Comunicação apresentada no Con- gresso Internacional La Lusophonie: Voies/Voix Océaniques, Université Libre de Bruxelles, 16-19 de se- tembro de 1998. Um mar à margem: o motivo marinho na poesia brasileira ANTONIO CARLOS SECCHIN do Romantismo

ANTONIO CARLOS Para procurar a resposta, percorremos a SECCHIN é ononom nom obra de 52 poetas (2) do Romantismo bra- onomn mon mon omnm sileiro, uma vez que o centramento exclu- onm onm onm onm onm onm onm onm sivo nos autores canônicos nos parecia in- suficiente para revelar a dimensão da inci- dência (ou da ausência) do mar na produ- ção do período. Foram lidos todos os poe- inha terra tem palmeiras, / mas que fizessem no título menção explíci- Onde canta o sabiá” (1). Nos ta ao mar, ou implícita, através de campos famosíssimos versos da metonímicos como praia, concha, areia, “Canção do Exílio”, Gonçal- barco. Desse total, nada menos do que 22 ves Dias fala de terra, aves, poetas não assinaram textos com motivo “Mestrelas, bosques: fala de quase tudo, mas marinho; dos 30 restantes (3), 23 possuem não do mar. A natureza do Brasil, na sua poemas efetivamente dedicados ao tema, e idealização exemplar, já surge celebrada nos demais o mar comparece na condição com o mar a menos. E nos outros poetas de coadjuvante, seja no contexto mais 1 G. Dias, 1957, p. 83. Para românticos? O mar teria sido elemento im- amplo de uma baía ou de um litoral, seja evitar excessiva remissão às portante na constituição de um espaço num cenário protagonizado pela lua. Pre- notas, doravante as citações serão acompanhadas, no cor- paradisíaco, ou, ao contrário, acabou re- sença, portanto, relativamente moderada, po do texto, do número da página do livro em que se en- traindo-se como um convidado modesto que vem de encontro às expectativas de uma contram. Atualizamos a orto- no banquete suntuoso do imaginário ro- comemoração dionísiaca da magia tropi- grafia de acordo com as nor- mas vigentes. mântico? cal, cuja imagem-clichê é a do coqueiro à

