<<

1

VINICIUS: O BRANCO MAIS PRETO DO BRASIL O RESGATE DA CULTURA NEGRA EM BUSCA DA CONSTRUÇÃO DA IDENTIDADE DO HOMEM BRASILEIRO QUE ESTARIA EM SUAS ORIGENS

Caroline de Freitas Pereira1 Osny André Pedreira Telles2

Resumo: O presente artigo irá analisar a construção identitária do artista através de três canções, feitas em parceria com o artista Baden Powell, pertencentes ao grupo dos afro-. O propósito do estudo é traçar o encontro do poeta com a música popular brasileira, mais propriamente a música afro-brasileira, seus elementos místicos e sonoridades, oriundos do negro na gênese do Brasil. A metodologia utilizada compreendeu a análise de depoimentos, sua maioria contida no documentário Vinicius, e embasamentos teóricos sobre a formação e transformação da identidade cultural. Ao final do estudo pôde-se observar que o envolvimento do artista com o ambiente musical retratado significou uma mudança de postura diante à vida e arte. Eis um novo Vinicius de Moraes, popular e emblemático, que passa a reconhecer características, antes esnobadas, como núcleo de um conjunto identitário pertencente a cada homem brasileiro.

Palavras-chave: Vinicius de Moraes. Os Afro-Sambas. Identidade. Música. Cultura Afro- Brasileira.

Poeta, cantor, compositor e diplomata, Vinicius de Moraes, “o poetinha”, fez do seu caminho de vida uma obra artística. Nos seus estágios, do período escolar no cerne da educação católica à entrega e vivência em terreiros de candomblé mais tarde, achou insumo para preencher suas poesias e letras. Segundo Eucanaã Ferraz (2008), o curso inicial da sua poesia foi marcada por isolamento aristocrático de ordem intelectual e moral. Porém, o mesmo Vinicius que incorporou formas e temas caros à tradição lírica ocidental e se distanciou da

1 Caroline de Freitas Pereira. Jornalista pós-graduada em Estudos Culturais, História e Linguagens. [email protected] 2 Osny André Pedreira Telles. Mestre em Literatura e Cultura pela Universidade Federal da . [email protected] 2

língua usual, se reconheceu, em meados de 60, em um disco de sambas de roda da Bahia que despertou em si um encantamento capaz de pô-lo em busca de sua mais profunda identidade cultural brasileira.

É possível acompanhar, na produção audiovisual Vinicius de Moraes (2006), dirigido por Miguel Faria Jr., através de falas de pessoas próximas ao poeta, a postura intensa e apaixonada do artista, a qual servia de espelho no seu ato criativo. O amor, o sofrimento, a boemia e a espiritualidade eram temas recorrentes nos seus escritos, que muitas vezes foram dedicados a alguém ou a algum momento específico da sua vida.

Com a música não seria diferente. Quando falada de um lugar ou tradição específicos, Vinicius demonstrava interação e conhecimento do ambiente cantado em seus versos. Sua arte era o instrumento de revelação da construção da sua identidade cultural.

Assim o poeta adentra no universo da música afro-brasileira, reconhecendo-se como parte da formação cultural do seu país e conectando sua arte à ligação Brasil – África, ao incorporar diversos elementos africanos e afro-brasileiros na sua composição e na sua melodia, em parceria com Baden Pawell, no disco Os Afro-Sambas.

Este artigo busca considerar, através da análise de depoimentos e teorias sobre identidade cultural, a construção pessoal do artista Vinicius de Moraes ao se deparar com a música popular brasileira, mais especificamente com a musicalidade afro-brasileira.

A minha identificação com o tema provém de uma grande afinidade pelo artista em questão, principalmente pela sua contribuição no fortalecimento, no lugar de elite, da musicalidade africana no Brasil. Fica claro o processo de abrasileiramento do poeta quando este entra em contato com mais básico da cultura de formação do país: o negro e suas particularidades espirituais e musicais. Analisa-se então, neste estudo, o caminhar de Vinicius ao encontro de si mesmo na música popular. 3

Neste artigo irei me debruçar na representação da identidade do homem brasileiro que buscou Vinicius de Moraes, considerando letras de três das suas composições. A primeira delas, da Bênção3, uma encenação ritual com pedidos de bênçãos e incorporação da figura dos orixás. Nesta canção, o poeta se localiza na história do samba, fazendo reverências à herança da vinda do negro para o Brasil. Na segunda e terceira canções escolhidas para abordar a temática deste estudo, intituladas Canto de Ossanha4 e Canto de Xangô5, Vinicius aborda o amor e suas consequências, tema frequente em suas produções, que agora aparece com um viés místico da religiosidade de matriz africana, com citações a orixás e identificações espirituais.

