PROCESSOS DE CRIAÇÃO EM DEBATE

Cecilia Almeida Salles Sílvia Maria Guerra Anastácio (Organizadoras)

PROCESSOS DE CRIAÇÃO EM DEBATE

Cecilia Almeida Salles Sílvia Maria Guerra Anastácio Organizadoras

PROCESSOS DE CRIAÇÃO EM DEBATE

Salvador UFBA 2018

Ficha Técnica

Organização Cecilia Almeida Salles Sílvia Maria Guerra Anastácio

Edição e Revisão Sílvia Maria Guerra Anastácio Flávio Azevêdo Ferrari Marieli de Jesus Pereira Raquel Borges Dias Sandra Cristina Souza Corrêa Shirlei Tiara de Souza Moreira Sirlene Ribeiro Góes

Apoio CNPq

Sistema de Bibliotecas – SIBI/UFBA

Processos de criação em debate / Cecilia Almeida Salles, Sílvia Maria Guerra Anastácio, organizadoras.- Salvador: UFBA, 2018. 400 p. ISBN: 978-85-8292-165-4

1. Semiótica e literatura. 2. Criação (Literária, artística, etc.) 3. Crítica textual. I. Salles, Cecilia Almeida. II. Anastácio, Sílvia Maria Guerra.

CDU – 801.73 CDD - 801.95

SUMÁRIO

APRESENTAÇÃO 7

GÊNESE E CENSURA: POR UM ESTUDO CRÍTICO E GENÉTICO DA 9 PRODUÇÃO DRAMATÚRGICA DO AMADOR AMADEU Carla Cecí Rocha Fagundes e Rosa Borges

NEWSGAME: O PROCESSO DE CRIAÇÃO DE UM JOGO 23 JORNALÍSTICO Carla Miranda B. de Freitas e Cecilia Almeida Salles

ESTUDO CRÍTICO E GENÉTICO DE HISTÓRIA DA PAIXÃO DO SENHOR 37 Dâmaris Carneiro dos Santos e Rosa Borges

DE LA VOZ A LA ESCRITA: (AUTO) TRADUCCION Y (RE) CREACION 47 EN LA POESIA BILINGÜE (CHAIMA-ESPAÑOL) DE DOMINGO ROGELIO LEON Digmar Jiménez Agreda

UNIVERSOS PLURAIS, DIVERSAS MÍDIAS E AS POÉTICAS 61 INTERMÍDIAS NA EXPERIMENTAÇÃO CONTEMPORÂNEA Eliane Cristina Testa

APONTAMENTOS SOBRE O MANUSCRITO MODERNO E SUA 73 REMEDIAÇÃO PARA OUTRAS MÍDIAS Elisabete da Silva Barbosa

A NAU DOS INOCENTES DE JOSUÉ GUIMARÃES: O SILÊNCIO E O 81 DIÁLOGO Elisângela de Britto Palagen e Miguel Rettenmaier

UMA ÉPOCA, UMA VIDA, NA BAHIA – 1928/1962: ESTUDO GENÉTICO 91 DE DATILOSCRITO DE MANOEL PINTO DE AGUIAR Elizete Leal Candeias Freitas e Arivaldo Sacramento de Souza

MONTEIRO LOBATO EDITOR: JARDIM SECRETO DE FRANCISCA DE 105 BASTO CORDEIRO (1875-1969) Emerson Tin

ELEMENTOS FÍLMICOS NÃO ESPECÍFICOS: MULTIPLICIDADE DE 113 DIÁLOGOS Eva Cristina Francisco e Edina Regina Pugas Panichi

RECRIANDO A GUERRA DOS MUNDOS, DE H. G. WELLS: A DINÂMICA 125 CRIADORA DE AUDIOLIVROS BRASILEIROS A PARTIR DE ROMANCES E CONTOS DE LÍNGUA INGLESA Flávio Azevêdo Ferrari

A POTÊNCIA ARQUIVÍSTICA DA ESCRITA DE JUDITH GROSSMAN 137 Henrique Julio Vieira e Evelina Hoisel

ABORDAGEM PROCESSUAL NA PRODUÇÃO JORNALÍSTICA 151 Janaína Sarah Pedrotti

O MOVIMENTO CRIATIVO EM QUEM CONTA UM CONTO, AUMENTA 163 UM PONTO DE LISETE NAPOLEÃO MEDEIROS Jaqueline Lima da Silva e Márcia Edlene Mauriz Lima

POEMAS DO GRANDE SERTÃO: DISCUTINDO A “ABSOLUTA 173 FIDELIDADE” DE RENATO CASTELO BRANCO Lia Raquel Rodrigues de Sousa e Márcia Ivana de Lima e Silva

"A ESCULTURA DE PALAVRAS TAMBÉM TEM SUAS BELEZAS": 185 MÁRIO DE ANDRADE LEITOR DOS PARNASIANOS Ligia Rivello Baranda Kimori

ENTRELAÇANDO DOCUMENTOS: MOSTEIRO DE SÃO BENTO DA 197 BAHIA NA REDE Lívia Borges Souza Magalhães e Alícia Duhá Lose

GÊNESE, SÍMBOLOS E CORES: UM ESTUDO SOBRE O PROCESSO DE 209 CRIAÇÃO DA CAPA DO LIVRO PAREMIOLOGIA NORDESTINA, DE FONTES IBIAPINA Lueldo Teixeira Bezerra e Márcia Edlene Mauriz Lima

O ARQUIVO PESSOAL DE ARIOVALDO MATOS NO HORIZONTE 221 CONTEMPORÂNEO DA CRÍTICA TEXTUAL Mabel Meira Mota

A ESCOLHA OU O DESEMBESTADO: A CONSTRUÇÃO DE UMA 235 TEATRALIDADE Mabel Meira Mota e Rosa Borges

O SHOW DO EU: A CONSTRUÇÃO FICCIONAL NA 249 CORRESPONDÊNCIA DE CAIO FERNANDO ABREU Mara Lúcia Barbosa da Silva

CONEXÕES E INTERAÇÕES DO PROCESSO DE CRIAÇÃO NO ENSINO 261 DE DESIGN DO PRODUTO: MODOS DE DESENVOLVIMENTO DO PENSAMENTO Marcelo José Oliveira de Farias

SOM E FÚRIA: O PROCESSO CRIATIVO DE UMA MÍDIA TELEVISIVA 271 A PARTIR DA LINGUAGEM TEATRAL Marieli de Jesus Pereira

CARTAS DE UM EREMITA EM : ANOTAÇÕES À MARGEM DO 281 EPISTOLÁRIO DE ITALO CALVINO (1940-1985) Maurício Santana Dias

TROCANDO O PALCO PELO MICROFONE: DIRIGINDO A PEÇA 291 RADIOFÔNICA A MÁQUINA DO TEMPO Mirela Dornelles Gonzalez Paz e Sílvia Maria Guerra Anastácio

A INFLUÊNCIA DA REDE SOCIAL FACEBOOK NA PRODUÇÃO DE 303 CORDÉIS Nilson Oliveira Moura e Aparecido José Cirillo

A ORGANIZAÇÃO DO MATERIAL FOTOGRÁFICO DE OTTO 317 STUPAKOFF: O OLHAR DO FOTÓGRAFO SOBRE A SUA PRODUÇÃO Patricia Kiss Spineli e Edson do Prado Pfützenreuter

DA COSTA E SILVA: CARTA/POEMA À AMADA 331 Raimunda Celestina Mendes da Silva e Marcos Antonio de Moraes

CRÍTICA GENÉTICA E HUMANIDADES DIGITAIS: UMA INTERFACE 345 POSSÍVEL Sandro Rogério Silva de Carvalho e Sergio Romanelli

GILBERTO FREYRE EM DIÁLOGOS EPISTOLARES DO 359 MODERNISMO: FACETAS DA CORRESPONDÊNCIA COM ALFREDO FREYRE, GUSTAVO CAPANEMA, MANUEL BANDEIRA E OLIVEIRA LIMA Silvana Moreli Vicente Dias

A DESCRIÇÃO DOCUMENTAL DOS CADERNOS DE ANOTAÇÕES 373 PESSOAIS DO JORNALISTA PIAUIENSE JOEL DE OLIVEIRA Solange Hiller Herthz Santos

ENTRE DORES E AMORES: O CROCHÊ COMO LINGUAGEM NO 387 CADERNO DIÁRIO DE REGINA RODRIGUES Tatiana Campagnaro e Aparecido José Cirillo

SOBRE AS ORGANIZADORAS 401

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APRESENTAÇÃO

A Coletânea online Diversidade dos estudos de processo do século XXI nos levou a observar, primeiramente, a ampliação crescente do número de pesquisadores dedicados à análise de processos de criação com uma ampla variedade de metodologias e objetivos. Essa expansão se concretiza em um grande número de grupos de estudos de processo espalhados pelo país, que têm gerado tantas pesquisas de iniciação científica, dissertações de mestrado e teses de doutorado. Ao pensar no modo de apresentação dos textos da presente coletânea, cogitamos em títulos que dessem conta de possíveis agrupamentos temáticos ou das linguagens discutidas nos artigos. Como todas as tentativas, contudo, pareceram ineficientes, decidimos optar pela ordem alfabética que, talvez, seja mais fiel à riqueza das relações estabelecidas em muitos textos e, especialmente, à ausência de fronteiras nítidas entre humanidades digitais, palavra e imagem, entre literatura e tradução, artesanato e design, palavra do escritor e testemunho de seu acervo ou arquivo, filologia e crítica genética, processo de criação, ensino e inclusão social, autorias colaborativas de processos disseminados pelas redes sociais, mídias audiovisuais e artes plásticas, bem como tantas outras formas de criar que, hoje, somos capazes de registrar. O fato é que todas essas questões e tais estudos de caso nos levam à constatação de um campo de experimentação de pesquisas em efervescência, cujos processos guardam narrativas genéticas inusitadas. De modo que os desafios desses estudos genéticos se tornam cada vez mais complexos e acolhem um leque imenso de registros em suportes jamais pensados pelos estudos de crítica genética tradicionais. Propomos, então, um breve passeio por esse universo genético que nos apresenta questionamentos e considerações múltiplas, sempre apostando em novos campos de estudo e de pesquisa. Não há dúvida de que a era digital ainda nos guarda muitas surpresas e inquietações no campo das pesquisas de processo em que o quadro conceitual dos estudos genéticos se encontra ainda em franco desenvolvimento.

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GÊNESE E CENSURA: POR UM ESTUDO CRÍTICO E GENÉTICO DA PRODUÇÃO DRAMATÚRGICA DO AMADOR AMADEU

Carla Cecí Rocha Fagundes1 Rosa Borges2

CONSIDERAÇÕES INICIAIS

O Brasil, entre 1964 e 1985, viveu sob Regime Militar, com cerceamento à liberdade de expressão. Os setores artísticos, de modo geral, sofreram restrições; no teatro houve cortes e vetos às produções dramatúrgicas. Nesse contexto de censura, surgiu o grupo Amador Amadeu, atuante na Bahia, de 1975 a 1978. Entre os textos dramatúrgicos do grupo, destacam-se Gran Circo Raito de Sol ou Gran Circo Latino Americano, escrito em 1976, e O Cabaret O Segredo de Laura apresenta: Xô, galinha show, produzido e encenado em 1978. Tais textos se relacionam no tocante aos seus processos de criação. Face a isso, nos lugares da Filologia e da Crítica Genética, através de um estudo desses textos, pretende-se analisar o processo criativo do grupo Amador Amadeu durante a ditadura na Bahia.

FILOLOGIA E CRÍTICA GENÉTICA: POR UM ESTUDO CRÍTICO

A Filologia é uma disciplina que apresenta dificuldades para os que queiram defini-la de modo preciso e simplista. Conforme Borges e Souza (2012), entre as possíveis razões para tal destacam-se aspectos como: a senilidade da Filologia e a pluralidade de atividades classificadas como “filológicas”. Isso fica comprovado quando se faz remissão a uma definição proposta por um dos filólogos mais renomados, Erich Auerbach, que conceituou a Filologia como um: [...] conjunto das atividades que se ocupam metodicamente da linguagem do Homem e das obras de arte escritas nessa linguagem. Como se trata de uma ciência muito antiga, e como é possível ocupar-se da linguagem de muitas e diferentes maneiras, o termo filologia tem um significado muito amplo e abrange atividades assaz diversas [...] (AUERBACH, 1972, p. 11).

1 Doutoranda na Universidade Federal da Bahia. 2 Professora Doutora na Universidade Federal da Bahia. 10

Diante dessa diversidade de atividades, pode-se eleger a principal delas, a edição de textos, através da qual a filologia busca evidenciar uma cultura apresentada a partir da materialidade dos textos que atualiza. Contudo, sabe-se que o trabalho filológico vai muito além da edição, dado o seu caráter interpretativo, no que tange a aspectos tanto culturais quanto literários, todos considerados a partir do texto. Nessa direção, conforme Santos (2012, p. 19), “[...] a filologia tem por objeto o texto, manuscrito, datiloscrito, digitoscrito ou impresso, oral ou escrito, tomado para investigação histórica, filológica, literária, e tantas sejam as atividades que envolvam o estudo de um texto [...]”. Dessa conceituação, destacam-se, portanto, duas características da Filologia, o fato de ser uma disciplina “antiga” e a abrangência de suas atividades; esses dois vieses permitem-lhe o estabelecimento de relações com outros campos e disciplinas, entre os quais se destaca aqui a Crítica Genética. A fim de compreender como a Filologia se relaciona com a Crítica Genética convém traçar o percurso cronológico de constituição da última. Na década de 1960, uma equipe de pesquisadores foi formada pelo CNRS, com o intuito de organizar os manuscritos de Heinrich Heine, adquiridos pela Biblioteca Nacional. Após formar essa primeira equipe de trabalho com a finalidade de estudar manuscritos literários, a Crítica Genética foi se desenvolvendo, estabelecendo relações com outras áreas, como a Filologia. De acordo com Grésillon (1991), o termo crítica genética foi utilizado pela primeira vez em 1979, quando constou como título de uma coletânea publicada por Louis Hay, intitulada os Essais de Critique Génetique. O termo seria devido a Gustave Rudler e herdeiro de uma longa tradição filológica. Historicamente, consoante Grésillon (1991), a Crítica Genética teve um primeiro momento, denominado germânico-ascético (1968-1975); nesse período, nota-se que havia uma lacuna no trabalho genético, visto que,

[a]té 1974, os pesquisadores eram todos de fato germanistas de formação, e alguns mesmo de origem alemã. Os melhores dentre eles eram especialistas em Heine, mas nenhum tinha em sua bagagem nem uma teoria da escritura literária nem uma experiência prática do manuscrito. O que os reunia, era um desejo de aprender na prática para responder ao apelo, e apreender a materialidade dos rascunhos para classificar, datar, transcrever e editar a coleção de Heine. É nesse campo que a tradição germânica se fez sentir: cada um conhecia de perto ou de longe o saber-fazer da filologia alemã e seus feitos na edição crítica; cada um se inspirava neles quando tentava transcrever manuscritos ou representar uma sucessão de variantes. As aberturas para o exterior, pouco numerosas na época, trazem a marca dessa herança germânica, filológica e não-teórica (GRÉSILLON, 1991, p. 14).

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Nesse sentido, pode-se afirmar que a Crítica Genética se relaciona com a Filologia na medida em que, durante o seu desenvolvimento, a exemplo de outras áreas, respaldou-se no método filológico para desenvolver seus estudos visando interpretar o processo de escritura dos manuscritos3 literários. Portanto, pode-se considerar que a relação entre a Filologia e a Crítica Genética é profícua, isso fica comprovado quando se analisa a história de constituição da área genética e também quando se observam os benefícios que o rigor do trabalho filológico pode trazer para os estudos do manuscrito literário, evidenciados no momento de constituição do prototexto4 e da análise do processo de criação, principalmente.

[...] atualmente mostra-se evidente que o saber filológico participa da reconstrução genética: não como um fim em si mesmo, mas como uma ferramenta metodológica útil na coleta, descrição, classificação e transcrição dos manuscritos [...] (GRÉSILLON, 2009, p. 42-43).

Nota-se que, para o estudo do texto literário, o diálogo entre a Crítica Genética e a Filologia faz-se necessário. E o pesquisador que transita entre as duas áreas, aliando-as, deve estar atento para as responsabilidades do labor editorial, refletindo sobre sua prática, haja vista a responsabilidade que possui ao estudar, editar e apresentar ao público edições das quais se espera confiabilidade. A partir dessas reflexões, no âmbito dos estudos genéticos e filológicos, pretende-se analisar o processo de criação dois dos textos teatrais produzidos pelo grupo Amador Amadeu, Gran Circo Raito de Sol ou Gran Circo Latino Americano e O Cabaret O Segredo de Laura apresenta: Xô, galinha show, tendo em vista as suas condições adversas de produção, transmissão, circulação e recepção. Destarte, buscaremos “[...] encontrar, ou melhor, entender o funcionamento desse mecanismo que é o ato criativo [...]” (SALLES, 1991, p. 102).

3 Manuscrito: feito à/da mão do autor. Incluem-se documentos datilografados e digitados pela mão do próprio autor/escritor. Incluem-se documentos datilografados e digitados pela mão do próprio autor/escritor, bem como impressos e provas tipográficas por ele emendados ou modificados, por meio de anotações. Nele, expõe-se o trabalho de escrit(a)tura de um autor (BORGES; SOUZA, 2012, p. 33). 4 Prototexto: Conjunto de documentos que precedem o texto, composto por documentos de diversas naturezas, tais como: roteiros desenvolvidos, esboços, rascunhos, passagens a limpo etc. (BIASI, 2010). 12

A DRAMATURGIA DO AMADOR AMADEU: ESTUDO CRÍTICO E GENÉTICO DE UM PROCESSO DE PRODUÇÃO

Durante o Regime Militar, nota-se que, mesmo diante de uma situação conturbada, o teatro amador na Bahia teve uma atividade muito produtiva e marcante. E foi neste contexto que surgiu o grupo Amador Amadeu. O Amador Amadeu se destacou como um dos grupos mais incentivados pela imprensa da época, por ser considerado uma promessa de mudança da cena teatral, que, naquele momento, possuía mais grupos profissionais e preocupados com ganhos financeiros. A formatação promissora que marcava o nascimento daquele grupo amador não advinha apenas do desejo que a crítica teatral da década de 1970 tinha de que o teatro se modificasse, posto que o Amador Amadeu também trouxesse em seu discurso fundador tais intentos. O depoimento de Rogério Menezes, líder do grupo, em entrevista ao jornal Tribuna da Bahia, em 10 de outubro de 1975, confirma seus objetivos:

Nessa situação de aleijão involuntário em que vive o teatro brasileiro é que a gente [Grupo Amador Amadeu] surge tentando, na medida do possível, ajudar a modificar essa situação, a colocar braços e pernas nesse corpo mutilado. Nesse quadro meio triste a gente se propõe a fazer um teatro para a população: para a dona de casa, o comerciante, o secundarista, o universitário, o peão, o bancário, para toda gente. Queremos fazer um trabalho em que o único compromisso seja com o homem, suas dores, suas alegrias. Um teatro popular tanto no tema de nossos trabalhos como nos preços de nossos ingressos.

Em resposta a esses desejos e expectativas, em 1975, Rogério Menezes, com o auxílio de Fernando Fulco, fundou o Amador Amadeu. O grupo fez muito sucesso, repercutiu na imprensa, apresentava-se em bairros da periferia e em cidades do interior, com plateias lotadas, conquistando a adesão e a empatia imediata do público. O Amador Amadeu chegou a ter, segundo relatos de Fernando Fulco (2013) e Rogério Menezes (2013), mais de quarenta integrantes. Entre os quais destacam-se: Zezé Rocha, Paulo Bittencourt, Walter Seixas, Lúcia

Bastos, Rosa Bastos, Aydil Goret, Tina Melo e Jota (FRANCO, 1994). O Amador Amadeu produziu quatro espetáculos, foram eles: Pau e Osso S/A (1975); Gran Circo Raito de Sol ou Gran Circo Latino Americano (1976); Sr. Puntilla e seu criado Matti, de Betold Brecht (1977) e O Cabaret O Segredo de Laura apresenta: Xô, galinha show

(1978). 13

Nesse trabalho analisaremos duas dessas produções, já mencionadas, os textos Gran Circo Raito de Sol ou Gran Circo Latino Americano e O Cabaret O Segredo de Laura apresenta: Xô, galinha show. O estudo aqui proposto buscará analisar como se relacionam os referidos textos teatrais no que tange aos seus processos de criação. Por isso, nesse momento importa ressaltar, consoante Salles (2009, p. 21), que o pesquisador não tem “[...] o processo de criação em mãos, mas apenas alguns índices desse processo. São vestígios vistos como testemunho material de uma criação em processo [...]”. E, nessa direção, o trabalho com textos teatrais, guarda ainda uma particularidade, pois possui elementos cênicos que não podem ser ignorados e que, de acordo com Grésillon (1995), são partes integrantes do processo desde as primeiras fases da escrita. Nesse contexto, considera-se o texto teatral como “[...] testemunho material de uma criação em processo [...]” (SALLES, 2009, p. 19).