52 REVISTA USP, São Paulo, n.47, p. 52-60, setembro/novembro 2000 beira-mar plantado sob os eflúvios lângui- Ao ver-me se apressa, correndo pra mim!” dos da brisa matutina. Adiante, propore- (p. 148). mos uma hipótese para a explicação do fenômeno. Este é um dos raríssimos poemas român- Percorridos os poemas, percebemos a ticos que vinculam mar e Brasil. A recorrência de algumas configurações no edenização da paisagem está de todo ausen- tratamento do motivo marinho que atraves- te em “Gualter, o Pescador” (5), de Fagundes saram, com poucas alterações, as sucessi- Varela, peça pouco divulgada e das mais vas “fases” em que os historiadores divi- longas dedicadas ao motivo marinho. Divi- dem o Romantismo brasileiro, situado, de-se em quatro partes, num total de 541 grosso modo, entre meados da década de versos de estrofação variada, com predomí- 1830 e meados da de 1870. Podem-se resu- nio de quadras e quintilhas. O poema é muito mir tais configurações em: a) o mar como bem urdido desde o seu início, com a carac- objeto de narração; b) como substrato épi- terização algo mística do nascer do dia: co-histórico; c) como matéria lírica; d) como fonte de indagação filosófica. Sele- “Sobre as ondas de anil do mar profundo cionamos, para o exame desses aspectos, Surge a esfera de luz banhando as plagas um contingente de doze poetas do corpus De esplêndido clarão; preliminarmente pesquisado. O mundo acorda, e a natureza escreve O bloco narrativo se apresenta em duas Um canto ainda sobre o livro eterno versões não necessariamente excludentes: Da imensa criação” (p. 225) . ora concentra-se na atividade do pescador, ora enfatiza um drama amoroso em que o Na quinta estrofe surgem os persona- mar é cenário e também antagonista. O gens – o pescador, a esposa Ester e a filha. menos conflituoso desses textos é “O Can- O discurso temeroso da mulher infiltra a 2 A saber: *Almeida Freitas, *Ál- to do Pescador” (4) de Bittencourt Sampaio, vares de Azevedo, Ana Arruda, suspeita frente à placidez dos elementos *Aureliano Lessa, *Barão de que trata de uma plácida rotina, e não, como naturais. Presságios femininos de um lado, Paranapiacaba, *Bernardo Guimarães, *Bruno Seabra, se verá nos outros casos, de um acidente evidência climática e necessidade de bus- *Bittencourt Sampaio, *Carlos que transtorna o cotidiano. Em Sampaio, o car alimento, de outro, entram em conflito. Ferreira, *, *, *Clímaco Bar- mar é um lugar de onde certamente se Gualter lança-se ao mar, e o narrador re- bosa, Dias da Rocha, Ezequiel Freire, *, Félix retorna, e se retorna coberto de peixes, de corre a sensações visuais, táteis e auditivas da Cunha, *Ferreira de pátria e de paixão: para flagrar a eclosão da tormenta: Menezes, , Franco de Sá, *Gentil Homem de Almeida Braga, Gonçalves “Na minha igara vogando de Magalhães, *Gonçalves “De mais a mais o espaço se escurece, Dias, *Guimarães Jr., *João Por estas ondas de anil, Repetem-se os trovões, o mar inquieto Silveira de Sousa, Joaquim Manoel de Macedo, *Joaquim Sentado na popa, sozinho cismando, Fustiga as penedias, Norberto, , José Deslizo, cantando Antônio Frederico da Silva, Um dilúvio de queixas e bramidos *José Bonifácio, o Moço, As glórias que alembram meu pátrio Brasil. Percorre os ervaçais e vai perder-se , *Juvenal Galeno, , Nas longas serranias!” (p. 230) . *Lobo da Costa, *Luís Delfino, /…/ Luís Gama, *, Maciel Monteiro, Sinto fome? A rede lanço, O texto, a partir de então, adota uma *Manoel de Araújo Porto-Ale- Atiro a fisga e o anzol; gre, *Melo Morais Filho, técnica contrapontística, focalizando alter- *Moniz Barretto, Narcisa São tantos os peixes que apanho num lanço, nada e sucessivamente o pavor de Ester, a Amália, * Paulo Eiro, Pedro de Calazans, *Pedro Luís, Quirino Que as vezes me canso intensificação da tempestade e a luta de dos Santos, Salomé Queiroga, De estar todo o dia postado no sol. *Sousa-Andrade, dito Gualter contra a morte. A plasticidade Sousândrade, Teixeira de hiperbólica dos versos é um dos trunfos de Melo, , Trajano Galvão, Vitoriano Palhares e /…/ Varela na construção do cenário: *Xavier da Silveira. E volto a ver a choupana, 3 Os assinalados com asterisco Que o dia inteiro não vi; “O temporal rebenta! Escuras vagas na nota anterior. Encontro nas praias sentada a indiana, Pulam sem freios nas marinhas plagas 4 B. Sampaio, 1860. Que alegre, que ufana Como nos ermos os corcéis bravios; 5 F. Varela, 1962.

