado”...

Além do mais, em vez de só delatar a violência, o autor parece mais inclina- do a refletir sobre ela; encontrar lugar para entender uma genuína convivência. Coronéis se apaixonam perdidamente por prostitutas; estrangeiros, por retirantes; capangas, por raparigas donzelas. Mas nada elide a violência que preside e estrutura essa sociedade de contrastes, a todo dia acomodados e amolecidos. O que Jorge etnógrafo encontrou na Bahia foi um mundo complicado de ser afirmado, porém mais fácil de ser reconhecido por meio de sua sensibilidade e imaginação. Uma certa brasilidade que, se não pode ser entendida de forma abso- Capa do romance Gabriela, cravo e luta, ajuda a pensar que há uma determinada especificidade na nossa convivência canela, na Estônia racial e mesmo no tipo de preconceito aqui praticado. Um modelo assimilacionista, talvez, mas não por isso menos mar- cado pela discriminação. Convivência não quer dizer ausência de conflito; mistura não é sinônimo de falta de hierarquia. Por contraposição, esse universo complexo está todo lá: a pobreza e o luxo; os coronéis e seus jagunços; a boemia com o labor, a religião que mistura santos católicos com orixás africanos. O fato é que Jorge Amado sempre procurou inventar e reinventar esse mesmo Brasil. Sua obra mostra não só a força do perso- nalismo presente entre nós, como a circularidade profunda entre cultura erudita e popular, e a particularidade da mistura e da questão racial no Brasil. Nesses “tempos nervosos” em que vivemos, a leitura de Amado é quase um elixir a declarar a necessária utopia da igualdade — que, mesmo difícil de ser alcançada, é ao menos objeto do desejo.

Jo r g e Am a d o 41 Pi e r r e Fa t u m b i Ve r g e r . Dizia o poeta Fernando No entanto, o ano de 1946 é que reservava a Pessoa que, “para viajar, basta existir”. E foi isso visita mais desejada: o Brasil. Eis um país pelo que fez Pierre Verger — viajou o tempo todo e de qual esperara por cinco anos, um local onde, muitas maneiras: como fotógrafo ou etnógrafo, como gostava de dizer, “não precisava fazer po- como iniciado ou historiador, como um alqui- lítica”. É uma outra América do Sul que descobre mista moderno ou um grande curioso. quando, influenciado por Roger Bastide, conhece Francês por acaso, Verger gostava de comentar a Bahia. Lá na “África brasiliense” morou no que detestava a burguesia europeia, com a qual Hotel Chile, na casa da Vila América, vermelha era obrigado a conviver, e as imposições da escola, como a cor de Xangô, deixando o tempo passar sempre disciplinadora. Mas é com a morte do no ritmo diferente do calendário das festas, do pai, em 1932, que tudo começa a mudar. Verger batuque, do candomblé, da capoeira, da cozinha decide que deixaria essa vida com quarenta anos, e da mestiçagem. O “aprendiz de etnólogo” e que com os dez anos que lhe restavam viajaria descobria, então, um mundo mágico que unia a pelo mundo, acompanhado de sua amiga: uma África que conhecera e o Brasil que aos poucos câmera Rolleiflex usada. absorvia. Seu mergulho em águas negras é tão Começava então a peregrinação desse viajante profundo que, em 1948, é introduzido no mundo moderno, que acreditava que cada ano deveria do candomblé. Com seu cordão branco e verme- ser vivido sem compromissos, dinheiro ou am- lho, é recebido no terreiro do Axé Opô Afonjá, bição social. Escolhe primeiro o Taiti, e com sua onde Mãe Senhora o proclama Ojuobá: “os olhos passagem de navio de quarta classe conhece a de Xangô; aquele que tudo enxerga e tudo sabe”. Polinésia. Já como fotógrafo profissional (e uma Verger participa dos rituais como iniciado, e passa Rolleiflex com doze fotos em vez de seis), des- a estudar a perenidade dos cultos iorubá. cobre um mundo em preto e branco: os Estados Com um pé em cada continente, não tem outro Unidos, com suas disparidades; o Japão, um remédio senão partir novamente para a África. país muito policiado; a China e suas paisagens Sua ida selava uma nova sorte, quase prevista nos lendárias; Filipinas e Cingapura. Em 1935, capta búzios. Começávamos a perder o fotógrafo para com suas lentes e sua bicicleta uma outra Europa ver nascer o pesquisador das religiões, o estudioso cheia de tradições populares. Nesse ano chega à da escravidão e dos contatos entre África e Brasil. África negra. No Sudão francês (hoje Mali) sua Foi em Daomé (atual República do Benim), em câmera registra as máscaras Bambara e, na Nigéria, 1949, que Verger descobriu 112 cartas enviadas as comemorações islâmicas. Em 1936, parte por um negreiro chamado Tibúrcio dos Santos, de barco para as Antilhas e percorre a China: “o Alfaiate”, sobre o comércio clandestino de pela transiberiana atravessa a Europa, a União escravos entre Bahia e África durante o século Soviética, e chega à Coreia. De trem, de barco XIX. Era só o começo de um trabalho que lhe cus- ou de bicicleta, o mundo era ao mesmo tempo taria dezessete anos de investigação em museus grande e pequeno para um viajante do século x x . e arquivos. O resultado é o livro Fluxo e refluxo Mas não é só. Entre 1938 e 1946 a lista de países do tráfico de escravos entre o golfo de Benin e a Bahia só iria aumentar: México em 1939, onde conhece de Todos os Santos, publicado originalmente na Trótski, Bolívia, Peru — o mundo inteiro parecia França em 1968 (e no Brasil apenas em 1987) e caber em sua lente, que guardava rostos, expres- que constitui um marco, até os dias de hoje, para sões, vestimentas, festas; enfim, a vida. os estudos sobre escravidão. Mas a obra também

