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DANIEL VIEIRA SARAPU

Para salvar a liberdade através da : a justiça como real-liberdade-para-todos proposta por Philippe Van Parijs

Dissertação apresentada ao Programa de pós- graduação em Direito da Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais, como requisito parcial para a obtenção do título de Mestre na Área de Concentração de Teoria do Direito.

Orientador: Marcelo Campos Galuppo

BELO HORIZONTE MAIO - 2007

1

Dissertação apresentada por Daniel Vieira Sarapu ao Programa de pós-graduação em Direito da Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais para obtenção do título de mestre em Direito, intitulada “Para salvar a liberdade através da solidariedade: a justiça como real-liberdade-para-todos proposta por Phillippe Van Parijs”, e ______com nota ______em data de ______de ______de 2007, perante banca composta pelos professores:

______Prof. Dr. Marcelo Campos Galuppo (orientador)

______

______

2

“You may say I'm a dreamer But I'm not the only one I hope someday you'll join us And the world will live as one” John Lennon

3

RESUMO

O presente trabalho propõe-se a investigar como a liberdade é definida e realizada segundo as teorias da justiça concebidas no século XX. A hipótese central de trabalho é que a liberdade concebida durante a modernidade possui quatro dimensões ou facetas e que uma aparente contradição entre liberdade e justiça que algumas dessas teorias sustentaram ocorre em função de uma compreensão parcial do significado do conceito de liberdade. Por sua vez, uma teoria da justiça que consiga elaborar um conceito de liberdade que articule essas quatro dimensões conseguirá prover um critério de realização da justiça que implique também na realização da liberdade. O fundamento teórico de elaboração da hipótese encontra-se na teoria de John

Rawls sobre a possibilidade de conjugação harmônica entre justiça e liberdade, por meio dos princípios de justiça obtidos segundo os procedimentos metodológicos definidos pela justiça como imparcialidade. No entanto, também a coerência e a consistência dos resultados práticos dessa teoria serão investigados segundo seus próprios critérios, permitindo-se, assim, a sua reformulação nos pontos em que as instituições sociais colocam justiça e liberdade em choque. Essa específica discussão será realizada por Phillippe Van Parijs. Segundo a sua teoria da real-liberdade-para-todos, serão fornecidos os critérios que permitem articular justiça e liberdade de modo íntimo, tomando-se como idéia central o conceito de conjunto de oportunidades (opportunity set) e sua distribuição segundo o critério leximin. Os desdobramentos da aplicação de sua teoria implicarão a concepção de um arranjo institucional que atribua uma Renda Básica Universal aos membros da sociedade, como mecanismo privilegiado de realização da articulação entre liberdade e justiça, em comprovação, assim, à hipótese de trabalho acima definida.

4

ABSTRACT

The following paper intends to research how freedom is defined and achieved according to twentieth century’s theories of justice. The main hypothesis is that on modern times the concept of freedom has four dimensions, or shapes, and that the apparent contradiction between freedom and justice that some of those theories sustained only happens because of an one-dimensional understanding of freedom’s meaning. One the other hand, a theory that is able to develop a concept of freedom that fits those four dimensions together will provide a criterion where the justice’s achievement means the freedom’s achievement. The hypothesis’ theoretical grounds can be found on John Rawls’ theory about the possibility of harmonic teamwork between justice and freedom, through the two principles of justice found in the justice as fairness. Nevertheless, also the coherence and the consistence of this theory’s practice outcomes will be investigated, according to its own criterion, allowing, thus, its restatement on those topics where institutional set leads to a conflict between freedom and justice. This specific discussion will be done by Phillippe Van Parijs. According to his real- freedom-for-all theory, the criterion that allows us to put together freedom and justice in a closer way will be provided by the idea of opportunity set and its distribution according to a leximin fashion. The consequences of the application of such theory will lead to an institutional set that implies an Universal Basic Income to all society’s members, as a special way to put together freedom and justice in a coherent system, confirming, thus the hypothesis of this paper.

5

SUMÁRIO

1 INTRODUÇÃO .08

2 AS DIMENSÕES DA LIBERDADE MODERNA .13 2.1 Os sentidos do termo liberdade .13 2.2 A liberdade para os antigos .20 2.2.1 Aristóteles e a liberdade como eudaimonia .22 2.2.2 Epicuro e a descoberta da liberdade interior .23 2.2.3 O arbítrio de Santo Agostinho .25 2.3 A liberdade para os modernos .30 2.3.1 A fundação do sujeito moderno por René Descartes .32 2.3.2 Thomas Hobbes e a mecânica da liberdade .35 2.3.3 A inauguração do liberalismo por John Locke .43 2.3.4 Liberdade e autonomia segundo Rousseau .50 2.3.5 A vontade livre segundo Imannuel Kant .59 2.4 A polissemia da liberdade moderna .71

3 ABORDAGENS CONTEMPORÂNEAS DE TEORIA DA JUSTIÇA .75 3.1 Quatro modos de se responder à mesma pergunta .75 3.2 O utilitarismo .78 3.2.1 Origens e caracterização do utilitarismo .80 3.2.2 O utilitarismo enquanto teoria da justiça .87 3.2.3 Utilitarismo, direitos e liberdades .94 3.3 O marxismo .96 3.3.1 Materialismo histórico, materialismo dialético e liberdade em Marx .100 3.3.2 O fim da exploração e da alienação no projeto comunista .108 3.3.3 Características de uma teoria da justiça de cunho marxista .111 3.4 O libertarianismo .114 3.4.1 Os argumentos em favor de uma defesa séria da liberdade ou por que o Estado deve ser reduzido a uma dimensão mínima .118 3.4.2 Liberdade, direitos individuais e propriedade .127 3.4.3 Como o libertarianismo lida com a desigualdade? .134 3.5 O liberal-igualitarismo de John Rawls .138 3.5.1 O construtivismo kantiano e o construtivismo político na base do pensamento de Rawls .140 3.5.2 O arcabouço teórico da teoria da justiça de Rawls .156 3.5.3 A crítica comunitarista .166 3.6 Sobre a relação entre liberdade e justiça nas teorias contemporâneas .173

6 4 A PROPOSTA DE UMA REAL-LIBERDADE-PARA-TODOS .181 4.1 Questionamentos iniciai .181 4.2 O que é a real-liberdade? .185 4.3 Com Rawls, contra Rawls .191 4.3.1 Os vários princípios da diferença .193 4.3.2 Os surfistas de Malibu .201 4.4 Uma proposta audaciosa .207 4.4.1 A Renda Básica Universal no Brasil .217 4.5 Sobre a relação entre justiça e liberdade, ou ainda, como distribuir justiça distribuindo liberdade .220

5 CONCLUSÃO .224

BIBLIOGRAFIA .232

ANEXO A .249

7 1 INTRODUÇÃO

O presente trabalho propõe-se a investigar como a liberdade é definida e realizada segundo as teorias da justiça concebidas no século XX. A hipótese central de trabalho é que a liberdade concebida durante a modernidade possui quatro dimensões ou facetas e que uma aparente contradição entre liberdade e justiça que algumas dessas teorias sustentaram ocorre em função de uma compreensão parcial do significado do conceito de liberdade. Por sua vez, uma teoria da justiça que consiga elaborar um conceito de liberdade que articule essas quatro dimensões conseguirá prover um critério de realização da justiça que implique também na realização da liberdade.

O fundamento teórico de elaboração da hipótese encontra-se na teoria de

John Rawls sobre a possibilidade de conjugação harmônica entre justiça e liberdade, por meio dos princípios de justiça obtidos segundo os procedimentos metodológicos definidos pela justiça como imparcialidade (2000, 2000b, 2002, 2003). No entanto, também a coerência e a consistência dos resultados práticos dessa teoria serão investigados segundo seus próprios critérios, permitindo-se, assim, a sua reformulação nos pontos em que as instituições sociais colocam justiça e liberdade em choque.

Essa específica discussão será realizada por Phillippe Van Parijs (1995,

1997). Segundo a sua teoria da real-liberdade-para-todos, serão fornecidos os critérios que permitem articular justiça e liberdade de modo íntimo, tomando-se como idéia central o conceito de conjunto de oportunidades (opportunity set) e sua distribuição segundo o critério leximin. Os desdobramentos da aplicação de sua teoria implicarão a concepção de um arranjo institucional que atribua uma Renda Básica Universal aos membros da sociedade, como mecanismo privilegiado de realização de articulação

8 entre liberdade e justiça, em comprovação, assim, à hipótese de trabalho acima definida.

Assim, o segundo capítulo do trabalho se inicia com a apresentação do debate sobre a questão da liberdade no pensamento político contemporâneo. Serão delimitadas as fronteiras conceituais que definem, em primeiro lugar, como a liberdade moderna se distingue da liberdade concebida na antiguidade, e, em seguida, como o pensamento moderno fragmentou a liberdade em quatro distintas dimensões ou facetas. Após, tratar-se-á do itinerário que vai da compreensão antiga à elaboração moderna do conceito de liberdade.

O conceito de liberdade na antiguidade será explicitado em duas etapas distintas, quais sejam a do pensamento filosófico grego e do pensamento filosófico- teológico cristão. Serão apresentadas as condições culturais que permitiram a reflexão filosófica sobre a liberdade entre os gregos e, em seguida, como Aristóteles vinculou-a ao conceito de eudaimonia ou felicidade por meio da contribuição à pólis. Na seqüência, mostrar-se-á a reflexão de Epicuro relativa à descoberta da felicidade no espaço interior do homem como modo individual de realização dessa liberdade, indicando, assim, um deslocamento que será fundamental na posterior compreensão moderna acerca da liberdade. O encerramento da concepção antiga de liberdade será realizado por meio da exposição do pensamento de Santo Agostinho, que descobre no livre-arbítrio o meio privilegiado de realização da liberdade, identificando, assim, a liberdade ao exercício da vontade.

O segundo capítulo segue com a exposição dos eventos histórico-culturais que levaram ao advento da modernidade, apresentando também como René Descartes capta o significado dessa nova condição na elaboração filosófica do conceito de sujeito capaz de conhecer e querer. A seqüência do texto mostra quais foram os principais

9 contornos que o pensamento moderno deu ao conceito de liberdade, tomando-se por marco as reflexões de Thomas Hobbes, John Locke, Jean-Jacques Rousseau e

Immanuel Kant. Cada uma das quatro dimensões ou facetas do pensamento moderno acerca da liberdade será associada à respectiva obra desses autores. Assim, o mecanicismo da filosofia hobbesiana definirá a dimensão material da liberdade, enquanto em Locke a preservação da individualidade natural contra a ação do Estado é a marca da liberdade negativa. Já em Rousseau, verifica-se a dimensão positiva da liberdade, com a vontade geral que restabelece a igualdade política entre os homens, enquanto Kant fornece os fundamentos da dimensão formal da liberdade, como ausência de constrangimentos exteriores ao exercício da vontade, pondo-se fim, desse modo, à primeira etapa do trabalho.

O terceiro capítulo irá mostrar como as diferentes facetas da liberdade serão privilegiadas em cada uma das teorias de justiça contemporâneas. Será salientado como a consagração de apenas alguns dos aspectos da liberdade em detrimento dos demais foi responsável pelas aparentes contradições entre justiça e liberdade que o pensamento político sustentou ao longo dos séculos XIX e XX. Assim, serão apresentados e discutidos o utilitarismo, o marxismo e o libertarianismo, concepções de justiça que privilegiam apenas uma ou algumas das dimensões da liberdade. Respectivamente, será demonstrado como o utilitarismo se vincula à dimensão material da liberdade, o marxismo à dimensão positiva da liberdade e o libertarianismo às dimensões formal e negativa da liberdade.

O capítulo se encerra com a apresentação do pensamento liberal- igualitarista de John Rawls, que representa a primeira tentativa de firmar um compromisso entre liberdade e justiça na teoria política contemporânea. Serão demonstrados os fundamentos e os recursos metodológicos da justiça como eqüidade,

10 bem como as críticas que se levantaram contra ela, em especial por parte de autores que se posicionam contra uma visão liberal da justiça, a denominada corrente comunitarista.

O último capítulo se destina a testar a plausibilidade da teoria de Rawls para fornecer o critério mais adequado da relação entre justiça e liberdade no quadro das sociedades contemporâneas. Serão apontados os pontos em que tal teoria é vulnerável em relação a esse compromisso, por deixar de empregar todos os recursos que lhe estão disponíveis no fornecimento de um critério de justiça que esteja em conformidade com juízos morais refletidos. O parâmetro dos questionamentos será definido pela real-liberdade-para-todos, ou real-libertarianismo, tal como defendida por Phillippe Van Parijs, e implicará tanto numa revisão do caráter ambíguo do princípio da diferença, bem como no reconhecimento de que a atribuição de uma

Renda Básica Universal afigura-se como mecanismo institucional indispensável para uma realização mais íntima do compromisso entre justiça e liberdade nas sociedades contemporâneas.

O capítulo será finalizado com a apresentação da Renda Básica Universal, segundo defendida por Phillippe Van Parijs, em seus aspectos teóricos e práticos e com uma exposição da fundamentação política e jurídica da proposta de implementação dessa medida no Brasil, em especial a partir do trabalho do economista e Senador da República acerca do tema.

Após esse percurso, será possível reunir fundamentos para se retornar à discussão levantada pela hipótese de trabalho, acerca da possibilidade de articulação entre justiça e liberdade no pensamento contemporâneo, e concluir pela possibilidade de tal compromisso, condicionado, no entanto, a um engajamento das instituições sociais em promover a atribuição da Renda Básica Universal aos seus cidadãos como

11 forma de se qualificar como justas as desigualdades sociais existentes nas sociedades atuais.

12 2 AS DIMENSÕES DA LIBERDADE MODERNA

2.1 Sentidos do termo liberdade

John Lennon, Paul McCartney, George Harrison e Ringo Starr, na década

de 1960, produziram um repertório de letras musicais que encantaram o mundo. Seus

versos expressavam os anseios de uma geração que buscava “liberdade”1. Era o auge

da “Guerra Fria” e o mundo convivia com duas únicas opções político-econômicas:

permitir a presença do modo de produção capitalista, submetido, todavia, a uma forte

disciplina estatal; ou encampar a aventura de uma revolução de cunho socialista cuja

conseqüência seria a transferência da titularidade dos meios de produção para o

Estado.

1 A título de exemplo, podem ser lembradas as canções “Paperback writer”, “Taxman”, “She´s leaving home”. Em “Paperback writer” (Escritor de folhetim) há a alusão ao fato de que uma boa remuneração, a estabilidade ou o prestígio não superam o desejo de realização pessoal na escolha da profissão de cada um: ‘It's the dirty story of a dirty man / And his clinging wife doesn't understand. / His son is working for the Daily Mail, / It's a steady job but he wants to be a paperback writer’ (‘É uma história imunda de um ser imundo / E sua esposa pegajosa que não compreende / Sua filho trabalha para o Correio Diário, / É um emprego firme mas ele quer ser um escritor de folhetins’). “Taxman” (O Fiscal) captura, sob linguagem poética, como a arrecadação fiscal do Estado se faz presente em todas as dimensões da vida das pessoas: ‘Let me tell you how it will be; / There's one for you, nineteen for me. / 'Cause I’m the taxman, / Yeah, I’m the taxman. / Should five per cent appear too small, / Be thankful I don't take it all. / 'Cause I’m the taxman, / Yeah, I’m the taxman. / if you drive a car - I’ll tax the street; / if you try to sit - I’ll tax your seat; /if you get too cold - I’ll tax the heat; / if you take a walk - I'll tax your feet.’ (‘Deixe-me te dizer como vai ser / É um para você, dezenove para mim / Porque eu sou o fiscal / Yeah o fiscal / Se cinco por cento parece pouco, / fique grato que eu não levo tudo / Porque eu sou o fiscal / Yeah o fiscal / se você dirige um carro - eu vou confiscar a rua / se você tentar sentar - eu vou confiscar o assento / se você ficar com frio – eu vou confiscar o calor / se você for caminhar – eu vou confiscar seus pés’). “She is leaving home” (Ela está indo embora de casa) retrata a situação dos jovens que não suportam a rigidez dos padrões morais vivida no ambiente familiar e decidem fugir de casa. “She (we gave her most of our lives) / is leaving (sacrificed most of our lives) / home (we gave her everything money could buy) / She's leaving home after living alone for / so many years (bye bye) (…) She (what did we do that was wrong) / is having (we didn't know it was wrong) / fun (fun is the one thing that money can't buy) / Something inside that was always denied for / so many years (bye bye) / She's leaving home (bye bye) (‘Ela (nós dedicamos toda nossa vida a ela) / está indo embora (sacrificamos toda nossa vida) / de casa (nós demos a ela tudo o que o dinheiro poderia comprar) / Ela está indo embora de casa após viver sozinha por / tantos anos (tchau tchau) (…) Ela (o que nós fizemos de errado) / está (nós não sabíamos que estávamos errados) / se divertindo (diversão é uma coisa que o dinheiro não pode comprar) / Algo dentro dela que foi sempre negado por / tantos anos (tchau tchau) / Ela está indo embora de casa (tchau tchau)’) 13 Cada uma a seu modo, as duas alternativas representavam concepções de

justiça que se realizariam por meio de uma intensa intervenção do Estado na economia

e, em especial, na vida dos indivíduos. Seja para proporcionar o maior nível de bem-

estar possível à população, seja para manter as condições materiais de todos os

indivíduos em níveis equivalentes, as exigências da justiça implicavam um grande

sacrifício das liberdades individuais. Nesse contexto, o quarteto de Liverpool

encontrava a inspiração para suas canções: a busca de um mundo em que fosse

possível a cada pessoa levar a sua vida como bem entendesse, sem que seu destino

fosse inteiramente determinado por pressões da coletividade ou do Estado.

Após os percalços do Estado de Bem-Estar Social2 e o colapso do

Socialismo Real3, um arranjo político e econômico contrário às formas de dirigismo e

2 O Estado de Bem-Estar social aparece na literatura sob diversas nomenclaturas, tais como Estado-providência, Welfare State, Estado assistencialista, etc... Todas elas se referem a uma proposta de configuração para o Estado em que a tarefa de recolher, administrar e distribuir os recursos produzidos pela sociedade, visando a crescente realização de uma justiça material entre os cidadãos, ganha destaque. Para tanto, o Estado de Bem-Estar Social conterá as seguintes características: 1) enfoque na realização direta pelo Estado de funções consideradas indispensáveis para a garantia de uma justiça social, tais como saúde, educação, habitação, saneamento básico, transportes, energia e telecomunicações, etc...; 2) grande carga tributária, a fim de que haja um aporte de massivos recursos para a realização das políticas sociais; 3) forte intervenção do Estado na economia, de modo a controlar os possíveis efeitos negativos decorrentes das oscilações cíclicas produzidas pelo sistema de livre mercado; 4) crescimento da burocracia e da estrutura do Estado, pois os programas sociais exigem um maior número de funcionários e de órgãos no desempenho das funções assumidas; 5) atenuação dos conflitos políticos entre as classes sociais. O declínio do Estado Social decorre de um esgotamento desse modelo, seja no que diz respeito ao seu cabimento, seja no que tange à sua viabilidade econômica. De um lado, tem-se o reconhecimento generalizado de que a sociedade de massas que acompanha o Estado Social é responsável por um processo de aniquilamento da subjetividade; de outro, verificou-se que a manutenção do aparato Estatal responsável por financiar as propostas do Estado Social não era sustentável economicamente, levando os diversos Estados nacionais a graves crises nessa esfera. Para uma melhor caracterização do Estado Social sua ascensão e declínio conferir Santos (1994, 2000), Offe (1994), Hobsbawn (1996). 3 O Socialismo Real foi o sistema político introduzido nos países que passaram por revoluções de cunho político socialista cujos preceitos se inspiram na obra de Marx, continuada por Lênin, mas que de fato se adaptaram às contingências históricas e culturais próprias do momento revolucionário. Suas principais características são: 1) a ascensão de regimes políticos autoritários que exerciam a liderança política e determinavam os rumos econômicos do Estado; 2) a planificação econômica a partir de um modelo centralizado; 3)a transferência da titularidade dos bens de produção para o Estado; 4)o isolamento político e econômico em relação aos países que adotavam economia de mercado. As experiências históricas ocorridas no século XX de Estados que adotaram o sistema político-econômico socialista têm início com a Revolução Russa de 1917. O sucesso do golpe político e, posteriormente, dos resultados econômicos e sociais imediatos obtidos nas primeiras décadas de governo, inspirou diversas outras movimentações de cunho socialista ao redor do mundo. Durante e após a segunda guerra mundial, revoluções socialistas eclodiram em todos os continentes, em especial Leste Europeu, Ásia, África e América Latina, constituindo-se um verdadeiro bloco de países socialistas. Entretanto, a incapacidade das economias planificadas fazerem frente ao desenvolvimento econômico e tecnológico dos países de sistema de livre mercado, bem como a permanência ad eternum da supressão das liberdades e garantias individuais em nome do ‘sucesso’ da Revolução face ao ‘inimigo’ capitalista, tornaram a sustentação desse modelo inviável. Ao 14 de ingerência do Estado no mercado e na esfera individual ganhou força durante os

anos 1980 e 1990. Nesse período, os países industrializados – agora adotando cânones

liberais para seus sistemas político-econômicos – obtiveram altos índices de

crescimento econômico, proporcionados por intenso desenvolvimento tecnológico e

por abundância de mão-de-obra decorrente dos movimentos migratórios. No entanto, o

crescimento da produção ocorreu sem um respectivo aumento na oferta de emprego,

gerando maior concorrência no mercado de trabalho. Isso trouxe o denominado

desemprego estrutural4 aos países desenvolvidos (OFFE, 1994).

Em contrapartida, os orçamentos dos Estados deixaram cada vez mais de

contar com recursos destinados a serviços e benefícios públicos ligados à proteção do

emprego e à assistência social para a população (OFFE, 1994). Assim, ao final do

século XX e início do século XXI, mesmo os países ricos vieram a assistir ao

reaparecimento da miséria em suas sociedades (SANTOS, 1994; HOBSBAWN,

1996).

Apesar dessas conseqüências, a fonte que inspirou e permitiu a adoção

generalizada de um capitalismo radical no mundo industrializado é a mesma que se

encontra nas letras dos Beatles: a afirmação de que o homem, em sua esfera

individual, deve ter garantido o direito de exercer sua vontade livremente, segundo

aquilo que ele entenda ser o melhor para si. Em virtude dos excessos da presença

final do século XX, alguns eventos marcaram a falência do sistema socialista: 1) o fim do regime socialista na Alemanha Oriental e a reunificação dos dois países separados pelo ‘Muro de Berlim’; 2) A ascensão do líder Mikhail Gorbachev e a instituição das políticas da glasnost e da perestroika, que representaram o fim do isolamento do bloco comunista em relação aos países capitalistas. A abertura ao intercâmbio com o mundo capitalista expôs as deficiências do sistema socialista soviético e, poucos anos depois, assistiu-se o esfacelamento da U.R.S.S.; 3) A adoção de práticas e políticas ligadas à abertura de mercado para o investimento externo, de caráter notadamente capitalista, por parte da China. Ao promover reformas de incentivo ao livre comércio, a China quebrou os cânones ortodoxos do socialismo científico, ao ponto de desfigurar seu sistema como tal. A história Socialismo Real no século XX encontra-se mais bem detalhada em Hobsbawn (1996). 4 O desemprego estrutural ou estruturado caracteriza-se quando o desenvolvimento de inovações tecnológicas permite que haja a manutenção ou a ampliação da taxa de crescimento econômico sem que haja a conseqüente absorção dessa população em empregos formais, face à possibilidade de eliminação de tarefas outrora realizadas por homens e agora desempenhadas por máquinas. 15 coletiva na vida individual, busca-se agora a defesa da dimensão privada que se perdeu

nos anos anteriores. E, assim, a liberdade de cada um passou a ser uma barreira que o

Estado não mais poderia transpor sem justificativas, tornando-se condição da justiça

por meio de um sistema de direitos chamados “fundamentais” ou “individuais”5.

(BOBBIO, 1992)

Ao se verificar qual o papel assumido pelo Estado em cada um desses

sistemas políticos, bem como os efeitos sociais correspondentes a cada um dos modos

de produção econômicos predominantes, os contornos do que se tornou a “liberdade

liberal” passaram a ser questionados. Pois, se a “liberdade” para cada um escolher os

rumos e caminhos de sua vida implicaria a adoção de um capitalismo ortodoxo e

radical, incapaz de garantir a todos (inclusive à maioria) os meios necessários à

expressão dessa vontade, surgiu a pergunta: que liberdade é essa que permite ao

homem tudo fazer, mas que o priva de toda e qualquer possibilidade de dar vazão às

suas vontades por não lhe assegurar as condições materiais mínimas de existência

(VAN PARIJS, 1995)? Seria a liberdade incompatível, portanto, com a justiça?

Philippe Van Parijs (1993, 1995, 1996, 1997, 2003) propõe-se a analisar o

que gira em torno dessas perguntas, bem como das relações entre as matrizes de teoria

da justiça e as respectivas concepções de liberdade. Na introdução de um de seus mais

importantes trabalhos – What (if anything can) justify capitalism (1995) – assim

expressa essa preocupação:

Freedom is of a paramount importance: we want – or at any rate many of us want – our society to be a free society. But can, or even must such a society be a capitalist

5 A noção de direitos “fundamentais” ou “individuais” remonta ao jusnaturalismo iluminista do século XVIII. A crença na existência e no valor filosófico da existência desses direitos foi abalada durante o século XIX e parte do século XX por força da afirmação da metodologia jurídica positivista, da crítica utilitarista e da crítica marxista. Contudo, após a segunda guerra mundial, a literatura filosófica confere a esse tema amplo destaque nas discussões relativas à fundamentação da moral e do direito. 16 society? Or can, or even must, such a society be a socialist society6 (tradução nossa) (VAN PARIJS, 1995, p.5)

Com o exemplo da “liberdade de coçar o nariz”7, Van Parijs (1995)

esclarece as condições fundamentais para se ter uma sociedade livre. Segundo o autor,

para que haja uma sociedade livre, as ações que dizem respeito à individualidade de

cada um não podem estar submetidas a decisões tomadas pela coletividade ou pela

comunidade política, mesmo que essas regras tenham sido produzidas

democraticamente. Uma sociedade em que os rumos da vida privada dos indivíduos

decorrem de escolhas da coletividade é o extremo oposto de uma sociedade livre. Isso

porque, em uma concepção coletivista, as vontades pessoais seriam alienadas e

entregues ao ente político.

Portanto, um primeiro requisito para que se tenha uma sociedade livre é a

condição de que cada um dos indivíduos tenha o poder de decidir sobre os rumos de

sua própria vida sem que venha a sofrer coerções externas da sociedade – condição

denominada por Van Parijs (1995) “propriedade-de-si”. Desse modo, uma sociedade

livre exige que cada uma das individualidades que a compõem deva ter garantido um

campo de ação em que possa exercer livremente sua autonomia individual.

Entretanto, esse sentido atribuído à liberdade é fruto de uma particular

concepção de justiça que surge com a idade moderna (VAZ, 1991; VAN PARIJS,

6 “Liberdade é de suma importância: nós queremos – ou em algum nível, muitos de nós queremos – que nossa sociedade seja uma sociedade livre. Mas tal sociedade pode, ou mesmo deve, ser uma sociedade capitalista? Ou tal sociedade pode, ou mesmo deve, ser uma sociedade socialista?” 7 “In situation A, each of us can decide for herself whether to scratch her nose. In situation B, we decide together, in perfectly democratic fashion, whether nose-scratching is permissible. Assuming (plausibly) that variations in nose size can be deemed irrelevant, it can be said that in both situations the weight of each person in decision-making is identical. But surely the freedom to scratch (or not to scratch) one’s nose is not. Each of us enjoys this freedom in situation A. But there is no such freedom in situation B, where scratching is subjected to collective approval.” (VAN PARIJS, 1995, p.8) (“Na situação A, cada um de nós decide por si próprio se coça seu nariz. Na situação B, nós decidimos em conjunto, de modo perfeitamente democrático, se o ato de coçar o nariz é permitido. Assumindo (plausivelmente) que variações no tamanho dos narizes podem ser consideradas irrelevantes, pode-se dizer que em ambas situações o peso de cada pessoa no processo de tomada de decisão é idêntico. Mas certamente a liberdade de coçar (ou não coçar) seu nariz não o é. Cada um de nós desfruta dessa liberdade na situação A. Mas não há tal liberdade na situação B, em que o coçar é submetido à aprovação coletiva.” - tradução nossa) 17 1995; GALUPPO, 2001; FARAGO, 2005). Farago (2005) mostra que não foi sempre

que os indivíduos serviram de medida para verificação da liberdade:

A preocupação fundamental dos Antigos era saber qual é o desejável supremo, o Soberano Bem que cada um poderia desejar para si mesmo a fim de atingir a eudaïmonia, a felicidade, a plenitude da realização. O agathon grego e o bonum latino estão no âmago da ética antiga e medieval, bem como a filosofia política está estreitamente ligada a ela. Os Modernos, em compensação, realizaram um deslocamento da questão do bem em direção à questão do justo. Pode-se dizer que a afirmação da prioridade de um sobre o outro traça uma linha divisória entre os pensamentos morais e políticos dos Antigos e dos Modernos. Os Modernos não se colocam mais a questão de saber como devo agir para ser, eu, feliz, para atingir o meu bem, mas a de saber quais são as condições que tornam possível, em geral, a busca da felicidade pessoal. O deslocamento foi feito abandonando-se as concepções substanciais do bem para voltar a atenção às noções de autonomia moral e de liberdade individual. Esta nova problemática da questão moral envolve uma novidade radical em relação à Antigüidade, a saber, uma distinção entre a moral pessoal e a esfera do político. (FARAGO, 2004, p.233)

A história do conceito moderno de liberdade desenvolve-se, portanto, em

íntima relação com o pensamento genericamente batizado de “liberal”8. O pensamento

de Van Parijs (1995, 1996, 1997) filia-se explicitamente a essa tradição –

principalmente por sustentar a propriedade-de-si como uma das condições essenciais

para a realização da justiça. No entanto, ainda segundo o autor, essa liberdade que é

definida e apresentada pela concepção liberal não é uma condição suficiente, pois

sobre ela paira o questionamento de não ser justa. Assim, a investigação que se

desenrola, neste primeiro capítulo, busca apresentar como a questão da liberdade – tal

como entendida pelo liberalismo – coloca-se no discurso filosófico, desde a trajetória

que levou a seu surgimento até suas principais formulações no período moderno. Esse

resgate permitirá que sejam apresentadas as quatro diferentes facetas da liberdade

assumidas por esse conceito – formal9, material10, negativa11 e positiva12 – assim como

8 Em linhas gerais, o liberalismo aduz que não há uma concepção prévia ou superior do que seja uma “vida boa”, devendo-se, portanto, adotar uma postura de igual respeito em relação a todas as crenças e escolhas pessoais dos indivíduos (RAWLS, 2000). 9 A liberdade formal está ligada à garantia do exercício autônomo da vontade, sem que haja uma interferência externa direta na manifestação da subjetividade de cada um. 18 os dois conflitos a que os respectivos antagonismos dão origem: liberdade formal x

material e liberdade negativa x liberdade positiva.

Assim, neste primeiro capítulo serão trilhados os caminhos que criaram as

condições para se compreender a liberdade moderna – como autonomia do indivíduo –

em substituição ao modo antigo de se conceber a liberdade – como soberania do ente

coletivo. Será mostrado também de que modo a liberdade moderna pôde ser

compreendida tanto por meio da capacidade formal de exercício da vontade (liberdade

formal), quanto como um poder de ter as condições, sejam meios materiais ou

oportunidades, de se concretizar o que se quer.

Para realizar a primeira etapa, serão traçadas as marcas que definem a

liberdade para os antigos, tal como formuladas pelo pensamento grego clássico; em

seguida, será analisada a concepção da escola epicurista que identifica liberdade com

uma capacidade de ação interior que leva à felicidade; no mundo cristão, será

abordada a filosofia de Agostinho e a relação estabelecida entre vontade, arbítrio e

liberdade na ação interior do homem, gerando o embrião do pensamento moderno

sobre a questão da autonomia. Em seguida, serão apresentados os pensamentos que,

em linhas gerais, ilustram e consolidam as facetas modernas da liberdade: o

surgimento do individualismo em Descartes; a contribuição de Thomas Hobbes para a

percepção da dimensão material da liberdade; a construção, por John Locke, da

dimensão privada da liberdade como espaço privilegiado de seu exercício; por fim, a

formulação da noção de liberdade como autonomia, segundo as concepções de

Rousseau e Kant.

10 A liberdade material consiste em ter acesso a meios que possibilitam que o exercício da vontade não seja constrangido pelas circunstâncias concretas. 11 Liberdade negativa consiste em não estar sujeito à interferência da coletividade quando da definição dos rumos a serem tomados pelo indivíduo em sua vida privada. 12 Liberdade positiva consiste em realizar a liberdade por meio da participação ativa na definição dos rumos tomados pela coletividade. 19

2.2 A liberdade para os antigos

Chauí (1992) entende que a compreensão da liberdade para os antigos esbarrava em um horizonte pré-estabelecido pela religião. Havia a crença de que o homem e o mundo encontravam-se inseridos em um universo (kosmos) racionalmente ordenado segundo um princípio que lhe proporcionaria unidade. Manter essa unidade dependeria da capacidade de compreensão e adequação à ordem física e religiosa. A medida (métron) da liberdade para o homem surgia da resignação à pretensão de colocar-se em pé de igualdade com os deuses, evitando-se, assim, romper a unidade do kosmos.

Bornheim (2002), em consonância com Chauí (1992), sustenta que quanto mais se retrocede em direção à presença do elemento religioso no desenvolvimento cultural humano, tanto menos ocupa a liberdade espaço nas considerações e reflexões do homem. Isso porque, a liberdade seria prerrogativa da divindade, já que esta seria a força imbuída do exclusivo poder de criação da ordem do mundo. O homem, enquanto criatura e parte integrante da ordem divina, não partilharia desse atributo próprio da entidade sobrenatural. Seu papel seria o de portar-se como um súdito zeloso do equilíbrio divino, segundo as prescrições religiosas destinadas à conservação dessa ordem. Daí que a religião atuava como princípio de unidade desse kosmos harmônico por meio de prescrições que se confundiam com as do Direito e da Moral.

É sob esse prisma que tem lugar a existência do poder despótico entre os povos primitivos (CHAUÍ, 1992). Os déspotas eram os indivíduos que encarnavam a

20 divindade em sua pessoa. Sua vontade era tomada como a própria manifestação do Ser

Supremo, o que lhes conferia uma prerrogativa de poder absoluto em relação a seus súditos. A submissão à ordem religiosa e a convicção do caráter sobrenatural do chefe espiritual e político encerram todos os homem em uma condição de sujeição ao arbítrio dessa autoridade superior.

Ainda segundo Chauí (1992), a primeira manifestação histórica sistematicamente organizada de manifestação da liberdade ocorre com os gregos, em

Atenas. A condição de liberdade é construída justamente com base na oposição ao estado de sujeição a um arbítrio superior. Enquanto os demais são dependentes do arbítrio do pai de família (despotês), os homens são aqueles que se reconhecem como iguais na formação do corpo da cidade (pólis) e, portanto, não se submetem ao arbítrio do déspota.

O pai de família, que permanece como líder espiritual e religioso, ainda exerce a autoridade despótica em seu domínio, o oíkos. Na esfera privada, as relações não são de liberdade, mas de sujeição (os familiares, os menores e os escravos).

No entanto, na esfera pública, no âmbito das relações travadas na pólis, onde os indivíduos se reconhecem como iguais, a autoridade arbitrária desaparece, pois não há relação de sujeição de um homem em relação a outro (dominus). Em seu lugar, terão vez normas que estabelecem instituições políticas comuns a todos os que são iguais. A liberdade nasce, portanto, como uma prerrogativa da , aquela que é a dimensão política do homem. Nas palavras de Chauí:

A principal característica do déspota encontra-se no fato de ser ele o autor único e exclusivo das normas e das regras que definem a vida familiar, isto é, o espaço privado. Seu poder, escreve Aristóteles, é arbitrário, pois decorre exclusivamente de sua vontade, de seu prazer, de suas necessidades. Os primeiros reis, lembra Aristóteles, porque eram simples chefes de clãs e tribos ou conjunto de famílias, eram déspotas, assim como são déspotas os governantes bárbaros do Oriente, mas onde houver cidade e política, portanto, onde houver leis e cidadãos livres não pode haver déspota. O déspota (o despotês; o pater familias) só domina os dependentes e 21 não os livres. Em outras palavras, onde houver espaço público e vida pública, onde houver politéia, não pode haver despotéia, não se pode manter o princípio do poder despótico, que pertence ao espaço privado e à vida privada. (grifos do autor) (CHAUÍ, 1992, p. 357)

2.2.1 – Aristóteles e a liberdade como eudaimonia

Preservar a estrutura e a ordem política representa a conservação da própria condição de liberdade do homem. Daí que as preocupações de filósofos como

Sócrates, Platão e Aristóteles ligavam-se ao desenvolvimento das virtudes do homem enquanto cidadãos da pólis (GUSTIN, 1999).

O conceito aristotélico de eudaimonia expressa como se realiza a concepção antiga de liberdade pela primazia do coletivo sobre o individual.

Geralmente traduzida por “felicidade”, a eudaimonia é a retribuição que cada um obtinha por contribuir para o bem da pólis (REALE, 1992). Essa contribuição ocorria quando a ação do homem representava um sacrifício em prol da auto-suficiência

(autarkeia) da vida coletiva. Diz Aristóteles que, como essa ação representava uma finalidade em si, ela seria o bem supremo que um homem poderia alcançar:

Considerado sob o ângulo da auto-suficiência, o raciocínio parece chegar ao mesmo resultado, porque o bem absoluto é considerado como auto-suficiente. Ora, por auto-suficiente não entendemos aquilo que é suficiente para um homem só, para aquele que leva uma vida solitária, mas também para os pais, os filhos, a esposa, e em geral para os amigos e concidadãos, visto que o homem nasceu para a cidadania. (ARISTÓTELES, 1991, p. 82)

As ações que traziam prazer ou honrarias individuais seriam bens de valor inferior, já que não eram finalidades em si mesmas, mas somente meios para se alcançar outra finalidade. Logo, como a finalidade da ação humana (telos) era proporcionar o vigor da Cidade-Estado, e era pelo exercício da cidadania que se

22 obtinha o supremo bem do homem, não houve o desenvolvimento do indivíduo entre os gregos do período clássico. Desse modo, a concepção da liberdade se restringia à liberdade do ente político, sendo virtuosa a ação humana que se prestava a contribuir para a coletividade.

2.2.2 – Epicuro e a descoberta da felicidade interior

Com as escolas filosóficas do período helenístico terão lugar as primeiras concepções de liberdade relacionadas à felicidade individual (PESSANHA, 1994;

REALE, 1992). Sobre o período em que floresceu a filosofia de Epicuro, José

Américo Motta Pessanha relata:

A Grécia de Epicuro (...) pertence ao período helenístico, inserida, desde a derrota de Queronéia, no Império macedônio. Primeiro Filipe, depois seu filho Alexandre (mais tarde os romanos) encerram a experiência política e cultural da Grécia Clássica, marcada pelo senso de liberdade manifestado de múltiplas formas, mas evidenciado sobretudo pela invenção da democracia. A dominação macedônia impõe um quadro totalmente diferente: As poléis não decidem mais de seus destinos, passando a integrar vasto império onde o poder está centralizado e no qual convivem, subjugados, com outros povos, com outras tradições, outras formas de vida, pensamento, religião. Fatalmente afrouxam-se as fronteiras culturais: dominados pela Macedônia, gregos e “bárbaros”, helenos e orientais são forçados a mais estreito contato e se interinfluenciam mais intensamente. (PESSANHA, 1994, p. 63-64)

A ausência da esfera política, que era responsável por fornecer a dimensão da liberdade na Grécia do período Clássico, forçou o homem do período helenístico a realizar um movimento em direção ao seu interior. A batalha pela busca da liberdade passou a ser travada em outro campo, conforme mostra Reale (1992):

A ruptura da identificação entre homem e cidadão, além do aspecto prioritariamente negativo apresentado, teve também um aspecto positivo: o homem, não podendo mais pedir à Cidade, ao ethos do Estado e aos seus valores os conteúdos da própria vida, foi coagido, pela força dos acontecimentos, a fechar-se em si mesmo, a buscar no seu íntimo novas energias, novos conteúdos morais e

23 novas metas pelas quais viver. Assim, o homem descobriu-se indivíduo. [...] A distinção entre o indivíduo e o cidadão, a atenuação e, em certos casos, o desaparecimento do sentido cívico acarretaram, em filosofia, como os estudiosos bem notaram, a radical distinção e a nítida separação entre ética e política. (grifos do autor) (REALE, 1992, p. 7-8)

Todavia, o movimento em direção à interioridade do período helenístico não representou um movimento de emancipação em relação à ordem cósmica que rege o universo. Muito pelo contrário, a elaboração filosófica da escola epicurista, por exemplo, visava restabelecer a harmonia entre o homem e a situação cultural de seu tempo (PESSANHA, 1994). A física por ela desenvolvida salienta bem esse aspecto.

Epicuro resgata o atomismo de Demócrito. Mas segundo o epicurismo, os corpos não estão sujeitos a uma queda inexorável, fatalista. Os átomos possuem o atributo do clinamen, que é a possibilidade de desvio do movimento de contínua queda. Assim, a physis de Epicuro tinha uma dimensão ética, levando Reale (1992) a ressaltar a seguinte característica das filosofias do período helenístico:

A filosofia das escolas helenísticas quis essencialmente ser, e foi, efetivamente, uma filosofia da vida, uma filosofia que queria ensinar a arte de viver, isto é, não uma sophia em sentido aristotélico, mas uma phrónesis, uma sabedoria, um conhecimento finalizado à atividade moral prática [...] Uma atenta análise de estrutura das posições das várias escolas, como vimos amplamente, revela de fato um predomínio da ética sobre a ontologia e sobre a lógica, não só de caráter quantitativo, mas também qualitativo. Quantitativamente a ética predomina sobre a física e sobre a lógica, porque constitui o objeto de maior interesse, enquanto, qualitativamente, a ética predomina pela novidade, pela liberdade com relação às próprias premissas lógico-ontológicas e pela genialidade. (grifos do autor) (REALE, 1992, p. 472)

Como o espaço da pólis deixou de ser o lugar privilegiado de realização da eudaimonia, os seguidores da doutrina epicurista – a comunidade dos amigos – se recolheram ao espaço do “Jardim”. No Jardim (Kepos), a areté não é mais o fim da ação do homem. Ela é substituída pela busca da philia, a verdadeira amizade entre os homens. Com isso, a eudaimonia não se realiza mais com a pujança da polis

(autarkeia), como queria Aristóteles, mas é encontrada na comunidade dos amigos,

24 que se basta a si mesma: uma vez que no Jardim são proporcionadas as condições que trazem a felicidade a cada uma das almas, o homem pode (e deve) abandonar as turbulências da vida política para encontrar a sua harmonia na interioridade.

As escolas do período helenístico forneceram um novo elemento para a concepção da liberdade: a partir delas, esta será pensada como uma capacidade de ação que deixa de ser verificada nas condições da pólis e passa a ser investigada por meio da felicidade do indivíduo, entendida como autarquia ou auto-suficiência. No espaço da interioridade o homem estará habilitado a alcançar a sua realização pessoal sob a forma de sua felicidade autárquica (PESSANHA, 1994).

2.2.3 – O arbítrio de Santo Agostinho

Apesar da significativa mudança cultural em relação ao mundo grego ocorrida com a difusão do cristianismo, especialmente no que concerne à consolidação do monoteísmo, do universalismo da religião cristã e da doutrina da salvação (soter)

(TILLICH, 1988), não há uma ruptura radical no modo como se estrutura a ação humana nos dois respectivos períodos. Segundo Galuppo (2001), o traço que marca essa unidade é a “[...] presença de um centro de toda a ação humana, fosse esse centro a polis, fosse a Igreja [...]” (GALUPPO, 2001, p.195, grifos do autor). Prossegue o autor:

A idéia de centro implicava, necessariamente, a idéia de uniformidade, de identidade. A referência única oferecida pela pólis ou pela Igreja para a ação de todos permitia uma lógica de organização social que foi chamada, por Weber e por Tönnies, de comunidade: ao contrário da sociedade, essa essencialmente moderna, a comunidade pressupõe um único projeto coletivo que aglutina e dá sentido à existência humana. (GALUPPO, 2001, p.195)

25 Assim, ainda que a reflexão sobre a liberdade humana ganhe destaque no pensamento cristão, o produto da elaboração filosófica sobre a liberdade ainda contará com a forte presença dos pressupostos religiosos da concepção de mundo desse período, como analisa Bornheim (2002):

Realmente, nas épocas em que vigia a chamada filosofia cristã, as discussões sobre o livre-arbítrio se faziam extensas e sabiam fomentar as mais diversas doutrinas. Mas, a rigor, para a liberdade pouco restava nessas elocubrações, apenas franjas, em nada prejudiciais à prepotência divina; o grande tema, nesse passado, nunca era e nem poderia ter sido a liberdade, visto que tudo se concentrava nas sapiências e premonições daquela predestinação. E no caso, para que bem se perceba a densidade do problema, nada melhor do que ligá-lo às malhas da radicalidade. Pois, de fato, posto que Deus seja o todo poderoso, aquele que tudo pode e tudo sabe, a determinar toda a realidade desde o início dos tempos, se tudo se verifica nos acertamentos entre o ato criador originário e o juízo final, tudo neste vasto interregno inscrever-se-ia iniludivelmente nos desígnios do próprio absoluto. (BORNHEIM, 2002, p. 43)

É sob esse signo que terá lugar a filosofia de Santo Agostinho.

Considerado, segundo Arendt (2000), o responsável por inserir a questão da liberdade humana na reflexão filosófica, juntamente com São Paulo, seu trabalho tentará demonstrar que a liberdade pode ser decorrente de um atributo intrínseco à natureza humana, a existência da vontade presente nessa singular criatura divina (NOVAES,

2002).

A reflexão sobre a liberdade surge em virtude do paradoxo da existência do mal e da controvérsia com os maniqueístas. De modo a refutar a afirmação maniqueísta da existência de um mal radical nas coisas – e, portanto, inerente ao corpo humano – Agostinho sustenta que, por força da marca da perfeição na obra do criador, o mal é algo impossível. Em um mundo onde tudo fosse criado por Deus, não haveria espaço para a existência do mal, pois a perfeição divina não comporta a maldade

(NOVAES, 2002). As situações de sofrimento e de desvios do comportamento

26 humano seriam, em verdade, “graus relativos da perfeição”, um bem situado em uma posição inferior da escala. Sobre o mal em Agostinho, explica Moacyr Novaes:

Sendo assim, o mal vem a ser explicado em razão da dessemelhança relativa ao bem supremo: cada ser, à medida que não é integralmente idêntico ao Criador, não tem todas as perfeições. Esta falta, esta ausência é um mal, ou finitude de cada criatura, sua impossibilidade metafísica de ser plenamente (o que está reservado apenas ao Criador). (NOVAES, 2002, p. 72)

No homem, essa finitude revela-se na dicotomia entre alma e corpo.

Ambos seriam componentes de sua natureza e reciprocamente dependentes. O corpo representaria a matéria, uma entidade neutra que assemelha os homens aos seres inanimados. Já a alma humana seria aquilo que lhe daria o impulso da vida. Sua principal característica seria o atributo da vontade, poder que lhe conferiria a capacidade de comandar e controlar o corpo. Para Agostinho, a vontade seria essa característica exclusiva do homem que o tornaria o “reflexo” do Criador e que colocaria a alma, portanto, em posição hierárquica relativamente superior em relação ao corpo (NOVAES, 2002).

Como ser dotado de vontade, ele pode ordenar impulsos ao corpo segundo o seu querer. Assim, a capacidade de se mover em uma direção ou outra faz com que o homem possa se aproximar ou se afastar das prescrições que o colocam em harmonia com o kosmos divino. Nesse sentido as palavras do próprio Agostinho:

Com efeito, não é pelo fato de uma pessoa poder se servir da vontade também para pecar, que é preciso supor que Deus no-la tenha concedido nessa intenção. Há, pois, uma razão suficiente para ter sido dada, já que sem ela o homem não poderia viver retamente. (...) Por outro lado, se o homem carecesse do livre-arbítrio da vontade, como poderia existir esse bem, que consiste em manifestar a justiça, condenando os pecados e premiando as boas ações? Visto que a conduta desse homem não seria pecado nem boa ação, caso não fosse voluntária. Igualmente o castigo, como a recompensa, seria injusto, se o homem não fosse dotado de vontade livre. (AGOSTINHO, 2004, p. 74-75)

27 Como se extrai da passagem transcrita, essa faculdade do homem de escolher é denominada de livre-arbítrio. Por ela, é possível a medição qualitativa do movimento realizado pelo homem, em função do conteúdo de sua ação:

Enquanto as demais criaturas se inscrevem necessariamente na ordem e correspondem ao ‘movimento’ criador realizado por Deus, o livre-arbítrio tem a possibilidade de se inscrever ou não, voluntariamente, isto é, de fazer ou não um movimento que espelhe a bondade e sabedoria do Criador. (NOVAES, 2002, p.72)

A faculdade do livre-arbítrio, decorrente da presença do elemento da vontade na constituição do homem, abre-lhe duas possibilidades: movimentar-se de acordo com a ordem divina ou em descompasso com a mesma.

A ordem divina prescreveria a ordem naturalmente boa, para a qual o homem convergiria caso viesse a acatar os mandamentos religiosos e reconhecesse a posição de superioridade de Deus. Já a pretensão de arrogar-se a uma condição equivalente à divina, ilustrada no pecado original do mito de Adão e Eva, representaria um desvio da vontade de seu lugar natural na hierarquia do universo (NOVAES,

2002). Veja-se a análise de Tillich (1988?) sobre o pecado em Agostinho:

Pecado é, em primeiro lugar e basicamente, o poder de rejeitarmos Deus [...] A imediata conseqüência da rejeição humana desse bem supremo é a sua perda. Essa perda é a punição essencial do homem. [...] Se Deus é, na verdade, tudo o que se pode chamar de positivo, o bem supremo, ou o poder de superar o não-ser, a única pena real possível tem de ser intrínseca, isto é, a perda desse poder de ser, com incapacidade de participar no bem supremo. (TILLICH, 1988?, p. 125)

A esse movimento corrompido da vontade, Agostinho dá o nome de soberba. Esta é definida como “a vontade perversa de suprimir de um só golpe a distância entre o homem e o bem supremo” (NOVAES, 2002, p.72). Se a soberba marca o afastamento do homem de seu lugar natural junto a Deus por um exercício corrompido da vontade, a partir da reconciliação dessa vontade com o sagrado, o

28 homem poderá trilhar seu caminho de retorno ao paraíso perdido. Submetendo-se às prescrições de Deus, o homem corrige sua vontade e faz, do seu livre-arbítrio, liberdade. Ao tratar do orgulho humano como busca da satisfação exclusiva de si próprio, diz Agostinho:

Visto que o demônio apresentou-se ao homem como exemplo de orgulho, o Senhor se apresentou a nós como exemplo de humildade e com a promessa de vida eterna. Em seu amor infinito, Deus quis que resgatados pelo sangue de Cristo, derramados após trabalhos e sofrimentos inexprimíveis, nós nos uníssemos a nosso Libertador, com uma caridade ardente, para deixar-nos arrebatar até ele, por luzes tão brilhantes, que a vista de realidade interior alguma possa nos afastar da contemplação do Bem supremo. (AGOSTINHO, 2004, p. 240)

Para Agostinho, a liberdade ocorrerá, portanto, com o efetivo caminho trilhado pelo homem ao deixar sua vontade ser guiada por Deus, fazendo-a ir ao encontro de Seus mandamentos. É o que se verifica do seguinte comentário de Vaz

(1991) sobre a filosofia agostiniana:

O pensamento filosófico-teológico de Agostinho é um pensamento inquisitivo na sua essência, e essa inquisição da mente que é necessariamente uma busca de Deus – um quaerere Deum que arrasta o homem todo simbolizado na inquietude do coração – não é senão a transcrição intelectual do itinerário da vida; o itinerário da vontade, cujo ponto de partida é o livre-arbítrio na condição do homem pecador e que, sob a ação da graça, caminha para a libertas verdadeira que é a deleitação na justiça. (VAZ, 1991, p.66)

No mesmo sentido, é a conclusão de Novaes (2002) ao dizer que a sujeição

à ordem divina não representaria um modo de ser dominado ou escravo, mas a realização dos próprios propósitos da condição humana, em virtude da qualidade intrínseca ao conteúdo das prescrições religiosas.

A principal contribuição das doutrinas cristãs, e em especial a de

Agostinho, para a compreensão da liberdade refere-se à possibilidade de a ela se aceder pelo exclusivo exercício da vontade interior. Por conseqüência, na era cristã, a

29 liberdade será confinada ao espaço definido de cada individualidade em sua relação com o divino, como conclui Chauí (1992), em referência a Arendt:

O cristianismo, porém, religião da salvação nascida fora do campo político e contra o Estado, desloca a liberdade para o interior de cada humano, articula liberdade e vontade e apresenta esta última como essencialmente dividida entre o bem e o mal. A liberdade surge como uma divisão interior entre mim e mim mesma, entre meu querer bem e querer mal, tornando-se livre-arbítrio. O cristianismo despolitiza a liberdade e, ao interiorizá-la, moraliza-a. (CHAUÍ, 1992, p. 349)

Desse modo, a partir do pensamento cristão, a liberdade passa a ser uma prerrogativa de cada indivíduo, consubstanciada em uma capacidade interior de direcionar sua vontade. Entretanto, no que se refere ao conteúdo das ações do homem, a presença do elemento religioso não deixará margem de escolha para o efetivo direcionamento da vontade:

Em suma, a famosa dicotomia entre liberdade e necessidade é trazida pela teologia cristã e se transforma num paradoxo insolúvel para a ética dos cristãos, sobretudo porque a vontade divina se exprime por mandamentos e decretos anteriores e superiores aos homens, de sorte que ser livre é obedecer à exterioridade do comando divino. O vínculo entre virtude e obediência, virtude e obrigação, virtude e dever apaga a idéia da liberdade como esfera humana do humano e, portanto, como autonomia. (CHAUÍ, 1992, p. 349-350)

Bornheim (2002) ilustra essa condição do homem medieval a partir do termo “servo arbítrio”, cunhado por Lutero. No entanto, o elo que submete o homem a

Deus é rompido pelo processo histórico que culmina na modernidade. E, na ausência de um caminho para a liberdade fornecido por Deus, o homem será levado a procurar, em si próprio, os rumos que o levarão a sua emancipação.

2.3 A liberdade para os modernos

30

Como visto, para os antigos, o conteúdo da ação “livre” deveria ser pré-

estabelecido por uma ordem divina. Em função da natureza dogmática13 do

catolicismo nos assuntos ligados à salvação humana, mesmo o reconhecimento de um

espaço interior no homem – que lhe abre um campo para o exercício de sua vontade –

não é suficiente para permitir a diversidade nas formas de expressão moral e cultural.

Somente um padrão de condutas tornava o homem livre: aquele que estivesse em

conformidade com os mandamentos divinos, pois as prescrições morais que se

originavam dessa ordem revestiam-se de caráter sagrado. Por essa razão, no

pensamento antigo, incluindo-se aí a filosofia cristã da era medieval, não havia espaço

para a tolerância nos assuntos ligados aos modos de realização da liberdade

(BORHEIM, 2002).

Para que a referência dos comportamentos morais deixasse de ser a

autoridade de Deus, seria necessária uma mudança cultural que retirasse da religião a

importância de antes. O enfraquecimento da influência religiosa permitiria ao homem

enxergar formas diferentes de explicar e compreender o mundo. Galuppo (2002)

chama de “descentramento radical” esse processo histórico que levou à ruptura com a

visão de mundo unitária da Antiguidade. Em referência a Arendt, o autor destaca três

eventos históricos como marcos que o ilustram:

Se a Antigüidade e a Idade Média se caracterizavam pela existência de um único centro aglutinador do pensamento e da ação, a Modernidade se caracteriza pela explosão desse centro. Seguindo uma pista de Hannah Arendt na Condição humana, podemos dizer que três processos estão ligados a esse descentramento. O primeiro deles foi a Revolução Científica: ao investigar o céu, deslocando seu olhar o homem descobre que o Sol, e não a Terra, é o centro do sistema que habita e nós não estávamos mais no centro do universo. O segundo processo foi as Grandes Navegações: ao realizar a circunavegação, o europeu descobre que a Europa não era o centro da esfera terrestre. O terceiro e último processo foi a Reforma

13 Dogma é aqui entendido no sentido de não questionamento dos pontos de partida de uma série argumentativa, consoante exposição de Ferraz Júnior (2003). 31 Protestante: ao refletir sobre uma Europa dividida em religiões distintas, o homem descobre que a Igreja Católica Apostólica Romana não era mais o centro cultural da civilização ocidental. (GALUPPO, 2002, p. 196, grifos do autor)

Esse processo de ‘explosão’ dos centros tradicionais de referência da ação humana fez com que a visão teocêntrica do mundo antigo fosse substituída por uma concepção antropocêntrica cuja marca é o pluralismo cultural e o subjetivismo radical dos valores. Vaz (1991) resume suas características:

Na medida em que os fios da história se entrelaçam numa complexidade sempre maior e em que a civilização ocidental amplia suas bases materiais e efetivamente se universaliza, as concepções do homem, sobretudo na sua expressão filosófica que aqui nos ocupará, tornam-se também mais complexas e passam a enfrentar o difícil problema da chamada ‘pluralidade antropológica’, quando a unidade cultural (como na Grécia) ou religiosa (como na Idade Média) da imagem do homem é desfeita pela descoberta da imensa diversidade das culturas e dos tipos humanos e pelo próprio avançar das ciências do homem que submetem o seu objeto à análise minuciosa e, aparentemente desagregadora de sua unidade. (VAZ, 1991, p. 77)

2.3.1 – A fundação do sujeito moderno por René Descartes

Diante da incerteza causada por diferentes visões culturais e religiosas de mundo, o homem moderno precisou de um novo “porto seguro” dos critérios de verdade e correção de sua experiência científica, cultural e moral. Esse novo centro será o indivíduo. O pensamento de René Descartes reflete o surgimento do indivíduo como experiência absoluta das medidas humanas no período moderno, como se depreende da análise de Bornheim (1992):

E coube a Descartes a tarefa de estruturar, em seu ponto de partida, o funcionamento da mente humana de um modo profundamente inovador. Sabe-se do radicalismo com que o filósofo francês aplica a dúvida metódica. Seu racionalismo atinge principalmente a própria natureza do conhecimento sensível, já por não apresentar nenhum critério intrínseco de autojustificação; (BORNHEIM, 1992, p. 250)

32 A dúvida metódica é a ferramenta utilizada por Descartes para sustentar sua filosofia. Ela consiste em “submeter todos os dados passíveis de serem conhecidos a um procedimento de análise, de tal maneira que todo o observável seja reduzido aos seus elementos mais simples” (BORNHEIM, 1992, p. 251). Essa dúvida radical permite a constituição do sujeito como algo independente de qualquer objeto sensível ou de alguma entidade divina. Veja-se como o próprio Descartes expressa a dúvida metódica que funda a experiência subjetiva absoluta:

Mas que sei eu, se não existe outra coisa diferente das que acabo de considerar incertas, da qual não se possa ter a menor dúvida? Não existirá algum Deus, ou alguma outra potência, que me infunda tais pensamentos no espírito? Isso não é necessário, pois talvez eu tenha a capacidade de produzi-los por mim mesmo. Eu, então, ao menos, não serei alguma coisa? Mas já neguei que possuísse qualquer sentido ou qualquer corpo. Contudo, titubeio, pois o que resulta daí? Serei de tal maneira dependente do corpo e dos sentidos que não possa existir sem eles? Mas eu me convenci de que nada existia no mundo, que não havia céu algum, terra alguma, espíritos alguns, nem corpos alguns; logo, não me convenci também que eu não existia? Com certeza, não; sem dúvida eu existia, se é que me convenci ou só pensei alguma coisa. Mas existe alguém, não sei quem, enganador muito poderoso e astucioso, que dedica todo o seu empenho em enganar-me sempre. Não há então, dúvida alguma de que existo, se ele me engana; e, por mais que me engane, nunca poderá fazer com que eu nada seja, enquanto eu pensar ser alguma coisa. (DESCARTES, 1999, p. 258)

Descartes separa radicalmente a dimensão subjetiva do espírito (cogito) daquilo que lhe é oposição e que constitui seu exterior, o corpo (res extensa). O corpo apresenta-se como matéria que se oferece ao conhecimento. A vontade de conhecer do ser pensante define e estabelece os limites daquilo que será conhecido – constituindo o objeto do conhecimento – e passa a ser a exclusiva condutora do processo de conhecimento (BORNHEIM, 1992). Descartes conseguirá, portanto, situar exclusivamente no indivíduo a responsabilidade pela definição dos critérios de verdade e correção de sua ação. Se o sujeito possui autonomia para conhecer e, por conseqüência, para agir, ele é capaz de criar a sua própria regra moral, que não mais virá de Deus ou da Natureza. Essa condição é a marca do indivíduo moderno.

33 Submeter-se ao que vem de fora, seja ele Deus ou Natureza, é fonte de incerteza e dúvida, pois o conhecimento seguro é aquele que se alcança pelo exercício da razão.

Assim, com Descartes, a autonomia deixa de ser um desvalor – como o era a soberba para Agostinho – para se tornar, ao contrário, a principal característica da liberdade:

Realmente, no caso, pode-se traçar um estreito paralelo entre a análise do conhecimento e a da liberdade. Com Descartes, pelo conhecimento, o homem passa a ser senhor do objeto. Tal concepção é, digamos, complementada pela nova acepção da liberdade. Superando as interpretações antigas da liberdade, a grega e a medieval, Descartes comete o feito de restringir a liberdade ao livre-arbítrio. Não se trata mais de vencer o jugo dos tiranos e manter a plenitude da condição grega do cidadão, nem de dominar essa outra tirania, a da carne na acepção paulina, e sim de afirmar que o homem, pelo livre-arbítrio, promove-se à condição de senhor – senhor da sua escolha. (BORNHEIM, 1992, p. 251)

No pensamento cristão, a liberdade exigia um vínculo entre o exercício da vontade e seu direcionamento a um conteúdo prévio de condutas consideradas como

“boas” pela tradição cultural e religiosa. As conclusões do pensamento cartesiano serviram de fundamento para que o homem pudesse abandonar com segurança o mundo comunitário a que se encontrava preso por força da tradição cultural e religiosa e reconstruí-lo a seu modo, imagem e semelhança:

Quando Descartes demonstra a possibilidade de recriarmos e fundamentarmos a realidade a partir do sujeito racional, instaura-se a possibilidade de se pensar também o Indivíduo. Se não há mais um centro comum orientador da ação, é preciso que cada homem converta-se em centro orientador de sua própria ação. E se cada um é convertido em centro, então cada um será responsável pela formulação de um projeto sobre o que seja a vida boa para si. Não raramente, estes projetos, que não estão mais integrados a priori, serão radicalmente opostos. Eventualmente, por motivos puramente subjetivos-racionais, os homens se unirão em projetos comuns, mas já não é mais a identidade e a unidade que constituem a vida social, mas a diferença e a diversidade. Não há mais lugar, nas sociedades modernas, para a homogeneidade, pois cada um estipula para si o que é a vida boa e como atingi-la. (GALUPPO, 2001, p. 50, grifos do autor)

É o conhecimento seguro e preciso, obtido pelo método científico, que passou a imperar nas ciências naturais. Em substituição à religião, ele será o novo critério de correção e verdade para a ação do homem moderno (SANTOS, 2000). Por

34 sua vez, também toda a racionalidade do pensamento filosófico – inclusive a política, moral e jurídica – submeter-se-á aos cânones epistemológicos do mecanicismo inaugurado na modernidade.

