Vinicius: O Branco Mais Preto Do Brasil O Resgate Da Cultura Negra Em Busca Da Construção Da Identidade Do Homem Brasileiro Que Estaria Em Suas Origens
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1 VINICIUS: O BRANCO MAIS PRETO DO BRASIL O RESGATE DA CULTURA NEGRA EM BUSCA DA CONSTRUÇÃO DA IDENTIDADE DO HOMEM BRASILEIRO QUE ESTARIA EM SUAS ORIGENS Caroline de Freitas Pereira1 Osny André Pedreira Telles2 Resumo: O presente artigo irá analisar a construção identitária do artista Vinicius de Moraes através de três canções, feitas em parceria com o artista Baden Powell, pertencentes ao grupo dos afro-sambas. O propósito do estudo é traçar o encontro do poeta com a música popular brasileira, mais propriamente a música afro-brasileira, seus elementos místicos e sonoridades, oriundos do negro na gênese do Brasil. A metodologia utilizada compreendeu a análise de depoimentos, sua maioria contida no documentário Vinicius, e embasamentos teóricos sobre a formação e transformação da identidade cultural. Ao final do estudo pôde-se observar que o envolvimento do artista com o ambiente musical retratado significou uma mudança de postura diante à vida e arte. Eis um novo Vinicius de Moraes, popular e emblemático, que passa a reconhecer características, antes esnobadas, como núcleo de um conjunto identitário pertencente a cada homem brasileiro. Palavras-chave: Vinicius de Moraes. Os Afro-Sambas. Identidade. Música. Cultura Afro- Brasileira. Poeta, cantor, compositor e diplomata, Vinicius de Moraes, “o poetinha”, fez do seu caminho de vida uma obra artística. Nos seus estágios, do período escolar no cerne da educação católica à entrega e vivência em terreiros de candomblé mais tarde, achou insumo para preencher suas poesias e letras. Segundo Eucanaã Ferraz (2008), o curso inicial da sua poesia foi marcada por isolamento aristocrático de ordem intelectual e moral. Porém, o mesmo Vinicius que incorporou formas e temas caros à tradição lírica ocidental e se distanciou da 1 Caroline de Freitas Pereira. Jornalista pós-graduada em Estudos Culturais, História e Linguagens. [email protected] 2 Osny André Pedreira Telles. Mestre em Literatura e Cultura pela Universidade Federal da Bahia. [email protected] 2 língua usual, se reconheceu, em meados de 60, em um disco de sambas de roda da Bahia que despertou em si um encantamento capaz de pô-lo em busca de sua mais profunda identidade cultural brasileira. É possível acompanhar, na produção audiovisual Vinicius de Moraes (2006), dirigido por Miguel Faria Jr., através de falas de pessoas próximas ao poeta, a postura intensa e apaixonada do artista, a qual servia de espelho no seu ato criativo. O amor, o sofrimento, a boemia e a espiritualidade eram temas recorrentes nos seus escritos, que muitas vezes foram dedicados a alguém ou a algum momento específico da sua vida. Com a música não seria diferente. Quando falada de um lugar ou tradição específicos, Vinicius demonstrava interação e conhecimento do ambiente cantado em seus versos. Sua arte era o instrumento de revelação da construção da sua identidade cultural. Assim o poeta adentra no universo da música afro-brasileira, reconhecendo-se como parte da formação cultural do seu país e conectando sua arte à ligação Brasil – África, ao incorporar diversos elementos africanos e afro-brasileiros na sua composição e na sua melodia, em parceria com Baden Pawell, no disco Os Afro-Sambas. Este artigo busca considerar, através da análise de depoimentos e teorias sobre identidade cultural, a construção pessoal do artista Vinicius de Moraes ao se deparar com a música popular brasileira, mais especificamente com a musicalidade afro-brasileira. A minha identificação com o tema provém de uma grande afinidade pelo artista em questão, principalmente pela sua contribuição no fortalecimento, no lugar de elite, da musicalidade africana no Brasil. Fica claro o processo de abrasileiramento do poeta quando este entra em contato com mais básico da cultura de formação do país: o negro e suas particularidades espirituais e musicais. Analisa-se então, neste estudo, o caminhar de Vinicius ao encontro de si mesmo na música popular. 3 Neste artigo irei me debruçar na representação da identidade do homem brasileiro que buscou Vinicius de Moraes, considerando letras de três das suas composições. A primeira delas, Samba da Bênção3, uma encenação ritual com pedidos de bênçãos e incorporação da figura dos orixás. Nesta canção, o poeta se localiza na história do samba, fazendo reverências à herança da vinda do negro para o Brasil. Na segunda e terceira canções escolhidas para abordar a temática deste estudo, intituladas Canto de Ossanha4 e Canto de Xangô5, Vinicius aborda o amor e suas consequências, tema frequente em suas produções, que agora aparece com um viés místico da religiosidade de matriz africana, com citações a orixás e identificações espirituais. 