Assim como é certo que a mistura — cultural, religiosa ou biológica — ainda não se realizou de forma equilibrada entre nós, também é evidente que Jorge Amado — agora xamã — nos confunde com o mistério da sua literatura. Quem

42 Ca d e r n o d e Le i t u r a s significava a comprovação de um diálogo entre na África. As dificuldades na sistematização dos a África e o Brasil, que Verger aprendera a re- dados não foram poucas, a começar pela especifi- conhecer no seu dia a dia. A pesquisa revelava a cidade da língua iorubá, que além de muito antiga existência de um jogo de trocas no qual — apesar é de tradição oral e tonal (é necessário cantar suas da perda de contato entre as duas comunidades palavras). Por outro lado, sua memorização é — seus integrantes se tornaram, em termos coletiva e sua transmissão é considerada o veículo culturais, “africanos do Brasil e brasileiros da do axé: o poder e a força das palavras perdem seu África”. No entanto, o sucesso da tese, que de- efeito em um texto escrito. Por fim, era preciso fendida em 1966 na Sorbonne lhe deu o título identificar a designação científica das plantas: de doutor, assim como a homenagem feita, anos são 3 529 termos iorubá, correspondentes a 1 086 mais tarde, pela Universidade Federal da Bahia, nomes científicos. não deslumbrariam Verger. Para ele o mundo Fatumbi viveu para ver essa última prova de da academia continuava a ser representado pela sua imensa curiosidade ser publicada. Com suas metáfora de um papagaio sem cor. vestes majestosas de babalaô, seu forte sotaque É por isso mesmo que na África Verger não francês, que nunca perdeu, Verger jamais quis tro- perseguia apenas a rota dos navios negreiros. É car sua casa, no bairro pobre de Vasco da Gama, no mistério da religião que Verger se fez adivi- pelo colorido do Pelourinho. Vivia e viveu entre nho, e nasceu Fatumbi — renascido pelo Ifá —, amigos, com seu gato Jean-Jacques sempre ao nome que o acompanhará pelo resto da vida. Essa colo. Ainda bem que não cumpriu a promessa de nova iniciação também lhe dá o título de babalaô morrer aos quarenta. Foi ficando como quem não e o acesso ao conhecimento oral dos iorubás e à tem plano e legou um exemplo de diálogo entre arte divinatória de Ifá. Dessa experiência resul- imagens, histórias e culturas. No Brasil encontrou tam livros como Dieux d’Afrique (1954), Notes um mundo misturado que tanto procurara. Uma sur le culte des orisa et vodoum (1957) e Orixás, matéria do jornal A Tarde, de 29 de agosto de publicado no Brasil em 1981. 1993, trazia um depoimento de Pierre Verger, em A partir de então Verger desempenharia o que ele afirmava que teria vindo à Bahia após ter papel intelectual, pessoal e emocional, de tradu- lido Jorge Amado e que lá encontrara o que havia tor e mensageiro entre dois continentes. Para o nos romances: “esta coexistência pacífica entre as Brasil trazia a água santa, plantas e objetos; para religiões africanas e europeias, a mestiçagem que a África levava cartas, sementes e mensagens tanto enriqueceu sua obra”. orais. O carteiro carregava, sobretudo, as inú- Fotógrafo que pouco se deixava fotografar, foi meras conexões e influências recíprocas — sutis captado pelas lentes simpáticas de Zélia Gattai, ou declaradas — que se desenvolveram entre as que depois de muito esforço — e parte dos filmes duas regiões e que transmitiam a impressão de estragados — conseguiu uma bela imagem do unidade e de trocas culturais. amigo (ver p. 51), ao lado de Jorge Amado e de Seu último desejo foi publicar sua obra “de Carybé (1981). Em conversa com Mãe Senhora, vida inteira”: um manual sobre a utilização me- Zélia teria comentado o tipo de azar que tanto a dicinal e mágica das plantas na sociedade iorubá. inquietara. Afinal, só as fotos de Verger teimavam É assim que nasce seu livro Ewé (“folhas”, em em não aparecer. Ao que Mãe Senhora obstou: português), um compêndio de ensinamentos dos “Minha filha, tu não sabe que Verger é feiticeiro? mestres e babalaôs; uma herança dos longos anos Não contrarie ele...”. embarcar nessa viagem terá dificuldade em dizer quando começa o mito e se apaga a realidade, ou quando a vida real é que vira metáfora. Na verdade, pouco importa.