Estudo crítico e genético dos textos

Em 1976, o Amador Amadeu produziu o texto Gran Circo Raito de Sol ou Gran Circo Latino Americano. No que se refere à materialidade, o texto Gran Circo possui um testemunho, em forma de datiloscrito, com cópia mimeografada, depositada no Núcleo de Acervo do Espaço Xisto Bahia. Contém 46 folhas, apresentando grifos em tinta verde e amarela ao longo de todo o texto. Na capa, traz marcas de grampo na margem superior e à direita, no centro da folha, nessa consta ainda anotação manuscrita, em tinta preta, com a seguinte inscrição: Para Cid Seixas do Amador Amadeu. A partir de um cenário, circunscrito a um local específico, houve a narração de situações sociais. O cenário escolhido foi um circo, no qual eram abordados momentos de dificuldade pelos quais passava o povo pobre brasileiro. As situações retratavam desde a dificuldade em utilizar o transporte público da época até o sofrimento enfrentado pela população nas filas dos hospitais. Instituições como o Corpo de Bombeiros e a Previdência Social também foram alvos na representação, em circunstâncias nas quais se podia notar a promoção de uma reflexão de ordem política e social. No contexto circense, os trapezistas poderiam ser relacionados aos homens que trabalhavam nos edifícios, o globo da morte era representado pelo ônibus do bairro da Liberdade. “Gran Circo Rayto de Sol [...] foi escrito a partir de situações do cotidiano que eu 14

sugeria e que os atores improvisavam a partir dessa sugestão, e íamos transformando o texto falado-improvisado em dramaturgia escrita [...]” (MENEZES, 2013). Porém, o grupo não obteve sucesso, visto que o texto teatral Gran Circo não pôde ser encenado; após passar mais de cinquenta dias em avaliação pelos órgãos censórios, foi completamente vetado. Segue parecer de censura do espetáculo, no qual são citadas as referidas causas do veto.

Figura 1 – Parecer de censura de Gran Circo Raito de Sol ou Gran Circo Latino Americano

Fonte: Arquivo Nacional do Distrito Federal

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Portanto, Gran Circo foi considerado muito realista, pois investia, através de analogias, contra o poder vigente, de forma engajada politicamente. Em 1978, o Amador Amadeu produziria outro texto teatral, com o título de: O Cabaret O Segredo de Laura apresenta: Xô, galinha show. O texto possui um testemunho, com 15 folhas, datiloscritas em papel mimeografado, depositado no Núcleo de Acervo do Espaço Xisto Bahia. Há marcas de grampo no centro da margem esquerda da folha. Não consta a presença de carimbos ao longo do texto. A encenação de Xô, Galinha Show foi autorizada pelos órgãos censórios, porém com restrições, sendo liberada apenas para maiores de 18 anos. O texto foi exibido em outubro de 1978, no teatro Gregório de Mattos. Esse foi o último texto produzido e encenado pelo Amador Amadeu, em um momento em que seus integrantes, principalmente o diretor do grupo Rogério Menezes, passavam por uma desilusão quanto aos seus objetivos e as possibilidades de mudar a cena teatral vigente. “Eu já havia caído fora do PCdoB, e tinha uma visão absolutamente crítica e raivosa e irada a respeito dos comunistas em geral [...]” (MENEZES, 2013). Assim, se a anarquia já marcava as produções anteriores do grupo, no espetáculo Xô, galinha show houve um maior radicalismo. De acordo com entrevista de Menezes (2013): “Todo mundo dirigia, todo mundo atuava [...] cada um criava sua própria dramaturgia. Eu apenas tentava costurar isso tudo, mas, de propósito, deixando tudo muito mal costurado. Resultado: foi um fiasco [...]”.

De acordo com Rogério Menezes: “Propositadamente, quis encenar Xô Galinha Show como se fosse (e foi) um atestado de óbito do Amador Amadeu. Já não acreditava mais que, nós, aquele bando de porra-loucas poderíamos mudar o mundo [...]” (MENEZES, 2013, grifo do autor). Desse modo, pode-se notar que os dois textos marcaram de forma significativa a trajetória do Amador Amadeu. Enquanto a peça Gran Circo foi, em 1976, completamente vetada pelos órgãos censórios, em 1978, Xô, galinha show pôde ser apresentada, sem cortes, para maiores de 18 anos. Ademais, ao analisar as duas materialidades textuais das peças em questão, nota-se que ambas se relacionam de modo ainda mais preponderante, posto que haja na produção de 1978 fragmentos textuais daquela vetada em 1976. A respeito disso, um dos integrantes do grupo Amador Amadeu, Fernando Fulco, aborda o fato em entrevista. De acordo com o ator, teriam sido utilizados, no momento de escrita da peça Xô, Galinha Show, excertos do texto Gran Circo. Conforme Fulco (2013): 16

Nós aproveitamos muito do Gran Circo Raito de Sol pra montagem de Xô Galinha Show. [...] quando a gente resolveu montar esse último espetáculo é que veio Xô Galinha Show. Foi uma despedida assim muito bacana. [...] essa cena de Sílvio Cavalcanti mesmo é de Gran Circo. [...] A gente chupou Gran Circo todo nisso aqui e os inteligentes da polícia federal não entenderam (grifo nosso).

Desse modo, percebe-se que o processo criativo do grupo, no que se refere aos dois referidos textos, possui uma relação intrínseca. Dividido em 21 cenas e alguns quadros, Xô, galinha show não segue um roteiro linear, apresentando situações como: a encenação de piadas, a representação de um show de calouros, uma luta livre e um concurso de misses. As cenas tratavam de diferentes temas e com extensão variável, posto que, enquanto umas possuíam apenas duas linhas, outras eram compostas de até três folhas. Toma-se como exemplo um fragmento do texto:

Figura 2 – Excerto do texto O Cabaret o segredo de Laura apresenta: Xô, galinha, show

Fonte: Amador Amadeu (1978, f. 8)

Com a leitura de Xô, Galinha Show nota-se que há paráfrase ou repetição de trechos do texto Gran Circo. A primeira ocorrência se dá na cena seis de Xô, Galinha Show, que possui 125 linhas e se localiza nas folhas: 3, 4, 5 e 6; correspondendo à parte do primeiro ato de Gran Circo, constante nas suas folhas 4, 5, 6 e 7. Nessa cena, em linhas gerais, representa- se um programa de televisão no qual são trazidas críticas, em tom sensacionalista, ao Corpo de Bombeiros e à situação agrária do país. A outra ocorrência é notada na cena quinze de Xô, Galinha Show, que possui 156 linhas e ocupa as linhas 9, 10, 11, 12, 13 e 14. Esse trecho corresponde em Gran Circo às folhas 13, 14, 15, 16, 17 e 18. Nessa passagem, em linhas gerais, ocorre a crítica ao sistema público de saúde no tocante à precariedade do atendimento e à corrupção na distribuição de medicamentos. Destarte, percebe-se que o texto de 1978 tem seu processo criativo bastante afetado pela produção anterior, de 1976, pois, ainda que a repetição de trechos se prenda a apenas 17

duas cenas de Xô, Galinha Show, salienta-se que tais passagens dizem respeito a mais de 60% do texto, pois são as cenas de maior extensão, ocupando 10 das 15 folhas da produção teatral, 281 das 508 linhas. A seguir, apresentar-se-ão fragmentos das citadas cenas, a fim de ilustrar as interpretações tecidas. O estudo, apresentado a seguir, será feito a partir do confronto de excertos das referidas produções teatrais, acompanhados de transcrições e análises. As modificações serão apresentadas através do destaque em negrito nos fragmentos constantes em Xô, Galinha Show. Tal encaminhamento se baseia no exemplo observado no trabalho de Isabel Novais (2004), em seu estudo crítico-genético da peça Jacob e o Anjo. Seguem as comparações de fragmentos das cenas:

Quadro 1 – Confronto entre fragmentos dos textos teatrais Gran Circo ou Gran Circo Latino Americano folha 5 e O Cabaret o segredo de Laura apresenta: Xô, galinha show folha 4

Cavalcanti – Mister Bombeiro, Há anos que Cavalcanti – Mister Bombeiro, Há anos que apresento este programa e nunca me senti tão apresento este programa e nunca me senti tão emocionado como agora. Estou chorando, senhores emocionado como agora. Estou chorando telespectadores. Chorando de emoção. Chorem telespectadores. Chorando de emoção. Chorem também colegas de trabalho. Chorem também, também, senhores telespectadores e façam como senhores telespectadores. Esse homem é um herói. eu: Limpem o rosto com lenços de papel “NÓ”. Chorem e façam como / eu. Limpem o rosto com Depois do choro o melhor papel é “NÓ”. lenços no papel “NO”. Depois do / choro o melhor Desculpem telespectadores mas é que sou muito papel é “NO” (AMADOR AMADEU, 1976, f. 5). emotivo. Mister bombeiro queira aguardar os resultados nos bastidores (AMADOR AMADEU, 1978, f. 4). Fonte: Quadro preparado pela pesquisadora Carla Ceci Rocha Fagundes.

Nota-se que Xô, galinha show (1978) possui uma redução da fala do bombeiro, em relação ao apresentado em Gran Circo (1976), com algumas diferenças como o uso da forma mulé no texto de 1976 e de mulher em 1978. A fala do apresentador Silvio Cavalcanti exibe, nos dois fragmentos, informações bastante semelhantes, com a apresentação da personagem incitando a emoção do público e a propaganda em prol do uso de lenços de papel, retratados sob a marca “NO” em Gran Circo e como “NÓ” em Xô, galinha show. Com a análise desse fragmento, o veto ao texto de 1976 pode ser justificado, entre outras razões, pela apresentação da personagem Silvio Cavalcanti, que pode ser interpretada como uma referência a Flávio Cavalcanti, apresentador que comandava um programa de sucesso na rede Tupi de televisão, e que foi punido pela ditadura em 1973, com a suspensão da atração televisiva por 60 dias. De acordo com os órgãos censórios isso se deu por conta da exibição do caso de um homem inválido que emprestou a mulher ao vizinho. Porém, acredita-se que isso tenha sido 18

apenas o estopim, pois outras atitudes do apresentador já vinham desagradando o governo militar, a principal delas seria a proteção concedida à atriz Leila Diniz, que foi perseguida pela ditadura até sua morte, em 1972.

Quadro 2 – Confronto entre fragmentos dos textos teatrais Gran Circo Raito de Sol ou Gran Circo Latino Americano folha 7 e O Cabaret o segredo de Laura apresenta: Xô, galinha show folha 5

Zenóbio – Pois a minha terra foi roubada... Zenóbio – Pois a minha terra foi roubada. Uma terra Cavalcanti – A terra do senhor foi roubada? que com muito sacrifício eu consegui. Zenóbio – Uma terra que com muito sacrifício eu Cavalcanti – Roubada! consegui. Eu trabalhava perto de sua fazenda prum Zenóbio – O Senhor quer prestar atenção à minha bandido de um patrão... (AMADOR AMADEU, história? Pois eu tou aqui desde manhã nesse 1976, f. 7). negócio de ensaio, de falar isso, não falar aquilo. Vou é falar tudo. Mas Cuma tava dizendo, eu tinha um lotim de terra e trabalhava prum safado de um patrão. Tenho as mão calejada, olha aqui... (AMADOR AMADEU, 1978, f. 5). Fonte: Quadro preparado pela pesquisadora Carla Ceci Rocha Fagundes.

Do confronto desses fragmentos, pode-se notar mais uma vez como o processo de criação de Xô, galinha show é influenciado pelo texto vetado em 1976, posto que haja a repetição de mais uma cena, com somente alguns acréscimos e supressões. Nesse caso, ainda se valendo da citação ao programa de Cavalcanti, o grupo faz menção à questão agrária, uma discussão que ganhou fôlego maior ao longo das décadas de 1970 e 1980, principalmente pela criação de movimentos de reivindicação social, como o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra – MST, entre outros.

Quadro 3 – Confronto entre fragmentos dos textos teatrais Gran Circo Raito de Sol ou Gran Circo Latino Americano folha 14 e O Cabaret o segredo de Laura apresenta: Xô, galinha show folha 11

Epaminondas – Sente-se meu filho... Epaminondas – Sente-se meu filho... Rosalvo – Eu sei que não devia vir ao psiquiatra. Rosalvo – Eu sei que não devia vir ao psiquiatra. Meu problema é outro. Eu sou fraco do pulmão, mas Meu problema é outro. Eu sou fraco do pulmão, mas como o senhor é o único médico disponível aqui. como o senhor é o único médico disponível aqui. Epaminondas – Realmente eu não sou especialista Epaminondas – Realmente eu não sou especialista em doenças do pulmão... em doenças do pulmão... Rosalvo – Eu tenho a impressão que o senhor não é Rosalvo – Eu tenho a impressão que o senhor não é especialista em doença nenhuma. especialista em doença nenhuma. Epaminondas – Eu sou especialista geral. Porque Epaminondas – Eu sou especialista geral, porque todas as doenças partem da cabeça. todas as doenças partem da cabeça. Rosalvo – Então o sr. corta minha cabeça e acabou o Rosalvo – Então o sr. corta minha cabeça e acabou o problema? problema? Epaminondas – O problema que o sr. tem no pulmão Epaminondas – O problema que o sr. tem no pulmão deve ter sido causado por alguma pancada que o sr, deve ter sido causado por alguma pancada que o sr., tomou na cabeça quando era / criança. Então é só tomou na cabeça quando era criança. Então é só fazer um tratamento mais profundo: fazer um tratamento mais profundo: eletroencefalograma e choque elétrico de 220 watts. eletroencefalograma e choque elétrico de 220 watts. Inclusive agora mesmo temos uma máquina de Inclusive agora mesmo temos uma máquina de eletroencefalograma que agrada a todos pois ela eletroencefalograma que agrada a todos pois ela comprova que todo mundo tem problemas de cabeça. comprova que todo mundo tem problemas de cabeça. 19

(Um cliente que passa na porta do consultório chega Está aqui o seu pedido de exame. na porta e grita: Luz apaga, em seguida focaliza o consultório de Cliente – Eu tava passando e ouvi o senhor receitar Dr. Rochinha (AMADOR AMADEU, 1978, f. 11). choque elétrico prá tuberculose do rapaz. Isso é um absurdo, isso é / um crime. Meu filho você tem que tomar mastruz com leite/ que vai ficar logo bom... Epaminondas – (Irritado) Não é possível... Como é que o sr. entrou aqui? Saia imediatamente. Retire-se. O senhor também está consultado e vai receber choque elétrico. O próximo... Rosalvo – Mas doutor? Epaminondas – O próximo... (AMADOR AMADEU, 1976, f. 14). Fonte: Quadro preparado pela pesquisadora Carla Ceci Rocha Fagundes

No último confronto, nota-se a repetição de mais uma cena, dessa vez com uma redução ao final, trecho em que a crítica ao médico, sem a especialização necessária para o atendimento, ficaria mais contundente. Nesse caso, observa-se uma crítica ao sistema de saúde, pelo atendimento ineficiente e negligente. A partir da comparação entre fragmentos, nota-se que as mudanças dizem respeito a substituição de alguns sinais de pontuação ou palavras e aumento/diminuição da extensão de alguns diálogos. Assim, interpreta-se que persistiu o objetivo do grupo em abordar temáticas políticas e ideológicas relacionadas a instituições públicas, situação agrária e mídia televisiva, mesmo após o veto do texto de 1976, haja vista a repetição de trechos com esse teor na produção de 1978. Nessa direção, acredita-se que Xô, galinha show provavelmente tenha sido liberada para maiores de 18 anos, sem cortes ou veto, por apresentar as cenas de forma dispersa, se valendo da utilização da técnica do happening, com a quebra da linearidade da narrativa e a sobreposição de cenas curtas.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Através da análise comparativa dos excertos dos textos Gran Circo Raito de Sol ou Gran Circo Latino Americano e O Cabaret O Segredo de Laura Apresenta: Xô galinha Show, pode-se notar a repetição de diversos trechos de um texto em outro, bem como o movimento realizado pelo grupo Amador Amadeu, no que se refere ao aproveitamento das ideias abordadas em um texto teatral, completamente vetado, em outro texto, que, ainda que tenha tido a sua apresentação liberada apenas para maiores de 18 anos, pôde ser encenado. Desse modo, através da análise do processo de criação do grupo Amador Amadeu, percebe-se que sua produção era tida como contestadora, por explorar temáticas político- 20

ideológicas contrárias ao governo, consideradas, consequentemente, perigosas para o regime militar, por incitar a revolta da população frente a instituições políticas e sociais. Contudo, mesmo diante dos entraves da censura, há que se destacar que o Amador Amadeu, a exemplo de outros grupos amadores, continuou tentando promover a reflexão por parte da população brasileira, imbuindo o seu fazer teatral de uma potência transformadora.

REFERÊNCIAS

AMADOR AMADEU. Cabaret o segredo de Laura: Xô galinha show. Salvador. 1978. 15 f. Acervo do Espaço Xisto Bahia.

______. Gran Circo Raito de Sol ou Gran Circo Latino Americano. Salvador. 1976. 44 f. Acervo do Espaço Xisto Bahia.

AUERBACH, Erich. Introdução aos estudos literários. Tradução José Paulo Paes. São Paulo: Cultrix, 1972.

BIASI, Pierre-Marc de. As edições genéticas. In: BIASI, Pierre-Marc de. A genética dos textos. Tradução de Marie-Hélène Paret Passos. Porto Alegre: EDIPUCRS, 2010.

BORGES, Rosa; SOUZA, Arivaldo Sacramento de. Filologia e Filologia como Crítica Textual. In: BORGES, Rosa et. al. Edição de Texto e Crítica Filológica. Salvador: Quarteto, 2012.

FERNANDO FULCO. Depoimento [jul. 2013]. Entrevistador: Carla Fagundes. Salvador, 2013. 1 CD.

FRANCO, Aninha. O teatro na Bahia através da imprensa: século XX. Salvador: FCJA; COFIC; FCEBA, 1994.

GRÉSILLON, Almuth. Alguns pontos sobre a história da Crítica Genética. Estudos Avançados, v. 11, n. 5, p. 7-18, 1991.

______. Nos limites da gênese: da escritura do texto de teatro à encenação. Tradução Jean Briant. Estudos Avançados, São Paulo, v. 9, n. 23, p. 269-285, abr. 1995. Disponível em: . Acesso em: 16 jul. 2015.

______. Crítica genética, prototexto, edição. Tradução de Adriana Camargo. In: GRANDO, Ângela; CIRILLO, José (Orgs.). Arqueologias da criação: ensaios sobre o processo de criação. Belo Horizonte: C/Arte, p. 41-51. 2009.

GRUPO Amador Amadeu estréia hoje com ‘Pau e Osso S/A”. Tribuna da Bahia, Salvador, 10 out. 1975.

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MENEZES, Rogério. Publicação eletrônica. [mensagem pessoal]. Mensagem recebida por em 8 ago. 2013. PARECER 5891/76. Brasília, 19 out. 1976. 1f.

SALLES, Cecília Almeida. O conceito de criação na teoria peirceana. Manuscrítica, Revista de Crítica Genética, São Paulo, n. 2, p. 99-106, 1991.

______. Gesto inacabado: processo de criação artística. São Paulo: Annablume, 2009.

SANTOS, Rosa Borges dos. Filologia e literatura: lugares afins para estudo do texto teatral censurado. In: SANTOS, Rosa Borges dos (Org.). Edição e estudo de textos teatrais censurados na Bahia: a Filologia em diálogo com a literatura, história e o teatro. Salvador: Edufba, v. 1, p. 19-65, 2012.

