Um Mar À Margem: O Motivo Marinho Na Poesia Brasileira Do Romantismo
Total Page:16
File Type:pdf, Size:1020Kb
Comunicação apresentada no Con- gresso Internacional La Lusophonie: Voies/Voix Océaniques, Université Libre de Bruxelles, 16-19 de se- tembro de 1998. Um mar à margem: o motivo marinho na poesia brasileira ANTONIO CARLOS SECCHIN do Romantismo ANTONIO CARLOS Para procurar a resposta, percorremos a SECCHIN é ononom nom obra de 52 poetas (2) do Romantismo bra- onomn mon mon omnm sileiro, uma vez que o centramento exclu- onm onm onm onm onm onm onm onm sivo nos autores canônicos nos parecia in- suficiente para revelar a dimensão da inci- dência (ou da ausência) do mar na produ- ção do período. Foram lidos todos os poe- inha terra tem palmeiras, / mas que fizessem no título menção explíci- Onde canta o sabiá” (1). Nos ta ao mar, ou implícita, através de campos famosíssimos versos da metonímicos como praia, concha, areia, “Canção do Exílio”, Gonçal- barco. Desse total, nada menos do que 22 ves Dias fala de terra, aves, poetas não assinaram textos com motivo “Mestrelas, bosques: fala de quase tudo, mas marinho; dos 30 restantes (3), 23 possuem não do mar. A natureza do Brasil, na sua poemas efetivamente dedicados ao tema, e idealização exemplar, já surge celebrada nos demais o mar comparece na condição com o mar a menos. E nos outros poetas de coadjuvante, seja no contexto mais 1 G. Dias, 1957, p. 83. Para românticos? O mar teria sido elemento im- amplo de uma baía ou de um litoral, seja evitar excessiva remissão às portante na constituição de um espaço num cenário protagonizado pela lua. Pre- notas, doravante as citações serão acompanhadas, no cor- paradisíaco, ou, ao contrário, acabou re- sença, portanto, relativamente moderada, po do texto, do número da página do livro em que se en- traindo-se como um convidado modesto que vem de encontro às expectativas de uma contram. Atualizamos a orto- no banquete suntuoso do imaginário ro- comemoração dionísiaca da magia tropi- grafia de acordo com as nor- mas vigentes. mântico? cal, cuja imagem-clichê é a do coqueiro à 52 REVISTA USP, São Paulo, n.47, p. 52-60, setembro/novembro 2000 beira-mar plantado sob os eflúvios lângui- Ao ver-me se apressa, correndo pra mim!” dos da brisa matutina. Adiante, propore- (p. 148). mos uma hipótese para a explicação do fenômeno. Este é um dos raríssimos poemas român- Percorridos os poemas, percebemos a ticos que vinculam mar e Brasil. A recorrência de algumas configurações no edenização da paisagem está de todo ausen- tratamento do motivo marinho que atraves- te em “Gualter, o Pescador” (5), de Fagundes saram, com poucas alterações, as sucessi- Varela, peça pouco divulgada e das mais vas “fases” em que os historiadores divi- longas dedicadas ao motivo marinho. Divi- dem o Romantismo brasileiro, situado, de-se em quatro partes, num total de 541 grosso modo, entre meados da década de versos de estrofação variada, com predomí- 1830 e meados da de 1870. Podem-se resu- nio de quadras e quintilhas. O poema é muito mir tais configurações em: a) o mar como bem urdido desde o seu início, com a carac- objeto de narração; b) como substrato épi- terização algo mística do nascer do dia: co-histórico; c) como matéria lírica; d) como fonte de indagação filosófica. Sele- “Sobre as ondas de anil do mar profundo cionamos, para o exame desses aspectos, Surge a esfera de luz banhando as plagas um contingente de doze poetas do corpus De esplêndido clarão; preliminarmente pesquisado. O mundo acorda, e a natureza escreve O bloco narrativo se apresenta em duas Um canto ainda sobre o livro eterno versões não necessariamente excludentes: Da imensa criação” (p. 225) . ora concentra-se na atividade do pescador, ora enfatiza um drama amoroso em que o Na quinta estrofe surgem os persona- mar é cenário e também antagonista. O gens – o pescador, a esposa Ester e a filha. menos conflituoso desses textos é “O Can- O discurso temeroso da mulher infiltra a 2 A saber: *Almeida Freitas, *Ál- to do Pescador” (4) de Bittencourt Sampaio, vares de Azevedo, Ana Arruda, suspeita frente à placidez dos elementos *Aureliano Lessa, *Barão de que trata de uma plácida rotina, e não, como naturais. Presságios femininos de um lado, Paranapiacaba, *Bernardo Guimarães, *Bruno Seabra, se verá nos outros casos, de um acidente evidência climática e necessidade de bus- *Bittencourt Sampaio, *Carlos que transtorna o cotidiano. Em Sampaio, o car alimento, de outro, entram em conflito. Ferreira, *Casimiro de Abreu, *Castro Alves, *Clímaco Bar- mar é um lugar de onde certamente se Gualter lança-se ao mar, e o narrador re- bosa, Dias da Rocha, Ezequiel Freire, *Fagundes Varela, Félix retorna, e se retorna coberto de peixes, de corre a sensações