REVISTA USP, São Paulo, n.47, p. 52-60, setembro/novembro 2000 53 Tombam torrentes d’amplidão do céu, amoroso. O primeiro transforma aquilo que Os ventos berram do bulcão no véu a princípio seria o singelo passeio/deva- Em longos tresvarios!” (p. 233). neio de uma virgem à beira-mar num acon- tecimento marcado pela morte em decor- A seguir, seis estrofes nos projetam no rência de motivo banal – o ímpeto de recu- centro do conflito, através de minuciosas perar uma rosa tragada pelo oceano. O jogo descrições do duplo sofrimento, o da mu- de aproximação e afastamento entre a moça lher na terra, e o do homem no mar. Para- e o mar desenha-se numa espécie de tor- doxalmente, Ester afoga-se na beira da neio amoroso: praia, e Gualter consegue salvar-se das entranhas do oceano, sem saber da morte “ Vem a onda bonançosa, da esposa. Varela estabelece um contraste Vem a rosa; entre a tempestade, já amainada, e as con- Foge a onda, a flor também. vulsões da alma humana, de mais difícil Se a onda foge, a donzela controle: Vai sobre ela! Mas foge, se a onda vem” (p. 282). “A tormenta cessou, mas ai! Na terra As tormentas do céu são as menores! Não seria exagero enxergar nessa dan- Uma réstia de luz as doma e pisa ça algo da ordem da sexualidade. A vir- Como ao bravo corcel que o freio abate; gem quer aparentemente conservar sua Mas as que surgem nos humanos peitos rosa, mas sente irresistível fascínio pela E a vida cavam nos medonhos choques, hipótese de perder-se perdendo-a. Obser- Essas são longas – eternais – sem luzes, vemos que, em meio às ondas, a virgem Nem brisas, nem manhã, que a fúria “Nem com tanta / Presteza lhes quer fu- [apague!” (p. 241). gir” (p. 282). Na estrofe seguinte a onda, masculinizada em “mar”, se encapela e Ao divisar o cadáver de Ester, Gualter, realiza o gesto simultâneo de posse e de arrastando a filha, atira-se de um precipí- morte: “A virgem bela / Recolhe e leva cio. A indiferença da natureza diante da consigo” (p. 282). Ao fim do poema, a flor tragédia é do suicídio é descrita com toques perdida é o que se encontra como resto da de requinte e crueldade: consumação do encontro entre o denso mar e a doce virgem: “O oceano é discreto, e o que ele encerra Dorme no sono de profundo olvido. “Ia a noite em mais de meia: Dentre as grimpas azuis, entre neblinas Toda a praia perlustraram, A lua vem se erguendo branca e pura Nem acharam Como a odalisca que se eleva pálida Mais que a flor na branca areia” (p. 282). Da banheiras de mármore do serralho! – Boa-noite, belo astro! – ergue-te asinha!” Curiosamente, um outro poema de Gon- (p. 244). çalves Dias trabalha a mesma questão, e de modo talvez mais explícito. Trata-se do Ester foi a primeira a morrer, mas um famoso “Não me Deixes” (8), em que uma cadáver ainda é pouco para a sofreguidão flor suplica à correnteza que a arraste, e, ao romântica. O mito do amor perfeito se ali- ter atendido o pedido, encontra ao mesmo menta de sangue duplo, convoca a morte a tempo a realização do desejo e a extinção dois, no caso acrescida do desdobramento física: filial. Também “Rosa no Mar” (6), de Gon- “A corrente impiedosa a flor enleia, 6 G. Dias, op. cit. çalves Dias, e “A Sereia e o Pescador” (7), Leva-a do seu torrão; 7 B. Guimarães, 1959. de Bernardo Guimarães, convocam a mor- A afundar-se dizia a pobrezinha: 8 G. Dias, op. cit. te para decretar a palavra final no enleio ‘Não me deixaste, não!’” (p. 363).

54 REVISTA USP, São Paulo, n.47, p. 52-60, setembro/novembro 2000 Se, no caso da virgem, morrer no mar Começam logo a rezar, dos desejos era alvo dubiamente formulado, Dizendo consigo – É ela, o fenômeno transparece com toda nitidez no É ela, a filha do mar! ” (p. 376) . poema de Bernardo Guimarães, mais uma versão dos lendários encontros entre um Ultrapassando o âmbito de um enredo pescador e uma sereia. É um longo texto, de individual para outro que incorpore uma imagens delicadas e cunho dramático, com- dimensão coletiva, podemos agora falar posto de falas alternadas de sereia e pesca- de um segundo nível de aproveitamento dor, pontuadas por discretas intervenções marinho, qual seja, o de natureza épico- do narrador. A inspiração européia do poe- histórica: o mar como espaço viabilizador ma patenteia-se na indicação do gênero “ba- de transformações sociais, políticas, cul- lada” aposto ao título, remetendo-o à mito- turais, econômicas. Num primeiro momen- logia nórdica e marinha. A partir das falas to, é claro, ocorreria pensar no ciclo re- iniciais, a sereia já profere ameaças contra nascentista dos descobrimentos, mas, des- quem ousar desejá-la. Amar significa proje- sa perspectiva, o que aí se glorificaria é tar-se num turbilhão sem retorno: um mar europeu, mais especificamente ibérico. Se levarmos em conta os atritos e “E se alguém na terra ingrata ressentimentos que impediam a cicatriza- Sentindo loucos amores, ção das feridas abertas com a independên- Meus encantos e favores cia da ex-colônia, não é de estranhar que Insensato desejar, Pedro Álvares Cabral seja nome despre- Em torno a mim, bravas ondas, zado pelo Romantismo brasileiro. O herói Vinde em fúria rebentar” (p. 368). do único épico marítimo do período é Colombo, louvado no longuíssimo e tedio- Tanto “A Sereia e o Pescador” quanto o so poema (9) homônimo de Araújo Porto- poema de Gonçalves Dias encenam um Alegre, com seu quarenta cantos em de- amor que não teme a aniquilação do corpo, cassílabos brancos sáficos. A prolixida- e que se alimenta da compulsão de ir até o de, o descritivismo de fachada e a incon- fim de um abismo sem fim, ou melhor, de sistência na caracterização do protagonis- um abismo que só termina onde a morte ta são marcas de uma obra que, afinal, só começa. Daí, no pescador, o discurso da veio a lume graças à imperial bondade e obsessão: ao generoso cofre de Dom Pedro II. No final do poema – “Se entre monstros marinhos, Lá no mais fundo dos mares, “Perdoa-me, Colombo, se do engenho Em cristalinos algares A imperícia excedeu o amor do vate. Se oculta o retiro seu. Cantor das selvas, como elas rude, Em meu amor confiado Dei-te flores silvestres, mas fagueiras Lá também descerei eu” (p. 374). Como o solo da pátria que te devo” (p. 520)