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NEWSGAME: O PROCESSO DE CRIAÇÃO DE UM JOGO JORNALÍSTICO

Carla Miranda B. de Freitas Cecilia Almeida Salles

Um nadador iniciante. Pouco mais que uma criança, mas já visto como promessa. O sinal de largada é dado, e ele cai na piscina para a prova dos 200 m livre, defendendo o nome de sua escola de natação. Está na frente de todos, faz a primeira virada, tem boas chances de chegar em primeiro. Desempenho fruto de talento natural, claro. Mas também de muito treino. Rotina para acordar e dormir. Cinco mil metros diários cumpridos na piscina, musculação com foco em melhorar os movimentos e exercícios de equilíbrio. Alimentação controlada nos detalhes. E isso porque o atleta ainda é tão somente uma promessa. O caminho para uma olimpíada é longo e inclui de treinamentos específicos a escolha de competições a participar, passando por eventuais dificuldades de patrocínio. Cada um desses itens guarda uma quantidade de detalhes e variáveis. Como, então, contar jornalisticamente essa história? Qual a melhor forma de conectar o leitor a esse conteúdo, fundamental para que se entenda os desafios que levam a um pódio olímpico? Tais questionamentos levaram à produção do jogo jornalístico Desafio Aquático, publicado no site do jornal O Estado de São Paulo em dezembro de 2014, como parte de um especial multimídia sobre as olimpíadas de 2016, no Rio (http://brasil.estadao.com.br/blogs/em-foca/jogoestadao/). Os jogos jornalísticos, ou newsgames, foram batizados por Gonzalo Frasca, o primeiro a produzir neste formato, em 2003, um fruto claro da convergência de mídias (BOLTER; GRUSIN, 1999). Mas o conceito ampliado, proposto por Bogost, Ferrari e Schweizer (2010), é o mais adotado atualmente, entendendo que o termo se refere a todos os tipos de interação entre o jornalismo e o universo dos videogames. Embora não se possa dizer que a produção desses newsgames seja considerável em volume, tanto na imprensa internacional quanto na nacional, sua emergência como formato possível de narrativa tem relevância na busca das empresas jornalísticas por transmitir conteúdo informativo de modo mais adequado às possibilidades digitais. E é mais um sinal do processo contínuo de convergência pelo qual a imprensa vem passando desde o início de suas operações online. Segundo Salaverría, García Avilés e Masip (2010), a convergência jornalística seria um processo multidimensional capaz de afetar o âmbito tecnológico, empresarial, profissional 24

e editorial dos meios de comunicação, ao integrar ferramentas, espaços, métodos de trabalho e linguagens anteriormente separadas. Desta forma, ainda de acordo com os autores, os jornalistas são capazes de elaborar conteúdos para distribuição em múltiplas plataformas, utilizando a linguagem própria de cada uma. Os newsgames se enquadram no que os pesquisadores espanhóis chamam de “integração de linguagens”, ao trabalharem com recursos e características tanto do jornalismo quanto dos games. Em uma perspectiva mais ampla, Henry Jenkins (2008) aponta que a cultura contemporânea é a própria cultura da convergência, promovendo a reconfiguração dos meios. Seguindo a teoria de processo de criação, conforme foi descrita por Cecília Almeida Salles (2008), o newsgame Desafio Aquático poderia ser analisado tanto por ser um dos pontos da rede, no decorrer das modificações e interações entre as mídias, quanto em si mesmo, nos detalhes de sua produção. A escolha aqui foi pela segunda opção, por mostrar e documentar o processo de criação jornalística desse jogo específico. Mas isso não significa desconsiderar o movimento maior, presente na primeira opção. Tal escolha levou em conta a quantidade bastante razoável de estudos sobre o processo de convergência de mídia em jornalismo, ao mesmo tempo em que são poucos os estudos com abordagem processual em produtos específicos. Um dos principais motivos para esse descompasso é a própria natureza do trabalho jornalístico, em que a documentação do processo é, na maioria das vezes, dificultada pelo pouco tempo entre o início e o fim de uma reportagem. Os registros ficam escondidos em blocos de anotação, que acabam e são substituídos pelo repórter muito rapidamente, sendo poucas vezes vistos como algo importante de se guardar. Por se tratar de um projeto de desenvolvimento mais longo, a produção do newsgame facilita essa documentação, assim como a necessidade de se trabalhar em equipe e compartilhar informações. No caso do Desafio Aquático, o grupo de repórteres e editores definiu desde o primeiro momento o uso de um documento do Google Drive para facilitar o contato permanente e a troca de dados entre os jornalistas. A proposta do grupo era apresentar em formato de newsgame, ou jogo jornalístico, uma modalidade esportiva olímpica. O formato foi considerado o mais adequado por suas características, conforme descrição de Bogost, Ferrari e Schweizer:

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Os jogos mostram texto, imagens, sons e vídeo, mas eles fazem muito mais: os jogos simulam como as coisas funcionam ao construir modelos com as quais as pessoas podem interagir, capacidade que Bogost deu o nome de retórica de procedimento. Essa é uma experiência irreductible para nenhum outro meio anterior” (BOGOST; FERRARI; SCHWEIZER, 2010, p. 6).

A ideia era trazer detalhes de rotina, de treinamento e outras especificidades, apresentando-as de modo interativo e interessante para o leitor, levando em conta todos os parâmetros jornalísticos de uma boa reportagem, como precisão, variedade de fontes e possíveis fatores facilitadores, entre outros. A equipe de seis repórteres (Bibiana Guaraldi, Caio Hornstein, Gabriela Korman, Marília Marasciulo, Raquel Brandão e Thiago Sawada) e uma editora teria 40 dias para a realização do projeto e contariam com o auxílio de um ilustrador/programador. Vale ressaltar que, neste artigo, será dado enfoque para a parte jornalística do processo. O trabalho de programação e ilustração só será mencionado colateralmente, na interação dos respectivos profissionais com os jornalistas. Logo na primeira reunião da equipe editorial foram tomadas decisões cruciais, levando-se em conta principalmente a história a ser apresentada e o prazo de execução. A questão que se mostrou central foi a definição da modalidade a ser abordada. A relevância do esporte para a história olímpica brasileira, traduzida tanto em número de medalhas quanto em interesse de público se sobressaiu como critério, reduzindo as possibilidades para não mais que cinco modalidades, sendo elas futebol, vôlei, natação, vela e judô. A complexidade de ilustração e de informações a serem levantadas, dada a multiplicidade de atletas/atores, provocou a eliminação dos esportes coletivos até então candidatos – futebol e vôlei. O jogo teria, então, um atleta como centro. À medida que a reflexão do grupo avançou, decidiu-se pela eliminação também do judô. O motivo para isso foi a existência de uma infinidade de jogos não-jornalísticos de luta elaborados e conhecidos demais, que poderiam estar muito presentes no imaginário do leitor. Como consequência, o leitor poderia ficar tentado a buscar correlações entre o jogo não-jornalístico (game) e o jornalístico (newsgame). E isso poderia provocar dificuldade na absorção do conteúdo jornalístico do newsgame, além do fato de que qualquer jogo jornalístico, por mais interessante e bem cuidado que fosse, teria dificuldade de competir com o que o senso comum espera de um jogo de luta. Entre vela e natação, a escolha foi pela última, dado o apelo mais popular do esporte e pelo fato de as regras da modalidade serem mais simples e de domínio da maioria dos jogadores. 26

O passo seguinte foi a escolha da pauta, ou tema, da reportagem propriamente dita. A convergência de opinião, neste momento, foi total. O grupo se encarregaria de mostrar na reportagem aspectos comuns da trajetória de um nadador. O atleta começaria como uma jovem promessa da modalidade, ainda na categoria de base, e deveria chegar ao fim do jogo como nadador experiente, com chance de medalha nas olimpíadas do Rio, em 2016. Para isso, o grupo enfocaria a rotina de treinamento, o trabalho dos treinadores, as competições que os atletas geralmente participam, a alimentação e os cuidados com o corpo. Como se buscava retratar uma trajetória possível, o jogo deveria também levar em conta fatores específicos, como obtenção de Bolsa Atleta e Bolsa Pódio, dois programas governamentais de fomento a atletas considerados de ponta, que garantem recursos financeiros para contratação de técnicos e equipes de apoio (nutricionistas, fisiologistas, etc.) e para participação em competições importantes, além de garantir que os esportistas se dediquem exclusivamente às modalidades. A equipe editorial notou rapidamente que o volume de informações que precisaria coletar para montar o jogo era bem grande, abrangendo fontes variadas – de atletas e treinadores a órgãos governamentais, como o Ministério do Esporte,federações e confederações esportivas. Como o prazo de execução era curto, o grupo decidiu se dividir imediatamente para ouvir as fontes. Foram elas, a saber: Henrique Rodrigues (nadador do Clube Pinheiros); Matheus Sant’Ana (nadador da Unisanta); André Luiz Simões Ferreira (treinador do Clube Pinheiros); João Ricardo Cozac (psicólogo, presidente da Sociedade Brasileira de Psicologia do Esporte); Andrea Zaccaro de Barros (nutricionista, presidente da Associação Brasileira de Nutrição Esportiva); Ricardo Munir Nahas (médico, diretor da Sociedade Brasileira de Medicina do Exercício e do Esporte). Cabe aqui salientar o caráter colaborativo e horizontal do projeto, uma vez que a editora e os seis repórteres participaram da definição do foco e do propósito do newsgame. Também, foram pensadas em conjunto as fontes imprescindíveis para a realização do trabalho. As entrevistas foram distribuídas entre os repórteres, que passavam o resultado diretamente para uma pasta no Google Drive, a qual todos tinham acesso. Este documento passou a funcionar como área de trabalho da equipe. Ali, a editora sabia exatamente quais entrevistas já haviam sido realizadas, quando foram feitas e o resultado prático obtido, permitindo uma visão clara da evolução do trabalho da equipe. Os repórteres criaram um documento bastante dinâmico, reduzindo a necessidade de reuniões de atualização a cada nova descoberta, deixando esses encontros para momentos determinantes. 27

A transcrição da entrevista com o nadador Henrique Rodrigues exemplifica essa interação. Uma das repórteres escreveu no documento: “Até 2011 (Henrique; nota da autora) era custeado pelos clubes e tinha patrocínio dos Correios. Em 2012, fez um projeto para conseguir recursos pela Lei de Incentivo ao Esporte.” Na sequência, deixa recado para os demais integrantes, pedindo ajuda para complementar o trabalho: “ALGUÉM PODE PESQUISAR MAIS SOBRE ESSA LEI E FAZER UM RESUMINHO? TAMBÉM TALVEZ AQUI COUBESSE ALGO DE BOLSA ATLETA NO JOGO…” O pedido não tardou a ser aceito, com a contribuição de um colega na forma de material documental, extraído do site do Ministério do Esporte, como se vê a seguir:

Lei de incentivo ao esporte: A Lei de Incentivo ao Esporte – Lei 11.438/2006 – permite que empresas e pessoas físicas invistam parte do que pagariam de Imposto de Renda em projetos esportivos aprovados pelo Ministério do Esporte. As empresas podem investir até 1% desse valor e as pessoas físicas, até 6%. (Dados do Ministério do Esporte - http://www.esporte.gov.br/index.php/institucional/secretaria-executiva/lei- de-incentivo-ao-esporte) (E o bolsa atleta?? temos estas informações?? eu não, mas tem um grupo que tá fazendo matéria sobre isso, não? podemos pegar com eles) http://www2.esporte.gov.br/snear/bolsaAtleta/prerequisitos.jsp; http://www.esporte.gov.br/index.php/institucional/alto-rendimento/plano- brasil-medalhas (Dados da pesquisa, 2014).

Na observação deste documento do Google Drive, nota-se também que a equipe fazia marcações em negrito no material bruto, indicando principalmente informações que considerava imprescindíveis ao newsgame, mas também palavras-chave sobre o treino dos atletas. A marcação era feita tanto pelo próprio autor de uma determinada entrevista quanto por seus colegas, que tinham a possibilidade de interagir a todo tempo. Para efeito de exemplificação, estão abaixo dois momentos em que isso ocorre. Vale lembrar que a marcação foi feita outras vezes, como se nota no Anexo 1:

São 3 os fatores principais na preparação de um atleta: COMER, DORMIR E TREINAR. (estávamos esquecendo do dormir!!!) *IDEAL: 8h de sono PELO MENOS”; “Sobre antidoping (ISSO É LEGAL PRO GAME!!!): depende da substância que o atleta usar. Se forem anabolizantes, punição é de dois anos (Dados da pesquisa, 2014).

A primeira reunião com o programador escolhido para o projeto, que ficaria responsável por montar a estrutura de códigos do newsgame, ocorreu uma semana após o início dos trabalhos. A equipe editorial já havia obtido as informações que até então considerava necessárias. A intervenção do programador Philip Mangione foi fundamental 28

para traduzir a ideia do grupo e as informações textuais, transformando-as no primeiro esboço do game. A apuração jornalística disponível trouxe os parâmetros iniciais para o jogo, sendo as mais importantes o número de fases que seriam necessárias ao newsgame: a rotina de treinamento e de vida social, a alimentação, as especificidades esportivas da modalidade natação e o papel do treinador. Sobre as fases, foram identificados quatro momentos principais na trajetória de um nadador: jovem promessa (tem entre 11 e 12 anos, nada provas médias, como 200 m, e disputa competições regionais); aposta (tem 15 anos, nada provas mais curtas, como 100 m, e disputa campeonatos nacionais); atleta pronto (tem entre 17 e 19 anos, nada provas rápidas, como 50 m, e disputa competições internacionais); atleta de alto rendimento (tem 19 anos, nada provas rápidas, como 50 m, e tem índice para disputar as Olimpíadas). A rotina de treinamento inclui trabalhos de piscina e de musculação, com horários bem distribuídos, e 8 horas garantidas de sono por dia. Vida social muito ativa, excesso de TV e redes sociais foram identificados como fatores que atrapalham o desempenho do atleta. Conforme o nadador avança em sua carreira, mais questões entram em cena: a necessidade de apoio psicológico e nutricional profissional, as distrações trazidas pelo assédio da mídia e a troca de treinador. Pela apuração, o atleta tem no início da carreira um técnico compartilhado com outros nadadores e, na sequência, conquista um treinador que fica exclusivamente à sua disposição. Esses parâmetros foram passados para o programador, já com o pedido de usar os técnicos como narradores/instrutores do jogador/nadador. Para preservar ao máximo o trabalho de apuração jornalística e garantir que o máximo de conteúdo informativo fosse passado ao jogador – sem que se perdesse a estrutura e as especificidades de um game –, ele sugeriu o uso de cards, cartas que os jogadores poderiam escolher. O treinador daria dicas no início de cada fase, que ajudariam nessa escolha. Quanto mais cartas o jogador acertasse, mais bem posicionado seu nadador estaria na piscina. Pela apuração, o grupo já sabia que os melhores atletas nas eliminatórias têm direito a disputar as provas nas raias centrais, menos sujeitas à interferência da marola causada pela água batendo na borda da piscina. Erros excessivos provocariam a desqualificação do nadador. Com base nessas informações, o programador desenhou o rascunho original do projeto. Este documento de processo, conforme definição de Cecilia Almeida Salles (2010), assim como demais registros do processo de criação foram obtidos graças à participação de uma das autoras do artigo no projeto em questão, na função de editora. 29

No esboço (Figura 1) estão retratadas as fases do jogo e os dois técnicos diferentes, um para as Fases 1 e 2 e outro para as Fases 3 e 4. O programador inclui dicas de melodias para serem usadas no newsgame e o número de cartas que ficariam disponíveis para o jogador em cada fase.

Figura 1

Fonte: Dados da pesquisa, 2014.

Já o desenho seguinte (Figura 2) mostra a tentativa do programador de detalhar para a equipe editorial, com pouca experiência em roteirização de jogos, o que ele estava visualizando como estrutura.

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Figura 2

Fonte: Dados da pesquisa, 2014.

Também é possível notar, à direita da Figura 2, uma série de números rasurados. São marcas de um momento específico, em que programador e equipe editorial tentavam, juntos, decidir quantas cartas o jogador precisaria escolher do total: 3 de 5 (Fase 1); 4 de 6 (Fase 2); 4 de 7 (Fase 3); 5 de 8 (Fase 4). Esse documento específico mostra claramente duas características do percurso criador (SALLES, 2006): a dinamicidade e a incerteza. E também nos remete à questão da rapidez de decisões que geralmente é notada no jornalismo. Entre a quantidade de cartas ser definida e readequada se passaram apenas alguns minutos. As mudanças foram realizadas em função da pressão de prazo – mais cartas exigiria mais tempo para apurar novas variáveis – e também para adequar o nível crescente de dificuldade nas fases, que é típica dos games. Depois dessa escolha de cartas, a ‘resposta’ seria dada de duas formas. A primeira nas próprias cartas, que seriam marcadas por X, em caso de erro, e V, se estivessem corretas. Também apareceriam nas cartas anotações como “Ideal para iniciantes” ou “Braçada ideal”, por exemplo. Na piscina, abaixo das cartas, o atleta nadaria em linha reta, nas raias centrais, se o jogador tivesse determinado número de acertos, a depender da fase em que estivesse. Em caso de alguns erros, a trajetória desceria ou subiria, em direção às bordas da piscina, onde estão as piores raias. Erro excessivo ou total determinaria o fim do jogo. 31

A partir dessas diretrizes, a equipe editorial precisaria trabalhar, dividindo a apuração em cartas possíveis e atribuindo a elas tanto a noção de certo e errado quanto graus de certo ou errado, marcados como + ou -. Para isso, os repórteres precisariam voltar à fase de apuração e entrevistas, complementando o material informativo existente até ali. O programador fez para si esquema de cenários e personagens que precisaria para ilustrar o newsgame, como mostra a Figura 3:

Figura 3

Fonte: Dados da pesquisa, 2014.

O gabarito do jogo, com base no roteiro definido, foi entregue pela equipe editorial ao programador. Inúmeros ajustes precisaram ser feitos, como pode ser visto no esquema abaixo. Para efeito de simplificação, destacamos o trabalho de ajuste editorial feito na Fase 1. O que se lê é o texto original e o que está marcado, o que foi publicado no newsgame.

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FASE 1 – atleta tem entre 11 e 12 anos, nada 200 m: 5 itens, escolhe 3 TREINO Nadar 7 mil metros na piscina (-2) O treino em excesso é prejudicial ao atleta. O ideal é nadar diariamente 5 mil metros na piscina. Treino pesado Musculação com carga (-1) No início da adolescência, exercícios de hipertrofia podem comprometer o desenvolvimento físico. Atletas de nível avançado Musculação com foco em movimentos (+1) Para desenvolver as habilidades do atleta iniciante, os exercícios focam principalmente em movimento e equilíbrio. Ideal para iniciantes Nadar 5 mil metros na piscina (+2) É importante treinar a técnica na piscina todos os dias, mas sem exagerar. O recomendado é de 5 a 6 mil metros diários. Treino equilibrado Equilíbrio (+1) Os exercícios de atletas iniciantes devem focar principalmente em movimentos e equilíbrio. Ideal para iniciantes ALIMENTAÇÃO Pão com salame (-2) Atletas devem evitar o consumo de embutidos, pois possuem alto teor de gordura. Suco de laranja natural (-1) Sucos naturais são ricos em fibras, cujo consumo deve ser limitado. Omelete com batatas (+1) Esta é uma boa refeição para atletas, pois ovos têm proteínas e batatas, carboidratos. Proteína com carboidrato Sanduíche de atum (+2) Combo carboidrato e proteína. Proteína com carboidrato Um copo de leite (+1) Rico em cálcio.

COMPETIÇÃO Frequência de braçadas alta (-2) Em modalidades de longa distância, ideal é frequência de braçadas menor e mais alongadas. Modalidade de curta distância 33

Duas pernadas para cada ciclo de braçadas (-1) Duas pernadas a cada braçada Ideal são seis pernadas para cada ciclo de braçadas, em todas as modalidades. Frequência baixa Braçada alongada (+2) Em modalidades de longa distância, a braçada alongada é muito eficiente. Respiração dois por um (+1) Respirar uma vez a cada duas braçadas Quanto mais longa for a prova, mais vezes o atleta deve respirar. Prova longa Ondulação submersa nos primeiros 10 m (+1) Mergulhar nos primeiros 10 metros Dentro do limite máximo (15m) permitido.

O que se pode notar é que a edição foi feita na maior parte das vezes para adequar o texto à quantidade de toques que poderiam ser colocados na carta, mas também ocorreram duas mudanças voltadas a aumentar a compreensão do jogador/leitor. A equipe editorial considerou que não se poderia exigir do jogador conhecimento prévio de algumas terminologias utilizadas na natação. É o caso de “Respiração dois por um”. A versão sem jargões técnicos foi mais explicativa e mais clara para leigos: “Respirar uma vez a cada duas braçadas”. Fenômeno semelhante ocorreu em “Ondulação submersa nos primeiros 10 m”, alterado para “Mergulhar nos primeiros metros”. Conhecer esses índices de inacabamento só foi possível pelo acesso direto ao arquivo do Google Drive a partir do qual a equipe trabalhou. As informações originais foram depois confrontadas com o que se publicou no newsgame. A exposição dos documentos de processo é algo ainda raro no jornalismo, embora algumas experiências nesse sentido tenham sido feitas. A que se considera mais completa – por ter sido totalmente voltada para explicitar as fases de produção – foi feita pela revista Wired em 2008 (FREITAS, 2010). A intenção do autor da reportagem The Kaufman Paradox, Jason Tanz, era registrar seu processo de criação em um blog (www.spd.org). Na sugestão para editores, escreveu: “Vamos colocar tudo online. Digo tudo mesmo - o resumo, minhas anotações, nossos e-mails, marcas de edição, entrevistas em áudio, etc. [...] uma visão atrás da cena, mostrando como uma reportagem, esta reportagem, foi concebida, escrita e editada”. Os leitores puderam interagir com o projeto e fazer sugestões. Uma linha de colaboração utilizada também por outra experiência de explicitar processos jornalísticos, desta vez realizada pelo jornal inglês The Guardian, entre 2010 e 2011. Em seu site, o Guardian passou a publicar uma lista com várias das reportagens que desenvolveria naquele dia – e os leitores poderiam contribuir com essas histórias por meio de sugestões no Twitter. 34

No caso de Desafio Aquático, a equipe considerou relevante fazer um post no blog Em Foca, mantido pelo Estadão, no qual narrou as dificuldades para a idealização e a apuração de um newsgame. Os jornalistas explicam a escolha do formato de jogo para mostrar a preparação de um atleta e também tornam públicos os percalços: da falta de tempo e experiência ao volume de informações necessárias à montagem do jogo. Em um dos trechos, os jornalistas escrevem: “O newsgame que você viu acima, aparentemente tão simples, esconde uma quantidade incrível de apuração, além de trabalho de roteiro e edição. Algo que ninguém da equipe nunca tinha feito antes.” Em outro momento, comentam: Detalhes, detalhes, detalhes. Tivemos de conversar com atletas, técnicos, nutricionistas, psicólogos, médicos. O volume de apuração, muito provavelmente, foi maior que o necessário para construir uma reportagem tradicional. Quando achávamos que tínhamos acabado a fase de entrevistas, lá vinha uma nova dúvida. E foi assim até quase o fim do processo (BLOG EM FOCA, 2014).