1 O UNIVERSO MÍSTICO DE VINICIUS O início da trajetória poética de Vinicius de Moraes foi marcado por uma atmosfera religiosa, mística, resultante de sua fase cristã (FERRAZ, 2008, p. 14). Sua formação, procedente da educação jesuíta do colégio Santo Inácio, no Rio de Janeiro, e grandes poetas do modernismo brasileiro do momento, tais como Murilo Mendes, Jorge de Lima e Cecília Meireles, influenciaram nos seus três primeiros livros, O Caminho Para a Distância (1933), Forma e Exegese (1935), e Ariana, a mulher (1936). Com Vinicius de Moraes, a poesia constitui um meio de falar com Deus e, ao mesmo tempo, de compreender-se a si próprio. O eu poético busca compreender a natureza para entender a si mesmo. Assim, observando as manifestações de Deus, entende a sua própria essência. (Silva, 2005, p. 90) No passo em que se compreendia através da sua religiosidade e se identificava com a elite literária do Brasil, Vinicius passava a fazer parte de um movimento oposto às artes populares do país, dentre elas o movimento de enaltecimento da cultura negra e seus porta-vozes. Em depoimento por áudio, no documentário Vinicius, afirma: 3 MORAES, Vinicius de. Vinicius: Poesia e canção (Ao Vivo) VOL. 1. São Paulo: Mercury, 1966. 1 disco compact (29 min): digital, estéreo. 4 MORAES, Vinicius. POWELL, Baden. Os Afro-Sambas. Rio de Janeiro: Forma, 1966. 1 disco compact (30,5 min): digital, estéreo. 5 MORAES, Vinicius. POWELL, Baden. Os Afro-Sambas. Rio de Janeiro: Forma, 1966. 1 disco compact (30,5 min): digital, estéreo. 4 Em 1935 eu já tinha meu segundo livro pronto. Chamava-se Forma e Exegese, um título pedante pacas, né? Mas levantei o prêmio nacional de poesia. Em 35, em disputa com Jorge Amado, ele com Mar Morto. [...] Aí fiquei me achando um pouco gênio. E comecei a desprezar negócio de música popular, achava que aquilo era uma arte menor. A consagração do Prêmio Nacional de Poesia para o livro de Vinicius, diante da obra de Jorge Amado, fortaleceu ainda mais o ambiente de sua escrita, com traços católicos de uma sociedade idealista romântica. Ao mesmo tempo, o afastava da compreensão da atmosfera mística da obra Mar Morto, que apresentava traços e aspectos de uma sociedade que vivia à margem do idealismo brasileiro, com referências de modos e costumes das religiões de matrizes africanas. Naquele momento, o popular, ou seja, o que não dizia respeito à elite branca brasileira, não fazia parte do seu interesse intelectual, e, por consequência, da sua identificação cultural. Porém, segundo Hall (1994), a identidade deveria ser pensada, talvez, como uma “produção” que nunca se completa, que está sempre em processo e é sempre constituída interna e não externamente à representação. Ferraz (2008) explica que: Se o encaminhamento para a canção popular não era previsível, foi, no mínimo, bastante coerente com a atuação artística e intelectual de Vinicius de Moraes. E se a partir daí tudo se converteria em popularidade, sua figura tornou-se mais complexa, na medida em que frustrava expectativas, desmontava hierarquias socioculturais e fundia estratos diferenciados da cultura. Ao escrever a história da Bossa Nova, na companhia de Tom Jobim, João Gilberto e ouras parcerias que ficaram eternizadas na Música Popular Brasileira, Vinicius iniciava um processo que significou uma convergência com os valores que o poeta privilegiava 6. Ferreira Gullar, em depoimento7, declara: O Vinicius começa fazendo poesia francesa, inspirado naquele catolicismo francês, influenciado pelo grupo católico do Brasil. Mas aquilo não é ele, aquilo não é Vinicius. Então, pouco a pouco, ele vai se convertendo em Vinicius de Moraes, quer dizer, vai virando brasileiro. E aí vai além dos outros; porque muitos outros tiveram 6 Eucanaã Ferraz, Vinicius de Moraes. São Paulo: Publifolha, 2ª ed., 2008, p.60. 7 VINICIUS. Direção de Miguel Faria Jr. Rio de Janeiro: Paramount Pictures, 2006. 1 Digital Versatile Disc (124 min.): son., color. Legendado. Port. 5 esse percurso, viraram brasileiros, mas não tanto; então virar compositor popular e cair no esculacho completo, aí realmente é o Vinicius. Assim, ao assumir esta postura, o samba, que passa por um período de desvalorização e marginalização, ganha mais um defensor dentro do espaço da elite cultural do país. Com Os Afro-Sambas em parceria com Baden Powell, é que Vinicius, além de cantar a africanidade com seus batuques e significados místicos, inicia um processo de reconhecimento identitário cultural, que podemos perceber através das letras das suas canções, dos depoimentos de amigos, companheiros musicais e críticos da cena cultural, e também da sua postura diante à vida e à religião. 2 VINICIUS E OS AFRO-SAMBAS: O MERGULHO NA CULTURA AFRO- BRASILEIRA O samba de roda8 foi incorporado na obra de Vinicius quando ele e Baden Powell iniciaram o processo de criação do disco Os Afro-sambas (1966). Os arranjos, do maestro Guerra