2.3.2 – Thomas Hobbes e a mecânica da liberdade

Exemplo marcante de como a concepção de liberdade passa a decorrer de uma visão naturalista e mecanicista do mundo pode ser encontrado na filosofia de

Thomas Hobbes. Tomando por base o modelo matemático da ciência moderna, em especial a geometria de Euclides (VAZ, 1991), Hobbes explicará o universo natural – dentro do qual se encontra o homem – a partir da noção de ‘corpo’:

Hobbes empreende, de forma rigorosa e conseqüente, a aplicação do racionalismo mecanicista à compreensão do homem e da sociedade. Com efeito, toda a sua obra gira em torno do problema de se encontrar uma expressão racional rigorosa e obediente aos cânones do mecanicismo para a idéia de corpo, que se apresenta como categoria fundamental para pensarmos a natureza, o homem e a sociedade. (...) Só o corpo, ocupando espaço, existe, e Deus mesmo é corporal, sendo compreendido no universo cuja totalidade e unicidade abrange todas as ordens do existente. (VAZ, 1991, p. 86, grifos do autor)

Hobbes define corpo como “tudo o que é concebível e tudo o que pode ser objeto de ciência. ‘Corpos naturais’ e corpos ‘políticos’ resumem assim todo o domínio do saber” (MATHIOT, 1993, p. 38). Os seres corpóreos estão sujeitos a determinados princípios físicos de movimento. Nos seres animados eles são os seguintes:

Há nos animais dois tipos de movimento que lhe são peculiares: um chamado vital, iniciado na geração e continuado sem interrupção durante toda a vida; (...) o outro é o movimento animal também chamado movimento voluntário, como andar falar mover qualquer dos nossos membros, da maneira como anteriormente foi fantasiado em nossas mentes (HOBBES, 2005, p. 32)

35 Hobbes abandona a concepção cartesiana que via a vontade como uma instância isolada do corpo do indivíduo (HECK, 2004), concebendo-a como o elemento por meio do qual se realiza a conexão necessária entre uma sensação interior e a conseqüente resposta do organismo.

A vontade, portanto, é o último apetite na deliberação. Embora na linguagem comum se diga que um homem teve uma vontade de fazer uma coisa, que não obstante evitou fazer, isto é propriamente apenas uma inclinação, que não constitui uma ação voluntária; pois a ação não depende dela e sim da última inclinação ou apetite. (HOBBES, 2005, p. 38-39, grifos do autor)

Se, nas palavras do próprio Hobbes, “O homem foge do mal por um impulso natural, tão certamente quanto uma pedra cai” (HOBBES, 2004, p. 34), a vontade seria justamente esse impulso que antecede a ação concreta. Ela se efetiva por meio da resposta do corpo ao estímulo exterior recebido.

Segundo Hobbes (2005), há um princípio geral da razão que diz que todo corpo animal tende a retribuir com uma reação volitiva quando provocado por uma sensação exterior que impulsiona seu movimento. Isso só não ocorrerá se o corpo estiver sujeito a interferências externas. Se estas vierem a impedir a conexão entre o que se quer (apetites) e o que se faz, criando incapacidades, não haverá o prosseguimento do movimento – isto é, da ação. É com esse raciocínio que Hobbes constrói sua definição de liberdade como “ausência de (...) impedimentos externos do movimento” (HOBBES, 2005, p.124):

Pois o que quer que esteja amarrado, ou envolvido, de modo a não poder-se mover senão dentro de um certo espaço, sendo esse espaço determinado pela oposição de um movimento externo, dizemos que não tem liberdade de ir mais além (...) Costumamos dizer que não têm liberdade de se mover da maneira que fariam se não fossem esses impedimentos externos. Mas quando o que impede o movimento faz parte da constituição da própria coisa, não costumamos dizer que ela não tem liberdade, mas que lhe falta o poder de se mover, como quando uma pedra está parada, ou um homem se encontra amarrado ao leito pela doença. (...) Conforme esse significado próprio e geralmente aceito da palavra, um homem livre é aquele,

36 naquelas coisas que por sua força e engenho é capaz de fazer, não é impedido de fazer o que tem vontade de fazer. (HOBBES, 2005, p. 124-125, grifos do autor)

Conforme Heck (2004), a liberdade para Hobbes concretiza-se pelo gozo

da sensação de prazer emanada por um objeto do desejo humano, pois isso indica a

ocorrência do movimento livre. Para tanto, é preciso que a inclinação causada pela

sensação se transmita a um efetivo movimento vital, o que se dá pelo conatus14:

Ao rejeitar a posição cartesiana, Hobbes assume o conatus como um movimento imperceptível na origem do modo de conceber o objeto das ações e do movimento corporal, isto é, o conatus faz com que percepção e paixão sejam, como efeito que são, cogitatio de um único e mesmo movimento. (HECK, 2004, p. 84, grifos do autor)

Em Hobbes, pois, a condição corpórea de cada ser faz com que ele próprio

seja o critério de verificação do seu movimento livre. Todos os corpos, enquanto

unidades isoladas, têm igualmente essa propriedade de se mover livremente. Assim,

segundo as leis mecânicas da natureza, todos os homens podem ser livres, uma vez

que são também ‘corpos’. Logo, ao serem deixados aos desígnios de uma condição

natural, todos os homens são capazes de promover a ‘liberdade’ de seu próprio

movimento, já que cada um tem a capacidade de agir em resposta aos estímulos

sensoriais que recebe do ambiente externo. Desse modo, conclui Lago (2003):

A liberdade é uma situação física que só pode ocorrer em entidades físicas, os corpos. Todo movimento precisa de um conjunto de causas suficientes para determiná-lo e uma situação ambiental favorável, a ausência de oposição e impedimento. (...) Toda ação do homem natural obedece a determinações causais. O mais sofisticado dos movimentos, o voluntário, responde às mesmas leis do mais simples, apesar de induzir facilmente o observador ao erro de considerá-lo livre. Ao arbítrio ou vontade a liberdade se atribui de forma imprópria, porque, enquanto poder de ação, é determinado necessariamente por objetos. Nesse sentido Hobbes defende a compatibilidade entre necessidade e liberdade no campo da ação humana natural. (LAGO, 2003, p. 138)

14 Conatus é geralmente traduzido por esforço, e, na linguagem hobbesiana significa o esforço que os corpos realizam no sentido de permanecerem no movimento em que se encontram, cumprindo, assim, o princípio da inércia. Para uma simples e precisa explicação sobre a dimensão mecânica da filosofia hobbesiana, veja-se Bernardes (2002). 37

Essa possibilidade absoluta do movimento, de acordo com a inclinação das

paixões, é o “estado de natureza” – propriamente denominado “condição geral de toda

a humanidade”, como salienta Macpherson (1979)15. Sendo a liberdade uma condição

natural dada aos corpos, na condição geral de toda a humanidade subsistiriam direitos

e leis da natureza, assim definidos por Hobbes:

O direito de natureza, a que os autores chamam jus naturale, é a liberdade que cada homem possui de usar o seu próprio poder, da maneira que quiser, para a preservação da sua própria natureza, ou seja, da sua própria vida e conseqüentemente de fazer tudo aquilo que seu próprio julgamento e razão lhe indiquem como meios adequados a esse fim. (...) Um lei da natureza, lex naturalis, é um preceito, ou regra geral, estabelecido pela razão, pelo qual um homem é proibido de fazer o que seja destrutivo para sua vida, ou que o prive dos meios necessários para a preservar, e de omitir aquilo que pense ser melhor para preservá-la (HOBBES, 2005, p. 78, grifos do autor)

Como mostra Polin (1992b) tal “direito natural” deve ser concebido como

uma faculdade (facultas) que cada um possui pelo simples fato de ser homem. Hobbes

(2005) denomina direito de todos sobre todas as coisas: em sua condição natural, o

homem tem o direito a dar vazão a toda sorte de impulsos que lhe chegam pela via dos

estímulos sensoriais. Noções como as de propriedade, justiça e moralidade não

existiriam, já que seriam produto do estabelecimento de regras criadas artificialmente

para o convívio social.

A expressão “lei” também não deve ser entendida no sentido de submissão

a um comando emanado (sentido que é dado ao termo lei pelo próprio Hobbes (2004)).

Na condição geral de toda a humanidade não há qualquer autoridade que tenha poder

para emitir um comando de um homem sobre outro. Esse tipo de lei também será fruto

15 Macpherson (1979) opta por substituir a expressão “estado de natureza” por “condição geral de toda humanidade” argumentando que utilizar o conceito de estado de natureza para denominar essa condição que é intrínseca à natureza humana seria equivocado, uma vez que tal condição não desaparece no denominado estado civil. O que haveria, portanto, seria a presença permanente da condição geral de toda humanidade que, caso não domada pelo Leviatã, recairia naquilo que se convencionou denominar estado de natureza. 38 de convenções sociais, somente possíveis na condição civil. Segundo David Gauthier

(2001), a expressão “lei da natureza” deve ser entendida como um teorema

(imperativo) da razão. Tal teorema diz que a conclusão a que o homem chega, pelo

exercício de suas faculdades racionais, torna-se uma ação que ele deve realizar.

Tanto o poder dado a cada um de agir conforme o exercício de sua razão

natural quanto a imposição ditada pela razão para agir com vistas à preservação de sua

própria liberdade fazem com que a permanência da condição natural de cada um se

torne um empecilho à viabilidade do convívio coletivo:

Tudo se passa como se o que assegura a formação do indivíduo exercesse, ao mesmo tempo, sobre ele, uma ameaça não menos eficazmente destruidora, como se a afirmação do indivíduo fosse acompanhada de sua negação. Hobbes constata nos fatos tanto uma ameaça quanto outra. Essas duas constatações opostas são correlativas, mas elas podem se desenvolver concomitantemente sem nenhum absurdo; (POLIN, 1992a, p. 107)

A ameaça de destruição do indivíduo decorre de sua liberdade natural, pois

a permanência dessa condição tem o potencial de levar os indivíduos a uma guerra de

todos contra todos, em virtude da igualdade radical que a natureza impõe a todos os

homens.

O conflito decorreria do fato de que todos os homens se assemelham em

força e habilidade, ao ponto de possuírem praticamente as mesmas capacidades de se

ferirem uns aos outros (HOBBES, 2004, 2005). Em uma eventual disputa por

interesses comuns a dois homens (disputa por objetos que produziriam reações

necessárias16 em ambos) cada qual tem uma possível chance de vencer o outro.

Portanto, a igual capacidade de condições traz desconfiança e medo em relação ao

movimento do outro. Afinal, o inimigo também está no exercício de seu direito natural

16 A reação necessária seria decorrência da presença de sensações vindas do exterior responsáveis por gerar estímulos no indivíduo que guiariam a sua deliberação volitiva. O aroma de um fruto, que desperta a fome no homem, levá-lo-ia à ação de colhê-lo para alimentar-se, contra todos os obstáculos que se interpusessem à concretização desse ato, inclusive a presença de outros homens guiados pela mesma reação volitiva. 39 e, por óbvio, também articula modos de aumentar suas chances de não ser derrotado.

Logo, a reação instintiva do homem é a da antecipação:

E devido a esta desconfiança de uns em relação aos outros nenhuma maneira de se garantir é tão razoável como a antecipação, isto é, pela força ou pela astúcia subjugar as pessoas de todos os homens que puder, durante o tempo necessário para chegar ao momento em que não veja qualquer outro poder suficientemente grande o ameaçar, e isto não é mais do que a sua própria conservação exige, conforme é geralmente admitido. (HOBBES, 2005 p. 75)

No entanto, não há modo de se solucionar permanentemente essa situação de desconfiança e medo – em especial de medo da morte – pelo exercício casuístico da força. Pois sempre haverá a possibilidade de um outro homem ou grupo de homens superar em força aquele domínio que, antes, garantia provisoriamente a paz. Sendo assim, uma resposta racional, que contorne esse sentimento generalizado de temor da violência, necessitaria eliminar por completo o medo recíproco entre os homens. Para se alcançar esse objetivo, todos os homens devem abrir mão de seu direito e de sua liberdade natural em favor de um terceiro ente que será superior a todos eles, o Estado:

A única maneira de instituir um tal poder comum, capaz de os defender das invasões dos estrangeiros e das injúrias uns dos outros, garantindo-lhes assim uma segurança suficiente para que pela própria indústria e pelos frutos da terra possam alimentar-se e viver satisfeitos, é conferir toda a sua força e poder a um homem, ou assembléia de homens, que possa reduzir as suas diversas vontades, por uma pluralidade de votos, a uma só vontade: o que equivale dizer, designar um homem ou uma assembléia de homens como representantes das suas pessoas, considerando-se e reconhecendo-se cada um como autor de todos os atos que aquele que representa a sua pessoa praticar ou levar a praticar, em tudo que disser respeito à paz e à segurança comuns. Isto é mais do que consentimento, ou concórdia: é uma verdadeira unidade de todos eles, numa só e mesma pessoa, realizada por um acordo de cada homem com todos os homens, de um modo que é como se cada homem dissesse a cada homem: cedo e transfiro o meu direito de me governar a mim mesmo a este homem, ou a esta assembléia de homens, com a condição de transferires para ele o teu direito, autorizando de maneira semelhante todas as suas ações (HOBBES, 2005 p. 013, grifos do autor)

Por meio do mecanismo do contrato social, Hobbes concebe uma liberdade civil cujo fundamento assenta-se no próprio homem. A razão de existência do poder

40 político e a fonte das regras de convívio social não são mais os mandamentos religiosos, mas sim o conjunto das liberdades naturais alienadas por cada homem em favor do soberano. Isso põe fim à tradição antiga de concepção da liberdade, como analisa Polin (1992a):

O homem de Aristóteles e Cícero é o cidadão e não o homem natural. (...) As teorias políticas clássicas chamam de natural o que Hobbes coloca entre os artifícios, e talvez essa seja a maior contribuição do teórico político inglês. Se Aristóteles considerava natural a pólis e suas liberdades, os outros sendo bárbaros, isto é menos humanos, Hobbes, artificializando toda e qualquer construção política, iguala a natureza dos Estados, assim como os indivíduos são iguais no estado de natureza (POLIN, 1992a, p. 108)

Ainda que a solução hobbesiana seja um paradoxo – de um lado, um ente soberano com poderes ilimitados na criação das regras do convívio social e cuja marca

é a arbitrariedade (MADANES, 1997); e, de outro, a constatação de que esse ente político origina-se em um acordo para a salvação dos homens de sua ruína – o filósofo inglês inaugura a tradição que define o indivíduo como o centro das preocupações que envolvem as questões políticas:

Não é o indivíduo enquanto tal, muito pessoalmente, o fundador originário desse Estado? O contrato social é um pacto de cada um com cada um. (...) Cada um testemunha individualmente que se obriga a não resistir à vontade do Soberano; ela cedeu-lhe seu poder seus bens em virtude de um cálculo racional: ao aceitar o contrato, ao renunciar, por um ato arbitrário, isto é, não natural, ao exercício natural das forças naturais, cada homem cumpriu seu primeiro ato de indivíduo humano autêntico, ele se fez propriamente homem. O Estado não existiria sem essa decisão individual fundamental: ele é a emanação e a obra dos indivíduos (POLIN, 1992a, p. 108)

Enquanto reflexo dos indivíduos que o criam, o Estado guarda, em relação a eles, uma identidade indissociável. Criador e criatura compartilham, desse modo, de uma mesma finalidade (BERNARDES, 2002). Mas note-se que não são os indivíduos isoladamente que dão origem ao Estado, mas o conjunto das liberdades alienadas que foram trocadas pela possibilidade de ampliação da preservação do movimento vital,

41 consagrada na paz e na segurança. Assim, o Estado deve fazer tudo quanto possível

para a consecução dessa finalidade, a começar pela promoção da paz e da ordem

social. Mas não é só. Ainda que esse tema seja obscuro na própria obra de Hobbes17, é

inegável que o Estado também assumiria a função de promover o bem-estar dos

cidadãos enquanto meio para a realização da liberdade no sentido estabelecido pelo

próprio Hobbes.

No entanto, a premissa de Hobbes, de que os indivíduos são incapazes de

estabelecer valores comuns antecedentes ao Estado, gera um relativismo moral no que

tange aos poderes transmitidos ao Estado. Uma vez que cada um poderia ser o detentor

da verdade – inclusive da verdade moral – não haveria um fundamento pré-político

das leis, mas somente a vontade do Soberano. Em nome da preservação da vida

coletiva, o Estado poderia tudo. Pois, à exceção das liberdades extremas que o

indivíduo conserva após o pacto, como, por exemplo, a de não ser obrigado a retirar a

sua própria vida, o que quer que o soberano decida como lei deve ser cumprido, já que

destinado a ampliar o movimento vital da coletividade. Não haveria, assim, qualquer

obrigação que vinculasse o soberano e os súditos:

Por definição, o poder soberano é desprovido de limites. Os cidadãos estabelecem um contrato entre eles, numa renúncia recíproca aos direitos que detinham por sua força natural. Mas, o Soberano recebe a totalidade das forças assim abandonadas sem comprometer-se com ninguém. Ele não estabelece contrato com nenhum dos cidadãos em particular, e tampouco com o conjunto dos cidadãos vistos na sua totalidade. Ele não recebe deles nenhuma missão. (POLIN, 1992a, p. 99)

17 Polin (1992a) apresenta a questão de que em De homine e em De Cive Hobbes teria colocado explicitamente a questão da promoção do bem-estar como tarefa do Estado, e que teria suprimido em sua obra final, o Leviatã, sustentando que a única explícita função do Estado seria a garantia da paz e da ordem social. Isto possivelmente indicaria que o Estado teria somente a função de garantia da ordem e da paz social, inexistindo, portanto qualquer outra obrigação a que o soberano estivesse vinculado. Segundo o comentador, Hobbes teria articulado essa mudança para que não se formasse nenhuma outra obrigação existente entre o soberano e o súdito que não a garantia da paz. No entanto, tal interpretação não estaria em consonância com o conjunto do pensamento hobbesiano, segundo o qual a ampliação do movimento vital incluiria, de modo inequívoco, o alcance cada vez maior do bem-estar dos cidadãos. Segundo o princípio da inércia, que se aplica a todos os corpos, inclusive ao Estado, também o ente político se movimentaria no sentido de adquirir bens materiais que lhe trazem riqueza e segurança, difundindo-as entre seus cidadãos. 42 A consagrada máxima que se extrai do pensamento de Hobbes, que afirma ser qualquer autoridade moral superior à ausência de autoridade, acaba por tornar seu contrato social unfair – expressão inglesa que significa ao mesmo tempo injusto, mas também desproporcional, não eqüitativo. Isso porque os indivíduos acordariam entre si criar um ente sobre o qual deixariam de possuir qualquer controle e que dominaria de modo absoluto seus criadores em nome da coletividade. Que garantias esses indivíduos conservam de que esse Leviatã não se voltará contra eles próprios?

Nesse ponto, a teoria política sofreu uma profunda reformulação pelo filósofo inglês John Locke. Ao se valer de diferentes fundamentos para definir como se constitui o contrato social, seu ponto de vista implicou, por conseguinte, em novo modo de se compreender a liberdade.

2.3.3 – A inauguração do liberalismo por John Locke

Locke construiu seus argumentos sobre a natureza do poder político a partir da refutação da teoria da monarquia patriarcal, que justificava o direito divino dos reis absolutistas de sua época. Suas críticas são dirigidas, em especial, ao livro “O

Patriarca”, do também inglês Robert Filmer. Nessa obra, Locke critica a fundamentação do direito do monarca à chefia do poder político por uma determinação divina. O foco de seus ataques se dirige ao denominado princípio da paternidade. Por tal princípio, Deus, ao criar o mundo, concedeu a Adão e aos demais patriarcas por sucessão hereditária, autoridade absoluta para disporem, conforme seu arbítrio, de tudo aquilo que foi obra do Senhor, inclusive os homens. Os monarcas europeus seriam os sucessores dos patriarcas, pois também são os legítimos representantes divinos na Terra. Isso lhes conferiria a condição de proprietários dos homens e das

43 demais criaturas de Deus. Seguindo o mesmo raciocínio, o princípio da paternidade instituiria o dever de honra dos filhos em relação aos pais, fazendo com que os súditos fossem obrigados a prestar obediência completa em relação aos desígnios de seu Rei.

Por minuciosa exegese do texto bíblico, Locke (2001) demonstra, em seu

Primeiro Tratado sobre o Governo Civil, de 1764, que os fundamentos de Robert

Filmer para justificar o poder absoluto dos reis seriam inconsistentes e que, em verdade, Deus não teria colocado nenhum homem em situação de submissão a outro.

Ele mostra que nem Adão, nem qualquer outro homem, recebeu o mundo de Deus para exercer um domínio privado. Pelo contrário, o ato divino da criação foi feito para toda a humanidade em comum:

O que quer que Deus tenha outorgado através das palavras dessa concessão (Gn 1, 28) não o outorgou para Adão em particular, à exclusão de todos os demais homens: qualquer que tenha sido o domínio que o outorgou mediante tal concessão, não se tratava de um domínio privado, mas um domínio comum com o restante da humanidade (LOCKE, 2001, p. 231, grifos do autor)

A refutação da autoridade absoluta das monarquias divinas culmina na constatação de que há uma igualdade radical entre todos os homens no que tange à capacidade do exercício o poder político (KUNTZ, 1998). Segundo Locke (2001), essa seria a condição do denominado estado de natureza:

(...) o estado em que todos os homens naturalmente estão, o qual é um estado de perfeita liberdade para regular suas ações e dispor de suas posses e pessoas do modo como julgarem acertado, dentro dos limites da lei da natureza, sem pedir licença ou depender da vontade de qualquer outro homem. Um estado também de igualdade, em que é recíproco todo o poder e jurisdição, não tendo ninguém, mais que outro qualquer – sendo absolutamente evidente que criaturas da mesma espécie e posição, promiscuamente nascidas para todas as mesmas vantagens da natureza e para o uso das mesmas faculdades, devam ser também iguais umas às outras, sem subordinação ou sujeição (...) (LOCKE, 2001, p. 381-382, grifos do autor)

Diniz (2001) afirma que o estado de natureza proposto por Locke apresentaria as condições ideais para a convivência recíproca entre os homens, pois 44 nesse estado, seu agir moral estaria determinado por uma lei natural. Otacílio

Rodrigues da Silva (2005) descreve do seguinte modo a origem e o fundamento da lei da natureza descrita por Locke:

A existência da lei natural é deduzida do caráter teleológico de todos os seres: as plantas, os animais e o homem vivem segundo leis imutáveis que operam conforme a natureza de cada ser, pois ‘existe uma natureza divina que governa o mundo’. Deus ordenou, segundo a sua vontade e sabedoria, as coisas a um fim proporcional a cada espécie. No universo existe uma lei natural criada por Deus que serve de norma diretiva para a vida do homem. Isto possibilita que a razão humana reconheça a virtude ou o vício das ações do homem. A ‘reta razão’ e a ‘lei da natureza’ são expressões empregadas por Locke como sinônimas para exprimir o fundamento do dever do agir moral. E este dever consiste em viver conforme a própria natureza. A lei natural é uma ‘disposição da vontade divina, cognoscível por meio da luz natural do intelecto’. À medida que o homem age em conformidade ou desconformidade com a natureza racional, a lei natural expressa uma ordem ou uma proibição. (SILVA, 2005, p. 409, grifos do autor)

Locke concebe que todos os homens são capazes de conhecer as regras da vida social – deduzidas da lei natural – por uma intuição moral. É a racionalidade humana que lhes permite esse poder:

A luz da razão seria a própria lei fundamental a governar todos os homens na condição natural. A razão, segundo Locke, seria o liame subjetivo comum a todos os indivíduos porventura nela existentes. É, precisamente, quando os homens se afastam da razão, cedendo a seus apetites bestiais e perversos, que eles saem do estado de natureza e passam a uma outra condição. Uma vez comportando-se contrariamente aos ditames da lei natural da razão, fundamento do estado de natureza, esses homens se colocam fora-da-lei e, como decorrência, deverão ser punidos e não mais usufruirão dos direitos subjetivos garantidos pela ratio na proporção da violação cometida. (DINIZ, 2001, p. 156, grifos do autor)

Hobbes havia eliminado toda e qualquer possibilidade de se atribuir um valor à lei natural, pois a reduziu ao mero instinto animal de auto-preservação

(KUNTZ, 1998). Em Locke, ao contrário, a lei da natureza ganha conteúdo normativo preciso e um valor positivo: são prescrições cujo conteúdo é amplamente cognoscível e que devem ser necessariamente observadas por todos os homens para que possam

45 conviver em harmonia social. Veja-se como o próprio Locke (2001) apresenta suas proposições acerca da lei natural:

Mas embora esse seja um estado de liberdade, não é um estado de licenciosidade; embora o homem nesse estado tenha uma liberdade incontrolável para dispor de sua pessoa ou posses, não tem liberdade para destruir-se ou a qualquer criatura em sua posse, a menos que em um uso mais nobre que a mera conservação deste o exija. O estado de natureza tem para governá-lo uma lei da natureza, que a todos obriga; e a razão, em que essa lei consiste, ensina a todos aqueles que a consultem que, sendo todos iguais e independentes, ninguém deveria prejudicar a outrem em sua vida, liberdade ou posses. (LOCKE, 2001, p. 384, grifos do autor)

Segue-se que também o homem concebido por Locke é diferente daquele concebido por Hobbes. No pensamento deste autor, a faculdade da razão leva cada indivíduo a desconfiar de seu próximo e a desencadear a guerra de todos contra todos.

Em Locke, ocorre o contrário: a capacidade de ser racional é justamente o que dá ao homem a possibilidade de conhecer e respeitar prescrições comuns que permitem o convívio social (POLIN, 1992b). Portanto, o ser humano concebido por Locke é naturalmente um ser social. Essa sociabilidade é construída a partir de cada individualidade, pois é a racionalidade individual que leva cada um dos homens a conhecer e a praticar a lei natural. Por esse motivo, a capacidade racional é a base que constitui o individualismo de Locke, como conclui Polin (1992b) ao analisar a tradição nominalista de sua filosofia:

A identidade de um ser racional é função da consciência que acompanha todo pensamento. É a consciência que assegura a identidade da pessoa e que faz com que cada um seja um eu individual e se reconheça como tal. Poder-se-ia dizer que a liberdade efetua a individualização que a consciência reconhece e estabelece, se a liberdade já não fosse, ela própria, uma função do pensamento racional e, conseqüentemente, da consciência. A liberdade da pessoa não pode ser senão aquela de um ser dotado de razão. (POLIN, 1992b, p. 134)

A condição de indivíduo racional confere ao homem também o poder de dispor e agir livremente sobre seu corpo. Uma vez que, no estado de natureza, o

46 homem não está subordinado a outra vontade que não a sua própria, ele não se encontra constrangido pelos demais a realizar os seus atos morais. Assim, cada um é responsável por determinar aquilo que é o seu dever. Somente sua vontade diz o que ele fará com seu corpo. Isso cria a noção de pessoa individual, sujeito de direitos e de obrigações enquanto ser natural:

Esta liberdade natural que é, para o indivíduo, o princípio da propriedade de si mesmo, é, então, por muitas razões, um direito igual em todo homem. Cada homem nasceu, com efeito, com um duplo direito: o direito à liberdade de sua pessoa, o direito à propriedade de seus bens. Ora, são precisamente estes direitos naturais que, para Locke definem o indivíduo, que são reconhecidos tradicionalmente como os critérios do individualismo. E mesmo que o termo inalienável não figure no vocabulário de Locke, não é menos verdadeiro, apesar de certos sarcasmos contemporâneos, que efetivamente o são. O homem, com efeito, não é o senhor de dar ou de recusar a si próprio estes direitos que lhe são conferidos pela lei natural; visto que eles definem a natureza humana, sua essência real, eles são inalienáveis (POLIN, 1992b, p. 135)

Sendo o homem já sujeito de direitos e deveres em relação à lei natural,

Locke poderá, por exemplo, sustentar que se adquire a propriedade de bens antes mesmo da constituição da sociedade civil. Isto é, ainda no estado de natureza. Pois, por seu trabalho, o homem imprime uma marca pessoal naquilo que foi deixado pela natureza em estado bruto. Nesse processo de transformação da natureza o homem estabelece um vínculo com o objeto trabalhado, conferindo-lhe o direito de assenhorear-se da coisa e, assim, constituí-la como sua propriedade. Veja-se a descrição desse processo pelas palavras do próprio Locke:

Embora a Terra e todas as criaturas inferiores sejam comuns a todos os homens, cada homem tem uma propriedade em sua própria pessoa. A esta ninguém tem direito algum além dele mesmo. O trabalho de seu corpo e a obra de suas mãos, pode-se dizer, são propriamente dele. Qualquer coisa então que ele retire do estado com que a natureza a proveu e deixou, mistura-a ele com o seu trabalho e junta-lhe algo que é seu, transformando-a em sua propriedade. Sendo por ele retirada do estado comum em que a natureza a deixou, a ela agregou, com esse trabalho, algo que a exclui do direito comum dos demais. Por ser esse trabalho propriedade inquestionável do trabalhador, homem nenhum além dele pode ter direito àquilo que a esse trabalho foi agregado, pelo menos enquanto houver bastante e de igual qualidade deixada em comum para os demais. (LOCKE, 2001, p. 407-409)

47

Aqui, se marca outra diferença em relação a Thomas Hobbes: em Hobbes, a propriedade é fruto da constituição das leis civis (KUNTZ, 1998). Antes do contrato social, existiria apenas a posse provisória dos objetos, assegurada pela força. Locke argumentará que a presença do trabalho humano, no ato de apropriação original dos objetos encontrados no estado natural, cria a propriedade. O trabalho imprimiria uma marca individual em cada coisa natural, submetendo-a, assim, ao domínio do trabalhador.

No estado de natureza, portanto, os direitos à vida, à liberdade e à propriedade são frutos da ordem emanada pela lei natural. E são também os principais valores a serem preservados pelos homens para que tenham o melhor convívio social.

Desse modo, faz-se necessário que os homens garantam o cumprimento da lei natural por todos, para lhes assegurar os respectivos direitos naturais. Portanto, eles devem entrar em um acordo pelo qual se obrigam a constituir um governo civil, dando origem ao Contrato Social que institui o poder político.

O pacto social de Locke implica na renúncia, por parte de cada um, ao exercício da denominada jurisdição recíproca (KUNST, 1998), que é a capacidade de atuar como próprio juiz e executor da lei natural. Os homens transfeririam esse poder a um ente político isento – o Estado – que se encarregaria de duas missões principais: elaborar as leis civis que melhor refletem o conteúdo da lei natural e ser o árbitro nas controvérsias surgidas entre os homens quanto à interpretação das regras de convivência em sociedade (FRANÇA, 2000).

No entanto, renunciar ao exercício da jurisdição da lei natural não significa abrir mãos dos direitos que o homem possui no estado de natureza. Muito pelo contrário, o governo civil está estritamente vinculado aos limites criados pelos direitos

48 individuais que cada um possui e conserva dentro da sociedade política. Assim, a atuação do Estado encontra-se delimitada por fronteiras que ele não pode transpor:

O indivíduo só abandonou estritamente o direito natural de interpretar a lei natural e o poder de fazê-la executar na medida em que é capaz. Ele aceitou de uma vez por todas que as leis gerais definam suas relações com os homens em cuja companhia vive. Mas conserva todos os outros direitos e todos os outros poderes que lhe confere a lei natural, pois esta não desaparece no estado civil; ele conserva o direito à integridade de sua pessoa e de seus bens. A natureza da propriedade é tal que, em nenhum caso, nenhum poder, ainda que fosse o poder supremo e mesmo que fosse por uma lei, não pode sofrer um ataque legítimo. Seria absurdo se fosse de outra maneira: a salvaguarda da propriedade não é o objetivo para o qual um governo foi instituído? (POLIN, 1992b, p. 150)

Desse modo, com Locke, o itinerário da liberdade moderna finalmente atinge o ponto em que o fundamento da vida em sociedade depende tanto da preservação contra intervenções arbitrárias por estranhos na esfera dos indivíduos, quanto da preservação de sua capacidade formal de agir de acordo com uma vontade pessoal autêntica. Sua doutrina é um dos importantes marcos do Liberalismo, pois permite identificar, no conceito de liberdade, ao mesmo tempo: o princípio da propriedade-de-si; e a necessidade de preservação da propriedade dos bens que constituem a individualidade contra a intervenção de terceiros e do Estado por meio de um rígido sistema de direitos individuais.

Contudo, o desenvolvimento do conceito de liberdade não se encerraria com a mera capacidade formal de aquisição de direitos e com um dever geral de não- intervenção da coletividade nos desígnios das vontades dos indivíduos. O advento do capitalismo e dos sistemas representativos de governo – monárquicos ou republicanos– indicará para o homem, de modo cada vez mais claro, que ser livre é também ter a capacidade de efetivamente satisfazer necessidades e aspirações. Isso inaugurará novo aspecto da liberdade moderna que colidirá com tudo aquilo que até então estava colocado.

49

2.3.4 – Liberdade e autonomia segundo Rousseau

Jean-Jacques Rousseau é um autor que não segue o marco liberal inaugurado por John Locke. Seu pensamento político e filosófico rejeitava a idéia de que os interesses individuais de cada um pudessem construir rumos sadios para as instituições políticas. Não obstante, todo seu raciocínio desenvolve-se tendo em vista a liberdade humana. Essa conciliação é possível porque a genialidade de Rousseau consistiu em acrescentar, ao conceito de liberdade, algo que lhe era essencial, mas que não havia sido abordado seriamente pelos pensadores liberais que o antecederam: a autonomia.

Em sua análise sobre a questão da liberdade, Rousseau parte da afirmação de que o progresso cultural não trouxe ao homem um poder de emancipação. Muito pelo contrário, o bem-estar e as comodidades conquistadas pela civilização tornaram o homem um ser dependente de necessidades culturais, já que, para poder usufruir de tais bens, o homem perdeu a capacidade de ser auto-suficiente, ou seja, de bastar-se a si mesmo. Rousseau entendia que o poder de se satisfazer com os recursos oferecidos pela própria natureza, de acordo com necessidades também exclusivamente naturais, representava um valor positivo que o homem possuía em um estágio pré-social denominado estado de natureza (SAHD, 2005). Segundo ele, a realização da completa liberdade humana tem sua referência nesse estágio. No Discurso sobre a Origem da

Desigualdade entre os Homens, de 1753, Rousseau descreve as características dessa condição natural:

Despindo esse ser assim constituído de todos os dons sobrenaturais que pode receber e de todas as faculdades artificiais que pode adquirir somente por longos progressos; considerando-o, em uma palavra, tal como deveria ter saído das mãos

50 da natureza, vejo um animal menos forte do que uns, menos ágil do que outros, mas, afinal de contas, organizado mais vantajosamente do que todos; vejo-o saciando-se debaixo de um carvalho, matando a sede no primeiro regato, encontrando o seu leito ao pé da mesma árvore que lhe forneceu o repasto; e eis satisfeitas as suas necessidades. (ROUSSEAU, 2001, p. 14)

No estado de natureza, o homem somente se submeteria às exigências das necessidades naturais. Para satisfazer essas necessidades, o homem desenvolveria um conjunto de deveres ligados ao agir denominado de “lei natural”. Essa lei natural imporia obrigações ao homem, diferenciando-se, todavia, do instinto animal. Em contraposição aos animais, o homem possui a capacidade de não obedecer às ordens da natureza que lhe chegam pelos sentidos e pelo instinto:

Não vejo em todo animal senão uma máquina engenhosa, à qual a natureza deu sentidos para prover-se ela mesma, e para se preservar, até certo ponto, de tudo o que tende a destruí-la ou perturbá-la. Percebo precisamente as mesmas coisas na máquina humana, com a diferença de que só a natureza faz tudo nas operações do animal, ao passo que o homem concorre para as suas na qualidade de agente livre. Um escolhe ou rejeita por instinto, o outro por um ato de liberdade, o que faz com que o animal não possa afastar-se da regra que lhe é prescrita, mesmo quando lhe fosse vantajoso fazê-lo, e que o homem dela se afaste freqüentemente em seu prejuízo. (...) Não é, pois, tanto o entendimento que estabelece entre os animais a distinção específica do homem como sua qualidade de agente livre. A natureza manda em todo animal, e a besta obedece. O homem experimenta a mesma impressão, mas se reconhece livre de aquiescer ou resistir; e é sobretudo na consciência dessa liberdade que se mostra a espiritualidade de sua alma; porque a física explica de certa maneira o mecanismo dos sentidos e a formação de idéias; mas, no poder de querer, ou melhor, de escolher, e no sentimento desse poder, só se encontram atos puramente espirituais , dos quais nada se pode explicar pelas leis da mecânica. (ROUSSEAU, 2001, p. 18)

Rousseau afirma que não é a razão que permite o acesso do homem ao conhecimento das regras contidas na lei natural, mas sim os sentimentos (SAHD,

2005; SANTIAGO, 2004). Como os sentimentos se apresentariam de maneira imediata ao homem, eles seriam anteriores às faculdades intelectuais e às do entendimento. Dentre os sentimentos do homem, dois se destacam como fundamentais para a capacidade de formulação das regras de direito natural: o amor de si e a piedade

(JORGE FILHO, 1994). O amor de si expressa-se pelo princípio da auto-conservação:

51

Só, ocioso, e sempre vizinho do perigo, o homem selvagem deve gostar de dormir, e ter o sono leve, como os animais, que pensando pouco, dormem, por assim dizer, durante todo o tempo que não pensam. Constituindo a sua própria conservação quase, o seu único cuidado, as suas faculdades mais exercitadas devem ser as que têm por objeto principal o ataque e a defesa, seja para subjugar a presa, seja para se preservarem de ser a de outro animal. (...) Tal é o estado animal em geral, e é também, segundo as narrativas dos viajantes, o estado da maior parte dos povos selvagens. (ROUSSEAU, 2001, p. 17)

O sentimento de piedade, por sua vez, daria origem ao princípio da bondade. Rousseau argumenta que a bondade é inerente a toda forma animal, exemplificando que até mesmo um cavalo em disparada evita ferir outro ser vivo por repugnância ao mal que possa causar (ROUSSEAU, 2001). De modo semelhante, o homem possuiria um sentimento de piedade que lhe imporia a obrigação de ajudar seu próximo em toda a ocasião em que se encontrasse em dificuldade:

Vê-se, com prazer, o autor da Fábula das Abelhas, forçado a reconhecer o homem como um ser compassível e sensível, sair, no exemplo que dá do seu estilo frio e sutil, para nos oferecer a patética imagem de um homem fechado que percebe, fora, uma besta feroz arrebatando uma criança do seio da mãe, quebrando com os dentes assassinos os seus frágeis membros e despedaçando com as unhas as entranhas palpitantes dessa criança. Que horrível agitação experimenta a testemunha de um acontecimento no qual não tem nenhum interesse pessoal! Que angústia não sofre ao ver tal coisa, sem poder socorrer a mãe desfalecida ou a criança em agonia. (ROUSSEAU, 2001, p. 17)

Assim, as relações entre os sentimentos de amor de si e de piedade são constitutivas da lei natural para o homem:

É pois, bem certo que a piedade é um sentimento natural, que, moderando em cada indivíduo a atividade do amor de si mesmo, concorre para a conservação mútua de toda a espécie. É ela que nos leva sem reflexão em socorro daqueles que vemos sofrer; é ela que, no estado de natureza, faz as vezes de lei, de costume e de virtude, com a vantagem de que ninguém é tentado a desobedecer a sua doce voz; é ela que impede todo selvagem robusto de arrebatar a uma criança fraca ou a um velho enfermo sua subsistência adquirida com sacrifício, se ele mesmo espera poder encontrar a sua alhures; é ela que, em vez desta máxima sublime de justiça raciocinada, Faze a outrem o que queres que te façam, inspira a todos os homens esta outra máxima de bondade natural, bem menos perfeita, porém mais útil, talvez do que a precedente: Faze o teu bem como menor mal possível a outrem. Em uma palavra, e nesse sentimento natural, mais do que em argumentos sutis, que é preciso

52 buscar a causa da repugnância que todo homem experimentaria em fazer mal, mesmo independentemente das máximas da educação. (ROUSSEAU, 2001, p. 17)

A partir desses dois princípios, Rousseau refutará o argumento hobbesiano

de que o homem, no estado de natureza, age de acordo com cálculos racionais visando

à satisfação de interesses pessoais. Muito pelo contrário, ele sustenta que o homem

natural é bom, e não mau ou egoísta. Segundo seu argumento, Thomas Hobbes – e

toda a tradição contratualista – haveriam se equivocado ao atribuir ao homem natural a

primazia da faculdade intelectual sobre a sentimental. Isso porque o sentimento da

bondade antecede à razão que calcula e julga prazeres. Sendo assim, em virtude dessa

piedade que lhe é intrínseca e que concorre para elaborar as regras que o guiam

enquanto ser natural, o homem pré-social jamais viria a travar uma “guerra” contra seu

semelhante.

Logo, os apetites que levariam o homem a entrar em conflito com os

demais (tais como descritos por Hobbes, por exemplo18) seriam desconhecidos do

homem natural e, assim, não haveria qualquer impulso que gerasse reações egoístas

nele. O homem pré-social estaria circunscrito às necessidades que lhe foram

conferidas pela natureza e ele teria condições de satisfazê-las por conta própria

(SAHD, 2005). Desse modo, uma disputa por objetos exteriores que despertam desejos

no homem somente poderia ocorrer ao preço da perda da liberdade natural. Essa seria

a hipótese em que a vontade do homem submeter-se-ia aos apelos vindos das

sensações de prazer e de bem-estar, não mais se originando em si próprio. Nesse caso,

a vontade humana deixaria de tomar a si própria e as suas necessidades naturais como

única referência para a ação prática. Essa ação prática passaria a ser realizada em

função das exigências necessárias à aquisição dos objetos externos – o que, para

18 Remete-se o leitor ao capítulo X do Leviatã (HOBBES, 2005). 53 Rousseau, significava que o homem teria passado a viver como escravo de seus

desejos.

No entanto, o destino da condição natural do homem seria o

desaparecimento. O fim do paraíso perdido rousseauniano ocorreria porque a espécie

humana possuiria um poder de aperfeiçoamento que lhe desenvolveu o sentimento do

amor de si próprio. Ao conhecer o mundo ao seu redor, o homem descobriu formas de

garantir que sua conservação fosse cada vez menos ameaçada. Ele aprendeu técnicas

que lhe proporcionaram o conhecimento de novas sensações de prazer, em especial

quando uniu esforços com seus semelhantes (ROUSSEAU, 2001). Para perpetuar esse

bem-estar rudimentar que a condição natural não lhe permitia, ele estabeleceu certas

regras e modos de convívio. Assim, buscou assegurar sua experiência passada, criando

hábitos19. Por meio desse processo, o homem foi se tornando dependente dos objetos

que lhe traziam conforto, necessitando cada vez mais dos vínculos sociais que havia

estabelecido com seus semelhantes.

A igualdade entre os homens, no estágio pré-social, decorria do fato de que

todos eram capazes de satisfazer as suas necessidades naturais por conta própria. As

diferenças de aptidões e habilidades não eram suficientes para pôr fim a esse poder

comum. No novo estágio de convívio social em que o desempenho de tarefas

específicas para se alcançar finalidades sociais depende de habilidades e capacidades

pessoais, as desigualdades naturais entre os homens ganharam destaque. É nesse

sentido que se pode compreender a afirmação de Rousseau de que a civilização do

homem corrompeu o gênero humano, pois:

19 É interessante notar que, enquanto, para a tradição aristotélica de reflexão filosófica, o hábito possui um valor positivo por retirar o homem da escravidão dos sentidos ao lhe proporcionar uma “segunda” natureza cultural, para Rousseau é justamente por meio do hábito e dos costumes que se tornam “naturais” comportamentos que seriam responsáveis por conferir-lhe uma condição de escravo e de ser dependente. 54 (...) em uma palavra, enquanto se aplicaram exclusivamente a obras que um só podia fazer, e a artes que não necessitavam do concurso de muitas mãos, viveram livres, sãos, bons e felizes, tanto quanto podiam ser pela sua natureza, e continuaram a gozar entre si das doçuras de uma convivência independente. Mas, desde o instante que um homem teve a necessidade do socorro de outro; desde que perceberam que era útil a um só ter provisões para dois, a igualdade desapareceu, a propriedade se introduziu, o trabalho tornou-se necessário e as vastas florestas se transformaram em campos risonhos que foi preciso regar com o suor dos homens, e nos quais, em breve, se viram germinar a escravidão e a miséria, a crescer com as colheitas. (ROUSSEAU, 2001, p. 34)

Rousseau (2001) demonstra como o trabalho sedentário e coletivo deu origem à propriedade, pois havia a necessidade de se distribuírem os bens produzidos coletivamente. Além do mais, para cultivar a terra e minerar os metais, o homem necessitou empregar sua força de trabalho com maior intensidade. As diferenças relativas à capacidade de trabalho, à intensidade do consumo, à oferta e à procura de recursos repercutiram diretamente nos destinos individuais. Trabalhando e consumindo de modo desigual, em virtude das diferenças de capacidade dadas pela natureza, o homem passou a ter maior ou menor propriedade daquilo que era fruto do trabalho comum. Portanto, conclui Rousseau, são as regras e hábitos estabelecidos pela cultura, por meio do convívio em sociedade, e não a natureza, os responsáveis por criar as desigualdades entre os homens. Isso porque as regras que definem a apropriação e a conservação dos bens seriam, para utilizar uma imagem do próprio

Rousseau, os grilhões que mantêm o homem em sua condição de escravo dos objetos materiais. E a desigualdade entre os títulos de propriedade, fruto da desigualdade das aptidões, trouxe, por sua vez, as diferenças relativas à riqueza e ao poder entre os homens.

Como seria possível ao homem restabelecer a sua condição de ser livre?

Teria ele como resgatar sua liberdade natural? Como visto, o estado natural é um

“paraíso perdido”, pois não há formas de se retornar à condição primitiva, já que o homem não possui meios de apagar os hábitos adquiridos por sua experiência cultural.

55 Sua dependência do bem-estar e dos objetos exteriores já está consolidada e é parte de sua realidade cultural e histórica. Assim, ele precisa buscar outro tipo de liberdade, que seja condigno com sua condição de ser civilizado.

A liberdade natural foi concebida por Rousseau como não-submissão da vontade particular a outras vontades. Uma vez que o homem perdeu a liberdade natural pela imposição de vontades particulares umas sobre as outras, a solução encontrada para se repelir essas dominações será a fusão das diversas vontades em uma só que possa representar, ao mesmo tempo, todas elas. Desse modo, as diferenças de posição social decorrentes do processo de civilização poderiam ser neutralizadas, já que essa convergência de vontades criaria um poder comum, do qual todos fazem parte e ninguém é titular exclusivo:

Submetendo-se cada um a todos, não se submete a ninguém em particular, e como não há um associado sobre o qual se adquira o mesmo direito que se cede sobre si próprio, ganha-se a equivalência de tudo o que se perde e maior força para conservar a que se possui.(...) Naquele instante, no lugar da pessoa particular de cada contratante, este ato de associação produz um corpo moral e coletivo, composto de tantos membros quanto a assembléia de votantes, o qual recebe deste mesmo ato sua unidade, seu eu comum, sua vida e sua vontade. (ROUSSEAU, 1969, p. 49)

O contrato social cria o Estado por meio da alienação de cada uma das liberdades naturais ao ente coletivo. As diversas vontades particulares são todas fundidas para dar origem a uma só vontade coletiva que passa a representar o interesse dos componentes enquanto uma unidade. Uma vez que cada um concorre somente com sua vontade singular para a criação da vontade geral e que nenhuma das vontades

é superior à outra, todos contribuem na mesma medida para a construção das regras de convívio em sociedade. Há, assim, uma reconquista da igualdade, pois as eventuais diferenças de poder e de capacidade econômica são neutralizadas. Por força da participação de cada individualidade no processo de construção da vontade geral, tem-

56 se a reconquista da liberdade humana na condição política, uma vez que obedecer

regras que foram construídas em comunhão com o corpo social significa, em última

instância, uma obediência a si próprio. Essa é a proposta do contrato social de

Rousseau:

Encontrar uma forma de associação que defenda e proteja a pessoa e os bens de cada associação, de qualquer força comum, e pela qual, cada um, unido-se a todos, não obedeça, portanto, senão a si mesmo, ficando assim tão livre como dantes (ROUSSEAU, 1969, p. 48)

A liberdade a ser perseguida pelo homem, no estágio da vida civil, não é

mais aquela de ser individualmente capaz de bastar-se a si mesmo. Sua liberdade agora

será realizada pelo convívio em comunidade (NASCIMENTO, 1998). Para o homem

pré-social, a liberdade consistia em obedecer somente ao apelo das necessidades

naturais para a definição das regras que conduziriam seu agir. Já o homem civil obterá

sua liberdade cumprindo as regras definidas por todos para a vida coletiva.

“Submetendo-se cada um a todos, não se submete a ninguém em particular”

(ROUSSEAU, 1969, p. 49) diz Rousseau, aludindo ao fato de que a autonomia

individual dá lugar à autonomia coletiva na verificação da liberdade.

Ao sustentar que a liberdade é conquistada pelo respeito às cláusulas do

contrato social, Rousseau lança as bases de um pensamento acerca da liberdade

completamente distinto daquele articulado por Locke. Em Locke, a liberdade do

homem é encontrada naquele âmbito de exercício da vontade não restringido pelas

regras sociais ou por terceiros20. É, portanto, o espaço da privacidade que expressa a

subjetividade de cada um. Para Rousseau, esses “poderes” conferidos à vontade

particular são apenas resquícios da condição natural. Eles somente perpetuam a

20 Em linhas gerais, a liberdade em Locke é a representação daquilo que acima foi denominado de liberdade negativa. 57 desigualdade entre os homens após o processo de socialização. Logo, essa “pseudo”

liberdade não poderia servir de modelo para a vida em sociedade. A liberdade

autêntica, própria à condição social do homem, deverá privilegiar o espaço público e é

alcançada pelo exercício das virtudes morais e cidadãs21. As duas concepções são

contrastantes22:

O homem civil não pode, portanto, reivindicar o direito à liberdade natural, sem, com isso, estar pondo em risco a própria comunidade política. Ele só pode reivindicar a parte que lhe cabe na associação, isto é, sua liberdade convencional e moral, que já não depende exclusivamente da sua vontade, mas que se define pela vontade do conjunto dos membros da associação. (NASCIMENTO, 1998, p. 34)

Segundo Rousseau, o que dá expressão ao exercício da liberdade é a

submissão aos deveres criados pelo corpo coletivo. Agindo-se em cumprimento aos

deveres elaborados por todos por meio do mecanismo do contrato social, há o

restabelece-se a autonomia:

Para que, pois, o pacto social não seja uma fórmula vã, deve encerrar tacitamente esta obrigação: só ele pode dar força aos outros, sendo aquele que recusar obedecer à vontade geral compelido a isso por todos, o que não significa outra coisa senão que se lhe obrigará a ser livre, porque tal é a condição que, oferecendo cada cidadão à pátria, esta o garante de toda dependência pessoal, natureza que constitui o artifício da máquina política e que legitima as relações civis, as quais sem elas seriam absurdas, tirânicas e sujeitas aos maiores abusos.(...) Poder-se-á, sobre o que precede, acrescentar ao que se adquire com o estado civil, a liberdade moral, que faz o homem verdadeiramente dono de si próprio, porque o impulso dos apetites é a escravidão, e a obediência à lei que a cada um de nós se prescreve constitui a liberdade. (ROUSSEAU, 1969, p. 53-54)

Ser livre é justamente obedecer às regras estabelecidas pelo pacto social, já

que essas regras reiteram a expressão da vontade geral e promovem o fortalecimento

do ente político que representa a todos. Quando sustenta que o “termômetro” de

verificação da liberdade humana é a realização dos papéis que o homem assume como

21 Rousseau resgata a noção antiga de liberdade, ao defini-la como liberdade positiva, ou seja, aquela que se realiza pela contribuição para o vigor da comunidade. 22 Não é por acaso que Rawls (2002) associará as duas distintas tradições do pensamento político moderno a Locke e a Rousseau. 58 membro de um corpo social, Rousseau inaugura um modo de compreensão daquele

conceito que ganhará destaque na história da filosofia política. Até mesmo o

pensamento liberal clássico que privilegiava a liberdade exercida “em face” do

Estado23 será reformulado por Immanuel Kant, de modo a conferir à autonomia a

chave para a compreensão moderna da liberdade moderna.

2.3.5 – A vontade livre segundo Immanuel Kant

O processo de “descentramento radical” inaugurado na modernidade

encontrará no iluminismo24, ou esclarecimento, o seu apogeu. O racionalismo radical

virá em socorro do iluminismo em seu projeto de banir do mundo moral toda ordem

que encontra na autoridade religiosa seu fundamento. O novo abrigo da moral é a

Razão. Com isso, ela passa a se submeter aos princípios que orientam a cognição do

homem. Assim, afastados os rígidos padrões de comportamento moral que a Religião

sustentava, as dimensões natural e sentimental do homem, que foram reprimidas por

tanto tempo pela dominação religiosa, ganham espaço.

O indivíduo que percebe, testa, experimenta, desenvolvendo paixões,

sentimentos e inclinações – senhor de si em todo esse processo – será o modelo de

homem desse período. No campo moral, esse naturalismo materialista levará a um

23 A expressão é Norberto Bobbio (1991). 24 “Na sua significação mais ampla, a Ilustração (ou iluminismo) compreende o movimento de idéias que dominou o século XVIII europeu (cronologicamente a idade da Ilustração estende-se de 1680 a 1780, datas convencionais propostas, por exemplo, por Pierre Chaunu), e sua repercussão nos campos político, religioso, filosófico, científico, literário e artístico, definindo um ‘espírito’ (Geist) que marcou toda uma época e conferiu fisionomia própria a toda uma civilização, designada exatamente como civilização da Ilustração.” (VAZ, 1991, p.91) No que tange às peculiaridades das dimensões filosófica e científica, tem-se a seguinte descrição: “Experiência e análise: eis os dois termos-chave da linguagem filosófico-científica da Ilustração. Eles definem os constitutivos essenciais de uma idéia da Razão que se considera una e universal e que reconhece o seu ‘discurso do método’ na Regulae philosophandi que abrem os Principia de Newton. A ambição dessa Razão, seu intento de conquistar todos os domínios do saber humano e de tornar-se a norma de uma pedagogia que deve estender-se a toda a humanidade, universalizando a libido sciendi: eis o vetor fundamental que atravessa o espaço mental da Ilustração. Dessa sorte, a linha de evolução segundo a qual Ilustração lê a história humana é traçada segundo os progressos da Razão.” (VAZ, 1991, p.92) 59 relativismo moral centrado na subjetividade humana. A literatura libertina25 do séc.

XVIII e, em especial, do Marquês de Sade retratam esse momento de emancipação do

homem do jugo dos tabus religiosos (TROUSSON, 1996).

Entremeada por descrições de cenas de práticas sexuais que transgridem a

moralidade comum e, em especial, a religiosa, a obra de Sade tem em seus

personagens a expressão dessa moralidade naturalista e materialista que o iluminismo

inaugurou. Em Justine: ou os infortúnios da virtude, Sade descreve a história de duas

jovens que, durante a adolescência, perdem os pais e terão que trilhar seus rumos na

hostil sociedade burguesa nascente. Juliette, aquela que desde nova compreende e

aceita o caráter egoísta dos homens e da sociedade e age com indiferença às regras

morais e em preocupação com sua própria sorte, tem sucesso em sua trajetória de vida.

Sua dignidade vilipendiada nada significa diante dos frutos materiais colhidos. Justine,

a irmã que se apega aos valores consagrados pela virtude religiosa, sofre sucessivos

reveses em sua trajetória de vida, todos eles causados pelas ações decorrentes de sua

perseverança e obstinação moral.

O cenário e os personagens que interagem com Justine são todos produtos

dessa sociedade burguesa altamente individualista, egoísta e materialista. A seqüência

em que aparecem serve para mostrar a Juliette que o mundo da moral religiosa que ela

preza não mais existe.

Afirmou: este pão que aqui vede é a minha carne; como tal havereis de o digerir; ora eu sou Deus e, portanto, Deus será digerido por vós, o Criador do Céu e da Terra, tornar-se-á, porque eu o disse, na mais vil matéria que o corpo do homem pode exalar, e o homem comerá Deus porque Deus é bom e todo-poderoso. E entretanto estas inépcias vão-se espalhando; o seu crescimento é atribuído a sua

25 Raymond Trousson (1996) diz que a origem do termo libertino está ligada à denominação dada por Calvino a seitas protestantes dissidentes que viveram no norte da França, que se caracterizavam por uma prática religiosa e de costumes marcada por um anarquismo moral. No sentido em que se aplica à literatura do séc. XVIII, o termo apresenta dois aspectos: o primeiro ligado a uma dimensão ideológica, que busca de liberdade de expressão nos escritos contrários à moral sexual e o segundo ligado a uma ‘arte da existência’ em que o erotismo e a sensualidade são componentes de um peculiar modo de vida. 60 realidade, grandeza e sublimidade, bem como ao poder de quem as inventou, ao mesmo tempo que algumas causas simples duplicam a sua existência e que o crédito, sempre dado ao erro, encontra eco nos patifes e nos imbecis. Não tardará que esta infame religião suba ao trono e é um imperador fraco, cruel, ignorante e fanático que, envolvendo-a no manto real, suja com ela o mundo inteiro. Que peso poderão ter todas estas razões, Teresa, sobre um espírito reflectido e filósofo?Poderá o sábio ver nesta colecção de fábulas espantosas algo mais do que um produto da impostura de certos homens e da credulidade da multidão? Se fosse vontade de Deus que nós tivéssemos uma religião, se ele fosse de facto omnipotente ou, para dizermos tudo, se realmente houvesse Deus, seria por meios tão absurdos que ele comunicaria suas ordens? Seria por intermédio dum desgraçado bandido que ele mostraria como devemos servi-lo? (...) escolher como seguidor o povo mais pérfido e mais visionário; como substituto o mais vil, o mais absurdo o mais velhaco dos artesãos; embrulhar a doutrina de tal modo que se torna impossível compreendê-la; limitar o conhecimento da mesma doutrina a um pequeno número de indivíduos; deixar os outros no erro e castigá-los por isso... Não, Teresa, não! Nenhuma dessas atrocidades serve para me guiar; preferia morrer mil vezes a acreditar nelas. (SADE, 2001, p. 79-81)

Em oposição à moral religiosa entra em cena o hedonismo dos sentidos. A orientação moral dada pela experiência sensível do prazer, do gozo e da satisfação, abre campo para um completo relativismo de valores.

Ora, se podemos afirmar que o gozo dos sentidos está sempre dependente da imaginação, é sempre regulado pela mesma imaginação, nada terão de espantoso as numerosas variações que a imaginação sugerir nesses gozos, nada terá de espantoso o número infinito de gostos e de paixões que os muitos desvios da imaginação criarem. Estes gostos, por muito luxuriosos que sejam, não deverão impressionar mais do que impressionam outros dum gênero mais simples; não há motivo algum para se achar mais extraordinária uma fantasia de cama do que uma fantasia de mesa; num como noutro gênero, não é mais espantoso idolatrar uma coisa que o homem comum acha detestável de que gostar-se duma que é geralmente reconhecida por todos como boa. A unanimidade é uma excelente prova da boa conformação dos órgãos, mas nada prova em favor da coisa amada. Três quartos do universo podem achar delicioso o cheiro duma rosa, mas isso não provará que se possa condenar o outro quarto, o que o detesta, nem sequer demonstrará que tal cheiro é verdadeiramente agradável. Se há, portanto, no mundo seres cujos gostos vão contra todos os preconceitos, não só não devemos espantar-nos e muito menos censurá-los ou puni-los, como devemos servi-los, satisfazê-los, aniquilar todos os freios que os molestam e dar-lhes, se quisermos ser justos, todos os meios de os satisfazerem sem risco. Eles são tão responsáveis por terem esse gosto estranho como o são os que nasceram inteligentes ou estúpidos, perfeitos de corpo ou corcundas. (SADE, 2001, p. 177)

A referência do prazer, que se impõe como medida da moral, encontra-se na satisfação individual, criando condições para a introdução de um naturalismo biológico em que imperaria o cálculo da felicidade individual e a lei do mais forte

(ADORNO & HORKHEIMER, 1985) nas relações sociais: 61

Como vos atreveis, de resto, a dizer – prosseguiu a horrível criatura – que duzentos luíses não valem três mortes? Devemos calcular as coisas pela relação que elas tenham com os nossos interesses. A cessão da existência de cada um dos seres sacrificados é, para nós, de nulo valor. É evidente que nenhum de nós daria dinheiro para que tais indivíduos continuassem vivos ou fossem enterrados; se, portanto, um caso semelhante pode reverter em benefício nosso, é nosso dever determiná-lo de preferência em nosso favor; porque, tratando-se de alguma coisa totalmente indiferente, temos a obrigação, se formos espertos e senhores do que fazemos, de virar claramente para o lado que mais proveito nos traga, abstraindo completamente do prejuízo que daí advenha par o adversário; porque não há qualquer proporção razoável entre o que nos toca e o que toca aos outros; aquilo sentimo-lo fisicamente, enquanto isto só o sentimos moralmente e todas as sensações morais são enganosas; só nas sensações físicas há verdade. (SADE, 2001, p. 51)

Ou como se verifica nesse outro trecho:

Os homens nasceram todos isolados, invejosos, cruéis e déspotas; almejam possuir tudo e nada ceder, lutam incessantemente para manter ora a ambição ora os direitos que possuem; chega o legislador e diz: não combatais dessa maneira; se cederdes um pouco de parte a parte, a tranqüilidade há-de voltar... Não censuro a posição deste pacto, afirmo tão-somente que há duas espécies de indivíduos que nunca o aceitaram; os que se sentem mais fortes não precisam ceder para serem felizes; os mais fracos teriam sempre de ceder infinitamente mais do que lhes era concedido. Mas a sociedade é, efectivamente, composta de seres fortes e de seres fracos; se o referido pacto tivesse de agradar a uns e a outros, nem por sombras seria doa grado da sociedade e o anterior estado de guerra passaria a ser preferível, pois concederia a cada um o livre exercício de suas forças e da sua astúcia, exercício de que fora privado pelo injusto pacto duma sociedade, que sempre roubava sempre muito a um, nunca dando o suficiente ao outro. Verdadeiramente sensato é, portanto, aquele que, com risco de voltar ao estado de guerra anterior ao pacto, viola-o como pode, certo de que o ganho de tais lesões há-de ser sempre preferível a tudo quanto possa perder no caso de ser o mais fraco; porque fraco não deixaria de o ser, se respeitasse o pacto; violando-o, tem possibilidades de vir a ser o mais forte; e se as leis o forçarem a regressar à classe de ele desejava sair, a única coisa que poderá perder é a vida, desgraça infinitamente menor do que uma existência humilhada e miserável. (SADE, 2001, p. 54-55)

Seguindo o espírito iluminista, Sade (2001) mostrou que a filosofia moral de sua sociedade emprega a racionalidade de uma maneira cega em relação aos fins concretos a que se destina. Segundo Adorno & Horkheimer (1985) toda a filosofia moral iluminista compartilharia com Sade essa mesma característica de pregar uma razão desvinculada de seu substrato. Mesmo o extremo oposto do anarquismo moral

62 de Sade, que se encontra na ética do dever de Immanuel Kant, por exemplo, guardaria semelhante característica. Ambas seriam faces distintas de uma mesma moeda.

A questão central que orienta o pensamento de Kant acerca da liberdade é: de que modo o homem é capaz, ele próprio, de elaborar uma lei moral racional que pautará sua conduta de vida, sem que essa lei dependa de fatores sociais externos ou de contingências particulares? John Rawls (2002) responde o que significa tal questão para Kant:

Kant acreditava, julgo eu, que uma pessoa age de modo autônomo quando os princípios que norteiam suas ações são escolhidos por ela como a expressão mais adequada possível de sua natureza de ser racional igual e livre. Os princípios que norteiam suas ações não são adotados por causa de sua posição social ou de seus dotes naturais, ou em vista do tipo particular de sociedade em que ela vive ou das coisas específicas que venha a querer. Agir com base em tais princípios é agir de modo heterônomo. (RAWLS, 2002, p. 276)

Assim, Kant (1974a) buscava um fundamento para as regras morais que não tomasse o prazer ou o bem como última referência. Segundo ele, a experiência de prazer e de dor, que dá origem aos bens particulares de cada um, apenas produziriam um conhecimento de tipo contingente cuja validade restringir-se-ia à situação vivenciada. Portanto, esse critério não serviria para tratar a liberdade como um tema científico, pois lhe faltaria o rigor exigido para essa forma de saber. Para que a liberdade fosse encarada de um ponto de vista científico, seria necessário que fosse concebida como um conceito puro, ou seja, como produto exclusivo da atividade da razão (1974b). Somente assim ganharia status de um conhecimento de validade universal e, portanto, aplicável a todas as situações de convivência humana.