1 O UNIVERSO MÍSTICO DE VINICIUS

O início da trajetória poética de Vinicius de Moraes foi marcado por uma atmosfera religiosa, mística, resultante de sua fase cristã (FERRAZ, 2008, p. 14). Sua formação, procedente da educação jesuíta do colégio Santo Inácio, no , e grandes poetas do modernismo brasileiro do momento, tais como Murilo Mendes, Jorge de Lima e Cecília Meireles, influenciaram nos seus três primeiros livros, O Caminho Para a Distância (1933), Forma e Exegese (1935), e Ariana, a mulher (1936).

Com Vinicius de Moraes, a poesia constitui um meio de falar com Deus e, ao mesmo tempo, de compreender-se a si próprio. O eu poético busca compreender a natureza para entender a si mesmo. Assim, observando as manifestações de Deus, entende a sua própria essência. (Silva, 2005, p. 90)

No passo em que se compreendia através da sua religiosidade e se identificava com a elite literária do Brasil, Vinicius passava a fazer parte de um movimento oposto às artes populares do país, dentre elas o movimento de enaltecimento da cultura negra e seus porta-vozes. Em depoimento por áudio, no documentário Vinicius, afirma:

3 MORAES, Vinicius de. Vinicius: Poesia e canção (Ao Vivo) VOL. 1. São Paulo: Mercury, 1966. 1 disco compact (29 min): digital, estéreo. 4 MORAES, Vinicius. POWELL, Baden. Os Afro-Sambas. Rio de Janeiro: Forma, 1966. 1 disco compact (30,5 min): digital, estéreo. 5 MORAES, Vinicius. POWELL, Baden. Os Afro-Sambas. Rio de Janeiro: Forma, 1966. 1 disco compact (30,5 min): digital, estéreo. 4

Em 1935 eu já tinha meu segundo livro pronto. Chamava-se Forma e Exegese, um título pedante pacas, né? Mas levantei o prêmio nacional de poesia. Em 35, em disputa com Jorge Amado, ele com Mar Morto. [...] Aí fiquei me achando um pouco gênio. E comecei a desprezar negócio de música popular, achava que aquilo era uma arte menor.

A consagração do Prêmio Nacional de Poesia para o livro de Vinicius, diante da obra de Jorge Amado, fortaleceu ainda mais o ambiente de sua escrita, com traços católicos de uma sociedade idealista romântica. Ao mesmo tempo, o afastava da compreensão da atmosfera mística da obra Mar Morto, que apresentava traços e aspectos de uma sociedade que vivia à margem do idealismo brasileiro, com referências de modos e costumes das religiões de matrizes africanas. Naquele momento, o popular, ou seja, o que não dizia respeito à elite branca brasileira, não fazia parte do seu interesse intelectual, e, por consequência, da sua identificação cultural. Porém, segundo Hall (1994), a identidade deveria ser pensada, talvez, como uma “produção” que nunca se completa, que está sempre em processo e é sempre constituída interna e não externamente à representação. Ferraz (2008) explica que:

Se o encaminhamento para a canção popular não era previsível, foi, no mínimo, bastante coerente com a atuação artística e intelectual de Vinicius de Moraes. E se a partir daí tudo se converteria em popularidade, sua figura tornou-se mais complexa, na medida em que frustrava expectativas, desmontava hierarquias socioculturais e fundia estratos diferenciados da cultura.