Difícil não notar o uso da palavra processo no discurso. Os repórteres, todos jovens profissionais, ou focas, no jargão jornalístico, se dispuseram ainda a comentar alguns erros específicos: “Mesmo quando o game ficou pronto, ele não estava pronto. Opa, a piscina está escondendo o cenário, apareceu um “a” no final de Maria Lenk, o vencedor virou Deus e está andando sobre a água…” A disponibilidade de fazer o making of do jogo, neste caso, estava muito ligada ao caráter educacional da produção: os repórteres eram trainees do jornal e queriam compartilhar o aprendizado jornalístico que tiveram. Conforme mencionado anteriormente, ainda é precária a documentação do processo de criação em jornalismo. Mas a análise desse material se mostra rica e desafiadora para pesquisadores. Nota-se que uma maior abertura em relação a esse processo poderia ser benéfica tanto para os leitores quanto para os veículos de mídia, que poderiam passar a contar com a colaboração destes. O jornalista Dan Roberts, editor do The Guardian que ficou responsável por divulgar no site do jornal antecipadamente as notícias que seriam produzidas a cada dia, escreveu um texto sobre as lições tiradas da experiência. Segundo ele, qualquer vantagem competitiva que o jornal possa ter perdido – ao deixar os temas abertos a todos, inclusive aos concorrentes – foi mais do que recompensada pelo volume de ideias e dicas dadas pelos leitores. Roberts fez questão de reproduzir parte do texto do blog Gigaom, especializado em tecnologia, ciência e mídia. “Em um passado não tão distante, a maioria dos jornais guardava mais segredos que 35

um departamento de governo; o processo de produzir jornalismo diariamente era algo só revelado a membros da irmandade.” Espera-se que este artigo seja uma contribuição e um incentivo para tornar mais explícitos os métodos de produção jornalística, mesmo que partindo de um caso específico, de um projeto com mais prazo e em um formato de newsgame, menos frequente nos veículos de comunicação.

REFERÊNCIAS

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ESTUDO CRÍTICO E GENÉTICO DE HISTÓRIA DA PAIXÃO DO SENHOR

Dâmaris Carneiro dos Santos5 Rosa Borges6

INTRODUÇÃO

Este trabalho faz parte dos estudos desenvolvidos no grupo de pesquisa coordenado pela Profa. Dra. Rosa Borges no âmbito da Equipe Textos Teatrais Censurados (ETTC), como resultado do trabalho de Iniciação Científica. Durante o período em que se desenvolveu a pesquisa, realizaram-se as seguintes atividades: produção de fac-símile, descrição e transcrição de textos, elaboração de fichas-catálogo para os textos de imprensa relativos ao teatro e à censura e para a documentação censória. Com vistas ao preparo da edição e dos estudos críticos, fez-se a montagem do dossiê da peça teatral História da Paixão do Senhor, do dramaturgo João Augusto, selecionando também a documentação paratextual e censória relativa a este texto. Nos campos da Filologia e da Crítica Genética, a partir da montagem do dossiê genético, foi realizado um estudo crítico e genético do texto teatral, situando o seu contexto de produção, considerando a materialidade dos testemunhos para, então, evidenciar o processo criativo de João Augusto na construção desse texto.

TRADIÇÃO E TRANSMISSÃO DO TEXTO

O texto teatral História da Paixão do Senhor é o resultado de uma compilação e adaptação dos textos medievais Mistério da Paixão, de Arnoul Gréban; O Pranto da Madona, de Jacopone da Todi, e A Via Sacra, de Paul Claudel, atividades realizadas pelo dramaturgo João Augusto Azevedo, tendo como tradutora Estela Fróes. A peça trata da representação da crucificação de Jesus Cristo. Este, por sua vez, é um personagem que carrega a ideologia de um sujeito crítico e indignado que, em diálogo com Maria, atribui ao povo características, como amargo, ingrato, injusto, e à cidade, cruel, além de se questionar acerca de seu sofrimento pelos homens: “JESUS – Pai... Faça-se a tua vontade. É chegada a hora. Quantas

5 Graduanda na Universidade Federal da Bahia. Bolsista FAPESB. 6 Professora Doutora na Universidade Federal da Bahia. 38

vezes precisarei morrer? Ó povo...Ó Cidade... todo o tempo, todo ano, todo ano sofrer por tua causa. Até quando? Até quando? Ó Cidade cruel, ó Povo amargo. Ó Jerusalém...” (AUGUSTO, 1978, f.5) O dramaturgo João Augusto Azevedo nasceu no Rio de Janeiro a 15 de janeiro de 1928 e, nessa cidade, no ano de 1948, deu início a sua carreira como ator, tendo, mais tarde, vindo para a Bahia, onde fez parte do corpo docente da Escola de Teatro da Universidade da Bahia (ETUFBA)7, através da mediação de Martim Gonçalves8. Posteriormente, em 1959, João Augusto, com o apoio de alguns discentes da ETUFBA, da sociedade baiana e artística, por interesses ideológicos, rompeu os laços com o diretor Martim Gonçalves e criou a Sociedade Teatro dos Novos, que pode ser classificado como o primeiro grupo de teatro profissional baiano. Dentre os espetáculos encenados por este grupo, destaca-se, aqui, a História da Paixão do Senhor, encenado em 1961 (A TARDE, 1961 apud LEÃO, 2006). João Augusto viveu e produziu na Bahia até o ano de sua morte, 1979. A tradição textual de História da Paixão do Senhor (HPS) é constituída de quatro testemunhos. Os dois primeiros se encontram no acervo do Teatro Vila Velha (TVV), o terceiro, no acervo do Arquivo Nacional, na Coordenação Regional, do Arquivo Nacional, no Distrito Federal (COREG-AN-DF), no fundo Divisão de Censura de Diversões Públicas (DCDP), e o quarto se encontra no acervo da Escola de Teatro da Universidade Federal da Bahia (ETUFBA). No período do Regime Militar, os dramaturgos faziam o envio de três cópias do texto teatral, sendo que duas eram encaminhadas ao Serviço de Censura, uma era encaminhada à Sociedade Brasileira de Autores Teatrais (SBAT) e apenas uma das cópias era devolvida ao autor, solicitante da liberação (FAGUNDES, 1974). O texto devolvido é o que se encontra na ETUFBA. Passa-se, a seguir, à descrição da materialidade física dos testemunhos9. HPSTVV1[61], um datiloscrito de 12 folhas e 382 linhas, sendo a f. 1, a capa; a f. 2, a lista de personagens, e as folhas de 3 a 12, o texto. As folhas iniciais não trazem numeração, as demais folhas são numeradas de 1 a 8, sem registro da f. 6; e três folhas são identificadas como “Pag 2”, “Pag 4.” e “Pag 5”, anexos. Há passagens do texto datilografadas em

7Nesse período (1956-1961), Escola de Teatro da Universidade da Bahia; depois, passa a Escola de Teatro da Universidade Federal da Bahia (ETUFBA) (LEÃO, 2006, p. 107). 8 Eros Martim Gonçalves nasceu em Recife a 14 de setembro de 1919. Nos anos quarenta abandonou a carreira de medicina, com especialização em psiquiatria, e passou a se dedicar à pintura e ao teatro. Em 1944 ganhou o prêmio García Lorca pela cenografia da peça Bodas de Sangue. Atuou, também, como professor de Cenografia e História do Teatro (LEÃO, 2006). 9 Os testemunhos serão indicados por siglas constituídas por título da peça, acervo, ordem cronológica dos testemunhos (quando possível) e o ano (datação reconstituída entre colchetes). 39

vermelho. Papel amarelado devido à ação tempo. Marcas de grampos, à margem esquerda. Intervenções manuscritas (rasuras e anotações) em tinha azul em todo o texto. HPSTVV2[61] é um datiloscrito mimeografado, com 9 folhas e 293 linhas, sendo a f. 1, a capa; a f. 2, a lista de personagens; a f. 3, a epígrafe; as folhas de 4 a 9, o texto. A numeração das folhas, lançada no ângulo superior direito, é irregular. Na capa, em formato retangular, o carimbo da “Soc[iedade] Teatro dos Novos / Biblioteca / Nº.”. O testemunho HPSCOREG-AN-DF[78] é um datiloscrito, com 12 folhas e 456 linhas, sendo a f. 1, a capa; a f. 2, a lista de personagens e descrição do cenário, e as folhas de 3 a 12, o texto. As folhas trazem numeração no ângulo superior direito. À margem esquerda, notam-se marcas de grampo e perfurações. HPSETUFBA[78] foi o texto devolvido ao solicitante do julgamento da peça pelo órgão censor. Assim, embora a matriz textual seja a mesma, HPSETUFBA[78] se diferencia de HPSCOREG-AN-DF[78], por trazer, no ângulo superior direito das folhas, o carimbo da Divisão de Censura de Diversões Públicas, DPF (Departamento de Polícia Federal), em formato circular, na cor azul, com assinatura/rubrica, também em tinta azul, em seu interior. No que tange à datação, os testemunhos não estão datados e foi necessário fazer a reconstituição das datas a partir de matérias de jornal e da documentação censória. Assim sendo, HPSTVV1[61] e HPSTVV2[61] foram datados de 1961, a partir da informação de que a peça foi encenada neste ano pela Sociedade Teatro dos Novos, ao ar livre, nos bairros de Salvador, conforme matérias publicadas no jornal A Tarde, em Leão (2006), e também o carimbo da Sociedade Teatro dos Novos que se verifica na primeira folha do texto do testemunho HPSTVV2[61]. Enquanto os testemunhos HPSCOREG-AN-DF[78]/ HPSETUFBA[78] foram datados a partir da documentação censória, conforme se vê a seguir:

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Quadro 1 – Documentação censória relativa ao texto da peça História da Paixão do Senhor

TESTEMUNHO DOCUMENTO ORGÃO CENSOR DATA Requerimento DCDP/DPF/DF 20/02/1978

HPSCOREG-AN- Ofício nº 1624 SCDP/SR/BA 12/06/1978 DF[78] / DCDP HPSETUFBA[78] Parecer nº 2.154/78 DPF/DCDP 22/06/1978

Parecer nº 934/78 SCTC/SC/DCDP 29/06/1978

Certificado de Censura nº 8.844/78 - 30/06/1978

Fonte: Elaborado pelas pesquisadoras.

Como primeiro documento, tem-se um requerimento enviado ao Serviço de Censura e de Diversões Públicas (SCDP) que data 20 de fevereiro de 1978, na Bahia, no qual se solicita o exame do texto de HPS. Outro ofício foi enviado em 12 de junho de 1978, do SCDP para a Divisão de Censura de Diversões Públicas (DCDP), solicitando julgamento do texto teatral, por parte desse órgão censor. Em 22 de junho do mesmo ano, o Departamento de Polícia Federal (DPF), através da DCDP emitiu o primeiro parecer de nº 2.154/78, no qual há a liberação para o ensaio do espetáculo, condicionando-o ao ensaio geral. Posteriormente, em 29 de junho de 1978, o Serviço de Censura de Teatro e Congêneres (SCTC) emitiu outro parecer de nº 934/78, liberando a encenação. O certificado de liberação de HPS de nº 8.844/78 foi emitido em 30 de junho de 1978. Assim sendo, por meio da documentação censória, chegou-se ao ano de 1978. Em relação à tradição e transmissão textuais desta peça, esclarece-se que, embora existam quatro testemunhos, dois deles circularam nos órgãos censórios e trazem o mesmo texto, fato que justifica a existência de três versões do texto apresentadas em datiloscrito, com modificações autorais (HPSTVV1[61]), datiloscrito, mimeografado, talvez passado a limpo (HPSTVV2[61]), e datiloscrito encaminhado para julgamento do Serviço de Censura (HPSCOREG-AN-DF[78]/HPSETUFBA[78]) em duas vias (uma arquivada na Coordenação Regional do Arquivo Nacional, em Brasília, no Fundo DCDP; outra, a que foi devolvida a quem solicitou o exame da peça pela Censura Federal).

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ESTUDO CRÍTICO E GENÉTICO DE HISTÓRIA DA PAIXÃO DO SENHOR

De 1961 a 1978, o texto da peça foi modificado por João Augusto. O testemunho HPSTVV1[61] apresenta várias alterações genéticas, algumas delas consideradas nos testemunhos HPSTVV2[61] e HPSCOREG-AN-DF[78]/HPSETUFBA[78]. Para edição e estudo crítico e genético, foi selecionado, no conjunto dos testemunhos de História da Paixão do Senhor, HPSTVV1[61], por se tratar de um datiloscrito com modificações autorais. Optou-se pela edição genética desse texto. Conforme Almuth Grésillon (2007, p.91),

[...] as edições genéticas visam à publicação de manuscritos mostrando o trabalho do escritor. A edição genética não tem como objeto a publicação de uma obra textual, mas a edição do que se encontra aquém: um certo estado inacabado ou ainda virtual, da escrita. Ela não estabelece um texto, mas procura tornar visível e inteligível uma etapa de sua gênese ou o processo integral que a originou.

Dessa maneira, a partir da edição, que não será objeto deste trabalho, fez-se o estudo do processo de criação de João Augusto. No datiloscrito, observam-se algumas rasuras que diferem daquelas, manuscritas. Registram-se casos de supressão e substituição por sobreposição no texto datilografado, além da utilização do recurso da cor da tinta, vermelha, para as rubricas, e preta, para o restante do texto. As alterações manuscritas feitas em HPSTVV1[61] podem ser classificadas em rasuras de substituição, supressão e acréscimo, conforme se poderá observar nos excertos selecionados para análise. A seguir, foram destacadas algumas das rasuras para mostrar o processo de criação de João Augusto nesse texto da peça.

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Figura 1 – Rasuras na f.1 de HPSTVV1[61

Fonte: João Augusto, [1961a], f.1

Nota-se, no texto destacado, que há uma rasura10 de supressão seguida de substituição. Essa alteração genética, mais tarde, foi observada nos dois testemunhos posteriores. Aqui, João Augusto suprimiu velhos à caneta de tinta azul, com dois traços na horizontal sobre a palavra, e a substituiu na entrelinha por grandes: “segundo os velhos [↑grandes] mestres:” (Fig.

1). Outras rasuras são de revisão do texto, acréscimo da letra “u” em Arno[u]ld, do acento agudo em Mistério; a substituição por sobreposição em Jacopone, na qual ele sobrepõe a letra

“n” à letra “m”, a letra o sobre a letra i (emenda datiloscrita); e, na última linha, em Froés, nota-se também uma rasura de substituição por sobreposição: “e” sobre “i” (emenda datiloscrita). Há a inserção de “[Paul Claudel (A via Sacra)]”, abaixo da segunda linha. Faz uma anotação à margem do texto, “abrir”, e usa um grande parêntese esquinado para indicar tal intervenção, separando as informações relativas aos textos tomados para adaptação e a indicação dos responsáveis pela adaptação e tradução de tais textos.

10 Na descrição e transcrição de textos, utilizaram-se os símbolos: abc (supressão); abc /a| (substituição por sobreposição); abc [↑abc] (substituição por supressão e acréscimo na entrelinha superior); [abc] (acréscimo). Os trechos manuscritos foram transcritos em fonte Lucida Calligraphy, tamanho 10. Fez-se o uso da barra inclinada para a quebra de linhas. 43

O texto reconstituído pelo editor, levando em consideração todas as alterações manuscritas e datiloscritas realizadas por João Augusto, ficaria assim:

HISTÓRIA DA PAIXÃO DO SENHOR

Segundo os grandes mestres: Arnould Greban (Mistério da Paixão) Jacopone da Todi (O Pranto da Madona) Paul Claudel (A Via Sacra)

adaptação de João Augusto tradução de Estela Fróes

Na f. 2, é possível notar que há rasuras de supressão em “determinada”, eliminando a primeira sílaba, resultando em “terminada”. Registram-se casos de substituição por sobreposição, de supressão e de substituição por supressão e acréscimo na entrelinha superior:

“sae/i\m os dois [↑profeta]” (sai o profeta), a ser acrescentado depois de “Escurece” (Fig.2).

Nota-se, depois de “será suspenso numa cruz”, um acréscimo de um x e, a seguir, o número 1 circulado, com remissão para o anexo.

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Figura 2 – Recorte na f.2 de HPSTVV1[61]

Fonte: João Augusto [1961a], f. 2

No ângulo esquerdo, ao lado da fala de Corifeu, nota-se o desenho de um círculo e, em seu interior, está escrito “veja anexo”, outro círculo menor com a letra “x” e o número “1”, e ainda um “x” do lado externo do círculo maior. Como rasura datiloscrita, tem-se uma supressão em “espinhoso” de “os” resultando em “espinho”. No anexo, “Pg.2”, traz o texto que fora acrescentado, com algumas anotações manuscritas. Registra-se, entre parênteses, o número 1, no interior de um círculo, à esquerda da fala que corresponde ao texto que completa o da folha 2. Abaixo da fala de Corifeu, uma anotação entre parênteses, em tinta azul, remete para a folha 2 (ver rubrica / pg 2). Tem-se, à frente, uma seta (→) que direciona para parte da rubrica que se apresenta na íntegra na folha 2

(Escurece. Sai o Profeta. /A forma-branca move-se e ajoelha-se. /Fala depois) (Fig.3). Confira as informações na figura que segue:

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Figura 3 – Recorte no anexo “p. 2” de HPSTVV1[61]

Fonte: João Augusto [1961a], “p. 2”.

Considerando o texto da folha 2 e o acréscimo feito no anexo “p.. 2” e alterações genéticas ali realizadas, chegou-se ao texto reconstituído pelo editor, a saber:

CORIFEU - Um Deus que morrerá por nossa causa. É preciso res- gatar o mal dos outros, as nossas culpas. Ele que deu ao povo o cetro da realeza receberá uma coroa de es- pinho. Ele que exaltou o povo com grande poder será suspenso numa Cruz. Sofrendo ele deve remediar o mal. Entre dores e amargura vai resgatar nossa culpa, a fim de que se cumpra as Escrituras. Há de sofrer torturas estendi- do na Cruz. Seu corpo será destroncado. Seu rosto será cuspido. Suas 2 mãos feridas. Seu corpo maltratado. Depois... Não haverá mais crime sem um Deus em cima. Não haverá mais uma cruz sem o Cristo. A Cruz será longa e difícil. A cruz será dura e pesada, como é pesado o peso dos nossos pecados! Ah, como será difícil levá-la - passo a passo – até morrer sobre ela. E será Ele que levará –sozinho – tudo isso. Pois é preciso carregarmos a Cruz, antes que a Cruz nos carregue. Escurece. Sai o profeta. A forma-branca move-se e ajoelha-se. Fala depois de terminada a música.

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CONSIDERAÇÕES FINAIS

Neste trabalho, realizou-se um estudo crítico e genético do texto História da Paixão do Senhor de João Augusto, pautando-se na orientação dos trabalhos de Grésillon (2007[1994]), Silva (2003), Biasi (2010) e Matos (2012), a fim de que se tornassem evidentes possíveis leituras que os movimentos de escrita podem suscitar no processo de criação de um texto, visto que a edição genética incide no estudo aprofundado dos movimentos de escritura de um texto permitindo a identificação desses movimentos e a realização da leitura crítica.

REFERÊNCIAS

AUGUSTO, João. História da Paixão do Senhor. Salvador, [1961a]. 12 f. Acervo do Teatro Vila Velha.

AUGUSTO, João. História da Paixão do Senhor. Salvador, [1961b]. 9 f. Acervo do Teatro Vila Velha.

AUGUSTO, João. História da Paixão do Senhor. Salvador, [1978]. 12 f. Acervo da Escola de Teatro da Universidade Federal da Bahia.

BIASI, Pierre-Marc de. A genética dos textos. Tradução Marie-Hélène Paret Passos. Porto Alegre: EDIPUCRS, 2010.

GRÉSILLON, Almuth. Elementos de crítica genética: ler os manuscritos modernos. Tradução Cristina de Campos Velo Birck et. al. Porto Alegre: Editora da UFRGS, 2007[1994].

LEÃO, Raimundo Matos de. Abertura para outra cena: O moderno teatro na Bahia. Salvador: Fundação Gregório de Mattos: EDUFBA, 2006.

MATOS, E. S. D. Edição Genética. In: BORGES, Rosa et. al. Edição de texto e crítica filológica. Salvador: Quarteto, 2012. 230 p.

SILVA, Ana Claúdia Suriani da. Linha reta e Linha Curva: edição crítica e genética de um conto de Machado de Assis. Campinas, SP: Editora da UNICAMP, 2003.