Segundo Kant (1974b), um conhecimento somente pode ser tratado como puro quando é produto exclusivo da atividade da razão. Assim, é preciso que as assertivas construídas na elaboração desse conhecimento sejam independentes de

63 qualquer fonte empírica. Se isso ocorre, os juízos produzidos podem ser denominados

de juízos a priori, já que são produzidos antes de qualquer experiência sensível que os

comprove. Eles se contrapõem aos juízos a posteriori, que são formulados após a

percepção de um evento do mundo empírico pela sensibilidade e organizados pelo

entendimento26. Assim, como Kant pergunta-se pela possibilidade de a liberdade ser

um conceito puro, a primeira questão que se empenha a responder é: como é possível

que a liberdade seja pensada sob a forma de um juízo sintético a priori27?

Ao fazer uma análise dos limites do conhecimento humano, denominado

de razão teórica28, Kant constata que nem todos os movimentos se submetem ao

princípio da causalidade29 que rege a natureza. Haveria movimentos originários, isto

é, movimentos que não são efeitos de uma causa anterior que os determina. Como

esses movimentos originários não são regidos pela determinação causal, não poderiam

ser explicados pelo entendimento nem pela sensibilidade, pois essas duas categorias

transcendentais30 lidam apenas com a apreensão e a organização da experiência

26 Os axiomas e teoremas matemáticos, assim como os princípios da física, são bons exemplos de juízos a priori. Na assertiva todo corpo tem massa não há a necessidade de qualquer referência à experiência para se comprovar a veracidade da afirmação. Por outro lado, todos os juízos que são construídos em referência a uma experiência ocorrida podem ser qualificados de juízos a posteriori, como, por exemplo, quando se afirma que a parede é branca ou o ferro está quente. Para a formulação desse tipo de juízo são imprescindíveis a sensibilidade e o entendimento, responsáveis por captar e organizar o conhecimento empírico que o homem adquire sobre o mundo. 27 Enquanto os juízos sintéticos a posteriori retiram a sua validade da experiência sensível, os juízos sintéticos a priori são aqueles que acrescentam um predicado ao sujeito com exclusivo recurso à razão. 28 Kant analisa separadamente a atividade da razão humana, criando-se assim a distinção entre razão pura (ou teórica) e razão prática. No entanto, essa distinção se faz tão somente em função da diferença dos objetos com as quais cada uma delas trabalha, conforme explica Otfried Höffe(2005): “A razão prática não é nenhuma outra que a razão teórica; só há uma razão, que é exercida ou prática ou teoricamente. De modo geral, a razão significa a capacidade de ultrapassar o âmbito dos sentidos, da natureza. A ultrapassagem dos sentidos pelo conhecimento é o uso teórico, na ação é o uso prático da razão.” (HÖFFE, 2005, p.187-188) 29 O princípio da causalidade aqui referido é aquele cuja formulação original se remete à filosofia empirista de origem anglo-saxônica. Sua formulação mais célebre foi dada pelo filósofo David Hume (1973). Por tal princípio se aduz que todo o nosso raciocínio sobre questões de fato se baseia em encontrar relações de causa e efeito nas experiências que o aparelho cognitivo humano percebe. Kant não faz reparos à formulação do princípio da causalidade “O princípio diz que uma sucessão temporal só pode ser conhecida como mudança de um objeto e, portanto, como objetivamente válida se a sucessão não depende do arbítrio do percipiente, mas é verificada como caso de uma regra de causa-efeito e por isso – relativamente à sucessão dos fenômenos – como não reversível.” (HOFFE, 2005, p. 132) 30 O conceito de transcendental em Kant possui um caráter peculiar de sua filosofia, pois se refere a tudo aquilo que se apresenta como uma condição a priori para o conhecimento. São categorias transcendentais, portanto, 64 ocorrida no mundo sensível (LANDIM, 1996). Logo, porque no mundo dos

fenômenos não há uma antecedente ao movimento originário, o entendimento fica

impossibilitado de formular juízos a posteriori acerca desse movimento.

Desse modo, os movimentos originários devem ser explicados sem que se

faça referência à experiência sensível. Assim, o conhecimento que se constrói acerca

deles só poderá ser um produto exclusivo da reflexão racional e, por tal motivo, é

expresso sob a forma de juízos a priori.

Qual seria o fundamento dos movimentos originários, que não pode ser

apreendido pela sensibilidade que capta os fenômenos empíricos? A vontade31,

responde Kant (1974a). A vontade é uma idéia elaborada pela razão pura para explicar

o movimento espontâneo. É pela presença desse elemento na constituição do

movimento originário tornando-o independente das determinações naturais que, para

Kant, tem-se a liberdade como uma possibilidade.

Assim, Kant conseguiu responder de que modo a liberdade pode ser

pensada por meio de juízos a priori, pois a liberdade é explicada por referência ao

conceito de vontade cuja elaboração é produto exclusivo da razão.

No entanto, a razão pura somente pode dizer acerca da liberdade que, para

que seja um conceito puro, não pode ser fundamentada em nenhum aspecto empírico,

mas sim na própria atividade da razão. Exceto isso, a razão pura cala-se sobre como

deverá ser constituída a vontade que dá origem à liberdade. Para que o conceito de

liberdade se concretize, é preciso que entre em cena a razão prática, responsável por

aquelas integram a razão pura e que se encontram expostas na Analítica, Dialética, Estética , Lógica, etc... Transcendental, para Kant não se identifica com transcendente. O transcendente é associado a tudo aquilo que ultrapassa a experiência possível (BINI, 2003). 31 Nas palavras de Kant, a vontade se define como “A faculdade do desejo cujo fundamento determinante (...) se encontra na razão do sujeito (...)” (KANT, 2003, p. 62-63) ou ainda “(...) a vontade é a faculdade de escolher só aquilo que a razão, independentemente da inclinação, reconhece como praticamente necessário, quer dizer, como bom.” (KANT, 1974a, p.217) 65 analisar como são elaboradas as ações determinadas pela vontade – a razão que responde à pergunta “como devo agir?”.

Como visto, a razão teórica constatou que os movimentos não determinados pela natureza necessitam da vontade para serem gerados. O movimento somente será autônomo quando aquilo que o determina é a vontade e não reações a estímulos que vêm do exterior (inclinações). Assim, a liberdade residirá em uma vontade que se determina pela atividade da razão e não por estímulos vindos da sensibilidade, das sensações de prazer e de dor, do agradável ou do desagradável. A constituição da moralidade decorre dessa capacidade de colocar de lado as influências sensíveis e agir em conformidade com um dever que decorre exclusivamente da vontade racional.

Assim, para que a razão prática tenha origem na vontade, e somente nela, é preciso que as ações humanas não tenham origem nos apelos dos móbeis sensíveis ou da experiência, pois, nesse caso, elas seriam determinadas pela causalidade natural, fazendo com que o fundamento dessa ação se encontrasse em algo externo ao homem.

É somente por meio da causalidade espontânea que se verifica a liberdade. Do mesmo modo, as ações determinadas por móbeis sensíveis seriam contingentes e, assim, não poderiam ser universalizadas para toda ação humana.

Portanto, para alcançar a liberdade, o homem deverá abandonar a experiência como fundamento de suas ações. Em seu lugar, deverá adotar leis racionais que ele próprio constrói e que representam a sua vontade, não influenciada por qualquer inclinação dos sentidos.

Somente quando a ação do homem se fundamenta em leis, ela adquire o atributo da necessidade e da universalidade. Como a vontade cria tais leis que servirão

66 de guia para o agir? Ela deverá elaborar máximas32 que tornem possível a

universalização da conduta moral. Máximas são universalizadas se transformadas em

dever somente se preencherem o requisito contido naquilo que Kant (1974b) chama de

imperativo33 categórico34. Ao construir máximas para o agir que atendam às

exigências do imperativo categórico, a vontade humana conquista sua autonomia, pois

a conduta moral, agora universalizável, terá condições de ser fruto de uma lei que o

homem prescreve a si próprio35. O agir em conformidade com a sensibilidade

possuiria o atributo da heteronomia, o que implicaria a submissão da vontade a um

elemento externo à razão, quando da formulação das máximas do agir. Com isso, a

moralidade e por conseguinte a liberdade humana estariam condenadas:

Porque a moralidade é incondicional e válida de modo estritamente universal, mas a felicidade, como contentamento com o todo da existência, depende da constituição (individual, social e genérica) do sujeito, de suas inclinações, de seus instintos e necessidades, de seus interesses, nostalgias e esperanças, bem como das possibilidades que os mundos natural e social oferecem, em uma palavra: porque a felicidade pelo seu conteúdo é variavelmente condicionada empiricamente, não se presta para a lei universal e não pode fornecer o fundamento determinante da moralidade. (HÖFFE, 2005, p. 218) (grifos nossos)

A estrutura metodológica construída por Kant para garantir a liberdade do

indivíduo por meio da ação moral será transposta para o Direito, de modo a que essa

32 “Máximas são condutas fundamentais que dão a uma multiplicidade, e também a uma variedade de objetivos concretos e de ações, sua direção comum. Segue uma máxima quem vive segundo o propósito de ser respeitoso ou irreverente, de responder a ofensas respeitosa ou magnanimamente, de portar-se solícita ou indiferentemente em situações de necessidade.” (HÖFFE, 2005, p.204) 33 Um imperativo é a expressão (sob a forma de um dever) de um mandamento objetivo elaborado pela razão sob a forma de uma representação. Os imperativos constituem uma obrigação para a vontade, caso ela queira que sua ação prática seja necessária. 34 Um imperativo categórico contém um mandamento que deve ser cumprido por tal ordem representar uma finalidade encerrada em si mesma, ou seja, que retira sua validade exclusivamente do cumprimento da própria ação. O imperativo categórico se diferencia do imperativo hipotético, pois neste o mandamento apresenta-se como o meio necessário para se atingir outra finalidade que não se encontra no cumprimento da própria ação. “Ora, todos os imperativos ordenam ou hipotética ou categoricamente. Os hipotéticos representam a necessidade prática de uma ação possível como meio de alcançar qualquer coisa que se quer (ou que é possível que se queira). O imperativo categórico seria aquele que nos representasse uma ação como objetivamente necessária por si mesma, sem relação com qualquer outra finalidade.” (KANT, 1974a, p.218-219) 35 Uma das formulações do imperativo categórico moral é a seguinte: “Age apenas segundo uma máxima tal que possas ao mesmo tempo querer que ela se torne lei universal” (KANT, 1974a, p.223) 67 mesma liberdade possa existir na convivência das pessoas em sociedade (HÖFFE,

2005). Assim, para que uma sociedade seja livre, seu Direito deverá ser elaborado como uma categoria a priori, isto é, criado a partir de regras que prescindam da experiência concreta e da busca da felicidade em sua fundamentação.

Diferentemente da ação moral, o Direito destina-se à liberdade dos comportamentos externos dos indivíduos em sociedade. Preocupa-se com o conteúdo do agir externo de sujeitos capazes, responsáveis por suas ações (KANT, 2003). Do mesmo modo como o imperativo categórico moral se presta a avaliar as máximas que regem as condutas individuais para a aferição de sua liberdade – pela existência de uma vontade autônoma – há também um imperativo categórico que prescreve como se deve avaliar a conduta jurídica para que ela torne passível de universalização e institua a liberdade externa dos indivíduos:

Qualquer ação é justa se for capaz de coexistir com a liberdade de todos de acordo com uma lei universal, ou se na sua máxima a liberdade de escolha de cada um puder coexistir com a liberdade de todos de acordo com uma lei universal. (KANT, 2003, p. 76-77)

Para que essas ações sejam livres, é preciso, assim, que o Direito seja capaz de garantir sua coexistência com as demais, sob o comando de uma lei universal. Em outras palavras, para Kant, a liberdade do indivíduo encontra seus limites na possibilidade de ofensa à liberdade dos demais. Assim, a liberdade jurídica nunca será entendida como a possibilidade de se fazer tudo aquilo que o arbítrio determinar.

Muito pelo contrário, a coercibilidade é a característica fundamental do Direito. É somente pela possibilidade do recurso à força que o Direito encontra um modo de garantir o cumprimento de seus preceitos aplicáveis a todos os cidadãos. A liberdade jurídica é justamente a submissão às regras do Direito, já que são essas regras que

68 garantem que os comportamentos necessários ao convívio em sociedade sejam

universalizáveis36.

Portanto, Kant (2002) criticará duramente Hobbes e toda a tradição do

pensamento político que vê como função do Estado a promoção do bem-estar como

forma de se proporcionar a liberdade da sociedade. Inserir a busca da felicidade entre

as finalidades do Direito significaria condicioná-lo à particularidade e à contingência

de uma determinada situação histórico-cultural. Suas regras deixariam de ser fruto de

um conhecimento a priori e, portanto, não contariam com o atributo da universalidade

própria da atividade racional. As regras de direito também não seriam a expressão

livre dessa sociedade, pois, condicionadas por circunstâncias contingentes colocadas

pelo ambiente exterior, não atenderiam à condição de serem regras oriundas de uma

vontade racional que representa leis a si mesma.

De acordo com Kant, Hobbes tratara a sociedade como uma associação que

consideraria tão-somente os fins que cada um dos homens de fato têm (egoísticos), e

não aqueles fins que eles deveriam ter – quais sejam, os de tomarem a si próprios

como finalidades em si mesmos (KANT, 2002). Por esse motivo, cada um daria

primazia a sua felicidade em detrimento da liberdade de todos, já que essa associação

hobbesiana se destinaria a que cada um, inclusive o Estado, perseguisse seu próprio

objetivo empírico.

Em uma sociedade em que o Estado e o Direito se propõem a perseguir fins

empíricos (bens), que são contingentes e particulares, as regras do Direito seriam

sempre imperativos hipotéticos, pois serviriam apenas de meio para se alcançar algum

desses fins particulares. Todavia, bens são sempre particulares e contingentes – pois

aquilo que traz o bem a cada indivíduo é algo peculiar à experiência de cada um.

36 É interessante notar que, a partir dessa argumentação, Kant consegue conciliar a dimensão da liberdade com o poder de coerção do Estado, o que era uma dificuldade para a tradição contratualista liberal, que tratava a liberdade como simples expressão volitiva do indivíduo. 69 Assim, a instituição de regras gerais para a consecução de tais fins empíricos, como

objetivos a serem alcançados pela sociedade, implicaria que o fenômeno do Direito

seria sempre a submissão de uma particularidade a outra (seja essa particularidade um

grupo ou indivíduo).

Desse modo, o que importaria para a realização da liberdade em sociedade,

segundo Kant, não seria a realização de um bem, por mais superior que esse pudesse

ser, já que, de todo modo, seria sempre a expressão de uma particularidade. Seria

preciso que se preservasse, por meio do Direito, as condições que permitissem cada

indivíduo a perseguição de seus próprios bens particulares, definidos por cada um

deles de acordo com o que sua experiência pessoal lhes diz ser a felicidade:

Ninguém me pode constranger a ser feliz à sua maneira (como ele concebe o bem- estar dos outros homens), mas a cada um é permitido buscar a felicidade pela via que lhe parecer boa, contanto que não cause dano à liberdade de os outros (isto é, ao direito de outrem) aspirarem a um fim semelhante, e que pode coexistir com a liberdade de cada um, segundo uma lei universal possível. (KANT, 2002, p. 75)

Kant conceberá de modo mais aprimorado o princípio liberal que prescreve

a prioridade do justo sobre o bem. Seus antecessores justificaram a necessidade da

proteção à liberdade por meio de um sistema de direitos por ser o modo mais justo,

dentre todos37, de se conviver em sociedade (como fez Locke, por exemplo). Com

Kant38, a proteção à individualidade, realizada pelo Direito, torna-se a condição

37 Em John Locke a defesa do liberalismo apela para a superioridade moral de valores do governo que consagra os Direitos Naturais (SANDEL, 2000). Como os ditames da lei natural determinam o modo mais racional de convívio entre os homens, o governo mais justo é aquele que os consagra. 38 Essa discussão sobre a natureza do liberalismo proposto por Kant é apresentada por Sandel (2000), ao dizer que, a partir de Kant, estabelece-se o que se denomina de “liberalismo deontológico”. A perspectiva deontológica marcaria uma justificativa especial do liberalismo, por priorizar o justo sobre o bem, não somente porque aquele possuiria uma qualidade superior a este, mas sim pelo fato de que essa prioridade decorre do fato de que essa seria a única possibilidade de se estabelecer uma lei moral para o homem. No entanto, para fundamentar essa prioridade do justo sobre o bem como condição para a lei moral, o liberalismo deontológico de Kant exigiria que o sujeito que cria essa lei moral fosse transcendental, ou seja, que ele fosse anterior aos objetos sobre o qual se debruça (a moral) e independente dos constrangimentos decorrentes das condições pessoais e 70 exclusiva da justiça. O sistema de direitos fundamentais garantiria a cada um dos

membros da sociedade a capacidade de ser livre para perseguir seus próprios fins

pessoais. E não haveria nada mais a se acrescentar à noção de justiça além dessa

garantia da possibilidade de livre expressão da vontade dos indivíduos.

2.4 A polissemia da liberdade moderna

A partir dessa reconstrução da história do conceito de liberdade, foi

possível compreender suas diversas facetas, tal como expresso na tradição filosófica

do pensamento político moderno. Do mesmo modo, foi possível identificar o que essas

proposições sobre a liberdade viriam a representar em termos políticos e práticos.

Como visto, para os antigos, a liberdade era concebida como o exercício

das liberdades políticas e da vida pública e a verificação da liberdade poderia ser

auferida pela soberania do ente coletivo e da participação dos cidadãos na construção

dessa soberania. O conceito antigo de liberdade, em sua formulação aristotélica, não

levava em consideração a dimensão individual, para se preocupar com a eudaimonia

da pólis. A tendência a se radicar a liberdade na dimensão individual do homem não

fará desaparecer a presença do conceito antigo de liberdade na especulação filosófica.

Muito pelo contrário, a formulação de Rousseau sobre a liberdade será justamente uma

tentativa de reconciliar a individualidade e o papel da vontade com a necessidade de se

pensar a liberdade em termos de participação política. Sendo assim, tem-se que a

liberdade moderna não é incompatível com sua faceta “positiva”. Essa dimensão da

sociais que geram as inclinações. Este debate está na base da controvérsia contemporânea entre liberais e comunitaristas e será abordada mais adiante nesse trabalho. 71 liberdade influenciará, como se verá adiante, as teorias da justiça que pretendem, pela

abolição de toda e qualquer forma de exploração do homem sobre o homem, a

realização de sua liberdade e, assim, da justiça.

No entanto, é incontestável que o conceito de liberdade passa por um

processo de deslocamento da esfera coletiva para a individual. Passará cada vez mais a

se identificar com o exercício da vontade de cada um. A doutrina epicurista contribui

muito para esse processo, já que situa a medida de verificação da liberdade na

felicidade individual, encontrada nas sensações de prazer e de dor experimentadas por

cada um. Também a análise de Santo Agostinho sobre o livre-arbítrio dos homens irá

mostrar que o exercício da vontade individual não é incompatível com, e é mesmo

pressuposta pela liberdade prescrita pela ordem divina. Esses autores mostram o

percurso trilhado pelo conceito de liberdade para alcançar a sua configuração

moderna.

O traço que distingue o conceito moderno do conceito antigo de liberdade é

o privilégio dado ao espaço da individualidade e do exercício da vontade na

caracterização do exercício da liberdade39.

Na modernidade, cada vez mais, os direitos individuais, garantidos sob a

égide do Estado de Direito, serão a expressão da liberdade moderna. Entretanto,

mesmo o conceito moderno de liberdade não apresenta uma expressão unívoca.

Hobbes, por exemplo, concederá destaque à dimensão material da liberdade, ao

sustentar que o aperfeiçoamento do exercício da liberdade exige a concretização da

ação que satisfaz o impulso volitivo, isto é, que somente há liberdade quando o

conteúdo da vontade se traduz em atos que a ela correspondam. A primazia da faceta

39 Mesmo um autor como Rousseau, que entende que a expressão da liberdade se caracteriza com a participação política dos cidadãos em comunidade, fundamenta a conquista da liberdade no exercício da vontade do homem. Participar da constituição da vontade geral é o modo que o homem civilizado possui de reconquistar sua liberdade. As virtudes que promovem a liberdade são definidas pela coletividade, mas a adesão às regras que realizam a liberdade é individual. 72 material da liberdade na elaboração de teorias contemporâneas sobre justiça

representará uma bifurcação no caminho comum que trilhavam direitos individuais e

justiça. Como a liberdade e a justiça se realizariam pelo efetivo acesso a meios que

permitem ao homem concretizar a sua vontade, os direitos individuais somente devem

ter lugar na medida em que auxiliam a promoção de tais meios. No entanto, caso as

circunstâncias da justiça40 apontem que os direitos individuais se colocam como

óbices à implementação dos meios que realizam a liberdade material, deverá

prevalecer a justiça material em relação aos direitos materiais.

Em contrapartida, pensamentos como o de Locke e o de Kant sustentam

que a justiça exige simplesmente que a manifestação da vontade humana, no convívio

em sociedade, seja autêntica e não sofra qualquer tipo de interferência ou de

intervenção, identificando-a com as dimensões formal e negativa da liberdade. Nesses

autores, ao contrário de Hobbes, o que garante a justiça é justamente o

estabelecimento de um sistema de direitos que venha a garantir a liberdade. Assim,

tem-se por conseqüência que as teorias da justiça que tomam esses dois autores por

referência darão primazia ao cânone do pensamento liberal que determina que se deva

garantir – por meio de um conjunto de direitos – a propriedade-de-si e do fruto do

trabalho de cada um. São essas as condições que permitem a cada um encontrar a sua

própria felicidade.

Como visto, a fundamentação do liberalismo difere de Locke para Kant.

Neste último, tem-se a elaboração mais aprimorada do sentido moderno do conceito de

liberdade, porque essa liberdade é justamente o que possibilita a expressão da

moralidade do homem. A constituição racional e apriorística da liberdade, feita por

40 O termo é de David Hume e significa o “conjunto das condições que obrigam as sociedades humanas a estabelecer as regras de justiça, ou seja, por um lado, as condições objetivas de igualdade e de relativa escassez de recursos e, por outro lado, as condições subjetivas constituídas pelos conflitos de interesse” (AUDARD In: RAWLS, 2000, p. 375). 73 Kant, terá como conseqüência o fato de que é somente pelo Direito que o homem tem condição de ser livre. Logo, ele possui uma superioridade de fundamento que o torna inviolável em nome de qualquer outro fim que se possa estabelecer. Sendo assim, considerações sobre o bem-estar, a felicidade ou mesmo a igualdade material e política dos indivíduos em sociedade devem ser subordinadas à estrutura que garante os direitos individuais de exercício da liberdade.

Contudo, em pouco tempo de vivência cultural da sociedade industrial, as questões relativas ao bem-estar e à desigualdade de acesso a bens materiais, em suma,

à distribuição de recursos no seio de uma sociedade, ganharam destaque, já que o sistema capitalista de produção tende a uma grande concentração de bens nas mãos daqueles que detêm os meios de produção. Assim, o problema da justiça, compreendido como a distribuição de recursos em condições de escassez, dissocia-se, em princípio, das questões que se ligam às dimensões negativa e formal da liberdade, dando origem às diversas teorias contemporâneas da justiça. A análise de como essas teorias da justiça tratam os diversos aspectos da liberdade moderna será o objeto do capítulo seguinte.

74 3 ABORDAGENS CONTEMPORÂNEAS DE TEORIA DA JUSTIÇA

3.1 Quatro modos de se responder à mesma pergunta

No capítulo anterior foi mostrado como o discurso filosófico deu contorno

às diversas facetas do conceito de liberdade. Foi analisado também como o conceito de liberdade presente no liberalismo clássico de Locke e Kant não abrange o conjunto de todas as facetas assumidas pela liberdade nas diversas formulações realizadas pelo pensamento moderno, ou seja, o conteúdo daquilo que significa “liberdade” para a cultura e o pensamento modernos é mais extenso do que a moldura proposta pelo liberalismo clássico. As colocações de Hobbes e Rousseau mostram que a liberdade não se restringiria somente às suas dimensões formal e negativa, mas que também as dimensões material e positiva fariam parte dessa idéia.

No entanto, a formulação do liberalismo clássico ocorreu ainda no momento de nascimento da era moderna, em especial durante os séculos XVII, XVIII e início do século XIX. Durante esse período, as questões relacionadas à liberdade das pessoas e dos povos se referiam muito mais a aspectos políticos do que econômicos. A indagação acerca do que seria uma sociedade livre ligava-se ao modo como esta sociedade deveria organizar e distribuir o poder político de modo legítimo, extraindo- se daí o critério e a medida da justiça. Esse questionamento orientou a produção intelectual dos filósofos e políticos que discorreram sobre a liberdade. As questões ligadas à importância da atuação política na estrutura econômica não se colocavam de

75 modo latente, mas apenas acessório à pergunta sobre qual a forma política do governo

mais justo.

Com o advento do século XIX, as condições sociais, culturais e econômicas

da era moderna sofreram grande e rápida modificação em sua estrutura, por força da

consolidação do capitalismo enquanto modo de produção41 dominante na sociedade.

Esse momento pode ser identificado, cronologicamente, com o advento da Revolução

Industrial42. A partir da Revolução Industrial, o Direito e as liberdades jurídicas, que

garantiam a estrutura do livre mercado inclusive para contratação e alocação da força

de trabalho operária, serviram como alicerce de sustentação das desigualdades sociais

que o sistema capitalista trouxe consigo. Dessa maneira, o discurso da “liberdade”

passou a representar o discurso da desigualdade quanto às condições econômicas,

sendo, portanto, a nova fonte da injustiça, já que uma grande disparidade se colocava

entre pessoas de diferentes classes no que tange ao acesso a bens materiais e

oportunidades de vida.

41 Adota-se o conceito do materialismo histórico para definir modo de produção. O materialismo histórico pode ser resumidamente descrito do seguinte modo: “(...) a tese nuclear do materialismo histórico – embora rejeitada por alguns marxistas – é a de que as diferentes organizações socioeconômicas da produção que caracterizam a história humana surgem e desaparecem segundo venham a impedir a expansão da capacidade produtiva da sociedade. (...) As relações de produção, que devem corresponder ao nível produtivo da sociedade, ligam as forças produtivas e os seres humanos no processo de produção. Essas relações são de dois tipos gerais: de um lado, há as relações técnicas necessárias ao funcionamento do processo prático de produção; do outro, as relações de controle econômico (cuja forma jurídica é a propriedade) que regulam o acesso às forças produtivas e aos produtos. (...) Os diferentes tipos de estrutura econômica são diferenciados pelas relações de produção sociais neles existentes.” (BOTTOMORE, 2001, p.260). Por conseguinte, Marx caracteriza o modo de produção como se segue: “Na produção social da sua existência, os homens estabelecem determinadas, necessárias, independentes da sua vontade, relações de produção que correspondem a um determinado grau de desenvolvimento das forças produtivas materiais. O conjunto dessas relações de produção constitui a estrutura econômica da sociedade, a base concreta sobre a qual se eleva uma superestrutura jurídica e política e à qual correspondem determinadas formas de consciência social. O modo de produção da vida material condiciona o desenvolvimento da vida social, política e intelectual em geral” (MARX, 2003, p.5) 42 A Revolução Industrial é um processo de transformação econômica no setor industrial, agrícola e de transportes que tem origem na Inglaterra e posteriormente se expande para os demais países do continente europeu e algumas nações industrializadas como os Estados Unidos, o Japão e a Rússia. Caracteriza-se por descobertas científicas e tecnológicas que levam à adoção de intensa mecanização do processo de produção, em detrimento do sistema manufatureiro antes existente. Assim, no que concerne à principal fonte responsável pela produção industrial, há paulatina substituição da força motriz humana pelo emprego de maquinário movido a combustíveis fósseis diversos. Isso implica também na reorganização do ambiente produtivo, que passa a se dar no ambiente fabril, segundo um acentuado processo de divisão do trabalho (BROWNE, 1973) 76 Assim, as considerações sobre a justiça deveriam necessariamente envolver

a distribuição dos bens sociais na sociedade, já que a garantia da liberdade “liberal”,

por si só, seria incapaz de preencher os requisitos da justiça. Os direitos individuais,

que antes representavam exclusivamente a “liberdade”, passaram a ser apenas um

dentre os bens sociais a ser distribuídos para se alcançar a justiça. E diversas foram as

teorias formuladas sobre o melhor modo de organizar as instituições sociais de modo a

se obter a mais justa distribuição desses bens.

A ênfase que cada escola de pensamento dá aos aspectos da liberdade e,

portanto, ao modo como os bens sociais devem ser distribuídos em uma sociedade de

modo justo, dará origem às abordagens contemporâneas da teoria da justiça43 (VAN

PARIJS, 1997). A teoria da justiça compõe-se de conjuntos de respostas, sistemáticas

e orientadas por um princípio unificador, à pergunta “O que as instituições sociais e

jurídicas de uma sociedade devem levar em conta para se obter uma sociedade justa?”.

Van Parijs (1997, 2003) divide as correntes que se candidatam a fornecer os elementos

de uma sociedade justa no pensamento contemporâneo em quatro: o utilitarismo, o

marxismo, o libertarianismo e o liberal-igualitarismo44.

Este capítulo dedica-se a analisar o conteúdo de cada uma dessas doutrinas

e quais os seus argumentos em favor dos critérios que elegem como responsáveis por

realizar a justiça em uma sociedade. Ao final do capítulo será feito um balanço do

43 As teorias da justiça que se opõem ao liberalismo, como o marxismo e o utilitarismo, também o fazem porque têm em vista a distribuição justa da liberdade. No entanto, o que eles defendem é um conceito de liberdade distinto daquele sustentado pelos liberais, que não se restringe apenas às dimensões formal e negativa, mas que, ao contrário, privilegia suas dimensões material e positiva. (VAN PARIJS, 1997; ARNSPENGER; VAN PARIJS, 2003) 44 Para Arnspenger e Van Parijs (2003) somente essas quatro escolas teriam o condão de responder à pergunta acerca dos critérios de justiça para uma sociedade dentro do marco da modernidade. Esse marco se define por conceber a justiça sem o recurso a uma concepção particular de bem, isto é, sem recorrer a uma concepção específica de “vida boa”. Logo, ele não discutirá as abordadas colocadas pelas teorias éticas de inspiração cristã tradicional ou o comunitarismo, exceto nos pontos em que as críticas eventualmente colocadas por tais as teorias venham a questionar a própria viabilidade de se pensar a teoria da justiça moderna. Exclui-se da discussão também as denominadas posturas ideológicas, tais como o “feminismo”, “os ecologistas”, “a social-democracia” ou o “neoliberalismo”. Segundo os mesmos autores (2003) tais posturas ideológicas são matizes interpretativos ou reinterpretativos de posturas éticas fundamentais já consolidadas nas quatro correntes acima expostas. 77 potencial de cada uma delas para fornecer os critérios de justiça de nossas sociedades

contemporâneas.

3.2 O utilitarismo

O iluminismo45 surgiu com a proposta de banir das formas do

conhecimento científico toda e qualquer explicação para fenômenos da realidade que

fosse baseada em saberes decorrentes da superstição humana46. No bojo desse grande

movimento, ganhou destaque a vertente empirista47 anglo-saxônica que sustentava que

as explicações que não fossem fruto de experiências positivas – aquelas denominadas

de “metafísicas” – não deveriam servir de critério de verdade para a ciência (VAZ,

2002). O utilitarismo é um dos desdobramentos dessa visão de mundo que busca

atribuir fundamentos empíricos para justificar a ação prática e os deveres humanos. Ao

invés de buscar os fundamentos dos fenômenos morais, dos deveres e direitos e da

solidariedade pelo recurso a expedientes metafísicos tais como “direitos naturais”,

“leis naturais”, “essência do homem”, dentre outros, o utilitarismo apresenta os

45 Para a caracterização do iluminismo como movimento de idéias culturais e científicas, remete-se o leitor ao tópico 2.3.5, nota 24. 46 Adorno e Horkheirmer (1985) aduzem que o intento do iluminismo, ou esclarecimento é uma apologia ao potencial de dominação do homem sobre a natureza e sobre os demais homens e sobre si próprio. “No sentido mais amplo do progresso do pensamento, o esclarecimento tem perseguido sempre o objetivo de livrar os homens do medo e de investi-los na posição de senhores. Mas a terra totalmente esclarecida resplandece sob o signo de uma calamidade triunfal. O programa do esclarecimento era o desencantamento do mundo. Sua meta era dissolver os mitos e substituir a imaginação pelo saber. (...) Apesar de seu alheamento à matemática, Bacon capturou bem a mentalidade da ciência que se fez depois dele. O casamento feliz entre o entendimento humano e a natureza das coisas que ele tem em mente é patriarcal: o entendimento que vence a superstição deve imperar sobre a natureza desencantada. O saber que é poder não conhece barreira alguma, nem na escravização da criatura, nem na complacência em face dos senhores do mundo”. (ADORNO; HORKHEIMER, 1985, p.17-18) 47 O empirismo anglo-saxônico encontra origem no nominalismo de Guilherme de Ockham (TILLICH, 1988?), tem como precursor moderno Francis Bacon (ADORNO; HORKHEIMER, 1985) e encontra sua maior expressão nos autores George Berkeley, Thomas Hobbes, John Locke, Francis Hutcheson e David Hume. (RAWLS, 2005; VAZ, 1991, 2002) 78 critérios concretos pelos quais a ação moral deve ser avaliada: a constituição biológica

do homo sapiens e sua capacidade de sentir prazer e dor (VAN PARIJS, 1997).

No entanto, ao se falar do utilitarismo, é necessário de deixar claro que suas

proposições tomam a forma de uma concepção moral geral e abrangente.48 Assim,

ainda que intimamente relacionada a essa doutrina moral, a teoria da justiça utilitarista

é algo que se distingue da filosofia moral utilitarista49. Portanto, a primeira tarefa da

seção será a de circunscrever com nitidez o que é próprio a cada uma das respectivas

dimensões política e moral do utilitarismo, pois os objetos a que se referem são

diferentes.

Além do mais, o utilitarismo é uma doutrina em permanente evolução que

ganha reformulações e retoques a cada tentativa de superação das críticas que lhe são

constantemente desferidas. Assim, esta apresentação da teoria utilitarista pretende

também esclarecer quais seriam as espécies de utilitarismo (moral ou político)

existentes e suas diferenças internas. Isso facilitará a compreensão da amplitude da

proposta utilitarista, bem como permitirá afastar os preconceitos de julgamento ou

avaliação que, via de regra, acompanham as análises do tema.

Desde seu nascimento no início do século XIX até os anos 70 do século

XX, o utilitarismo buscou sempre fornecer critérios e princípios voltados para o

desenvolvimento de uma teoria da justiça50. O principal foco da teoria utilitarista da

justiça é a constituição de instituições sociais voltadas à promoção do bem-estar social

48 Adotando a terminologia de John Rawls, pode-se definir esse tipo concepção moral do seguinte modo: “Considero que uma concepção moral é geral quando se aplica a uma ampla variedade de temas de apreciação (em última análise, a todos os temas possíveis) e que ela é abrangente quando compreende concepções daquilo que constitui o valor da vida humana, ideais da virtude pessoal e do caráter e de tudo o que pertence a essa ordem, que deve nos informar sobre a nossa conduta (em última análise, sobre a nossa vida em seu conjunto).” (RAWLS, 2000, p. 250, nota) 49 A teoria moral utilitarista aponta como o indivíduo conhece e formula as regras morais de comportamento que ele cria para si próprio, enquanto que a teoria da justiça utilitarista se presta a identificar e a formular as regras de comportamento que devem governar uma sociedade. (BENTHAM, 1970) 50 Pode-se relacionar como autores utilitaristas que se dedicaram à investigação acerca da teoria da justiça Jeremy Bentham, James Stuart Mill, John Stuart Mill, Henry Sidgwick, G.E. Moore e, mais recentemente, Amartya Sen. 79 (VAN PARIJS, 1997; ARNSPENGER; VAN PARIJS, 2003). Em função da influência da teoria utilitarista durante esse período, o desenvolvimento do Direito dos

Estados contemporâneos encontra-se fortemente marcado por essa concepção. Nem mesmo quando a hegemonia do utilitarismo foi colocada em xeque pelo recente renascimento das doutrinas liberais, suas teses fundamentais foram deixadas de lado.

Pelo contrário, são justamente elas que permanecem como o principal contraponto ao liberalismo revigorado do século XX, pois a questão do bem-estar aponta para o cerne do problema da justiça na distribuição dos bens e recursos de uma sociedade.

Esse tópico abordará: as origens do utilitarismo e suas principais características; a proposta utilitarista acerca da teoria da justiça e como pretendem servir de critério de orientação para as decisões políticas sobre a justiça de uma sociedade; as objeções lançadas à proposta utilitarista para que ela se firme como uma teoria da justiça adequada às sociedades contemporâneas.

3.2.1 – Origens e caracterização do utilitarismo

O utilitarismo é um dos desdobramentos da proposta empirista de abolir as explicações metafísicas do conhecimento e da moral humana. A filosofia moral do século XVII e XVIII encontrava-se impregnada de fundamentos e conceitos metafísicos para justificar o agir humano. Seja pela referência a uma instância divina, seja pelo discurso jusnaturalista, as regras para se definir o certo e o errado e, portanto, o devido e o proibido, necessariamente faziam referência a uma instância supra- sensível que viesse a fornecer o conteúdo de tais regras. Essa estrutura só foi abalada

80 com o advento da teoria moral do filósofo David Hume, que leva às últimas

conseqüências o modelo epistemológico empirista51.

David Hume (1973) concebe a mente humana e, portanto, todo o aparelho

cognitivo do homem, como um grande “feixe de percepções”. Pelo do uso dos

sentidos, o homem apreende e processa as sensações vindas do exterior. O registro

dessas sensações daria origem às impressões, que são memórias de sensações passadas

vindas à tona. Quando tais impressões são associadas entre si pelo raciocínio, dá-se

origem às idéias e conceitos. Desse modo, todo o conhecimento do homem decorre,

em última instância e exclusivamente, dos dados empíricos fornecidos pelo ambiente

externo, pois ele seria a origem das sensações e, conseqüentemente, das impressões e

idéias.

Para David Hume, também a moralidade humana seria elaborada como

uma idéia da mente. Sua origem deveria decorrer de impressões passadas registradas

pela experiência sensível do homem (TASSET, 1998). Segundo Hume, tais sensações

que criam as idéias morais são os sentimentos de prazer e de dor. Essas sensações, e

somente elas, alimentariam o homem de informações a partir das quais ele formularia

os conceitos de correto e incorreto, de certo e errado. As ações práticas teriam como

referência a busca do prazer e o afastamento da dor, tornando, assim, o conhecimento

moral independente de fundamentos transcendentais.

Adotando esse postulado acerca da psicologia cognitiva humana, o

utilitarismo clássico de Jeremy Bentham (1970) converte tais proposições em uma

teoria moral e ética acerca do comportamento humano. Segundo Bentham, o mesmo

51 Ao tempo de David Hume, a epistemologia se dividia em um debate acirrado sobre a origem e a fonte do conhecimento humano. De um lado, situavam-se dogmáticos e racionalistas que apostavam na Razão como fonte exclusiva do conhecimento e sustentavam a natureza inata das idéias. A filosofia racionalista desenvolve-se nos países do continente europeu, sendo de origem francesa e germânica. De outro, encontrava-se a corrente empirista que afirmava que a origem do conhecimento decorria da sensibilidade e sua única fonte seria a experiência. A corrente empirista tem grande influência nos países anglo-saxônicos. David Hume (1711-1776), filósofo escocês, foi um de seus maiores expoentes. 81 critério utilizado para descrever como o homem se comporta em relação a fatos morais

serve também para formular as prescrições do comportamento moral. Esse critério é a

utilidade. Por meio dela, o homem pode, ao mesmo tempo, guiar e avaliar a sua ação

moral. Bentham (1970) define a utilidade nos seguintes termos:

By utility is meant that property in any object, whereby it tends to produce benefit, advantage, pleasure, good, or happiness, (all this in the present case comes to the same thing) or (what comes again to the same thing) to prevent the happening of mischief, pain, evil, or unhappiness to the party whose interest is considered52 (BENTHAM, 1970, p.2)

Assim, para o utilitarismo, a avaliação ética e moral do comportamento

humano tem como fundamento o princípio da utilidade, formulado por Bentham do

seguinte modo:

By principle of utility is meant that principle which approves or disapproves of every action whatsoever, according to the tendency which it appears to have augment or diminish the happiness of the party whose interest is in question: or, what is the same thing in other words, to promote or to oppose that happiness.53 (BENTHAM, 1970, p.2)

Bentham estatui que esse princípio de avaliação da conduta moral não se

restringe ao indivíduo, mas se presta também à análise das ações que tomam a

sociedade como um todo. O termo “unidade” (party) mencionado nas duas definições

acima pode ser tanto a pessoa individual, quanto a coletividade:

if that party be the community in general, then the happiness of the community: if a particular individual, then the happiness of that individual. (…) The interest of

52 “Por utilidade, quer-se dizer aquela propriedade contida em qualquer objeto pela qual ele tende a produzir benefício, vantagem, prazer, bem, ou felicidade (tudo isso no presente caso se refere à mesma coisa) ou (o que, de novo, se refere à mesma coisa) de evitar a ocorrência de dano, sofrimento, maldade ou infelicidade daquela unidade cujo interesse está em questão (...)”(tradução nossa) 53 “Por princípio da utilidade entende-se aquele princípio que aprova ou desaprova qualquer conduta, de acordo com a tendência que esta possui de aumentar ou diminuir a felicidade da unidade cujo interesse está em questão: ou, o que dá no mesmo, de promover ou de ser uma objeção a sua felicidade.” (tradução nossa) 82 community then is, what? – the sum of the interests of the several members who compose it.54 (BENTHAM, 1970, p.2-3)

Mesmo sendo a formulação de Bentham a primeira exposição sobre a

doutrina utilitarista, ela já contém as principais características dessa proposta de

ciência moral. Dentre elas merecem destaque o caráter conseqüencialista da doutrina

utilitarista, a justificação positiva da moral e da ética e a referência ao princípio da

utilidade.

Ao sustentar que o critério de avaliação moral dos atos humanos decorre da

capacidade que esses atos possuem de produzir determinados estados de felicidade ou

bem-estar, o utilitarismo sustenta que a “qualidade moral de nossas ações depende da

qualidade de suas conseqüências” (CARVALHO, 2003, p.192). Logo, não existem

ações boas em si mesmas ou deveres que se impõem categoricamente, como apontava

Kant. Todo dever moral surge da capacidade de a ação produzir um resultado que seja

utilitariamente superior a outro que lhe seja comparável. Uma ação deve ser realizada,

portanto, após uma avaliação dos resultados úteis que ela é capaz de produzir.

Em função do caráter conseqüencialista da ética utilitarista, segue-se que

todas as ações morais dependem de uma avaliação racional da situação empírica

concreta. A avaliação fornecerá ao homem os elementos a partir dos quais ele pode

julgar com precisão os efeitos de sua ação no mundo:

O projeto ético de Bentham é supostamente construído de forma a obedecer a exigência de objetividade e exatidão. Sua preocupação mais relevante parece ter sido a de instrumentalizar o moralista e o legislador com ferramentas capazes de fazer deles instrumentos da racionalidade humana a serviço do bem-estar. Nesse sentido, a tarefa do moralista e legislador consistia em realizar a contabilidade moral. Isto é, avaliar o custo-benefício, em termos de prazer ou dor, das regras morais e das políticas públicas (PELUSO, 1998, p.22)

54 “(...) se aquele ente interessado for a comunidade em geral, então se trata da felicidade da comunidade; se for um indivíduo particular, então se trata da felicidade daquele indivíduo. (...) O que seria o interesse da comunidade? – a soma dos interesses dos diversos membros que a compõem.” (tradução nossa) 83 E o que orienta a avaliação racional da conduta moral será, para as doutrinas utilitaristas, sempre alguma variação do princípio da utilidade, segundo os contornos dados a tal princípio por cada uma delas (CARVALHO, 2003).

Este princípio é o axioma do qual derivam todas as demais proposições da doutrina utilitarista. Por ser um “princípio primeiro”, ele se encontra no alicerce da doutrina, não sendo suscetível de prova direta, mas apenas verificado a partir de outros indicativos, como, por exemplo, o fato de que toda refutação ao próprio princípio da utilidade se faz porque há, nesse ato, uma utilidade envolvida (BRITO, 1998). Assim, as diversas vertentes de utilitarismo irão diferenciar-se entre si em função das modificações realizadas no critério estabelecido para se definir a utilidade, esse

“estado final” que ação racional visa alcançar.

John Stuart Mill (2000) avança o pensamento utilitarista lançado por

Bentham ao dissociar da idéia de utilidade a exclusiva referência aos prazeres sensíveis. A crítica que se lançou contra o utilitarismo em seu tempo pecava por reduzir a idéia de felicidade às sensações internas de prazer que as pessoas vivenciam por meio dos sentidos:

Ora essa teoria da vida suscita em muitos espíritos, alguns dos quais possuem os mais estimáveis sentimentos e propósitos, uma aversão inveterada. Admitir que a vida – para empregar suas expressões – não tenha nenhuma finalidade mais elevada que o prazer, nenhum objeto de desejo e de busca melhor e mais nobre, é, conforme dizem, inteiramente vil e abjeto; cuida-se de uma doutrina digna apenas dos suínos, aos quais os seguidores de Epicuro estavam, desde o início, insolentemente igualados; e os partidários modernos da doutrina estão às vezes sujeitos a comparações igualmente polidas por parte dos críticos alemães, franceses e ingleses. (MILL, 2000, p.187)

No entanto, Mill mostra que o equívoco dessa crítica decorre de uma incompreensão daquilo que o utilitarismo entende por felicidade e por prazer:

84 O credo que aceita a utilidade ou o princípio da maior felicidade como a fundamentação moral sustenta que as ações são corretas na medida em que tendem a promover a felicidade e erradas conforme tendam a produzir o contrário da felicidade. Por felicidade se entende prazer e a ausência de dor; por infelicidade, dor e privação do prazer. Para dar uma idéia clara do padrão moral estabelecido pela teoria, é preciso dizer muito mais; trata-se de saber, em particular, o que está incluído nas idéias de dor e prazer e em que medida esse debate é uma questão aberta. (MILL, 2000, p.187)

Assim, Mill irá rebater as críticas que se fazem ao utilitarismo recorrendo

ao caráter aberto da expressão “prazer”, bem como aos infinitos modos existentes de

se realizar a felicidade humana55. Isso levará Mill a elaborar uma teoria acerca da

diferenciação qualitativa da experiência do prazer humano:

É perfeitamente compatível com o princípio da utilidade reconhecer o fato de que algumas espécies de prazer são mais desejáveis e mais valiosas do que outras. Enquanto na avaliação de todas as outras coisas a qualidade é tão levada em conta quanto a utilidade, seria absurdo supor que a avaliação dos prazeres dependesse unicamente da quantidade. Se me perguntarem o que quero dizer com diferença de qualidade entre os prazeres, ou o que torna um prazer mais valioso do que o outro – entendido como mero prazer -, exceto ser maior em quantidade, só me caberá dar uma resposta possível. De dois prazeres, se houver um que seja claramente preferido por todos ou quase todos os que experimentaram um e outro, independentemente de qualquer sentimento ou obrigação moral a preferi-lo, este será o prazer mais desejável. Se os que estão familiarizados com esses dois prazeres e têm competência para julgá-los colocam um deles tão acima do outro que chegam a preferi-lo, muito embora saibam que dele se segue um grande volume de descontentamento, e se não aceitam renunciar a ele por mais que sua natureza seja suscetível de experimentar uma grande quantidade do outro prazer, temos razão em atribuir ao deleite escolhido uma superioridade qualitativa, pois a quantidade foi de tal modo subestimada que, em comparação, tornou-se de pequena importância. (grifos do autor) (MILL, 2000, p.187)

Em atenção a esse critério, Mill optará por enfatizar os prazeres que

realizam o que ele denomina de faculdades superiores do homem, ou também de senso

de dignidade. Enquanto os prazeres relacionados às faculdades superiores são aqueles

que realizam a felicidade, os prazeres sensíveis têm em vista apenas o contentamento

do homem, marcando-se nítida distinção entre ambos:

55 Mill (2000) reconhece, no entanto, que a doutrina utilitarista produzida até então peca por dar ênfase à análise dos prazeres da sensação em detrimento dos prazeres intelectuais. Essa é a marca que diferencia sua proposta utilitarista da sustentada por J. Bentham. (VAN PARIJS, 1997) 85

Para aqueles em quem o senso de dignidade é intenso, representa uma parte tão essencial da felicidade, que nada que se oponha a ele poderia, a seus olhos, ser algo distinto de um objeto momentâneo de desejo; Supor que essa preferência se dê em sacrifício da felicidade, que o ser superior – em circunstâncias equivalentes – não seja mais feliz que o inferior, é confundir duas ideais bastante diferentes, a saber, de felicidade e contentamento. É incontestável que o ser cujas capacidades de deleite sejam de grau inferior tenha maiores chances de vê-las plenamente satisfeitas, enquanto um ser dotado de capacidades superiores sempre sentirá como imperfeita a felicidade que lhe é possível buscar no mundo como existente. (...) É melhor ser uma criatura humana satisfeita do que um porco satisfeito; é melhor ser Sócrates insatisfeito do que um tolo satisfeito. E se o tolo ou o porco têm opinião diversa, é porque conhecem apenas um lado da questão: o seu. A outra parte, em compensação, conhece os dois lados. (MILL, 2000, p.191)

Farago (2004) mostra como essa distinção se presta a reconciliar a preocupação consigo mesmo e a preocupação com o outro numa única fórmula que consagre os modos mais elevados da realização humana:

Se ele (Mill) mantém o princípio de utilidade de Bentham, ele dá à palavra ‘útil’ um outro sentido distinto ao do seu antecessor, distinguindo o ‘útil’ do ‘conveniente’.É útil tudo o que possa contribuir para a felicidade geral. É conveniente tudo o que permite realizar um fim imediato, banal ou simplesmente pessoal (FARAGO, 2004, p.189)

Com base na distinção entre prazeres meramente corpóreos e prazeres superiores, ou entre o útil e conveniente, e como cada um deles tem sua respectiva capacidade de realizar a felicidade do homem, é possível a Mill dar um novo acabamento ao princípio da utilidade, ou princípio da maior felicidade:

Segundo o Princípio da Maior Felicidade, como se explicou acima, o fim último, com referência ao qual e por causa do qual todas as outras coisas são desejáveis (quer estejamos considerando nosso próprio bem ou o de outras pessoas), é uma existência isenta tanto quanto possível da dor, e tão rica quanto possível em deleites, seja do ponto de vista da quantidade como da qualidade. O teste de qualidade, a regra que permite mensurá-la em oposição à quantidade, é a preferência manifestada pelos que, em razão das oportunidades proporcionadas por sua experiência, em razão também de terem o hábito de tomarem consciência de si e de praticar a introspecção, detêm os melhores meios de comparação. Sendo esta, de acordo com a opinião utilitarista, a finalidade da ação humana, é necessariamente também o padrão da moralidade. Assim, é possível definir a moralidade como as regras e os preceitos da conduta humana, cuja observação permitiria que uma existência tal como a descrita fosse assegurada, na maior medida possível, a todos os homens; (MILL, 2000, p.194) 86

3.2.2 – O utilitarismo enquanto teoria da justiça

O utilitarismo é uma doutrina moral abrangente, que se coloca como

critério de conduta para todo o espectro de ações práticas do indivíduo. No entanto,

desde o seu nascimento, com o trabalho de Jeremy Bentham (1970), o utilitarismo

delimitou como suas propostas se aplicam de modo diferenciado ao campo da moral

em sentido estrito, também denominada ética privada, e do Direito.

Bentham (1970) irá delimitar as fronteiras de atuação dos princípios

utilitaristas em cada um desses campos a partir da análise dos propósitos da Ética, em

um sentido mais abrangente. A Ética pretende ser a arte de direcionar a ação dos

homens no sentido de produzir a maior felicidade possível para aqueles cujo interesse

coloca-se em mira. Se tais ações forem as do próprio homem que as cria, tem-se o

campo da ética privada. Contudo, caso se trate de dirigir a ação de outros homens,

tem-se o campo da arte do governo ou, em outras palavras, do Direito.

Ambas, ética privada e Direito, direcionarão as condutas dos homens de

acordo com o princípio da utilidade. Elas criam os deveres para que o homem atinja a

felicidade. No entanto, elas diferem quanto ao seu objeto:

Private ethics teaches how each man may dispose himself to pursue the course most conducive to his own happiness, by means of such motives as offer to themselves: the art of legislation (which may be considered as one branch of the science of jurisprudence) teaches how a multitude of men, composing a community, may be disposed to pursue that course which upon the whole is most conducive to the happiness of the whole community, by means of motives to be applied by the legislator.56. (BENTHAM, 1970, p.323)

56 “A ética privada ensina como cada homem deve ele próprio se conduzir para perseguir o rumo mais propício para alcançar sua própria felicidade, por meio das razões que concernem a eles próprios: a arte da legislação (que pode ser considerada um dos ramos da ciência do Direito) ensina como uma multidão de homens, que compõe uma comunidade, deve se dispor para perseguir aquele rumo que, tomando-se o todo, é mais propício à felicidade de toda a comunidade, por meio das razões a serem aplicadas pelo legislador” (tradução nossa) 87 Portanto, o Direito e o Estado estruturados sob a perspectiva da teoria da justiça utilitarista terão suas instituições sociais voltadas à finalidade de se alcançar a mais ampla distribuição de bem-estar, com a maior eficiência possível (VAN PARIJS,

1997; ARNSPERGER; VAN PARIJS, 2003). Desse modo atingir-se-á o propósito de proporcionar a maior felicidade possível para o maior número de indivíduos na sociedade. Sendo assim, a tendência desse Direito e desse Estado é a de intervir positivamente na realidade política, econômica e social de modo a realizar os seus propósitos (FARAGO, 2004). Dessa maneira, o utilitarismo tende a colocar os direitos e as instituições sociais a serviço da promoção da felicidade (VAN PARIJS, 1997;

ARNSPERGER; VAN PARIJS, 2003).

É preciso esclarecer o que significa afirmar que aquilo que torna uma sociedade justa é a promoção, por meio do bem-estar, da felicidade no seio desta. Isso se faz pelas respostas a dois questionamentos: o que traz o bem-estar a uma sociedade?; e o que é a felicidade da sociedade?

As distintas compreensões formuladas para o conceito de “utilidade”, ou seja, aquilo que promove o bem-estar do homem e, portanto, se constitui como a finalidade a ser alcançada pela ação racional, determinam os três tipos de utilitarismo existentes: o utilitarismo de estados mentais de felicidade, o utilitarismo de preferências reais e o utilitarismo de preferências refinadas, ou objetivas.

(CARVALHO, 2003; FARRELL, 1998)

Para determinados autores utilitaristas, aquilo que promove o bem-estar do homem e, portanto, se constitui na meta da ação moral, é um estado mental que corresponde ao que se designa por felicidade ou prazer (CARVALHO, 2003;

FARRELL, 1998). Segundo essa forma de utilitarismo, também qualificado de hedonista (MILL, 2000), a ação moral deve promover, com maior intensidade e

88 durante o maior período de tempo possível, estados de felicidade das pessoas. Essa

felicidade deve ser compreendida como um sentimento processado pela mente

humana. Não é sem razão que o próprio Bentham (1970), em revisão posterior aos

seus escritos, comenta em nota que o princípio da utilidade deveria até mesmo ser

renomeado princípio da maior felicidade57 (BRITO, 1998).

Farrell (1998) nota que os utilitaristas clássicos, incluindo o próprio

Bentham, não formularam uma noção explícita daquilo que promove a felicidade,

apenas fazendo remissão ao sentido intuitivo que se pode extrair dessa idéia. O mesmo

autor salienta que o utilitarismo de estados mentais torna-se altamente fragilizado

enquanto teoria moral, por prescindir de um nexo com a realidade concreta, já que dá

importância somente aos sentimentos mentais:

Quaisquer que sejam estas características, o bom é o estado mental, e o correto, então, é produzir este estado sem que importe a forma pelo qual se chega a ele. Se o bom é o estado mental de felicidade que eu tenho ao acreditar que ganhei um prêmio, é igualmente correto fazer-me de fato ganhar o prêmio, ou fazer-me acreditar que o ganhei, sempre que ambas as coisas tenham a mesma conseqüência, isto é, o mesmo estado mental. O utilitarismo de estados mentais não considera que a conexão com a realidade seja condição necessária da bondade destes estados, e esta característica afeta todas as possíveis maneiras de considerar os estados em questão. (grifos do autor) (FARRELL, 1998, p.191-192)

Como forma de superar as objeções58 a essa formulação rudimentar do

conceito de utilidade, o pensamento utilitarista reformulou seu princípio capital de

modo a que o critério da utilidade não mais fosse determinado por estados mentais,

57 Para uma melhor compreensão dos sentidos expressos pelo princípio da utilidade conferir a minuciosa exegese de Brito (1998) sobre os textos de Bentham que tratam do tema. 58 Uma das mais contundentes objeções ao utilitarismo de estados mentais é sintetizada pela referência à “máquina da felicidade”. Tal argumento encontra-se formulado por Robert Nozick (1991) e aduz a seguinte hipótese: “Suponhamos que houvesse uma máquina de experiências que daria a você qualquer experiência que desejasse. Neuropsicólogos fora-de-série poderiam estimular-lhe o cérebro de modo que você pensasse e sentisse que estava escrevendo uma grande novela, fazendo um amigo ou lendo um livro interessante. Durante todo o tempo você estaria flutuando em um tanque com eletrodos ligados ao cérebro. Deveria você conectar-se com essa máquina por toda a vida, programando as experiências enquanto vivesse? (...) Claro, enquanto estiver no tanque não saberá onde se encontra. Pensará que tudo aquilo está realmente acontecendo. Outros podem conectar-se também para ter as experiências que quiserem, de modo que você não tem que permanecer desligados para que eles possam ser servidos. Você se ligaria? O que mais pode nos importar, a não ser como a vida nos parece a partir da dimensão interna?” (NOZICK, 1991, p.58-59) 89 mas sim pelas preferências reais (desejos) do interessado (indivíduo ou grupo). A

utilidade seria verificada pela capacidade de uma ação para promover a satisfação das

preferências (desejos) das pessoas (CARVALHO, 2003; FARRELL, 1998). Por meio

da elaboração de uma lista em ordem de prioridades do que uma pessoa almeja para si,

o utilitarismo de preferências reais assevera que o seu bem-estar advém da capacidade

de se maximizar a realização desses desejos (VAN PARIJS, 1997).

Desse modo, com o recurso às preferências reais dos indivíduos, o

utilitarismo consegue introduzir, em suas considerações sobre o que é bom, situações

que não necessariamente envolvem a sensação de gozo ou prazer, como, por exemplo,

o aprendizado de uma língua ou a realização profissional (CARVALHO, 2003). Com

isso, o utilitarismo evita a armadilha de se tornar uma teoria cujo fundamento reside

apenas nos confins psicológicos das pessoas, sem conexão com o mundo concreto em

que vivem (FARRELL, 1998).

No entanto, ao relegar às preferências reais o critério da utilidade, o

utilitarismo perde muito do seu apelo enquanto fundamento da ação moral das

pessoas. Em primeiro lugar, lança-se a objeção acerca da impossibilidade de se

elaborar uma lista contendo o que seria responsável por trazer o bem-estar a toda uma

sociedade (VAN PARIJS, 1997). Primeiro, porque os indivíduos divergem entre si

sobre tais questões. Segundo porque, ainda que concordem em alguns pontos comuns,

fazem-no em distintas intensidades, não existindo um critério que possa unificar as

preferências em uma lista59.

59 Para solucionar tal questão, o utilitarismo recorre à noção de Pareto-otimalidade, explicada por Van Parijs (1997) na seguinte passagem: “Diremos que a opção A é Pareto-superior à noção B se e somente se nenhum dos indivíduos (na coletividade considerada) prefere B a A enquanto que pelo menos um dentre eles prefere A a B”(VAN PARIJS, 1997, p.32-33). Assim, caso uma preferência preencha a condição de ser Pareto-superior a outra que se lhe possa opor, ela passa a integrar a da lista de prioridades dos indivíduos, evitando-se, assim indagar pelas intensidades das preferências: “Sem nenhuma referência à medida de intensidade das preferências nem à comparação interpessoal, o utilitarismo pode ainda exigir que a opção escolhida seja Pareto-ótima.” (VAN PARIJS, 1997, p.33) 90 Outra objeção ao utilitarismo de preferências reais se liga à questão de que a relação entre desejo e bem-estar nem sempre é congruente:

Nem sempre a satisfação de nossas preferências contribui para nosso bem-estar, pois podemos estar equivocados, desejando ou preferindo algo que nos faça mal. O que é bom para um indivíduo não precisa coincidir com suas preferências. A rigor, queremos aquilo que é digno de ser obtido. Nossas preferências atuais refletem nosso conhecimento, sempre limitado e falível, não protegido contra o erro. O Utilitarismo da satisfação de preferências parece inverter a ordem das coisas. O fato de se desejar ou preferir algo não o torna por isso valioso, mas o ser é que constitui uma boa razão para o preferirmos. Isso posto, somente a satisfação de minhas preferências por aquilo que é bom e que não estão fundadas em crenças falsas pode trazer bem-estar duradouro. Por outro lado, uma coisa pode ser boa para uma pessoa, sem que ela tenha o desejo de possuí-la. (CARVALHO, 2003, p.198)

Como forma de superar os dilemas colocados ao utilitarismo de preferências reais, alguns autores utilitaristas como John Stuart Mill (2000) buscaram modificar o conceito de utilidade proveniente das preferências reais para fazê-lo coincidir com as aspirações que as pessoas teriam, caso dispusessem de uma racionalidade completa e de pleno conhecimento das conseqüências associadas às possíveis escolhas. Elas surgem, nas palavras de Farrell (1998), de modo

“contrafactual”, sem que haja, necessariamente um vínculo com a realidade que se coloca aos diversos indivíduos.

Desse modo, o utilitarismo de preferências refinadas retira do sujeito concreto a capacidade de ser o responsável por escolher as preferências que lhe trarão bem-estar (CARVALHO, 2003). Com isso há a abertura para uma espécie de

‘paternalismo’ na teoria moral, como se instâncias superiores ao indivíduo fossem capazes de formular melhor do que ele próprio o que seria seu bem-estar. Essa noção proposta pelo utilitarismo de preferências refinadas divergiria, assim, em muito, daquela pregada pelo utilitarismo hedonista. Ademais, qual seria o critério para definir

91 algo intrinsecamente bom, que traria o bem-estar a todas as pessoas? Qual instância seria a detentora de tal autoridade?

“John Stuart Mill apela para os juízes competentes – um colegiado de pessoas experimentadas que estariam em condições ótimas para decidir o que deve contar como desejável. Trata-se de uma perspectiva que avalia algumas coisas como intrinsecamente boas, independentemente do que uma pessoa deseje ou valorize para si. O risco de uma abordagem como esta perder o vínculo com a noção de bem-estar não pode ser minimizado: concepções que se orientam por valores intrínsecos tendem a endossar tacitamente alguma idéia de excelência humana, a qual não está ao alcance de muitas pessoas e mesmo quando alcançada será ela garantia da felicidade?” (CARVALHO, 2003, p.202)

Como aponta Carvalho (2003), apesar de os diversos tipos de utilitarismo apresentarem diferenças significativas quanto à caracterização, eles guardam em comum a preocupação de perseguir, cada um a seu modo, a busca pela promoção do bem-estar em três distintos momentos: o da experiência, o do desejo e o do ideal.

Já com relação à segunda pergunta, acerca do que significa a maior felicidade da sociedade, duas foram as respostas que a tradição utilitarista formulou.

Segundo a teoria de Bentham, a maior felicidade possível do maior número seria verificada a partir da constatação de qual ação ou medida irá promover a maior felicidade da sociedade. O critério adotado seria, portanto, o somatório simples das felicidades individuais (VAN PARIJS, 1997). Uma medida ou ação seria aplicada na medida em que implementasse a maior soma total de felicidade agregada, já que seria a mais justa dentro de um grupo social.

The community is a fictitious body, composed of the individuals persons who are considered as constituting as it were its members. The interest of the community then is, what? – the sum of the interests of the several members who compose it. (…) A thing is said to promote the interest, or to be for the interest, of an individual, when it tends to add to the sum total of his pleasures (…) A measure of government (which is but a particular kind of action, performed by a particular person or persons) may be said to be conformable to or dictated by the principle of utility,

92 when in like manner the tendency which it has to augment the happiness of the community is greater than any which it has to diminish it.60 (BENTHAM, 1970, p.3)

Sendo assim, para o utilitarismo clássico de Bentham, que aponta para uma

maximização da felicidade total da sociedade, o que importa é a elevação da

quantidade total de bem-estar, não havendo que se falar em verificação quanto à

distribuição do quanto cada um irá usufruir desse bem-estar (VAN PARIJS, 1997;

ARNSPERGER; VAN PARIJS, 2003).