Ao escrever a história da Bossa Nova, na companhia de Tom Jobim, João Gilberto e ouras parcerias que ficaram eternizadas na Música Popular Brasileira, Vinicius iniciava um processo que significou uma convergência com os valores que o poeta privilegiava 6. , em depoimento7, declara:

O Vinicius começa fazendo poesia francesa, inspirado naquele catolicismo francês, influenciado pelo grupo católico do Brasil. Mas aquilo não é ele, aquilo não é Vinicius. Então, pouco a pouco, ele vai se convertendo em Vinicius de Moraes, quer dizer, vai virando brasileiro. E aí vai além dos outros; porque muitos outros tiveram

6 Eucanaã Ferraz, Vinicius de Moraes. São Paulo: Publifolha, 2ª ed., 2008, p.60. 7 VINICIUS. Direção de Miguel Faria Jr. Rio de Janeiro: Paramount Pictures, 2006. 1 Digital Versatile Disc (124 min.): son., color. Legendado. Port. 5

esse percurso, viraram brasileiros, mas não tanto; então virar compositor popular e cair no esculacho completo, aí realmente é o Vinicius.

Assim, ao assumir esta postura, o samba, que passa por um período de desvalorização e marginalização, ganha mais um defensor dentro do espaço da elite cultural do país. Com Os Afro-Sambas em parceria com Baden Powell, é que Vinicius, além de cantar a africanidade com seus batuques e significados místicos, inicia um processo de reconhecimento identitário cultural, que podemos perceber através das letras das suas canções, dos depoimentos de amigos, companheiros musicais e críticos da cena cultural, e também da sua postura diante à vida e à religião.

2 VINICIUS E OS AFRO-SAMBAS: O MERGULHO NA CULTURA AFRO- BRASILEIRA

O samba de roda8 foi incorporado na obra de Vinicius quando ele e Baden Powell iniciaram o processo de criação do disco Os Afro-sambas (1966). Os arranjos, do maestro Guerra Peixe (1914-93), traziam a marca de atabaques, bongô, agogô, afoxé – instrumentos dos rituais das religiões de matrizes africanas presenciados por Baden em visita à Bahia9 -, com violão, contrabaixo, flautas, sax e bateria.

Essas antenas que Baden tem ligadas para a Bahia e, em última instância para a África, permitiram-lhe realizar um novo sincretismo: carioquizar dentro do espírito do samba moderno, o candomblé afro brasileiro dando-lhe ao mesmo tempo uma dimensão mais universal (...) nunca os temas negros de candomblé tinham sido tratados com tanta beleza, profundidade e riqueza rítmica (...) é esta sem dúvida a nova música brasileira e a última resposta que da o Brasil, esmagadora à mediocridade musical em que se atola o mundo. E não digo na vaidade de ser letrista dos mesmos; digo-o em consideração a sua extraordinária qualidade artística, à misteriosa trama que os envolve: um tal encantamento em alguns que não há como sucumbir à sua sedução, partir em direção ao seu patético apelo. [...] 10

8 Samba rural de origem afro-baiana e com influência da capoeira. Em geral, são utilizados instrumentos como atabaque, berimbau, pandeiro, chocalho e viola, com acompanhamento de canto e palmas. Em: História e cultura afro-brasileira. São Paulo: Contexto, 2009. 9 AMÉRICO, Luiz disponível em: < http://www.luizamerico.com.br/fundamentais-baden-vinicius.php> Acesso em: 25 jun. 2014. 010 Texto de fevereiro de 1966, contracapa do disco Os Afro-Sambas de Baden e Vinicius (Forma, 1966). 6

Segundo Ferraz (2008), a constatação de um interesse inequívoco de Vinicius pelo samba tradicional é tratada apenas como inclinação pessoal ou, no máximo, e não sem ironia, resultado de uma circunstância de fundo cultural, sociológico. As letras, agora abordadas, continuavam trazendo o amor e suas conseqüências, mas com uma espécie de fatalidade revestida pela mística afro-brasileira.

Sobre o disco, a cantora Maria Bethânia, em depoimento11, revela:

O encontro dele com Baden, eu acho que é tão forte quanto o encontro dele com o Tom, porque foi um outro universo que ele explorou que, talvez, os dois tenham explorado de maneira mais profundas na nossa música. Porque sempre era uma coisa "de ladinho", essa coisa de africano... E eles fizeram pra valer.