A insistência na afirmação do desejo – avulta a nota de que o poeta deve a acaba por minar a recusa da sereia. Toda- Colombo, e não a Cabral, o “solo da pá- via, o final do texto é ambíguo, porque, de tria”. O gesto desbravador de Colombo um lado registra o encontro do par, e, de fundou o continente inteiro. O país, de bom outro, reitera a solidão da sereia, ao evocar grado, preferia ver-se antes como um “ir- um barco agora fantasma e o canto possi- mão da América” do que como um “filho velmente viúvo daquela que o atraiu: de Portugal”. Existe ainda outro texto de fundo histó- “Apenas ouve-se um canto, rico que até hoje é reconhecido como par- Tão triste, que faz chorar; ticularmente expressivo no século XIX 9 M. A. Porto-Alegre, 1866. E os pescadores que o ouvem, brasileiro: o “Navio Negreiro” (10), de 10 C. Alves, 1953.

REVISTA USP, São Paulo, n.47, p. 52-60, setembro/novembro 2000 55 Castro Alves, cujo primeiro verso compor- vindo antes como ambientação literal ou ta a mais famosa referência marinha de metafórica dos devaneios do poeta. Em nosso Romantismo – “‘Stamos em pleno Álvares de Azevedo – conhecido pelo re- mar ” (p. 515). O poema, a rigor, não foca- púdio à ostentação nativista dos primeiros liza o mar brasileiro, e sim uma região in- românticos brasileiros – o investimento na definida, um ponto qualquer do Atlântico metáfora é ostensivo desde a primeira es- entre a África e o Brasil. trofe de “Anjos do Mar” (11): Importante em Castro Alves é o proces- so de “desnaturalização” do mar. Nos seg- “As ondas são anjos que dormem no mar, mentos iniciais o oceano irrompe como Que tremem, palpitam, banhados de luz… elemento idílico, São anjos que dormem, a rir e sonhar E em leito d’escuma revolvem-se nus!” “‘Stamos em pleno mar… Dois infinitos (p. 48). Ali se estreitam num abraço insano, Azuis, dourados, plácidos, sublimes… Comparadas as ondas a “pobres anji- Qual dos dous é o céu? Qual o oceano?” nhos” que “estão a chorar”, delineia-se uma (p. 515) fragilização da natureza que corresponderá, via alegoria, à confissão de fragilidade do para pouco a pouco perder o caráter de es- próprio sujeito, incapaz de encarar a mu- petáculo deleitoso em decorrência de uma lher sem recorrer a torneios que a tornem ocupação humana sinônima da sordidez, evanescente: que lhe mancha a “pureza” original e o tor- na cúmplice do comércio – literalmente – “Ai! Quando tu sentes dos mares na flor humano: Os ventos e vagas gemer, palpitar, Por que não consentes, num beijo de amor, “Era um sonho dantesco… o tombadilho Que eu diga-te os sonhos dos anjos do mar?” Que das luzernas avermelha o brilho, (p. 49). Em sangue a se banhar. Tinir de ferros… estalar de açoite… Sonhos e anjos atuam como sucessivas Legiões de homens negros como a noite, camadas de abstração onde o desejo nebu- Horrendos a dançar...” (p. 529). loso do poeta parece sentir-se ao abrigo da confrontação com a realidade. Em direção Da invocação final do poema não cons- oposta, “A Canção do Pescador” (12), do ta o nome do português D. Pedro I, nem o Barão de Paranapiacaba, deleita-se na com-