Uma primeira correção a esse modelo foi realizada por John Stuart Mill

(VAN PARIJS, 1997), pela adoção do utilitarismo de preferências. Isso porque é

possível que seja estabelecida como uma preferência racional a ausência de

desigualdades sociais abismais entre seus membros, determinando-se que tal restrição

promoveria o bem-estar da sociedade. Porém, o raciocínio permanece intocado quanto

à proposta inicial: o conseqüencialismo deverá levar em consideração o total de bem-

estar promovido com a medida.

No entanto, há outro critério para se determinar o que traz a maior

felicidade possível para a sociedade. Ele leva em conta a capacidade de uma medida

elevar o bem-estar médio, a partir de uma regra de proporção ponderada a ser extraída

com base em quanto cada indivíduo incrementou seu bem-estar com a medida (VAN

PARIJS, 1997; ARNSPERGER; VAN PARIJS, 2003). Para essa versão do

utilitarismo, as medidas consideradas como portadoras de maior utilidade (isto é, que

trazem maior bem-estar) são aquelas que tornam mais elevado o nível médio de bem-

estar usufruído pelas pessoas.

60 “A comunidade é um corpo fictício, composto das pessoas individuais que são considerados como seus constituintes, tal como se fossem seus membros. O que é, então, o interesse da comunidade? – A soma do interesse dos diversos membros que a compõem. (...) Pode-se dizer que algo promove o interesse, ou está a favor do interesse, de um indivíduo, quando possui a tendência de aumentar a soma total de seus prazeres (...) Uma medida de governo (o que não nada mais do que uma espécie particular de ação, realizada por uma pessoa particular ou por um grupo de pessoas) pode ser dita em conformidade com ou ditada pelo princípio da utilidade, quando de alguma maneira a tendência que ela possui para aumentar a felicidade da comunidade é maior do que qualquer uma outra teria para diminuir.” (tradução nossa) 93 Segundo Van Parijs (1997), nenhum dos dois critérios é isento de

problemas. Enquanto o utilitarismo clássico tende a descurar por uma distribuição do

bem-estar entre os indivíduos, o utilitarismo médio apelará para uma redução do

número de pessoas envolvidas na distribuição para que haja uma maior maximização

do produto total por cabeça.

3.2.3 – Utilitarismo, direitos e liberdades

A experiência histórica da aplicação da doutrina utilitarista da justiça levou

ao desenvolvimento da economia normativa (welfare economics) e do Estado de Bem-

Estar Social61. Juntas, as duas concepções serviram para promover uma ampla reforma

das instituições sociais concebidas pelo pensamento liberal clássico, modificando

profundamente a noção de justiça até então existente. O explícito escopo em se

promover a distribuição de bens sociais de modo a atender o propósito social de se

proporcionar a maior felicidade possível para os membros da sociedade, como forma

de se realizar a justiça, permitiu que fossem conferidas prerrogativas ao Estado para

intervir positivamente em diversos setores da sociedade que antes eram objeto de

exploração pela iniciativa privada. Ao se determinar que questões ligadas à saúde,

educação, saneamento básico, habitação, transportes, recursos energéticos,

telecomunicações, dentre outras, deveriam ser providas para que se alcançasse a

felicidade por meio de um bem-estar social, o Estado ganhou destaque como agente

promotor da justiça na sociedade (SANTOS, 1994). No entanto, para atuar em todos

61 Ao se verificar as conseqüências da aplicação da teoria utilitarista às regras morais que devem governar uma sociedade, constata-se que seu conteúdo privilegia a generalização da noção de que a felicidade se realiza através do bem-estar e que este, por sua vez, se concretiza através do acesso a bens materiais e a serviços. Assim, a conseqüência prática da transposição das reflexões teóricas acerca do utilitarismo para o plano das ações políticas que dele se deriva é que se torna função e dever do Estado promover o bem-estar de todos os seus cidadãos, através de prestações positivas de benefícios materiais. E a teoria que analisa a gestão econômica dos recursos e incentivos que o Estado tem a sua disposição para efetivar essa nova função é a economia normativa. (VAN PARIJS, 1997) 94 esses setores que trariam a distribuição de benefícios generalizados à sociedade, foi

preciso que houvesse o sacrifício, ao menos parcialmente, dos interesses privados de

seus membros, já que: a fonte de recurso do Estado, por excelência, é a tributação e a

arrecadação; os riscos e conseqüências da economia de mercado deveriam ser

atenuados; por força da relevância atribuída a tais questões, interesses individuais

tenderiam a ceder caso contrastassem com interesses coletivos.

Em todas as três exemplificações de sacrifícios62, verifica-se que a

promoção do bem-estar social implica em interferências na dimensão negativa da

liberdade. Por isso, nem sequer um autor como John Stuart Mill, árduo defensor da

liberdade tal como compreendida em seu sentido negativo, lançou argumentos de

prioridade desta sobre a felicidade (VAN PARIJS, 1997). Ao contrário, a defesa da

liberdade negativa seria feita ao argumento de que sua existência é o que

proporcionará a maior felicidade de uma sociedade, submetendo hierarquicamente esta

a aquela:

Tomemos, por exemplo, o ‘princípio de liberdade’ de Mill, que confere a cada indivíduo o direito de fazer o que bem entende no domínio que só diz respeito a si mesmo. Na maior parte de Sobre a liberdade, Mill recorre implicitamente a essa primeira estratégia esforçando-se para mostrar que o respeito estrito a esse princípio maximiza (ao longo do tempo) o bem-estar coletivo, mesmo se acontece algumas vezes que sua infração seja ótima do ponto de vista de um utilitarismo de atos. De uma tal perspectiva, o princípio de liberdade não tem nenhuma força própria, independentemente do princípio de utilidade a que serve. (VAN PARIJS, 1997, p.51)

62 O sacrifício contido no primeiro exemplo está ligado ao fato de que quanto mais intensa a carga tributária, mais horas de trabalho de cada pessoa são necessárias para que ela obtenha o mesmo rendimento caso não houvesse a tributação, subtraindo-lhes tempo e força de trabalho. Essa idéia é bastante explorada por Nozick (1991). O segundo tipo de sacrifício está ligado a uma restrição da livre-iniciativa que as pessoas e empresas teriam para praticar o comércio e a atividade industrial, por força de uma disciplina rigorosa das regras de mercado, a fim de evitar ou amenizar as crises e efeitos do sistema capitalista na economia. O assunto é tratado em profundidade por Hayek (1990). O terceiro sacrifício faz referência a uma impossibilidade de exercício pleno de direitos e prerrogativas individuais caso eles sejam confrontados com interesse coletivos, retirando do indivíduo parcela de sua liberdade e de sua autonomia, tal como mostrado por Rawls (2002). 95 Assim, percebe-se que o utilitarismo busca corrigir as deficiências que o liberalismo havia dado à dimensão material da liberdade ao preço de uma exortação irrestrita desta, colocando as demais facetas da liberdade a ela subordinadas. Dentro da teoria da justiça utilitarista, a autonomia, a propriedade de si e a propriedade privada estariam constantemente à mercê das decisões coletivas.

3.3 O Marxismo

Por mais que a teoria da justiça utilitarista assuma como sua função o emprego de medidas que promovam uma efetiva redistribuição de bens entre os membros da sociedade, em função de sua premissa fundamental sustentar que a justiça exige que se eleve ao máximo possível o bem-estar dos indivíduos, tal perspectiva não exige que se introduzam considerações relativas ao caráter ético de tais distribuições.

Desde que se promova (ou não se ofenda) o princípio da maximização do bem-estar, eventuais desigualdades na distribuição dos bens sociais são aceitáveis, ou mesmo bem-vindas. Desse modo, distorções radicais e desigualdades sociais permanecem justificadas dentro do quadro referencial teórico utilitarista, sob o argumento de que há melhora no conjunto total do bem-estar atribuído à totalidade dos membros da sociedade.

O que a teoria da justiça de matriz marxista sustenta é que não haverá justiça em uma sociedade se as instituições sociais não vierem a promover a pretensão de se distribuir os bens sociais de modo igualitário. Desse modo, é o potencial de promoção da igualdade, e não o bem-estar propriamente dito, o que a teoria marxista

96 sustenta ser o critério responsável por se verificar a justiça das instituições sociais

(ARNSPERGER; VAN PARIJS, 2003).

A teoria marxista da justiça é algo distinto daquilo que se extrai, de uma

leitura apressada, do que se pode chamar de uma proposta política levantada por Karl

Marx e Friederich Engels. Também não é a doutrina política ou os programas de

governo adotados pelos partidos socialistas que ascenderam ao poder pela via

revolucionária e instituíram as Ditaduras Proletárias e, em seguida, geraram o

“Socialismo Real” que se verificou no século passado (LYRA FILHO, 1983). A teoria

marxista da justiça funda-se a partir da tradição iniciada por Karl Marx63 e continuada

por seus intérpretes64 em se pensar uma sociedade que colocaria fim à exploração de

um homem sobre outro, de caráter igualitário, não marcada por profundas diferenças

63 A reconstrução do Direito e da Justiça no pensamento de Marx realizada por Lyra Filho (1983) o leva a afirmar que a negação do Direito burguês não se presta a banir a existência de todo o Direito, mas apenas aquele que pode ser identificado como instrumento de dominação de classe. Na sociedade comunista, o direito burguês seria substituído por princípios normativos de caráter jurídico: “Ao ser ultrapassado, porém, naquela sociedade (comunista) o direito (burguês) admite Marx um princípio jurídico (a que, entretanto, não dá qualificação) consistente na preceituação: ‘de cada um, segundo as suas aptidões; a cada um, conforme as próprias necessidades’ – o que, incidentemente só numa abordagem dialética pode ser conciliado com ‘direitos e deveres iguais’, após a proclamação da desigualdade visceral do Direito, e perante o brocardo (jurídico também) do comunismo: ‘o livre desenvolvimento de cada um é condição para o livre desenvolvimento de todos’ – pressupondo, de resto, uma limitação (jurídica) da liberdade, pois tantas liberdades particulares (de cada um) atropelariam a liberdade geral.” (LYRA FILHO, 1983, p. 83) 64 Destaca-se aqui o trabalho de Stucka (1974) em atribuir ao Direito um caráter revolucionário, a partir de sua natureza de fenômeno de classe: “¿Cómo podía explicar de outro modo el dualismo objetivo entre el ‘derecho positivo’ vigente de la clase de los opresores y la consciencia de la clase hoy oprimida, ‘revolucionaria y negativa’? Únicamente al adoptar el punto de vista revolucionario y clasista nos colocamos en un terreno realista y objetivo respecto del derecho futuro, o sea, respecto de esa justicia de la que se ocuparon en el pasado los filósofos del derecho. Y solamente con esta condición conseguimos comprender la naturaleza de todo derecho nuevo como factor revolucionario. Pues a pesar de toda nuestra antipatia hacia la institución de la propiedad privada y de nuestra lucha inflexible contra la clase de los capitalistas, incluso contra la de los propietarios feudales, hemos de admitir que la institución de la propiedad privada em general y en particular la institución de la propiedad feudal y capitalista fueron revoluciones históricamente necesarias. Por último, con nuestra concepción de la lucha de clases, según la cual la clase de los capitalistas está interesada, a pesar de todo, en la existencia del proletariado, y ni siquiera puede desear su aniquilación completa, mientras que el proletariado, por su parte, lleva y debe llevar a cabo una lucha dirigida a la aniquilación completa de la clase de los capitalistas y de los propietarios de la tierra, conseguimos aferrar la naturaleza misma del derecho burgués: su dualismo interno, su hipocresia, sus ilusiones y su contradictoriedad. Y solamente en estas condiciones podremos, en general, hablar del derecho como de una ciencia. Lo cual es necesario en vista del gran papel que corresponde al derecho en todas as épocas de transición como ‘locomotora de la historia’. Captamos así los elementos que identifican el proceso mismo del desarollo con el proceso del derecho, pero no de manera conciliadora, sino en el sentido positivamente revolucionario (o por el contrario, temporalmente, contrarrevolucionario). Dentro de estos límites y en este sentido podemos hablar de un derecho-revolución.” (STUCKA, 1974, p.126-127) 97 sociais e, por fim, em que as reais necessidades de todos os homens possam ser satisfeitas. (VAN PARIJS, 1993, 1997; ARNSPERGER; VAN PARIJS, 2003)

Assim, a teoria da justiça marxista apresenta-se como uma teoria que pretende realizar desafios éticos superiores, exigindo das instituições sociais que se proponham a um papel emancipatório, libertando o homem das condições que o tornam um ser alienado do seu mundo:

Certamente as condições da vida do proletariado constituem as premissas para o desenvolvimento de uma nova forma, superior e mais harmoniosa, de relações entre o indivíduo e a coletividade. Numerosos fatos, que exprimem a solidariedade da classe proletária, testemunham-no. Mas, ao lado deste novo, continua a subsistir o antigo. Ao lado do homem social do futuro, que deixa fundir o seu Eu na coletividade, que encontra a grande satisfação e o verdadeiro sentido de sua vida, continua igualmente a existir o homem moral que carrega sobre seus ombros o fardo de um futuro mais ou menos abstrato. A vitória da primeira forma equivale à libertação completa do homem de todas as sobrevivências das relações jurídicas privadas e à transformação definitiva da humanidade na direção do comunismo. Certamente, tal tarefa não é apenas uma tarefa puramente ideológica ou pedagógica. O novo tipo de relações humanas necessita da criação e da consolidação de uma nova base material econômica (PASUKANIS, 1989, p.51)

Nesse sentido, a teoria marxista da justiça andará sempre de mãos dadas com um compromisso político, exigindo uma intervenção positiva na realidade com o fito de alterar tudo aquilo é nocivo à condição humana. Seria, portanto, utópica, ao vislumbrar outro lugar possível para além dos horizontes limitadores do real

(SANTOS, 1994, 2002). Trabalha com a idéia de que o potencial de criação e de emancipação do homem é capaz de modificar o mundo que se encontra ao seu redor em direção à construção de uma morada que lhe seja melhor.

A referência à obra de Marx, como principal idealizador desse projeto na era Moderna, é indispensável. Nela se encontra o alicerce da teoria marxista. Mas, para que se preservem os princípios ali contidos, é preciso se apreender o espírito da obra de Marx e se reinterpretar o seu trabalho até mesmo, se necessário, contra literalidades explicitadas em seus escritos, bem como contra doutrinas oficiais, que

98 durante muito tempo arvoraram-se como as únicas miragens possíveis para o marxismo.

No marxismo clássico há um misto de filosofia, ciências econômicas e sociais e ideal político. Não se encontra em Marx uma teorização completa sobre o

Direito e sobre a Justiça, mas apenas comentários dispersos e parciais ao longo de toda sua extensa obra. Segundo Lyra Filho (1983), esse estranhamento de Marx em relação ao Direito pode ser atribuído a alguns fatores, destacando-se dois dentre eles:

a rejeição dum primitivo entusiasmo pelo Direito Natural racionalista e uma revolta implacável perante o ‘direito positivo’ das classes dominantes; a procura dum modelo comunista em que se extinguissem as visões idealistas da Justiça as estruturas jurídicas de puro controle social e estatal – o que acaba confundindo a morte da Justiça ideológica e do Direito burguês com o desaparecimento da Justiça e do Direito (cujo inevitável retorno, em novas visões da justiça e estruturas do Direito se faz, ou com omissão dos nomes – Justiça e Direito – ou admissão meio encabulada de ambos, para vestir o clamor jurídico dos espoliados e oprimidos e desalterar-lhes a sede de Justiça)” (LYRA FILHO, 1983, p. 70)

Durante o período em que a revolução comunista obteve êxito no plano político, o pensamento marxista acerca do Direito procurou identificá-lo às premissas do projeto revolucionário, como se verifica em Stucka (1974) e Pasukanis (1989), por exemplo. A retomada da reflexão sobre esses temas surgiu justamente com a derrocada do “Socialismo Real”. A queda do regime soviético deixou saliente que a ausência de uma reflexão sobre o governo e as instituições jurídicas transformara o projeto revolucionário em exercício de pura força, que se perpetuava sobre uma crença metafísica no “sucesso” da Revolução. Dessa maneira, muito longe de estar fadado ao desaparecimento com a queda do Muro de Berlim e da Cortina de Ferro, foi após o desenrolar de tais eventos históricos que o marxismo pôde se dissociar desses descaminhos e restabelecer seu rumo em servir de diretriz à construção de uma sociedade mais justa e igualitária, resgatando, assim, seu potencial emancipatório.

(VAN PARIJS, 1993) Contudo, tais adaptações não são isentas de dificuldades e

99 implicam um trabalho interpretativo do que significa, nos dias atuais, compreender o

alcance e o significado da obra de Marx.

3.3.1 – Materialismo histórico, Materialismo dialético e liberdade em Marx

Para se compreenderem os fundamentos de uma teoria da justiça de origem

marxista é preciso apresentar, ainda que de modo sucinto, os pilares em que se

sustenta o pensamento de Karl Marx. Sua a obra é, originalmente, uma pesquisa

filosófica, com forte derivação para a análise histórica, econômica e social e que

culmina em uma proposta política para a humanidade (MORAIS, 2004).

Marx escreve no tempo em que a filosofia encontra-se às voltas com a obra

filosófica de G. F. W. Hegel. Hegel revolucionara o pensamento filosófico de sua

época, ao reabilitar a lógica dialética como lógica do real, como movimento da Razão,

sendo a única possibilidade de explicar a totalidade do Ser. A dialética hegeliana pode

ser definida como um método e um sistema lógico-filosófico que explora as

contradições entre as determinações do singular e do particular, fazendo-as reconciliar

num terceiro momento denominado de universal65 (COELHO, 2003). Isso ocorre por

meio do processo da Aufhebung66. Hegel se vale desse método para mostrar como o

65 “Para Hegel a dialética consiste numa aplicação científica do princípio, inerente ao pensamento em si mesmo, de sua conformidade às leis do seu próprio desenvolvimento e do desenvolvimento do ser em geral. Essas leis se manifestam como um processo de tese, antítese e síntese, o qual revela o tornar-se ou o vir a ser. Cada coisa, cada ente, é, ao mesmo tempo, uma síntese da tese e antítese anteriores e também sua contradição, que se superam em outra síntese superior, afirmada como nova tese a engendrar a sua própria e nova antítese, numa transformação contínua a ascendente. À mesma lei estão sujeitas as transformações do espírito, as quais engendram as da matéria. O mundo não é um conjunto de unidades autônomas, pois a única coisa completamente independente é o todo, que, para Hegel, equivale ao ser absoluto, o qual é igualmente dinâmico.” (COELHO, 2003, p.34) 66 O termo Aufhebung não encontra correspondente imediato em língua portuguesa e é traduzido na literatura especializada pelo neologismo ‘suprassunção’. O termo se relaciona a três significados: 1) levantar, sustentar, erguer; 2) anular, abolir, cancelar, revogar; 3) conservar, poupar preservar (INWOOD, 1997). “Em suas descrições explícitas de aufheben, Hegel refere-se unicamente aos sentidos (2) e (3), uma vez que, em sua opinião, é de grande interesse para o pensamento especulativo que aufheben tenha sentidos opostos. Ambos os sentidos, argumenta ele, estão implícitos em (3), porquanto preservar algo envolve removê-lo da imediatidade e de sua exposição a influências externas (...) Aufhebung é semelhante à negação determinada que tem um 100 “espírito”67 se manifesta na História68. Ele consegue, com essa renovada compreensão

da dialética, forjar uma identidade entre o real e o racional, fornecendo, assim, a

expressão mais acabada ao movimento filosófico denominado “idealismo”69.

Marx (2006b) reconhece a importância da dialética como método filosófico

que aponta a estrutura na qual se move toda a evolução cultural e histórica do homem,

no entanto, rejeita veementemente a perspectiva idealista70. Segundo ele, a primazia

resultado positivo. O que resulta da suprassunção de algo, por exemplo, o todo em que ele e seu oposto sobrevivem como momentos, é invariavelmente superior ao item, ou à verdade do item suprassumido” (INWOOD, 1997, p. 303) 67 Em sua acepção mais abrangente Espírito (Geist) “denota a mente humana e seus produtos, em contraste com a natureza e também com a idéia lógica” (INWOOD, 1997, p.118). Já em sentido filosófico estrito, o conceito de Espírito “inclui os aspectos mais intelectuais da psique, dede a intuição até o pensamento e a vontade, mas excluindo e contrastando com a alma, o sentimento, etc... A ‘fenomenologia de Geist’ cobre o mesmo terreno, mas com destaque para a consciência de objetos por parte do espírito” (INWOOD, 1997, p.118). Por fim, cabe ainda dizer que em Hegel o conceito de Espírito adquire algumas determinações precisas, por serem expressão de manifestações específicas. Assim, Espírito Subjetivo é o produto da psique humana, em sua dimensão volitiva e do pensamento. Espírito Objetivo se relaciona aos costumes, leis e instituições jurídicas de um determinado povo, que moldam seu caráter e sua consciência segundo tais valores. Espírito Absoluto se relaciona às dimensões da arte, da religião e da filosofia, segundo os valores mais superiores que o Espírito em geral se espelha em sua atividade. (INWOOD, 1997) 68 “A dialética, do ponto de vista de Hegel, explica todo o movimento e toda a mudança, tanto no mundo quanto em nossos pensamentos sobre ele. Também explica por que as coisas, assim como os nossos pensamentos apresentam uma coesão sistemática entre si. Mas a transitoriedade das coisas finitas e a elevação (Erhebung) acima do finito efetuada pelo pensamento dialético também têm para ele uma significação religiosa, e está inclinado a assimilar a dialética no sentido negativo ao poder (Macht) de Deus.” (INWOOD, 1997, p. 101) 69 Idealismo em sentido mais amplo “é a doutrina segundo a qual as idéias ou o ideal são, ontológica e/ou epistemologicamente, anteriores às coisas ou ao real. Mas o idealismo varia de acordo com (entre outras coisas) os sentido atribuídos a “idéia” e “ideal”, e com o tipo de prioridade que lhes é prescrito” (INWOOD, 1997, p.165). O idealismo encontra-se presente na filosofia desde seus primórdios entre os gregos, sendo Platão um de seus maiores representantes naquele período. Nos séculos XVII e XVIII há um movimento filosófico de retomada do idealismo, em especial entre os filósofos de origem germânica, denominado de “crítico” ou “transcendental”, que aparece inicialmente na filosofia kantiana e tem seqüência com a obra de J.G. Fichte. A perspectiva desses dois filósofos seria a de um idealismo subjetivista, em que haveria um Eu absoluto metafísico responsável por produzir o mundo e fornecer as categorias necessárias à possibilidade de conhecimento. Atento às críticas do filósofo Friedrich Schelling, que constatou a relação necessária entre o mundo ideal e o mundo real, que os conduz em direção uma unidade absoluta, Hegel rejeita o idealismo subjetivo. Sua filosofia é o que se pode qualificar de idealismo absoluto, pois para que qualquer categoria do pensamento se torne compreensível é necessária a referência a uma instância superior que lhe forneça sentido e expressão. Em sua relação com o todo, tais categorias aparecem sob uma perspectiva ideal, enquanto um produto do pensamento, segundo o processo de suprassunção dialética acima explicado. (INWOOD, 1997) 70 Sobre a passagem do idealismo para o materialismo em Marx, a partir da crítica a Ludwig Feuerbach Quintaneiro, Barbosa e Oliveira (2002) explicam: “Na passagem do idealismo para o materialismo dialético, Ludwig Feuerbach (1804-1872), hegeliano de esquerda, foi uma figura chave. Feuerbach sustentava que a alienação fundamental tem suas raízes no fenômeno religioso, que cinde a natureza humana, fazendo com que os homens se submetam a forças divinas, as quais, embora criadas por eles próprios, são percebidas como autônomas e superiores. O mundo religioso é concebido por Feuerbach como uma projeção fantástica da mente humana, por isso alienadas. A supressão desse mundo, por meio da crítica religiosa faria desaparecer a própria alienação, promovendo a liberação da consciência. Embora inicialmente seduzidos pelas teses de Feuerbach, logo Marx e Engels rebateram-nas vigorosamente por considerarem tal crítica religiosa uma simples ‘luta contra frases’. É nesse ponto que a teoria marxista articula a dialética e o materialismo sob uma perspectiva histórica, negando, assim, tanto o idealismo hegeliano quanto 101 ontológica do “espírito” sobre a realidade concreta significaria uma abstração que não

leva em consideração o homem feito de carne e osso, aquele que nasce e morre, que

constrói sua cultura pelo trabalho. Para que se conheçam e se desvelem as estruturas

do mundo real, é preciso que se adote uma perspectiva materialista, que compreenda

que toda a realidade cultural humana tem como referência as relações práticas que o

homem estabelece no mundo concreto (BOTTOMORE, 2001). A aplicação do método

dialético sob o enfoque materialista leva Marx a concluir que o objeto do pensamento

e da ação humana é a práxis transformadora e a atividade revolucionária

(QUINTANEIRO; BARBOSA; OLIVEIRA, 2002), a partir da tomada de uma postura

crítica:

Na Alemanha, nenhum tipo de servidão será abolido, se toda a servidão não for destruída. A Alemanha, que é profunda, não pode fazer uma revolução sem revolucionar a partir do fundamento. A emancipação do alemão é a emancipação do homem. A filosofia é a cabeça desta emancipação e o proletariado o seu coração. A filosofia não pode realizar-se sem a exaltação do proletariado, o proletariado não pode exaltar-se sem a realização da filosofia (MARX, 2006b, p.59)

Especificamente no marxismo, o materialismo se revestirá em duas

distintas teorias: o materialismo dialético e o materialismo histórico. Arnsperger e Van

Parijs (2003) resumem bem como se caracterizam esses dois métodos:

O materialismo dialético, de um lado, é uma teoria metafísica que atribui um papel central ao conceito de ‘contradição’, em sua interpretação da natureza profunda da realidade. O materialismo histórico, de outro, é uma teoria geral da história cuja tese central afirma que a natureza das relações de produção – feudal, capitalista ou socialista, por exemplo – se ajusta ao desenvolvimento das ‘forças produtivas’, isto é, ao crescimento da produtividade do trabalho, exercendo ao mesmo tempo sobre esse desenvolvimento influência decisiva.(grifos do autor) (ARNSPERGER; VAN PARIJS, 2003, p.54-55)

o materialismo dos neo-hegelianos. Isto resultou na reformulação não só da dialética como da concepção dos fundamentos da alienação” (QUINTANEIRO; BARBOSA; OLIVEIRA, 2002, p. 29) 102 A análise marxista da realidade tem como foco central as contradições existentes na dimensão da produção econômica e sua categoria principal será o processo de trabalho inerente a ela. Marx (1999) descreve o processo de trabalho:

Antes de tudo trabalho é um processo de que participam o homem e a natureza, processo em que o ser humano, com sua própria ação, impulsiona, regula e controla seu intercâmbio material com a natureza. Defronta-se com a natureza como uma de suas forças. Põe em movimento as forças naturais de seu corpo – braços e pernas, cabeça e mãos – a fim de apropriar-se dos recursos da natureza, imprimindo-lhes forma útil à vida humana. Atuando assim sobre a natureza externa e modificando-a, ao mesmo tempo modifica a sua própria natureza. Desenvolve as potencialidades nela adormecidas e submete ao seu domínio o jogo das forças naturais. (MARX, 1999, p.211)

Por meio do trabalho, o homem transforma a realidade e modifica-se ao mesmo tempo também a si próprio. Isso denota, para Marx, que o processo cultural não possui um caráter especulativo, estando ligado à dimensão da práxis, ou seja, do agir humano (ENGELS; MARX, 1998). É somente quando dá vazão a essa dimensão que intervém na realidade, modificando-a, que o homem trabalha e, assim, adquire cultura, vindo ele mesmo a evoluir.

Ao contrário da filosofia alemã, que desce do céu para a terra, aqui é da terra que se sobe ao céu. Em outras palavras, não partimos do que os homens dizem, imaginam e representam, tampouco do que eles são nas palavras, no pensamento, na imaginação e na representação dos outros, para depois se chegar aos homens de carne e osso; mas partimos dos homens em sua atividade real, é a partir de seu processo de vida real que representamos também o desenvolvimento dos reflexos e das repercussões ideológicas desse processo vital. E mesmo as fantasmagorias existentes no cérebro humano são sublimações resultantes necessariamente do processo de sua vida material, que podemos constatar empiricamente e que repousa em bases materiais. Assim, a moral, a religião, a metafísica e todo o restante da ideologia, bem como as formas de consciência a elas correspondentes, perdem logo toda a aparência de autonomia. Não têm história, não têm desenvolvimento; ao contrário, são homens que, desenvolvendo sua produção material e suas relações materiais, transformam, com a realidade que lhes é própria, seu pensamento e também os produtos do seu pensamento. Não é a consciência que determina a vida, mas sim a vida que determina a consciência. (ENGELS; MARX, 1998, p.19-20)

Salienta-se aqui um importante aspecto da teoria marxista: a de que aquilo que se encontra na realidade enquanto forma de resistência à evolução do homem deve

103 ser objeto de uma intervenção transformadora. Para usar palavras que poderiam ser qualificadas como herança do marxismo, “o socialismo não será nunca mais do que uma qualidade ausente. Isto é, será um princípio que regula a transformação emancipatória do que existe, sem, contudo, nunca se transformar em algo existente.”

(SANTOS, 1994, p. 277). Segundo Engels e Marx (1998), há no homem um poder de criação que o leva a superar as adversidades impostas pela realidade, e esse poder constitui a essência de sua natureza – tal como descreve o materialismo dialético.

A superação dos obstáculos que a realidade coloca ao homem constitui a sua capacidade de emancipação. Para Marx (2006a), a liberdade está intimamente vinculada à ação política que transforma a realidade. Diferentemente da liberdade burguesa, responsável por isolar o indivíduo de sua comunidade, sua concepção de liberdade pode ser relacionada à dimensão positiva desse conceito. Ela se liga a uma capacidade de intervir de modo ativo nos caminhos tomados pela coletividade na qual se insere, constituindo-se como uma capacidade de emancipação:

Portanto, esta comunidade real que possibilitará a liberdade real, este reino da liberdade, é algo a ser conquistado, será fruto de uma ação, de uma atividade transformadora, de um querer, de uma vontade. Será fruto da práxis, da subjetividade ativa. O reino da liberdade será fruto do exercício da liberdade. A comunidade real, dentro da qual e só por meio da qual a liberdade individual é possível, terá como base a natureza dominada e humanizada. (REIS, 1987, p.122)

No tempo de Marx, e segundo seu diagnóstico (1999, 2003), a emancipação do homem encontrava-se obstaculizada pelo modo de produção capitalista, bem como por seus efeitos sobre o homem. Por essa razão há, em toda a sua obra, uma crítica mordaz aos postulados desse sistema produtivo. Isso porque as bases do capitalismo se assentam sobre a exploração radical de uma classe sobre outra, de modo a que uns poucos se beneficiem do produto social, enquanto a grande maioria fica à mingua de parcas migalhas distribuídas tão-somente para a perpetuação do

104 sistema. Além da desigualdade atinente ao acesso aos recursos materiais, a lógica

capitalista seria responsável também por acentuar de modo vertiginoso o processo de

alienação71 do homem, fruto do intenso processo de divisão do trabalho72.

A principal conseqüência do processo de divisão do trabalho é a

constituição da propriedade privada (ENGELS; MARX, 1998). No sistema capitalista,

a complexidade da divisão social do trabalho faz com que a propriedade dos meios de

produção permaneça exclusivamente com uma classe distinta daquela que realiza o

processo de trabalho. Essas duas classes são, respectivamente, a burguesia e o

proletariado. O processo de produção de riqueza no sistema capitalista assenta-se na

extração da mais-valia (MARX, 1999, 2003). Como o burguês produz para vender, ele

emprega o capital para a produção de mercadorias. Investe em maquinário, matéria-

prima, compra a força de trabalho que opera a máquina e organiza a produção. No

processo de transformação da matéria prima em mercadoria, há um acréscimo de seu

valor, oriundo do processo de trabalho. Para que o sistema capitalista possa se

perpetuar, o valor que o burguês obtém em mercadorias produzidas pelo trabalho

71 A alienação é caracterizada por Marx como um efeito da atividade humana prática que se desenvolve por meio do processo de trabalho. Segundo explicam Quintaneiro, Barbosa e Oliveira (2002) esse efeito aparece como um estranhamento entre o trabalho realizado e o seu produto, em função do fato de que o trabalhador não se reconhece em sua obra, mas sim aquele que o explora. No caso do capitalismo, o burguês detém os meios de produção e determina tudo o que se relaciona a ela a fim de se produzir a mercadoria. O trabalho proletário encontra-se, portanto, a serviço de um interesse particular que não é o seu. “Marx sublinha três aspectos da alienação: 1) o trabalhador relaciona-se com o produto do seu trabalho como algo alheio a ele, que o domina e lhe é adverso, e relaciona-se da mesma forma com os objetos naturais do mundo externo; o trabalhador é alienado em relação às coisas; 2) a atividade do trabalhador tampouco está sob seu domínio, ele a percebe como estranha a si próprio, assim como sua vida pessoal e sua energia física e espiritual, sentidas como atividades que não lhe pertencem; o trabalhador é alienado em relação a si mesmo; 3) a vida genérica ou produtiva do ser humano torna-se apenas meio de vida para o trabalhador, ou seja, seu trabalho – que é a sua atividade vital consciente e que o distingue dos animais – deixa de ser livre e passa a ser unicamente meio para que sobreviva.” (QUINTANEIRO; BARBOSA; OLIVEIRA, 2002) 72 A divisão do trabalho é o processo de segmentar as etapas da produção em conformidade com as diferentes aptidões dos membros que fazem parte de um grupo social. Esse processo surge inicialmente no ato sexual e depois se expande para a família e para a comunidade em função das diferentes disposições naturais de cada indivíduo (ENGELS; MARX, 1998). Isso implica em uma repartição quantitativa e qualitativamente diferenciada de trabalho entre os indivíduos. Conseqüentemente, haverá também uma distribuição diferenciada dos instrumentos e dos gêneros de produção entre eles, fazendo com que sejam fixados e agrupados de acordo com as atividades que desempenham. Isso dá origem às classes e os respectivos interesses próprios a cada uma delas. Quando a sociedade inteira estrutura seus processos produtivos de modo a segmentar sua produção material em setores mais abrangentes, como campo e cidade, burocracia e trabalho manufaturado, há a chamada divisão social do trabalho (QUINTANEIRO; BARBOSA; OLIVEIRA, 2002) 105 operário deve ser superior àquele custeado por ele no pagamento dos salários. Essa

diferença entre o que a força de trabalho é capaz de produzir e o valor que o burguês

paga por ela, é denominado por Marx de mais-valia, ou sobre-valia. Pela extração da

mais-valia desse trabalho excedente que o trabalhador realiza em sua jornada fixa, o

capitalista aufere seus ganhos e rendimentos73.

Como a sociedade pós-Revolução Industrial tem nas fábricas a principal

fonte de emprego para a grande maioria da população, a extração da mais-valia torna-

se um meio generalizado de exploração do trabalho operário e de sustentação de todo

o sistema produtivo da sociedade. Associada a isso, há a possibilidade de o burguês

estabelecer as condições de trabalho, tais como jornada, salários, salubridade e

segurança do ambiente de trabalho, emprego de mulheres e crianças, dentre outras

formas de exploração, por força das prerrogativas asseguradas ao livre-arbítrio pela

liberdade burguesa. Estabelece-se assim, o que Engels e Marx (1998) denominaram de

conflito entre classes, ou luta de classes. Em virtude de uma lógica acumulativa

inerente ao capital, os burgueses extrairiam da classe operária cada vez mais a mais-

valia74 pelo agravamento das condições de trabalho. Os trabalhadores, por sua vez,

desenvolveriam uma resistência a esse processo por meio da mobilização social e da

organização política, reivindicando condições que limitariam a livre expansão do

capital, tais como jornadas reduzidas, salários dignos, ambientes de trabalho seguros e

salubres, seguridade social, dentre outras (ENGELS; MARX, 1999).

73 Não cabe aqui realizar uma minuciosa explicação do processo de produção e reprodução do capital, remetendo-se o leitor para as obras do próprio Marx (1999, 2003) que explicam detalhadamente tal processo. 74 Cabe aqui a distinção entre mais-valia absoluta e mais-valia relativa (MARX, 1999). A mais-valia absoluta é o valor de troca excedente que a mercadoria possui em relação ao conjunto dos valores encontrados no meio de produção e na força de trabalho. Já a mais-valia relativa é aquela decorrente do aumento da produtividade que se obtém do trabalho, a partir do emprego de inovações técnicas no processo produtivo. “Chamo de mais-valia absoluta a produzida pelo prolongamento do dia de trabalho, e de mais-valia relativa a decorrente da contração de tempo de trabalho necessário e da correspondente alteração na relação quantitativa entre ambas as partes componentes da jornada de trabalho.” (MARX, 1999, p. 366) 106 Com isso, o projeto emancipatório do marxismo converte-se em uma

proposta política de contraposição ao sistema capitalista e aos seus efeitos, pois seria

somente com a abolição desse modo de produção que o homem teria lugar para

desenvolver suas potencialidades (ENGELS; MARX, 1998). Nesse sentido, o

comunismo apareceria como o modo de produção que viria a se contrapor ao

capitalismo, a ser alcançado por meio de uma revolução política a ser levada a efeito

pela classe proletária (ENGELS; MARX, 1998). Somente assim ela teria condições de

alterar, pela força, a estrutura econômica na qual se assenta o sistema capitalista

(ENGELS; MARX, 1999). Em especial, a revolução buscaria abolir a detenção

privada dos meios de produção pela classe burguesa, transferindo-a para o Estado75.

Uma vez que o proletariado seria a classe que representaria todas as pessoas76, ou seja,

a classe universal, sob o governo comunista não haveria um interesse de classe a ser

defendido, pondo fim, assim, ao antagonismo de interesses existentes (ENGELS;

MARX, 1999). Sendo assim, as relações sociais de produção estariam assentadas em

um modo de produção coletivo voltado para a satisfação das necessidades pessoais,

em que sequer o Estado e o Direito seriam necessários.

Em linhas gerais, esse é o pensamento filosófico, econômico e político de

Marx. Suas propostas serviram de inspiração para diversos movimentos sociais que, ao

longo do século XX, buscaram implementar regimes políticos pela via revolucionária;

Tais movimentos revolucionários se basearam na abolição da propriedade privada dos

75 O conjunto de medidas empregadas no projeto revolucionário comunista com o objetivo de por fim à dominação de classe exercida pela burguesia encontra-se em O manifesto comunista (1999) de Engels e Marx. Interessante notar que ali se encontram as propostas práticas decorrentes da adoção de uma perspectiva marxista de arrecadação e distribuição dos recursos sociais, tais como abolição de toda a forma de propriedade privada dos meios de produção e sua transferência para o Estado, generalização dos serviços públicos de educação e transporte, fim do direito de herança e impostos progressivos em conformidade com a riqueza de cada um. 76 “Mas na Alemanha, onde está a possibilidade positiva da emancipação? Aqui está a nossa resposta: na constituição de uma classe que tenha esferas radicais, de uma classe na sociedade civil que não seja somente uma classe da sociedade civil, de uma classe que não seja a dissolução de todas as classes, de uma esfera que possua caráter universal porque os seus sofrimentos são universais e que não exige uma reparação particular porque o mal que lhe é feito não é um mal particular, mas o mal em geral, que já não possa exigir o título histórico, mas apenas o título humano;” (MARX, 2006b, p.58) 107 meios de produção, com sua transferência para o Estado. Alicerçados em uma

interpretação ortodoxa do materialismo histórico realizada por marxistas como Lênin e

Stalin, tais regimes caracterizaram-se por governos ditatoriais, com intensa

centralização política e planejamento econômico, constituindo-se o denominado

“Socialismo Real”77. O fracasso desses regimes e do modelo ortodoxo de interpretação

do pensamento de Marx realizado por meio das “doutrinas oficiais” (MORAES, 2003)

levou o marxismo a repensar os caminhos para se alcançar os objetivos da sociedade

comunista, em especial resgatando-se a noção de que o debate democrático impõe-se

como o princípio norteador e a prática socialista por excelência (SANTOS, 1994).

3.3.2 – O fim da exploração e da alienação no projeto comunista

A idéia-chave das propostas marxistas sobre a justiça liga-se à afirmação de

que todo processo de satisfação de necessidades possui um caráter social (ENGELS;

MARX, 1998). Dos núcleos mais simples aos mais complexos da produção material

de bens para a satisfação das necessidades, haverá sempre uma dimensão social. Esse

processo será mascarado em maior ou menor intensidade em virtude do nível de

desenvolvimento em que se encontra a divisão social do trabalho.

No capitalismo, a acentuada divisão social do trabalho, o estabelecimento

do sistema universal de trocas mediado pelo dinheiro e a transformação da força de

trabalho em mercadoria objetiva a ser negociada no mercado fornecem a ilusão de que

os indivíduos encontram-se “por natureza” isolados uns dos outros78, estabelecendo

77 Para a caracterização do “Socialismo real” e um breve relato de sua trajetória do século XX, veja-se o tópico 2.1, nota 3. 78 Isso dá pelo fato de que todas as três características mencionadas são dimensões da alienação (descrita na nota 71, tópico 3.3.1). Em virtude da alienação, os indivíduos estariam cegos para o fato de que os valores do individualismo e da liberdade seriam artificiais e pregados pela burguesia apenas como modo de perpetuar o sistema de produção capitalista (MARX, 2006a) 108 relações sociais por meio de “contratos” que os ligariam de modo casuístico e segundo as contingências das relações sociais e produtivas. Nesse contexto, perdeu-se de vista que o processo social de satisfação de necessidades refere-se ao conjunto dos membros envolvidos em uma sociedade, passando a ser restrita à figura individual de cada um, tomados de modo isolado nessa associação contratual da qual fariam parte. Sendo assim, o conceito de liberdade formulado pelo pensamento liberal incorreria na reprodução desse equívoco:

Conseqüentemente, a liberdade é o direito de fazer tudo o que não cause prejuízo aos outros. São determinados pela lei os limites dentro dos quais cada um pode atuar sem prejuízo aos outros, assim como o limite entre os dois campos é muito bem determinado. Trata-se da liberdade do indivíduo como mônada isolada, reservada para o interior de si mesma.(...) a liberdade como direito do homem não se baseia na relação entre homem e homem, mas na separação do homem a respeito do homem. É o direito de tal separação, o direito do indivíduo circunscrito, fechado em si mesmo. (MARX, 2006a, p. 31-32)

Desse modo, o que o sistema capitalista generaliza é que a lógica de satisfação das necessidades individuais, responsável pelo estabelecimento do mercado, não levaria em consideração o caráter social desse processo. Em resumo, dir-se-ia, com Marx, que uma necessidade que não seja igualmente satisfeita em toda a sociedade significa uma irreal satisfação dessa necessidade, pois:

A atividade e o espírito são sociais tanto no conteúdo quanto na origem; são atividade social e espírito social. O significado humano da natureza só existe para o homem social, porque só neste caso é que a natureza surge como laço com o homem, como existência de si para os outros e dos outros para si, e ainda como componente vital da realidade humana: só aqui se revela como fundamento da própria experiência humana. Só neste caso é que a existência natural do homem se tornou sua existência humana e a característica se tornou, para ele, humana. (MARX, 2006c, p. 139-140)

A finalidade do estabelecimento do regime comunista é justamente a de modificar a estrutura econômica para que um regime de abundância possa se estabelecer. Sua finalidade seria a de proporcionar a todos os indivíduos da sociedade

109 os meios materiais exigidos para a satisfação de suas necessidades. Desse modo, seus membros não estariam constrangidos pelas exigências da produção da vida material a venderem sua força de trabalho em uma troca desigual. Isso poria fim à exploração, assim como faria com que o trabalhador voltasse a se reconhecer no produto de seu trabalho, já que:

É somente nesse estágio que a manifestação da vida individual coincide com a vida material, o que corresponde à transformação dos indivíduos em indivíduos completos e ao despojamento de todo o caráter imposto originariamente pela natureza; a esse estágio correspondem a transformação do trabalho em atividade livre e a transformação dos intercâmbios condicionados existentes num intercâmbio dos indivíduos como tais. (ENGELS; MARX, 1998, p. 84)

No entanto, as experiências históricas de regimes políticos que buscaram a abolição da propriedade privada dos meios de produção como meio de se alcançar os objetivos do comunismo não obtiveram o êxito esperado. Uma das principais críticas feitas ao chamado “Socialismo Real” está ligada ao fato de que simplesmente se transferiu a titularidade do responsável pela exploração e pela alienação – se antes elas eram realizadas pelo capitalista, após a Revolução, passaram a ser realizadas pelo

Estado. Porém, a derrocada desses regimes não significou que os propósitos do comunismo tenham se esvaído juntamente com eles. Muito pelo contrário, permanecem nas lúcidas colocações de Marx de que é somente com a efetivação dos objetivos do comunismo que se alcançará, de fato, uma liberdade para todos:

É somente na comunidade [com outros que cada] indivíduo possui os meios de desenvolver suas faculdades em todos os sentidos; é somente na comunidade que a liberdade pessoal é possível. Nos sucedâneos de comunidades que até agora existiram, no Estado etc., a liberdade pessoal só existia para os indivíduos que se tinham desenvolvido na condição de classe dominante e só na medida em que eram indivíduos dessa classe. A comunidade aparente, que os indivíduos tinham até então constituído, tomou sempre uma existência em relação a eles e, ao mesmo tempo, pelo fato de representar a união de uma classe em face de outra, ela representava não somente uma comunidade completamente ilusória para a classe dominada, mas também uma nova cadeia. Na comunidade real, os indivíduos adquirem sua

110 liberdade simultaneamente com sua associação, graças a essa associação e nela. (ENGELS; MARX, 1998, p. 92-93)

3.3.3 – Características de uma teoria da justiça de cunho marxista

Como visto, a teoria marxista considera que uma sociedade justa se

constrói pela promoção da igualdade de acesso aos bens sociais. Isso implica,

portanto, que ela combata as formas de organização social que permitem a exploração

de uma classe sobre a outra, notadamente, a da classe detentora dos meios de produção

em relação à da classe que vende a sua força de trabalho. Isso significa que o

marxismo coloca-se contra as instituições sociais que dão suporte ao capitalismo, pois,

segundo a teoria do valor-trabalho79 exposta por Marx (1999, 2003), a exploração é

inerente ao capitalismo. Assim, em princípio, o marxismo seria completamente

incompatível com qualquer forma de capitalismo existente, não restando outra saída

para se implementar a sua teoria da justiça que não a abolição completa da propriedade

privada dos meios de produção.

79 Em síntese, a teoria do valor-trabalho sustenta que as mercadorias possuem “um duplo modo de existência: real, enquanto valores de uso, e ideal, enquanto valores de troca” (MARX, 2003, p. 64). O valor de uso exprime- se na necessidade que um produto adquire no processo de consumo. Às diferentes importâncias e grandezas entre os produtos, atribui-se distintos valores. Eles são comparáveis entre si somente na medida em que possuem uma utilidade para o consumo. Na medida em que a mercadoria integra uma relação econômica, é preciso que se abstraia de seu valor de uso para que se lhe atribua um valor de troca. A realização desse processo depende de um equivalente geral, uma unidade à qual todas as mercadorias possam ser reduzidas. Esta unidade é o trabalho, pois toda mercadoria somente existe enquanto tal a partir de um trabalho que opera sobre a matéria bruta. Ela é, pois, “tempo de trabalho coagulado” (MARX, 2003, p.15). O trabalho que produz a mercadoria é o trabalho humano geral “que qualquer indivíduo de uma dada sociedade pode efetuar, é um determinado dispêndio produtivo de músculos, nervos, cérebro, etc... humanos. É o trabalho simples para o qual pode se preparado qualquer indivíduo médio, e que de uma maneira ou de outra tem de cumprir.” (MARX, 2003, p. 15-16). Assim, segundo a teoria do valor-trabalho, todo o valor de uma mercadoria se realiza na quantidade de trabalho geral necessário para a sua produção (MARX, 2003). Aqui, entra em cena a extração da mais-valia, pois a remuneração do trabalho é sempre inferior à quantidade de trabalho materializada na mercadoria que entra em circulação.

111 No entanto, ao se colocar em suspenso a teoria do valor-trabalho80 para se

avaliar a existência de exploração numa relação social produtiva, e se passar a

considerar a exploração a partir da verificação da existência de uma troca desigual

entre as partes, é possível vislumbrar novos contornos para a análise da exploração no

seio dos sistemas produtivos existentes, sejam eles capitalistas ou socialistas

(ARNSPERGER; VAN PARIJS, 2003). Segundo a análise de John Roemer (1989,

1994), a teoria do valor-trabalho, como critério para análise da existência da

exploração – ou da troca desigual – em uma relação social, seria posta de lado,

passando a se atentar para o resultado das dotações finais de cada uma das partes no

conjunto daquilo que recebem. Nos termos de um marxismo “rejuvenescido” a medida

da exploração capitalista seria “understood as the specific and positive impact on the

distribution of income, of an unequal distribution of property rights in the means of

production, or, for short, as asset-based inequality.81 (VAN PARIJS, 1993, p. 99)

Tal concepção possui a vantagem de identificar a existência da exploração

para além das relações entre capitalistas e proletários, permitindo-se identificar tal

conceito inclusive no seio das sociedades socialistas. Ainda segundo tal concepção

(ARNSPERGER; VAN PARIJS, 2003), somente ao se alcançar um padrão igual de

distribuição de recursos é que se teria uma completa justiça, sendo esse o critério para

a verificação da maior ou menor presença da justiça nas medidas distributivas dos

recursos, bens e oportunidades no seio de uma sociedade. Mas a renovada teoria da

80 Segundo Van Parijs (1993), a teoria do valor-trabalho falharia no propósito de afirmar que a exploração seria algo próprio do capitalismo, pois, a aplicação coerente de seus princípios faria com que houvesse exploração também no socialismo. Pois em qualquer associação cooperativa para a produção, encontram-se também presentes os requisitos da existência de exploração, pois há a prestação de trabalho de uma pessoa para outra (do indivíduo para coletividade que detém os meios de produção), há um aproveitamento econômico desse trabalho (pela coletividade) e há de alguma forma uma relação de poder envolvida (pois é somente a coletividade que controla o acesso a tais meios). 81 “(...) entendida como o impacto positivo e específico na distribuição da renda a partir de uma desigual distribuição dos direitos de propriedade dos meios de produção, ou, resumindo, de uma desigualdade baseada nos recursos pessoais.” (tradução nossa) 112 exploração de John Roemer traz consigo algumas dificuldades de natureza operacional:

De fato, em razão da cláusula ‘por outro lado, todas as coisas iguais’, não se procura saber, de modo algum, de que nível de bem-estar uma pessoa gozaria efetivamente, no caso em que todas recebessem dotação igual, levando em conta, por exemplo, uma eventual influência negativa dessa igualização sobre a eficácia do funcionamento da economia. Por esse motivo, a situação de referência à qual se compara a situação real, para determinar se há exploração, é geralmente irrealizável; (ARNSPERGER; VAN PARIJS, 2003, p. 66)

Como visto, dentro de um quadro marxista completo de análise e interpretação da realidade, a realização da justiça não se liga necessariamente à distribuição dos recursos em uma sociedade de maneira a se atingir um grau ótimo de bem-estar. Essa é uma questão que concerne ao utilitarista. Para a teoria marxista da justiça, a igualdade nas condições de acesso a bens e oportunidades é uma exigência superior ao eventual bem-estar usufruído por cada um dos membros da sociedade

(VAN PARIJS, 1997).

Outra questão levantada por esse modo “rejuvenescido” de se abordar a exploração está ligada ao fato de que a exploração, definida como a participação final no resultado da distribuição dos bens e recursos, impediria toda e qualquer transferência voluntária entre particulares, pois significaria restabelecer a desigualdade de condições para pessoas livres e capazes. Nesse caso, para se levar a cabo a proposta de nivelamento completo dos padrões de bem-estar dos indivíduos, comprometer-se-ia seriamente a pretensão de compatibilidade entre o marxismo e a liberdade, já que em um contexto posterior ao fracasso do Socialismo Real:

Negar que nossa liberdade consiste em fazer o que desejamos tem todas as possibilidades de suscitar o temor de que a liberdade logo seja interpretada como consistindo em fazer o que a vanguarda revolucionária sabe o que é bom que façamos ou que os planejadores socialistas decidiram que devíamos fazer. (VAN PARIJS, 1997, p. 128)

113

Esse é o dilema que cerca qualquer teoria de matriz marxista. Ao propugnar por uma pretensão de estabelecer a liberdade material para todos os membros da sociedade como condição mesma da própria liberdade, ela exige que se faça uma intervenção profunda na realidade para que os bens sociais sejam distribuídos segundo o critério da perfeita igualdade. Desenvolve-se, nesse processo, uma tendência a se descurar das dimensões formal e negativa da liberdade – que estão na raiz moderna desse conceito – em função da vulnerabilidade em que vontade individual, propriedade de si e propriedade privada passam a se encontrar nesse contexto. Esse é justamente o ponto explorado pelos adversários do marxismo. Ao sustentar que a liberdade coletiva por meio da igualdade plena é uma falácia ou, ao menos, algo irrealizável, os chamados libertarianos chamam atenção para o compromisso visceral entre a justiça e a liberdade. Seria possível falar de uma sem levar a sério a outra?

3.4 O libertarianismo

Como visto, as teorias da justiça utilitarista e marxista são fruto da compreensão de que a liberdade em uma sociedade realiza-se por meio de um privilégio ao aspecto material e positivo desse conceito. Sendo assim, ambas as teorias propõem que a liberdade seja alcançada pela atuação política no sentido de garantir que os bens sociais sejam redistribuídos entre os membros dessa sociedade – o que se dá, é claro, em conformidade com os respectivos critérios de cada teoria. Dentro do marco dessas duas teorias, a justiça está relacionada à adoção dos procedimentos que

114 levam à distribuição dos bens sociais, de maneira a produzir o resultado proposto por

cada uma delas (seja promover o maior bem-estar possível ou a igualdade). O ponto de

partida da crítica libertária é o questionamento de que a liberdade não se confunde

com a riqueza ou o poder (HAYEK, 1990) e que, portanto, os meios levados a efeito

para se redistribuir riqueza contribuem para inviabilizar a liberdade e não para

preservá-la.

No final do século XIX e em toda a primeira metade do século XX, as

doutrinas que pregavam a necessidade da planificação da economia e da sociedade

pelo Estado exerceram grande influência no cenário político. Com elas, o Estado foi

elevado à categoria de ente absoluto para dirigir os rumos econômicos e sociais. Sob a

forma do Estado Social82 – designação que abrange tanto o Estado de Bem-Estar

Social das sociedades capitalistas, quanto os Estados que adotaram o regime socialista

– as prerrogativas conferidas ao ente político para definir os rumos econômicos e

comportamentais da sociedade ganharam uma proporção não antes vista na idade

moderna. A versão extrema dessa forma política foi a experiência do “Estado Total”

ou Estado totalitário, no qual as individualidades são quase que inteiramente

absorvidas pela subjetividade nascida da coletividade. Contudo, para os libertarianos,

o aniquilamento da individualidade significa a destruição da liberdade, já que o

sentido desta se esvai por completo quando o indivíduo passa a se submeter cegamente

a um poder que lhe é externo.

A filosofia libertariana surge nesse contexto de oposição ao Estado Social

que se inicia após a segunda guerra mundial e ganha vigor na década de 1970. Em sua

versão contemporânea, seu marco inicial pode ser atribuído aos estudos econômicos de

Friedrich Von Hayek, mas é somente a partir do engajamento de filósofos e

82 Estado Social é a denominação abrangente utilizada para se referir tanto ao Estado de Bem-Estar Social quanto aos Estados socialistas que se desenvolveram sob o sistema político do Socialismo Real (SANTOS, 1994, OFFE, 1994). Para a caracterização de ambos remete-se o leitor à seção 2.1, notas 2 e 3. 115 economistas norte-americanos que o libertarianismo ganha força para se constituir

como uma verdadeira proposta de teoria da justiça, em especial a partir da obra de

David Friedman, Murray Rothbard, Robert Nozick. (ARNSPERGER; VAN PARIJS,

2003) O termo libertarianismo83 é inclusive empregado por esses autores para afastar

entendimentos ambíguos que a expressão “liberalismo” poderia sugerir, em especial

pelas diferentes conotações que adquire na política norte-americana. (VAN PARIJS,

1997)

Sendo assim, a crítica libertariana dirige o foco de seu ataque contra a

figura do Estado (FARAGO, 2004). Para os libertarianos, todas as formas de exercício

de coerção e de força utilizadas pelo poder político, em especial quando destinadas a

promover intervenções nos destinos da organização econômica e social, implicariam

restrições à liberdade dos indivíduos, pois, não haveria outra liberdade que não fosse

aquela identificada com a capacidade de exercer o arbítrio pessoal nas questões ligadas

aos rumos da vida individual de cada um84 (VAN PARIJS, 1988). Logo, como a outra

83 São sugeridas três traduções do termo para o português: os neologismos libertarianismo e libertarismo e a expressão já corrente em nossa língua filosofia libertária. As duas primeiras são encontradas em diferentes traduções de trabalhos de Van Parijs, enquanto a terceira, via de regra, está presente em textos que se referem aos autores que fazem parte dessa corrente. Em O que é uma sociedade justa? Introdução à prática da filosofia política (VAN PARIJS, 1997) emprega-se o termo libertarianismo, enquanto em Ética econômica e social (ARNSPERGER; VAN PARIJS, 2003) utiliza-se a expressão libertarismo. Já o termo filosofia libertária é encontrado, por exemplo, nas traduções de Rawls (2000), Borradori (2003) e Taylor (2000). Atribui-se como causa provável dessa imprecisão o fato de que as expressões consagradas em língua estrangeira são libertarianism (inglês) e libertarism (francês), bem como a inexistência em língua portuguesa de um termo correspondente a essas duas expressões. Assim, alguns optariam por criar um neologismo derivado do termo em inglês, outros do termo em francês, enquanto a tradução de textos que não lidam profundamente com o tema optaria pela expressão filosofia libertária, pela consagração na língua portuguesa. Nesse trabalho será utilizado termo libertarianismo e os respectivos adjetivos libertariano(a) para identificar e fazer referência à mencionada corrente de pensamento pelas seguintes razões: o trabalho de maior divulgação de Philippe Van Parijs em língua portuguesa é O que é uma sociedade justa? Introdução à prática da filosofia política (VAN PARIJS, 1997), em que a tradução utiliza o termo libertarianismo; A tese central de Phillippe Van Parijs encontra-se exposta em Real-freedom-for-all: What( if anything can) justify capitalism?, trabalho redigido em língua inglesa – que, portanto, emprega o termo libertarianism – e cuja versão foi a efetivamente consultada; o termo filosofia libertária é passível de sugerir interpretação ambígua, já que relacionada à filosofia que tem seu principal foco na liberação dos costumes, a partir de uma tradição que se inicia com romance libertário do séc. XVIII e que tem seu fundamento nas teorias psicanalíticas modernas e contemporâneas. As idéias centrais desse pensamento podem ser consultadas em Libertinos e Libertários (1996), organizado por Adauto Novaes. 84 Hayek (1990) explica que a chamada liberdade econômica, expressa pelo acesso a bens tornariam o homem independente das restrições decorrentes do sistema econômico, não passaria de uma confusão terminológica entre liberdade e riqueza, ou poder. Esse assunto será tratado adiante. 116 liberdade a ser supostamente reconquistada após a atuação do Estado não passaria de uma ilusão ou uma quimera, tem-se que a ação do ente político não passa de exercício arbitrário de poder. E ainda, por se chocar com a liberdade que cada indivíduo possui de conduzir a sua própria vida, ela representa uma violação a direitos, sendo, por conseguinte, injusta (VAN PARIJS, 1988). Desse modo, a pergunta sobre o que é uma sociedade justa é respondida prontamente pelos libertarianos: “uma sociedade justa é uma sociedade livre.” (ARNSPERGER; VAN PARIJS, 2003, p. 37).

O que significa a liberdade pretendida pelos libertarianos? Que conjunto de direitos ela consagraria para se alcançar o que eles denominam de “justiça”? Ao identificar a denominada “liberdade econômica” à noção de riqueza ou poder, os libertarianos rechaçam que as dimensões positiva e material da liberdade façam parte de seu conceito. Segundo eles, somente as dimensões negativa e formal cumpririam esse papel, pois são as únicas que, segundo eles, dão a correta compreensão do que realmente significa ser livre na civilização moderna (HAYEK, 1990). Assim, os direitos das individualidades ganham destaque no quadro da teoria libertariana. É em função dos direitos de cada um que deverá ocorrer a distribuição do produto dos bens de uma sociedade. Para tanto, o direito por excelência é o direito de propriedade (VAN

PARIJS, 1988). É de acordo com o que cada um livremente faz desse direito que os indivíduos terão acesso aos diversos benefícios sociais, a serem obtidos por um generalizado sistema de trocas que as pessoas estabelecem entre si. Assim, a distribuição dos bens sociais proposta pela teoria libertariana assenta-se basicamente no sistema do mercado (ARNSPERGER; VAN PARIJS, 2003). De início, surgem algumas indagações: Qual o papel do Estado nessa forma de se conceber a justiça?

Qual o fundamento e a extensão desse absoluto direito de propriedade, do qual deriva toda a concepção de justiça? Quais os riscos e conseqüências assumidas pela

117 sociedade ao pretender que a distribuição dos bens sociais ocorra exclusivamente pelo sistema de mercado?

3.4.1 – Os argumentos em favor de uma defesa séria da liberdade ou por que o Estado deve ser reduzido a uma dimensão mínima

Os libertarianos elegeram o Estado distributivista como vilão responsável pela subtração da liberdade que se verificou ao final do século XIX e ao longo de todo o século XX. O processo de concentração de poder conferiu diversas prerrogativas ao ente político e permitiu que o Estado pudesse organizar e planejar diversos aspectos da vida das pessoas. Isto significou, para os libertarianos, a tomada de um caminho inverso àquele que, até então, havia seguido a matriz moderna de nossa sociedade – mudança de rumo esta que teria sido responsável por interromper o processo que trouxe o desenvolvimento das maiores conquistas da humanidade (HAYEK, 1990).

Não por acaso, a argumentação teórica dos libertarianos volta-se, de início, a demonstrar os efeitos negativos do fortalecimento Estado e o que isto representa para a questão da liberdade (VAN PARIJS, 1988). As objeções trazidas contra o fenômeno do fortalecimento do Estado e do desaparecimento da liberdade são sérias e merecem uma investigação que se proponha a analisar a constituição de uma teoria da justiça que também tome a questão da liberdade de modo sério.

A primeira investida libertariana contra a perspectiva distributivista assumida pelo Estado é realizada por Friederich Von Hayek. Farago (2004) mostra que esse economista austríaco analisa, dentre outras questões, em que medida a ascensão das concepções coletivistas de sociedade retiraram o mundo ocidental da

118 trajetória que o levava a um pleno desenvolvimento da liberdade do homem contra sistemas opressores de sua individualidade:

O mestre do modo de pensar desses neoliberais é o economista austríaco Hayek para quem só existe uma alternativa: ou abandona-se toda reivindicação de igualdade das condições materiais, deixando a liberdade de empreender e de troca regular os fluxos sociais, ou então consente-se a uma sistema totalitário fundar as tentativas de igualdade com as quais sacrifica as liberdades. (...) Para ele, as reivindicações igualitárias no domínio social correm o risco de colocar em perigo ‘os valores de uma civilização em liberdade’, expondo-os a serem sacrificados em benefício de um sistema cada vez mais totalitário, em todo caso, de um dirigismo exponencial. Para ele, a justiça dita ‘social’ não tem sentido senão dentro de uma economia dirigida, burocratizada ou comandada (é o caso de um exército, por exemplo) em que os indivíduos se vêem comandados, naquilo que têm de fazer, por um poder totalmente centralizado (FARAGO, 2004, p. 239)

Segundo Hayek (1990), a história da civilização ocidental moderna é a história da libertação do homem e da sociedade contra as estruturas políticas autoritárias que antes constrangiam a sua individualidade. Essa busca por maior liberdade foi amplamente favorecida pelo desenvolvimento do comércio e da presença de governos “liberais”, no período que compreende desde o Renascimento às revoluções burgueses do séc. XVIII:

A transformação gradual de um sistema hierárquico organizado em moldes rígidos num sistema em que os homens podiam pelo menos tentar dirigir a própria vida, tendo a oportunidade de conhecer e escolher diferentes formas de existência, está intimamente ligada ao desenvolvimento do comércio. (...) Durante todo esse período moderno da história européia, a tendência geral do desenvolvimento social era libertar o indivíduo das restrições que o mantinham sujeito a padrões determinados pelo costume ou pela autoridade no que dizia respeito a suas atividades ordinárias. A constatação e que os esforços empreendidos pelos indivíduos de modo espontâneo e não dirigido pela autoridade eram capazes de produzir uma complexa ordem de atividades econômicas só poderia ocorrer depois que esse processo de desenvolvimento tivesse alcançado certo ponto. A elaboração de uma tese coerente de defesa da liberdade econômica resultou do livre desenvolvimento das atividades econômicas que tinham sido um subproduto imprevisto e não planejado da liberdade política. (HAYEK, 1990, p. 41)

Mas conta Hayek (1990) que desde o final do séc XIX, tendências anti- individualistas surgiram como reação a determinados efeitos do capitalismo de mercado, tais como a concentração de empresas e as desigualdades sociais. Suas 119 pretensões de “justiça” reclamavam maior igualdade na repartição dos recursos sociais, pela intervenção de uma força política que pudesse alterar os efeitos daquilo que as regras do livre mercado já haviam distribuído entre os membros da sociedade.