Embora tenha acontecido em um contexto de abertura do poeta para as artes populares, a criação dos afro-sambas o aproximou de elementos da essência da história cultural do país. Eis chegado o momento de identificação do artista com todo e qualquer homem brasileiro: a história de formação do Brasil, que traz traços marcados pela colonização européia, presença dos índios e seus costumes, e chegada dos negros e suas religiões.

Sob esse aspecto, a identidade cultural não é jamais uma essência fixa que se mantenha, imutável, fora da história e da cultura. Nem é, dentro de nós, algum espírito transcendental e universal no qual a história não fez marcas fundamentais. Também não é "de uma vez pra sempre". Não é uma origem fixa à qual possamos fazer um retorno final e absoluto. E, é claro, não é um simples fantasma. Mas é alguma coisa - não um mero artifício da imaginação. Tem suas histórias - e as histórias, por sua vez, têm seus efeitos reais, materiais e simbólicos. O passado continua a nos falar. Mas já não é como um simples passado factual que se dirige a nós, pois nossa relação com ele, como a relação de uma criança com a mãe, é sempre já "depois da separação". É construído sempre por intermédio da memória, fantasia, narrativa e mito. As identidades culturais são o ponto de identificação, os pontos instáveis de identificação ou sutura, feitos no interior dos discursos da cultura e da história. (Hall, 1994, p. 70)

Essa busca de Vinicius por uma identidade cultural mais abrasileirada, em relação ao contexto histórico do negro e das religiões de matrizes africanas, fica clara nas letras das canções deste novo período, principalmente na citação que embala a canção Samba da Bênção. Com o

11 VINICIUS. Direção de Miguel Faria Jr. Rio de Janeiro: Paramount Pictures, 2006. 1 Digital Versatile Disc (124 min.): son., color. Legendado. Port. 7

parceiro Baden, o poeta se utilizou dos afro-sambas na edificação de um diálogo pleno de expressões e ritmos afro-brasileiros que acreditava pertencer a um grupo de signos que formatavam sua originalidade. Segundo Saquet e Briskievick, as identidades nacionais são específicas e estão localizadas em algum ponto do tempo através de antecedentes históricos. Vinicius, então, estava em busca de um sentimento de pertencimento e reconhecimento, além de uma nova forma de traduzir o entendimento de si mesmo através da arte.

3 A MÚSICA NA CONSTRUÇÃO DE IDENTIDADE DE VINICIUS

O percurso do poeta pela música popular, que iniciou com a Bossa Nova e teve seu auge na criação das letras dos afro-sambas, foi reflexo de uma inclinação íntima pela temática do negro, sua religião e seus sons, que agora fazia parte da sua identificação como homem brasileiro.

Segundo Maheirie (2001), a música é uma forma de expressão dos sujeitos, ao mesmo tempo, singular e coletiva, tendo de ser compreendida para além de seu fenômeno sonoro, pois é uma linguagem afetivo-reflexiva que envolve um processo de reflexão que só é possível por meio da afetividade, sendo que a afetividade em relação à música se faz possível devido a determinado processo reflexivo. A música é, então, um campo aberto de possibilidades de identificação que passa não somente pelo reflexivo, mas pelo afetivo.

É importante ressaltar que o poeta tinha uma habilidade de transformar em arte os seus sentimentos, vivências, casamentos e seu modo de se relacionar com o mundo a sua volta.

3.1 SAMBA DA BÊNÇÃO

Composto em parceria com Baden Powell, este é o samba mais emblemático do período analisado. A letra traz, em seus versos, uma espécie de encenação ritual, com pedidos de 8

bênçãos a parceiros, citações a orixás, e uma espécie de música sacra12, com um fundo religioso.

Com a declaração de que “o samba é a tristeza que balança”, afirma-se que o ritmo e a dança, e antes, o corpo, e ainda, o prazer, não desaparecem sob o peso da tristeza, que, ritualizada pela música, transcende a si mesma, daí resultando uma modalidade artística forjada na tensão entre a dor e a alegria. A imagem da “tristeza que balança”, brilha, assim, como uma espécie de síntese da própria história do samba, considerando-se aí, em primeiro plano, seus traços africanos e, por isso mesmo, suas relações com a presença negra no Brasil: a escravidão e suas consequências” (FERRAZ, 2008, p. 69)