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DE LA VOZ A LA ESCRITA: (AUTO) TRADUCCION Y (RE) CREACION EN LA POESIA BILINGÜE (CHAIMA-ESPANOL) DE DOMINGO ROGELIO LEON

Digmar Jiménez Agreda11

INTRODUCCIÓN

Al indagar sobre nuevas perspectivas para los estudios de procesos creativos en la contemporaneidad consideré valioso tomar como referencia la traducción poética de las lenguas – culturas indígenas. A partir de la compleja elaboración de una «estética descolonial» que revaloriza cada vez más la singularidad lingüística y cultural de América Latina, en la búsqueda de construir lo que Walter Mignolo designa como “[…] la pluriversalidad en el campo de lo sensible[...]” (MIGNOLO, 2014, p.139), dicha categoría equivale a escuchar y reconocer otras formas de expresión y de hacer arte más allá de la visión neutral de valores artísticos comunes impuestos por una visón eurocéntrica para entender lo bello y lo sublime. En este sentido, opté por investigar la obra Catadores de Cuchillo (2011) del poeta Domingo Rogelio León (1935), escritor indígena venezolano del pueblo chaima que muestra en sus textos la creación de un discurso híbrido y de un pensamiento fronterizo según la percepción de un individuo que vive y existe entre dos lenguas; entre dos culturas; entre dos historias tan distintas una de la otra. Y que él interpreta mediante el cruce, las rupturas y el diálogo entre la oralidad perdida de sus ancestros, transcrita en la ortografía chaima, y el registro textual de la escritura en español. Su forma de afrontar el trabajo de singularización estética para demostrar su orgullo y reafirmar su identidad en el discurso poético. En el poemario, los desplazamientos lingüísticos, culturales y semánticos se conjugan en virtud de la elaboración de una tercera geografía discursiva. En ella se origina la enunciación del poeta, quien se reinterpreta y (auto) traduce en la medida que expone la huella de una memoria herida. Y construye la voz de una subjetividad heterogénea que habla desde la cicatriz de un dolor colonial, causado por la condena al olvido al que han sido sometidos la lengua y el conocimiento del pueblo originario del cual él también es parte.

11 Doutoranda na Universidade Federal de Santa Catarina, bolsista CAPES/CNPq. 48

La poesía de Domingo Rogelio León aparece como un instrumento de lucha, de resistencia y de reivindicación de una identidad lingüística y cultural que integra su propia alteridad. Pero, sobre todo, es la entrega de una travesía de lo oral a la textualidad de lo escrito que confecciona todo un significado estético y etnográfico tras el cual es posible caracterizar el mecanismo creativo de la (auto)-traducción inmersa en las marcas culturales donde se trascrean el pensamiento, la historia y la filosofía de vida de los chaimas. En este sentido vale agradecer al poeta por las entrevistas concedidas que me permitieron analizar aún más su proceso de creación. Así como los gratos encuentros que dieron origen a esta reflexión acerca de cómo puede llevarse a cabo las posibles restauraciones del proceso creativo de un autor/ traductor de lengua indígena (eminentemente oral) a partir de la obra escrita. Una reflexión que termina por acentuar la necesidad transdisciplinar en procura de una mayor convergencia entre los estudios de procesos creativos y otras áreas de conocimiento: la historia, la antropología, la etnografía, la traducción y las ediciones digitales multimedia. Puesto que el terreno de los escritores plurilingües y las «estéticas descoloniales» permanecen como campo abierto e innovador para la crítica genética latinoamericana en la era de la cultura global.

DEL AUTOR: DOMINGO ROGELIO LEÓN (1935- )

La figura de Domingo Rogelio León constituye en las letras venezolanas una referencia de la poesía indígena contemporánea. Escritor, investigador y poeta ha recibido varios reconocimientos por su incansable labor como autor bilingüe que nunca ha renunciado en su obra a la lengua y cultura materna, las del pueblo chaima. Al poeta le gusta reconocerse como descendiente directo de los indígenas caribes de la costa de Venezuela. Pues, nace en una de las serranías del Turimiquire ubicada en el estado Monagas, zona nor-oriental del país caribeño. Allí, en un pueblo llamado el Alto Perú (Caripe) vive su infancia hasta los cinco años de edad. (Figura 1)

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Figura 1 - Las montañas de Caripe, Edo. Monagas. Venezuela

Ilustración 1 fuentes: disponible en: http://www.venezuelatuya.com/oriente/caripe.htm

La montaña fue el lugar de los orígenes, el espacio de sabiduría ancestral en el cual los abuelos y ancianos de la comunidad transmitían las tradiciones, los rituales y las costumbres a los más jóvenes. En esa región, el poeta absorbió los sonidos y las palabras de un idioma que únicamente él y los suyos hablaban. Una lengua que imitaba y aprendía en la medida que descubría el orden natural de las sierras y se iniciaba en el conocimiento de la naturaleza, en comprender el gesto de los animales, el significado de los árboles y los movimientos del aire. Su proceso cognitivo de descubrir y enunciar el mundo; de traducirlo nació arraigado a la percepción y sensibilidad de la lengua y el pensamiento chaima, la de vivir en plenitud y armonía con la naturaleza. Dice uno de sus poema: “[...] El viento hace hablar a la montaña para que el hombre calle (El Choto Presente Morocoyma me hablaba del abuelo viento) [...]” (LEON, p. 66, 2011). En el Alto Perú todo y todos se comunicaban en chaima, la única lengua que el escritor conoció hasta que su familia se vio obligada a abandonar la montaña. En consecuencia del desalojo del pueblo chaima por parte de colonos italianos, que llegaron a las sierras para apoderarse de las zonas más productivas de Caripe. Y desterrados de sus campos, los chaimas bajaron a la ciudad donde el poeta se convirtió en un habitante más de la urbe global.

EL CHAIMA: ACERVO LINGÜÍSTICO Y CULTURAL DEL ESCRITOR

La lengua chaima pertenece al sistema lingüístico Caribe, uno de los tres mayores sistemas de lenguas indígenas de la América del Sur. Según Meira (2006) este atributo le otorga junto al Guaraní y el Arawaka el reconocimiento de lenguas primogénitas de la región Suramericana. La ramificación lingüística caribana se extendió por varios países de la región Amazónica: Brasil, Colombia, Guyana Inglesa, Guayana Francesa y Venezuela. En este último país fue una de las primeras lenguas indígenas encontradas en la época de la 50

colonización. Al respecto, Monsoyi (2000) tomando como referencia los estudios de Francisco de Táuste (1888) sustenta que el tronco caribe posee en Venezuela la categoría de lengua madre de otras lenguas indígenas extendidas por todo el territorio nacional. Los pueblos caribes se ubicaron en la región central y sur-oriental de Venezuela donde el caribe costeño desarrolló dos vertientes principales: el chaima y el cumanagoto. Observa Monsoyi (2004) que tanto el chaima como el cumanagoto aunque mantuvieron una cierta diferenciación dialectal, sus comunidades consiguieron entenderse. El chaima y el cumanagoto son lenguas caribeñas eminentementes orales; cuyos sistemas lingüísticos y gramaticales fueron descritos por los misioneros que vivieron en esas comunidades durante la época colonial. En particular por Fray Francisco de Táuste, quien vivió en el siglo XVII y fue el autor del Arte y Vocabulario de la lengua de los indios chaimas (1888). Es interesante destacar como argumenta Monsoyi que: ‟[...] todos textos escritos en caribe costeño proceden o se inspiran en materiales coloniales, lo que significa que la ortografía es totalmente ajena a cualquier tipo de transcripción lingüística y hasta diferente del español contemporáneo [...]” (MONSOYI, 2004, p. 8). Una observación totalmente pertinente, ya que ese sistema ortográfico asignado al caribe costeño viene hacer en términos de W. Mignolo: “«[...] una matriz colonial de poder que se impone para el control de la subjetividad por medio del control del conocimiento [...]” (MIGNOLO, 2014, p. 138). En efecto, la ortografía como sistema normativo impuesto resulta ajeno y distante a la expresión oral que recoge el sentir de los chaimas. No obstante, el poeta se rebela y revierte conscientemente las formalidades de la escritura, cuando hace de la grafía colonial un mecanismo creativo para traducir la oralidad y el poderío visual del idioma indígena en el pasaje de lo oral a lo escrito dentro del poemario. Con lo que alcanza a simbolizar el gran valor artístico y humano de las representaciones verbales de la cultura oral que expresan la filosofía de vida de los indios chaimas. Si bien el escenario nacional favoreció el fortalecimiento y la recuperación de las lenguas indígenas con la creación de una ley de idiomas indígenas , el desarrollo de una educación intercultural bilingüe y el ministerio del poder popular para los pueblos indígenas, en la actualidad el grupo caribe –costero vive un proceso de decadencia. La realidad del chaima es la de un idioma condenado al olvido y en peligro total de extinción. La escasa presencia de los hablantes patrimoniales anuncia su ocaso y la sentencia a muerte de su cultura. Frente a esta dolorosa realidad, el último poeta chaima lanza su grito para restituir los imaginarios y las temporalidades que lo habitan.

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DEL POEMARIO

El título del libro Catadores de Cuchillos (2011) recoge un claro indicio de tragedia y muerte. Una alusión metafórica al gusto funesto de los colonos italianos que llegaron a las Montañas de Caripe para aniquilar a los chaimas y arrebatarles sus tierras. Ese despojo condujo al desplazamiento de todo un pueblo que se dispersó hacia las zonas urbanas del Oriente de Venezuela. Dice uno de los poemas: “[...] Recuerdo mis aguas, mis candelas, mis árboles que me robaron junto con mis hijos y mis tierras (Decía el choto despojado de todo por los terrófagos italianos) [...]” (LEON, 2011, p. 42). El poemario se divide en cuatro partes para un total de sesenta poemas. En su estructura cobra destaque especial los paratextos, en particular, figuran en la dedicatoria la referencia a la madre del poeta: “«[...] a la memoria de mi madre pastora león tejedora del linaje en el piélago del tiempo [...]” (LEON, 2011, p. 11), y la ofrenda de la obra al “holocausto de las mariposas” (LEON, 2011, p. 11). Una alegoría en recuerdo al tiempo doloroso de sacrificios y matanza de los chaimas. Pero, sin duda, la mayor distinción estética de yace en la epigrafía que acompaña a cada uno de los poemas, donde el autor instala el efecto de oralidad de la lengua chaima que resuena a lo largo de todo el libro.

DE LA ORALIDAD

La tradición oral del chaima se reelabora, se reconstruye y (re)crea en la voz enunciativa de los poemas. Ahora bien ¿Cuáles son las estrategias a las que acude el poeta para textualizar la oralidad en la escritura? En primer lugar a la transcripción ortográfica del chaima. Esta aparece en negrillas e inaugura cada espacio del nuevo poema. En ella se observa la repetición de fonemas parecidos que crean el ritmo propio del idioma indígena en la enunciación poética. En esa representación oral del chaima infiero que el escritor busco colocarse en lo que W. Ong definió como la interioridad del sonido en relación con la interioridad de la conciencia y la comunicación humana misma. Expone Ong: “El sonido puede registrar la interioridad sin violarla [...]. Y, fundamentalmente, la voz humana proviene del interior del organismo humano, que produce las resonancias de la misma” (ONG, 2011, p. 75). En el caso de Domingo Rogelio León su intuición brota cuando coloca su alma en la huella acústica del chaima con el propósito de rememorar el eco de las palabras de sus ancestros, inseparables de la cosmovisión de los chaimas. Las evocaciones ocasionan la (re)creación de la oralidad de la 52

lengua materna en el despliegue de un continuum entre la oralidad y la escritura, que el poeta establece cuando en secuencia seguida traduce cada epígrafe en todos los poemas: A manera ilustrativa cito parte del poema “así”

Ure az puré kokoro Soy la flecha que dispara el sol en la mañana (Así, asume el reto de vivir el choto chaima) (LEON, 2011, p. 16)

Se advierte que el ritmo del chaima aflora sugerentemente en la organización espacial de cada texto: las pausas y la distribución grafica del discurso poético con escasos signos de puntuación refuerzan el poderío visual y pausado de la lengua indígena. Estas ocupan y marcan un espacio de diferencia en la elaboración y concepción de los poemas. Donde el discurso no depende de la sintaxis sino de la imagen. Tal como se observa en el poema ya citado y como se verá más adelante con el poema titulado “Sísifo”. En los pueblos indígenas, la memoria es el elemento vital para preserva la cultura, la tradición y la historia: Es una cuestión de vida o muerte. El universo lingüístico y cultural básicamente se transmite a los jóvenes por vía de la oralidad. De hecho, la pérdida de la memoria equivale a la perdida de la propia historia; a invisibilizar el pensamiento, las tradiciones y los saberes ancestrales; pero, tambien, de echar al olvido la propia lengua. En este sentido, el mecanismo creativo que el poeta utiliza para reconstruir esa memoria ancestral como vía para remedarse, saturarse de las heridas y sanar será el uso del discurso indirecto. Una estrategia con la cual modifica la sintaxis de la frase y suscita un espacio performatico donde coloca en escena las voces de los antepasados. De este modo, Rogelio León consigue rehacer las palabras sabias de los abuelos, la sabiduría del maturrango ( piache) asignándoles el rol de contadores de leyendas y cronista de los acontecimientos; de mentores de las normas; de portadores de saberes y de unidad de pensamiento que los jóvenes deben conocer para preservar la cosmovisión del pueblo chaima. En este sentido, varios serán los sujetos de la comunidad que aparecen como contadores de historias: la abuela, la madre, el choto, etc. A modo de ejemplo, cito el siguiente poema (re)creado a partir de las cosas que contaba la abuela Juana:

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la partida Kok-mamué konopo tepre yaka ure tekene uyao En la tarde la lluvia se queja mientras espero (Decía la abuela Juna cuando hablaba de ella) (LEON, 2011, p. 28)

De acuerdo con Ong (2011) los pueblos orales consideran que la palabra está animada necesariamente por un poder. Tambien una convicción y creencia enraizada en los chaimas que el escritor exhibe en su poemario, sobre todo cuando el potencial mágico de la palabra divina emerge de la boca de los dioses y de los piaches: a Yurykan ytu –ytaz yechet royan techerepaze ykuar yokutaz El demonio me dio su nombre y asustado lo tire al río (Me dijo un frustrado aprendiz de maturrango) (LEON, 2011, p. 59)

Los cantos, ritos, sentencias, cuentos, aforismos, máximas de los chaimas configuran formulaciones de la oralidad. Las características de su brevedad garantizan la retención y memorización de los conocimientos ancestrales a las nuevas generaciones. Tal como se evidencia en el poemario, el autor consigue recordar mediante esas expresiones fijas el pensamiento indígena que circula de boca en boca y de oído en oído, logrando con ellas exponer marcos temáticos referenciales de la historia, de la filosofía y de la experiencia de vida de los chaimas. Parte del siguiente poema (re)crea la sentencia de un sacerdote indígena en torno a las tristezas dios Zyz (el sol), del cual los chaimas se consideran hijos, la oscuridad del sol equivaldría al eclipse del pueblo chaima. elegía para los elegidos Ata Zyz apoto pra Está en tinieblas la casa del sol (Sentencia del chamán) (LEON, 2011, p. 76)

A grandes rasgos se observa como en el libro Catadores de Cuchillo (2011) existe una expresión y representación del discurso oral que al textualizarse en escrito inaugura los espacios de traducción. Según Paul Bandia (2011) el interfaz escritura-oralidad producido en 54

la transformación textual genera una forma de traducción intersemiótica (traducción propia)12 En la misma perspectiva, Bandia (2008) distingue como varias prácticas relacionadas con la traducción: recreación, transcreacion, escritura intercultural y traducción apropiada. En el próximo apartado la (auto) traducción aflora como el bien más cuidado del poeta puesto que constituye el pleno derecho a su libre creación.

LA (AUTO) TRADUCCIÓN

El mecanismo de (auto) traducción se lleva a cabo de la lengua indígena chaima, la lengua materna del poeta a su otra lengua: el español. La lengua que aprendió en la escuela a los siete años de edad; una lengua trasplantada por los colonizadores pero que al llegar a América se transformó en el español de esta orilla, e hizo de Domingo Rogelio León un individuo marcado por la duplicidad lingüístico-cultural, un ser de fronteras. Vale preguntarse entonces ¿Cómo se manifiesta la (auto)-traducción en el poemario? En primera instancia es importante destacar que no existe un conceso sobre la designación del concepto de autotraducción. Son varios los autores que han escrito sin embargo, por cuestión de espacio optamos aquí por la definición de Frances Parcerisas (2002, p. 13-14), que describe la autotraducción como “«[...] el proceso por el cual el autor vierte su propia obra en otra lengua [...]” y subraya además, “«[...] que lo excepcional de este tipo de traducción es la autoridad con que cuentan los traductores en calidad de autores de la obra original: el pleno derecho a libre creación con respecto al traductor convencional [...]” (PARCERISAS apud SORIA, p. 3, 2014) De manera que partiendo de esta consideración de Parcerisas, en la (auto) traducción, el escritor y el traductor coinciden en ser el mismo autor del texto original, con lo que esto le otorga una mayor autonomía y libertad en el proceso de creación de su obra. Tal como se comprueba en Catadores de Cuchillo (2011), donde el mecanismo creativo de la traducción es de absoluta responsabilidad de Domingo Rogelio León. Justamente, la (auto) traducción abarca la epigrafía como la respectiva correlación con los títulos de cada poema. Una puesta en escena de la alteridad lingüística y cultural del poeta. Se recuerda, que el autor es uno de los pocos hablantes patrimoniales que aún existe de la lengua chaima y esta condición le concede la autorización necesaria para (re)crear con absoluta libertad lo que escribe. Sólo él

12 Original: “Post-colonial literatures* have been characterized by the orality/writing interface, a textual transformation which can be described as a form of intersemiotic translation (see Bandia 2008)” (BANDIA, 2011, p. 111). 55

puede reconstruir el universo lingüístico y la cosmovisión de su pueblo para simbolizar su grandeza, una situación que lo convierte en lo que Helena Tanqueiro (1999) ha definido como un: “traductor privilegiado o en situación privilegiada” (TANQUEIRO apud SORIA, p. 4, 2014.), aquel que posee un claro conocimiento del proceso de creación de la obra en su calidad de autor; un dominio absoluto para solucionar dudas y tomar las más acertadas decisiones porque nunca interpretará mal su propia obra (SORIA, 2014). En efecto, Rogelio León, escritor –traductor, pensó, concibió y calculó cada uno de sus poemas. Nadie como él conoce cuál fue su verdadera intención; los propósitos y efectos buscando con la interacción oralidad y escritura en la respectiva traducción chaima –español. El proceso creativo de la (auto) traducción se presenta en el poemario como un nexo generador para la confección de la segunda parte de cada poema. Es decir, la epigrafía con versos en chaima y con su concerniente traducción en español actuaría como un estímulo para el desarrollo de la segunda sección de cada texto, la que vendrá hacer una versión, adaptación o recreación escrita de la temática introducida en los epígrafes, a manera ilustrativa traigo parte del siguiente poema sísifo «Zyz chotokon chayma dyope actayao Parawa emupra tandema Zyz, dios chayma, se levanta en el mar y se acuesta detrás de la montaña. (Credo chaima)

Limpio el camino al canto de la aurora empuño el sol y lo guardo en el bolsillo recojo la mañana y encomiendo mis pasos miro por las grietas que pretende el día[…] (LEON, 2011, p. 75)

Se advierte, que las marcas culturales relativas a la cosmovisión y experiencia de vida del pueblo chaima como elementos locales aparecen traducidas en español de forma metafórica y pragmática. La estrategia del poeta ha sido usar la lengua española, porque además de ser su otra lengua, la misma goza de una mayor representativa en el escenario global de las lenguas mayoritarias. Y él puede aprovecharla para dar a conocer su lengua indígena marginalizada en vía de extinción. Una manera de introducir una forma activa de 56

resistencia y de clara reivindicación de la preservación cultural y lingüística de los pueblos minoritarios. Domingo Rogelio León asume el rol de mediador cultural ante los lectores, quienes desconocen completamente el pensamiento, las tradiciones y los conocimientos de los chaimas. Estos por si solos, no podrán descubrir la simbología de esa sabiduría ancestral, ni valorar el lirismo del chaima. Para estimular el acercamiento a esas otras pluralidades de vida y concepción del mundo, el poeta se transforma en un traductor de referentes culturales. Como justifica, Soria (2014) el autor actúa como un mediador cultural, gracias a su bilingüismo y bicultural traduce simultáneamente los referentes culturales específicos de la cultura que son distintos a la mayoría de sus lectores y evita que los elementos esenciales de la obra no se pierda en el transvase de una lengua a otra. En el caso del escritor venezolano el asume traducirlos y (re)crearlos con un lenguaje metafórico muy cercano a las pinturas del imaginario indígena, para que el significado de los referentes culturales alcancen resonancias en toda la textura del poema y con ello facilitaría a los lectores la comprensión de la cosmovisión indígena. Así sucede en el poema anteriormente citando, donde todo gira alrededor de Zyz, el dios chayma que fue condenando por los dioses mayores a vivir detrás de las montañas. Y en esta historia, el poeta encuentra una posibilidad para trazar el paralelismo con el mito del dios griego Sísifo, la cual transgrede y transforma en una versión suya del dios chaima y que el lector conseguirá entender mediante las marcas culturales expuestas por el contexto del texto. La condición de individuo bilingüe y bicultural del poeta garantizan que la visión y la lengua del otro se invaden constantemente, con el propósito de instalar el diálogo intercultural y translingüístico que implica la apertura e interrelación con los mitos, los símbolos, los idiomas y las culturas del otro para entablar un diálogo horizontal que se despliega como un proceso permanente de negociación epistémica en una «zona de intersticios» o como denomina Silvano Santiago en “O entre-lugar” (SANTIAGO, 2000), donde se establece la representación estética de un discurso híbrido, que en el caso de Domingo Rogelio León lleva la huella del pensamiento indígena. En su poesía, la lengua colonial fue colocada al servicio de la riqueza oral del pueblo chaima y la (auto) traducción se asume como una experimentación lingüística que dentro de una matriz colonial se revela y transforma en parte de la estéticas transculturales que determinan el capital simbólico del arte en América Latina. VI. ¿Procesos creativos y (auto) traducción y (re) creación de lenguas Indígenas? En búsqueda de posibles respuestas en la era digital. 57

La posibilidad de rastrear el proceso creativo en la (auto) traducción y (re) creación de las lenguas indígenas por parte de escritores bilingües, me ha conducido a tener más dudas que certezas. Sin embargo, asumí elucubrar sobre esta temática, en primer lugar por razones personales; pero, también porque cada vez más se nos imponen la realidad plural de América. Y en segundo, por la necesidad de contribuir con la apertura de nuevas perspectivas en el campo de investigación de la crítica genética latinoamericana considerando el contexto actual del libro y la edición. En el caso de las lenguas indígenas, el investigador siempre tendrá acceso a un texto traducido, bilingüe y bicultural escrito por quien a su vez es autor-traductor. En este sentido, el “manuscrito” y la obra editada poseen el mismo estatus. Puede elucubrarse entonces que ese tránsito donde lo oral se rehace en lo escrito conformaría los borradores o pre-textos del poemario. No obstante, el escritor indígena no muestra su interés por guardarlos. Tal conseguí corroborarlo con Domingo Rogelio León y sus colegas traductores de otras lenguas indígenas. Diría entonces que el original no existe; siempre será una oralidad perdida que el autor (re) crea en su memoria, re-interpreta en la medida que la transcribe y la transforma en escritura dentro de la propia obra. Entonces, podría hablar de una (auto) traducción mental o in mente apoyándome en la postura de Rebeca Hernández (2006):

No debemos olvidar que aunque estemos hablando constantemente de traducción, en este caso, no se trata de una traducción real, es decir, no existe un texto original, sino que estamos trabajando con un constructo cognitivo que implica la traducción y no con traducción real de palabras (HERNANDEZ, apud SORIA, 2014, p. 15).