O argumento era de que isso se fazia necessário em nome da preservação da

“liberdade” econômica dos indivíduos. No entanto, essa “nova” liberdade em nada se assemelha à liberdade conquistada pela civilização moderna ao longo dos séculos

XVI, XVII e XVIII:

O advento do socialismo seria um salto do reino da necessidade para o reino da liberdade. Ele traria a ‘liberdade econômica’ sem a qual a liberdade política já obtida ‘de nada serviria’. É importante perceber a sutil alteração de sentido a que se submeteu a palavra liberdade para tornar plausível este argumento. Para os grande apóstolos da liberdade política,essa palavra significava que o indivíduo estaria livre da coerção e do poder arbitrário de outros homens, livre das restrições que não lhe deixavam outra alternativa senão obedecer às ordens do superior ao qual estava vinculado. Na nova liberdade prometida, porém, o indivíduo se libertaria da necessidade, da força das circunstâncias que limitam inevitavelmente o âmbito da efetiva capacidade de escolha de todos nós, embora o de alguns muito mais do que o de outros. Para que o homem pudesse ser verdadeiramente livre, o ‘ despotismo da necessidade material’ deveria ser vencido, e atenuadas ‘as restrições decorrentes do sistema econômico’. Liberdade neste sentido não passa, é claro, de um sinônimo de poder ou riqueza (HAYEK, 1990, p. 49)

Entretanto, para que essa “liberdade econômica” tivesse lugar, seria necessário que a economia deixasse de ser fruto da iniciativa privada passasse a ser gerida por uma autoridade central que estabelecesse, de modo planificado, os rumos da produção e da distribuição dos recursos da sociedade. Nesse ponto reside, para Hayek

(1990), a interseção que leva a humanidade do caminho da liberdade para o caminho da servidão. Para ele, as economias planificadas são fruto da “organização intencional das atividades da sociedade em função de um objetivo social definido” (HAYEK,

1990, p. 74). Essa característica produz um conflito inevitável entre o que é próprio da esfera individual e aquilo que é determinado pela coletividade, pois, ao planejador,

120 seria impossível coordenar uma ação que atendesse indiscriminadamente aos interesses de todos os integrantes de uma sociedade:

A direção de todas as nossas atividades de acordo com um plano único pressupõe que para cada uma de nossas necessidades se atribua uma posição numa ordem de valores que deve ser bastante completa para tornar possível a escolha entre as diferentes alternativas que o planejador tem diante de si. Pressupõe, em suma, a existência de um código de ético completo, em que todos os diferentes valores humanos estejam colocados no seu devido lugar.(...) Além de não possuirmos uma escala que inclua todos os valores, seria impossível a qualquer intelecto abarcar a infinita gama de necessidades diferentes de diferentes indivíduos que competem entre si pela posse dos recursos disponíveis, e atribuir um peso definido a cada uma delas. (HAYEK, 1990, p. 75-76)

A ausência de concordância quanto aos denominados “objetivos sociais” – que, para Hayek (1990), converteram-se no nebuloso termo “bem-comum” – não seria solucionada por um procedimento de escolha democrática. Pois uma decisão da maioria não passaria da eleição de um fim ou valor dentre as infinitas opções existentes, a ser imposta a toda a sociedade:

A essência do problema econômico está em que a elaboração de um plano envolve a escolha entre finalidades conflitantes ou que competem entre si – diferentes necessidades de pessoas diversas. Mas só aqueles que conhecem todos os fatos saberão quais são os objetivos que realmente conflitam, e quais os que terão de ser sacrificados em benefício de outros – em suma, entre quais alternativas é preciso escolher. E apenas eles, os especialistas, estão em condições de decidir qual dos diferentes objetivos terá de ser prioritário. É inevitável, assim, que eles imponham a sua escala de preferências à comunidade para a qual planejam.” (HAYEK, 1990, p. 80)

O que Hayek (1990) mostra é que não é a deliberação coletiva que preserva a liberdade. Para que ela subsista, é necessária uma determinada postura do Estado quanto às regras relativas à produção e à distribuição dos bens na sociedade. Ela se liga ao estabelecimento dos limites e regras para a atuação dos particulares em um sistema de mercado. Para tanto, faz-se necessária a constituição de um verdadeiro

121 Estado de Direito, em que os direitos atribuídos a cada uma das individualidades não se submetam a quaisquer interesses de ordem coletiva:

A distinção que estabelecemos entre criação de uma estrutura permanente de leis - no âmbito da qual a atividade produtiva é orientada por decisões individuais – e a gestão das atividades econômicas por uma autoridade central caracteriza-se assim, claramente, como um caso particular da distinção mais geral entre o Estado de Direito e o governo arbitrário. (...) As normas do primeiro tipo podem ser estabelecidas de antemão, como normas formais que não visam às necessidades e desejos de pessoas determinadas. Destinam-se apenas a servir de meio a ser empregado pelo indivíduos na consecução de seu vários objetivos. (...) O planejamento econômico do tipo coletivista implica necessariamente o oposto do que acabamos de dizer. A autoridade planejadora não pode se limitar a criar oportunidades a serem utilizadas por pessoas conhecidas como lhes aprouver. Não pode sujeitar-se de antemão a regras gerais e formais que impeçam a arbitrariedade. Ela deve prover às necessidades reais das pessoas na medida em que forem surgindo, e depois determinar quais delas são prioritárias. É obrigada a tomar constantes decisões que não podem basear –se apenas em princípios formais e, ao tomá-las, deve estabelecer distinções de mérito entre as necessidades de diferentes pessoas. (...) Dependem inevitavelmente das circunstâncias ocasionais, e ao tomar tais decisões será sempre necessário pesar os interesses de várias pessoas e grupos. No final, a opinião de alguém determinará quais os interesses preponderantes; e essa opinião passará a integrar a legislação do país, impondo ao povo uma nova categoria social. (HAYEK, 1990, p. 86-87)

Assim, o processo de concentração do poder político nas mãos do Estado, que lhe conferiu a prerrogativa de estabelecer normas substanciais no que tange à esfera da produção e da distribuição dos recursos econômicos, representa a subversão da imparcialidade do Estado de Direito (HAYEK, 1990), porque o planejamento econômico implica a criação de estruturas que possuem a prerrogativa de distribuir intencionalmente os recursos de uma sociedade de acordo com os interesses de uma classe que se privilegiará com esse esquema econômico:

Mas sempre que são conhecidos os efeitos precisos da política governamental sobre determinados indivíduos, sempre que o governo visa diretamente a determinados resultados, ele não pode deixar de conhecê-los e portanto não pode ser imparcial. Deve, assim, favorecer a uma das partes, impor suas preferências ao indivíduo e, ao invés de auxiliá-lo na consecução de suas próprias finalidade, escolher essas finalidade em seu lugar. Quando os resultados particulares são previstos na ocasião em que se faz uma lei, esta perde o caráter de simples instrumento a ser empregado pelo povo e converte-se num instrumento usado pelo legislador para controlar o povo. (HAYEK, 1990, p. 89)

122 Para Hayek (1990), a presença desse elemento intencional que elege interesses específicos de indivíduos ou classes a serem privilegiados pela atuação do

Estado significa o desmantelamento do Estado de Direito. Pois, uma vez que a igualdade formal de todos ante as mesmas oportunidades é solapada, introduz-se a arbitrariedade e o privilégio nas relações sociais a partir do status político dos indivíduos. Assim, quanto mais o Estado deixa de utilizar normas formais que estabelecem regras imparciais de estabelecimento de iguais oportunidades no campo econômico e passa a atuar com normas substanciais que beneficiam certas classes ou categoriais, tanto mais se colocará em risco o Estado de Direito, ainda que por uma via democraticamente institucionalizada. Pois, segundo Hayek (1990), é intima a relação entre a preservação das condições impessoais do sistema de mercado e a preservação da liberdade, já que:

Quem controla toda a atividade econômica também controla os meios que contribuirão para a realização de todos os nossos fins. Pois quem detém o controle exclusivo dos meios também determinará a que fins nos dedicaremos, a que valores atribuiremos maior ou menor importância – em suma, determinará aquilo em que os homens deverão crer e por cuja obtenção deverão esforçar-se. Planejamento central significa que o problema econômico será resolvido pela autoridade central e não pelo indivíduo; isso, porém, implica que caberá à comunidade, ou melhor, aos seus representantes, decidir sobre a importância relativa às diferentes necessidades. (HAYEK, 1990, p. 100-101)

Assim, Farago (2004) explica quais as funções o Estado e o Direito assumem na teoria de Hayek:

O Estado deve contentar-se em proteger as liberdades individuais. No Estado liberal, os únicos direitos são as liberdades individuais. Da mesma forma, as recriminações a propósito dos resultados do mercado, em termos de injustiças, não passam de alucinações ou de fantasias. À pergunta ‘quem, então, foi injusto?’ não há resposta. A ordem do mercado não tem sujeito. E querer manter, a qualquer preço, a exigência de justiça social na ordem espontânea do mercado no qual a organização das sociedades modernas renovam-se, é divinizar a sociedade, é entregar-se a um antropomorfismo social que não pode impedir-se de transformá-la em uma instância misteriosa à qual se poderia encaminhar queixas e reclamações. (FARAGO, 2004, p. 241)

123

Robert Nozick (1991) tem argumento semelhante ao tratar das teorias da

justiça que apresentam alguma proposta que insinue a distribuição de bens sociais pela

intervenção estatal. Em sua defesa em favor de “um Estado mínimo, limitado às

funções estritas de proteção contra a força, o roubo, a fraude, de fiscalização do

cumprimento de contratos e assim por diante” (NOZICK, 1991, p.9), defende que as

propostas de justiça distributiva, que envolvem a intervenção estatal na repartição dos

bens sociais, somente se sustentam caso violem diretamente a liberdade de cada um

dos indivíduos em dispor de seus bens de acordo com a própria vontade individual.

Segundo Nozick (1991), os princípios de justiça que estabelecem a

distribuição de bens a partir de uma diretriz coletiva e não-histórica85 podem ser de

duas espécies: de resultado final (end-state) ou padronizados (pattern). Princípios de

resultado final estabelecem que uma redistribuição deva alcançar determinados

objetivos previamente estabelecidos, segundo os quais determinados patamares serão

conferidos a cada um dos indivíduos que compõem o grupo. Por exemplo, um

princípio que determina a igualdade absoluta entre todos os membros após a

distribuição dos recursos é um princípio de estado final. Também um princípio que

exige certos níveis de bem-estar a grupos representativos da população (menos

favorecidos, 10% mais pobres, classe trabalhadora, os desempregados, etc...) é um

princípio de estado final. Ambos estabelecem um certo patamar a ser alcançado pela

redistribuição dos bens sociais, de modo que cada um dos grupos termine com uma

85 Teorias históricas da justiça são aquelas que sustentam que a justiça de uma distribuição depende do modo como ocorreu. Na terminologia de Nozick, elas contrastam com teorias da justiça que utilizam princípios na repartição corrente. Estas aduzem que a “justiça de uma distribuição é determinada pela maneira como as coisas são distribuídas (quem tem o quê), da forma julgada por algum princípio(s) estrutural(is) de distribuição justa.” (NOZICK, 1991, p. 174). Segundo Nozick, o utilitarismo, o marxismo e a teoria da justiça de Rawls seriam qualificadas como teorias da justiça de repartição corrente, em função do recurso a princípios que conferem o critério de justiça às distribuições dos bens em uma sociedade. A caracterização do libertarianismo como uma teoria histórica da justiça será feita mais adiante. 124 quantidade específica do produto social (seja ela uma quantia precisa ou um critério

aberto tal como a maior quantidade possível) (VAN PARIJS, 1997).

Já os princípios padronizados são aqueles que determinam a distribuição

dos recursos no seio de uma sociedade obedecendo a um sistema que ordena os

indivíduos em uma escala de prioridades, em função de algum critério de

merecimento. Essa lista é estabelecida a partir de propriedades intrínsecas ou de ações

desempenhadas por cada um. Via de regra, os princípios de justiça de tipo padronizado

contêm a estrutura “a cada um segundo X” onde X é o critério que permite estabelecer

a lista de prioridades. Esse critério pode ser: o mérito moral, a necessidade, o esforço e

o trabalho de cada um ou, ainda, uma combinação entre eles (VAN PARIJS, 1997).

Nozick (1991) aponta que as tentativas de se estruturar uma teoria da

justiça a partir dessas duas espécies de princípios estão fadadas ao fracasso. Pois,

como a justiça exigiria a permanência dos níveis em que as pessoas foram deixadas

seja pela distribuição de estado final seja pelo padrão estabelecido, a liberdade de as

pessoas realizarem transferências voluntárias daquilo que receberam ficaria

comprometida já que teria o condão de perturbar a distribuição justa. A primeira

objeção levantada por Nozick é apresentada sob a forma da parábola do jogador de

basquete Wilt Chamberlain86. Esse exercício de imaginação aponta para a questão de

86 “Não é claro como aqueles que defendem teses alternativas de justiça distributiva podem rejeitar a concepção de justiça que confere direitos à propriedade. Suponhamos que a distribuição preferida por uma dessas concepções é realizada. Vamos presumir ainda que é a que você mais gosta e chamemo-la de D1. Talvez todos tenham parcela igual, talvez as parcelas variem de acordo com alguma dimensão a que você atribui grande valor. Suponhamos agora que Wilt Chamberlain, sendo uma grande atração de bilheteria, é objeto de demanda dos times de basquetebol (Vamos supor ainda que os contratos têm duração de apenas um ano e que, depois disso, os jogadores têm passe livre). Ele assina com um dos times o seguinte tipo de contrato: por cada jogo ganho, 25 centavos do preço de cada ingresso lhe caberá (...) Começa o campeonato e as pessoas alegremente comparecem aos jogos de seu time. Compram os ingressos, em todas as ocasiões colocando 25 centavos separados do preço de aquisição do bilhete em uma caixa especial com o nome de Chamberlain. Ficam emocionadas ao vê-lo jogar e acham que o preço que pagam é justo. Vamos supor que, em uma temporada, um milhão de pessoas comparecem aos jogos em que ele toma parte. Wilt Chamberlain termina o campeonato com US$ 250,000, uma soma muito maior do que a renda média e maior mesmo do que qualquer pessoa aufere” (NOZICK, 1991, p.181-182). Em síntese o argumento mostra que, qualquer que seja o princípio de distribuição adotado por uma sociedade, seja ele padronizado ou de estado-final, a manutenção das condições determinadas nesse processo somente consegue se manter no tempo ao custo da impossibilidade de livre exercício da vontade 125 como transferências voluntárias colocam-se como empecilhos à regulamentação

oriunda de princípios distributivos, uma vez que elas perturbam aquilo que é

estabelecido pelos critérios contidos nesses princípios:

O argumento geral ilustrado pelo exemplo Wilt Chamberlain (...) é que nenhum princípio de estado final ou distributivo padronizado de justiça pode ser continuamente implementado sem interferência contínua na vida das pessoas. Qualquer padrão preferido seria transformado pelo princípio em outro não favorecido, ou por pessoas que resolvessem agir de maneiras diferentes, como por exemplo pessoas trocando bens e serviços com outras pessoas ou dando a estas pessoas coisas a que elas tinham direito de acordo com o padrão distributivo preferido. A fim de manter o padrão, teríamos que ou interferir continuamente para impedir que pessoas transferissem recursos como quisessem ou continuamente (periodicamente) interferir para tomar de algumas delas recursos que outras decidiram por alguma razão transferir para elas. (NOZICK, 1991, p. 183)

Com seu argumento, Nozick (1991) aponta como é que princípios

distributivos de justiça ofendem os direitos das pessoas de dispor livremente de sua

propriedade adquirida de modo legítimo. Seja no que toca àquilo que desejam alienar,

seja no que toca ao que desejam conservar e não transferir a ninguém. Obrigar as

pessoas a agirem contra sua vontade no que tange ao que irão fazer com suas

propriedades viola seus direitos87. Seria o que ocorre com o sistema tributário. Ao ser

constituído como modo de financiamento do Estado para por em prática sua proposta

redistributiva, a tributação passaria a intervir diretamente na vida das pessoas,

obrigando-as a produzir trabalho excedente para promover o alcance dessa meta

das pessoas. Pois os talentos e habilidades excepcionais que se oferecem no mercado em troca de uma contraprestação não poderiam ter lugar nessa sociedade, já que estabeleceriam indivíduos com remunerações diferenciadas do padrão, ainda que voluntariamente transferidas. Isso somente se sustentaria a partir de uma constrição dos gostos e desejos, bem como da proibição do exercício remunerado dos talentos individuais. (ARNSPERGER;VAN PARIJS, 2003) 87 Tome-se, por exemplo, o argumento Wilt Chamberlain: o seu acréscimo patrimonial decorre de uma livre transferência de recursos das pessoas que o assistem jogar. Por um lado, impedir que ele venha a cobrar ingressos para suas exibições seria forçá-lo a trabalhar (jogar) gratuitamente. Seria também impedir que ele explore economicamente um talento que possui, seja por um dom natural, seja porque o adquiriu por meio de um dedicado treinamento. Essas proibições significam que Wilt Chamberlain não teria direito a usar e dispor de seu corpo e seus talentos. Por sua vez, também os fãs de Wilt Chamberlain seriam impedidos de apreciar suas exibições. Assim o seu direito de satisfazer os seus gostos e desejos como melhor entendem seria tolhido. (ARNSPERGER; VAN PARIJS, 2003) 126 (NOZICK, 1991). Tamanha seria a coerção e o poder desse sistema que ele inclusive se constituiria em um direito da coletividade sobre o indivíduo:

Quando princípios de justiça distributiva de resultado final são incorporados à estrutura judiciária de uma sociedade, eles (como acontece com a maioria desses princípios) dão a todos os cidadãos um direito impositivo a alguma parte do produto social total, isto é, a alguma parte da soma total dos produtos individual e conjuntamente gerados. Esse produto social é gerado por indivíduos que trabalham, utilizando meios de produção que outros pouparam para que existissem, e por pessoas que organizam a produção e criam meios para produzir novas coisas ou coisas antigas de nova maneira. Sobre esse conjunto de atividades individuais, os princípios distributivos padronizados conferem a cada indivíduo um direito impositivo. Todos eles têm um direito às atividades e produtos dos demais, independentemente de se estes participam de relacionamentos particulares que dão origem a esses direitos e sem levar em conta se eles assumem esses direitos por caridade ou em troca de alguma coisa. Seja isso feito através de tributação de salários, ou dos salários acima de certo volume, ou de confisco de lucros ou ainda se há uma grande panela social, de modo que não é claro o que vem de onde e para onde vai, os princípios padronizados implicam a apropriação de atos de outras pessoas. Tomar os resultados do trabalho de alguém equivale a tomar-lhe horas e dirigi-lo para que execute várias atividades. Se pessoas o obrigam a realizar certo trabalho, ou trabalho não remunerado, durante certo período de tempo, elas decidem o que você tem que fazer e a que finalidades seu trabalho deve atender, à parte suas próprias decisões. Esse processo, pelo qual lhe tomam essa decisão, transformam-nos em co-proprietários de sua pessoa, dão-lhes um direito de propriedade sobre você, da mesma maneira que ter esse controle e poder de decisão parcial, por direito, sobre um animal ou objeto inanimado implicaria ter um direito de propriedade sobre eles. (NOZICK, 1991, p. 191-192)

Desse modo, segundo os libertarianos, onde quer que se proponha intervir na realidade econômica e social para realizar uma proposta distributiva, o Estado violaria direitos e, portanto, não se justificaria moralmente (VAN PARIJS, 1997).

Qual seria, então, o papel do Estado na teoria da justiça libertariana? Que tipo de liberdade ela consagra?

3.4.2 – Liberdade, direitos individuais e propriedade

O libertarianismo muitas vezes se confunde com outra corrente de pensamento que obteve grande influência nos anos 1960, 1970 e 1980 denominada neoliberalismo em função do alvo comum de ambas: a crítica ao Estado Social e a 127 proposta da retirada completa da atuação política no cenário econômico, deixando que

as distribuições de bens sociais fiquem a cargo exclusivamente do sistema de mercado

(VAN PARIJS, 1997). Em verdade, alguns dos pensadores libertarianos são também

adeptos do neoliberalismo econômico88. O neoliberalismo aduz que o capitalismo

baseado em premissas liberais ortodoxas é superior a qualquer forma de Estado Social,

porque é capaz de proporcionar maior eficiência e maior bem-estar ao conjunto da

população do que as economias intervencionistas. É o que se infere das afirmações de

Hayek (1990) sobre a relação entre os progressos da civilização moderna e o processo

de crescente aquisição da liberdade individual:

O resultado mais importante da liberação das energias individuais foi talvez o maravilhoso desenvolvimento da ciência que acompanhou o avanço da liberdade individual da Itália à Inglaterra e mais além. (...) Só depois que a liberdade industrial permitiu a livre utilização dos novos conhecimentos, depois que se tornou possível qualquer experimentação – desde que alguém se dispusesse a financiá-la, e, cumpre acrescentar, isto ocorria, na maioria das vezes, fora do âmbito das autoridades oficialmente encarregadas do cultivo do saber – só então é que a ciência deu os grandes passos que nos últimos cento e cinqüenta anos mudaram a face do mundo. (HAYEK, 1990, p. 41-42)

Segundo Hayek (1990), o desenvolvimento tecnológico e científico,

proporcionado pela expansão industrial e comercial trazida pelo liberalismo,

ocasionou a vertiginosa melhoria das condições de vida do homem moderno. Hayek

(1990) mostra também que o progresso social decorre da preservação dessa estrutura

liberal. Ele defende a superioridade do capitalismo de mercado em face de qualquer

outra doutrina de caráter intervencionista que se justifique sobre a proposta de trazer

justiça social (ARNSPERGER; VAN PARIJS, 2003). No entanto, em seu argumento

há também a semente da fundamentação libertariana. Quando Hayek (1990) privilegia

88 O neoliberalismo é um conjunto de postulados e argumentos voltados para proposições econômicas e que sustentam a prioridade do mercado como mecanismo de regulação e funcionamento da economia. Já o libertarianismo se distingue do neoliberalismo porque o objeto de suas reflexões são as premissas éticas fundamentais da convivência humana. Assim, o libertarianos não podem ser chamados de neoliberais, muito embora muitas de suas conclusões se prestem a fundamentar a prioridade da economia de mercado defendida pelos economistas neoliberais. 128 perspectiva individualista e aduz que nenhuma entidade coletiva poderá impor sua escala de valores a cada um, o que está em jogo não é mais a superioridade de um modelo econômico, mas o fato de se levar a sério a liberdade individual:

Este é o fato fundamental em que se baseia toda a filosofia do individualismo. Ela não parte do pressuposto de que o homem seja egoísta ou deva sê-lo, como muitas vezes se afirma. Parte apenas do fato incontestável de que os limites dos nossos poderes de imaginação nos impedem de incluir em nossa escala de valores mais que uma parcela das necessidades da sociedade inteira: e como, em sentido estrito, tal escala só pode existir na mente de cada um, segue-se que só existem escalas parciais de valores, as quais são inevitavelmente distintas entre si e mesmo conflitantes. Daí, concluem os individualistas que se deve permitir ao indivíduo, dentro de certos limites, seguir seus próprios valores e preferências em vez dos de outrem; e que, nesse contexto, o sistema de objetivos do indivíduo deve ser soberano, não estando sujeito a ditames alheios. É esse reconhecimento do indivíduo como juiz supremo dos próprios objetivos, é a convicção de que suas idéias deveriam governar-lhe tanto quanto possível a conduta, que constitui a essência da visão individualista. (HAYEK, 1990, p. 76)

Nesse ponto reside a diferença que Van Parijs (1997) aponta entre neoliberalismo instrumental (ou simplesmente neoliberalismo) e neoliberalismo fundamental (ou libertarianismo). Enquanto o primeiro argumenta contra o Estado

Social e em favor do capitalismo liberal extremado, aduzindo que “o capitalismo do

Estado-providência não constitui em hipótese alguma o compromisso ótimo entre a eficácia econômica e a justiça social” (VAN PARIJS, 1997, p. 188), o libertarianismo irá além. Essa corrente sustenta que a estrutura intervencionista do Estado Social atenta contra a liberdade dos indivíduos e, portanto, somente um sistema econômico como o capitalismo seria justificável:

O que distingue o neoliberalismo fundamental do neoliberalismo instrumental não são os alvos que o primeiro visa – o regime fiscal, as políticas keynesianas, a rigidez resultante de regulamentações, etc. –, mas o fundamento último que desenvolve: se essas tradições da economia mista são passíveis de crítica, não é porque são contraprodutivos do ponto de vista de seus objetivos confessos de eficiência e eqüidade, mas porque significam um atentado à liberdade. (VAN PARIJS, 1997, p. 189-190)

129 Arnsperger e Van Parijs (2003) afirmam que as teorias libertarianas se sustentam sobre três princípios: o princípio da propriedade de si; o princípio de justa circulação e o princípio da apropriação original. O respeito a esses princípios, na elaboração de uma teoria da justiça, dá origem à formulação de uma teoria da justiça histórica e de caráter puramente procedimental, como se mostrará adiante.

O princípio da propriedade de si sustenta que cada indivíduo é o exclusivo proprietário de seu corpo e de seus bens, sendo o exclusivo responsável por determinar quais ações realizará com eles (ARNSPERGER; VAN PARIJS, 2003). O corpo e os bens passam a se constituir em uma esfera inviolável que nenhum organismo coletivo pode constranger ou ofender de modo legítimo. Somente ao indivíduo cabem as decisões sobre o que fazer com seu corpo e sua propriedade privada. E como cada um dos indivíduos é o exclusivo centro de produção dessa decisão, o consentimento e a adesão voluntária a determinadas condutas ganham especial destaque na teoria da justiça libertariana:

Um primeiro elemento central de toda a variante do libertarianismo consiste, por conseguinte, em atribuir a cada um pleno direito de propriedade sobre si mesmo. Sendo o pleno proprietário de seu corpo (e, apesar de distinta dele, de sua alma), você tem ‘direito de veto’ sobre todo uso que poderia dele ser feito. Por isso mesmo, você também tem o direito de alugar talentos, vender seus órgãos, estragar a saúde e pôr fim a sua existência. Para um libertário, portanto,não se cogita de aceitar a obrigação legal de fazer serviço militar, freqüentar escola, apertar o cinto de segurança, fazer parte de um júri, e prestar socorro a uma pessoa em perigo. Também não se cogita de proibir a eutanásia, a prostituição, a blasfêmia, o negativismo, as perversões sexuais e o comércio de órgãos, sob a condição – é claro – de que nenhuma coerção seja exercida para obter a participação de alguém. (ARNSPERGER; VAN PARIJS, 2003, p. 39)

Sendo assim, a teoria da justiça libertariana estrutura-se em um sistema de direitos de propriedade que permite o convívio entre os diversos direitos que cada um dos membros dessa sociedade possui (ARNSPERGER; VAN PARIJS, 2003). É dessa

130 maneira que a transgressão aos direitos de liberdade de um indivíduo se justifica em nome da proteção ao direito de liberdade dos demais:

A esse direito de propriedade de cada um sobre si mesmo, só há três restrições, às quais a maioria dos libertários está pronta a aderir, mesmo, às vezes, de maneira não muito convincente. Em primeiro lugar, se cada um tem o direito de se destruir, nem por isso tem o direito de se vender como escravo. O ideal de uma sociedade livre é incompatível com a presença de homens e mulheres dominados por outros de maneira irreversível, ainda que por efeito da própria liberdade. Depois, se os libertários professam uma aversão inflexível a toda a forma de paternalismo para com os adultos, não podem deixar de admitir que o paternalismo nem sempre é inconveniente quando se trata de crianças. (...)Enfim, a partir do momento em que eles pensam na eventualidade de infrações a seu princípio fundamental, os libertários podem admitir a legitimidade que há em transgredir a propriedade de si daqueles que ameaçam a dos outros: uma sociedade livre não pode ser uma sociedade em que assassinos, violadores e pedófilos circulam e maltratam com toda a impunidade. (ARNSPERGER; VAN PARIJS, 2003, p. 39-40)

Já o princípio da justa circulação regulamenta o modo da aquisição legítima de qualquer bem que se constitua como propriedade exterior do indivíduo (à exceção,

é óbvio, de seu próprio corpo cuja propriedade decorre do próprio nascimento). Para que alguém seja legitimamente proprietário de algo, é necessário que lhe seja transferido o bem por um intercâmbio voluntário entre pessoas razoavelmente informadas, sem a ocorrência de qualquer vício na manifestação da vontade responsável pelo ato (ARNSPERGER; VAN PARIJS, 2003). O libertarianismo dá grande relevância à autonomia da vontade e à liberdade de manifestação do indivíduo ao dispor de seus bens e propriedades:

O primeiro desses princípios rege a circulação dos direitos de propriedade. Ele estipula que é possível tornar-se o legítimo proprietário de um bem seja adquirindo- o por meio de uma transação voluntária com a pessoa que era antes sua legítima proprietária, seja criando-o sem utilizar outra coisa além de si mesmo, a não ser bens adquiridos dessa maneira. O que nos foi dado de presente ou como herança, o que compramos ou alugamos, o que produzimos aplicando nossos talentos, o que nos rende a venda de nossos produtos, tudo isso é suscetível de conferir uma significação prática a uma propriedade de si mesmo, que, caso contrário, não daria a liberdade de fazer o que quer que seja. (grifos do autor) (ARNSPERGER; VAN PARIJS, 2003, p. 40-41)

131 Por fim, para aqueles bens que não são propriedade anterior de ninguém e passarão a integrar o conjunto de bens de um indivíduo, o libertarianismo sustenta um princípio da apropriação original (ARNSPERGER; VAN PARIJS, 2003). Entretanto, os libertarianos divergem entre si quanto ao conteúdo do princípio (VAN PARIJS,

1988, 1997). Os mais radicais são a favor do princípio “o primeiro a chegar é o primeiro a se servir”, ou seja, aquele que se apropriou de um bem em primeiro lugar, tem o direito de explorá-lo economicamente a seu bel prazer, por força de sua iniciativa empreendedora: o trabalho é, em si, o único fundamento da propriedade. Ele não sofreria qualquer limitação nesse direito, mesmo na hipótese de recursos raros, escassos ou indispensáveis à comunidade, como o alimento em uma pequena ilha, a

água no deserto ou o petróleo nas sociedades industriais modernas (VAN PARIJS,

1988, 1997). Outros libertarianos propõem que esse princípio seja atenuado e introduzem uma cláusula compensatória. Seu ponto de partida encontra-se em John

Locke, a partir da colocação de que os frutos da terra foram dados à comunidade como um todo e em quantidade suficiente para que todos se satisfaçam (VAN PARIJS,

1988, 1997). A teoria de Robert Nozick (1991), por exemplo, propõe que aquele que se apropria de algo deve compensar os demais pela situação em que foram deixados como não-proprietários, introduzindo-se a denominada “cláusula lockeana”:

Um processo que normalmente dá origem a um direito de propriedade permanece permanente, transmissível por herança, em uma coisa não possuída previamente, não o fará se por ele é piorada a situação de outros que não tem mais a liberdade de usar tal coisa.(...) Alguém cuja apropriação de outra maneira violaria a condição poderá ainda apropriar-se, contanto que compense os demais, de modo que suas situações não se torne por esse ato piores. A menos que compense essas pessoas, a apropriação que pratica violará a condição do princípio de justiça na aquisição e será ilegítima. Uma teoria de apropriação que incorpore essa condição lockeana tratará dos casos (objeções à teoria que careçam de tal condição) em que alguém se apropria do suprimento total de alguma coisa necessária à vida (NOZICK, 1991, p. 197-198)

132 Segundo Nozick (1991), com a presença dos três princípios, tem-se a

existência de uma teoria proprietarista (entitlement) da justiça. Ela levaria a sério os

direitos de propriedade, em oposição às teorias distributivas. A teoria proprietarista

sustenta que são justas somente as propriedades adquiridas ou originalmente de modo

legítimo ou por uma livre transação. As demais espécies de aquisição de propriedade

seriam ilegítimas, já que não respeitariam os direitos de propriedade dos demais

membros da sociedade (tal como se dá na hipótese da distribuição da propriedade

realizada pela taxação). Assim, é a partir da correção nas diversas transmissões entre

propriedades que se verifica a existência de uma propriedade legítima e, portanto,

justa:

Uma distribuição é justa se, por meios legítimos, surge de outra distribuição justa. Os meios legítimos de passar de uma distribuição para outra são especificados pelo princípio de justiça nas transferências. As primeiras ‘transferências’ legítimas são especificadas pelo princípio de justiça na aquisição. O que quer que surja de uma situação justa, através de etapas justas, é em si justo. Os meios de troca especificados pelo princípio de justiça nas transferências preservam a justiça. (...) que de uma situação justa poderia ter surgido, através de meios que preservam a justiça não é suficiente para lhe demonstrar a justiça. O fato de que as vítimas de um ladrão poderiam voluntariamente ter-lhe dado presentes não lhe dá o direitos aos seus ganhos mal obtidos. A justiça na propriedade é histórica, depende do que realmente aconteceu. (NOZICK, 1991, p. 172-173)

Salientam-se, assim, os aspectos89 procedimental e histórico da teoria de

Nozick. O procedimentalismo defendido é de tipo puro, isto é, não se atém a nenhuma

consideração quanto às conseqüências possivelmente alcançáveis para fins de

estruturação do processo (ARNSPERGER; VAN PARIJS, 2003).

Os três princípios de justiça (na aquisição, transferência e retificação), que dão base a esse processo que os tem como objeto de estudo, são em si princípios processuais e não princípios de resultado final de justiça distributiva. Especificam

89 O procedimentalismo e o caráter histórico da teoria proprietarista de Nozick decorrem do fato de que ela “estipula pontos de partida e processos de transformação” (NOZICK, 1991, p.224), aceitando os resultados encontrados independentemente do seu conteúdo, ou seja, tudo o que a teoria “produz deve ser aceito por causa de sua genealogia, de sua história”. (NOZICK, 1991, p.224). 133 um processo em andamento, sem estabelecer qual deve ser seu resultado, sem prover um critério padronizado externo que tem que satisfazer. (NOZICK, 1991, p. 224)

A teoria proprietarista baseia-se também em um critério histórico. Ela atenta para a questão de como as propriedades foram efetivamente distribuídas entre os indivíduos. Isso se verifica por meio das apropriações e transações voluntárias, excluindo-se da distribuição todo e qualquer padrão ou elemento ideal acerca do modo como a distribuição deva ocorrer:

Para determinar se uma situação é justa ou injusta, é necessário e suficiente voltar- se para o passado, investigar o seu pedigree, examinar se ela é o produto de um procedimento correto e de um desenvolvimento histórico justo, isto é, de um conjunto de ações e transações realizadas no pleno respeito dos direitos afirmados pelos três princípios (ARNSPERGER; VAN PARIJS, 2003, p. 47)

Ao eliminarem da perspectiva as metas ou os padrões meritórios ideais

(situações padronizadas ou de estado final), as teorias históricas acentuam que são justamente as ações empreendidas pelos indivíduos (incluindo-se especialmente seus atos de apropriação e manifestação de vontade) é que criam as condições para os respectivos merecimentos aos bens que cada um possui.

3.4.3 – Como o libertarianismo lida com a desigualdade?

A teoria libertariana sustenta-se sobre o atrativo da promessa de uma liberdade individual realmente levada a sério, que garanta a todos o viver em uma sociedade em que a coletividade não intervirá nos destinos particulares de cada um, respeitando os direitos de propriedade e o modo como cada um deseja conduzir sua própria vida (VAN PARIJS, 1997).

134 O que a teoria libertariana, via de regra, não diz abertamente é que as

condições para se conduzir a própria vida deverão ser conquistadas por cada um dos

indivíduos em um sistema de mercado e que cada um deles utiliza a liberdade pessoal

para estabelecer condições para as trocas que beneficiem prioritariamente a sua

felicidade em prejuízo da felicidade dos demais (VAN PARIJS, 1997). A ambigüidade

do mercado se revela aqui com toda força: se, por um lado, esse sistema evita os

privilégios, por outro a ausência de qualquer controle intencional sobre seus processos

faz com que não haja, dentro do marco libertariano, qualquer controle sobre os seus

efeitos. E se o emprego da liberdade pessoal de uns ao estabelecer preços, salários,

condições de vida e de trabalho tiver por conseqüência o detrimento da situação de

muitos outros? Os libertarianos nada dizem respeito disso90 (VAN PARIJS, 1997).

Questões relativas à desigualdade entre os indivíduos na repartição dos

produtos sociais não são relevantes dentro do quadro da teoria libertariana

(ARNSPERGER; VAN PARIJS, 2003). Muito pelo contrário, a diversidade entre as

pessoas, decorrente da distribuição fortuita dos bens e dotes naturais e responsável

pelos resultados da divisão desigual de bens entre as pessoas é aceita como natural

pelo libertarianos. Nenhuma correção aos frutos dessa divisão desigual de dotes se

justifica, pois representaria uma agressão à liberdade de cada um.

Desse modo, o preço da liberdade proposta pelos libertarianos é o convívio

com os efeitos do sistema de mercado irrestrito, sejam eles a miséria, a exploração, as

90 A mencionada questão é expressa na parábola da ilha “Sem que nenhum dos outros princípios libertaristas tenha sido objeto de qualquer violação, uma ilha tornou-se propriedade exclusiva de um único de seus habitantes. Cada um dos outros habitantes é pleno proprietário de si mesmo (...) No entanto, é perfeitamente possível que nenhum deles tenha outra opção a não ser a de sofrer dezesseis horas por dia para o proprietário da ilha, em troca da magra pitança que ele se digna a lhes conceder. Se, além disso, o proprietário resolver não permitir que os trabalhadores trabalhem em suas terras a não ser que usem chapéu vermelho, assobiem A Marselhesa e se abstenham de pronunciar a palavra ‘liberdade’, a perfeita conformidade aos princípios libertaristas não fica de modo algum alterada. É claro que nada o autoriza a forçar os agricultores a trabalhar e nem, aliás, a retê-los na ilha. Porém, se eles não têm meios de encontrar na ilha outra fonte de subsistência, nem de construir um barco que lhes possibilite a fuga, não é problema seu, nem dos libertários: nem por isso, a seu ver, a ilha deixa de permanecer um paradigma de sociedade livre!” (ARNSPERGER; VAN PARIJS, 2003, p. 51) 135 drásticas desigualdades ou a degradação moral. Em sua defesa, os libertarianos ora argumentam no sentido de que o sistema de mercado trará os maiores benefícios coletivos a longo prazo (neoliberalismo instrumental), ora argumentam que o valor da liberdade é superior a tais considerações (neoliberalismo fundamental). Em Hayek

(1990) encontra-se o argumento para a defesa do primeiro tipo:

No sistema de mercado, a segurança só pode ser concedida a determinados grupos mediante o gênero de planejamento conhecido como ‘restricionismo’ (no qual, entretanto, está incluído quase todo o planejamento posto em prática nos nossos dias). O ‘controle’, isto é, a limitação da produção de modo que os preços assegurem um ganho ‘adequado’, é o único meio pelo qual se pode garantir um certo rendimento aos produtores numa economia de mercado. Isso, porém, envolve necessariamente uma redução de oportunidades para os demais. Para que o produtor, seja ele dono de empresa ou operário, receba proteção contra a concorrência de preços mis baixos, outros, em pior situação, serão impedidos de participar da prosperidade relativamente maior das indústrias controladas. Qualquer restrição à liberdade de ingresso numa profissão reduz a segurança de todos que se acham fora dela. E, à medida que aumenta o número daqueles cujo rendimento é assegurado dessa forma, restringe-se o campo das oportunidades alternativas abertas aos que sofrem uma perda de rendimento – enquanto, para os que são atingidos por qualquer mudança, diminui do mesmo modo a possibilidade de evitar uma redução fatal de sua renda. E se, como vem acontecendo com freqüência, em cada categoria em que ocorre uma melhora das condições permite- se que seus membros excluam os demais para garantir a si mesmos o ganho integral sob a forma salários ou lucros mais elevados, os que exercem profissões cuja demanda diminuiu não têm para onde voltar, e a cada mudança produz-se grande número de desempregados. Não há dúvida de que foi em grande parte devido a busca de segurança por esses meios nas últimas décadas que aumentou a tal ponto o desemprego e, por conseguinte, a insegurança para vastos setores da população (HAYEK, 1990, p. 129-130)

Já a defesa relativa à neutralidade do Estado em relação às questões ligadas

à igualdade material entre os indivíduos encontra-se em Nozick (1991):

Com base na concepção de justiça de direito a coisas, não podemos chegar a uma conclusão se o Estado tem que fazer alguma coisa para modificar a situação meramente examinando o perfil distributivo (...) Isso depende de como ocorreu a distribuição. Alguns processos que produzem esses resultados seriam legítimos, e as várias partes teriam direito às suas respectivas propriedades. Se esses fatos distributivos realmente surgiram através de um processo legítimo, eles são em si legítimos. Isso naturalmente não implica dizer que não possam ser mudados, contanto que tal coisa possa ser feita sem violar os direitos de pessoas.(...) A concepção de justiça de direito a coisas não estabelece presunções em favor da igualdade ou de qualquer estado final ou padronizações gerais. Não se pode meramente supor que a igualdade tem que ser incluída em qualquer teoria de justiça.” (grifos do autor) (NOZICK, 1991, p. 224)

136

E como o controle por parte da coletividade sobre as ações das pessoas tem espectro muito reduzido, de modo a se evitarem violações a direitos individuais, o

Estado pouco pode fazer nessa seara (VAN PARIJS, 1997).

O único apelo libertariano para eventuais transferências de recursos dos mais ricos para o mais pobres residiria na filantropia, isto é, na possibilidade de doações voluntárias entre os membros da sociedade (NOZICK, 1991). Segundo

Nozick, se a eliminação da pobreza e das condições adversas resultantes do sistema de mercado pudesse ser eleita como meta de uma sociedade, caberia a tal sociedade constituir um sistema de doações filantrópicas para atenuar tais mazelas sociais.

Somente tal sistema seria compatível com a teoria da justiça libertariana e obteria inclusive maior êxito no propósito de redução das desigualdades sociais do que um sistema de contribuições compulsórias.

Primeiramente, seu argumento diz que tal sistema contaria com a vantagem de não ofender a estrutura de direitos de propriedade de um indivíduo, uma vez que as transações seriam realizadas a partir de relações que contam com o consentimento mútuo dos participantes. Não ocorreriam, assim, violações na individualidade daqueles que dão e daqueles que recebem. Ademais, esse sistema permitiria que as transferências ocorressem diretamente para os necessitados de assistência, evitando-se o aparecimento de ‘aproveitadores’. Por fim, Nozick (1991) diz que o sistema compulsório poderia ser abolido, pois a meta interna desejada por cada um – qual seja, a eliminação da pobreza – não desapareceria com o fim da obrigatoriedade da contribuição. Ou seja, não é porque alguns parariam de contribuir que haveria a interrupção completa do sistema de doações filantrópicas, pois a meta permaneceria.

137 No entanto essa proposta distributivista ocupa um papel acessório dentro da

teoria proprietarista da justiça. Para que ela ocorra, é preciso um real acordo de

vontades entre os indivíduos no sentido de se mobilizarem para uma solidariedade em

relação aos demais. Sendo assim, o libertarianismo enfrentaria uma contradição.

Afinal, desse modo, não se colocaria o destino da vida de uns sob os caprichos da

vontade de outros? E, assim, não cairia por terra toda a proposta liberal de uma

individualidade e de uma liberdade absoluta?

Ante essas colocações, permanece a questão: seria possível estruturar uma

teoria da justiça em que o valor da liberdade seja levado a sério e, ao mesmo tempo, as

questões relativas à mitigação da desigualdade social sejam enfrentadas de modo a que

os mais desfavorecidos não tenham o exercício de sua liberdade comprometido pelas

circunstâncias materiais?

3.5 O liberal-igualitarismo de John Rawls

Poucas obras no séc. XX causaram tanta discussão no cenário político,

social e filosófico quanto Uma teoria da justiça (2002) de John Rawls, publicada em

1971. É o marco inicial da concepção que se pode denominar liberalismo-

igualitarista91. Inovou o debate que até então existia sobre o tema, em diversos

aspectos. Dentre eles, importa aqui considerar a originalidade de se pensar um modelo

91 Liberalismo-igualitarista ou igualitarismo liberal são as terminologias utilizadas por Van Parijs (1997) para denominar a corrente de pensamento inaugurada por Rawls e seguida por aqueles que compartilham suas premissas mais fundamentais de que a justiça de uma sociedade se realiza por meio de uma articulação dos ideais de liberdade e de igualdade (ARNSPERGER; VAN PARIJS, 2003). A expressão se mostra como apropriada, pois demarca as fronteiras em que a teoria de Rawls se encontra: um termo médio entre o puro liberalismo metodológico, atualmente defendido pelos libertarianos, e as teorias que dão primazia à questão da distribuição dos bens sociais, como é o caso do utilitarismo e do marxismo. 138 de Justiça que revitalizou a importância de se levar a sério as garantias e liberdades individuais, algo que é próprio da tradição liberal, sem, contudo, perder de mira o estabelecimento de um sistema de (re)distribuição de bens sociais destinado à efetiva melhoria da condição dos mais desfavorecidos (VAN PARIJS, 1997).

A teoria política do séc. XX foi fortemente marcada por uma preocupação em realizar a justiça pela garantia de bens materiais aos indivíduos, seja por uma maximização do bem-estar da coletividade (utilitarismo), seja pela coletivização dos meios de produção e pela planificação da economia (socialismo marxista). Todavia, nas duas concepções, o foco prioritário das instituições básicas da sociedade voltou-se

à alocação e distribuição de bens, o que, por si só, asseguraria a realização da justiça.

Por tal razão, justificou-se a adoção de um desmedido constrangimento às liberdades e garantias individuais “em nome” da efetivação de um bem-estar ou de uma situação de igualdade a serem usufruídos por todos.

Os libertarianos, por outro lado, defendiam que nenhuma ingerência na esfera privada dos indivíduos se justificava em nome da distribuição de bens sociais ou de um benefício coletivo “maior”. A justiça se realizaria pela ausência de intervenções no que é próprio da esfera da individualidade, já que aquela decorreria do desenvolvimento autônomo desta. Assim, a justiça reduzir-se-ia a um critério de preservação formal das garantias à vida, às liberdades em geral (aqui entendidas como espaço de reserva face ao Estado e aos demais) e à propriedade privada e a sua livre circulação.

A originalidade de John Rawls reside em propor uma teoria que representa ao mesmo tempo: 1) um avanço da discussão (compreendida no debate entre o utilitarismo e o marxismo) acerca das concepções que entendiam a justiça como mera definição, alocação e distribuição de bens materiais para a realização da felicidade,

139 sem levar seriamente em consideração os direitos individuais; 2) um núcleo de reserva

ao extremado postulado libertariano acerca da ausência de toda e qualquer atuação e

intervenção do Estado na esfera privada no sentido de promover redistribuição de bens

sociais (ARNSPERGER; VAN PARIJS, 1997; VAN PARIJS, 1997).

Sua concepção, denominada de justiça como imparcialidade92, visa

preservar a proposta liberal de se reservar ao indivíduo o direito de decidir como

conduzir sua própria vida em convívio com os demais, sem deixar que os bens

necessários para tanto dependam tão somente de contingências naturais e sociais. Sob

qual fundamento teórico isso seria possível?

3.5.1 – O construtivismo kantiano e o construtivismo político na base do

pensamento de Rawls

Desde as primeiras linhas de Uma teoria da justiça (2002), John Rawls

declara-se seguidor da filosofia moral kantiana, não somente por recorrer a uma forma

remodelada do contrato social, mas também por sustentar uma doutrina moral que não

enxerga no Direito apenas um meio para se alcançar a utilidade social, como é o caso

do utilitarismo cuja supremacia era reinante em tempos de Estado Social. É como

Rawls se posiciona já no prefácio: “This theory seems to offer an alternative

systematic account of justice that is superior, or so I argue, to the dominant

92 A tradução amplamente consagrada para a palavra da língua inglesa fairness é eqüidade. Ela se refere ao dever de se respeitar o acordo inicial acerca dos princípios fundamentais de justiça, como se verá adiante. Todavia, esse conceito é melhor traduzido pela expressão “imparcialidade”, à qual pode-se associar a idéia de “jogo limpo”, “respeito às regras do jogo”. A expressão imparcialidade também se relacionada ao procedimento de suspensão do juízo, descrito por Kant e retomado por Rawls na elaboração dos princípios de justiça na posição original. Há ainda o fato de que a expressão “eqüidade”, em português, é associada à filosofia aristotélica, pelo conceito relativo à correção da justiça legal ao caso concreto, em nada semelhante à idéia de Rawls. Logo, pelas razões expostas todas as referências à denominada teoria da “justiça como eqüidade” serão feitas pela expressão “justiça como imparcialidade”. 140 utilitarianism of the tradition. The theory that results is highly Kantian in nature93”

(RAWLS, 1971, p.VIII)

Para Rawls, a contribuição kantiana à teoria da justiça como imparcialidade

dá-se pelo fato de que ela resgataria para o homem a condição de ser livre e autônomo,

capaz, ele próprio, de elaborar uma lei moral racional que pautará sua conduta, sem

que esta dependa de fatores sociais externos ou contingências particulares:

For one thing, he [Kant] begins with the idea that moral principles are the object of rational choice. They define the moral law that men can rationally will to govern their conduct in as ethical commonwealth (...) Finally Kant supposes that this moral legislation is to be agreed to under conditions that characterize men as free and equal rational beings 94 (RAWLS, 1971, p. 251-252)

Rawls (2002) buscará construir uma teoria da justiça que não se vincule

exclusivamente a um critério de redistribuição e alocação de bens materiais, mas que

coloque a liberdade e a autonomia como valores básicos prioritários da sociedade:

Kant held, I believe, that a person is acting autonomously when the principles of his action are chosen by him as the most adequate possible expression of his nature as a free and equal rational being. The principles he acts upon are not adopted because of his social position or natural endowments, or in view of the particular kind of society in which he lives or the specific things that he happens to want. To act on such principles is to act heteronomously 95 (RAWLS, 1971, p. 252)

93 “essa teoria parece oferecer uma explicação sistemática alternativa da justiça que é superior, ou pelo menos assim considero, ao utilitarismo dominante da tradição. A teoria resultante é altamente kantiana em sua natureza” (RAWLS, 2002, p. XXII). Para os principais textos de Rawls, opta-se por apresentar a sua versão na língua original para se manter a maior fidelidade possível às idéias do autor, transcrevendo-se, nos rodapés, a tradução realizada pela edição brasileira. 94 “Em primeiro lugar, ele [Kant] começa com a idéia de que os princípios morais são objetos de uma escolha racional. Definem a lei moral que os homens podem racionalmente almejar para dirigir sua conduta numa comunidade ética. (...) Finalmente Kant supõe que essa legislação moral deve ser acatada em determinadas condições que caracterizam os homens como seres racionais livres e iguais” (tradução da edição brasileira) (RAWLS, 2002, p. 276) 95 “Kant acreditava, julgo eu, que uma pessoa age de modo autônomo quando os princípios que norteiam suas ações são escolhidos por ela como a expressão mais adequada possível de sua natureza de ser racional igual e livre. Os princípios que norteiam suas ações não são adotados por causa de sua posição social ou de seus dotes naturais, ou em vista do tipo particular de sociedade em que ela vive ou das coisas específicas que venha a querer. Agir com base em tais princípios é agir de modo heterônomo.” (tradução da edição brasileira) (RAWLS, 2002, p. 276) 141 Tais premissas kantianas estarão presentes na arquitetura de sua ‘justiça

como imparcialidade’ – esboçada por Rawls em Uma teoria da justiça (2002) e

modificada em obras posteriores96. Ela diz que os conceitos de autonomia, liberdade e

igualdade entre homens dotados de racionalidade e razoabilidade devem estar

presentes nas instituições que compõem a estrutura básica da sociedade.

Em Uma teoria da justiça (2002), Rawls pressupõe que os homens, por

meio de agentes representativos, partirão de uma situação hipotética de absoluta

igualdade para escolherem os princípios de justiça que nortearão os acordos

subseqüentes da sociedade. Há um ‘véu da ignorância’, que atua como elemento

isolante das contingências e fatores externos que podem influenciar as decisões e

escolhas, fazendo com que estas não mais se curvem a princípios heterônomos

(posições sociais, inclinações, aspirações e dons de cada um dos indivíduos).

Rawls (2002) sustenta que os princípios escolhidos sob as condições desta

situação hipotética – denominada de posição original – atuariam na estrutura básica da

sociedade de forma análoga ao imperativo categórico kantiano. Em Kant (1974, 2003),

o imperativo categórico é definido como uma fórmula de adequação da vontade do

agir à conformidade com leis objetivas, sendo que esta vontade não é meio para

obtenção de um outro fim (como no imperativo hipotético), mas sim um fim em si

mesmo. Segundo Rawls, o agir em conformidade aos princípios estabelecidos pelos

parceiros na posição original teria semelhante efeito:

The principles of their actions do not depend upon social or natural contingencies, nor do they reflect the bias of particulars of their plan of life or the aspiration that

96. Sobre a evolução do pensamento de John Rawls comparar Uma teoria da justiça (2002), o artigo denominado O construtivismo kantiano na teoria moral (2000), disponível em língua portuguesa no livro Justiça e Democracia, O liberalismo político (2000b) e, finalmente, Justiça como eqüidade – uma reformulação (2003). Sínteses dessa evolução podem ser encontradas também em O que é uma sociedade justa? Introdução à prática da filosofia política (VAN PARJIS, 1997) e Justiça como eqüidade: Liberais, comunitaristas e a autocrítica de John Rawls (CRUZ JÚNIOR, 2004) 142 motivate them. By acting from these principles person express their nature as free and equal rational beings subject to the general condition of human life. (...) The principles of justice are also categorical imperative in Kant’s sense. For by a categorical imperative Kant understands a principle of conduct that applies to a person in virtue of his nature as a free and equal rational being. (…) The argument for the two principles of justice does not assume that the parties have particular ends, but only that they desire certain primary goods. (…) To act from the principles of justice is to act from categorical imperatives in the sense that they apply to us whatever particular our aims are97 (RAWLS, 1971, p. 252-253)

Por fim, o critério da autonomia e da possibilidade de escolha dos

princípios de justiça é garantido pelo atributo do desinteresse mútuo. Por ele, não

haveria qualquer limitação específica na determinação de objetivos e finalidades:

Liberty in adopting a conception of the good is limited only by principles that are deduced from a doctrine which imposes no prior constraints on these conceptions. Presuming mutual desinterest in the original position carries out this idea. We postulate that the parties have opposing claims in a suitably general sense. If their ends were restricted in some specific way, this would appear at the outset as an arbitrary restriction on freedom.98 (RAWLS, 1971, p. 254)

Ao encerrar o paralelo que realiza entre sua teoria da justiça como

imparcialidade e a doutrina kantiana da moral, John Rawls (2002) sintetiza as

semelhanças:

Properly understood, then the desire to act justly derives in part from the desire to express most fully what we are or can be, namely free and equal rational beings with a liberty to choose. It is for this reason, I believe, that Kant speaks of the failure to act on the moral law as giving rise to shame and not to feelings of guilt And this

97“Os princípios de suas ações não dependem das contingências naturais ou sociais, tampouco refletem a tendência resultante da especificidade de seu projeto de vida ou as aspirações que as motivam. Agindo de acordo com esses princípios, as pessoas expressam sua natureza de seres racionais iguais e livres, sujeitos às condições gerais da vida humana (...) Os princípios da justiça também se apresentam como análogos aos imperativos categóricos. Por imperativo categórico Kant entende um princípio de conduta que se aplica a uma pessoa em virtude de sua natureza livre e racional. (...) O argumento a favor dos dois princípios da justiça não supõe que as partes têm objetivos particulares, mas apenas que elas desejam certos bens primários. (...) Agir com base nos princípios da justiça é agir com base em imperativos categóricos, no sentido de que eles se aplicam a nós, quaisquer que sejam nossos objetivos particulares” (tradução da edição brasileira) (RAWLS, 2002, p. 277) 98 “A liberdade na concepção de felicidade é limitada apenas por princípios deduzidos de uma doutrina que não impõe nenhuma restrição prévia a essas concepções. Pressupor o desinteresse mútuo na posição original implementa essa idéia. Postulamos que as partes têm exigências opostas num sentido apropriadamente geral. Se seus fins fossem limitados de alguma forma específica, isso apareceria desde o princípio como restrição arbitrária da liberdade” (tradução da edição brasileira) (RAWLS, 2002, p. 278) 143 is appropriate, since for him acting unjustly is acting in a manner that fails to express our nature as a free and equal rational being. Such actions therefore strike at our self-respect, our sense o four own worth, and the experience of this loss is shame. We have acted as though we belonged to a lower order, as though we were creature whose first principles are decided by natural contingencies. Those who think of Kant’s moral doctrine as one of law and guilt badly misunderstand him. Kant’s main aim is to deepen and to justify Rousseau’s idea that liberty is acting in accordance with a law that we give to ourselves. And this leads not to a morality of austere command but to an ethic of mutual respect and self esteem.99 (RAWLS, 1971, p. 256)

Todavia, posteriormente à edição de Uma teoria da justiça, essa

aproximação entre a teoria da justiça como imparcialidade e a doutrina moral kantiana

foi sempre objeto de esclarecimentos, aprofundamentos e até mesmo de revisão

posterior.

No artigo intitulado O construtivismo kantiano na teoria moral (2000),

publicado em 1980, Rawls reconhece que em Uma teoria da justiça subsistem

insuficiências não exploradas100 no que concerne às suas posições em relação a sua

filiação à doutrina kantiana.

99 “Vemos então que, entendido corretamente, o desejo de agir com justiça deriva em parte do desejo de expressar, da maneira mais plena, o que somos ou podemos ser, isto é, seres racionais iguais e livres, com liberdade de escolha. É por essa razão, creio eu, que Kant fala da incapacidade de agir segundo a lei moral como sendo causa de vergonha e não de sentimentos de culpa. E isso é apropriado, uma vez que, para ele, agir injustamente é agir de uma maneira que não expressa nossa natureza de seres racionais iguais e livres. Tais ações ferem, portanto, o nosso amor-próprio, o nosso senso de valor como pessoas, e a experiência dessa perda causa vergonha. Agimos como se pertencêssemos a uma categoria inferior, como se fôssemos criaturas cujos princípios básicos fossem determinados pelas contingências naturais. Aqueles que pensam na doutrina de Kant como uma doutrina da lei e da culpa fazem dele uma interpretação bastante equivocada. O principal objetivo de Kant é aprofundar e justificar a idéia de Rousseau de que a liberdade é agir de acordo com a lei que nós estabelecemos para nós mesmo. E isso conduz não a uma moralidade de comando austero, mas sim a uma ética de auto-estima e respeito mútuo.” (tradução da edição brasileira) (RAWLS, 2002, p. 281) 100 Como apontadas pelo próprio Rawls (2000), tais insuficiências se referem à distinção entre autonomia racional e autonomia completa, à caracterização do conceito de pessoa e de suas faculdades morais. O reconhecimento de tais insuficiências ocorre em função do primeiro passo dado por Rawls em direção à mudança de posicionamento segundo a qual a justiça como imparcialidade possui um caráter político, e não metafísico: “Justificar uma concepção kantiana no quadro de uma sociedade democrática não quer dizer simplesmente argumentar de maneira correta a partir de certas premissas u a partir de premissas publicamente compartilhadas e mutuamente aceitas. A verdadeira tarefa consiste em descobrir e em formular as bases mais profundas desse acordo que se pode esperar estejam enraizadas no bom senso. Ela pode chegar a criar e a moldar pontos de partida para esse acordo exprimindo, sob uma forma nova, as convicções que pertencem à tradição histórica e vinculando-as à gama variada das convicções mais sólidas, daquelas que resistem ao exame crítico. (...) Devo agora ressaltar que o que denomino “tarefa verdadeira” não é, em primeiro lugar, um problema epistemológico. A procura de argumentos razoáveis que permitiriam chegar a um acordo e que estejam enraizados na nossa concepção de nós mesmos, bem como na nossa relação com a sociedade substitui a procura de uma verdade moral fixada por uma ordem de objetos e de relações independente e anterior, seja ela divina ou natural, uma ordem distinta e separada da nossa concepção de nós mesmos. A tarefa consiste em elaborar uma concepção pública da justiça que seja aceitável para todos os que consideram sua pessoa e sua 144 A partir daquilo que ele denomina construtivismo kantiano, Rawls (2000)

aprofundará sua própria teoria com a inserção de novos conceitos, tais como os de

autonomia racional e autonomia completa, o de publicidade e a distinção entre o

racional e o razoável. Para tanto, seus recursos serão notadamente kantianos, ligados

aos conceitos de pessoa moral e de sociedade bem-ordenada. O construtivismo

kantiano, segundo define Rawls, é uma teoria que:

propõe uma concepção particular da pessoa e que faz disso um elemento de um procedimento razoável de construção cujo resultado determina o conteúdo dos princípios primeiros de justiça. Em outras palavras, ela estabelece um certo procedimento de construção que satisfaz a certo número de exigências razoáveis, e no âmbito desse procedimentos as pessoas caracterizadas como agentes racionais desse processo de construção definem, por sua concordância, os princípios primeiros de justiça (RAWLS, 2000, p. 47)

O que o construtivismo busca acentuar nessa vertente kantiana é o caráter

de uma conduta moral universalmente válida, que Kant sempre defendeu em seus

escritos sobre o uso prático da Razão:

Na doutrina kantiana que vou apresentar, as condições que permitem justificar uma concepção da justiça só são válidas se, no contexto da cultura política, for estabelecida uma base que permita a argumentação e o entendimento políticos. O papel social de uma concepção de justiça consiste assim em permitir a todos os membros da sociedade compreenderem por que as instituições e as disposições básicas que eles compartilham são aceitáveis, bem como em fazer com que os demais igualmente compreendam. Isso será possível se eles recorrerem a argumentos reconhecidos publicamente como sendo razões válidas num sentido definido por esta concepção. (RAWLS, 2000, p. 48)

Rawls (2000) terá, no entanto, a tarefa de conciliar a pluralidade própria

das atuais sociedades democráticas com a objetividade de uma moralidade que será

fruto necessário do processo de construção dos princípios da justiça (o

relação com a sociedade de uma determinada maneira. (...) O que justifica uma concepção da justiça não é, portanto, que ela seja verdadeira em relação a uma determinada ordem anterior a nós, mas que esteja de acordo com a nossa compreensão em profundidade de nós mesmos e o fato de que reconheçamos que, dadas a nossa história e as tradições que estão na base da nossa vida pública, ela é a concepção ais razoável para nós.” (RAWLS, 2000, p. 50-51) 145 procedimentalismo101 próprio de sua teoria). Como dito, o apelo é kantiano e se faz

sobre os conceitos de pessoa moral e de sociedade bem ordenada, ambos mediados

pela posição original, locus argumentativo que permitirá a interface entre os dois

conceitos.

A pessoa moral é o ente representativo de qualquer membro da sociedade

que, não obstante possuir seus próprios interesses egoístas, resguarda o desejo de

conviver em sociedade com instituições justas. Para tanto esse agente possui duas

faculdades morais, que são o senso de justiça e a capacidade de poder formular uma

concepção de bem.