Mais à frente, com um diálogo mais explícito, o poeta adianta “Eu, por exemplo, o capitão do mato, Vinicius de Moraes, o branco mais preto do Brasil da linha direta de Xangô, Saravá!”, encarando o jogo de identificação coma sua obra, a canção em questão, e reverenciando o seu samba através da sua identidade. Outra narrativa importante a ser citada é a utilização, nesta e em outras canções, da expressão “Saravá”13, saudação comum às religiões de matrizes africanas, que é depois incorporada em uma canção para Vinicius14, por Toquinho e , onde entoam “Vinícius, velho, saravá” também como forma de identificação. O poeta, então, passa a ser reverenciado desta maneira inclusive por outros artistas do cenário cultural.

As identidades culturais provêm de alguma parte, têm histórias. Mas, como tudo o que é histórico, sofrem transformação constante. Longe de fixas eternamente em algum passado essencializado, estão sujeitas ao contínuo "jogo" da história, da cultura e do poder. As identidades, longe de estarem alicerçadas numa simples "recuperação" do passado, que espera para ser descoberto e que, quando for, há de garantir nossa percepção de nós mesmos pela eternidade, são apenas os nomes que aplicamos às diferentes maneiras que nos posicionam, e pelas quais nos posicionamos, nas narrativas do passado. (Hall, 1994, p. 69)

Ainda nesta música, Vinicius faz um retorno à história do samba, entrelaçado à presença do negro no Brasil, principalmente na Bahia.

Porque o samba nasceu lá na Bahia / E se hoje ele é branco na poesia / Se hoje ele é branco na poesia / Ele é negro demais no coração [...]

12 Eucanaã Ferraz, Vinicius de Moraes. São Paulo: Publifolha, 2ª ed., 2008, p. 68). 13Saudação nos terreiros de cultos afro-brasileiros. 14 Samba pra Vinicius, por Toquinho e Chico Buarque, 1982. 9

Nesses versos, como porta-voz dos afros-sambas e declarando-se o branco mais preto do Brasil, Vinicius fala mais uma vez de si, na posição do sujeito, agora em um jogo subentendido.

3.2 CANTO DE OSSANHA

Na segunda música analisada neste artigo, o amor e suas consequências aparecem no discurso místico sobre o orixá Ossanha15, e já sugere uma intimidade com o candomblé que podemos analisar nos versos seguintes.

O homem que diz "dou" / Não dá! / Porque quem dá mesmo / Não diz! / O homem que diz "vou" / Não vai! / Porque quando foi / Já não quis! / O homem que diz "sou" / Não é! / Porque quem é mesmo "é" / Não sou! / O homem que diz "tou" / Não tá / Porque ninguém tá/ Quando quer / Coitado do homem que cai / No canto de Ossanha / Traidor! / Coitado do homem que vai / Atrás de mandinga de amor [...]

Outra característica de identificação com a religiosidade é o retorno do orixá Xangô16, como seu mentor espiritual já anunciado na canção analisada anteriormente, que vem através destes versos, como conselheiro e guia, mais uma vez entoado em forma de encenação ritual.

Amigo sinhô / Saravá / Xangô me mandou lhe dizer / Se é canto de Ossanha / Não vá! / Que muito vai se arrepender / Pergunte pr'o seu Orixá / O amor só é bom se doer / Pergunte pr'o seu Orixá / O amor só é bom se doer [...]

Nesta letra, Vinicius sugere a presença dos orixás, ou seja, das entidades espirituais do candomblé e da umbanda, para auxiliar o ouvinte, como se essa estrutura religiosa fosse comum a todos que lhe escutam, a todo sujeito brasileiro, pertencente a um grupo que compartilha a mesma história cultural. Segundo Saquet e Briskievick, os movimentos étnicos ou religiosos, por exemplo, frequentemente reivindicam símbolos ou aspectos de sua história comum para o fundamento de sua identidade.