demar seu filho imperador do Brasil, mas o de paração de atributos físicos da mulher com José Bonifácio de Andrada e Silva, brasi- signos concretos do mar, extraindo do cam- leiro dito “O Patriarca” da independência. po metonímico do pescador os elementos E, na trilha de Araújo Porto-Alegre, é sin- que comporão as metáforas da amada: tomática a presença de Colombo e o silên- cio sobre Cabral: “Ruiva conchinha da areia Fios de vivo coral, “Mas é infâmia demais!… Da etérea plaga Desmaiam ao pé do nácar Levantai-vos, heróis do Novo Mundo! Dessa boca virginal. Andrada! Arranca esse pendão dos ares! Os teus dentes escurecem Colombo! Fecha a porta dos teus mares!” Finas per’las em ramal” (p. 62). (p. 524). Álvares partiu de um termo marítimo O mar como objeto de divagação lírico- (onda) conotador de fugacidade para, atra- amorosa comparece em razoável número vés dele, atingir uma concepção também 11 A. Azevedo, 1962. de textos, mas de um modo, digamos, etérea e volátil do feminino (anjo). Parana- 12 B. Paranapiacaba, 1910. desfibrado de qualquer especificidade ser- piacaba partiu da corporalidade feminina

56 REVISTA USP, São Paulo, n.47, p. 52-60, setembro/novembro 2000 e, para reforçá-la ainda mais, recorreu a criadora voz, de que surgiste”; “És pode- uma imagística marinha fundada na soli- roso sem rival na terra”; “Mas nesse ins- dez (concha, coral, pérola). tante que me está marcado/…/Irei tão alto, Casimiro de Abreu, cuja profundidade o mar, que lá não chegue/ Teu sonoro ru-margem poética é propícia à navegação costeira, gido” (p. 241). A observar que o compas- apresenta em toda a sua obra um único tí- so pelo qual se pauta a mensuração do mar tulo relacionado a nosso tema. Trata-se de é integralmente tecido por imagens que “Palavras ao Mar” (13), que, excetuando- remontam a um mundo abstraído da se o dado contextual de ter sido eventual- história. Espaço em que as forças naturais mente escrito próximo ao oceano, em nada travam combate, e, acima delas, as forças mais justifica a referência marinha. Fos- sobrenaturais, de Deus e da alma, voejam sem palavras ao vento, ao espelho ou ao vitoriosas. travesseiro, o leitor não perceberia qual- No mesmo diapasão, uma difusa pará- quer diferença: frase bíblica do fiat divino encontra-se em “Hino da Criação” (15), de Aureliano Lessa, “Oh! Se eu pudesse onde o próprio mar desvela em primeira Hoje – sequer – pessoa os mistérios de seu poder: Fartar desejos Nos longos beijos “A minha informe amplidão Duma mulher!…” (p. 163). Do infinito é tosca imagem, O brado é minha linguagem O oceano como objeto de indagação No hino da criação! filosófica compõe o bloco mais numeroso Pra render minha homenagem, do motivo marinho na poesia romântica Tento aos astros me arrojar, brasileira, e talvez o de tratamento mais E sobre mil escarcéus homogêneo. Em geral o poeta, diante do Louvar o Senhor nos céus… mar, canta-lhe a grandeza cósmica; louva- Mas quebra os arrojos meus lhe a força e a rebeldia; lembra-se de Deus, Do Senhor um só olhar!” (p. 65). e afirma que diante dEle o próprio mar se curva, ainda que, loucamente, ouse desafiá- Notemos que sempre alguma coisa fa- lo com o arrojo das ondas. Com freqüência, lha, seja no oceano gonçalvino, que é der- para realçar-lhe a magnitude, o mar é ex- rotado pelo grão de areia, seja no mar de presso como oceano. Também aqui não há Lessa, que não atinge as alturas. Essa falha marcas que o individualizem, pois se o é a brecha por onde penetra a instância di- mar é (talvez) brasileiro o oceano é (cer- vina. O mar é arremedo de uma força maior tamente) Atlântico; sua dimensão física e, mesmo sem galgar o céu, já é poderoso alça-se à metafísica do divino, e é nesse o suficiente para impor-se ao homem. É o outro patamar que ele adquire sua efetiva que lemos em Fagundes Varela, que, toda- significação. O mais conhecido texto des- via, introduz a história ali onde Gonçalves sa vertente é “O Mar” (14), de Gonçalves Dias enxergara unicamente a natureza. Em Dias, que abre a seção de “Hinos” dos todas as estrofes de “O Mar” (16), o drama Primeiros Cantos. Suas dez estrofes em humano – de cobiça, de delírio, de audácia decassílabos e hexassílabos brancos esta- – é contraposto à força do oceano, em que belecem, de certo modo, o padrão pelo qual o poeta louva não apenas o caráter a (des)medida do oceano será celebrada indomado, mas também a capacidade de pela maioria dos românticos subseqüen- sobreviver à insânia e às paixões terrenas: tes. Destaquemos alguns versos: “Oceano “Sacode as vagas do teu dorso imenso,/ Oh terrível, mar imenso/De vagas procelosas profundo oceano”; “O que é feito de Roma, 13 C. Abreu, 1961. que se enrolam”; “E esse rugido teu Assíria e Grécia,/ Cartago, a valorosa? As 14 G. Dias, op. cit. sanhudo e forte/ Enfim medroso escuto!”; vagas tuas/ Lambiam-lhe os muros”; “Tudo 15 A. Lessa, 1909. “Ó mar, o teu rugido é um eco incerto/Da esb’rou-se, se desfez em cinzas”; “Só tu, oh 16 F. Varela, op. cit.