O senso de justiça é definido como “uma capacidade para compreender e

aplicar os princípios de justiça, para agir segundo eles e não apenas de acordo com

eles” (RAWLS, 2000, p. 60-61). O conceito de senso de justiça traz consigo uma

101 Na exposição da teoria de Robert Nozick, fez-se referência (tópico 3.4.2, nota 89) ao fato de que sua teoria é procedimentalista porque estabelece princípios fundamentais que determinam o modo como se adquire e como se gera a propriedade. Os processos de interação entre os indivíduos não são regidos por resultados previamente estipulados que se deseja alcançar, sendo justo qualquer um que decorra do que respeitado a seus princípios norteadores. Teorias como as de Nozick são denominadas de justiça procedimental pura. Elas se opõem às teorias de justiça alocativas, como é o caso do marxismo e do utilitarismo, e podem ser assim caracterizadas: “pure procedural justice obtains when there is no independent criterion for the right result: instead there is a correct or fair procedure such that the outcome is likewise correct or fair, whatever it is, provided that the procedure has been properly followed”(RAWLS, 1971, 86) (“a justiça procedimental pura se verifica quando não há critério independente para o resultado correto: em vez disso, existe um procedimento correto ou justo de modo que o resultado será também correto ou justo, qualquer que seja ele, contanto que o procedimento tenha sido corretamente aplicado.” (tradução da edição brasileira) (RAWLS, 2002. p. 92) ). Segundo Rawls (2002), a justiça como imparcialidade também se apresenta como uma teoria procedimental pura, pois define anteriormente os princípios que irão dar origem a uma constituição política e a instituições econômicas e sociais justas, ambas responsáveis por definir os processos de interação social da estrutura básica da sociedade. Porém Nozick (1991) levanta a objeção de que a teoria de Rawls enfrentaria um dilema ao sustentar o princípio da diferença, pois introduziria no procedimento um critério de estado final: “O princípio de diferença determina como deve resultar o processo em andamento e proporciona um critério padronizado externo que ele tem que satisfazer. É rejeitado todo e qualquer processo que não consegue passar no teste do critério.(...) A estrutura da teoria de Rawls, por conseguinte, configura um dilema. Se os processos são tão importantes assim, a teoria é defeituosa porquanto é incapaz de gerar princípios processuais de justiça. Se o não são, então um fundamento insuficiente foi dado aos princípios produzidos pelo processo P de Rawls para chegar aos princípios. Argumentos baseados em contrato incluem a suposição de que tudo que emerge de um certo processo é justo. Sobre a força dessas suposições fundamentais repousa a força do argumento baseado no contrato. Certamente nenhum argumento desse tipo deve ser estruturado de tal forma que impeça que os princípios de processo sejam os fundamentais da justiça distributiva, pelos quais se julgarão as instituições de uma sociedade Nenhum argumento dessa ordem deve ser formulado de maneira a tornar impossível que seus resultados sejam do mesmo tipo que as suposições sobre as quais repousam. Se os processos são suficientemente bons para que uma teoria seja fundamentada neles, também o são para que o mesmo aconteça com os possíveis resultados da teoria. Não é possível ter as coisas das duas maneiras. ” (NOZICK, 1991, p. 224-225) 146 íntima carga moral, já que ligado ao desejo de agir em conformidade àquilo que é o

interesse publicamente construído no procedimento102.

Já a capacidade de formular uma concepção de bem liga-se à idéia

kantiana de liberdade humana enquanto poder de definir de modo autônomo os rumos

do próprio querer e a concepção de felicidade de si próprio. A capacidade de ter uma

concepção de bem não é descrita de modo completo em O construtivismo kantiano na

teoria moral (2000), pelo que se recorre ao posterior O liberalismo político (2000b)

para sua melhor caracterização:

The capacity for a conception of the good is the capacity to form, to revise, and the rationality to pursue a conception of one’s rational advantage or good. (...) Such a conception must not be understood narrowly but rather as including a conception of what is valuable in human life. Thus, a conception of the good normally consists of a more or less determinate scheme of final ends, that is, ends we want to realize for their own sake, as well as attachments to other persons and loyalties to various groups and associations. These attachments and loyalties give rise to devotions and affections, and so the flourishing of the persons and associations who are the objects of these sentiments is also part of our conception of the good. We also connect with such a conception a view of our relation to the world – religious, philosophical, and moral – by reference to which the value and significance of our ends and attachments are understood.103 (RAWLS, 1993, p. 19- 20)

102 Agindo em conformidade com o senso de justiça, os indivíduos são levados a elaborar juízos morais ponderados, isto é: “those judgments in which our moral capacities are most likely to be displayed without distortion. Thus in deciding which o four judgments to take into account we may reasonably select some some and exclude others. For example, we can discard those judgements made with hesitation, or in which we have little confidence. Similarly those given when we are upset or frightened, or when we stand to gain one way or the other can be left aside. All these judgments are likely to be erroneous or to be influenced by na excessive attention to our own interests. Considered judgements are simply those rendered under conditions favorable to the exercise of the sense of justice, and therefore in circumstances where the more common excuses and explanations for making a mistake do not obtain”. (RAWLS, 1971, p. 47-48) (“juízos nos quais as nossas qualidades morais têm o mais alto grau de probabilidade de se mostrarem sem distorção. Assim, ao decidir entre quais dentre os nossos juízos devemos levar em conta, podemos com bom senso selecionar uns e excluir outros. Por exemplo, podemos descartar aqueles juízos feitos com hesitação ou nos quais não depositamos muita confiança. De maneira semelhante, podem ser postos de lado os juízos formulados quando estamos nervosos ou com medo, ou quando, por uma razão ou por outra estamos numa posição de vantagem. Todos esses juízos têm probabilidade de estar errados ou influenciados por uma atenção excessiva aos nossos próprios interesses. Juízos ponderados são simplesmente os que são feitos sob condições favoráveis ao exercício do senso de justiça, e portanto, em circunstâncias em que não ocorrem as desculpas e explicações mais comuns para se cometer um erro.” (tradução da edição brasileira) (RAWLS, 2002, p. 51) ) 103 “A capacidade de ter uma concepção do bem é a capacidade de formar, revisar, procurar concretizar racionalmente uma concepção de vantagem racional pessoal, ou bem. (...) Essa concepção não pode ser compreendida em termos estreitos: deve incluir uma concepção do que é valioso na vida humana. Assim, sendo, uma concepção do bem normalmente consiste em um projeto mais ou menos determinado de fins últimos, isto é, fins que queremos realizar por eles mesmos, assim como ligações com outras pessoas e lealdades a vários grupos e associações. Essas ligações e lealdades dão origem a devoções e afetos e, por conseguinte, o florescimento das pessoas e associações que são objetos desses sentimentos também fazem parte da nossa 147

Rawls (2000) vai sustentar que essas duas faculdades morais (senso de

justiça e capacidade de defender uma própria concepção de bem) são os dois interesses

superiores que a própria sociedade deverá conservar como primordiais:

Dois interesses superiores, que correspondem a essas capacidades, animam as pessoas. Ao dizer que eles são superiores, quero com isso significar que, dada a maneira pela qual se define a concepção-modelo da pessoa, esses interesses governam a nossa vida no grau mais elevado e de maneira mais eficaz. Isso implica que, cada vez que as circunstâncias exercem um impacto sobre a sua efetivação, esses interesses governam a nossa deliberação e a nossa conduta. Dado que os parceiros representam pessoas morais, eles são, por conseguinte, movidos por esses mesmos interesses que buscam garantir o desenvolvimento e o exercício das faculdades morais. (RAWLS, 2000, p. 61)

As características peculiares a uma sociedade bem-ordenada seriam

justamente aquelas que permitiriam o desenvolvimento das faculdades morais, bem

como seus interesses superiores. Rawls (2000, 2000b) diz que, na sociedade bem-

ordenada, haveria o predomínio de uma concepção pública de justiça. Isso significa

que os princípios de justiça definidos para essa sociedade seriam aceitos, conhecidos e

reconhecidos por todos os seus integrantes. Reciprocamente, as instituições sociais

derivadas dos princípios de justiça teriam o correlato dever de respeitá-los. Outro

ponto imprescindível para a caracterização da sociedade bem ordenada é o

reconhecimento de que seus membros:

são pessoas morais, livres e iguais, e eles se consideram a si mesmos e aos outros como tais nas suas relações políticas e sociais (na medida em que elas dizem respeito a questões de justiça). (...) Os cidadãos são iguais na medida em que se consideram uns aos outros como detentores de um direito igual de determinar e de avaliar de maneira ponderada os primeiros princípios de justiça que devem reger a estrutura básica da sociedade. Eles são livres na medida em que pensam ter o direito de intervir na elaboração de suas instituições comuns em nome de seus próprios objetivos fundamentais e de seus interesses superiores. (RAWLS, 2000, p. 55) concepção do bem. Vinculamos ainda a essa concepção uma visão de nossa relação com o mundo – religioso, filosófico e moral – com referência à qual o valor e sentido de nossos objetivos e ligações são compreendidos.” (tradução da edição brasileira) (RAWLS, 2000b, p. 62) 148

Inicialmente, Rawls (2000) somente menciona que os responsáveis pela

elaboração, definição e construção dos princípios de justiça na posição original são os

agentes representativos da racionalidade humana e de seu desejo de agir conforme

suas faculdades morais. A essa capacidade deliberativa que esses agentes praticam na

posição original, Rawls denomina autonomia racional. A ela se contraporá outra,

própria dos cidadãos que de fato terão suas vidas regidas pelos princípios de justiça

mencionados, e que será chamada de autonomia completa:

A autonomia racional dos parceiros na posição original difere da autonomia completa exercida pelos cidadãos na sociedade. A autonomia racional é aquela dos parceiros na medida em que são os agentes de um processo de construção. Essa é uma noção relativamente estreita que se precisa colocar em paralelo com a noção kantiana de um imperativo hipotético (ou a de racionalidade que se encontra na economia neoclássica). A autonomia completa é aquela dos cidadãos na vida cotidiana, que têm uma certa visão de si próprios, defendendo e aplicando os princípios primeiros de justiça a respeito dos quais se puseram de acordo. (grifos do autor) (RAWLS, 2000, p. 54)

Para caracterizar a autonomia completa de que fala Rawls, é preciso ir-se

além do caráter racional que define os parceiros na posição original como interessados

de maneira egoísta. Há a necessidade de um critério complementar para se alcançar a

autonomia completa dos cidadãos que irão conviver em sociedade. Como os cidadãos

participam de fato da sociedade, convivem dentro de uma cooperação social. Esta deve

ser pautada por termos eqüitativos que se estruturem sobre uma base de respeito

mútuo104:

104 Em O liberalismo político (2000b) define-se de modo sucinto o que são termos eqüitativos da cooperação e desinteresse mútuo: “fair terms of social cooperation are terms upon which as equal persons we are willing to cooperate in good faith with all members of society over a complete life. To this let us add: to cooperate on a basis of mutual respect. Adding this clause makes everyone without resentment of humiliation (or for that matter bad conscience) when citizen regard themselves and one another as having to the requisite degree the two moral powers which constitute the basis of equal citizenship.” (RAWLS, 1993, p.303) (“termos eqüitativos de cooperação são termos em função dos quais nós, enquanto pessoas iguais, estamos dispostos a cooperar de boa- fé com todos os membros da sociedade ao longo de toda vida. A isso acrescentamos: estamos dispostos a fazê-lo sobre uma base de respeito mútuo. Acrescentar essa cláusula explicita que os termos eqüitativos de cooperação podem ser aceitos por todos sem ressentimentos ou humilhação (ou má consciência), quando os cidadãos 149

Trata-se de termos que se pode esperar ver razoavelmente aceitos por cada participante, com a condição de que os demais também aceitem. A noção inclui portanto uma idéia de reciprocidade e de mutualidade. Todos os que cooperam devem ser beneficiários ou compartir dos encargos comuns de um modo relativamente satisfatório, avaliado por um critério adequado de comparação. Chamarei de Razoável esse elemento presente na cooperação social. (grifos do autor) (RAWLS, 2000, p. 66)

O Razoável representa, portanto, uma característica complementar para

que se possa instituir a autonomia completa aos cidadãos que convivem nas sociedades

de fato:

O Razoável pressupõe e condiciona o Racional. Ele define os termos eqüitativos da cooperação que seriam aceitos por todos os membros de um grupo qualquer, constituído por pessoas identificáveis separadamente, cada uma delas possuindo as duas faculdades morais que indicamos. (...) O Razoável pressupõe o Racional porque, sem as concepções do bem que mobilizam os membros do grupo, a cooperação social não teria sentido algum, como tampouco o teriam as noções de justo e justiça (...) O Razoável condiciona o Racional porque os porque os seus princípios limitam e até mesmo, tomado num sentido kantiano, limitam de modo absoluto os fins últimos que podem ser visados. (RAWLS, 2000, p. 69)

Pode-se dizer, com Rawls (2000), que esses cerceamentos à deliberação

dos agentes racionais na construção dos princípios de justiça são justamente os

elementos de sua teoria que definem os termos de uma cooperação social eqüitativa,

isto é, que se mantém imparcial e não se inclina ante as diversas concepções

particulares de bem que as pessoas podem desenvolver, razão pela qual é possível

denominá-la de justiça como imparcialidade:

Os representantes desses cerceamentos são a condição de publicidade, o véu da ignorância e a simetria da situação dos parceiros uns em relação aos outros, bem como a estipulação de que estrutura básica da sociedade seja o objeto primeiro da justiça. Os princípios de justiça habituais são exemplos de princípios razoáveis, e os princípios correntes da escolha racional constituem exemplos de princípios racionais. A maneira de representar o Razoável na posição original conduz aos dois princípios de justiça. (RAWLS, 2000, p. 69)

consideram que eles próprios e todos os outros têm o grau necessário das duas capacidades morais que constituem a base da cidadania igual.” (tradução da edição brasileira) (RAWLS, 2000b, p. 357) ) 150

Nesse trabalho, da década de 1980, há um estreitamento dos laços entre o ideal de pessoa moral e os vínculos que se estabelecem em uma sociedade determinada por esses mesmos princípios. Como a autonomia completa se realizaria por meio da razoabilidade dos cerceamentos que produzem os princípios da justiça como eqüidade, em última instância, o construtivismo priorizaria, com a opção pelos bens primários, uma forma de vida moral supostamente superior às demais, constrangendo os indivíduos a uma prática social para além da esfera política:

Ora, numa sociedade bem ordenada, estipulamos que o fato de a justificação dos princípios de justiça ser o resultado da posição original é o objeto de um acordo público. Assim, não apenas os cidadãos têm um desejo de ordem superior – seu senso de justiça – de agir segundo os princípios de justiça como compreendem que esses princípios são oriundos de uma construção na qual a concepção que têm de si mesmos como pessoas morais, livres e iguais, ao mesmo tempo racionais e razoáveis, está corretamente representada. Agindo a partir desses princípios e defendendo-os na vida pública em razão dessa origem, eles exprimem sua autonomia completa. (RAWLS, 2000, p. 73)

Perceba-se que a passagem transcrita aponta que o sustentáculo da estrutura básica da sociedade, o acordo público que gerará os princípios de justiça, tem uma origem precisa: o desejo de agir em conformidade com o senso de justiça, uma das faculdades morais que orientará a opção pelos interesses superiores.

Em uma série de trabalhos subseqüentes, que culminaram no giro de O liberalismo político (2000b), publicado em 1993, Rawls reverá alguns dos alicerces que sustentavam Uma teoria da justiça (2002), bem como o propósito de fazer de seu construtivismo uma teoria fortemente vinculada à doutrina moral kantiana:

Note that in my summary of the aims of Theory the social contract tradition is seen as part of moral philosophiy and no distinction is drawn between moral and political philosophy. In Theory a moral doctrine of justice general in scope is not distinguished from a strict political conception of justice. Nothing is made of the contrast between compreehensive philosophical and moral and conceptions limited to the domain of the political. In the lectures in this volume, however, these

151 distinctions and related ideas are fundamental.105 (grifos do autor) (RAWLS, 1993, p.XV)

Em O liberalismo político, Rawls (2000b) buscará dissociar do âmbito

político toda e qualquer exigência moral que leve o indivíduo a se vincular àquilo que

ele chama de doutrina filosófica abrangente, como forma de se preservar a proposta

do liberalismo político.

To explain: the serious problem I have in mind concerns the unrealistic idea of a well-ordered society as it appears in Theory. An essential feature of a well-ordered society associated with justice as fairness is that all its citizens endorse this conception on the basis of what I now call a comprehensive philosophical doctrine. They accept, as rooted in this doctrine, its two principles of justice. 106 (grifos do autor) (RAWLS, 1993, p. XVI)

A inconsistência que Rawls encontrou em sua própria teoria deve-se à

questão de que, dado o fato do pluralismo razoável, uma doutrina filosófica

abrangente não pode se sobrepor à outra sem que haja um distúrbio na estabilidade da

sociedade.

Political liberalism assumes that, for political purposes, a plurality of reasonable yet incompatible comprehensive doctrines is the normal result of the exercise of human reason within the framework of the free institutions of a constitutional democratic regime. Political liberalism also supposes that a reasonable comprehensive doctrine does not reject the essentials of a democratic regime.(…) The fact of a plurality of reasonable but incompatible comprehensive doctrines – the fact of reasonable pluralism – shows that, as used in Theory, the idea of a well- ordered society of justice as fairness is unrealistic. This is because it is inconsistent

105 Observe que, em meu resumo dos objetivos de Teoria, a tradição do contrato social aparece como parte da filosofia moral e não se faz distinção alguma entre filosofia moral e política. Em Teoria, uma doutrina moral da justiça de alcance geral não se distingue de uma concepção estritamente política de justiça. O contraste entre doutrinas filosóficas e morais abrangentes e concepções limitadas ao domínio do político não é de grande relevância. No entanto, essas distinções e idéias afins são fundamentais nas conferências aqui apresentadas. (tradução da edição brasileira) (RAWLS, 2000b, p. 23) 106 “O grave problema a que me referi – é preciso que eu explique – diz respeito à idéia pouco realista de “sociedade bem-ordenada”, tal como aparece em Teoria. Uma característica essencial de uma sociedade bem- ordenada associada à justiça como eqüidade é que todos os seus cidadãos endossam essa concepção com base no que agora chamo de doutrina filosófica abrangente. Aceitam que seus dois princípios de justiça estejam fundamentados nessa doutrina.” (tradução da edição brasileira) (RAWLS, 2000b, p. 24) 152 with realizing its own principles under the best foreseeable conditions.107 (grifos do autor) (RAWLS, 1993, p. XVI-XVII)

A distinção entre a existência de doutrinas morais abrangentes, próprias de

cada cidadão e, portanto, não extensiva nem impositiva aos demais, e a necessidade de

uma estrutura política que abarque todas elas, de modo que a coexistência seja

possível, é a principal guinada efetuada por Rawls em O Liberalismo Político (2000b).

Assim, sua doutrina restringir-se-á ao que é próprio do âmbito do político, sem que

esse sofra interferências cruciais dos conteúdos próprios das doutrinas morais. Isso

será possível em virtude da introdução de um novo recurso na teoria política, o

consenso sobreposto (overlapping consensus):

Part of the seeming complexity of political liberalism – shown, say, in its having to introduce a further family of ideas – arises from accepting the fact of reasonable pluralism. For once we do this, then we assume that, in an ideal overlapping consensus each citizen affirms both a comprehensive doctrine and the focal political conception, somehow related. In some cases the political conception is simply the consequence of, or continuous with, a citizen’s comprehensive doctrine, in others it may be related as an acceptable approximation given the circumstances of the social world. In any case, since the political conception is shared by everyone while the reasonable doctrines are not, we must distinguish between a public basis of justification belonging to the many comprehensive doctrines and acceptable only to those who affirm them.108 (RAWLS, 1993, p.XVIII-XIX)

107 O liberalismo político pressupõe que, para propósitos políticos, uma pluralidade de doutrinas abrangentes e razoáveis, e, ainda assim, incompatíveis, seja o resultado normal do exercício da razão humana dentro da estrutura de instituições livres de um regime democrático constitucional. O liberalismo político pressupõe também que uma doutrina abrangente e razoável não rejeita os princípios fundamentais de um regime democrático.(...) O fato de haver uma pluralidade de doutrinas abrangentes e razoáveis, porém incompatíveis entre si – o pluralismo razoável –, mostra que a idéia de uma sociedade bem-ordenada de justiça como eqüidade, conforme aparece em Teoria é pouco realista. É pouco realista por ser incoerente com a realização de seus princípios num cenário de alta previsibilidade. (tradução da edição brasileira) (RAWLS, 2000b, p. 24-5) 108 “Parte da suposta complexidade do liberalismo político – evidente, por exemplo, na necessidade de introduzir uma série complementar de idéias afins – decorre da aceitação do pluralismo razoável. Porque ao aceitá-lo, presumimos que, num consenso sobreposto ideal, todo cidadão endossa tanto uma doutrina abrangente quanto uma concepção política focal, relacionadas de alguma forma. Em alguns casos, a concepção política é simplesmente conseqüência da doutrina abrangente do cidadão, ou mostra continuidade com ela; em outros, a primeira pode estar relacionada com a segunda como uma aproximação aceitável, dadas as circunstâncias do mundo social. Seja como for, já que a concepção política é compartilhada por todos, ao contrário das doutrinas razoáveis, precisamos distinguir entre uma base de justificação pública de ampla aceitação pelos cidadãos, no que diz respeito a questões políticas fundamentais, e as muitas bases de justificação não-públicas que fazem parte das diversas doutrinas abrangentes aceitas apenas por seus defensores.” (tradução da edição brasileira) (RAWLS, 2000b, p. 26-7) 153 Assim, ao invés de sustentar um construtivismo moral, como havia feito nos anos 1980, Rawls (2000b) realizará uma diferenciação crucial na teoria da justiça como imparcialidade em direção ao que ele denomina de construtivismo político.

Rawls (2000b) resume em quatro as distinções entre o construtivismo moral kantiano e o construtivismo político que defende:

1) O construtivismo kantiano é, como dito, uma doutrina moral abrangente, enquanto o construtivismo político não. Este somente fornece uma base pública de justificação política para a possibilidade de convívio em sociedade de diversas doutrinas morais abrangentes. Tal não poderia ser feito pelo construtivismo kantiano já que não haveria compatibilidade com o fato do pluralismo razoável, ao exigir dos cidadãos uma adesão a um ideal moral de vida.

2) Enquanto em Kant a autonomia do indivíduo radica na constituição dos valores construídos para sua existência, dado o caráter do idealismo transcendental, em Rawls essa autonomia restringir-se-á à constituição ordenada dos valores políticos, em conformidade com os princípios da razão prática.

3) Para Kant, há uma concepção definida de sociedade e de pessoa que orienta e define a construção dos valores morais para a fixação dos princípios de justiça. No construtivismo político, há somente o respeito à exigência de uma concepção razoável de sociedade e de pessoa, qualquer que ela seja, desde que compatível com a preservação do domínio do político e capaz de justificar e organizar os princípios básicos da sociedade.

4) Segundo o próprio Rawls (2000b) as três distinções acima estão ligadas a uma última que nitidamente separa o construtivismo kantiano do construtivismo político – a diferença de objetivos:

154 Justice as fairness aims at uncovering a public basis of justification on questions of political justice given the fact of reasonable pluralism. Since justification is addressed to others, it proceeds from what is, or can be, held in common; (…) Kant’s aims are difficult to describe briefly. But I believe he views the role of philosophy as apologia: the defense of reasonable faith. This is not the older theological problem of showing the compatibility between faith and reason, but that of showing the coherence and unity of reason, both theoretical and practical, with itself; and of how we are to view reason as the final court of appeal, as alone competent to settle all questions about the scope and limits of its own authority.109 (RAWLS, 1993, p. 100-101)

Com essa guinada, Rawls põe em pretensões bem mais modestas a função

do construtivismo que ele sustenta, pois a estrutura política que permite o convívio nas

sociedades democráticas não mais imporia uma específica doutrina moral aos

indivíduos. Contudo, nem por isso essa tarefa deixa de ser menos árdua, já que a força

do construtivismo por ele proposto terá de se basear justamente no desenvolvimento de

uma capacidade lançada por John Locke, um dos maiores defensores do liberalismo

moderno, a virtude da tolerância.

From the beginning the scope of political constructivism has been limited to the political values that characterize the domain of the political; it is not proposed as an account of moral values generally. It does not say, as I assume Kant did, that not only is the order of all values presented by a constructivist argument but also that the moral order itself is constituted or made by the principles of practical reason. The political values of a constitutional democracy are, however, seen as distinctive in the sense that they can be worked out using the fundamental idea of society as a fair system of cooperation between free and equal citizens as reasonable and rational. Granting all this, it does not follow, although it might be so, that other kinds of values can also be appropriately constructed. Political constructivism neither asserts nor denies this Otherwise a constructivist conception could not be the focus of an overlapping consensus of reasonable comprehensive doctrines, since on this question citizens will hold conflicting positions.110 (RAWLS, 1993, p. 125- 126)

109 A justiça como eqüidade tem por objetivo descobrir uma base pública de justificação no que se refere a questões de justificação política dado o fato do pluralismo razoável. Como a justificação se dirige aos outros, origina-se no que é, ou pode ser, defendido em comum (...) É difícil resumir os objetivos de Kant. Mas acredito que ele entenda o papel da filosofia como apologia: a defesa da fé razoável. Não se trata do antigo problema teológico de mostrar a compatibilidade entre fé e razão, e sim do de mostrar a coerência e a unidade da razão, tanto teórica, quanto prática, consigo mesma; e de por que devemos entender a razão como o tribunal supremo e último, como o único que tem competência para resolver todas as questões sobre os alcances e limites de sua própria autoridade.(tradução da edição brasileira) (RAWLS, 2000b, p. 146) 110 “Desde o princípio, o alcance do construtivismo político limitou-se aos valores políticos que caracterizam o âmbito do político; ele não se propõe como uma explicação dos valores morais em geral. Não se diz, como suponho que Kant tenha dito, que não só a ordem de todos os valores pode ser representada mediante um argumento construtivista, como também que a própria ordem moral é constituída ou gerada pelos princípios da razão prática. 155

Entretanto, não é porque Rawls opera reformulações em seu

construtivismo (2000b), tendo em vista a justificação política das sociedades

democráticas constitucionais da atualidade, que sua obra deixa de ser tributária dos

ideais de Kant. Muito pelo contrário. As mudanças efetuadas visam resguardar o

espírito defendido pelo autor de Königsberg, qual seja, o de promover o respeito à

igualdade política entre os concidadãos, de modo a que todos eles possam participar

no processo de elaboração da legislação que regerá a vida pública de sua sociedade.

Uma vez vista a fundamentação teórica sobre a qual Rawls construirá a sua justiça

como imparcialidade, passa-se a apresentar o procedimento e o método utilizado por

Rawls para a escolha dos princípios de justiça que irão reger a estrutura básica da

sociedade, bem como o conteúdo desses princípios.

3.5.2 – O arcabouço teórico da teoria da justiça de Rawls

John Rawls pretende sustentar uma concepção de Justiça que venha a

conciliar indivíduos com diferentes projetos pessoais de vida dentro de uma sociedade

plural que respeite as diversas concepções particulares de mundo. Para tanto, recorre a

uma renovada teoria do contrato social enquanto recurso lógico de fundamentação

daquilo que permitirá o consenso de base acerca dos princípios da justiça (FARAGO,

2004; VAN PARIJS, 1997). Esse “contrato” difere do contrato social dos autores

No entanto, os valores políticos de uma democracia constitucional são vistos como característicos no sentido de que podem ser formulados a partir da idéia fundamental de sociedade enquanto um sistema eqüitativo de cooperação entre cidadãos livres e iguais, em sua condição de razoáveis e racionais. Dado tudo isso, não se conclui, embora seja possível fazê-lo, que todos os outros tipos de valores também possam ser apropriadamente construídos. O construtivismo político não afirma nem nega tal coisa. Porque, de outra forma, uma concepção construtivista não poderia ser o foco de um consenso sobreposto de doutrinas abrangetes e razoáveis, uma vez que, sobre esses valores, os cidadãos defenderão pontos de vista conflitantes.”(tradução da edição brasileira) (RAWLS, 2000b, p. 172-73) 156 iluministas. Ao invés de buscar no pacto social uma justificação metafísica para a

utilização da violência pelo Estado, o expediente contratualista de Rawls busca

estabelecer quais serão as bases com as quais todos podem concordar como justas para

a distribuição dos bens primários em uma sociedade (FELIPE, 1996). Ao invés de se

orientar pela ficção, como faziam os autores do séc. XVII, Rawls busca fundamentar

em bases racionais a tradição do constitucionalismo democrático desenvolvida pelas

sociedades ocidentais:

Não há na teoria de Rawls, conforme já vimos acima, a ficção de um contrato ahistórico acerca dos princípios da justiça a serem adotados. Há, por um lado, a tradição do pensamento ocidental vinculada ao modelo democrático-constitucional, que deve ser respeitada, preservada e aperfeiçoada; (...) A concepção de um contrato, em Rawls, se funda numa espécie de reconhecimento ou aceitação da irreversibilidade do curso da história das lutas políticas no mundo democrático ocidental, que acaba por estabelecer definitivamente o princípio da liberdade igual para todos os homens, apregoado pela tradição do movimento democrático- constitucional moderno. (CRUZ JÚNIOR, 2004, p. 51-52)

O ponto de partida do contratualismo de Rawls é o lugar privilegiado em

que ocorrerá tal argumentação, denominado de posição original. Essa hipótese

metodológica permitirá estabelecer que os indivíduos que irão definir as bases do

acordo sobre os princípios de justiça se encontrem em posição de igualdade

(FARAGO, 2004). Assim, toda a teoria é construída em referência à posição original

na qual:

Free and rational persons concerned to further their own interests would accept in an initial position of equality as defining the fundamental terms of their association. These principles are to regulate all further agreements; they specify the kinds of social cooperation that can be entered into and the forms of government that can be established. This way of regarding the principles of justice I shall call justice as fairness111 (RAWLS, 1974, p.11)

111 “pessoas livres e racionais, preocupados em promover seus próprios interesses, aceitariam numa posição inicial de igualdade como definidores dos termos fundamentais de sua associação. Esses princípios devem regular todos os acordos subseqüentes; especificam os tipos de cooperação social que se podem assumir e as formas de governo que se podem estabelecer. A essa maneira de considerar os princípios de justiça eu chamarei de justiça como eqüidade.” (tradução da edição brasileira) (RAWLS, 2002, p. 12) 157 Para que a adoção dos princípios da justiça se faça de modo imparcial, ou

“eqüitativo”, os indivíduos são colocados na posição original sob um “véu da ignorância”. O véu da ignorância é o recurso que permite aos indivíduos abstraírem de suas contingências particulares e escolherem os princípios de justiça para a sociedade sem saber a posição que nela ocuparão (RAWLS, 2002):

Rawls propõe que as partes na posição original sejam desprovidas de qualquer conhecimento relevante que possa macular a condição de status quo inicial justo essencial para deliberarem em condição de igualdade, isto é, sem influenciais de nenhuma sorte advindas do status quo real das partes. Rawls obtém esse efeito com um ‘véu de ignorância’ em razão do qual as partes não sabem seu sexo, posição social, habilidades inatas, país ou sociedade de onde vieram, força, inteligência, influência política ou social, suas visões de mundo e propensões psicológicas. De modo a tornar o véu de ignorância ainda mais espesso, as partes na verdade são na verdade’representantes’ de pessoas como nós, de modo que os interesses sejam ainda mais limitados e equilibrados por considerações de bem comum.(...) Tamanhas restrições são levantadas com o propósito de se obter um universo de deliberação perfeitamente simétrico, supondo ser razoável e aceitável que nenhuma das partes seja favorecida devido a condições benéficas e fortuitas adquiridas de habilidades inatas ou posições sociais transmitidas por herança. (CRUZ JÚNIOR, 2004, p. 51-52)

As restrições colocadas por Rawls aos agentes que se situam na condição especial, exigida pela posição original, operam no sentido de que haja a maior imparcialidade (a mais adequada das traduções para o termo “fairness”) possível na escolha dos princípios que regerão a estrutura básica da sociedade (FARAGO, 2004).

No entanto, os participantes da posição original têm acesso a uma lista de bens primários que sabem necessários à consecução de suas respectivas concepções de bem

(RAWLS, 2002). Os princípios de justiça servirão para determinar de que modo tais bens primários serão selecionados, hierarquizados e distribuídos entre as diversas instituições sociais (RAWLS, 2000b). Esses bens sociais primários são listados por

Rawls de maneira indicativa, constituindo-se, basicamente de: a) liberdades fundamentais (liberdade de pensamento, consciência e congêneres); b) liberdade de movimento e de escolha da ocupação em um contexto de oportunidades variadas; c)

158 poderes e prerrogativas de posições e cargos de responsabilidade; d) renda e riqueza,

entendidas como meios de troca em sentido amplo; e) bases sociais do auto-respeito,

ligadas ao sentimento de valor próprio como pessoa.

Uma última característica que a posição original está ligada à seguinte

premissa metodológica: os juízos que a descrevem, bem como os resultados das

deliberações, são fruto de uma situação denominada de equilíbrio ponderado, ou

reflexivo, o que lhes confere um caráter provisório e sujeito a revisão (RAWLS,

2002). Porém, isso não impede que eles sejam alicerces fixos para o desenvolvimento

da teoria enquanto válidos:

By going back and forth, sometimes altering the conditions of the contractual circumstances, at others withdrawing out judgementsand conforming them to principle, I assume that eventually we shall find a description of the initial situation that both express reasonable conditions and yields principles which match our considered judgments duly pruned and adjusted. This state of affairs I refer to as reflective equilibrium. It is an equilibrium because at last our principles and judgments coincide; and it is reflective since we know to what principles our judgments conform and the premises of their derivation. At the moment everything is in order. But this equilibrium is not necessarily stable. It is liable to be upset by further examination of the conditions which should be imposed on the contractual situation and by particular cases which may lead us to revise our judgments Yet for the time being we have done what we can to render coherent and t justify our convictions of social justice112 (RAWLS, 1971, 20-21)

Sendo assim, segundo a primeira formulação dada por Rawls em Uma

teoria da justiça (2002), os princípios de justiça que indivíduos livres e racionais

escolheriam na posição original, submetidos às restrições de conhecimento próprias do

véu da ignorância e ao equilíbrio reflexivo, seriam os seguintes:

112 “Por meio de avanços e recuos, às vezes alterando as condições das circunstâncias em que se deve obter o acordo original, outras vezes modificando nossos juízos e conformando-os com os novos princípios, suponho que acabaremos encontrando a configuração da situação inicial que ao mesmo tempo expresse pressuposições razoáveis e produza princípios que combinem com nossas convicções devidamente apuradas e ajustadas. A esse estado de coisas me refiro como equilíbrio ponderado. Trata-se de um equilíbrio porque finalmente nossos princípios e opiniões coincidem; e é reflexivo porque sabemos com quais princípios nossos julgamentos se conforma e conhecemos as premissas das quais derivam. Nesse momento tudo está em ordem. Mas este equilíbrio não é necessariamente estável. Está sujeito a ser perturbado por outro exame das condições que se pode impor à situação contratual e por casos particulares que podem nos levar a revisar nossos julgamentos. Mas por enquanto fizemos o possível para tornar coerentes e justificar nossas convicções sobre justiça social” (tradução da edição brasileira) (RAWLS, 2002, p. 23) 159

First Principle Each person is to have an equal right to the most extensive total system of equal basic liberties compatible with a similar system of liberty for all. Second Principle Social and economic inequalities are to be arranged so that they are both: (a) to the greatest benefit of the least advantaged, consistent with the just savings principle, and (b) attached to offices and positions open to all under conditions of fair equality of opportunity First Priority Rule (The Priority of Liberty) The principles of justice are to be ranked in lexical order and therefore liberty can be restricted only for the sake of liberty. There are two cases: (a) a less extensive liberty must strengthen the total system of liberty shared by all; (b) a less than equal liberty must be acceptable to those with the lesser liberty Second Priority Rule (The Priority of Justice over Efficiency and Welfare) The second principle of justice is lexically prior to the principle of efficiency and to that of maximizing the sum of advantages; and fair opportunity is prior to the difference principle. There are two cases: (a) an inequality of opportunity must enhance the opportunity of those with the lesser opportunity; (b) an excessive rate of saving must on balance mitigate the burden of those bearing this hardship113 (grifos do autor)(RAWLS, 1971, p. 302-303)

Posteriormente, em O liberalismo político (2000b), algumas mudanças são

introduzidas nos princípios de justiça, de modo a que a estrutura da justiça como

113 Primeiro Princípio Cada pessoa deve ter um direito igual ao mais abrangete sistema total de liberdades básicas iguais que seja compatível com um sistema semelhante de liberdades para todos Segundo princípio As desigualdades econômicas e sociais devem ser ordenadas de tal modo que, ao mesmo tempo: (a) tragam o maior benefício para os menos favorecidos, obedecendo às restrições do princípio da poupança justa (b) sejam vinculadas a cargos e posições abertos a todos em condições de igualdade eqüitativa de oportunidades Primeira Regra de Prioridade (A Prioridade da Liberdade) Os princípios da justiça devem ser classificados em ordem lexical e portanto as liberdades básicas só podem ser restringidas em nome da liberdade. Existem dois casos: (a) uma redução da liberdade deve fortalecer o sistema total das liberdades partilhadas por todos; (b) uma liberdade desigual deve ser aceitável para aqueles que têm liberdade menor. Segunda Regra de Prioridade (A Prioridade da Justiça sobre a Eficiência ou o Bem-Estar) O segundo princípio da justiça é lexicalmente anterior ao princípio da eficiência e ao princípio da maximização da soma de vantagens; e a igualdade eqüitativa de oportunidades é anterior ao princípio da diferença. Existem dois casos: (a) uma desigualdade de oportunidades deve aumentar as oportunidades daqueles que têm uma oportunidade menor; (b) uma taxa excessiva de poupança deve, avaliados todos os fatores, tudo é somado, mitigar as dificuldades dos que carregam esse fardo (tradução da edição brasileira) (RAWLS, 2002, p. 333-334) 160 imparcialidade permaneça condizente com as reformulações114 feitas nesse trabalho

(CRUZ JÚNIOR, 2004):

a. Each person has an equal right to a fully adequate scheme of equal basic liberties which is compatible with a similar scheme of liberties for all b. Social and economic inequalities are to satisfy two conditions. First, they must be attached to offices and positions open to all under conditions of fair equality of opportunity; and second, they must be to the greatest benefit of the least advantaged members of society.115 (RAWLS, 1993, p.291)

Essa é a denominada concepção especial de justiça, que decorre de uma

concepção geral de justiça, de caráter mais amplo, por Rawls assim expressa: “All

social primary goods – liberty and opportunity, income and wealth, and the bases of

self respect – are to be distributed equally unless an unequal distribution of any or all

of these goods is to advantage of the least favored.” (RAWLS, 1971, p. 303) 116

Os dois princípios extraídos da concepção especial de justiça atuariam

como centro de referência para as demais tomadas de decisão relativas à composição

da estrutura básica da sociedade (RAWLS, 2002). A estrutura básica da sociedade é

composta das diferentes instituições sociais que atribuem direitos e deveres no seio de

uma sociedade:

114 Como já abordado na nota 96, a justiça como imparcialidade surge em Uma teoria da justiça, mas segue sofrendo constantes reformulações por parte de Rawls, à medida que ele responde críticas e supera deficiências encontradas em sua teoria. O liberalismo político (2000b) compõe-se de um ciclo de conferências em que a justiça como imparcialidade incorpora em sua estrutura o denominado construtivismo político, em oposição ao construtivismo moral kantiano que antes a orientava. Para melhor compreensão da mudança de perspectiva ocorrida na passagem de Uma teoria da justiça (2002) para O liberalismo político (2000b), sugere-se a consulta a esta última obra. 115 “a. Toda pessoa tem um direito igual a um sistema plenamente adequado de liberdades fundamentais iguais que seja compatível com um sistema similar de liberdades para todos. b. As desigualdades sociais e econômicas devem satisfazer duas condições. A primeira é que devem estar vinculadas a cargos e posições abertos a todos em condições de igualdade eqüitativa de oportunidades; e a segunda é que devem redundar no maior benefício possível para os membros menos privilegiados da sociedade.” (tradução da edição brasileira) (RAWLS, 2000b, p. 345) 116 O trecho transcrito foi suprimido na versão brasileira consultada. No entanto a versão original que serve de base para a edição brasileira consultada é segunda edição, de 1975, sendo que a versão em língua original consultada é a primeira, de 1971. Assim, é possível que a supressão ocorra no texto de 1975. Há, no entanto, em outro local do texto em português, uma tradução que reproduz com exatidão a concepção geral de justiça: “Todos os valores sociais – liberdade e oportunidade, renda e riqueza, e as bases sociais da auto-estima – devem ser distribuídos igualitariamente a não ser que uma distribuição desigual de um ou de todos esses valores traga vantagens para todos.” (tradução da edição brasileira) (RAWLS, 2002, p. 66) 161

O objeto primário da justiça é, segundo Rawls (1997, p.5-8), a estrutura básica da sociedade, ou mais exatamente, a maneira pela qual as instituições sociais mais importantes distribuem direitos e deveres fundamentais e determinam a divisão de vantagens provenientes da cooperação social. Por instituições mais importantes, entende-se a constituição política e os principais acordos econômicos e sociais, de que constituem exemplos a proteção legal da liberdade de pensamento e de consciência, os mercados competitivos, a propriedade particular no âmbito dos meios de produção e a família monogâmica, entre outros. Tomadas em conjunto como um único esquema, as instituições sociais mais importantes definem os direitos e deveres dos homens e influenciam seus projetos de vida, o que eles podem esperar vir a ser e o bem-estar econômico que podem almejar. (FLORENZANO, 2005, p. 41)

As instituições sociais componentes dessa estrutura seriam subdivididas em

conformidade com os respectivos objetos tratados em cada um dos princípios. No

primeiro princípio há, para a concretização da justiça, um dever de igual atribuição das

liberdades básicas no que concerne ao estabelecimento de direitos a elas relacionados.

Qualquer que seja o sistema de liberdades existentes em uma sociedade, dele devem

usufruir todos os seus membros. Perceba-se que, em O liberalismo político (2000b), o

primeiro princípio de justiça sofre uma ligeira alteração no conteúdo em relação a

Uma teoria da justiça – de “o mais abrangente sistema de liberdades” para “um

sistema plenamente adequado”. Essa alteração deve-se ao fato de que não

necessariamente “o mais extenso” sistema de liberdades atenderá aos propósitos da

justiça como imparcialidade117. Pelo contrário, para o desenvolvimento do senso de

117 “Now, in Theory one criterion suggested seems to be that the basic liberties are to be specified and adjusted so as to achieve the most extensive scheme of these liberties. This criterion is purely quantitative and does not distinguish some cases as more significant than others; moreover, it does not generally apply and is not consistently followed. (…) Rather, these liberties and their priority ate to guarantee equally for all citizens and the social conditions essential for the adequate development and the full and informed exercise of these powers in what I shall call “the two fundamental cases”. The first of these cases is connected with the capacity for a sense of justice and concerns the application of the principles of justice to the basic structure of society and its social policies (…) The second fundamental case is connected with the capacity for a conception of the good and concerns the application of the principles of deliberative reason in guiding our conduct over a complete life. (...) The upshot will be that the criterion at later stages is to specify and adjust the basic liberties so as to allow the adequate development and the full and informed exercise of both moral powers in the social circumstances under which the two fundamental cases arise in the well-ordered society in question. Such a scheme of liberties I shall call ‘a fully adequate scheme’.(grifos do autor) (RAWLS, 1993, p.331-333) (“Em Teoria, um critério apontado parece ser o de que as liberdades fundamentais devem ser especificadas e ajustadas de modo que se alcance o sistema mais abrangente possível dessas liberdades. Esse critério é puramente quantitativo e não distingue alguns casos como mais significativos do que outros; além disso não se aplica em termo gerais e não é 162 justiça e a realização de uma concepção particular de bem de cada um dos cidadãos

seria mais apropriado trabalhar com a noção de um sistema “plenamente adequado” à

satisfação desses critérios118.

O segundo princípio refere-se à divisão de vantagens econômicas e sociais

na estrutura da sociedade. Desigualdades na repartição desses bens somente se

justificam caso promovam melhorias aos menos favorecidos nessa distribuição,

respeitado sempre. (...) O que se pretende é, em vez disso que essas liberdades e sua prioridade garantam igualmente a todos os cidadãos as condições sociais essenciais para o desenvolvimento adequado e o exercício pleno e bem-informado dessas capacidades naquilo que chamarei de ‘os dois casos fundamentais’ O primeiro desses casos está ligado à capacidade de ter um senso de justiça e diz respeito à aplicação dos princípios de justiça à estrutura básica da sociedade e a suas políticas sociais (...) O segundo caso fundamental está ligado à capacidade de ter uma concepção de bem e diz respeito à aplicação dos princípios da razão deliberativa na orientação de nossa conduta ao longo de toda a vida. (...) O resultado será que, nos estágios subseqüentes, o critério deve especificar e ajustar as liberdades fundamentais de tal modo que permita o desenvolvimento adequado e o exercício pleno e bem-informado de ambas as capacidades morais, nas circunstâncias sociais em que os dois casos fundamentais se apresentam na sociedade bem ordenada em questão. A tal sistema de liberdades chamarei de ‘um sistema plenamente adequado’. Esse critério é coerente com o de ajustar o sistema de liberdades de acordo com os interesses racionais do cidadão igual representativo” (tradução da edição brasileira) (RAWLS, 2000b, p.387-389) ) 118 “Now there are two reasons why the idea of a maximum does not apply to specifying and adjusting the scheme of basic liberties. First, a coherent notion of what is to be maximized is lacking. We cannot maximize the development and exercise of two moral powers at once. And how could we maximize the development and exercise of either power by itself?(...) Moreover, we have no notion of a maximum development of these powers. What we do have is a conception of a well-ordered society with certain general features and certain basic institutions. Given this conception, we form the notion of the development and exercise of these powers which is adequate and full relative to the two fundamental cases. The other reason why the idea of a maximum does not apply is that the two moral powers do not exhaust the person, for persons also have a determinate conception of the good. (...) If the citizens had no determinate conceptions of the good which they sought to realize, the just social institutions of a well-ordered society would have no point. Of course, grounds for developing and exercising the moral powers strongly incline the parties in the original position to adopt the basic liberties and their priority. But the great weight of these grounds from the standpoint of the parties does not imply that the exercise of the moral powers on the part of the citizens in the society is either the supreme or the sole form of good. Rather, the role and exercise of these powers (in the appropriate instances) is a condition of good. That is, citizens are to act justly and rationally, as circumstances require”. (RAWLS, 1993, p. 333-334) (“Há duas razões pelas quais a idéia de um máximo não se aplica à especificação e ao ajuste do sistema de liberdades básicas. A primeira é que não temos uma noção corrente do que deve ser maximizado. Não podemos maximizar ao mesmo tempo o desenvolvimento e o exercício das duas capacidades morais. E como poderíamos maximizar o desenvolvimento e o exercício de cada uma delas em separado? (...)Além disso não temos nenhuma noção do que seria um desenvolvimento máximo dessas capacidades. O que temos é uma concepção de uma sociedade bem-ordenada, com certas características gerais e certas instituições básicas. Dada essa concepção, formulamos a noção do desenvolvimento e exercício dessas capacidades, que é adequada e plena com respeito aos dois casos fundamentais. A outra razão pela qual a idéia de um máximo não se aplica é que as duas capacidades morais não esgotam a pessoa, pois as pessoas também têm uma determinada concepção de bem. (...) Se os cidadãos não tivessem uma concepção específica do bem que procuram realizar, as instituições sociais justas de uma sociedade bem-ordenada perderiam o sentido. É claro que os motivos para desenvolver e exercer as faculdades morais inclinam fortemente as partes na posição original a adotar as liberdades fundamentais e sua prioridade. Mas o grande peso desses motivos, do ponto de vista das partes, não implica que o exercício das capacidades morais por parte dos cidadãos em sociedade seja a forma suprema, ou a única forma do bem, e sim que o papel e exercício dessas capacidades morais (nos casos apropriados) são uma condição do bem, isto é, os cidadãos devem agir de forma justa e racional, conforme o exijam as circunstâncias.” (tradução da edição brasileira) (RAWLS, 2000b, p.389-390) ) 163 respeitada a igual possibilidade de acesso a posições e cargos sociais. É o denominado princípio da diferença. Com este segundo princípio, Rawls (2002) insere uma perspectiva igualitarista em sua teoria. Não há nela a busca pela igualdade radical, como propõe o marxismo, mas sim a instauração de uma tendência de se distribuir os bens econômicos e sociais de modo a se atenuarem as desigualdades entre os indivíduos. Desse modo, segundo Rawls, seria possível combinar justiça e eficiência econômica, sem se colocar em risco a estabilidade da sociedade:

para o princípio da diferença, como o próprio nome levaria a supor, está afastado o objetivo de se estabelecer qualquer tipo de igualdade estrita, mas antes uma forma de distribuição de bens sociais, que possa combinar justiça com eficiência econômica. Nada há de pior do que cercear as liberdades fundamentais para assegurar a igualdade, pois tal cerceamento, além de violar os projetos de vida e bens primários que todo indivíduo racional escolheria, independentemente do conteúdo desses bens, afetaria as próprias bases da igualdade precariamente adquirida. Não haveria estímulos, nem confiança, nem justiça em tal concepção de sociedade, uma vez que os indivíduos não seriam iguais em termos políticos, ainda que o fossem, de alguma forma, em termos econômicos. (CRUZ JÚNIOR, 2004, p. 69)

Rawls (2002) assevera ainda que os princípios encontram-se segundo uma ordem serial, ou lexical, ou seja, o primeiro princípio (de liberdade igual) antecede ao segundo (que prevê as desvantagens econômicas e sociais) em prioridade, assim como a segunda parte do segundo princípio (de igualdade de acesso a cargos e posições) antecede à primeira parte do segundo princípio (princípio da diferença). Para Rawls

(2000b), o princípio que atribui prioridade às liberdades fundamentais possui um status especial, ou seja, considerações relativas a um melhor arranjo econômico ou social não podem justificar intervenções que anulem as garantias fornecidas por esse princípio: “The priority of liberty implies in practice that a basic liberty can be limite

164 or denied solely for the sake of one or more other basic liberties, and never, as I have

said, for reasons of public good or perfeccionist values”119 (RAWLS, 1993, p. 295)

Com isso, Rawls (2000b) não quer dizer que as liberdades são absolutas e

invioláveis sob qualquer fundamento. Há, para o seu exercício, a necessidade de uma

regulamentação de modo que elas venham a constituir um sistema que permita o seu

exercício organizado e efetivo por parte de todos os cidadãos.

E, assim, por meio de uma lealdade aos princípios acordados na posição

original na construção e definição das instituições sociais, obtém-se a realização da

justiça na estrutura básica da sociedade. Nas palavras do próprio autor:

In justice as fairness society is interpreted as a cooperative venture for mutual advantage. The basic structure is a public system of rules defining a scheme of activities that leads men to act together so as to produce a greater sum of benefits and assigns to each certain recognized claims to a share in the proceeds. What a person does depends upon what the public rules say he will be entitled to, and what a person is entitled to depends on what he does. The distribution which results is arrived at by honoring the claim determined by what persons undertake to do in the light of these legitimate expectations120 (RAWLS, 1971, p. 84)

Deste modo a distribuição de conteúdos materiais deixa de ser responsável

pela realização da justiça (justiça alocativa), dando lugar à idéia de respeito às

condições e regras consideradas por todos como justas para a elaboração dos

posteriores acordos que definirão as instituições de uma sociedade (justiça

procedimental), donde se completa assim, a estrutura da justiça “as fairness” – com o

respeito às regras do jogo, a ser praticado de modo limpo e franco.

119 “A prioridade da liberdade implica, na prática, que uma liberdade fundamental só pode ser limitada ou negada em nome de uma outra ou de outras liberdades fundamentais, e nunca, como eu disse, por razões de bem-estar geral ou de valores perfeccionistas.” (tradução da edição brasileira) (RAWLS, 2000b, p. 349) 120 Na justiça como eqüidade, a sociedade é interpretada como um empreendimento cooperativo para a vantagem de todos. A estrutura básica é um sistema público de regras que definem um esquema de atividades que conduz os homens a agirem juntos no intuito de produzir uma quantidade maior de benefícios e atribuindo a cada um certos direitos reconhecidos a uma parte dos produtos. O que uma pessoa faz depende do que as regras públicas determinam a respeito do que ela tem direito de fazer, e os direitos de uma pessoa dependem do que ela faz. Alcança-se a distribuição que resulta desses princípios honrando os direitos determinados pelo que as pessoas se comprometem a fazer à luz dessas expectativas legítimas. (tradução da edição brasileira) (RAWLS, 2002 p. 90) 165 Se, por um lado, a trajetória da justiça como imparcialidade de Rawls

consegue articular uma teoria da justiça que, de modo atraente, defende as bases de

uma sociedade liberal, por meio de uma argumentação em favor dos postulados do

liberalismo, por outro ela desperta questionamentos quanto à fundamentação e à

pertinência desse projeto, colocando em xeque a própria coerência e a validade da

empresa de Rawls e estabelecendo novos rumos ao debate político sobre a questão da

justiça.

3.5.3 – A crítica comunitarista

A força do argumento de John Rawls em favor do estabelecimento de uma

teoria da justiça de matriz liberal, que em muito ratifica a experiência política

vivenciada pelas sociedades capitalistas ocidentais desenvolvidas, levantou uma série

de objeções por parte de autores que, por diferentes razões e fundamentos, se opõem a

esse modelo de justiça. Essa oposição tem em comum a crítica à estruturação da

sociedade em bases liberais121 e propõe, por sua vez, uma teoria da justiça de

perspectiva comunitarista122.

121 É preciso que não se confunda as críticas ao liberalismo que se fazem em função de seus efeitos, como aquelas realizadas pelo utilitarismo e pelo marxismo à conseqüência de se privilegiar o mercado e a autonomia da vontade nas questões ligadas à distribuição de recursos sociais, com as críticas dirigidas à fundamentação de uma sociedade que não possua uma prévia fundamentação do que seja a vida boa e a perfeição humana. Em certa medida, o utilitarismo e o marxismo compartilham do postulado liberal de não se sustentar em uma concepção particular de vida boa (ARNSPERGER; VAN PARIJS, 2003) e, portanto, são também alvo das críticas comunitaristas. 122 O que se denomina teoria da justiça comunitarista é um conjunto de elaborações teóricas formuladas por autores de diferentes tradições filosóficas em reação à hegemonia do pensamento liberal no início da década de 1980. O debate tem início com a publicação do livro de Michael Sandel O liberalismo e os limites da justiça, de 1982 (FARAGO, 2004), ao qual se seguem os trabalhos de Alasdair MacIntyre, Michael Walzer e Charles Taylor (este último declara-se não filiado a nenhuma corrente, apesar da análise crítica feita ao conceito de self, central às teorias liberais). A reunião desses autores sob uma mesma corrente decorre do fato de que todos eles questionam a validade da premissa liberal que sustenta a prioridade do justo sobre o bem, isto é, que prefere garantir as condições que permitem a busca da felicidade (autonomia e liberdade) ao invés de promover uma concepção substancial de bem, denominada de “vida boa” e determinada pela vida em comunidade, que realize a plenitude humana. (FARAGO, 2004) 166 Toda a formulação da justiça como eqüidade de John Rawls busca

estabelecer princípios de justiça que não sejam orientados por nenhuma concepção

específica de bem. Segundo Rawls, as atuais sociedades contemporâneas encontram-se

profundamente divididas no que concerne às visões de mundo, que informam as

doutrinas gerais abrangentes professadas por cada um dos cidadãos. Sendo assim,

como forma de se elaborar uma concepção política de justiça de matriz democrática, é

necessária uma estrutura de princípios de justiça que seja capaz de garantir igual

respeito a todas essas doutrinas professadas pelos cidadãos. Isso exigirá que os

princípios de justiça não se vinculem a nenhuma concepção específica de bem que

imponha um determinado tipo de “vida boa”. Pelo contrário, eles se constituirão de

uma gama de regras formais que estabeleçam as garantias para que cada um dos

indivíduos singularmente tenha a liberdade, a autonomia e, em certos casos, como na

teoria de Rawls, a oportunidade de buscar esse bem. Esse é o cânone liberal que

preconiza a prioridade do justo sobre o bem. Nenhuma idéia de bem da coletividade

teria a prerrogativa de ultrajar as regras que conferem aos indivíduos o direito de

perseguir aquilo que consideram como responsável por representar o bem próprio de

sua vida:

Each person possesses an inviolability founded on justice that even the welfare of society as a whole cannot override. For this reason justice denies that the loss of freedom, for some is made right by a greater good shared by others. It does not allow that the sacrifices imposed on a few are outweighed by the larger sum of advantages enjoyed by many. Therefore in a just society the liberties of equal citizenship are taken as settled; the rights secured by justice are not subject to political bargaining or to the calculus of social interests.123 (RAWLS, 1971, p.3-4)

123 “Cada pessoa possui uma inviolabilidade fundada na justiça que nem mesmo o bem-estar da sociedade como um todo pode ignorar. Por essa razão, a justiça nega que a perda da liberdade de alguns se justifique por um bem maior partilhado por outros. Não permite que os sacrifícios impostos a uns poucos tenham menos valor que o total maior das vantagens desfrutadas por muitos. Portanto numa sociedade justa as liberdades da cidadania igual são consideradas invioláveis; os direitos assegurados pela justiça não estão sujeitos à negociação política ou ao cálculo de interesses sociais.” (tradução da edição brasileira) (RAWLS, 2002 p. 4) 167 Para que seja possível a elaboração dos princípios de justiça que regerão

essa sociedade profundamente dividida por conflitos de interesses, é preciso que, no

processo de construção desses princípios, sejam isoladas as visões particulares de bem

dos indivíduos históricos e empíricos. Esse papel é cumprido pelos constrangimentos

da posição original, em especial pelo véu da ignorância.

Desse modo, o recurso à posição original na teoria de Rawls dá origem a

um conceito de pessoa dotada apenas das qualidades primárias e mínimas que podem

ser comuns a todos os indivíduos: as capacidades morais (racionalidade e

razoabilidade, como visto acima) e o senso de justiça. As demais informações relativas

às características psicológicas, atributos humanos e sociais e experiências históricas

são deixadas de lado. Tudo isso para que a igualdade dos representantes e a natureza

deontológica124 do procedimento de escolha dos princípios não seja maculada.

Os conceitos fundamentais das teorias liberais, de um modo geral e de

Rawls em sentido estrito, que serão atacados pela crítica comunitarista são o

voluntarismo da posição original, o conceito de pessoa e os pressupostos relativos ao

conceito de sociedade (CRUZ JÚNIOR, 2004).

De acordo com os comunitaristas, o recurso à posição original em Rawls

originaria um “excessivo voluntarismo da concepção de pessoa” (CRUZ JÚNIOR,

2004, p.150), pois estabelece a existência de um “Eu” que definirá princípios de

justiça para a sociedade antes mesmo de ter contato com a realidade fenomênica que

lhe colocará seus fins concretos e constituirá a sua identidade.

124 Refere-se à natureza deontológica da teoria de Rawls nos termos empregados por Sandel para demarcar as características que tornam a sua teoria tributária da teoria moral kantiana. “Desde el punto de vista plenamente deontológico, la primacía de la justicia describe no solo una prioridad moral sino también una forma privilegiada de justificación. (...) En su sentido moral, la deontología se opone al consecuencialismo, al describir una ética de primer orden que contiene ciertos deberes y prohibiciones categóricos que tienen prioridad incondicional sobre otras cuestiones morales y prácticas. En su sentido fundacional, la deontología se opone a la teleologia porque describe una forma de justificación según la cual los primeiros princípios se derivan de un modo que no presupone ningún propósito o fin humano final, ni una concepción determinada de la bondad humana.” (SANDEL, 2000, p. 15-16) 168

El tema común a una gran parte de la doctrina liberal clásica que surge a partir de la consideración deontológica de la unidad del ‘yo’ es la noción del sujeto humano como un agente de elección soberano, una criatura cuyos fines son elegidos antes que dados, que llega a sus propósitos y objectivos por actos de voluntad, en contraste, digamos, con los actos de cognición. (...) La unidad antecedente del yo significa que el sujeto, no importa cuán condicionado por su entorno se encuentre, siempre es irreductiblemente anterior a sus valores y fines, y nunca completamente construido por ellos. Aunque puedan darse circunstancias en las cuales las condiciones sean formidables y las elecciones pocas, la acción soberana del hombre como tal no depende de ninguna condición particular de existencia, sino que está garantizada por adelantado. (SANDEL, 2000, p. 39)

Na medida em que esse exercício hipotético não trabalharia com contingências reais, ele se limitaria a um trabalho epistemológico de encontrar aquilo que é condizente com essa natureza parcial que lhe é imposta:

“Como esse indivíduo não está confrontado com escolhas sociais reais, ele tem antes que avaliar introspectivamente qual seria o seu plano de vida, consideradas as limitações da posição original e da sua natureza moral a-social, o que são uma e a mesma coisa. (...) Tal opção é epistemológica na medida em que os projetos de vida e concepções do bem seriam escolhidos ‘no vazio’, sem referência a nenhuma sociedade ou experiência histórica ou cultural. O exercício preconizado por Rawls é o de olhar para dentro de si e, munido das capacidades morais e dos instrumentos congruentes com a natureza (racional e razoável) dos indivíduos, descobrir um modelo de sociedade e um código de conduta moral que mais representariam uma noção de ‘verdade’ – ainda que subjetivamente construída – do que uma opção entre outras a ser propriamente escolhida. O indivíduo rawlsiano é, assim, livre, mas não pode fazer muito com essa liberdade dada a limitação – ou mesmo a indisponibilidade – de escolhas.” (grifos do autor) (CRUZ JÚNIOR, 2004 p. 150- 151)

Uma segunda questão colocada pelos comunistaristas à teoria de Rawls diz respeito ao fato de que, para que haja a prioridade do justo sobre o bem, faz-se necessário que o conceito de pessoa, responsável por definir os critérios de justiça para uma sociedade, seja anterior à própria existência dessa sociedade (CRUZ JÚNIOR,

2004):

We should not attempt to give form to our life by first looking to the good independently defined. It is not our aims that primarily reveal our nature but rather the principles that we would acknowledge to govern the background conditions under which these aims are to be formed and the manner in which they are to be

169 pursued. For the self is prior to the ends which are affirmed by it; even a dominant end must be chosen from among numerous possibilities. There is no way to get beyond deliberative rationality. We should therefore reverse the relation between the right and the good proposed by teleological doctrines and view the right as prior125 (RAWLS, 1971, p. 560)

Ao lançar tais argumentos como fundamento da justiça como

imparcialidade, Rawls resgata a noção kantiana de “Eu” transcendental, entidade

noumênica que não se encontra sujeita aos condicionamentos da experiência na

formulação de suas escolhas (FARAGO, 2004). Logo, o sujeito rawlsiano, que define

os princípios de justiça na posição original, seria, ao modo de Kant, livre e

independente para realizar tais escolhas, em função das restrições que lhe são impostas

pelo véu da ignorância.

Contra esse aspecto da teoria de Rawls, os comunitaristas afirmam que a

justiça como imparcialidade deve sua estrutura justamente à condição de um eu126

totalmente liberto (TAYLOR, 2000). Pois somente o recurso a esse tipo de eu tornaria

possível a escolha dos princípios de justiça na posição original. No entanto, segundo

os comunitaristas, essa condição ontológica seria impossível, porque a identidade do

eu é constituída somente a partir do momento em que esse convive dentro numa

comunidade (SANDEL, 2000). É ela que imprime os traços distintivos de suas

características sociais e humanas. A ausência do contexto social significa uma

impossibilidade de se estabelecerem fins e objetivos morais, pois as avaliações sobre o

que é bom e o que é ruim, o correto e o incorreto, o desejável e o indesejável somente

125 “Não devemos tentar dar forma a nossa vida olhando, em primeiro lugar, para o bem definido de modo independente. Não são nossos objetivos que revelam primeiramente nossa natureza, mas sim os princípios que reconheceríamos como reguladores das condições básicas nas quais esses objetivos devem ser formados e o modo pelo qual eles devem ser buscados. Pois o eu é anterior aos objetivos que são afirmados por ele; até mesmo um objetivo dominante deve ser escolhido dentre várias possibilidades. Não há como ir além da racionalidade deliberativa. Devemos, portanto, inverter a relação entre o justo e o bom proposta pelas doutrinas teleológicas, e considerar o justo como prioritário.” (tradução da edição brasileira) (RAWLS, 2002 p. 622-623) 126 O termo “Eu” é aqui empregado por ser a tradução mais consagrada à palavra “self”. 170 podem existir em contextos concretos. São, em última instância, sociais, e não dedutíveis a partir dos atributos racionais da natureza humana.