visuais, táteis e auditivas da Cunha, *Ferreira de pátria e de paixão: para flagrar a eclosão da tormenta: Menezes, Francisco Otaviano, Franco de Sá, *Gentil Homem de Almeida Braga, Gonçalves “Na minha igara vogando de Magalhães, *Gonçalves “De mais a mais o espaço se escurece, Dias, *Guimarães Jr., *João Por estas ondas de anil, Repetem-se os trovões, o mar inquieto Silveira de Sousa, Joaquim Manoel de Macedo, *Joaquim Sentado na popa, sozinho cismando, Fustiga as penedias, Norberto, Joaquim Serra, José Deslizo, cantando Antônio Frederico da Silva, Um dilúvio de queixas e bramidos *José Bonifácio, o Moço, As glórias que alembram meu pátrio Brasil. Percorre os ervaçais e vai perder-se Junqueira Freire, *Juvenal Galeno, Laurindo Rabelo, Nas longas serranias!” (p. 230) . *Lobo da Costa, *Luís Delfino, /…/ Luís Gama, *Machado de Assis, Maciel Monteiro, Sinto fome? A rede lanço, O texto, a partir de então, adota uma *Manoel de Araújo Porto-Ale- Atiro a fisga e o anzol; gre, *Melo Morais Filho, técnica contrapontística, focalizando alter- *Moniz Barretto, Narcisa São tantos os peixes que apanho num lanço, nada e sucessivamente o pavor de Ester, a Amália, * Paulo Eiro, Pedro de Calazans, *Pedro Luís, Quirino Que as vezes me canso intensificação da tempestade e a luta de dos Santos, Salomé Queiroga, De estar todo o dia postado no sol. *Sousa-Andrade, dito Gualter contra a morte. A plasticidade Sousândrade, Teixeira de hiperbólica dos versos é um dos trunfos de Melo, Tobias Barreto, Trajano Galvão, Vitoriano Palhares e /…/ Varela na construção do cenário: *Xavier da Silveira. E volto a ver a choupana, 3 Os assinalados com asterisco Que o dia inteiro não vi; “O temporal rebenta! Escuras vagas na nota anterior. Encontro nas praias sentada a indiana, Pulam sem freios nas marinhas plagas 4 B. Sampaio, 1860. Que alegre, que ufana Como nos ermos os corcéis bravios; 5 F. Varela, 1962. REVISTA USP, São Paulo, n.47, p. 52-60, setembro/novembro 2000 53 Tombam torrentes d’amplidão do céu, amoroso. O primeiro transforma aquilo que Os ventos berram do bulcão no véu a princípio seria o singelo passeio/deva- Em longos tresvarios!” (p. 233). neio de uma virgem à beira-mar num acon- tecimento marcado pela morte em decor- A seguir, seis estrofes nos projetam no rência de motivo banal – o ímpeto de recu- centro do conflito, através de minuciosas perar uma rosa tragada pelo oceano. O jogo descrições do duplo sofrimento, o da mu- de aproximação e afastamento entre a moça lher na terra, e o do homem no mar. Para- e o mar desenha-se numa espécie de tor- doxalmente, Ester afoga-se na beira da neio amoroso: praia, e Gualter consegue salvar-se das entranhas do oceano, sem saber da morte “ Vem a onda bonançosa, da esposa. Varela estabelece um contraste Vem a rosa; entre a tempestade, já amainada, e as con- Foge a onda, a flor também. vulsões da alma humana, de mais difícil Se a onda foge, a donzela controle: Vai sobre ela! Mas foge, se a onda vem” (p. 282). “A tormenta cessou, mas ai! Na terra As tormentas do céu são as menores! Não seria exagero enxergar nessa dan- Uma réstia de luz as doma e pisa ça algo da ordem da sexualidade. A vir- Como ao bravo corcel que o freio abate; gem quer aparentemente conservar sua Mas as que surgem nos humanos peitos rosa, mas sente irresistível fascínio pela E a vida cavam nos medonhos choques, hipótese de perder-se perdendo-a. Obser- Essas são longas – eternais – sem luzes, vemos que, em meio às ondas, a virgem Nem brisas, nem manhã, que a fúria “Nem com tanta / Presteza lhes quer fu- [apague!” (p. 241). gir” (p. 282). Na estrofe seguinte a onda, masculinizada em “mar”, se encapela e Ao divisar o cadáver de Ester, Gualter, realiza o gesto simultâneo de posse e de arrastando a filha, atira-se de um precipí- morte: “A virgem bela / Recolhe e leva cio. A indiferença da natureza diante da consigo” (p. 282). Ao fim do poema, a flor tragédia é do suicídio é descrita com toques perdida é o que se encontra como resto da de requinte e crueldade: consumação do encontro entre o denso mar e a doce virgem: “O oceano é discreto, e o que ele encerra Dorme no sono de profundo olvido. “Ia a noite em mais de meia: Dentre as grimpas azuis, entre neblinas Toda a praia perlustraram, A lua vem se erguendo branca e pura Nem acharam Como a odalisca que se eleva pálida Mais que a flor na branca areia” (p. 282). Da banheiras de mármore do serralho! – Boa-noite, belo astro! – ergue-te asinha!” Curiosamente, um outro poema de Gon- (p. 244). çalves Dias trabalha a mesma questão, e de modo talvez mais explícito. Trata-se do Ester foi a primeira a morrer, mas um famoso “Não me Deixes” (8), em que uma cadáver ainda é pouco para a sofreguidão flor suplica à correnteza que a arraste, e, ao romântica.