REVISTA USP, São Paulo, n.47, p. 52-60, setembro/novembro 2000 57 mar, sem termos, imutável/…/Ruges, pal- “bem sabes que cedeste reverente pitas sem grilhões nem peias!” (p. 207). das lusitanas glórias à passagem Enquanto o discurso de Gonçalves Dias pau- pelo atrevido timoneiro Gama! ta-se pelo tom entre reverencial e temeroso, É que, sendo tão grande para um globo, Varela proclama sua identificação com o mar és ainda pequeno para o gênio!” (p. 114). por nele vislumbrar um mesmo caráter de independência (ou, até, de arrogância): Pela primeira vez afirma-se que o mar pode ser vencido pela capacidade humana, “Amo-te assim, oh mar, porque minh’alma sem recurso ao divino. E, num golpe de Vê-te imenso e potente, desdenhoso mestre (-escola), Barretto lança uma derra- Rindo às quimeras da cobiça humana! deira ameaça: se o mar insistir em compor- Amo-te assim! Ditoso no teu seio tar-se mal, o navegante o abandonará, tro- Zombo do mundo que meu ser esmaga, cando o perigo das ondas pela segurança de Sou livre como as vagas que me cercam um balão dirigível. E só a tempestade e a Deus respeito” Não poderíamos concluir esta (p. 209). amostragem sem referência à poesia de Sousândrade, autor, dentre outras obras, É particularmente vigorosa a das Harpas Selvagens(19), cujo canto antepenúltima estrofe do texto, com sua XXIV se denomina “Fragmentos do sucessão de gerúndios sobrelevando a ca- Mar”, espraiados por 44 páginas do pacidade defensiva e agressiva do oceano: volume. Os “Fragmentos”, a rigor, mes- clam todos os temas aqui apontados, “Amo-te horrível, revelando um sujeito multifacetado que Arrogante e soberbo, repelindo oscila da mais exata referência geográ- Os furacões que roçam-te nas crinas, fica ao delírio perceptivo mais exacer- Quebrando a asa de fogo que das nuvens bado. Narrando uma viagem da França Procura-te domar, batendo a terra ao Brasil, com escalas em Portugal, o Com teus flancos robustos, levantando poeta, em ásperos decassílabos bran- Triunfante e feroz no tredo espaço cos, viaja também em busca de seu pas- A cabeça vendada de ardentias!” (p. 209). sado e de mitos imemoriais, num rotei- ro em que se fazem presentes uma in- Álvares de Azevedo, em “Crepúsculo tensa erotização da natureza, a luta do do Mar” (17), retoma a perspectiva de Gon- espírito de Byron contra o anjo- çalves Dias (“Só a idéia de Deus e do in- Lamartine e a concepção do mundo finito/ No oceano boiava”, p. 79), mas, como um projeto abandonado por Deus. como de praxe, sob a égide de um discurso Sousândrade visiona ainda a criação do da desistência, em que a imagem do mun- universo, o surgimento de Adão e Eva, do surge esmaecida e desvitalizada, mar e imagina a morte do oceano, fulminado de átonos murmúrios, e não de rugidos pela dúvida (compartilhada pelo narra- abissais. Poesia do estado sonambúlico, dor) de não saber quem é, nem o que em que até “as nuvens do céu voam dor- virá a ser. O poeta não deixa também de mindo” (p. 81). lamentar a vacuidade do sonho: Mas é num autor hoje esquecido, Moniz Barretto, que encontraremos o bastante “E eu sonhava e eu vi-me solitário, original “Ao Mar” (18). O poeta interpela Olhando o espaço balançando estrelas. o oceano, e, em dura reprimenda, censura- o por engolir tesouros e por ousar medir-se E esses sonhos que eu via, onde já foram com Deus. Como castigo, adverte, poderá Da apaixonada aurora? E foi-se o dia: 17 A. Azevedo, op. cit. ser transformado num riacho. Além disso, E eu que fui? E amanhã, quando outro sol 18 M. Barretto, 1868. o mar quis interpor-se ao progresso e à ci- Lançando-se em seu vôo arrebatado 19 J. Sousa-Andrade, 1857. ência, e falhou na tentativa: D’água que se abre para o cume azul