Jo r g e Am a d o 43 l e i t u r a s s u g e r i d a s

Ca s a -g r a n d e & s e n z a l a , de Gilberto Freyre. Considerado o estudo pioneiro e inaugural do culturalismo no Brasil, a obra, que não foi a única a se opor aos modelos do determi- nismo racial à época, significou uma espécie de novo paradigma para pensar o país e a mestiçagem, não mais como veneno e fracasso, mas agora como exemplo e uma espécie de redenção. Ma c u n a í m a : O h e r ó i s e m n e n h u m c a r á t e r , de Mario de Andrade. O famoso personagem que combina todas as raças; que tem muita preguiça e que por ter “tantos caracteres resulta ter nenhum” ganhou o imaginário nacional e se converteu em ícone da mestiçagem brasileira e do modernismo. Em vez do romantismo distante e calcado no modelo francês, do indígena utópico e do academicismo, Macunaíma surgiu como “herói de nossa gente”, sem ter história, território ou tempo preciso. Es p e t á c u l o d a s r a ç a s , de Lilia M. Schwarcz. A partir do estudo das faculdades de medicina, dos institutos históricos e geográficos, das escolas de direito e dos museus de etnografia brasileiros, da década de 1870 em diante, a autora discorre sobre o enraizamento e a importância do pensamento racial no país até meados dos anos 1930. Fo r m a ç ã o d a l i t e r a t u r a b r a s i l e i r a , de . Apesar de escrita nos anos 1950, a obra é ainda considerada fundamental para refletir sobre nossas diferentes escolas nacionais e na singularidade da literatura brasileira. Com relação à revolução cultural dos anos 1930, Candido é visto como uma espécie de arauto dos novos tempos, ao mostrar a entrada do folclore, do negro e de uma realidade mais próxima bem no seio da nossa literatura.

a t i v i d a d e s s u g e r i d a s

✓ Propor aos alunos que entrevistem as pessoas que moram em suas casas e pro- curem verificar: a) sua origem; b) seu credo religioso; c) sua definição quanto à cor.

Sugerir que façam um quadro com os resultados e reflitam se a família é “miscige- nada”. A seguir, seria interessante comparar os resultados de toda a classe e chegar a um quadro final e a uma reflexão conjunta.

✓ Solicitar aos alunos que, durante um mês, coletem, em jornais, revistas, álbuns fotográficos e sites na internet, fotos de famílias, brasileiros com culturas, credos e origens étnicas diversas. A pesquisa se converterá num belo painel sobre as “cores e faces do Brasil”.

44 Ca d e r n o d e Le i t u r a s ✓ Os sentidos são fundamentais em inúmeras passagens de Gabriela. A vizinha de Nacib, dona Arminda, é descrita pela face avermelhada e pelo “ativo cheiro de alho”. A primeira impressão que Nacib tem de Gabriela, após o banho que a fez, literalmente, surgir do pó, é o rosto sorridente e a coxa cor de canela. Além disso, “dela vinha um perfume de cravo, dos cabelos talvez, quem sabe do cangote”. O capítulo que trata da crise do casamento de Nacib e Gabriela se chama “Dos sabores e dissabores do matrimônio”. Em um momento muito triste, Gabriela, sentindo falta de Nacib, excla- ma que tristeza “é não ter gosto na boca”. Pedir então aos alunos que procurem, em Gabriela, passagens em que aspectos sensoriais são mencionados: cheiros, cores, texturas. Em seguida, solicitar que escrevam uma redação dando especial atenção aos cinco sentidos.

✓ Paloma Amado, filha do escritor, em seu livro A comida baiana de Jorge Amado ou O livro de cozinha de Pedro Archanjo com as merendas de dona Flor, sugere que a im- portância da comida nos romances foi crescendo com o tempo. Em Cacau (1932), as personagens comem carne-seca, feijão, farinha e fruta colhida no pé e bebem também muita cachaça. Em Mar morto (1936) e Capitães da Areia (1937), o prato mais saborea­ do é a moqueca de peixe. Mas o casamento de Guma e Lívia é celebrado com uma feijoada. O capitão-de-longo-curso (1961) traz a primeira receita completa e prática para o leitor. Em Os pastores da noite (1964), dividindo uma jaca doce e melada, dois amigos apaziguam os ânimos. Dona Flor (1966) ensina a preparar diversos pratos: carurus de Cosme e Damião, comida especial para velórios, merendas para a tarde, alimentos preferidos e proibidos para os santos. A festa de casamento de Tereza Batista (1972) é um almoço baiano completo, com sarapatel, leitões, cabritos, frigideiras, perus, cinco tipos de cocada. Os alunos poderiam realizar uma atividade prática: selecionar receitas nos romances, aprender a fazê-las e depois degustar os pratos em conjunto.

✓ Fazer uma pesquisa sobre as religiões afro-brasileiras. Procurar entrevistar repre- sentantes da comunidade negra e perguntar-lhes o que acham do sincretismo, da liberdade de culto e dos preconceitos de cor e religiosos existentes no Brasil.

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