3.3 CANTO DE XANGÔ

15 Ossaim é o deus das ervas. Comanda as folhas, as medicinas, as litúrgicas, é o mestre do mato. AMADO, Jorge. Bahia de todos-os-santos: guia de ruas e mistérios. São Paulo: , 2012. 16 Xangô é um dos orixás mais poderosos, deus do raio, do fogo, do trovão. AMADO, Jorge. Bahia de todos-os- santos: guia de ruas e mistérios. São Paulo: Companhia das Letras, 2012. 10

Após citar a figura de Xangô nas canções analisadas acima, como orixá e guia, Vinicius dedica uma letra apenas a essa energia espiritual onde entoa, como de costume, a temática do amor e da espiritualidade, agora tornando mais evidente a sua identificação com o guia imaterial.

Eu vim de bem longe, eu vim, nem sei mais de onde é que eu vim / Sou filho de rei muito lutei pra ser o que eu sou / Eu sou negro de cor, mas tudo é só amor em mim / Tudo é só amor, para mim / Xangô Agodô / Hoje é tempo de amor / Hoje é tempo de dor, em mim / Xangô Agodô / Salve , Xangô, meu Rei Senhor / Salve meu Orixá [...]

A repetida aparição de Xangô nas letras deste processo musical reafirma a importância da religião de matriz africana no processo de identificação do poeta. Xangô, que, segundo Mattos (2009), é o orixá do poder e da justiça, está em pelo menos cinco canções entoadas por Vinicius e seus parceiros a partir da criação dos afro-sambas. Segundo o próprio Vinicius, que declama “filho da linha direta de Xangô”, estamos diante da música criada em reverência ao seu orixá. Sobre a identificação cultural, Hall (1994) afirma que é uma forma de representação que é capaz de nos construir como sujeitos e temas de novos tipos, permitindo- nos, por conseguinte, descobrir lugares desde os quais falamos.

Todos estes elementos de identificação, tanto nas composições como dos instrumentos utilizados na sonoridade do disco, tratam de um processo de imersão na cultura do negro e suas origens no Brasil feito pelo artista. O modo de assimilação de Vinicius, a abertura para a música popular e o próprio encaminhamento da sua vida pessoal são fatores que retratam que, além do encantamento, o poeta vivia uma mudança de costumes tanto no modo de ver a vida, no direcionamento da sua arte e na sua espiritualidade.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

O presente artigo buscou analisar o poeta Vinicius de Moraes e seu encontro com a música popular brasileira, mais especificamente com a música com elementos e sonoridades afro- brasileiros, levando em consideração a inclinação pessoal do artista para a temática do negro e das religiões de matrizes africanas. 11

Traçando o caminho do poeta, desde a sua infância aos últimos momentos encarnado, é possível perceber a multiplicidade deste artista, que passou da gravata à boemia, se sobrepondo à sua própria obra.

Vinicius e seus parceiros foram porta-vozes de um estilo musical que vivia marginalizado e reduzido ao folclore. Com a abertura da Bossa Nova, o fortalecimento do samba e a realização dos afro-sambas, disco dedicado à ligação Africa-Brasil, iniciaram um diálogo artístico menos preconceituoso – mas não totalmente livre de amarras, da canção popular.

Foi o momento de inserir elementos que nos identificam como brasileiros, interligados por pontos em comuns, principalmente quando falamos da nossa colonização -, no contexto de uma elite que exaltava noções estrangeiras e consumia a arte européia e norte-americana com muito mais propriedade do que compreendia a própria história e identidade do seu país e do seu povo.

É interessante ressaltar que o percurso de Vinicius de Moraes em busca da construção do homem brasileiro não se restringiu somente à sua arte. Após Os Afros-Sambas, Vinicius mudou-se para a Bahia, onde conheceu Gesse Gessy, sua penúltima esposa.

O casamento foi uma cerimônia estranha, meio teatro, meio candomblé. É que, além de atriz, Gesse era filha de santo. A Bahia fascinou Vinicius. Ele era um ateu materialista e resolveu acreditar no mistério sensual dos orixás. Virou um hippie temporão que mudou para Itapoã, comprou um Jipe e deixou as formalidades para trás. No Brasil daqueles anos 70, muitos jovens rompiam padrão de comportamento e buscavam espaços e territórios de liberdade. Vinicius entrou na onda, vivia sem horário nem regra.17