Desse modo, uma comunidade que viesse a dar origem a eus totalmente libertos, ao modo como se fundamentam as teorias liberais, abriria espaço a um ambiente de relativismo moral, em função da neutralidade dos valores e da ausência de vínculos de solidariedade entre os indivíduos (SANDEL, 2000; TAYLOR, 2000). Essa razão seria a origem dos problemas de anomia e de falta de integração social que se constatam nas sociedades liberais contemporâneas (MACINTYRE, 2001).

Essa última questão se liga ao terceiro aspecto da crítica comunitarista à teoria de Rawls. Ela reside na incongruência de se fazer derivar um conceito de sociedade fortemente alicerçado na solidariedade entre os indivíduos, sendo que estes são concebidos como seres que somente possuem seus atributos racionais e se apresentam como mutuamente indiferentes (CRUZ JÚNIOR, 2004). Charles Taylor

(2000), ao comentar as críticas de Michael Sandel a Rawls, constata a seguinte questão:

Ele (Sandel) alega que o princípio da diferença igualitária de Rawls, que envolve tratar os talentos de cada um como parte dos recursos mantidos em conjunto em benefício da sociedade como um todo, pressupõe um alto grau de solidariedade entre os participantes. Esse sentido de compromisso mútuo só pode ser mantido por eus libertos que partilhem um forte sentido de comunidade. E, no entanto, as partes contratantes são definidas em larga medida como mutuamente indiferentes (...) O que Sandel diz nos traz a questão de saber se o tipo de redistribuição igualitária pode ser mantido numa sociedade que não esteja ligada em solidariedade mediante um forte sentido de comunidade; e se, em contrapartida, é possível forjar uma comunidade forte em torno de uma compreensão comum que faça da justiça a principal virtude da vida social, ou se algum outro bem deveria ter de figurar também na definição de vida comunitária. (TAYLOR, 2000 p. 200-201)

Há, pois, em Rawls, um tipo de solidariedade social que deriva estritamente dos atributos da racionalidade. Ela não leva em conta fatores sociais, culturais e históricos, revestindo-se exclusivamente de: 1) abster-se em interferir na vida alheia e

171 nos direitos dos demais; 2) agir no sentido de perseguir seus próprios interesses individuais:

O problema do princípio da solidariedade não é o seu conteúdo, que remete a atitudes consentâneas com a constituição da sociedade bem-ordenada. O problema reside no fato de que essas preocupações são demasiadamente apriorísticas e obstinadamente não empíricas. (...) Estando escoimado de interferências empíricas e juízos de valor constitutivos de sua personalidade, trata-se de alguém que basta a si mesmo e que atua com a certeza de que os outros bastarão a si mesmos e não interferirão com seus desígnios. (...) A sociedade rawlsiana consiste antes num agregado de pessoas possuidoras dos mesmos traços psicológicos e morais, e não de uma sociedade que pressupõe uma diversidade de comportamentos que são rejeitados, compartilhados e modificados não por decisões e julgamentos individuais, mas pelo próprio movimento da história. (CRUZ JÚNIOR, 2004 p. 160- 161)

Assim, a importância e a finalidade da crítica comunitarista é mostrar a inexistência de uma neutralidade ou de uma superioridade nas teorias liberais, mesmo as mais ponderadas como a de John Rawls. Inclusive a justiça como imparcialidade, que se apresenta como avanço sem precedentes na teoria política do século XX, não consegue se desvincular de questões perniciosas ligadas a sua fundamentação liberal, como, por exemplo, o exagerado recurso a uma sociedade atomista e individualista, solapando os resquícios da dimensão comunitária que constitui a identidade humana.

A crítica comunitarista também tem a importância de deixar bem claro que a opção por uma sociedade liberal é uma tradição dentre outras:

Os pontos de partida da teorização liberal não são nunca neutros no que se refere às concepções do bem humano; eles são sempre pontos de partida liberais. E a inconclusividade dos debates no liberalismo, quanto aos princípios fundamentais da justiça liberal, reforça a visão de que a teoria liberal é melhor compreendida, não como tentativa de encontrar uma racionalidade independente da tradição, mas como a articulação de um conjunto historicamente desenvolvido de instituições e formas de atividade, isto é, como a voz de uma tradição. (MACINTYRE, 2001)

172 A opção pela prioridade do justo sobre o bem somente é possível no quadro

de uma tradição específica, aquela própria das sociedades democráticas ocidentais

desenvolvidas, salientando, assim, os limites e o alcance da teoria liberal127.

As críticas comunitaristas dirigidas a Rawls atuam mais como um alerta às

sociedades que se pretendem estruturar sobre bases liberais do que trazem

fundamentos para o abandono da justiça como imparcialidade. Algumas das críticas

comunitaristas provocaram reformulações na própria teoria de Rawls. Outras foram

respondidas de modo satisfatório por ele e, por fim, há questões metaéticas ligadas ao

tipo de sociedade que cada uma das teorias da justiça, liberal ou comunitarista, deseja

estruturar (VAN PARIJS, 1997; TAYLOR, 2000).

Apesar dos esforços e das contribuições das teorias comunitaristas, seu

argumento em favor da priorização do bem sobre o justo é obscuro em relação à sorte

dos direitos individuais nas sociedades contemporâneas, em especial o da liberdade.

Abandonar os direitos ligados à liberdade individual em uma concepção da justiça

significa deixar de lado um dos pilares que sustenta a própria modernidade. Esse, aliás,

é o grande problema das teorias comunitaristas. Como não conseguem propor nenhum

modelo alternativo de sociedade baseada em termos comunitários, e que seja ao

mesmo tempo compatível com o atual desenvolvimento cultural da humanidade, suas

proposições enveredam por um caminho conservador ou retrógrado.

3.6 Sobre a relação entre liberdade e justiça nas teorias contemporâneas

127John Rawls reconhece a procedência dessa crítica ao sustentar, em sua reformulação à justiça como imparcialidade (RAWLS, 2003), que sua teoria somente tem aplicação nas sociedades ocidentais desenvolvidas. 173 Neste capítulo fez-se uma revisão das principais concepções sobre a justiça do séc. XX que se debruçaram sobre a questão da justiça em uma sociedade. Cada uma delas sustenta-se sobre um diferente critério a partir do qual os bens de uma sociedade devem ser distribuídos. Percebe-se também que cada um dos critérios de distribuição é elaborado tendo em vista uma concepção de liberdade humana a ser realizada pela sociedade, ou seja, cada uma das teorias da justiça prioriza, a seu modo, uma determinada faceta do conceito de liberdade, consoante exposto no capítulo anterior.

No caso do utilitarismo, há primazia da dimensão material da liberdade, pois estabelece como critério para a realização da justiça que as instituições sejam organizadas no sentido de promover a maximização da utilidade social, isto é, aumentar ao máximo possível o bem-estar e a felicidade. Ainda que os utilitaristas busquem inserir nos elementos responsáveis pela averiguação do bem-estar, bens de ordem imaterial como a liberdade e o respeito recíproco, a teoria utilitarista acabou por desembocar na fundamentação política do Estado de Bem-Estar Social, já que a organização do Estado para fins de fornecimento de serviços tais como educação, saneamento básico, saúde, habitação, transporte, energia, dentre outros, acabou por polarizar o sentido do que representava o bem-estar invocado pelo critério da utilidade. Sob inspiração utilitarista, como a maior felicidade do maior número é alcançada pela promoção de benefícios e serviços que permitem a realização da felicidade dos indivíduos, as instituições da sociedade deverão privilegiar uma distribuição dos bens sociais satisfazendo tais critérios.

O utilitarismo defronta-se com algumas dificuldades, de caráter interno à própria teoria, bem como ligadas às críticas que se fazem a partir de uma perspectiva externa. A primeira está ligada à questão de se estabelecer um critério preciso para se

174 definir e listar, em ordem de prioridade, as preferências sobre aquilo que promove o bem-estar. Critérios como a escolha ótima de Pareto, quando submetidos a exame rigoroso, não são suficientes para sustentar uma análise precisa, ou mesmo satisfatória, acerca de uma teoria da escolha pessoal que leve em conta a intensidade das preferências dos indivíduos acerca daquilo que promoverá a sua felicidade e, portanto, o bem-estar. O utilitarismo tampouco possui estratégias para tratar a questão da desigualdade entre os indivíduos. Seu único recurso para abordar essa questão seria um apelo indireto à alegação de que uma sociedade com grandes desigualdades sociais traria, por esse fato, infelicidade à totalidade dos indivíduos. Por fim, a principal crítica que se desfere contra a teoria utilitarista relaciona-se ao fato de que o utilitarismo colocaria o bem-estar coletivo em patamar superior aos direitos individuais, aceitando a eventual supressão destes para a realização daquele. Com isso, coloca a dimensão material da liberdade, que se realiza por meio do efetivo acesso aos bens que são objeto do desejo e da vontade, em detrimento das dimensões formal e negativa da liberdade, que privilegiam a autonomia das escolhas e o espaço de reserva do indivíduo contra interferências sua dimensão privada. Admitir essa percepção parcial da liberdade seria inaceitável sob um enfoque que busca conferir um lugar destacado à liberdade na teoria da justiça.

Viu-se também que o utilitarismo não é ortodoxo. Possui uma permeabilidade a modificações e cláusulas condicionantes. Tem sido inclusive parte da estratégia de sobrevivência da teoria utilitarista recorrer a tais adaptações. Em virtude da natureza teleológica do raciocínio utilitarista, haverá sempre a preocupação em se encontrar um resultado final que seja o mais adequado às suas pretensões de promoção do bem-estar da sociedade. O recurso a preferências racionais externas

175 poderia ser a solução para os dilemas do utilitarismo, mas ao preço de desfigurar completamente os cânones da própria teoria.

Ao apostar na igualdade, na supressão das necessidades e no fim da exploração entre os homens como bandeira principal de sua teoria da justiça, o marxismo introduz o apelo de que a justiça se realiza por meio de uma sociedade moralmente superior. O reino da liberdade decorre da capacidade do homem de intervir na realidade para modificá-la, construindo a sociedade sem injustiças. E como o fruto das questões ligadas ao problema da justiça reside no modo de produção econômico capitalista, grande parte das estratégias adotadas pela teoria marxista consistirá em constituir as instituições da sociedade de modo a neutralizar as conseqüências desse sistema.

A tradição marxista tem enfrentado diversos dilemas no que tange aos meios de que ela se valeu para promover as metas impostas por sua concepção de justiça. Questiona-se a viabilidade do modelo socialista de produção e em que medida ele apenas substitui a exploração capitalista por outra, levada a efeito pelo próprio

Estado, por meio de sua burocracia. Também a via revolucionária – seja ela capitaneada pelo proletariado, pelo partido socialista, pela juventude estudantil ou pelos excluídos do sistema econômico – mostrou-se historicamente responsável muito mais pela violação a direitos dos indivíduos, com a instauração de regimes ditatoriais em que liberdades individuais e coletivas foram suprimidas, do que pela promoção dos ideais propostos pela tradição marxista.

Assim é o que o marxismo histórico também carece de alterações em seu quadro referencial para se tornar uma teoria consistente e ao mesmo tempo viável do ponto de vista da relação com um sistema de liberdades individuais. Uma das estratégias está ligada ao abandono da teoria tradicional da exploração capitalista pela

176 da extração da mais-valia – a partir da análise do valor-trabalho – para se verificar a existência da exploração a partir das dotações finais de recursos dos indivíduos nas relações sociais, como na teoria analítica de John Roemer. Ao se levar ao extremo o princípio da igualdade de oportunidades e do fim da exploração, essa proposta tende a sacrificar as liberdades individuais já que exige a proibição de doações voluntárias entre as pessoas, banindo por completo toda forma de altruísmo do seio da sociedade.

Desse modo, assim como o utilitarismo, também o marxismo foca a liberdade a partir da perspectiva unidimensional da liberdade positiva, que se realiza pela efetivação do projeto político de emancipação coletiva do homem, mas cujo preço é o aniquilamento da dimensão formal e negativa da liberdade que lhe garantem o exercício soberano da vontade.

Como reação ao utilitarismo e ao marxismo, o libertarianismo concebe que cada um dos indivíduos é soberano e autônomo na capacidade de escolher a melhor forma de realizar o seu bem pessoal e as intervenções do Estado na vida e no patrimônio dos indivíduos, para fins de promoção de algum tipo de melhoria social, são, em verdade, imposições de determinadas concepções de bem sobre outras. E assim, por não contarem com o consentimento das pessoas, não passariam de injustiças perpetradas em razão da posição de supremacia daqueles que detêm o poder.

Para que uma sociedade seja justa e preserve a liberdade de seus membros contra as ofensas dos que têm poder, os libertarianistas sustentam que as instituições devem contar com um forte sistema de direitos que preserve a soberania da vontade nas relações sociais. Direitos individuais e garantias para a propriedade privada atuam como a forma de se promover o livre intercâmbio entre os indivíduos, permitindo-se que as regras de mercado e o sistema de satisfação de necessidades sejam capazes de

177 promover, por meio da oferta e da procura, a distribuição dos bens e serviços na sociedade.

O libertarianismo associa-se ao modo de produção capitalista, já que a liberdade ganha destaque nesse sistema econômico. O sistema de mercado e a meritocracia baseada na utilidade econômica de cada um passam a ser os principais critérios de distribuição dos bens na estrutura libertarianista, pois somente eles são capazes de preservar a autonomia da vontade nas relações sociais.

Com tais posições, o libertarianismo possui o mérito de tomar a sério a questão da liberdade em sua argumentação acerca da justiça para a sociedade, lançando questionamentos para as intervenções não justificadas da coletividade na esfera pessoal dos indivíduos. Suas colocações visam preservar o pluralismo de valores da modernidade em que não há uma fonte central para a qual devem convergir as ações dos indivíduos. O libertarianismo resgata com toda ênfase a dimensão negativa da liberdade, afirmando a impossibilidade de que qualquer outra venha a sobrepujá-la. Nesse ponto, seus argumentos contra o utilitarismo e o marxismo são tão incisivos que essas duas doutrinas serão obrigadas a passar por profundas mudanças, caso se pretendam ainda viáveis na modernidade.

A proposta libertariana de se deixarem as distribuições dos bens e recursos sociais tão somente a cargo do sistema de mercado capitalista tem o condão de comprometer a liberdade defendida por sua própria teoria. Todavia, a estrutura de distribuição de riquezas no sistema capitalista não é capaz de assegurar condições materiais mínimas aos indivíduos, de modo que estes fiquem em posição de exercer sua vontade livre de constrangimentos. Tais constrangimentos são ligados a questões de ordem econômica e se manifestam na submissão a condições e apelos impostos pelos detentores dos meios de produção econômica. Tal grupo social torna-se capaz de

178 fazer valer sua vontade sobre os demais, em função da posição privilegiada na relação de troca que se estabelece no mercado. Assim, no libertarianismo há um apego ferrenho às dimensões formal e negativa da liberdade, com a completa exclusão das demais, o que torna essa teoria da justiça incompleta no que tange à caracterização e à realização da liberdade.

Constata-se, pela análise da teoria libertariana, que a liberdade formal é essencial para a justiça de uma sociedade, mas não suficiente. John Rawls desenvolverá uma teoria da justiça que leve a sério a necessidade de se preservar a liberdade individual, mas que, ao mesmo tempo, estabeleça instituições promotoras de igual acesso às oportunidades e se destinem a melhorar a condição dos mais desfavorecidos da sociedade.

A solidez de seu argumento em favor de uma sociedade liberal, que trata os indivíduos e seus direitos como entidades invioláveis, despertou o debate na teoria política acerca da pertinência desse modelo de sociedade, em especial pela crítica vinda dos autores comunitaristas. Não obstante a validade dos argumentos, as propostas de uma teoria da justiça de matriz comunitarista são incompatíveis com as características da modernidade, uma vez que não dispensam um tratamento privilegiado ao indivíduo e aos seus direitos, em especial o de liberdade, pois colocam o bem da comunidade em posição superior a estes.

O liberalismo-igualitarista de John Rawls apresenta-se como a teoria da justiça que melhor consegue articular as quatro dimensões da liberdade moderna tratadas no primeiro capítulo. Isso porque consegue fornecer parâmetros para a constituição das instituições da sociedade que preservam a individualidade de cada um, permitindo a busca pessoal da felicidade, mas também os coloca em uma relação

179 de cooperação recíproca, voltada à melhoria da condição dos mais desfavorecidos e da redução das desigualdades entre eles.

O liberalismo-igualitarista não se resume nem se restringe à justiça como imparcialidade de John Rawls. Em função da abertura permitida pelos dois distintos pólos da teoria (o liberalismo e o igualitarismo), é possível avançar concepções que coloquem ênfase em qualquer uma das vertentes abertas. Isso faz parte inclusive da própria metodologia do equilíbrio ponderado que exige a submissão dos resultados alcançados pela elaboração teórica a nossos juízos morais.

A partir dessa abertura proporcionada pela teoria de Rawls, Phillippe Van

Parijs entende ser possível a concepção de uma teoria da justiça que efetive a liberdade tomando como referência todas as dimensões assumidas por esse conceito. Assim,

Van Parijs aceitará as premissas do liberalismo-igualitarista de John Rawls, mas avançará em seu conteúdo em direção ao que denomina de “real-libertarianismo” ou

“real-liberdade-para-todos”, a partir de um diálogo fecundo entre as diversas tradições de teorias de justiça expostas. Tal diálogo culminará na proposição de uma renda básica universal, instituição pela qual convergirão os esforços no sentido de realizar as diversas dimensões da liberdade apresentadas.

180 4 A PROPOSTA DE UMA REAL-LIBERDADE-PARA-TODOS

4.1 Questionamentos iniciais

No capítulo anterior, viu-se como as teorias contemporâneas da justiça

privilegiaram as dimensões formal e negativa da liberdade para que a concepção

moderna desse conceito não fosse comprometida. Em virtude do fato do pluralismo de

visões de mundo sobre as concepções de bem, um eventual descaso em relação a essas

duas dimensões da liberdade colocaria em risco a viabilidade de uma teoria prestar-se

a um modelo de justiça adequado ao mundo atual. As objeções feitas ao utilitarismo e

ao marxismo ilustram a assertiva: apontam para o fato de que essas duas teorias, em

seus modelos puros, estariam dispostas a sacrificar determinados conjuntos de

liberdades individuais, em nome da realização de seus respectivos objetivos.

Viu-se que uma compreensão adequada do conceito moderno de liberdade,

dentro de modelos teóricos de justiça, passa pela presença de instituições sociais que

consagrem sistemas de direitos, os quais preservem as características formal e negativa

da liberdade. Ao grande conjunto dessas teorias, pode-se genericamente chamar de

teorias liberais da justiça.

Em linhas gerais, as teorias liberais da justiça são aquelas que sustentam

que nenhuma concepção de ‘vida boa’128 pode ser qualificada como superior às

demais. Não havendo, assim, um bem comum que determine e oriente os indivíduos

no que tange ao modo de realização de sua felicidade. De acordo com as teorias

128 Para a caracterização do que seja a “vida boa” remete-se o leitor ao tópico 3.5.3, em especial à nota 122. 181 liberais, cada indivíduo deve ser livre para perseguir a sua própria concepção de vida boa. Assim, uma sociedade será tanto mais justa quanto mais as suas instituições sociais forem capazes de preservar essa capacidade a seus membros. Não favorecendo, portanto, nenhuma concepção específica de bem que se caracterize pela imposição de certas formas de vida aos seus membros.

Dentre as teorias contemporâneas da justiça, o libertarianismo é aparentemente o mais propício para realizar, de modo pleno, o ideal de uma sociedade liberal. Suas instituições sociais permitem-lhe ter por foco fundamental a defesa dos princípios da propriedade-de-si e da inviolabilidade das manifestações de vontade. No entanto, viu-se que sua íntima ligação com o capitalismo de mercado e a ausência de uma estrutura redistributiva de recursos sociais fazem com que vários aspectos da própria dimensão formal e negativa da liberdade fiquem em posição ameaçada, pois a carência de meios e recursos materiais põe em risco o exercício da vontade individual livre de constrangimentos.

Em resposta ao radicalismo das posições libertarianas, mas sem perder de vista os pilares fundamentais do liberalismo, a proposta liberal-igualitarista de John

Rawls apresentou-se como o compromisso mais fecundo entre liberdade e solidariedade que a teoria política do século XX formulou (VAN PARIJS, 1996). Os princípios definidos pela justiça como imparcialidade estabelecem um sistema de direitos que salvaguarda as dimensões formal e negativa da liberdade, realizando assim a ‘exigência’ da liberdade moderna de que seja garantida, a cada indivíduo, a definição dos rumos de sua própria vida. Contudo, introduz-se também, pelo princípio da diferença, um sistema de distribuição de bens sociais que prioriza a melhoria da sorte dos mais desfavorecidos da sociedade, exigindo-se das instituições sociais que também se voltem para as dimensões positiva e material da liberdade.

182 Enquanto referência para o que se denominou de liberalismo-igualitarista, o

trabalho de John Rawls não se apresenta como uma elaboração acabada e irretocável.

Pelo contrário, sua condição é a de marco inicial, um ponto de partida para as

reflexões ligadas à possibilidade de se articular o respeito à pluralidade das

concepções de mundo e uma preocupação solidária em relação à sorte de todos os

membros que fazem parte da sociedade (VAN PARIJS, 1996). O próprio Rawls e sua

teoria tornam-se objeto de uma investigação mais acurada. Faz-se necessário pesquisar

quais as conseqüências teóricas e práticas de suas proposições que contrariariam juízos

morais ponderados129 acerca delas – o que, aliás, estaria condizente com a própria

metodologia do equilíbrio reflexivo130 proposta por Rawls.

É justamente sobre esse questionamento que se debruça Phillipe Van Parijs.

O foco que orientará toda a sua obra pode ser encontrado na introdução de seu

principal livro chamado Real-freedom-for-all: What (if anything can) justify

capitalism? (1995) (“Real-liberdade-para-todos: O que (se é que algo pode) justificar

o capitalismo?”):

One: Our capitalist societies are replete with unacceptable inequalities. Two: Freedom is of paramount importance. This book is written by someone who strongly holds these two convictions. And it is primarily addressed to those who share them with him. One of its most central tasks, therefore, is to provide a credible response to the libertarian challenge, that is to the claim that these two convictions are mutually exclusive, or that taking freedom seriously requires one to endorse most of the inequalities on today’s world – and more.131 (VAN PARIJS, 1995, p.1)

Van Parijs estabelecerá um diálogo entre as diversas tradições de análise da

teoria da justiça estudadas no capítulo anterior, por meio de uma “atitude de simpatia

129 Para a conceituação de juízos morais ponderados, remete-se o leitor ao tópico 3.5.1, nota 122. 130 Para caracterização do equilíbrio reflexivo, remete-se o leitor ao tópico 3.5.2 131 “Um: Nossas sociedades capitalistas são repletas de desigualdades inaceitáveis. Dois: A liberdade é de fundamental importância. Esse livro é escrito por alguém que firmemente possui essas duas convicções. E é em primeiro lugar endereçado àqueles que as dividem com o autor. Uma das tarefas centrais é, portanto, prover uma resposta confiável ao desafio libertariano, quer dizer à pretensão de que essas duas convicções são mutuamente excludentes, ou que levar a sério a liberdade exige que se reforce a maioria das desigualdades no mundo atual – e algo mais.” (tradução nossa) 183 crítica, que permita o diálogo sem banir as convicções” (VAN PARIJS, 1997, p. 9).

Isso permitirá que se extraia de cada uma delas o seu potencial para melhor realizar as duas convicções acima estabelecidas. Assim, nem mesmo a obra de Rawls estaria imune a uma revisão crítica. Van Parijs afasta-se de John Rawls nos pontos em que a justiça como imparcialidade não é suficiente à implementação de uma liberdade condizente com as convicções lançadas acima. Dois são os pontos cruciais desse questionamento: 1) as aberturas interpretativas proporcionadas pelo princípio da diferença (VAN PARIJS, 2001); 2) a relação entre trabalho e distribuição da liberdade entre todos os membros da sociedade (VAN PARIJS, 1995).

As correções propostas por Van Parijs conduzirão à concepção de justiça por ele denominada de real-liberdade-para-todos ou real-libertarianismo (VAN

PARIJS, 1995). Diferentemente do libertarianismo, essa concepção não se restringe à mera garantia da propriedade-de-si por um sistema de direitos que defina as regras e limites para o exercício da individualidade. Ela exige das instituições sociais, que darão origem ao sistema de direitos e deveres de uma sociedade, a oferta da maior gama possível de oportunidades para que cada um dos indivíduos tenha condições de realizar sua própria concepção de vida boa (VAN PARIJS, 1995). Ou seja, para que cada um tenha a capacidade de realizar sua felicidade do modo como possa querer.

A principal implicação institucional de uma teoria como esta é a atribuição de uma renda básica universal (VAN PARIJS, 1995; VANDERBORGHT; VAN

PARIJS, 2006). Tal renda seria paga a todos os membros da sociedade, sem qualquer discriminação ou condicionamento, como forma de se elevar, ao nível máximo, as possibilidades de desfrute da liberdade, em especial para aqueles que se encontram na condição mais desfavorecida (VAN PARIJS, 1995, 2001b; VANDERBORGHT; VAN

184 PARIJS, 2006). No entanto, por ser uma proposta inovadora, é preciso que se estabeleçam os padrões pelos quais ela seria implementada.

Por meio da exposição do pensamento de Philippe Van Parijs será possível fornecer respostas aos questionamentos levantados no início do trabalho sobre a relação entre a liberdade e a justiça.

4.2 O que é a real-liberdade?

Quando a crítica libertariana questionava o marxismo e o utilitarismo, seus principais argumentos dirigiam-se contra a proposta de liberdade dessas duas teorias.

Diziam os libertarianos que aquilo que justificaria a intervenção na economia e na vida das pessoas para fins de distribuição de recursos sociais não passaria de uma quimera ou, na melhor das hipóteses, de um equívoco. Segundo eles, a questão da liberdade estaria ligada à ausência de coerções no exercício legítimo da vontade individual, ou seja, não poderia haver nenhuma limitação arbitrária no processo de escolha e de realização daquilo que o indivíduo desejasse fazer, compreendendo-se por arbitrário tudo aquilo que não estivesse em conformidade com o sistema de direitos garantidor do exercício da liberdade individual pelos demais membros da sociedade.

A outra liberdade, aquela que se relaciona às dimensões positiva e material da liberdade, não passaria de uma questão ligada à riqueza, ao poder, às habilidades, ou ainda ao conjunto de oportunidades de que alguém dispõe. Assim, o ponto de partida para a caracterização da real-liberdade consiste em apresentar uma solução ao desafio libertariano: mostrar que o conceito libertariano de liberdade é insuficiente

185 para dar conta de toda a significação contida na idéia de liberdade e, por conseguinte,

que não há incompatibilidade entre a preservação da liberdade e a adoção de medidas

que intervenham na economia e na sociedade com o objetivo de distribuir os meios

materiais necessários à realização da liberdade (VAN PARIJS, 1995).

Segundo Van Parijs (1995), é possível sintetizar a caracterização da

liberdade ‘libertariana’ em dois princípios: 1) segurança, entendido como a proteção

da individualidade contra ações arbitrárias e ilegítimas por parte de terceiros; e 2)

propriedade-de-si, segundo o qual a vontade individual deve ser a instância soberana

de definição dos rumos e ações que um indivíduo deseja realizar em sua vida.

O argumento lançado por Van Parijs (1995) para questionar se o conceito

de liberdade proposto pelos libertarianos ainda se sustentaria após um cuidadoso juízo

reflexivo, parte da seguinte análise: quando há um obstáculo que se coloca entre o que

alguém deseja fazer e a efetiva capacidade de realizar tal ato, constituindo-se em uma

incapacidade para tanto132, diz-se necessariamente que o sujeito não é livre para

realizar o ato. Se eu me encontro desempregado e passo por uma situação de escassez

de recursos financeiros para alimentar a mim e a minha família, ao me deparar com

uma oferta de emprego cuja remuneração é irrisória e em condições de trabalho

pesadas, eu não sou livre para decidir. Optar entre a penúria de minha família ou o

emprego degradante que me é oferecido não é de fato uma livre de escolha. Nesse

caso, a ausência de recursos financeiros estabelece-se como obstáculo a minha real

opção de ação.

Desse modo, não é possível restringir, como fazem os libertarianos, o

conceito de liberdade à simples ausência de uma coerção que impeça a realização de

132 Interessante notar que o argumento empregado por Van Parijs (1995) para mostrar a insuficiência da caracterização da liberdade feita pelos libertarianos – e que privilegia as dimensões negativa e formal da liberdade – é justamente o recurso ao conceito hobbesiano de liberdade, de caráter mecanicista e ligado a sua dimensão material, que exige a inexistência de impedimentos à concretização do impulso volitivo. 186 um ato (VAN PARIJS, 1995). Pois, no exemplo dado, mesmo sem que houvesse qualquer coerção restringindo a ação do indivíduo, ainda assim não haveria liberdade para a recusa da oferta.

É possível ainda, e na maioria das vezes é o caso, que o que se constitui como obstáculo impeditivo para a realização daquilo que alguém deseja fazer – e que lhe retira a liberdade – seja uma condição institucional ou uma circunstância contingente, tal como no exemplo dado. Logo, é a própria estrutura institucional libertariana, decorrente da aplicação de seus princípios de justiça, que limita a liberdade, ao invés de realizá-la como propõe (VAN PARIJS, 1995).

Assim, o conceito libertariano de liberdade será sempre incompleto. Ele não reconhecerá como pertinentes diversas situações reais em que se colocam obstáculos efetivamente limitadores da liberdade. Assim, para que a definição de liberdade seja completa e compreenda também as noções intuitivas a ela relacionadas,

é preciso que lhe seja acrescido um terceiro componente.

Van Parijs (1995) vai chamá-lo de oportunidade. As oportunidades definem as possibilidades que o indivíduo tem a sua disposição para realizar as ações que deseja. As oportunidades que uma pessoa tem diante de si para optar entre escolhas desejáveis é uma questão de nível. Quanto maiores forem as possibilidades abertas e menores as restrições ao exercício da liberdade, tanto maior será o conjunto de oportunidades dessa pessoa (VAN PARIJS, 1995).

Assim, a oportunidade pode ser definida como o conjunto de possibilidades abertas ao indivíduo para que possa realizar aquilo que deseja (VAN PARIJS, 1995).

Segundo Van Parijs (1995), esse componente integrará o núcleo da caracterização da real-liberdade. Esta não se caracteriza tão-somente como uma questão de direitos, mas também e principalmente, liga-se a uma questão de meios (VAN PARIJS, 1997).

187 Assim, respeitadas as exigências relativas à preservação da liberdade formal, tal como

definida pelos dois princípios libertarianos da segurança e da propriedade-de-si, a real-

liberdade também levará em conta a dimensão relativa ao conjunto de “means each

person is given for pursuing the realization of her aims, whether by her genetic

endowment or in the course of her life, including in the form of rents associated to the

job she holds.” 133 (VAN PARIJS, 1995b, p.4)

Conseqüentemente, a real-liberdade modificará as exigências para o que se

define por uma sociedade livre. Segundo ela, além dos dois princípios requeridos pela

justiça libertariana, deve-se considerar a capacidade das instituições sociais para

promover a distribuição de ‘possibilidades’ entre os seus membros:

What is then, a free society? It is a society whose members are all really free – or rather, as really free as possible. More precisely, it is a society that satisfies the following three conditions: 1. There is some well enforced structure of rights (security). 2. This structure is such that each person owns herself (self ownership). 3. This structure is such that each person has the greatest possible opportunity to do whatever she might want to do (leximin opportunity).”134 (VAN PARIJS, 1995, p.25)

A explicação dada por Van Parijs (1995) evidencia o modo como a terceira

condição guarda semelhança com a proposta de distribuição dos bens sociais primários

de Rawls segundo o princípio da diferença. Os arranjos institucionais a serem

adotados pela sociedade devem ser aqueles que deixem a pessoa que ocupa a posição

menos vantajosa na sociedade com a maior oportunidade possível. Em seguida, sem

133 “meios que são colocados à disposição de cada pessoa para perseguir a realização de suas metas, sejam os dons herdados geneticamente ou aqueles adquiridos ao longo da vida, incluídos sob a forma das rendas ligadas à ocupação de um emprego.” (tradução nossa) “O que é, então, uma sociedade livre? É uma sociedade cujos membros são todos realmente livres – ou, melhor, tanto mais realmente livres quanto possível. Mais precisamente, é uma sociedade que satisfaz as três seguintes condições: 1. Existe alguma estrutura de direitos bem reforçada (segurança). 2. Essa estrutura é tal que cada pessoa é proprietária de si própria (propriedade-de-si). 3. Essa estrutura é tal que cada pessoa tem as maiores oportunidades possíveis para fazer o que quer que ela possa querer fazer (leximin das oportunidades)” (tradução nossa) 188 que haja qualquer prejuízo para os que se encontram nessa pior situação, os arranjos

institucionais devem elevar ao máximo o conjunto de oportunidades dos que se

encontram na segunda posição logo acima. E, assim, sucessivamente elevando-se, de

baixo para cima, o conjunto de oportunidades das respectivas posições ocupadas pelos

grupos sociais, sem que haja prejuízo para os que se encontram nas posições menos

elevadas (VAN PARIJS, 1995).

Esse modo de se distribuírem as oportunidades entre os membros da

sociedade, requerido pela terceira condição, denomina-se leximin ou maximin léxico.

Maximin é uma expressão oriunda da Teoria Econômica e sugere a elevação ao

máximo da posição menos favorecida ou, em resumo, maximização do mínimo

(RAWLS, 2002). Em sua forma léxica, impõe-se que esse processo obedeça uma

ordem serial da posição menos favorecida em direção à mais favorecida. (RAWLS,

2002)

Para se preencher o esboço desenhado para esse ideal de uma sociedade

livre, é preciso definir como as três condições estabelecidas se relacionariam, já que as

pretensões exigidas por cada uma delas tenderiam a entrar em conflito:

a free society should give a priority to security over self-ownership, and to self- ownership over leximin opportunity. But this priority is of a soft kind. It does not amount to a rigid lexicographic priority. More specifically, mild disturbances of law and order can be tolerated if getting rid of them would require major restrictions of self-ownership or major departures from leximin opportunity.135 (VAN PARIJS, 1995, p.25)

Assim, é possível a completa caracterização de uma sociedade livre e, por

conseguinte, a exposição do real-libertarianismo defendido por Phillippe Van Parijs:

135 “(...) uma sociedade livre deveria dar prioridade à segurança sobre a propriedade-de-si e à propriedade de si sobre o leximin das oportunidades.. Mas essa prioridade é de tipo flexível. Ela não remonta a uma rígida prioridade léxica. Mais especificamente, leves perturbações da lei e da ordem podem ser toleradas se para nos livrarmos delas fossem necessárias grandiosas restrições da propriedade de si ou grandes distanciamentos do leximin das oportunidade.” (tradução nossa) 189

A free society is one in which people’s opportunities are being leximined subject to the protection of their formal freedom, that is, the respect of a structure of rights that incorporates self-ownership. This in turn, I shall further abbreviate by saying that a free society, as characterized by the three conditions and their articulation, is one that leximins real-freedom or, more roughly still, one that realizes real- freedom-for-all (a phrase I shall often use as a convenient shorthand) And I shall call real-libertarian the view that conceives of a just society as a free society in this sense.136 (tradução nossa) (VAN PARIJS, 1995, p.27)

Por tais características, o real-libertarianismo filia-se às concepções de

justiça denominadas de liberal-igualitaristas, na esteira do marco definido inicialmente

por John Rawls. Nesse aspecto, o real-libertarisnimo preocupa-se com o postulado

central das teorias liberais de neutralidade ou de igual respeito às diversas concepções

de mundo professadas por cada um dos cidadãos no que concerne ao modo como

realizaram suas visões particulares de mundo sobre o que significa uma vida boa. No

entanto, ela não descura daquilo que pode ser chamado de uma igual preocupação com

o interesses de todos os membros da sociedade, em especial daqueles que se

encontram em posição mais desfavorecida (VAN PARIJS, 1997). Isto faz dela uma

teoria, solidarista, em oposição às chamadas teorias proprietaristas como é o caso do

libertarianismo137.

136 “Uma sociedade livre é aquela na qual as oportunidades dos indivíduos são ‘leximinizadas’ respeitando-se a proteção de sua liberdade formal, ou seja, a estrutura de direitos que garante a propriedade-de-si. Isto, por sua vez, eu abreviarei dizendo que uma sociedade livre, tal como caracterizado pelas três condições e o modo de articulação entre si, é aquela que leximiniza real-liberdade ou, de modo ainda mais simples, aquela que realiza real-liberdade-para-todos (uma expressão que com freqüência utilizarei como uma conveniente abreviação). E eu chamarei de real-libertariana a posição que concebe que uma sociedade justa é uma sociedade livre nesse sentido.” (tradução nossa) 137 “Uma teoria liberal proprietarista define uma sociedade justa como uma sociedade que não permite a ninguém extorquir de um indivíduo o que lhe é de direito em um sentido predefinido. Para uma teoria liberal solidarista, uma sociedade justa é uma sociedade organizada de tal maneira que não trata seus membros somente com igual respeito, mas também com uma igual solicitude. (...) esta despreza qualquer entitlement prévio, qualquer pretensão pré-social, e se pergunta o que implica uma solicitude igual em relação a todos os membros da sociedade. A justiça aqui consistirá em distribuir de uma certa maneira – é o critério da distribuição – uma variável cuja distribuição interindividual é diretamente importante (não somente a título de indicador ou de fator causal) – o distribuendum. As numerosas variantes do liberalismo solidarista diferem umas das outras pelas escolhas, essencialmente independente uma da outra, do distribuendum e do critério” (VAN PARIJS, 1997, p. 210-212) Assim, caracterizam-se como as teorias solidaristas o utilitarismo, o marxismo e o liberal-igualitarismo, enquanto são proprietaristas as teorias da justiça de matriz libertariana. 190 Contudo, a semelhança e os tributos prestados à justiça como imparcialidade de John Rawls não fazem do real-libertarianismo uma simples repetição ou mesmo um desdobramento daquela. Muitos dos avanços do real- libertarianismo ocorrem por discordâncias à teoria de John Rawls. Em especial, ele dá atenção àqueles pontos em que as conseqüências, sejam elas teóricas ou práticas, de uma observância irrestrita das propostas de Rawls, são incompatíveis com juízos morais ponderados. Logo, é preciso voltar o olhar à justiça como imparcialidade e verificar quais seriam esses pontos que afastam John Rawls do real-libertarianismo na acepção plena do conceito.

4.3 Com Rawls, contra Rawls

Como toda teoria que se expressa sobre as questões mais genéricas acerca de um modelo de justiça para uma sociedade, também a justiça como imparcialidade possui uma abertura interpretativa sobre os princípios que ela estatui como fundamentais para reger as instituições da sociedade. No caso especial da teoria de

Rawls, há um agravante ainda maior no que tange a essa abertura, pois ela busca conciliar dois pólos tradicionalmente opostos na tradição do pensamento político – o liberalismo e o igualitarismo. Isso torna constante o risco de se derivar ora para o lado liberal, ora para o lado igualitário, a interpretação que levará aos desdobramentos teóricos e práticos dos princípios de justiça (VAN PARIJS, 1996).

A vertente liberal, que clama pela primazia dos direitos de liberdade e igualdade formal de acesso a cargos e oportunidades em detrimento da opção por uma

191 maior distribuição de vantagens sócio-econômicas, aparentemente se opõe à vertente

igualitária que, por sua vez, toma partido em favor da melhoria de condições dos mais

desafortunados, pela via de uma constrição amplamente consentida de parcela dessas

liberdades (VAN PARIJS, 1997)

Philippe Van Parijs preocupa-se em extrair do pensamento de Rawls

proposições o quanto mais voltadas às possibilidades abertas pela vertente igualitária.

Somente assim, as bases lançadas por Rawls podem converter-se na possibilidade

utópica (e também real)138 de conservação de um pensamento e de uma prática política

destinados à preocupação com a solidariedade e com o fim das desigualdades injustas

nas atuais sociedades capitalistas.

No presente trabalho, serão apresentadas duas das objeções à teoria da

justiça como imparcialidade abordadas por Van Parijs (1995, 2001) que interessam à

caracterização da real-liberdade-para-todos. A primeira delas (2001) relaciona-se às

interpretações cabíveis ao princípio da diferença de John Rawls. A análise dessa

primeira objeção permitirá a formulação da segunda objeção (1995), ligada à

deficiência contida nas idéias de Rawls ao rejeitar os argumentos em favor de uma

renda básica universal a ser paga a todos os cidadãos de uma sociedade, não vinculada

ao trabalho ou a qualquer outro critério. Tal presunção em favor de uma renda básica

138 Refere-se aqui à caracterização de utopia realizada por Santos (2000): “A utopia é, assim, o realismo desesperado de uma espera que se permite lutar pelo conteúdo da espera, não em geral, mas no exacto lugar e tempo em que se encontra. A esperança não reside, pois, num princípio geral que providencia por um futuro geral. Reside antes na possibilidade de criar campos de experimentação social onde seja possível resistir localmente às evidências da inevitabilidade, promovendo com êxito alternativas que parecem utópicas em todos os tempos e lugares, exceto naqueles em que ocorreram efetivamente.” Esse caráter utópico e ao mesmo tempo real do real-libertarianismo e da Renda Básica Universal é salientado por Phillippe Van Parijs ao descrever como justamente em um país de terceiro mundo sua proposta atingiu o estatuto de Lei: “Brasília, Palácio do Planalto, 8 de janeiro de 2004. Nas paredes da sala, rostos radiantes, de todas as idades e todas as raças, se alternam com o slogan ‘Renda básica para todos’. As câmeras se agitam, os ministros se aprumam, Luiz Inácio Lula da Silva, presidente da República Federativa do Brasil, faz a sua entrada com a esposa e o chefe da Casa Civil. Vinte e dois minutos e dois discursos mais tarde, levanta-se entre aplausos para assinar uma lei que institui um abono universal para todos os brasileiros. É verdade que o texto afirma que começará pelos mais necessitados e que a generalização gradual para toda a população dependerá das condições orçamentárias para a sua realização. Mas ela ilustra, ali mesmo onde menos se espera, o modo como uma proposta até então considerada fantasista pode inspirar e motivar os atores políticos e contribuir para transformar a realidade.” (VANDERBORGHT; VAN PARIJS, 2006, p. 29) 192 universal seria, segundo Van Parijs (1995), condição indispensável para a efetivação

de uma real-liberdade-para-todos.

4.3.1 – Os vários princípios da diferença

Van Parijs ilustra as ambivalências no que concerne à interpretação do

princípio da diferença, a ensejar distintas posturas e práticas políticas dele decorrentes,

a partir de uma metáfora extraída do romance “A Ilha dos Pingüins” de Anatole

France139. Conta a estória que Maël, o líder político e religioso da ilha, convocou todos

os pingüins da Ilha e solicitou de todos contribuições aos fundos públicos, em

proporções equivalentes à riqueza de cada um. Todavia ele foi retorquido por Morio,

um rico fazendeiro, ao argumento de que a exigência do interesse público:

não é pedir muito àqueles que possuem muito; pois, nesse caso, os ricos seriam menos ricos e os pobres mais pobres. Os pobres vivem dos bens dos ricos; é por isso que esse bem é sagrado. Não toquem nele, seria maldade gratuita. Tomando dos ricos, vocês não ganhariam muito, pois eles não são muito numerosos; e vocês se privariam, ao contrário, de todos os recursos, mergulhando o país na miséria (FRANCE, 1907, p.83-84 apud: VAN PARIJS, 1997, p. 80 nota 26)

Essa metáfora revela como o princípio da diferença de Rawls pode tornar-

se um instrumento de perpetuação e legitimação de estruturas injustas de

desigualdades existentes nos tempos atuais. Seu apelo intuitivo reside na atual

conjuntura econômica de mobilidade transnacional do capital e da mão-de-obra, a criar

uma situação de concorrência global. Isso sugeriria cada vez mais “facilidades” para

que os ricos venham a se tornar mais ricos140, em troca de parcas migalhas que

benefícios indiretos e seus reflexos venham a trazer a todo o restante da população.

139 Philippe Van Parijs emprega essa metáfora em mais de uma oportunidade (1995, 1996, 1997, 2001) 140 Tais facilidades podem ser definidas por uma direta atuação do Estado no sentido de reduzir a carga fiscal a recair sobre o capital (incentivos fiscais e redução da carga tributária), como pode decorrer de posturas que 193 Assim, de modo a compreender os diversos e reais alcances do princípio da

diferença, Philippe Van Parijs (2001) inicia a análise de sua aludida ambigüidade a

partir da compreensão literal da formulação do princípio (“social and economic

inequalities are to be arranged so that they are both reasonably expected to be to

everyone’s advantage 141 (RAWLS, 1971, p. 60) (grifos nossos)). O próprio Rawls

observou essa ambigüidade e explicitou-a nas páginas seguintes de Uma teoria da

justiça (2002). O que significaria, portanto, a expressão “vantajosas para todos”, no

contexto de uma justa ordenação e distribuição de vantagens econômicas e sociais,

segundo o critério por ele proposto da igualdade democrática? Rawls (2002) formula

duas distintas acepções para essa expressão:

The first case is that in which the expectations of the least advantaged are indeed maximized (subject, of course, to the mentioned constraints). No changes in the expectations of those better off can improve the situation of those worst off. The best arrangement obtains, what I shall call a perfectly just scheme. The second case is that in which the expectations of all those better of at least contribute to the welfare of the more unfortunate. That is, if their expectations were decreased, the prospects of the least advantaged would likewise fall. Yet the maximum is not yet achieved. Even higher expectations for the more advantaged would raise the expectations of those in the lowest positions. Such a scheme is, I shall say, just throughout, but not the best just arrangement .142 (RAWLS, 1971, p.78-79)

De início Van Parijs (2001) denuncia que, ao possibilitar a consideração de

esquemas totalmente justos (just throughout) para a cooperação social, mas não

perfeitamente justos (perfectly just), a justiça como imparcialidade de Rawls não

tornem atrativas ou propícias a livre atuação do capital, como a flexibilização de direitos trabalhistas ou altas taxas de juros remuneratórias. Cf. Van Parijs (1997). 141 “as desigualdades sociais e econômicas devem ser ordenadas de tal modo que sejam ao mesmo tempo consideradas como vantajosas para todos dentro dos limites do razoável” (tradução da edição brasileira) (RAWLS, 2002 p. 64) 142 “Um primeiro caso é aquele em que as expectativas dos menos favorecidos estão de fato maximizadas (obedecendo, é claro, as restrições mencionadas). Nenhuma mudança nas expectativas daqueles que estão em melhor posição pode, nesse caso melhorar a situação dos menos favorecidos. Dá-se o que chamarei de esquema perfeitamente justo (perfectly just). O segundo caso é aquele em que as expectativas dos mais favorecidos de qualquer forma contribuem para o bem-estar dos menos favorecido. Ou seja, se suas expectativas fossem diminuídas, as perspectivas dos menos favorecidos cairiam da mesma forma. No entanto, ainda não se atingiu o máximo. Expectativas ainda mais elevadas para os mais favorecidos elevariam as expectativas daqueles que estão em posição mais baixa. Afirmarei que tal esquema é totalmente justo (just throughout), mas não a organização mais justa.” (tradução da edição brasileira) (RAWLS, 2002, p.83) 194 empenha todas as suas forças em promover a vocação igualitarista a que se poderia

destinar. Assim, dentro do esquema totalmente justo (just throughout) sempre haverá a

possibilidade de se fazer mais pelos menos afortunados, a menos que se alcance uma

relação entre expectativas dos mais e menos afortunados dominada pelo critério

maximin143. Nesta hipótese, as condições dos desfavorecidos não poderiam ser

elevadas a um nível superior.

Mas essa distinção faz-se sob a suposição de que há uma situação de

entrelaçamento (close-knitness), ou seja, que alterações em qualquer posição de uma

das situações representativas têm o condão de afetar as demais no mesmo sentido,

como define o próprio Rawls (2002):

Assume further that expectations are close-knit: that is, it is impossible to raise or lower the expectation of any representative man without raising or lowering the expectation of every other representative man, especially that of the least advantaged. There is no loose-jointedness, so to speak, in the way expectations hang together. Now with these assumptions there is a sense in which everyone benefits when the difference principle is satisfied. For the representative man who is better off in any two-way comparison gains by the advantages offered him, and the man who is worse off gains from the contribution which these inequalities make 144 pe

No entanto, Van Parijs (2001) observa que o citado critério do

entrelaçamento é uma suposição por demais simplificada para dar conta dos impactos

efetivos que alterações na distribuição de vantagens sócio-econômicas terão nas

respectivas posições dos indivíduos representativos. Aqui, ele chama atenção para o

fato de que podem ocorrer mudanças (para melhor ou para pior) nas expectativas de

143 Não obstante rejeitada pelo próprio Rawls (2002) a identificação de seu princípio da diferença com o critério maximin, a bibliografia secundária sobre sua obra consagrou amplamente este termo como referência a sua proposição de estabelecer a maximização da posição menos elevada como critério justo de distribuição de vantagens sócio-econômicas. 144 “Suponhamos ainda que as expectativas estão intimamente entrelaçadas: ou seja, é impossível elevar ou abaixar a expectativa de qualquer homem representativo sem elevar ou abaixar a expectativa de qualquer outro homem representativo, especialmente a do menos favorecido. Não há pontas soltas, por assim dizer, no modo como as expectativas se entrelaçam. Ora, com essas suposições há um sentido em que todos se beneficiam quando o princípio da diferença é satisfeito. Pois o homem representativo que está em melhores condições em qualquer comparação de mão-dupla ganha pelas vantagens que lhe são oferecidas, e o homem em piores condições ganha por meio das contribuições originadas pelas desigualdades” (tradução da edição brasileira) (RAWLS, 2002, p.85) 195 um grupo sem que necessariamente o outro tenha semelhante destino. Portanto, eventuais mudanças em um grupo podem ser inócuas em relação ao destino do outro grupo.

Sob essa nova situação, Van Parijs identifica (2001) a possibilidade de subsistirem esquemas perfeitamente justos (perfectly just), que se adequariam ao critério de justiça e ao princípio da diferença proposto por Rawls, mas que não promovem uma efetiva melhoria das condições dos mais desfavorecidos.

Com o abandono da condição de entrelaçamento, alterações em uma das posições não afetarão necessariamente as demais no mesmo sentido (VAN PARIJS,

2001). Assim, podem ocorrer esquemas de distribuição que promovam melhorias nas expectativas dos mais favorecidos, mas cujo resultado em relação aos desfavorecidos seja simplesmente a manutenção de sua atual situação. E mais: seria imprescindível empregar tais melhorias em favor dos afortunados, pois as mesmas condicionariam a permanência do estado atual dos desfavorecidos, mantidos no mesmo padrão. Logo, em hipótese contrária às melhorias para os mais ricos verificar-se-ia uma queda no padrão dos mais desfavorecidos. E tudo isso seria justificado dentro dessa versão menos igualitária do princípio da diferença.

O que Van Parijs (2001) busca demonstrar com essa análise é que há uma diferença entre: 1) atribuir-se legitimidade às desigualdades sociais existentes, por meio de verificações realizadas nos atuais esquemas de distribuição de vantagens sócio-econômicas, especialmente de modo a justificar uma conformação dos desfavorecidos em relação à sua sorte – o que é feito pela versão menos igualitarista; e

2) buscar uma coerência no que tange ao modo como se deve estruturar a divisão de vantagens sócio-econômicas de acordo com o recurso ao véu da ignorância, em resgate ao acordo que se faria na posição original.

196 A chave para a compreensão do problema evidenciado por Philippe Van

Parijs (2001) quanto ao princípio da diferença está contida nas formulações do próprio

Rawls acerca do que ele denomina princípio da reciprocidade ou do benefício mútuo:

“it must be reasonable for each relevant representative man defined by this structure,

when he views it as a going concern, to prefer his prospects with the inequality to the

prospects wthout it”145 (RAWLS, 1971, p.64).

Em contraponto a uma possível alegação conformista de que os indivíduos

que atualmente se encontram nas condições mais desfavoráveis deveriam agradecer a

existência desse esquema em que os mais afortunados tornam-se ainda mais

privilegiados, enquanto os desfavorecidos agarram-se ao pouco que têm para não

perdê-lo, ou que, em nome de qualquer pequena melhora em sua atual condição,

justifica-se um enorme abismo entre os que têm mais e os que têm menos, é

importante lembrar a prudente ponderação de Van Parijs (2001):

the difference principle is defined by Rawls in terms of anonymous positions, not in terms of proper names. For it to be satisfied, the worst off must be at least as well off as they would be under any other feasible scheme, but at least as well off as the worse off, whoever they may be, would be under any other feasible scheme.146 (VAN PARIJS, 2001, p.7) (grifos do autor)

O que Van Parijs (2001) afirma é que outros rearranjos no esquema de

distribuição das vantagens sócio-econômicas, inclusive remodelando-se toda a

estrutura, são possíveis. E, para que o princípio da diferença seja satisfeito em sua

versão mais igualitarista, essa estrutura deve aceitar somente desigualdades

145 “Isso significa que cada homem representativo definido por essa estrutura, quando a observa como um empreendimento em curso, deve achar razoável preferir a suas perspectivas com a desigualdade às suas perspectivas sem ela.” (tradução da edição brasileira) (RAWLS, 2002, p.69) 146 “o princípio da diferença é definido por Rawls em termos de posições anônimas, não em termos de nomes próprios. Para que ele seja satisfeito, não é preciso que os mais desfavorecidos estejam, ao menos, tão melhores quanto de fato eles estariam em relação a quaisquer outros esquemas viáveis, mas que, ao menos, eles estejam tão melhores quanto os mais desfavorecidos, quem quer sejam eles, estariam em relação a quaisquer outros esquemas viáveis.” (tradução nossa) 197 justificadas no interior desses esquemas. Por conseguinte, devem ser rejeitadas aquelas desigualdades que não promovam uma redução entre a posição dos mais favorecidos e dos menos desfavorecidos (hipótese de entrelaçamento); ou ainda aquelas justificadas em nome da manutenção da atual situação dos menos favorecidos, em promoção dos mais afortunados (hipótese de ausência de entrelaçamento) (VAN PARIJS, 2001).

Pois, afinal, o que se está a tratar, em última instância, é de um critério para distribuições justas de bens e vantagens, que assim nunca poderiam ser qualificadas se aceita a versão menos igualitária do princípio da diferença ambiguamente sugerida por

Rawls.

O que se está em jogo na argumentação de Phillippe Van Parijs (2001) é a questão relativa à “tensão de comprometimento”, ou seja, como é possível justificar, aos olhos dos menos favorecidos, sua condição desfavorável nos arranjos sociais, de modo a realizar o princípio da reciprocidade ou do benefício mútuo. Satisfazer esse princípio significa que aqueles que se encontram na pior situação reconhecem a legitimidade do arranjo que os coloca na situação mais desfavorável, já que determina uma estrutura social que qualquer um que viesse a ocupar a condição menos favorecida escolheria para a hipótese de nela se encontrar. Não há simplesmente um critério de eficiência, que diz que os que atualmente se encontram na pior situação estariam ainda piores caso se modificasse a atual estrutura, que em nada se refere à aceitação ou à adesão dos menos favorecidos a sua condição. A “tensão de comprometimento” decorre do maior ou menor potencial de um arranjo social em promover a motivação dos menos favorecidos em cumprir os acordos fundamentais por seu reconhecimento como justo:

To start with, if the rules can be recognized to be fair by all because their choice was guided by the ideal of impartiality embodied in the original position and if their implementation can be expected to be fair because of the verifiability of the

198 conditions in terms of which they are formulated, then citizens will generally have no plausible excuse for infringing them, and one can therefore expect them to routinely comply with them, not out to fear for the sanctions, nor as a direct reflection of a commitment to a particular comprehensive moral conception, but out of allegiance to an institution they cannot help recognizing as fair. (...) Moreover, there is a wide range of other ways in which the choice of institutions can affect people’s motivation and behavior in daily life, and the consequences of this influence for the lifelong prospects of the worst off need to be factored in when assessing whether a particular combination of institutions constitutes a just basic structure. For example, legal rules regarding urban planning, health care provision or Trade Union organization may foster, or instead counteract, segregation between age groups or income classes, in such a way that spontaneous solidarity between these categories is discouraged or nurtured, with potentially momentous consequences for the expectations of the worst off. 147 (VAN PARIJS, 2001, p.26)

Em certo sentido, toda discussão do princípio da diferença volta-se a um

“reforço” na espessura do véu da ignorância (VAN PARIJS, 2001). Isso levará, por

conseguinte, a toda uma reelaboração dos acordos conseqüentes, já que os princípios

de justiça, dentre eles o princípio da diferença, são decorrências desse acordo realizado

na posição original148.

Mas esse retorno à posição original não se presta somente a reformular o

princípio da diferença. No entender de Van Parijs (2001), é inclusive a partir dos

efeitos gerados por uma reformulação do princípio da diferença em favor de sua

147 “Para começar, se as regras podem ser reconhecidas como justas por todos porque sua escolha foi guiada por um ideal de imparcialidade incorporado na posição original e espera-se que sua implementação seja justa por conta da possibilidade de se verificar tais condições por meio dos termos pelos quais elas foram formuladas, então os cidadãos geralmente não terão desculpas plausíveis para infringi-las e pode-se, portanto, esperar que eles estejam de acordo com tais regras em no seu dia-a-dia, não por medo de sanções, ou como um reflexo direto de um compromisso com alguma concepção moral abrangente em particular, mas em decorrência de uma aliança com uma instituição que eles não podem deixar de reconhecer como justa. (...) Ainda, há um amplo espectro de outros modos pelo qual a escolha das instituições pode afetar a motivação e o comportamento das pessoas na vida diária e as conseqüências dessa influência na expectativa de vida dos menos favorecidos precisa ser levada em conta se uma particular combinação de instituições constitui uma estrutura básica justa. Por exemplo, regras jurídicas relativas ao planejamento urbano, assistência de saúde ou organização sindical podem fomentar ou, ao invés, reduzir a segregação entre grupos de diferentes faixas etárias ou entre classes com distintos rendimentos, de tal modo que a solidariedade espontânea entre tais categorias é desencorajada ou nutrida, com conseqüências potencialmente enormes para as expectativas dos menos favorecidos” (tradução nossa) 148 Uma vez que na posição original se estabelecem os princípios mais abrangentes que irão reger a estrutura básica da sociedade, incorporar a versão mais igualitária do princípio da diferença, e somente ela, tem por conseqüência impor às instituições sociais, decorrentes desses novos padrões para os princípios de justiça, um novo critério normativo para sua criação e avaliação. Assim, as instituições e arranjos sociais que não satisfizessem essa versão mais igualitária do princípio da diferença não seriam qualificadas de justas e careceriam de uma reformulação ou de mesmo de sua substituição. 199 versão mais igualitária que se poderá considerar a hipótese de uma concepção de

sociedade na qual todos os membros sejam, de fato, o mais livres possível149.

O princípio da maior liberdade a todos encabeça a ordem serial dos

princípios de justiça de Rawls. Segundo o postulado real-libertariano assumido por

Phillipe Van Parijs a liberdade, enquanto capacidade de exercício de uma faculdade,

encontra-se intimamente relacionada aos meios efetivos que o indivíduo possui para

exercê-la. Ser livre para realizar algo não se restringe à simples faculdade abstrata de

deliberação, mas se refere à efetiva oportunidade de escolha entre as opções que se

apresentam diante do indivíduo. Daí se conclui que uma estrutura básica que se

pretende justa somente pode ser construída possibilitando aos que estão em posição

mais desfavorecida, ao menos, as mais amplas oportunidades possíveis. E isso

somente ocorrerá com engajamento e explícita tomada de posição em seu favor (VAN

PARIJS, 1996).

No que concerne às conseqüências institucionais práticas dessa

reformulação do princípio da diferença, a posição real-libertariana advogará, como

requisito de condição para a efetivação da justiça de uma sociedade, a adoção de uma

renda básica universal150, a ser paga pela comunidade política a todos os seus

149 Uma vez que o real-libertarianismo exige como critério para realização da liberdade não somente a consagração de suas dimensões negativa e formal, mas também que se promova o acesso a suas dimensões material e positiva pela elevação, segundo o critério maximin, das oportunidades dos indivíduos, o princípio da diferença passa a ser mecanismo crucial na constituição do sistema plenamente adequado de liberdades sustentado pelo primeiro princípio, pois é por ele que se regem as distribuições de vantagens sociais e econômicas na sociedade. 150 Adotar o princípio da diferença como critério que define a distribuição de vantagens sociais e econômicas na sociedade implica em estabelecer, de algum modo, como as instituições sociais irão promover e elevar, segundo o critério do maximin, o acesso à renda dos menos favorecidos. Em Uma teoria da justiça, Rawls (2002) apontaria duas alternativas: Uma primeira identificaria os menos favorecidos aos trabalhadores não- especializados, tendo por sugestão a elevação da remuneração paga às pessoas que ocupam os empregos menos qualificados, por meio de um sistema de subsídios. A segunda faria referência à implementação de um suplemento de renda, ou de uma renda mínima, cujo valor seria estabelecido no nível máximo que uma sociedade pudesse sustentar. Segundo Van Parijs (2001) somente a segunda proposta estaria em conformidade com a versão mais igualitária do princípio da diferença, porque promoveria a liberdade de todas as pessoas, e não somente dos que trabalham ou estão dispostos a trabalhar, bem como porque não exigiria que o benefício estivesse atrelado a uma visão particular de mundo, identificada com o ethos do trabalho. A questão será aprofundada mais adiante. 200 membros adultos, sem qualquer discriminação ou condicionamento, independente da disposição para trabalhar ou não. Rawls (2003), ao comentar se a justiça como imparcialidade referendaria algo similar, posicionou-se explicitamente contra tal proposta, o que o afastaria, assim, das posições real-libertarianas. Portanto, antes de apresentar em detalhes em que consiste a renda básica, é preciso verificar como tal proposta é possível dentro do marco do liberal-igualitarismo, ainda que em oposição a

Rawls.

4.3.2 – Os surfistas de Malibu

Desde sua formulação inicial, a justiça como imparcialidade foi encarada pelos defensores do real-libertarianismo (VAN PARIJS, 1995) como detentora de um forte potencial para justificar a adoção de uma renda básica universal, seja por força dos critérios utilizados na constituição do princípio da diferença, seja em função da natureza dos bens primários que figuram na lista das vantagens sócio-econômicas a serem distribuídas entre os membros da sociedade.

Em primeiro lugar, e de modo mais óbvio, como o princípio da diferença trata da distribuição de riqueza entre os membros da sociedade, a renda básica universal realizaria tal propósito a todos os membros adultos da sociedade, e não somente uma categoria ou grupo de indivíduos (trabalhadores, deficientes ou excluídos de toda sorte).

Mas, a renda básica universal não se prestaria apenas a esse papel. Caso o princípio da diferença tratasse exclusivamente da mais elevada possível distribuição de renda, sua preocupação primordial seria a de elevar ao máximo as oportunidades de obtenção de renda proveniente de uma fonte de trabalho (VAN PARIJS, 1995). Por

201 essa razão, a social-democracia européia a concebeu o ideal de pleno-emprego,

orientando a constituição do Estado de bem-estar social, pois pressupunha que o modo

mais proveitoso de se elevar a renda de cada um dos membros da sociedade é a

providência de fontes de trabalho a todos os membros (VAN PARIJS, 2001b).

Entretanto, além da riqueza, uma renda de cidadania promoveria também

os poderes e prerrogativas ligados às posições sociais, em especial os dos menos

favorecidos (VAN PARIJS, 1995). Em princípio, ela conferiria maior poder de

barganha em relação a potenciais empregadores e ao Estado mais do que qualquer

outro sistema de transferências direcionadas a beneficiários específicos151. Porque, ao

contar com uma base material segura, os indivíduos não se submeteriam a ofertas de

emprego degradantes ou teriam comprometida sua isenção na tomada de decisões de

natureza política, ao ficarem à mercê de partidos que viessem a se aproveitar de sua

instabilidade econômica (VAN PARIJS, 1995).

Por fim, a renda básica universal teria o potencial de elevar – ou, ao menos,

de não comprometer – as bases sociais do auto-respeito, por ocasião de seu caráter não

discriminatório (VAN PARIJS, 1995). Como a renda básica universal seria paga a

todos os membros da sociedade, isso impediria a formação de indivíduos e grupos

estigmatizados, já que, para poder usufruir do benefício da renda básica, o processo de

avaliação e aprovação não seria humilhante ou embaraçoso aos indivíduos, pois

ausente o caráter assistencial direcionado. Desse modo, haveria uma maior propensão

a se evitar que o indivíduo viesse a se sentir como alguém incapaz, um sujeito que

precisaria da ajuda estatal para sua sobrevivência.