Por tanto, ese proceso de traducción mental tiende a ocurrir dentro del mismo texto. Donde el autor - traductor ejecuta en paralelo el proceso de traducción y escritura de la propia obra. El genetista sólo conoce los mecanismos creativos a partir del texto editado y será desde allí que puede comenzar a rastrear el proceso de creación. De esta manera, podrá corrobora que la (auto) traducción como dispositivo mental se va desarrollando a lo largo de la fabricación de la obra original donde la (auto) traducción y (re)creación como en el caso de Domingo Rogelio León constituyen componentes esenciales del proceso de creación de Catadores de Cuchillo (2011). No obstante, para alcanzar un visón mucho más completa del complejo proceso de este tipo de obra de autores bilingües y biculturales destacó la importancia que cobran las entrevistas y el registro de archivos sonoros con la propia voz del escritor. Como tambien con otros hablantes nativos en virtud de la recopilación de relatos orales en lengua indígena. 58

Justificó la realización y uso de este instrumento etnográfico porque pienso que los archivos sonoros de la lengua indígenas ayudarían a establecer conexiones con la materialidad del trabajo creativo de un individuo que se manifiesta a partir de lo escrito. La oralidad como foco de investigación multidisciplinaria (BANDIA, 2011) coloca al crítico de procesos creativos de escritores bilingües-biculturales a asumir la línea de la transdisciplinariedad, apoyada en la confluencia de distintos saberes y conocimientos: la antropología, traducción, literatura, etnografía, historia, estudios literarios, las epistemologías del Sur e informática. Bien, vale destacar que la interfaz oralidad y escritura como forma de traducción intersemiótica conduce al genetista a situarse en la misión de la edición genética multimedia. En suma, a una posible respuesta a la interrogante ¿Procesos creativos y (auto) traducción y (re) creación de lenguas indígenas de escritores bilingües? Atinó que una de las vías de contestación yace en asumir las soluciones de ediciones genéticas multimedia, las cuales mediante una red de vínculos hipertextuales permitan la convergencia de distintos campos de conocimientos con los sonidos propios de las lenguas indígenas, los archivos visuales e imágenes de la cultura en estudio para acompañar e interactuar con la edición de soporte-papel. Esto equivaldría aprovechar las nuevas tecnologías para ofrecer un mayor dinamismo a alternancia oralidad y escritura, a la vinculación del texto con las circunstancias de su producción y al trabajo del escritor con el tiempo y la atmosfera de su proceso creativo. El desafío reside en reunir e integrar las obras impresas con las ediciones o recursos digitales multimedia, con la finalidad de reconstruir la dinámica de la (auto) traducción y (re) creación de las lenguas indígenas, al mismo tiempo que se aspira a contribuir con la preservación del patrimonio lingüístico-cultural de los pueblos originarios de América el marco de la cultura global.13

REFERENCIAS

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______. Translation as Reparation. Writing and Translation in Postcolonial Africa. London and New York: Routledge, Taylor & Francis Group, 2008.

13 Y esto fue parte de la solución que propuse a Domingo Rogelio León para la re-edición de su libro Catadores de Cuchillos (2011) al saber que el suplemento que edita Pez de plata fue galardonado con el VI premio Nacional del libro, mención Revista Digital, en el 2010. 59

HERNANDEZ, R. La traducción intraliteraria en las literaturas africanas de lengua portuguesa: el caso de Luís Bernardo Honwana. Espéculo, revista de estudios literarios de la Universidad complutense de Madrid, 2006. Disponible en: http://www.ucm.es/info/especulo/numero34/honwana.html>. CConsulta: 25/01/2016.

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UNIVERSOS PLURAIS, DIVERSAS MÍDIAS E AS POÉTICAS INTERMÍDIAS NA EXPERIMENTAÇÃO CONTEMPORÂNEA

Eliane Cristina Testa14

A criação pode ser vista como um processo semiótico, caracterizado pelo movimento criador e pelo estabelecimento de relações entre as diferentes linguagens. Ao discutirmos imagens, palavras, sons, gestos etc., podemos fazer uso de uma perspectiva teórico- metodológica que se destaca por ativar a tessitura dos processos de criação (de um modo geral e amplo). Para Cecilia Almeida Salles, essa perspectiva traz em seu bojo conceitual outras possibilidades de leituras crítico-interpretativas para as áreas mais diversas, como o teatro, o cinema, a dança, a arquitetura, as artes visuais, a música ou a literatura. Ao lidarmos com uma materialidade heterogênea, que são os documentos de processo, podemos tentar ler/investigar o pensamento em construção (que é sempre móvel e inacabado). Essa ação de ler/investigar é pautada numa metodologia que lança mão da crítica genética. Lembramos ainda que essa metodologia proposta por Salles não visa a descrever as etapas do processo de forma linear; antes, ela oferece um modo de acompanhar as metamorfoses de uma obra/trabalho de arte (ou não), sendo estas complexas (por causa dos desvios e bifurcações) e não-lineares, e traduz, assim, a complexa lógica que envolve o ato criador. Por isso, o pesquisador vive os meandros da criação; se assim é, não se pode afirmar que a sua interpretação-leitura levará à compreensão total do processo/obra, mas sim, em contato com a materialidade do processo, ele conseguirá conhecê-lo melhor, conseguirá acompanhar seu planejamento, execução e crescimento. Além disso, passamos a verificar os sistemas e/ou mecanismos responsáveis pela geração da obra, lidando diretamente com um processo complexo de apropriações, transformações e ajustes. Tudo isso, para poder compreender a tessitura do movimento/ato criador. Na investigação, diante da materialidade estudada, o pesquisador pode olhar/ler diversos aspectos do processo, desmontando o percurso (os rastros deixados pelo artista) e colocando-o em ação novamente, reativando a sua memória e o reintegrando ao seu movimento natural, dotado de um ir e vir. Tentamos ver, neste movimento criador, os gestos,

14Doutora em Comunicação e Semiótica pela PUC/SP e Professora de Literatura Portuguesa do Curso de Letras, da Universidade Federal do Tocantins. 62

as formas de pensamento, as escolhas, as tendências do percurso e o projeto poético, que é, segundo Salles, “[...] um projeto pessoal, singular e único. ” (SALLES, 2004, p. 37). Desse modo, lidamos com a singularidade de cada artista, tentando reunir elementos que podem ser passíveis da concretização de uma obra de arte. Então, diante do armazenamento (os registros que guardam índices/informações) e da experimentação (sempre de caráter hipotético e indutivo), saímos em busca de conectar alguns dos princípios que direcionam as opções de alguns artistas estudados na nossa tese. Uma vez identificadas, as opções, as seleções puderam fornecer informações diversas a nosso estudo de doutoramento, defendido em 2015. Com base nas propostas metodológicas da crítica do percurso estabelecida por Salles, tentamos tornar legível a construção das obras de arte de um grupo de artistas brasileiros contemporâneos, a saber: Bispo do Rosário, Edith Derdy, Elida Tessler, Fabio Morais, Lenora de Barros, Leonilson, Mira Shendel e Nuno Ramos, reativando suas redes de relações e estabelecendo alguns campos de procedimentos. Lembramos ainda, conforme Salles (2004), que a criação pode ser teoricamente compreendida como semiose e rede, pois o processo criativo se dá em rede e em permanente movimento (semiose). Sob o ponto de vista crítico, essa rede de conexões faz parte de um paradigma relacional. O conceito de rede reforça a ideia de um sistema de interconexões com elementos de interação instáveis, numa regra de funcionamento e de variabilidade. A força de tal imagem da rede nos leva à compreensão de que os procedimentos dos artistas mantêm essas ações de relações múltiplas que abarcam obra/processo. Por meio dessas novas possibilidades de leituras crítico-interpretativas e diante dos registros do processo, pudemos investigar, descrever e interpretar a ocorrência de diluição ou borramentos de fronteiras entre palavra e imagem nas produções desses artistas (ou em parte delas). Em virtude da natureza e extensão do presente artigo, destacaremos alguns pontos relevantes das produções investigadas na nossa tese, mas sem nos aprofundarmos em demasia nos processos de criação dos artistas que nos levaram a tais conclusões. Assim, ressaltamos que a palavra parece ser um modo de um pensamento em construção, uma possível forma de inovação, de criação de inúmeras formas que se transformam (semiose); por isso, em sua relação com a imagem, a palavra passa de complemento para ser um (ou a) componente. Dentre os pontos relevantes acerca da semiose e dos modos do pensamento em construção (que se dão em rede), seguem algumas características que se encontram nas produções analisadas (ou em parte delas): por exemplo, a palavra-escritura quando materializada é o que possibilita a criação de novas obras e faz a cadeia criativa propiciar 63

transformações intersemióticas e intermídias; há uma matrix (ou matriz do signo), tanto do signo verbal como do visual, que processa uma transformação intersemiótica; a expressão das produções plástico-visuais e literárias nos possibilitou falar de poéticas intermídias (intermeios) e de processos intersemióticos estabelecidos a partir da fusão das linguagens, da ruptura de gênero e da concepção da palavra como um elemento expandido em sua materialidade; o tipo de escritura plástica mais recorrente nessas produções analisadas em nosso trabalho indicia uma obra mais concreta, física e sonora, que é altamente explorada, porque é ela a geradora de diversas formas de linguagens, de movimentação e transformação sígnica. Ao longo das nossas pesquisas, verificamos que o uso do verbal integrado ao visual, cada vez mais, passa a ser uma prática comum, e textos, palavras e signos escritos têm se proliferado nas artes visuais contemporâneas, talvez visando a intensificar a ausência de hierarquias, a ruptura com as convenções de gênero e a mistura de mídias e linguagens. Ao estudarmos e refletirmos sobre essas poéticas intermídias (aliás, o termo poético/a é tomado aqui no sentido de criação enquanto processo) ou sobre os diferentes modos de experimentações contemporâneas com a palavra, nós nos aproximamos das possíveis relações que pode haver entre a imagem visual, a palavra e o som. Essas possíveis relações estão intrinsecamente ligadas ao uso da linguagem escrita integrada ao visual. Pensar nesse uso nos levou a ler a palavra também a partir dos procedimentos dos artistas, ou seja, dos seus modos de ações. Ao adentrarmos as camadas dos procedimentos dos artistas, conseguimos formalizar possíveis campos de procedimentos, a saber: Campo 1 – das ações sonoras, vocais e performáticas; Campo 2 – das apropriações e Campo 3 – das visualidades escriturais. Esses três campos estabelecidos pareceram-nos suficientes para compreendermos a pluralidade dos documentos e dos procedimentos dos quais nos aproximamos. Importante destacar, ainda, que nosso estudo parte do singular para o geral. Tais campos de procedimentos nos ajudaram a expandir nosso olhar, principalmente, ao analisarmos as camadas da criação dos artistas selecionados no corpus do trabalho, verificando nas suas redes da criação o quanto essa pesquisa pode representar uma abertura para outras áreas do conhecimento. Por isso, acreditamos que a investigação pode ser levada para diferentes mídias, tais como: TV, revistas, cinema, design, web, quadrinhos, videogame, publicidade, entre outras. Reflexo de que as práticas e/ou as produções contemporâneas são plurais, mistas, heterogêneas, intermidiáticas, intersemióticas, podendo ser estabelecidas por processos de fusões, de entrelaçamentos de linguagens, de borramentos de fronteiras e gêneros. 64

Para exemplificar algumas das características descritas nos parágrafos anteriores, no que diz respeito ao uso da palavra (nos documentos de processos e nas obras), descreveremos de forma breve nosso processo de leitura interpretativa pelo viés da crítica de processo (Salles). Além disso, os documentos apresentados a seguir exemplificam uma parte da investigação do ato criativo da artista contemporânea brasileira Lenora de Barros. Vejamos:

Figura 1 - Documento de processo, Lenora de Barros. (Estudos para a série “Não quer nem ver” (2005)

Fonte: Barros (2011, p. 44)

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Figura 2 – Documento de processo, Lenora de Barros. (Estudos para a série “Não quer nem ver” (2005)

Fonte: Barros (2011, p. 44)

A partir de alguns documentos a que tivemos acesso, fizemos a sua transcrição para nos aproximarmos de uma representação que julgamos mais adequada (ao menos ao nosso olhar). Porém, nossa leitura foi focada no objeto e em sua realidade (ou realidades). Por isso, acompanhamos uma cadeia de sequências e gestos, e esses traços nos revelaram e/ou desvelaram informações do modo como as formas se transformam. Diante dos documentos, estamos em frente aos modos de pensamento da artista, e esses modos vêm materializados em palavras, diagramas, setas, barras de eliminação, desenhos, diferentes sinais tipográficos, a saber: parênteses, números, sinais de pontuação (aspas, reticências, pontos de interrogação, pontos de exclamação, sinais de mais (+), de igual (=). Esses registros todos são marcas, pegadas, fontes de informação que nos ajudam a compreender melhor as diferentes e complexas formas de um pensamento em ação. Tentamos reativar esse pensamento por meio da semiose do processo. Assim, vimos que o percurso criativo de Barros engendra um movimento que se configura de forma precária e hipotética, pois seus percursos são sempre experimentais. Recordemos o que fala Salles: “Em termos gerais esses documentos desempenham dois grandes papéis ao longo do processo criador: armazenamento e experimentação. ” (SALLES, 2000, p. 36). Esses documentos armazenam ideias, imagens, palavras e projetos, e tais informações são índices que apontam 66

para os discursos internos da artista. Diante dos diálogos internos da artista, vemos que sua mente criadora vai tomando decisões e fazendo escolhas. Esses momentos presentes nos registros evidenciam e guardam a complexidade do processo de criação, além, é claro, das suas experiências sensíveis. Observamos nesses manuscritos (escritos à mão que são também registros da memória em criação), nesses documentos de processos, os gestos advindos das mãos da artista. Essa diversidade de informações contida nos registros guarda forças psíquicas agindo, e a reunião desses traços, vestígios, indicia um movimento intenso ao vivido; por isso, podemos ver a mente criativa em estado de poesia, e esse estado de poesia rege o vir-a-ser-obra. Tais esquemas mentais que envolvem o processo de criação vão se tornando nas operações com os elementos: fotos e textos, nos quais as possiblidades experimentadas são rascunhos inacabados e metamórficos que tiram a criação (ou a obra dita acabada) do âmbito do inexplicável. Notamos uma questão importante que perpassa toda a produção de Barros: encontramos em suas camadas criativas e em seus projetos poéticos uma constante presença coautorial. Essa tendência em realizar trabalhos em parceria ou em processos colaborativos interfere, completamente, no resultado da obra, pois funde ou incorpora outras realidades, sensibilidades e olhares. Há uma recorrência desse modo de ação ou procedimento criativo, na produção de Barros. Diferentes registros testemunham seu desejo ou intenção de trabalhar em parceria ou em processos colaborativos, configurando mais uma das suas singularidades. De modo mais geral, ao nos aproximarmos dos procedimentos criadores de Lenora de Barros, a partir dos registros de percurso ou dos documentos de processo a que tivemos acesso, podemos dizer que palavra e imagem sempre caminharam juntas na trajetória artística de Barros. Palavra e imagem estão presentes em suas diferentes experimentações e nas suas redes comunicacionais. Lembramos que, em Qorpo Estranho (o número 2 da revista Poesia em Greve), a artista publica o trabalho Ri-Chora (SP/1976): este surge como uma obra de palavras; porém, pela estrutura espacial e sonora em que se apresenta na página do livro, e pelo texto que é trabalhado a partir da linguagem e dentro da linguagem, parece ser uma partitura de elocução na qual a materialidade dos signos acabaria abrindo espaço para futuras experimentações sonoras e performáticas (realizadas em Bienais e em alguns importantes espaços de arte). Assim, constatamos que a artista explora o trânsito entre as linguagens e mídias. Verificamos isso tanto em seus registros de processo quanto nos índices encontrados em seus trabalhos ditos acabados. Seguem abaixo exemplos de documentos de processo da artista e uma possível leitura realizada por nós. 67

Figura 3 – “Onde se vê” (1983), livro de Lenora de Barros

Fonte: Registro fotográfico da pesquisadora Eliane Testa

Figura 4 – “Para ver em voz alta” (2002), Lenora de Barros

Fonte: Registro fotográfico da pesquisadora Eliane Testa.

É importante lembrar que Barros publicou seu primeiro livro de poemas em 1983, intitulado Onde se vê, pela editora Klaxon. Porém, segundo a própria artista declarou em uma das nossas entrevistas, a maioria dos poemas impressos nesse livro, que estão na forma 68

palavra, ou seja, aqueles construídos pelo signo verbal impresso, foram, a priori, feitos para videotexto (também chamado de VTX da Telesp, um sistema usado, principalmente, entre os anos de 1980 e 1988). Os doze poemas, que constituem o livro Onde se vê, foram desdobrados em diferentes obras (interpretamos isso como formas que se transformam e se expandem em outros signos no movimento criador por avanços e retrocessos, ou seja, com total ausência de linearidade). São elas: videotextos, livro de poemas, instalações sonoras, performances e livro-objeto. Essa maneira de Barros lidar com a sua criação/produção já indicia um modo de pensar palavra- imagem, como um local/espaço de movimento/trânsito, desenvolvido por meio de um campo aberto à interação das mídias, em que confluem o dizível e o visível. Além disso, a artista pode fazer do seu próprio corpo uma plataforma de registro da palavra ou para a palavra. Podemos dizer que são processos que deslocam as criações em recriações, realizadas, quase sempre, pelo cruzamento das matrizes da linguagem. Ao lermos e interpretarmos sua produção artística pelo viés da criação (metodologia da crítica do processo), tentamos reativar os documentos para seguir a sua memória, isto é, rastrearmos suas pegadas, seus índices, mapeando todos os documentos de processo a que tivemos acesso (de forma direta [em seu ateliê], ou mais indiretamente em publicações impressas e/ou em outras mídias) ao longo da investigação. Desse modo, percebemos que grande parte das transações interlinguagens e intermídias tende ainda à interatividade, o que vai acentuando uma forma de pensar a palavra a partir de seu caráter dialógico. E esse caráter dialógico também faz parte das tendências de seu projeto poético; aliás, como caráter sempre hipotético, o outro está sempre presente no processo de criação de Barros. Verificando os nós da rede e perseguindo o projeto poético de Lenora de Barros, nosso foco estava voltado, podemos dizer, para um estado de transformação da palavra. Por isso, a palavra em sua produção foi lida, por nós, como um sistema de signo total, pois parece ser ela que aponta para os movimentos temporais que estão nas camadas do seu processo criativo. Nas obras de Barros, parece que a palavra ou a linguagem verbal se desenha, abre-se continuamente e metamorficamente como um vir-a-ser-sempre-um-outro-signo. E, nesse jogo, a artista vai percorrer a palavra com diferentes instalações sonoras e vocais, são poéticas experimentais da voz. Ao acompanharmos e ativarmos a memória da produção de Barros, a partir dos gestos e dos percursos criativos (via procedimentos), compreendemos melhor os modos pelos quais o texto escrito/a palavra se transforma em vídeo; em fotografia-performances (carregadas de “textos/narrativas”); em vocalizações; em performances sonoras de palavras/poemas/textos 69

escritos; em instalações verbivocovisuais, em jogos com o design da letra, da palavra, do texto etc. Depreendemos que, nas redes da criação de Lenora de Barros, a exploração da própria linguagem em suas relações intersemióticas (lembremos que a palavra verbal é um dos nós da sua rede) acontece, muitas vezes, por discursos de analogias (por dissemelhanças ou aproximações) ou, ainda, por uma das suas tendências, que é explorar o nonsensical da linguagem, ou, então, apenas pelo puro prazer de: “querer dizer”. Vimos que todo esse “jogo” intersemiótico e intermídiático, em Barros, se estabelece, em grande parte, por meio de dimensões físicas, psíquicas e sensoriais, tudo isso carregado de inúmeras e diferentes vivências culturais. Por fim, no que diz respeito à produção de Lenora de Barros, poderíamos apontar que as suas redes de comunicações se constituem pelas experimentações intermídias e intersemióticas, construídas por complexos percursos de sensações em que a palavra pode ser um input ou um dispositivo de ação transformadora. Tudo isso realizado por diferentes modos de ação ou procedimentos, que participam dos três campos de procedimentos, já referidos: Campo 1 – das ações sonoras, vocais e performáticas; Campo 2 – das apropriações e Campo 3 – das visualidades escriturais. Esses três campos podem ser considerados, na produção de Barros, um locus que nos permite ver o conjunto de execução e experimentações das obras. A palavra enquanto objeto de construção materializa desejos, sentimento de vazio ou de esgotamento, pausas, continuidades, rupturas, inacabamentos, (in)certezas, (in)completudes etc. Contudo, não é só a palavra que participa dos diferentes momentos de elaboração de suas obras: dos seus mecanismos de criação acessamos diferentes sistemas semióticos anexados em palavras, imagens e som, o que acaba por potencializar o caráter comunicativo dos seus projetos poéticos.