Vinicius viveu seus últimos anos em Salvador, na Bahia, vivenciando o que cantou nos afro- sambas dentro da casa de candomblé que frequentava. De acordo com depoimentos, o poeta aderiu a um estilo de vida leve, longe da gravata e dos compromissos que antes faziam parte do seu contexto intelectual e da elite a qual pertenceu nos anos em que trabalhou para o Itamaraty. Segundo Maria Bethânia, em depoimento ao documentário Vinicius:

17 VINICIUS. Direção de Miguel Faria Jr. Rio de Janeiro: Paramount Pictures, 2006. 1 Digital Versatile Disc (124 min.): son., color. Legendado. Port. 12

Foi Vinicius quem me apresentou à Mãe Menininha do Gatoins. Eu ficava impressionada, porque não se fuma dentro da casa de candomblé, as pessoas sentam- se no chão; e sempre que a gente entrava, desde a primeira vez que ele me levou, ela me mandou sentar no chão, a mulher dele, a Gesse, no chão... e "Traz uma cadeira pra ele sentar". Eu fiquei: por quê? Porque é homem? Porque é Vinicius, porque é artista? Eu fiquei sem entender e perguntei. Ela disse: "tem muita coisa que não se explica, não". Aquela coisa de candomblé, ou seja, era um respeito ao orixá que ele carregava e que já podia sentar-se na mesma...

Através desta fala e do próprio percurso do artista, discutido no decorrer deste estudo, podemos perceber que a inclinação de Vinicius para o disco Os Afro-Sambas fez parte de um processo de reconhecimento da sua identidade cultural que, mais tarde, culminaria em um mergulho ainda mais profundo na história do negro e suas raízes no Brasil.

Sua popularidade e seu prestígio, unidos a uma forte defesa da cultura popular brasileira, foram responsáveis por uma abertura que gerou uma maior aceitação por parte de outros artistas da elite, que, mais tarde, viriam adentrar no ambiente da música afro-brasileira com mais propriedade.

O encontro do poeta com a sonoridade dos negros escravizados no período da colonização, suas histórias e suas raízes espirituais, não só foi responsável pela obra Os Afro-Sambas, como também estabeleceu um novo Vinicius de Moraes: o branco mais preto do Brasil, que passava a se sentir ainda mais brasileiro.

Referências FERRAZ, Eucanaã. Vinicius de Moraes. - 2. ed. - São Paulo: Publifolha, 2008. - (Folha Explica). 89 p.

MATTOS, Regiane Augusto de. História e cultura afro-brasileira. - 1. ed., 3ª reimpressão.- São Paulo: Contexto, 2009. 217 p.

AMADO, Jorge. Bahia de todos-os-santos: guia de ruas e mistérios de Salvador. - 1. ed. - São Paulo, Companhia das Letras, 2012.395 p.

Hall, Stuart. Identidade Cultural e Diáspora. Revista do Patromônio Histórico e Artístico Nacional. Título Original "Cultural identity and diaspora", publicado em P. Williams e L. 13

Chrisman (eds.) Colonial discourse and post-colonial theory. Nova York: Columbia University Press, 1994.

SAQUET, Marcos Aurelio, BRISKIEVICZ, Michele. A identidade como patrimônio no desenvolvimento territorial. Colegiado de Geografia - Unioeste, Campus de Francisco Beltrão (PR). 2006.

______"Sete mares numa Ilha": a mediação do trabalho acústico na construção da identidade coletiva. Tese (Doutorado em Psicologia Social). Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, 2001. Apud artigo A Mediação da música na construção da identidade coletiva do MST.

VINICIUS. Direção de Miguel Faria Jr. Rio de Janeiro: Paramount Pictures, 2006. 1 Digital Versatile Disc (124 min.): son., color. Legendado. Port.

MORAES, Vinicius de. Vinicius: Poesia e canção (Ao Vivo) VOL. 1. São Paulo: Mercury, 1966. 1 disco compact (29 min): digital, estéreo.

MORAES, Vinicius. POWELL, Baden. Os Afro-Sambas. Rio de Janeiro: Forma, 1966. 1 disco compact (30,5 min): digital, estéreo.

Vinicius de Moraes. Disponível em: < http://www.viniciusdemoraes.com.br/>. Acesso em: 25 jun. 2014.

AMÉRICO, Luiz. Baden e Vinicius. Os Afro-Sambas 1966. Disponível em: . Acesso em: 25 jun. 2014.