A teoria de Rawls possui uma forte inclinação em favor da instituição de

uma renda básica universal. Isso foi notado não somente pelos defensores da posição

151 Como desempregados com disposição para o trabalho, por exemplo 202 libertariana mas também por outros autores preocupados com a coerência da

interpretação do princípio da diferença. Richard Musgrave (1974 citado por VAN

PARIJS, 1995) fez a Rawls a seguinte colocação:

Implementation of maximin thus lead to a redistributive system that, among individuals with equal earning ability, favors those with a high preference for leisure. It is to the advantage of recluses, saints, and (nonconsulting) scholars who earn but little and hence will not have to contribute greatly to redistribution.”152 (MUSGRAVE, 1974, p. 632 apud VAN PARIJS, 1995, p. 96)

A partir de uma abordagem utilitarista, o que Musgrave desejava sustentar

com tal colocação é que um sistema de tributos deveria ser estabelecido para

promover, de modo eqüitativo, benefícios e tempo-livre em potencial, promovendo-se,

assim, aquilo que compreende como uma adequada caracterização do bem-estar em

potencial (VAN PARIJS, 1995).

Ao ser confrontado com tal objeção, Rawls (2003) argumentou que a

justiça como imparcialidade não se prestaria ao financiamento de pessoas que

possuem plena capacidade para o trabalho, mas que optam pelo lazer ou pelo uso do

tempo livre para realização de atividades não-remuneradas:

Ao elaborarmos a justiça como eqüidade pressupomos que todos os cidadãos são membros normais e plenamente cooperativos da sociedade ao longo de toda a vida. Fazemos isso porque para nós a questão dos termos eqüitativos de cooperação entre os cidadãos assim considerados é fundamental e deve ser examinada primeiro. Esse pressuposto implica que todos querem trabalhar e fazer sua parte na distribuição das responsabilidades da vida social, desde que, é claro, os termos da cooperação sejam vistos como eqüitativos. Mas como esse pressuposto se expressa no princípio de diferença? O índice de bens primários, da maneira como foi discutido até aqui, não faz qualquer menção a trabalho, e os menos favorecidos são aqueles com o índice mais baixo. Será que isso quer dizer que os menos favorecidos são aqueles que vivem da assistência pública e surfam o dia todo em Malibu? (RAWLS, 2003, p. 254)

152 “A implementação do maximin leva, assim, a um sistema redistributivo que, entre indivíduos com capacidades iguais de geração de renda, favorece aqueles com uma forte inclinação para o tempo livre. Ele põe em vantagem os reclusos, os monges e os (não consultores) eruditos que quase nada recebem e, portanto, não terão de contribuir de maneira maciça para a redistribuição”. (tradução nossa) 203 Para solucionar essa questão que, aos seus olhos, parece incompatível com a caracterização da justiça como imparcialidade, Rawls (2003) propôs uma modificação no princípio da diferença: a inclusão do lazer e do trabalho em seu interior:

Podemos tratar essa questão de duas maneiras: uma é pressupor que todos trabalham um dia de trabalho padrão; a outra é incluir no índice de bens primários certa quantidade de horas de lazer, por exemplo, dezesseis horas por dia se o dia de trabalho padrão for de oito. Aqueles que não trabalham têm oito horas extras de lazer e contamos essas oito horas extras como equivalentes ao índice dos menos favorecidos que trabalham um dia padrão. Os surfistas têm de encontrar alguma forma de se sustentar. (RAWLS, 2003, p. 254)

A resposta apresentada por Rawls à objeção levantada por Musgrave – e a conseqüente (sensível) alteração no princípio da diferença – despertou ambigüidades e contradições, seja em relação à coerência geral da justiça como imparcialidade, seja entre essa proposta de modificação do princípio da diferença e a própria conseqüência aduzida por Rawls em sua resposta (VAN PARIJS, 1995, 1997; ARNSPERGER;

VAN PARIJS, 2003).

A primeira dessas objeções (VAN PARIJS, 1997) diz que a versão modificada do princípio da diferença permanece em contradição com o conjunto de postulados lançados pela justiça como imparcialidade. Ao equiparar o trabalho ao lazer, estabelecendo entre eles uma equivalência para que, em seguida, possam ser anulados entre si no processo distributivo, Rawls, não leva em consideração o comprometimento de diversos bens primários, à exceção da riqueza, caso inexistente a renda básica universal. Mencionou-se acima o potencial que a renda básica universal possui para promover os poderes e prerrogativas ligados às posições sociais, bem como as bases sociais do auto-respeito, em especial daqueles que ocupam a posição mais desfavorecida da sociedade. Logo, o contra-argumento de Rawls não sustentaria

204 o arranjo mais capacitado a favorecer os que se encontram nas posições inferiores da

sociedade, contrariando os ideais e princípios contidos na justiça como imparcialidade.

Há ainda uma segunda objeção (ARNSPERGER; VAN PARIJS, 2003),

decorrente de dificuldades conceituais ligadas à definição daquilo a que Rawls quis

referir-se por ‘trabalho’, por sua vez equiparável a ‘lazer’, em seu contra-argumento.

O que seria trabalho? Apenas o trabalho remunerado? Estariam, pois, excluídos desse

critério, os serviços domésticos, o voluntariado e as atividades comunitárias? Por outro

lado, Rawls menciona um ‘trabalho de 8 horas’. Isso levaria a deduzir que o único

aspecto do trabalho levado em consideração seria a sua duração. Assim, todas as

formas de trabalho seriam iguais, não se devendo considerar a intensidade, o nível de

habilidade técnica ou de formação exigido, as condições em que ocorre, etc. Seria

possível nivelar todas as formas de trabalho para fins de sua equiparação com o lazer?

Que critério seria adotado?

Mas há ainda uma objeção final (VAN PARIJS, 1995) que se apresenta

como crucial para definir como imprópria e apressada a resposta dada por Rawls à

objeção lançada por Musgrave. Para ilustrá-la, é preciso recorrer ao exemplo de uma

sociedade hipotética em que a classe dos menos favorecidos é formada por dois tipos

de indivíduos, aqui definidos por “laboriosos” e “preguiçosos”153. Ambos possuem

talentos e aptidões idênticas para o trabalho, mas com disposições de caráter distintas.

Enquanto os ‘laboriosos’ tem por objetivo de vida a obtenção da maior renda possível

para si próprios e lançam-se em busca das maiores e melhores ofertas de trabalho que

lhes possam proporcionar tal remuneração, os ‘preguiçosos’ não se empolgam com

tais perspectivas, preferindo viver da maneira mais pacata e tranqüila possível.

Acresça-se ainda que, no exemplo dessa sociedade hipotética, a utilização de um

153 “Crazy” and “Lazy” na versão original em língua inglesa (VAN PARIJS, 1995) 205 recurso natural disponível torna-se responsável pela considerável elevação de sua

produção econômica e, por sua vez, de sua riqueza total.

Seguindo à risca o contra-argumento de Rawls, somente os ‘laboriosos’ se

beneficiarão do crescimento econômico obtido por essa sociedade, enquanto os

‘preguiçosos’ permanecerão estagnados. Esse seria o resultado da equivalência

abstrata entre lazer e trabalho (VAN PARIJS, 1995). Se, antes, ambos dividiam a

mesma condição de pertencentes à posição social dos mais desfavorecidos, agora

haverá um descompasso entre eles, agravando-se, inclusive, a condição de parcela

dessa classe que já se encontra na pior posição.

Ainda em relação a essa ultima objeção, a proposta de Rawls afrontaria

diretamente o princípio do igual respeito às diversas concepções de bem (VAN

PARIJS, 1995)154. Sob tal esquema, as instituições sociais privilegiariam um

determinado modelo de vida, professado pelos ‘laboriosos’, pelo estímulo decorrente

da obtenção de maiores vantagens e benefícios no processo de distribuição dos bens

oriundos da cooperação social. Ao distribuir incentivos econômicos somente àqueles

que se realizam pessoalmente por meio do acréscimo de riqueza proveniente do

trabalho, a sociedade estaria fazendo uma clara opção por um tipo de vida –

conseqüentemente pela realização de uma forma específica de bem – em detrimento de

outras possíveis155.

154 A constituição dos gostos e talentos das pessoas é algo arbitrário e fortuito. Decorre de questões individuais e coletivas que não estão ao alcance de sua escolha. São justamente esses gostos e talentos, bem como as condições culturais diversas que dão origem às inúmeras concepções particulares de bem professadas pelos indivíduos. O princípio liberal da neutralidade sustenta que não há superioridade entre elas. Aplicado à estrutura básica da sociedade, tal princípio determina que os arranjos institucionais não privilegiem nenhuma dessas concepções particulares de bem. Para tanto, tais arranjos não podem vincular benefícios a indivíduos que possuam determinados modos de ser e agir decorrentes de seus gostos e talentos. Isso significaria tornar mérito algo que é arbitrário (RAWLS, 2002). Assim, quando a estrutura institucional distribui riqueza proveniente de recursos naturais somente aos laboriosos, ela vincula um benefício a uma peculiar forma de vida (VAN PARIJS, 1995). 155 Ao contrário do que se poderia argumentar, com o exemplo dado, o real-libertarianismo não afirma que os arranjos institucionais devem ser tais que laboriosos e preguiçosos comunguem das mesmas somas totais de renda e outras condições materiais, pois isso significaria desrespeitar o princípio da neutralidade em favor dos preguiçosos (VAN PARIJS, 1995). O que o real-libertarianismo propõe, por meio da renda básica, é que ambos 206 Os questionamentos levantados mostram que a teoria de Rawls nem sempre

seria condizente com a posição real-libertariana. Em diversos pontos, ela falha ou é

insuficiente para realizar a proposta de se elevar, segundo o critério maximin, as

oportunidades de os indivíduos levarem sua vida do modo que quiserem. Segundo Van

Parijs (1995, 1997, 2001b), a instituição de uma renda básica universal teria grande

potencial para cumprir essa tarefa. É preciso, pois, compreender em que, de fato,

consiste essa proposta e como ela se efetivaria, seus fundamentos, qual a sua relação

com outros esquemas de distribuição de bens sociais existentes – e sua a superioridade

em relação aos demais.

4.4 Uma proposta audaciosa

Viu-se que, de um ponto de vista real-libertariano, a realização da liberdade

em uma sociedade não se restringe à garantia das dimensões negativa e formal da

liberdade, pela efetivação dos princípios da segurança e da propriedade-de-si. É

preciso também que proporcione a maior oferta possível, segundo o critério leximin,

do conjunto de oportunidades que cada membro dispõe para conduzir sua vida como

bem entender.

Desse modo, o foco das instituições sociais a serem elaboradas segundo o

modelo de justiça real-libertariano deverá recair sobre os meios capazes de garantir

aos indivíduos que sejam o mais livres possível para decidirem sobre o modo como

tenham iguais condições de oportunidades para professar o seu respectivo modo de vida. Assim, se laboriosos encontram sua felicidade no acúmulo de patrimônio por meio do trabalho, é certo que eles merecem desfrutar de uma riqueza maior do que os preguiçosos. Mas isso não pode implicar que os arranjos institucionais deixem os preguiçosos em total desamparo para professarem seu próprio modo de vida. 207 irão conduzir suas respectivas vidas. E a questão dos meios liga-se diretamente à

questão da riqueza ou do poder aquisitivo, pois é o amparo de uma base material

sólida que lhes possibilita tomar decisões livres de constrangimentos.

Assim, a real-liberdade-para-todos implicará a necessidade de um

mecanismo institucional de distribuição de uma renda que proporcione a todos os

membros da sociedade uma base material que lhes permita adotar a vida que melhor

lhes convier (VAN PARIJS, 1995). No entanto, a idéia de uma renda de cidadania não

é nova156. É proposta por diversos pensadores e implementada por certas comunidades

políticas, sob diferentes modelos, nos últimos duzentos anos. Logo, é preciso verificar

qual dentre as versões seria mais condizente com a proposta real-libertariana, ou seja,

qual delas possui o potencial para elevar o conjunto de oportunidades das pessoas

segundo o critério leximin. Esse será o critério adotado por Van Parijs (1995) para

definir suas posições acerca da configuração mais adequada para a renda básica

universal.

Para se iniciar a caracterização da renda básica universal, é preciso recorrer

à definição dada pelo próprio Van Parijs (2001b) à sua proposta:

By universal basic income (UBI) I mean an income paid by a government, at a uniform level and at regular intervals, to each adult member of society. The grant is paid, and its level is fixed irrespective of whether the person is rich or poor, lives alone or with others, is willing to work or not. In most versions – certainly in mine – it is granted not only to citizens, but to all permanent residents. The UBI is called ‘basic’ because it is something on which a person can safely count, a material foundation on which a life can firmly rest. Any other income – whether in cash or kind, from work or savings, from the market or the state – can lawfully be added to it. On the other hand, nothing in the definition of UBI, as it is here understood, connects it to some notion of ‘basic needs’. A UBI, as defined, can fall short of or exceed what is regarded as necessary to a decent existence. 157 (VAN PARIJS, 2001b, p. 5-6)

156 Sobre um histórico da idéia de se atribuir uma renda universal aos membros da sociedade, bem como do embrião das propostas de renda básica universal, veja-se Vanderborght e Van Parijs (2006) e Suplicy (2002, 2006) 157“Chamo de renda básica universal (RBU) uma renda paga por uma entidade política, em um nível padronizado e em intervalos regulares, para cada membro adulto da sociedade. A quantia é paga, e seu valor é fixado, independentemente do fato de a pessoa ser rica ou pobre, viver sozinho ou com outras, estar disposta a 208

Da definição apresentada é possível extrair quais são as principais

características que podem ser atribuídas à renda básica universal. Em primeiro lugar,

ela não se vincula à condição de o indivíduo estar disposto a aceitar um emprego ou

qualquer outra forma de trabalho158. Tampouco se vincula à condição material atual da

pessoa, pois tanto ricos como pobres têm direito a ela159. Em terceiro lugar, não existe

nenhum fator condicionante da renda, seja ele ligado à constituição do grupo familiar

em que o indivíduo se insere ou à região do país na qual ele reside. São essas

características da renda básica universal que conferem a ela o caráter de incondicional

(VANDERBORGHT, VAN PARIJS, 2006).

Isso significa que os destinatários não necessitam submeter-se a um teste de

aptidão (means test) para ter direito ao recebimento do benefício (VAN PARIJS, 1995;

2001b). A incondicionalidade da renda básica atribui-lhe maior potencial de realização

do princípio liberal de igual respeito às diversas concepções de bem que as pessoas

trabalhar ou não. Em muitas versões – certamente na minha – ela é garantida não somente aos cidadãos, mas a todos aqueles que possuem residência permanente. A RBU é chamada de básica por ser algo com o que a pessoa pode seguramente contar, uma base material em que uma vida pode se assentar de modo firme. Qualquer outra renda – seja em dinheiro ou in natura, oriunda do trabalho ou de poupança, do mercado ou do Estado – pode ser legitimamente acrescida a ela. Desse modo, nada na definição da RBU, tal como aqui compreendida, a relaciona a alguma espécie de ‘necessidades básicas’. A RBU, tal como definida, pode ficar ou pouco aquém ou exceder aquilo que se considera como necessário para uma vida decente.” (tradução nossa) 158 Quanto a esse aspecto, a renda básica universal se distingue dos programas sociais de auxílio-desemprego, próprios do conjunto de medidas assistenciais elaboradas sob a influência do Estado de Bem-Estar Social. Tais programas exigem do destinatário do benefício o preenchimento de requisitos condicionantes para o recebimento da verba. Via de regra, esses requisitos são: ter ocupado emprego ofertado no mercado formal de trabalho; ter disponibilidade para aceitar uma ocupação caso proporcionada pela agência estatal que controla o pagamento dos benefícios; ter disponibilidade para participar de programas de treinamento e reciclagem profissional; não receber qualquer outro tipo de renda proveniente ou de fontes de trabalho informal ou de outros benefícios previdenciários. O instituto brasileiro de proteção ao emprego que se enquadra nesse modelo é o seguro- desemprego, (art. 7º, inc. II da CF/88; Lei 7.998/90 e alterações). 159 A opção por não discriminar entre ricos e pobres o direito à renda básica universal, ao invés da adoção de programas direcionados a públicos-alvo (target efficiency) carentes de políticas sociais é realizada para evitar-se a segregação da sociedade em grupos considerados inferiores, acarretando-lhes, conseqüentemente, estigma, vergonha ou humilhação (VANDERBORGHT; VAN PARIJS, 2006; SUPLICY, 2006). Nesse sentido a renda básica universal se distingue da renda mínima. O objetivo daquela é distribuir a todos os membros da sociedade, segundo o critério maximin, um dividendo a que cada indivíduo tem direito, de modo a poderem conduzir sua vida como bem entendem, ou, em resumo, que lhes atribuam um status de cidadão. Já a denominada renda mínima tem por objetivo a elevação dos indivíduos mais depauperados de uma sociedade a uma condição acima do mínimo da pobreza (poverty gap) (VANDERBORGHT; VAN PARIJS, 2006). 209 podem professar, já que ela não exigiria, dos membros da sociedade, nenhum

comportamento ou dever de prestar informações atrelados ao recebimento do

benefício160. Um teste de aptidão, ou mesmo a exigência de requisitos para o

recebimento da renda básica universal, implicaria a realização de diferenciações entre

indivíduos com diferentes necessidades, mas:

there is no positive reason for differentiation consistent with a real-libertarian standpoint. It may, of course be the case that what one needs when living alone far exceeds what one needs when living in a commune, ot that one needs when living in a capital city far exceed what one needs when living in a remote hamlet But from a real-libertarian standpoint, this is irrelevant. What a real-libertarian is concerned to leximin, remember, is not the real freedom to get what person happens to want, or what she needs in order to maintain her way of life. It is the real freedom to do what she might want to do. It is therefore enough to assume – innocuously enough – that someone living in a commune might wish to live alone, or that dwellers of the countryside might want to settle in the city, for a uniform, undiscriminating basic income to be the obvious choice. 161 (grifos do autor) (VAN PARIJS, 1995, p. 37-38)

Ao se definir a proposta de uma renda básica universal, certas

conseqüências práticas surgem de imediato, como, por exemplo, a adoção de um

critério para se definir o valor monetário dessa renda. Viu-se que a premissa inicial em

que a renda básica se assenta requer sua capacidade em promover, segundo o critério

leximin, a maior real-liberdade possível dos membros de uma sociedade. Viu-se

também que os arranjos institucionais que levarão à renda básica devem respeitar as

dimensões formal e negativa da liberdade, ou seja, a comunidade política não pode

160 Remete-se aqui ao argumento dos laboriosos e dos preguiçosos utilizado por Van Parijs (1995) para justificar a superioridade da renda básica universal sobre o sistema subsídios à remuneração do trabalho formal. Do mesmo modo como no exemplo apresentado distribuir a riqueza da sociedade somente entre os que optam por um emprego formal e remunerado significa empenhar as instituições sociais para realizar um particular modo de vida, definir requisitos como a situação familiar ou a localização geográfica da residência como condição para o pagamento do benefício implica em eleger certas formas de vida como superiores a outras. 161“não há razão favorável para diferenciações consistentes com o ponto-de-vista real-libertariano. Pode ser, é claro, o caso de que o que alguém necessita quando vive sozinho exceda em muito o que alguém necessita quando vive em comunidade, ou que o que alguém necessita quando vive em uma grande cidade excede em muito o que alguém necessita quando vive numa aldeia remota. Mas de um ponto de vista real-libertariano, isso é irrelevante. Lembre-se que o que um real-libertariano está preocupado em elevar, segundo o critério leximin, não é a real-liberdade de obter aquilo que uma pessoa vem a desejar, ou o que ela necessita a fim de manter seu padrão de vida. É sim a real-liberdade de fazer que ela poderia querer fazer. Isso é, portanto, suficiente para se assumir – de maneira inócua suficiente – que alguém que viva em uma comunidade possa desejar viver sozinho,ou que moradores do interior possam querer se estabelecer na cidade grande, pelo que uma renda básica uniforme e indiscriminada é a melhor opção” (tradução nossa) 210 ultrajar os direitos individuais ligados à segurança e à propriedade-de-si para arrecadar

os fundos da renda162.

Assim, um critério que se apresenta como apropriado para proporcionar

uma primeira abordagem à questão do valor da renda básica é o critério da

sustentabilidade (VAN PARIJS, 1995; VANDERBORGHT; VAN PARIJS, 2006).

Por tal critério, a definição do valor monetário da renda passa por uma análise do

potencial sócio-econômico de cada sociedade, de maneira a evitar que a sua efetivação

leve a um colapso, atual ou futuro, de suas instituições econômicas e sociais:

this idea [de uma renda básica universal] would then offer a simple criterion for the real-libertarian evaluation of competing socio-economic regimes, that is, of the aspects of a society’s institutional set-up that regulates the production and distribution of material resources. For any given society, formal-freedom-respecting socio-economic regimes could then simply be ranked according to the level of basic income they would sustainably provide. Sustainability is obviously an essential consideration. If we are concerned with the real freedom of all, it is clearly inadmissible to give away society’s wealth now, in the form of a lavish basic income, at the expense of economic collapse tomorrow 163 (VAN PARIJS, 1995, p. 38) (grifos do autor)

Para evitar um colapso sócio-econômico ou mesmo uma redução drástica

de seu valor, é preciso que o financiamento da renda universal seja realizado por

arranjos institucionais que não se deteriorarem ao longo do tempo, isto é, que não

proporcionem uma drástica alteração na estrutura sócio-econômica da sociedade, tais

como a oferta de trabalho, o sistema de intercâmbios e trocas, o nível de poupança, dos

fundos e investimentos (VAN PARIJS, 1995). Nesse aspecto, a arrecadação pela via

162 Exclui-se, assim, que a fonte de custeio da renda básica universal não implique em transferências de recursos oriundas de confisco direto ou tomada de propriedade dos indivíduos (VAN PARIJS, 1995). 163“essa idéia [de uma renda básica universal] ofereceria então um critério simples para uma avaliação real- libertariana dos regimes sócio-econômicos em competição, isto é, dos aspectos de um arranjo institucional que regula a produção e distribuição dos recursos materiais. Para uma dada sociedade, respeitada a liberdade formal, os regimes sócio-econômicos poderiam ser simplesmente listados de acordo como o valor da renda básica que eles podem, de modo sustentável, prover. A sustentabilidade é, obviamente, de essencial consideração. Se nós estamos preocupados com a real liberdade de todos, é claramente inadmissível gastar a riqueza de uma sociedade agora, sob a forma de uma pródiga renda básica, ao custo do colapso econômico de amanhã” (tradução nossa) 211 tributária164 apresenta-se como a mais adequada e ganha uma posição de destaque na

operacionalização da renda universal:

for any given type of socio-economic regime, one should select the structure of (explicit and implicit taxation that can durably generate the highest yield, and that the tax rates should be pitched at a level corresponding to the peak of the associated ‘Laffer hyperplane’, that is to the highest tax yield that can be durably generated under this type of regime. This suggestion takes for granted that, once appropriate deductions are made for the sake of formal freedom, a higher tax yields necessarily means a higher basic income.165 (VAN PARIJS, 1995, p. 38-39)

Contudo, a especificação do valor da renda dependerá de nuances sócio-

econômicas próprias de cada sociedade em consideração. Não há um valor a priori

que seja responsável por concretizar a renda básica, uma vez que ela não se atrela a

nenhuma noção de ‘necessidades básicas’ (VAN PARIJS, 2001b). É em função da

estrutura e dos níveis de eficiência na arrecadação de seu sistema tributário que cada

sociedade determinará aquilo que pode distribuir a seus membros166 para que eles

164 Suplicy (2006) ilustra como, ao contrário do que se poderia pensar, o aporte de recursos para o financiamento da renda básica de universal é perfeitamente viável em nossa atual estrutura orçamentária, a partir das fontes de arrecadação do programa Bolsa Família em comparação com outros gastos efetuados pelo governo federal no mesmo período: “Para pagar o benefício do Bolsa Família, que em novembro de 2005 era da ordem de R$ 64,00 por família, o governo definiu no Orçamento da União um montante equivalente a aproximadamente R$ 64 vezes 12 meses, vezes 11,2 milhões de famílias em 2006, pressupondo que o valor do benefício não seja aumentado. Essa soma, se incluir os custos administrativos, será próxima de R$ 9 bilhões. Entre outras fontes de recursos orçamentários para fazer frente a essa finalidade, o governo dispõe de parte da receita da Contribuição Provisória sobre Movimentações Financeiras. Ou seja, da alíquota de 0,38% sobre cada movimentação financeira, apenas 0,08% são destinados ao Fundo de Combate à Pobreza. Os 0,30% restantes são destinados à Saúde. Não se trata de um valor tão excepcional quando se examina a sua finalidade e comparado a outros itens do orçamento. Para pagar os juros da dívida pública, por exemplo, somados os três níveis de governo da União, dos estados e dos municípios nos anos de 2003, 2004, e 2005 foram gastos, respectivamente, R$ 145,2 bilhões, R$ 128,2 bilhões e R$ 157,1 bilhões, segundo o Boletim do Banco Central” (SUPLICY, 2006, p.18-19)” 165 “(...), para um dado tipo de regime sócio-econômico, deve-se selecionar a estrutura de tributação (explícita ou implícita) que pode gerar de modo duradouro a maior arrecadação, e que as alíquotas dos impostos deveriam ser elevadas ao nível correspondente o pico da ‘Curva de Laffer’ relacionada, isto é, à maior arrecadação tributária que pode ser duradouramente gerada sob esse tipo de regime. Essa sugestão faz com que, uma vez feitas as deduções devidas por conta da liberdade formal, uma maior arrecadação tributária significa necessariamente uma maior renda básica.” (tradução nossa) A curva de Laffer define o valor máximo em que um tributo pode ser fixado para que ele continue a ser pago, pois acima desse valor os contribuintes passam a optar pela sonegação (LIMA; CRAVEIRO, 2003) 166 Para ilustrar a variação do montante da Renda Básica em diferentes condições sócio-econômicas da comunidade política que a custeia, é interessante comparar o que Suplicy (2006) sugere como valor inicial que o Brasil adote para a Renda Básica Universal (denominada Renda Básica de Cidadania), R$ 40,00 (quarenta reais) mensais, com os valores que o Estado norte-americano do Alasca efetivamente pagou (SUPLICY, 2006) a seus 212 tenham o seu conjunto de oportunidades, isto é, sua real-liberdade, elevado segundo o

critério leximin.

Outra questão prática relaciona-se ao meio de pagamento da renda, se em

dinheiro ou em produtos (VAN PARIJS, 1995). Pois se pode argumentar que uma

proposta preocupada com a efetiva real-liberdade das pessoas deveria prover os

indivíduos seja com os meios necessários à produção de sua própria renda, seja com

produtos que garantam que essa renda não seja desviada para fins que não realizem os

propósitos de promover o critério leximin ao conjunto de oportunidades das pessoas.

Com relação ao primeiro argumento, em favor do pagamento da renda pela

distribuição dos meios de produção segundo o critério leximin, tem-se a objeção de

que a dotação de meios de produção limitaria o total de real-liberdade a ser desfrutado

pelos indivíduos (VAN PARIJS, 1995), pois: 1) os meios de produção não têm a

possibilidade de uma imediata conversão em produtos que se deseja ou necessita,

reduzindo, assim, em muito, o espectro de ações que cada indivíduo poderia realizar

com sua renda; 2) as pessoas não possuem a mesma disposição e capacidade

produtiva, sendo muito difícil realizar uma distribuição que seja perfeitamente

adequada às aptidões e habilidades de cada um aos seus respectivos meios de

produção. Disponibilizar um meio comum a todos, como a terra ou um maquinário,

por exemplo, ainda traria um conseqüente desperdício em relação àquilo que as

pessoas poderiam fazer com sua renda.

Também aqui a objeção relativa à ofensa ao princípio de igual respeito às

diversas concepções de vida entra em cena para afastar a proposta de se realizar o

membros por meio da experiência do dividendo social, oscilantes entre US$ 300,00 (trezentos dólares americanos) anuais no início dos anos 1980, US$ 1.963, 86 (um mil novecentos e sessenta e três dólares americanos e oitenta e seis centavos) anuais, quando o valor atingiu seu valor máximo em 2000 e a atual quantia de US$ 1.000,00 (mil dólares americanos) anuais. Ressalta-se que o Alasca é um país com baixa densidade demográfica e detentor de recursos naturais geradores de muita riqueza como a pesca e o petróleo, o que justificaria montantes mais elevados para o valor per capita da Renda Básica. 213 pagamento da renda básica através de meios de produção, uma vez que a efetivação da

renda básica sob tal esquema pressuporia que as pessoas realizariam suas concepções

de felicidade e vida boa exclusivamente através do trabalho manual, excluindo as

demais formas de trabalho existentes, como o intelectual ou o artístico.

Ao segundo argumento, sobre a possibilidade do pagamento da renda

básica sob a forma de cupons ou títulos que dariam direito a benefícios in natura167,

necessários à manutenção dos patamares de sobrevivência, tem-se a questionar em que

medida seu potencial em aumentar a real-liberdade das pessoas não é mais limitado do

que o pagamento em dinheiro (VAN PARIJS, 1995; VANDERBORGHT; VAN

PARIJS, 2006). Afinal, o propósito da real-liberdade-para-todos é promover, segundo

o critério leximin, o maior conjunto de oportunidades de cada um para realizar aquilo

que deseja fazer e não apenas distribuir riqueza ou um padrão de bem-estar. E nesse

sentido, a fungibilidade do dinheiro permite a ampliação das possibilidades colocadas

à disposição dos indivíduos. No entanto, não haveria incompatibilidade entre o

pagamento de parte da renda em dinheiro e outra parte in natura (VAN PARIJS,

1995). Pois é possível conceber que um complemento do benefício seja

disponibilizado em cupons ou ‘vales’ dessa natureza, ou até mesmo sob a forma de

prestação de serviços de assistência social, educação e saúde, tal como instituído pelo

Estado de Bem-Estar Social, desde que, sob essa modalidade, não haja redução no

montante da renda pago em dinheiro.

A terceira conseqüência prática a ser considerada sobre o modo de

implementação da renda básica refere-se à questão de como o pagamento deveria ser

realizado: todo o valor em uma única oportunidade ou o estabelecimento de

pagamentos regulares com certos intervalos de tempo. Algumas formulações históricas

167 Suplicy (2006) mostra como, no Brasil, programas sociais dessa natureza como o Auxílio-gás e o Cartão Alimentação encontram-se na origem das discussões sobre programas de Renda Mínima no Brasil e, posteriormente, deram origem ao Bolsa Família, o mais abrangente deles já vivenciado no país. 214 da idéia de renda básica, como a de Thomas Paine (VAN PARIJS, 1995), sugerem o

pagamento de um valor único a ser atribuído a cada uma das pessoas ao atingirem a

idade de vinte e um anos. Segundo mostram Vanderborght e Van Parijs (2006), esse

modelo ainda é defendido por alguns dos pensadores contemporâneos que tratam da

questão, como Bruce Ackerman e Anne Alstott.

Uma vez que a renda básica propõe elevar ao máximo a oferta de liberdade

dos membros da sociedade, haveria um apelo intuitivo em favor de que o valor fosse

disponibilizado integralmente para os indivíduos assim que eles atingissem a

maioridade. Afinal, determinados projetos de vida somente se concretizariam por meio

do emprego de uma soma significativa de dinheiro.

No entanto, nos termos do real-libertarianismo, rejeita-se essa modalidade

de pagamento, dando-se preferência à utilização de pagamentos regulares em

periódicos intervalos de tempo. Os argumentos que endossam esse ponto de vista estão

ligados à possibilidade de um uso pródigo e inconseqüente do montante da renda, o

que eliminaria todo o seu propósito168:

What matters here is that no one should at any time be so poor as to be forced to steal, and regular installments are therefore the obvious choice. Similarly, if the introduction of a minimum income is motivated by the feeling that destitution and the display of destitution jeopardize human dignity or moral worth, the payment of a given overall level of income should be spread as thinly as is practical over people’s whole lifetimes.169 (VAN PARIJS, 1995, p. 46)

168 Um argumento de tipo libertarianista certamente não endossaria tal posicionamento, pois, segundo tal corrente, o Estado não poderia interferir nos atos de vontade das pessoas relativos a seu patrimônio, já que importa a preservação da liberdade negativa e a liberdade formal. Todavia, esse não é o caso do real- libertarianismo, pois o que realiza a liberdade é a existência do maior conjunto possível de oportunidades disponível ao indivíduo ao longo de toda a sua vida, o que certamente seria colocado em risco na hipótese de se adotar o pagamento único, justificando-se, assim, a adoção da medida levemente paternalista de se restringir o pagamento a intervalos regulares (VAN PARIJS, 1995). 169 “O que importa aqui é que ninguém nunca deva ficar tão pobre de tal maneira que seja obrigado a roubar, e pagamentos regulares são, portanto, a escolha mais óbvia. De modo semelhante, se a introdução de uma renda mínima é motivada pelo sentimento que a falta de posses ou a possibilidade que elas venham a faltar coloca em risco a dignidade humana ou o valor moral, o pagamento de um dado valor total de renda deveria se pulverizar do modo menos intenso possível, de modo a que ela seja prática por toda a vida das pessoas.” (tradução nossa) 215 Não somente um uso indevido da renda, mas também o fato de que as

pessoas podem mudar radicalmente a sua personalidade, seus objetivos e sua

identidade ao longo de uma vida, levam o real-libertarianismo a optar pela

implementação de pagamentos que ocorram regularmente durante o curso de toda a

vida. Pois o que se visa resguardar é a garantia de uma real-liberdade em todas as

‘fases’ que um indivíduo possa ter em sua vida, seja enquanto jovem ou adulto: de

caráter empreendedor altivo e ousado, de ‘mochila nas costas’ em uma viagem à la

Guevara ou poupando cada centavo para proporcionar conforto a sua família170.

Assim, o real-libertarianismo endossa uma perspectiva levemente

paternalista de se proibir que os indivíduos tenham acesso ao montante total de renda

básica a que teriam direito, restringindo-a a pagamentos regulares, sejam eles mensais,

trimestrais ou anuais, conforme um critério arbitrário que se deseje adotar171.

Desse modo, Phillippe Van Parijs – e sua proposta real-libertariana de

teoria da justiça – sustenta como seria possível proporcionar, segundo um critério

leximin, a maior liberdade possível aos indivíduos de uma sociedade172. Enquanto

decorrência da efetivação de uma proposta de justiça, a renda básica universal acaba

por proporcionar aos membros de uma sociedade, a maior liberdade possível, fazendo

dela uma sociedade livre (ou o mais livre possível).

170 Outra objeção comumente levantada contra o pagamento em intervalos regulares está ligada a uma eventual desigualdade de tratamento, decorrente do fato de que pessoas receberiam valores totais de renda básica diferentes ao fim de sua vida, em função da idade em que falecem. Para rebatê-la, é preciso recordar que a finalidade da renda básica não é promover uma igualdade de resultados (outcomes) materiais daquilo que os indivíduos recebem, mas sim que, enquanto vivos, todos possuam o mesmo conjunto de oportunidades (opportunity-set) para realizarem aquilo que possam vir a desejar (VAN PARIJS, 1995). 171 Vanderborght e Van Parijs (2006) sugerem o critério do pagamento mensal, em que são acompanhados por Suplicy (2006). Como mencionado, o pagamento do dividendo realizado pelo Estado do Alasca é anual (SUPLICY, 2006). 172 O presente trabalho fez uma clara opção por não discutir e enfrentar os argumentos relativos à viabilidade econômica da implementação efetiva renda básica universal, principalmente nos países em desenvolvimento como é o caso do Brasil, em especial no que concerne aos impactos no PNB, no mercado de trabalho e no planejamento fiscal e orçamentário das sociedades, pois isso implicaria um acentuado desvio do objeto da presente pesquisa. Tais argumentos podem, no entanto, ser encontrados em Van Parijs (1993, 1995, 1997, 2001b); Vanderborght e Van Parijs (2006); Suplicy (2002, 2006). 216 4.4.1 – A Renda Básica Universal no Brasil

A renda básica universal não é apenas um critério sustentado por teóricos e acadêmicos para solucionar de modo mais adequado a relação entre justiça e liberdade. Ao longo dos últimos duzentos anos ela foi também, testada e experimentada em diferentes modelos que variaram conforme as situações históricas concretas (VANDERBORGHT; VAN PARIJS, 2006). Após a Constituição de 1998, também o Brasil passou a contar com uma forte propensão para que a renda básica universal fosse implementada em nosso país. O princípio constitucional que sustenta como fundamento da República o respeito à dignidade da pessoa humana (art. 1º, inc.

III, CF/88) e o dispositivo que define como um dos objetivos fundamentais da

República a construção de uma sociedade livre, justa e solidária (art. 3º, inc. I, CF/88) constituem diretivas que determinam as opções políticas mais amplas que o Estado estabelece para si próprio (SILVA, 1999).

Com base nessa abertura igualitária e solidária proporcionada pela nova ordem constitucional, foi apresentado o projeto de lei nº 80/91, de autoria do então

Senador da República Eduardo Suplicy, que propunha o pagamento de uma renda mensal a todas as pessoas que ganhassem menos 2,5 salários mínimo, no montante correspondente à diferença entre aquele valor e o que efetivamente recebessem

(SUPLICY, 2006).

Nos anos que se seguiram, diversas experiências locais de programas de garantia de renda mínima foram ocorrendo em localidades do país, seja em âmbito estatal, seja em âmbito municipal, com destaque para o programa Bolsa Escola, implementado no Distrito Federal pelo então governador e o

Programa de Garantia de Renda Familiar Mínima do município de Campinas. Em

217 síntese, tais programas consistiam no pagamento de uma renda às famílias cuja renda

era muito pequena ou nula e que cumprissem a exigência de manter suas crianças

matriculadas e freqüentando a escola primária e secundária.

Tais programas locais foram incentivados por legislações federais que

autorizaram maiores gastos públicos com iniciativas dessa natureza e que

estabeleceram a possibilidade de transferir, através de convênio, o custeio dos

programas ao governo federal173. O incentivo maior ocorreu com a criação, em 2002,

do Fundo de Pobreza, que destinou parcela da arrecadação obtida com Contribuição

Provisória sobre Movimentações Financeiras174 (CPMF), intensificando ainda mais as

ações ligadas à garantia de renda mínima no Brasil.

Posteriormente, no ano de 2003, os programas de renda mínima existentes

no país – Bolsa Escola, Bolsa Alimentação, Auxílio Gás e Cartão Alimentação –

foram unificados no Programa Bolsa Família, através da Medida Provisória nº

132/2003. Por tal programa, estabelece-se que todas as famílias cuja renda mensal per

capita for inferior a R$ 100,00 têm direito a uma complementação em sua renda

mensal, determinada de acordo com o valor que recebem:

Se a renda mensal per capita for de até R$ 50, o benefício mensal é de R$ 50, mais R$ 15, R$ 30, ou R$ 45, dependendo se a família tem uma duas ou mais crianças de até 16 anos de idade, respectivamente. Se a renda per capita mensal da família está na faixa de R$ 50 a R$ 100, o benefício será de apenas R$ 15, R$ 30 ou R$ 45 por mês, dependendo se a família tem uma duas, três ou mais crianças de até 16 anos de idade respectivamente. (SUPLICY, 2006, p. 95)

Tendo em vista os impactos positivos que a instituição desses programas de

renda mínima trouxe aos índices de desenvolvimento social do país e o momento

político favorável, o Congresso Nacional aprovou, no ano de 2004, a Lei 10.835, que

173 Lei 9.533/97 e Lei 10.219/01, respectivamente. 174 A CPMF determina que 0,38% do valor de todas transações financeiras seja retido a título de contribuição. O valor correspondente a 0,08% é destinado ao Fundo de Pobreza (SUPLICY 2002, 2006); 218 institui a renda básica de cidadania, oriunda do Projeto de Lei apresentado pelo

Senador Eduardo Suplicy, mas acrescido de modificações necessárias a sua adequação

às Leis orçamentárias do país (SUPLICY, 2002).

Em seu artigo 1º, a Lei 10.835/04 prevê a implementação da renda básica de cidadania, bem como em que consiste a referida verba:

Art. 1o É instituída, a partir de 2005, a renda básica de cidadania, que se constituirá no direito de todos os brasileiros residentes no País e estrangeiros residentes há pelo menos 5 (cinco) anos no Brasil, não importando sua condição socioeconômica, receberem, anualmente, um benefício monetário.

Perceba-se que, diferentemente dos programas de renda mínima, a renda básica de cidadania, tal como o modelo de renda básica universal defendido por Van

Parijs (1995), não prevê distinções relativas à condição sócio-econômica para ter direito ao beneficio da renda. Ela é direito de todos os cidadãos residentes no país há mais de cinco anos, sejam eles ricos ou pobres, consagrando-se, assim, o atributo da incondicionalidade próprio dessa medida. No entanto, ante a premência de uma ação política que priorize a questão da miséria e da pobreza no país e a preservação do critério relativo à sustentabilidade que condiciona a instituição da renda, a legislação optou por definir que a renda básica de cidadania será implementada gradualmente, priorizando-se as camadas mais necessitadas da população:

§ 1o A abrangência mencionada no caput deste artigo deverá ser alcançada em etapas, a critério do Poder Executivo, priorizando-se as camadas mais necessitadas da população. § 2o O pagamento do benefício deverá ser de igual valor para todos, e suficiente para atender às despesas mínimas de cada pessoa com alimentação, educação e saúde, considerando para isso o grau de desenvolvimento do País e as possibilidades orçamentárias.

Assim, tornar viável economicamente a ambiciosa proposta contida na legislação nacional é o desafio que o país passa a enfrentar a partir da promulgação da

219 legislação. A fundamentação legal para tanto já se encontra no ordenamento jurídico

brasileiro. Suplicy (2002, 2006) expõe em sua obra que a principal condição para que

se consiga efetivar implementação da renda básica de cidadania é a generalização do

debate175 a seu respeito. Isto é, fazer com que se torne conhecida e aceita pelos

cidadãos, pelas entidades e associações de classe, pelos atores políticos, a fim de que o

coro de vozes que reivindica às instituições governamentais o direito de todos os

cidadãos à renda básica de cidadania cada vez mais ganhe corpo e, enfim, seja possível

afirmar que o Brasil seja um país o mais justo e o mais livre possível.

Logo, após o percurso de todas as etapas decorrentes do desdobramento da

questão, tem-se agora condições de voltar à indagação feita no início do trabalho (2.1)

sobre a relação entre liberdade e justiça.

4.5 Sobre a relação entre justiça e liberdade, ou ainda, como distribuir justiça

distribuindo liberdade

A apresentação das diversas dimensões do conceito moderno de liberdade

permitiu demonstrar de que modo a polissemia dessa palavra fez com que as diversas

interpretações peculiares que lhe foram dadas tornaram a liberdade algo incompatível

com as pretensões distributivas da justiça.

De uma perspectiva liberal extremada, ortodoxa e tradicional, a contradição

manifesta-se do seguinte modo: de um lado, a liberdade exige um sistema econômico

175 Instrumentos eficazes no processo de divulgação da renda básica universal são as redes (network) de debate. A BIEN (antes denominada Basic Income European Network agora convertida para Basic Income Earth Network) é o mais amplo fórum de debate acerca renda básica universal, realizando encontros e promovendo publicações (VANDERBORGHT; VAN PARIJS, 2006). No Brasil, conta-se com a RBRBC (Rede Brasileira da Renda Básica de Cidadania), presidida pelo Senador Eduardo Suplicy (2006). 220 de distribuição de riquezas impessoal, pautado pelo livre mercado e que preserve a livre iniciativa e a autonomia da vontade nas relações econômicas e sociais, atributos intrínsecos ao sistema capitalista. De outro, os efeitos da permanência desse sistema leva ao estabelecimento e à perpetuação de uma estrutura de distribuição de bens sociais profundamente desigual e injusta.

Segundo um ponto de vista liberal extremado, liberdade e justiça seriam incompatíveis entre si, pois a realização da liberdade ocorreria ao custo da negação da justiça, já que qualquer pretensão a esta significaria uma ofensa àquela.

Por outro lado, as movimentações políticas que tomaram partido em favor da bandeira da justiça ao longo do século XX só se sustentaram a partir de uma perspectiva acerca da liberdade que sacrificaria a sua dimensão moderna, estabelecendo, assim, uma nova contradição entre justiça e liberdade. Pois, de um lado, a justiça exigia a observância de certos padrões de distribuição dos bens sociais em conformidade com os critérios por ela definidos como justos, fossem eles a igualdade plena de recursos ou a atribuição do maior bem-estar possível às pessoas. E, de outro, as medidas necessárias para se levar a cabo tais padrões, definidas por uma entidade política, requeriam intervenções diretas na vida, na vontade e na individualidade das pessoas.

Segundo um ponto de vista intervencionista, também justiça e liberdade seriam incompatíveis entre si, pois a realização da justiça ocorreria ao custo da liberdade, já que qualquer pretensão desta significaria um obstáculo à implementação daquela.

No entanto, viu-se como a perspectiva liberal-igualitarista mostra ser possível equacionar a convivência dessas duas idéias no seio de uma sociedade. Os princípios de justiça de Rawls constituem um primeiro passo em direção à

221 compreensão de que é possível o estabelecimento de uma sociedade justa e, ao mesmo tempo, livre. Todavia, em sua formulação, há ainda uma distinção nítida entre o papel da liberdade e da justiça no conjunto da teoria. Ambas se encontram compartimentadas em cada um dos respectivos princípios que as consagram: de um lado, está o princípio que atribui um direito igual ao mais abrangente sistema de liberdades aos indivíduos; de outro, o princípio que rege a distribuição das vantagens oriundas da cooperação econômica, notadamente, os bens sociais.

Nesse aspecto, Philippe Van Parijs adota uma perspectiva inovadora, pois compreende a liberdade como um conceito unitário. Do ponto de vista da real- liberdade, no conceito de liberdade estão presentes tanto as dimensões formal e negativa (princípio da segurança e da propriedade de si) quanto as dimensões material e positiva (princípio do leximin das oportunidades).

Assim, quando Van Parijs propõe que a realização da justiça se faça pela atribuição aos indivíduos da maior liberdade possível que cada um possa desfrutar para levar a vida como bem entende, propõe também como critério de realização da justiça a (maior) realização (possível) da liberdade. E desse modo o real- libertarianismo consegue afirmar que uma sociedade justa é, em última instância, também e necessariamente uma sociedade livre (ou uma sociedade em que seus membros são realmente livres). Livre não somente no sentido de uma sociedade que garanta a seus membros o igual respeito às diferentes concepções de bem que cada um deseja professar, mas também que lhes dispense igual solicitude de tratamento, disponibilizando-lhes as oportunidades e os meios efetivos para que possam realizar suas escolhas.

Para tanto, não se faz qualquer recurso a uma oposição ferrenha entre

Capitalismo e Socialismo Real/ Estado de Bem-Estar Social, como se cada um dos

222 sistemas econômicos encabeçasse a função de realizador da liberdade ou da justiça, respectivamente. Os arranjos institucionais necessários à efetivação da real-liberdade- para-todos podem perfeitamente ocorrer dentro do marco de um sistema econômico capitalista. Aliás, há inclusive uma forte presunção para que assim o seja, já que o capitalismo dispensa a presença de uma autoridade central de planejamento, que dirige e comanda a dimensão produtiva das relações sociais humanas, significando a concessão de uma maior liberdade aos indivíduos para poderem determinar por si mesmos os rumos de sua vida.

Por sua vez, também não se justifica a adoção de um capitalismo orientado pelas diretivas do credo neoliberal de intervenção mínima. Caso subsistir em uma sociedade justa, esse sistema capitalista deverá adequar-se a reformas institucionais, de modo a que nele sejam incorporadas estruturas que possibilitem o financiamento dos meios necessários a se promover os mecanismos que proporcionarão a real-liberdade aos indivíduos. Em última análise, esse sistema capitalista compatível com uma sociedade justa seria aquele que incorporasse, em sua estrutura, a atribuição de uma renda básica universal, responsável por permitir às pessoas o maior conjunto possível de oportunidades para que elas venham a levar as suas vidas do modo mais livre possível. Nessa sociedade, as eventuais desigualdades oriundas do sistema capitalista estariam justificadas, pois, de fato, elas somente existiriam para promover o benefício de todos, em especial daqueles que se encontram na posição menos favorecida.

E desse modo a proposta de Phillippe Van Parijs para se atribuir uma renda básica universal, indiscriminada e não condicional, sem amarras ou restrições, se apresentaria como responsável por realizar a justiça em uma sociedade, através da oferta de liberdade, a maior possível, a todos os seus membros.

223 5 CONCLUSÃO

No início do trabalho, pretendeu-se dissertar sobre a relação entre justiça e liberdade nas concepções de teoria da justiça contemporâneas. Levantou-se como hipótese de trabalho que essas teorias eram levadas a sustentar uma contradição entre a justiça e a liberdade em função da perspectiva parcial com que concebiam a liberdade moderna, sempre descurando de alguns de seus aspectos. E que somente quando as teorias da justiça empregassem um conceito de liberdade que englobasse todas as suas dimensões a aparente contradição seria resolvida.

Para esclarecer os termos do problema relativo à hipótese de trabalho, foi necessário demonstrar a existência de uma característica peculiar à liberdade moderna responsável por orientar as teorias da justiça em suas formulações sobre o tema, qual seja, a de que o indivíduo deve possuir um espectro de ações individuais protegido contra as medidas coletivas, dentro do qual somente ele é soberano para tomar decisões relativas a sua pessoa. Essa característica faz com que as teorias da justiça que concorrem a uma validade normativa no quadro da modernidade devam ser

‘liberais’, isto é, ser teorias da justiça que defendam que o indivíduo é a última instância de definição sobre a concepção de bem que irá lhe orientar, inexistindo, assim, uma que seja superior às demais. Isto leva as instituições sociais a resguardarem aos membros da sociedade o direito de cada um conduzir a sua vida como bem entender.

Foi possível identificar como esse caráter individual da liberdade nasce a partir de uma evolução de idéias, podendo-se encontrar o seu germe na filosofia que antecede a modernidade, como verificado tanto nas idéias de Epicuro, sobre a

224 felicidade e a autarquia no espaço interior do homem, quanto de Santo Agostinho, que forja o conceito de livre-arbítrio para marcar como o caminho que leva à liberdade passa por uma escolha individual do homem pela bondade infinita do Senhor.

Viu-se também que a liberdade moderna não se resume às idéias de não- interferência e de autonomia, segundo defendidas pelos autores liberais John Locke e

Immanuel Kant, respectivamente. A análise da fundação do sujeito moderno, por meio do pensamento de René Descartes, salientou que o nascimento do sujeito significará que a realização da liberdade exige o preenchimento de outras dimensões trazidas com a noção de individualidade correlata a esse conceito. Isso pode ser constatado tanto pela filosofia de Thomas Hobbes quanto de Jean-Jacques Rousseau. Em apelo ao mecanicismo, Hobbes mostra que para haver liberdade é preciso que sua dimensão material seja realizada. Isso ocorre através da retirada dos obstáculos e impedimentos que ligam o impulso da vontade ao seu objeto de desejo e, assim, haja a concretização material dessa vontade. Também a filosofia rousseauniana apresenta um aspecto da liberdade não compreendido na formulação liberal desse conceito, denominado de dimensão positiva. Ela se relaciona à capacidade de o indivíduo participar ativamente na definição dos rumos da coletividade que se insere, definindo-lhe um igual valor político em relação aos demais.

Da investigação relativa às dimensões peculiares que a liberdade moderna adquiriu, passou-se a analisar como elas deram origem às concepções de teoria da justiça formuladas nos séculos XIX e XX. Os contrastes verificados da comparação entre essas concepções são responsáveis pela formulação da assertiva que sustentou a oposição entre liberdade e justiça.

Demonstrou-se que as teorias da justiça que buscaram realizar apenas as dimensões material e positiva da liberdade, respectivamente o utilitarismo e o

225 marxismo, expuseram a contradição entre justiça e liberdade nos seguintes termos: as exigências necessárias à preservação das dimensões formal e negativa da liberdade constituem empecilhos para que a justiça possa realizar as dimensões material e positiva da liberdade. Pois como essas dimensões da liberdade requerem a distribuição de bens segundo cada um dos respectivos critérios de justiça que cada teoria adota, quais sejam, estabelecer o maior bem-estar possível para aos membros da sociedade ou a igualdade de acesso dos recursos econômicos da sociedade a todos os indivíduos, tem-se um enfraquecimento dos direitos ligados à propriedade privada e à soberania da vontade. Foram relacionadas também as experiências históricas que cada uma dessas teorias da justiça inspirou: respectivamente, o Estado de Bem-Estar Social e o

Socialismo Real. Ambos são marcados pela presença de uma autoridade central que controla e distribui os recursos econômicos e sociais da sociedade de modo a promover os padrões de justiça definidos por cada uma das teorias. Viu-se que essas duas experiências políticas foram marcadas por uma forte presença do Estado na vida privada das pessoas, tolhendo, assim, o sentido primordial que a liberdade moderna havia estabelecido para esse conceito.

Em seguida, apresentou-se a reação do libertarianismo às teorias da justiça que enfatizaram a alocação e distribuição de recursos sociais como critério de realização da justiça. Explicou-se como essa concepção de justiça reforça os aspectos negativo e formal da liberdade e extirpa desse conceito as suas dimensões positiva e material. Com esse recurso, o libertarianismo expôs a contradição entre liberdade e justiça nos seguintes termos: a realização da liberdade exige que sejam preservadas apenas as dimensões negativa e formal da liberdade, o que torna as pretensões distributivas de justiça relativas às dimensões material e positiva da liberdade apenas ofensas àquelas. A análise do libertarianismo permitiu constatar como essa concepção

226 resgata a noção liberal de liberdade, reduzindo a justiça à observância de um sistema de direitos que garante a propriedade-de-si e a soberania das manifestações de vontade e deixando a questão relativa à distribuição de recursos econômicos e sociais de uma sociedade a cargo do sistema de trocas e intercâmbios próprio do mercado. Ao verificar os reflexos históricos da aplicação prática das propostas libertarianistas, viu- se que essa concepção inspirou o modelo político-econômico que se contrapôs ao

Estado Social e prega um Estado restrito às funções imprescindíveis de permanência e de sobrevivência do corpo político, no qual a distribuição dos recursos sociais e econômicos da sociedade é realizada pelo mercado e seu conjunto próprio de regras.

Contudo, ao final da análise sobre o libertarianismo, constatou-se também que essa sua

última característica põe em xeque os fundamentos em que toda a teoria se assenta. Ao deixar que o mercado seja responsável pela distribuição dos recursos de uma sociedade, permite-se que a condição econômica das pessoas possa ser reduzida a tal ponto que elas fiquem impossibilitadas de manifestar livremente a sua vontade, em função dos constrangimentos decorrentes da escassez de recursos.

Assim, se até então a contradição entre liberdade e justiça afigurava-se como manifesta nos debates entre utilitarismo e marxismo, de um lado, e libertarianismo, de outro, a formulação da justiça como imparcialidade de John Rawls introduziu uma ponto-de-vista completamente inovador à discussão, chamado de liberal-igualitarismo. A exposição dos princípios de justiça, definidos através do expediente metodológico da posição original, explica como Rawls mostra ser possível acomodar um sistema de justiça distributiva dentro de um conjunto de liberdades fundamentais que lhe são prioritárias, fazendo cair por terra a aparente contradição entre justiça e liberdade. Viu-se que a solidez dos argumentos da justiça como imparcialidade impediu que os questionamentos às concepções liberais de justiça

227 permanecessem relativos à sua incapacidade de definir um sistema de distribuição dos recursos econômicos e sociais para as instituições sociais. Caso pretendam-se pertinentes, eles devem agora situar-se em um nível mais abrangente, relativo à contestação da própria proposta de se fundar uma sociedade sobre bases liberais. No entanto, a apresentação das teorias comunitaristas que levaram à cabo tal propósito deixou claro que, ao se argumentar em favor de uma concepção unitária de bem, corre- se o risco de negar o caráter plural das sociedades contemporâneas e, com isso, o valor de se preservar o direito de cada um buscar a sua felicidade de acordo com a concepção de bem que melhor lhe apraz. Negar o fato do pluralismo implicaria, assim, um rompimento com a noção moderna de liberdade, o que estaria em descompasso com o momento histórico-cultural que atualmente se vivencia.

Após a superação da contradição aparente entre justiça e liberdade, os rumos da investigação voltaram para o potencial da teoria de John Rawls em ser o compromisso mais adequado entre justiça e liberdade. Nesse aspecto, foram exploradas as deficiências de sua teoria que apontam em quais aspectos a justiça como imparcialidade deixaria de lado esse compromisso. O parâmetro utilizado foi o conceito de real-liberdade definido por Phillippe Van Parijs. Segundo a real-liberdade, a justiça de uma sociedade exige não apenas a proteção aos princípios da segurança e da propriedade-de-si como também a realização do princípio que determina a elevação do conjunto de oportunidades (opportunity set) dos indivíduos segundo o critério do leximin. Por meio desse último princípio, ao lado das dimensões negativa e formal, também as dimensões positiva e material da liberdade seriam plenamente consagradas em uma teoria da justiça, pois o conjunto de oportunidades forneceria aos indivíduos não somente a possibilidade de realizar escolhas livres, como também a capacidade para tanto.

228 A análise das críticas dirigidas por Van Parijs a Rawls permitiu que se avançasse em direção a uma reformulação da justiça como eqüidade naqueles pontos em que ela não se presta a realizar os parâmetros da real-liberdade. Os alvos dessas críticas foram a ambigüidade do princípio da diferença e a explícita negação de Rawls acerca da possibilidade de sua teoria fundamentar a atribuição de uma renda básica aos membros da sociedade. O estudo da primeira das críticas mostrou que o princípio da diferença possui uma abertura interpretativa que sugere a formulação de duas distintas versões: a versão menos igualitária, utilizada para justificar as desigualdades sociais que se verificam nas sociedades capitalistas contemporâneas; e a versão mais igualitária, que fornece um critério de justiça para tornar legítimas e aceitáveis as eventuais desigualdades sociais que possam existir em uma sociedade. E como Rawls não se posicionou explicitamente acerca dessa ambigüidade, definiu-se que a realização do critério da real-liberdade implica em uma reformulação da justiça como imparcialidade, de modo que ela somente aceite a versão mais igualitária do princípio em seu interior.

A segunda das críticas, referente aos argumentos apresentados por Rawls para rejeitar que sua teoria se preste a fundamentar a instituição de uma Renda Básica, mostra uma incoerência no pensamento maduro de Rawls. Pois, não obstante os variados argumentos que se pode inferir da justiça como imparcialidade em favor de uma renda básica, Rawls viu-se obrigado a reformular o princípio da diferença para rejeitar que essa proposta fosse condizente com sua teoria. Contudo, ao introduzir o lazer como integrante da lista de bens primários, viu-se que seus contra-argumentos levam a uma série de imprecisões conceituais, tolhem a realização outros bens primários, como as bases sociais do auto-respeito e as posições e prerrogativas ligadas

229 às posições sociais, e ainda terminam por ofender o princípio da neutralidade, já que consagram uma concepção particular de realização da felicidade por meio do trabalho.

Assim, a conclusão extraída das críticas a Rawls é a de que a atribuição de uma Renda Básica Universal seria o modo como as instituições de uma sociedade realizariam a liberdade em seu sentido mais pleno. Isto levou a uma investigação das características dessa proposta, segundo formuladas por Phillippe Van Parijs.

Verificou-se que características como a incondicionalidade, relacionada à abolição de qualquer teste de meio (means test) para o recebimento do benefício, o pagamento em dinheiro e em intervalos regulares fazem dela uma proposta altamente condizente com os critérios da real-liberdade. Viu-se que as referências ao critério da sustentabilidade para a definição do valor monetário da renda e ao seu custeio pelo sistema de arrecadação tributária tornam a proposta viável também do ponto de vista econômico.

Por fim, foi apresentado um breve relato da experiência no Brasil, de como o país passou da utilização de programas de garantia de renda mínima para a aprovação de uma Lei que estabelece o direito à renda básica aos seus cidadãos, mostrando-se, assim, que a proposta de renda básica não é algo tão distante da realidade como muitos poderiam imaginar.

Os caminhos percorridos na verificação da correção da hipótese de trabalho demonstraram que a contradição entre justiça e liberdade era antes fruto de uma compreensão parcial do conceito de liberdade do que uma real oposição entre esses termos. A análise da teoria da justiça liberal-igualitarista demonstrou que é possível um arranjo institucional que consiga realizar uma distribuição justa de recursos econômicos e sociais sem ofender os direitos ligados à liberdade individual. Já o critério de justiça fornecido pelo real-libertarianismo tornou ainda mais íntima a relação entre justiça e liberdade, pois introduziu como forma de realização desta o

230 princípio da elevação do conjunto de oportunidades, segundo o critério leximin, que

somente ocorre por meio daquela. Ou seja, demonstrou-se que a distribuição da justiça

significa tão-somente a distribuição da liberdade. Logo é o critério do real-

libertarianismo que deverá ser adotado caso se pretenda formular um critério

normativo para uma sociedade justa e, ao mesmo tempo, livre.

Por esse critério as instituições sociais são levadas a instituir uma Renda

Básica Universal a ser paga incondicionalmente aos seus cidadãos. Essa proposta que,

à primeira vista, pode parecer audaciosa, fantasiosa ou mesmo utópica é, em verdade,

o mecanismo mais óbvio à disposição da sociedade para introduzir um critério de

justiça aceitável para suas instituições sociais. Em um país como o Brasil, é ainda um

eficiente instrumento de combate à pobreza e às mazelas sociais dela decorrentes.

No entanto, para que a implementação da Renda Básica Universal se torne

uma realidade no Brasil e, quem sabe, no mundo, não bastam apenas apresentações

acadêmicas de sua inegável superioridade enquanto critério de justiça. É preciso

também um engajamento político em seu favor, não somente de Van Parijs, Suplicy,

de tantos outros que hoje compõem a BIEN e outras redes de debate mundiais de

debate sobre a renda básica espalhadas pelo mundo, mas também o meu, o seu, do seu

vizinho, de seus colegas de trabalho, daqueles que participam de sua comunidade,

enfim, de todos aqueles com quem você possa conversar sobre o tema. Talvez juntos

seja possível que cantemos com John Lennon: “You may say I'm a dreamer / But I'm

not the only one / I hope someday you'll join us / And the world will live as one”.176

176 “Você pode me chamar de sonhador / mas eu não sou o único / espero que um dia você se junte a nós / e o mundo em que vivemos seja um só” (LENNON, 1971) (tradução nossa) 231 BIBLIOGRAFIA

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248 ANEXO A - LEI Nº 10.835, DE 8 DE JANEIRO DE 2004.

O Presidente da República Faço saber que o Congresso Nacional decreta e eu sanciono a seguinte Lei:

Art. 1o É instituída, a partir de 2005, a renda básica de cidadania, que se constituirá no direito de todos os brasileiros residentes no País e estrangeiros residentes há pelo menos 5 (cinco) anos no Brasil, não importando sua condição socioeconômica, receberem, anualmente, um benefício monetário.

§ 1o A abrangência mencionada no caput deste artigo deverá ser alcançada em etapas, a critério do Poder Executivo, priorizando-se as camadas mais necessitadas da população.

§ 2o O pagamento do benefício deverá ser de igual valor para todos, e suficiente para atender às despesas mínimas de cada pessoa com alimentação, educação e saúde, considerando para isso o grau de desenvolvimento do País e as possibilidades orçamentárias.

§ 3o O pagamento deste benefício poderá ser feito em parcelas iguais e mensais.

§ 4o O benefício monetário previsto no caput deste artigo será considerado como renda não-tributável para fins de incidência do Imposto sobre a Renda de Pessoas Físicas.

Art. 2o Caberá ao Poder Executivo definir o valor do benefício, em estrita observância ao disposto nos arts. 16 e 17 da Lei Complementar no 101, de 4 de maio de 2000 - Lei de Responsabilidade Fiscal.

Art. 3o O Poder Executivo consignará, no Orçamento-Geral da União para o exercício financeiro de 2005, dotação orçamentária suficiente para implementar a primeira etapa do projeto, observado o disposto no art. 2o desta Lei.

Art. 4o A partir do exercício financeiro de 2005, os projetos de lei relativos aos planos plurianuais e às diretrizes orçamentárias deverão especificar os cancelamentos e as transferências de despesas, bem como outras medidas julgadas necessárias à execução do Programa.

Art. 5o Esta Lei entra em vigor na data de sua publicação.

Brasília, 8 de janeiro de 2004;

249