ALGUMAS CONCLUSÕES

Retomando a ideia de que o processo criativo é compreendido como semiose e rede, as nossas leituras crítico-interpretativas baseadas nas propostas da crítica do processo de Salles (2000, 2004, 2008, 2011), que lança mão da crítica genética, possibilitaram instrumentos para lidarmos com diferentes registros do processo. Pensar as relações entre a palavra e a imagem pelo viés do processo de criação, indiciou que a experimentação contemporânea é permeada por universos plurais, diversas mídias e pelas poéticas intermídias. Além disso, podemos 70

destacar a ocorrência de diluição ou borramentos de fronteiras entre palavra e imagem nas produções dos artistas (ou em parte delas) estudados em nossa tese de doutoramento.

REFERÊNCIAS

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APONTAMENTOS SOBRE O MANUSCRITO MODERNO E SUA REMEDIAÇÃO PARA OUTRAS MÍDIAS

Elisabete da Silva Barbosa15

As atividades de organização e preservação de objetos culturais, foco de atenção dos estudiosos de Humanidades, tem se beneficiado com o meio digital que traz soluções para antigas dificuldades, como agilidade de processamento de informação e armazenamento. A transferência de textos diversos para o meio digital torna-se um trabalho de interesse não apenas de editores, mas também de arquivistas que trabalham com a digitalização dos arquivos para permitir seu acesso de forma ampla. Chartier (2014), ao abordar a questão da disponibilização de documentos culturais em rede, reporta-se às vantagens dessa prática: possibilitar o “sonho da biblioteca universal” ou, em termos mais materiais, de uma “biblioteca sem muros”. O que no passado era hipótese distante, na contemporaneidade torna-se possível, especialmente, por uma das qualidades inerentes ao meio digital, a de virtualizar objetos materiais e, assim, replicá-los indefinidamente. No que diz respeito ao manuscrito moderno, essa prática faz desaparecer a limitação que dificultava o seu acesso, pois este, na condição de objeto material, é frágil e único. No entanto, sua condição de objeto cultural gera uma nova demanda, a de que os manuscritos devem ser disponibilizados para quem quer que se interesse por seus conteúdos e por suas histórias. A prática de edição genética digital surge como uma das respostas a essa necessidade cultural, tendo por fim estender o acesso a tais objetos. A atual situação textual, representada pela necessidade de preservação dos objetos culturais e pelo meio digital que permite a reprodução de vários aspectos de um mesmo texto em uma única edição, faz com que os sentidos dessa atividade se ampliem. Isso porque disponibilizar um objeto de natureza material e cultural e, ao mesmo tempo, preservá-lo do manuseio que acelera seu processo de desgaste, significa tornar viável a ideia de universalização do conhecimento (CHARTIER, 2014). Centrando-nos no campo editorial e com base no que diz McGann (2001), podemos afirmar que a edição passará a ser realizada em forma de hiperedições. A tecnologia da escrita digital faz com que este tipo de edição funcione de duas maneiras: como edição propriamente

15 Professora Assistente da Universidade do Estado da Bahia. E-mail: [email protected]. 74

dita e como arquivo. A tarefa do editor, ao reapresentar um texto por meio dos recursos disponíveis, é também uma tentativa de torná-lo mais legível e mais disponível. O editor, estando consciente de que as diversas apresentações de um texto não são idênticas, poderá buscar conhecimento mais profundo a respeito das materialidades com as quais lida para que, assim, possa melhor utilizar os recursos e possibilidades por elas oferecidos. O meio digital, diferente do papel, é privilegiado pelos recursos visuais que tornam possível a elaboração de edições genéticas de forma mais produtiva. Isso porque sua dinamicidade e flexibilidade permitem que se possa melhor trabalhar um componente importante do manuscrito moderno, que é a dimensão do tempo. Organizado em estrutura rizomática, este meio não pressupõe a ideia de unidade, nem a de conjunto de unidades. Deve, antes, ser entendido como uma multiplicidade de dimensões (MILLER, 2011, p. 28) para as quais não se pode definir limites precisos. Igualmente, os manuscritos assumem formato de rizoma, pois não comportam as concepções hierárquicas de início, fim ou centro. Ao contrário, nos estudos de gênese, o texto final deixa de ser privilegiado para entrar em foco a estética do inacabado. Dessa forma, os rastros materiais encontrados não podem ser identificados com as ideias de fixidez, de unidade e de linearidade. Tanto a gênese de uma obra quanto o meio digital são dotados de características rizomáticas que, segundo Deleuze e Guatarri (1995, p. 22), têm “[...] formas muito diversas, desde sua extensão superficial ramificada em todos os sentidos até suas concreções em bulbos e tubérculos”; além disso, têm como algumas de suas características, a conexão, a heterogeneidade e a multiplicidade. Porque o processo criativo guarda características que se afinam com as do meio digital, este se torna o suporte, por excelência, para a elaboração de edições genéticas. O manuscrito moderno, de característica proteiforme e instável, colabora para a mudança da ideia de textualidade que predominou num passado não muito distante e que durou, pelo menos, até o surgimento da crítica genética16. Com influência do novo contexto, reconhece-se a instabilidade da escritura como traço preponderante para o entendimento da obra em devir. O texto deixa de ser percebido como definitivo ou imutável, pois entende-se que ele é composto por uma sucessão de camadas de

16Tomamos aqui a disciplina crítica genética como divisor de águas por ocupar-se unicamente do manuscrito moderno como seu objeto e abordá-lo como portador de vestígios que conduzem a reconstrução de um processo criativo, abordando-o, portanto, a partir de uma nova concepção de textualidade. 75

escritura, ou versões geradas com a busca do escritor para materializar seus pensamentos. Utiliza, pois, suportes nos quais deixa registrado as suas dúvidas e incertezas, mas também as soluções para problemas textuais e estéticos que o ato da escrita desencadeia. A escrita, como “parte e produto de tecnologias de inscrição e duplicação” (KIRSCHENBAUM, 2009, p. 105, tradução nossa), é uma forma culturalmente estabelecida para a transmissão dos traços do passado. Como ato material, é realizada por meio de instrumentos e suportes capazes de codificar e registrar o conhecimento, a fim de transmiti-lo. Para tanto, faz uso de mídias diversas, as quais são explicadas dentro do contexto comunicacional como “equipamento técnico que permite aos homens comunicar a expressão de seu pensamento quaisquer que sejam a forma e a finalidade desta expressão” (BALLE apud GONNET, 2004 [1997], p. 16). Sobre a etimologia da palavra mídia, Gonnet (2004 [1997], p. 16) explica que é proveniente “do latim médium, ‘meio’, ‘centro’ (médium diei, ‘o meio dia’), mas também [significando] ‘intermediário’, ‘mediador’ (paci médium se offert, ‘ele se oferece como mediador para a paz’, Virgílio)”. A partir desse contexto, podemos afirmar a forma assumida pela escrita funciona como mediação necessária ao circuito do saber, especialmente em se tratando da sociedade em que o surgimento de novos suportes de escrita caracterizam-na como sociedade informatizada (LYOTARD, 2015 [1979]). Na sociedade informatizada, o computador, como um novo espaço de escrita, fez despertar uma preocupação com o desaparecimento de materiais impressos como o livro (CHARTIER,1994), a partir do que, de certa forma, foi desencadeada uma reação a essa suposta ameaça: a guarda e a proteção do conhecimento produzido no passado, inclusive se utilizando do novo suporte. Segundo Chartier (2014), ao contrário do que se pensa, o novo gera uma preocupação com o antigo de modo a promover a “proteção, conservação e divulgação do patrimônio escrito da humanidade”. Desse modo, podemos afirmar que a atividade da escrita acabou sendo beneficiada com os novos instrumentos de escrita e reprodução. No que diz respeito aos manuscritos antigos e modernos, o trabalho de reprodução fica a cargo das instituições de guarda destes materiais e de pesquisadores que se ocupam não somente com a transmissão, mas também com a preservação, o que implica na manutenção do objeto físico original tanto quanto possível, e na sua reprodução em diversos formatos. Tal contexto remete a uma situação na qual o computador foi erroneamente tomado como ferramenta portadora das soluções para todos os problemas editoriais, ao ponto de ter 76

sido entendido como uma ameaça à atividade do editor. Quanto a esse impasse, Lose (2006, p. 64) afirma que o trabalho do editor

[...] continua sendo indispensável em função das escolhas que este tem de fazer, e das adaptações dos próprios programas de computador a cada uma das idiossincrasias do texto original. Independentemente do tipo de edição eletrônica escolhida, existem princípios uniformes para a sua criação, e estes têm historicamente como base as técnicas clássicas e já abalizadas pelos séculos de uso.

Em outras palavras, o editor é o profissional apto a encontrar os caminhos para elaboração de uma edição, os quais perpassam pela criação de uma série de princípios que guiarão as suas decisões; e o meio digital não pode ser tão inovador a ponto de fazer com que os editores abandonem toda uma tradição já construída para o impresso (ROBINSON, 2013). De modo que o geneticista, quando pretende editar o manuscrito moderno, deve lidar com espaços de escrita diversos, devendo observar as implicações do uso de suportes para a atividade editorial. Parece que as questões que podem ser levantadas para a realização de edições em quaisquer dos suportes continuam as mesmas. O que muda são as respostas que podemos encontrar quando trabalhamos com um ou com o outro. Com a valorização da imagem reforçada pelo meio digital, parece que há uma tendência de que os editores façam uma abordagem mais documental dos textos, o que gera edições fac-similares, aquelas que buscam uma maior transparência documental e que evitam as intervenções do editor, abdicando da explicação do processo criativo pelo geneticista (GRÉSILLON, 2007 [2004]). Entretanto, uma das questões com as quais um editor genético deve se ocupar diz respeito à legibilidade e à clareza do manuscrito moderno por ele representado, ao que o formato fac-similar não estaria apto a responder enquanto edição, pois não é capaz de tornar um objeto cultural em um objeto de conhecimento. Para Grésillon (2007 [2004]), esse tipo de edição permite que se visualize o manuscrito, mas não facilita a sua leitura. A dificuldade de leitura de uma edição fac-similar se daria especialmente por conta das características inerentes ao manuscrito moderno, a de não seguir o padrão linear do texto impresso. Assim como a edição fac-similar, o objetivo da crítica genética é apresentar, se possível, todos os formatos já assumidos pelo texto; no entanto, essa disciplina busca resolver questões associadas à apresentação de textos inacabados e ao uso de certos recursos da computação para que o leitor possa acompanhar, de alguma forma, o processo observado pelo crítico em seus estudos de gênese. Essa orientação faz surgir um novo debate, o que se volta 77

para a funcionalidade dessas edições como arquivos e como edições propriamente ditas (ROBINSON, 2013). Para Robinson (2013), os formatos das edições digitais resultam da relação do editor com o próprio meio digital, a qual é motivada por duas das situações: quando o editor lida com as instâncias material do manuscrito e as virtuais do meio no qual a edição é produzida, surgem dificuldades metodológicas que conduzem a repensar sobre a noção de texto e de documento. A segunda questão está relaciona ao acesso que o leitor pode ter à identidade visual do manuscrito, o que permite um contato direto com o material consultado. Desse modo, o editor passa a compartilhar com o leitor suas fontes de maneira mais transparente. No entanto, torna-se sua tarefa a criação de ferramentas através das quais o manuscrito possa ser melhor apresentado e a criação de um aparato paratextual que explique a história do nascimento do texto. O geneticista, na qualidade de especialista que se debruça sobre os manuscritos de uma obra por um tempo considerável, organizando e decifrando signos que oferecem dificuldades de leitura, é aquele que melhor conhece o seu objeto de estudos, tendo por compromisso o compartilhamento de suas reflexões sobre o texto. Aliás, essa deve ser a orientação de quaisquer críticos dentro do campo literário: compartilhar os resultados de seus estudos com os leitores interessados em ampliar suas percepções sobre uma determinada obra. Parece que o meio digital propicia que o editor assuma, também, o papel de arquivista, já que sua atuação, no sentido de preservar e transmitir um texto, perpassa por alguns dos procedimentos utilizados pela arquivística, especialmente no que diz respeito ao armazenamento de informações no meio digital. Apropria-se, também, de uma tendência assumida por essa prática, a de pensar o arquivo como organização sempre incompleta. Nesse sentido, um arquivo pode sempre estar aumentando a sua extensão ou sendo alterado. A partir desse contexto, podemos afirmar que a tecnologia mais recente surge para que o documento antigo sobreviva por mais tempo e com mais qualidade: no momento em que os materiais impressos vão se transformando em objetos digitais, são submetidos a um processo de digitalização através do qual sua aparência visual pode ser preservada. No entanto, outras características inerentes ao suporte não podem ser captadas pela digitalização, como a gramatura do papel, os timbres, a filigrana, o seu estado de conservação e os instrumentos de escrita utilizados, o que deverá ser descrito pelo pesquisador. Podemos então afirmar que o novo meio torna o documento mais acessível, ao mesmo tempo em que é poupado de manuseios desnecessários, o que ajuda a prolongar a sua 78

existência física. Sobre a tarefa de transpor uma materialidade abrigada no suporte papel para o meio digital, Lourenço (2009) explica que

[...] enquanto artefacto material, ao migrar de um meio para outro, um texto perde funções e propriedades e adquire outras. O acto editorial não se limita à transposição da forma do texto para um novo formato, de um sistema de signos para um outro sistema de signos. No processo de remediação, novas versões textuais são geradas, em que as propriedades próprias de um outro meio se tornam parte integrante do texto e da construção do seu significado (LOURENÇO, 2009, p. 2).

Diante do exposto, podemos pensar o trabalho de edição em formato digital como uma forma de remediação, ou seja, “a representação de uma mídia em outra mídia” (BOLTER; GRUZIN, 2000, p. 47, tradução nossa). Essa representação, no entanto, deve levar em conta as potencialidades do novo meio utilizado para a representação. É nesse sentido que Shillingsburg (2007) pensa no editor como aquele cuja atuação se assemelha, de certa forma, a de um autor, pois a edição, como uma das práticas de escrita, consiste na “criação de novos textos que (re)presentam as obras do passado” (SHILLINGSBURG, 2007, p. 12, tradução nossa). Cria um novo texto porque muda o suporte, os códigos bibliográficos nele inserido, e inclui paratextos, os quais indicarão um modo de leitura para a organização proposta. Ainda para Shillingsburg (2007, p. 3), a edição, na qualidade de representação eletrônica, altera as condições de textualidade e, por isso, devemos buscar melhor entender a dinâmica do texto reescrito no novo suporte. A textualidade tem seus sentidos gerados a partir dos usos que dela fazem os leitores, mas também dos modos como as diversas disciplinas desenvolvem concepções que permitem uma reconfiguração do espaço da escrita. O cerne do trabalho do editor é republicar um texto que pode encarnar diversos formatos materiais. No entanto, Shillingsburg (2007) alerta que a iterabilidade da qual o texto se reveste é apenas aparente. Embora uma reprodução não nos autorize a considerá-la texto diverso, a prática editorial afeta a mais empenhada tentativa de se manter a precisão. A atividade de transcrição, por exemplo, como parte importante de uma edição genética, oferece desafios relacionados à tarefa de decifrar e interpretar os movimentos da criação. Estabelecer uma ordem cronológica para as operações de escritura e, portanto, objetivar a dimensão do tempo no suporte, perpassa pela tarefa de “compartilhar os resultados de suas [as do crítico] investigações” (GRÉSILLON, 2007 [2004], p. 165). Segundo Bolter e Gruzin (2000, p. 50-1, tradução nossa), a mídia digital funciona “em uma dialética constante com a mídia anterior, exatamente como cada uma das mídias anteriores funcionaram no momento em que foram criadas”. Assim, o modo de ação de cada 79

mídia em relação à anterior é semelhante, e o que há de novo no digital seria o uso de certas estratégias para a remediação dos objetos representacionais já postos no mundo. A remediação é, portanto, uma “característica definidora das novas mídias digitais” (BOLTER; GRUZIN, 2000, p. 47, tradução nossa). Por apoiar-se em objetos já existentes, o processo de remediação reforça a importância das mídias como um jogo no qual os signos se revestem de novas propriedades, no sentido de se tornarem mais transparentes e imediatos. Por reapresentar objetos presentes no mundo real de forma nova, a mídia, ela própria um objeto cultural, afeta a realidade. A remediação de um manuscrito em suporte papel para o digital significa não apenas o uso de uma nova tecnologia como um hardware ou software, mas a revisão das potencialidades do suporte papel, no sentido de remodelá-lo. Para Bolter e Gruzin (2000), a nova mídia incorpora as características das antigas e, de certo modo, melhora-as. Isso significa que a nova mídia, quando utilizada no contexto editorial, busca realizar a apresentação de um objeto já existente no mundo de uma forma mais transparente. Essa transparência, no entanto, não deve buscar apagar o suporte anterior, mas apresentá-lo de forma mais legível, o que implica na disponibilização de ferramentas fornecidas pelo programa utilizado, com o intuito de facilitar a consulta e análise textual (a exemplo das ferramentas que permitem a ampliação e a comparação textual), além da inserção de um paratexto que explique e refaça os caminhos da criação indicados pelos vestígios presentes no prototexto estudado.

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A NAU DOS INOCENTES DE JOSUÉ GUIMARÃES: O SILÊNCIO E O DIÁLOGO

Elisângela de Britto Palagen17 Miguel Rettenmaier18

INTRODUÇÃO

O estudo a ser desenvolvido, em fase inicial de pesquisa, trata da obra teatral não publicada A Nau dos inocentes, do escritor gaúcho Josué Guimarães, e sua relação dialógica com o teatro de Gil Vicente, mais especificamente com o texto Auto da barca do inferno (1516), que abre a trilogia Os autos das barcas (1516-1519). Para tanto, foram utilizados os pressupostos teóricos do dialogismo de Mikhail Bakhtin em relação com as teorias da Crítica Genética, que se estabelece como referencial para os estudos do processo de criação através dos documentos produzidos por um determinado autor ao conceber sua obra. A relação entre o sujeito, de Bakhtin, e o autor, da Crítica Genética, se faz possível visto que toda consciência humana é formada por valores ideológicos dos discursos que o rodeiam, sejam esses discursos contemporâneos ou pretéritos ao ato da enunciação. Ao escrever, um autor não traz consigo somente a sua voz, mas as vozes de inúmeros discursos anteriores. Dessa maneira, um autor é também um sujeito ativo, capaz de utilizar a linguagem para a formação de sua consciência individual e também de usar a sua individualidade para interferir no processo social da linguagem, através da sua atividade interacional constante junto à sociedade. Nas análises geneticistas, as teorias bakhtinianas em torno da concepção de sujeito sócio ideológico, formado por interdiscursividades, podem ser relevantes em razão da importância da observação da constituição do sujeito-autor e dos discursos de que ele se apropria para criar sua obra. No cotejo entre os datiloscritos não publicados da obra teatral Auto da barca do inferno (1516), foram percebidos elementos interdiscursivos que comprovam que Josué Guimarães se apropriou das ideologias concernentes ao teatro vicentino para criar a sua obra. O diálogo entre as obras está tanto na composição estrutural da peça, quanto na avaliação das ações humanas a da sociedade, semelhantes nas duas obras. Desta forma, é possível

17 Mestranda do Programa de Pós-Graduação em Letras da Universidade de Passo Fundo. 18 Professor Doutor do Programa de Pós-Graduação em Letras da Universidade de Passo Fundo. Coordenador do Acervo Literário Josué Guimarães. 82

vislumbrar que Josué Guimarães se apropriou do discurso de Gil Vicente, através das leituras de suas obras, para conceber a peça A nau dos inocentes.