58 REVISTA USP, São Paulo, n.47, p. 52-60, setembro/novembro 2000 Novos sonhos prestar-me e nova esp’rança, força imantadora do capítulo II, que aponta Que eu serei amanhã, nesse outro dia?.. para “além, muito além daquela serra, que Eu não tenho amanhã: minha existência ainda azula no horizonte” (p. 12). Mas quem Toda acabo sempre hoje, embora triste, ocupa a jangada alencarina é Martim Soa- Mais triste o meu porvir me aterra sempre” res Moreno, de volta a sua origem lusa. (p. 124). Assim, como também ocorre na “Canção do Exílio” de Gonçalves Dias e nos “Frag- Finalmente, na clave de Gonçalves Dias, mentos” de Sousândrade, comemora-se entoa o canto de retorno à pátria, até perfa- menos o mar do que o fato de sair dele. E zer a comunhão mística entre si mesmo e a aqui aproximamo-nos do âmago da ques- matéria da terra natal: tão. Em geral, o mar que se celebra é mar de partida, cheio de fascínio e de promessas “Deus, ó Deus! diante do desconhecido. E o mar brasileiro Nas águas deste mar lava a minha alma, é um mar de chegada, marco de uma história Ao lado de meus pais deixa o meu corpo alheia que nele semeou seus signos opos- Nesta hora de rever o Maranhão, tos: a opulência vitoriosa do europeu e a As minhas terras, minhas ondas glaucas degradação do escravo africano. Oceano E o meu sol do equador, meu céu, da dominação e da vergonha, contra-indi- [minh’alma cado para aglutinar os projetos, tão caros Que é tudo isto que forma a minha pátria!” aos românticos, de afirmação nacionalista (p. 137). de um “grande povo”. Conforme vimos, Castro Alves pediu a Colombo que fechas- Partamos deste ponto para retornarmos se a porta de seus mares. De costas para o a outra origem, ou seja, à pergunta inicial mar travado, e ávido para lançar-se ao que de nosso trabalho: por que o mar é relativa- se oculta além, muito além daquela serra, o mente escasso no imaginário do Romantis- poeta não precisou da aventura marinha para mo brasileiro? Para respondê-la, recor- cultivar um imaginário de afirmação e con- demo-nos da prosa poética de Iracema (20), quista. Como um marinheiro a seco e às de José de Alencar, em que o protagonista avessas, navegou no desejo, talvez frustra- parece cindido entre dois pólos: a força cen- do, de fazer em terra firme a construção trífuga do capítulo I, na coragem de lançar- desse sonho sempre instável e inacabado se aos “verdes mares, bravios” (p. 11); e a que leva o nome de Brasil. 20 J. Alencar, 1979.

BIBLIOGRAFIA

Autores românticos

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