DIALOGISMO: O ENTRECRUZAMENTO DE VOZES NA CONSTITUIÇÃO DO SUJEITO-AUTOR

Por meio das reflexões de Bakhtin e de seu Círculo (1998; 2006), na construção de uma teoria analítica dos processos e dos produtos da cultura imaterial, sustenta-se o pressuposto que todo discurso, invariavelmente, está perpassado por fios ideológicos e vozes sociais heterogêneas. Diante dessa perspectiva, Bakhtin considerou que os produtos da criação ideológica são sempre signos, os quais “[...] são criados e interpretados no interior dos complexos e variados processos que caracterizam o intercâmbio social [...], emergem e significam no interior das relações sociais, estão entre seres socialmente organizados [...].” (FARACO, 2009, p. 49). Dessa percepção, nasce o conceito de que as relações em sociedade são semioticamente mediadas, uma vez que o real nunca chega de maneira direta, mas por meio de “[...] um real informado em matéria significante [...]” (FARACO, 2009, p. 49). Além disso, pelo fato de os signos terem uma dimensão axiológica, a interação entre sujeitos e o mundo é sempre atravessada por valores, em que a palavra é circundada por uma atmosfera social de discursos pretéritos, valorativos e responsivos. Nesse prisma, a ideia do discurso perpassado pela voz alheia, ou seja, que traz o outro em sua composição, torna-se um dos princípios do pensamento bakhtiniano e fundamento de sua concepção de dialogismo, por tratar o discurso como um eu constituído por vozes de diferentes indivíduos. Dessa forma, fica conhecida a concepção de Bakhtin de que os signos não só refletem o que os circunda, bem como refratam os acontecimentos, uma vez que, quando se lê ou se diz o mundo, essa ação é perpassada pela heterogeneidade axiológica. Assim, os discursos não se relacionam diretamente com as coisas, mas com outros discursos, que semiotizam o mundo (FIORIN, 2006). Para Bakhtin, o dialogismo é o modo de funcionamento da língua:

Orientado para o seu objeto, o discurso penetra neste meio dialogicamente perturbado e tenso de discursos de outrem, de julgamentos e de entonações. Ele se entrelaça com eles em interações complexas, fundindo-se com uns, isolando-se de outros, cruzando com terceiros; e tudo isso pode formar substancialmente o discurso, penetrar em todos os seus estratos semânticos, tornar complexa a sua expressão, influenciar todo o seu aspecto estilístico. (BAKHTIN, 1998, p. 86)

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O diálogo bakhtiniano é, portanto, o espaço em que é possível observar a dinâmica do processo de interação das vozes sociais. Fiorin (2006) entende que, no viés bakhtiniano, todo enunciado possui uma dimensão dupla, pois revela duas posições: a sua e a do outro. Mesmo que a resposta caracterize uma concordância ao enunciador, esta se faz no ponto de tensão desta assertiva com outras que porventura existam. Logo, o diálogo é um espaço de tensão entre os enunciados – entendidos como as unidades reais de comunicação, ou seja, entre as vozes sociais. De posse dessa singular exposição sobre algumas das reflexões do pensador russo Mikhail Bakhtin, constata-se que é por meio das vozes sociais ou complexos axiológicos que “[...] todo dizer é, assim, parte integrante de uma discussão cultural (axiológica) em grande escala: ele responde ao já dito, refuta, confirma, antecipa respostas e objeções potenciais, procura apoio etc.” (FARACO, 2009, p. 59).

CRÍTICA GENÉTICA: UM OLHAR SOBRE O SUJEITO-AUTOR NA CRIAÇÃO DE SUA OBRA

A Crítica Genética propõe como material de análises as produções inéditas de um determinado sujeito. Esses materiais são concebidos como manuscritos, datiloscritos, esboços, mapas, ou seja, qualquer documento não publicado pelo autor e que permita, através dele, vislumbrar o processo criativo pelo qual transitou ao produzir sua obra. Com o objetivo de analisar os indícios da construção de uma obra, mapeando as primeiras anotações e ideias do artista e o desenvolvimento do processo, “[...] o interesse da Crítica Genética está voltado para o processo criativo artístico. Trata-se de uma investigação que indaga a obra de arte a partir de sua fabricação, a partir de sua gênese. Como é criada uma obra? Esta é sua grande questão.” (SALLES, 1992, p. 17). A curiosidade por desvendar os mistérios que envolvem a gênese de uma obra é realizada pelos geneticistas, que observam, em cada detalhe deixado pelo artista, a concepção da sua obra. O aspecto subjetivo é bastante considerado, uma vez que o processo de criação do autor importa mais que o produto final. A Crítica Genética propõe reconstruir o caminho percorrido pelo autor ao conceber sua obra. Tal reconstrução é feita a partir de materiais diversos produzidos pelo autor durante o processo criativo. Esse material chamado, nas análises geneticistas, prototexto é um “[...] documento no qual seja possível encontrar um traço do processo de criação”. (PINO, 2007, 18). Os prototextos podem sem encontrados em qualquer suporte que o autor tenha tido acesso a fim de expressar uma ideia, um sentimento, um levantamento de dados que poderiam, por ventura, constituir sua produção artística. Estes 84

materiais podem ser desde livros até guardanapos com anotações, anotações em margens de livros, entrevistas, gravações e assim por diante. No entanto, um conjunto de prototextos não é responsável por reproduzir, com fidelidade, o que é escrito na obra final, sendo apenas um guia para as ideias desenvolvidas pelo autor enquanto esse criava sua obra. O manuscrito se apresenta como um espaço heterogêneo, no qual diversos tempos convivem e dialogam entre si. A tarefa do geneticista seria tentar colocar esses tempos dispersos no espaço em uma ordem temporal – não uma ordem perfeita, não uma cadeia indestrutível -, mas em um movimento com direção. Na maioria das vezes, não há como estudar uma obra completa sob a perspectiva geneticista de uma só vez. Para tanto, são feitos recortes na obra analisada, ou melhor dizendo, o geneticista escolhe o caminho que quer seguir para dar rumo ao seu trabalho: um único traço, um personagem, um lugar, um momento da obra que será analisado. Ao objetivar reconstituir os passos do autor, construindo hipóteses sobre este caminho, o geneticista encontra dificuldades, afinal, os manuscritos estudados não são a obra finalizada, mas apenas ideias, hipóteses, suposições que podem ser acatadas ou descartadas pelo autor a qualquer momento, sem registro dos seus motivos para tais ações. A descontinuidade - uma brecha entre um enunciado e outro – é um dos traços analisados pelos geneticistas – ao rasurar, riscar, descartar algo já escrito em um manuscrito, o autor cria novas possibilidades dentro das já existentes. Abre-se um caminho novo que pode convergir para o caminho antigo, ou afastar-se completamente dele, tornando-se, de certa forma, um hipertexto. A Crítica Genética, portanto, pretende formular hipóteses – sustentadas pela comparação manuscritos do autor com a obra final – sobre o processo de criação da obra analisada.

DIÁLOGOS INFERNAIS: A ORIGEM INTERDISCURSIVA DE UMA OBRA

Josué Guimarães tardiamente se dedica a literatura. Apesar de eventuais publicações de contos em jornal, o início, propriamente dito, de sua produção literária, acontece a partir de 1969, após ser premiado no II Concurso de Contos do Estado do Paraná. Até então, dedicara- se ao jornalismo, exercendo múltiplas funções, de ilustrador e diagramador a editorialista e redator-chefe. A atividade profissional na imprensa demostrava uma frequente postura opinativa no que se refere à política que lhe era contemporânea, em um cenário no qual o escritor exerceu eventuais cargos na política de seu tempo, como o de vereador em Porto Alegre, eleito em 1951. A diversidade de funções pode ser associada à posterior versatilidade 85

na escrita, quando a partir dos 50 anos de idade, passa a publicar livros de contos, romances, novelas, literatura infantil e juvenil. Há, contudo, um gênero que Josué apenas visitou, pouco ousando quanto a uma exploração mais dedicada: o teatro. Para ele, a escrita teatral, apesar da maturidade como romancista e contista, talvez ainda representasse um aprendizado, trabalho de base experimental. Por isso, no um curto espaço de tempo em que escreveu roteiros, evitou publicidade quanto a sua produção. Seu único texto teatral, Um corpo estranho entre nós dois, publicado em 1983, pouco tempo antes de sua morte, não foi reeditado a pedido do próprio autor. Assim, essa produção de textos teatrais inédita, traz marcas da escritura em movimento o que justifica um estudo genético sobre a obra. Estas marcas de escritura, quando mais cuidadosamente observadas, trazem à superfície índices que colocam o autor num espaço de admiração pela literatura de expressão portuguesa. O projeto inédito A Nau dos inocentes envolve as leituras de Josué Guimarães quanto ao cânone literário português, no que diz respeito, em especial, à obra de Gil Vicente e, em especifico, ao Auto da barca do inferno (1516), que inicia a trilogia Os autos das barcas (1516-1519). Gil Vivente é uma das leituras de Josué Guimarães, no que se associa aos jogos intertextuais explicitamente advertidos, ou em um elemento paratextual, ou na própria constituição do enredo, somada à força do título, como, por exemplo, A Nau dos inocentes, no que pode evocar do teatro vicentino. Na noção de que escrever é sempre reescrever, Samoyault aponta que as associações intertextuais talvez sejam uma caracterização da própria literatura, que não atribui, na ordem da autoria, uma origem absoluta ou, ainda, “deixa de confundir origem e originalidade” (2008, p. 78). Nesse sentido, apesar de tudo já estar dito, a capacidade criativa do autor superaria a melancolia de não ser possível propriamente criar algo, justamente na assunção da memória pela qual seriam possíveis as “re-apropriações múltiplas do já dito” (2008, p. 79). A leitura é parte dessa memória que pode tanto buscar apoio em algum livro concreto, presente dentre os objetos que compõem a vida e a identidade do autor, quanto pode estar potencialmente à disposição na biblioteca interna do autor, nas coisas que leu e que permaneceram na sua (in)consciência: É a partir dos livros que Josué Guimarães articula seu discurso, sua ferramenta de ação. O realismo assim, estética associada como majoritária em sua produção literária, é algo “contaminado” pelo “filtro” da biblioteca e dos livros que conheceu. A produção literária do autor de Camilo Mortágua, principalmente no que se associa ao teatro que jamais publicou, parece apontar para o acervo de sua memória, fazendo dela a lente pela qual vê o mundo, que procura denunciar. Nesse sentido, a obra de Gil Vicente parece ser o elemento que autentica a 86

produção da obra teatral de Josué, posto que seja, provavelmente, o discurso do qual o escritor se apossou para reescrever outra história. O autor, para construir A Nau dos inocentes se vale principalmente da obra vicentina Auto da barca do inferno (1516). A trama se constitui, associada aos demais autos do teatro vicentino, de uma crítica às instituições até então jamais levada pelo autor a tamanho grau de elaboração e de ousadia. Misto de moralidade medieval e de sátira, o Auto da barca do inferno apresenta treze personagens no transe da morte, à espera da sentença que as levará, conduzidas pelo Arrais do Paraíso, o Anjo, à salvação, ou pelo Arrais do Inverno, o Diabo, à condenação eterna. São eles o Fidalgo, o Onzeneiro, Joane (o Parvo), o Sapateiro, o Frade, Florença (a moça), Brízida Dias (a Alcoviteira), o Judeu, o Corregedor, o Procurador, o Enforcado, Quatro cavaleiros e o Pajem. Desses todos, embarcam para a Glória apenas Parvo e os Quatro cavaleiros. Os demais, pelas mais distintas razões, associadas a um julgamento moral, delimitado por uma coerência não livre de certa ambiguidade, embarcam para o inferno. Entre a ortodoxia do código catolicista e um pensamento reformista, Gil Vicente parece querer mostrar os males da sociedade, o que de certa forma inviabiliza uma vida melhor aqui na terra. Nesse aspecto, Gil Vicente desapega-se das formas medievais de arte, orientadas para a glorificação e consagração do celeste. A arte anterior ao teatro vicentino, visível na escultura e na arquitetura, tanto quanto perceptível no teatro, sustentava-se em um “sistema de evocações” (SARAIVA, 1965, p. 73), não pretendendo ser imitação da natureza ou das coisas do mundo, mas construindo-se em uma codificação simbólica, a qual necessariamente aludia à comunicação a um jogo litúrgico de comunicação entre o plano terreno, sensível, e o mundo divino, o verdadeiro:

Com efeito, a liturgia é antiescultórica (e antidramática) [...] o princípio da liturgia é que, mediante certas cerimônias e certos símbolos, é possível estabelecer uma comunicação entre o mundo terreno e o mundo divino. O mundo divino – infinito, intemporal, etc. – não representável em termos do mundo terreno, mas evocável, comunicável, mediante ele. [...] Desta maneira, uma arte litúrgica (supúnhamos provisoriamente a compatibilidade dos dois termos) não pretenderá ser a representação, que dizer, uma imitação, de uma coisa que por sua natureza é irrepresentável, mas um sistema de símbolos evocadores, considerados tais por qualquer motivo, inclusive a convecção. Quanto mais insignificativos em si próprios, quanto menos imitativos, tanto mais esses símbolos realizarão a tendência litúrgica (SARAIVA, 1965, p. 73).

O teatro vicentino supera a liturgia. Mesmo os “tipos”, os que apresentam, não são prefigurações ao sagrado, não são um “mostrador mediante o qual se contate com o outro 87

plano de vida” (SARAIVA, 1965, p. 73), mas objetividades pelas quais, no novo caminho do teatro, é possível a observação do ser humano.

A NAU DOS INOCENTES: O SILÊNCIO DA BARCA

A produção literária dramática de Josué Guimarães, como já dito, em grande parte inédita, inclui um texto com fortes influências do teatro vicentino. A nau do inocentes é um projeto composto de três prototextos acondicionados no ALJOG/UPF. Há um esquema manuscrito, em um caderno de atas, que esboça o enredo da peça, as partes e as personagens, e as duas versões datiloscritas, que desenvolvem esse esboço inicial. Uma versão, em folhas de pauta da Folha de São Paulo, com várias marcas de revisão, tem 64 páginas; outra, encadernada, em folhas de ofício, caracteriza-se por poucas intervenções manuscritas do autor na forma de rasuras, tem 59 páginas. Sobre esta última versão, foram estabelecidas algumas considerações, em um estudo que se encontra em fase inicial. A escolha dessa versão se dá pelo fato de parecer, pela encadernação e pela ausência de rasuras, talvez, a mais próxima de uma etapa conclusiva de trabalho. A peça se estrutura em dois atos e seis quadros. Estão previstos, em indicações de regência, em uma lista, seis atores, os quais representarão dezoito personagens. O primeiro ato, em cinco quadros, foca acontecimentos que fazem parte do mundo profano; o segundo ato se dá no plano sobrenatural, quando as personagens se deparam, na pós-morte, com a barca dos mortos. Os quadros do primeiro ato são os seguintes, como indicado pelo autor: Quadro 1. O prostíbulo Quadro 2. O político Quadro 3. O tribunal Quadro 4. A delegacia Quadro 5. (não numerado nos datiloscritos). A guerrilha. O quadro único do segundo ato chama-se “A barca dos Mortos”. Os dezoito personagens, como já dito, representados por seus atores são distribuídos previamente, permitindo, o autor, contudo, que essa distribuição possa ser alterada, “visando a melhorar o desempenho de cada um, além de suas características pessoais”. Assim, por exemplo, a Prostituta, que aparece no primeiro quadro, pode ser a mulher do político, no quadro II. Da mesma forma, o General, que é representado no último quadro do primeiro ato intitulado “A Guerrilha”, pode ser o Policial do quadro 4, “A delegacia”. Essa associação entre os personagens em torno de um ator não parece ser aleatória, embora se registre a 88

flexibilidade do autor nos papéis a serem assumidos. A prostituta, como se verá, parece contaminar as ações da mulher do político. O general terá elementos de ligação, na natureza das atribuições e das ações autoritárias, com o policial. O primeiro quadro apresenta o diálogo entre a Prostituta, o Executivo e o Vendedor (antes arrolado como Representante Comercial) e o Médico. Nesse quadro, o cenário apresenta três paredes inteiriças de cor cinza claro, contendo ao fundo, um grande símbolo erótico. Há apenas uma cama simples e um ou dos bancos em cena. A ação envolve o conflito entre a mulher e seus clientes. Ao executivo, informado pela Prostituta, aflige o medo de ter contraído tuberculose de outra prostituta, na mesma casa, afetando assim, a saúde da família; quanto ao Vendedor, representante de um laboratório multinacional de produtos para a lavoura e a pecuária, a discussão se dá em torno das ideais da venda e das mercadorias, o que acaba por reificar a Prostituta, que reage e expulsa o homem do quarto. Ao fim do quadro, o Médico, em um momento de comicidade no drama, a pedido a dona do prostíbulo, adentra em cena para examinar a mulher, tendo em vista as febres que acontecem na casa. A Prostituta seduz o Médico, apesar da resistência dele, afirmando: “Deixe disso, doutor. E depois ninguém vai ficar sabendo. Espero um pouco, o senhor está nervoso... a ética fica um pouquinho mais para baixo, assim, meu amor”. O segundo quadro tem o mesmo cenário, substituído, ao fundo, o símbolo erótico por um símbolo do Congresso nacional de Brasília. O conflito envolve políticos discutindo a filiação de um deles a um novo partido, no momento da reabertura política, com o fim do bipartidarismo. Em jogo está a questão da fidelidade aos ideais, contrapostos às vantagens nos jogos de conveniências em torno do poder. No diálogo, a Mulher do Político, um dos que está em cena – representada pela mesma atriz que faz Prostituta do quadro anterior – tem importante papel na ideia de que se “vire a casaca”. O terceiro quadro, o cenário apresenta uma balança desequilibrada, e a ação se dá em um tribunal. Há um juiz que entre a Defesa e a Acusação, suaviza a pena um assassino, justificando a sentença por tratar-se de um crime motivado por legitima defesa da honra. O quarto quadro tem no cenário o símbolo do Esquadrão da morte e apresenta um interrogatório. O delegado inquire um casal de ladrões, acusado de invasão de propriedade e furto. A violência como são acusados pelo Delegado associa-se às agressões desferidas contra o casal por um soldado. A motivação do crime, o desemprego do homem e da mulher, as dificuldades em sustentar quatro filhos, nada disso comove o Delegado. A tortura faz parte investigação. O quinto quadro, em um cenário com símbolos militares, apresenta a conversa entre Oficias do Exército: em discussão está a luta 89

armada e as táticas do Exército para conter os revolucionários. A cena carnavaliza as ações do poder, desconstruindo as autoridades, apresentando-as como personagens bufas. O segundo ato encerra a peça. Em um cenário em que há uma roda de leme rústica, um relógio de pêndulo sem ponteiros e uma estante de um livro. Envolto em uma capa negra, sempre aberta, o Caronte espera as almas. São julgados a Prostituta, o Político, o Juiz, o Delegado e o General. Destes, apenas a mulher encontra a Glória e o perdão.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

A presente pesquisa, em fase inicial de análises, relaciona a produção da obra teatral A Nau dos inocentes, do autor gaúcho Josué Guimarães, como um ato responsivo de suas leituras, principalmente, das obras que formam a trilogia O auto das barcas (1516-1519), em específico, ao Auto da barca do inferno (1516). Impregnado pelos discursos formadores da obra vicentina, Josué se vê de posse de novas vozes, construindo um elo dialógico entre o que escreveu e os valores ideológicos pertencentes à obra de Gil Vicente. Assim, nas análises ancoradas nos pressupostos dialógicos bakhtinianos e nas teorias da Crítica Genética, pode-se perceber que um sujeito, até mesmo no processo criativo de sua obra, é transpassado por várias vozes. Dessa forma, as vozes e as ideologias empregadas por Guimarães ao escrever A Nau dos inocentes são oriundas dos discursos anteriores que formaram sua consciência, que o constituíram como um sujeito capaz de tecer opiniões e expressá-las por meio de seus escritos. A sociedade e a moralidade, apresentadas na obra de Guimarães, colocam em discussão a ética e as tomadas de posição, mostra a política sem ideal, a justiça que não é justa, os aparelhos de repressão contaminados pelo autoritarismo. Contudo, o texto teatral só pode ser dessa forma forjado por dialogar ideologicamente com o teatro de Gil Vicente. O não conhecimento do discurso de Vicente inserido na trilogia O auto das barcas (1516), não possibilitaria a Josué Guimarães a criação de sua obra, até hoje inédita.

REFERÊNCIAS

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______. Marxismo e Filosofia da Linguagem: Problemas fundamentais do método sociológico na ciência da linguagem. 12º ed. São Paulo: Hucitec, 2006.

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FARACO, C. A. Linguagem & Diálogo: as ideias linguísticas do Círculo de Bakhtin. São Paulo: Parábola, 2009.

FIORIN, J. L. Interdiscursividade e Intertextualidade. In: BRAIT, B. (org.). Bakhtin: outros conceitos-chave. São Paulo: Contexto, 2006, p. 161-193.

PINO, Claudia Amigo; ZULAR Roberto. Escrever sobre escrever: uma introdução crítica à crítica genética. São Paulo, WMF Martins Fontes, 2007.

REBELLO, Luiz Francisco. Introdução dos autos das barcas. In: VICENTE, Gil. Os autos das barcas. 4.a ed. Lisboa: Publicações Europa-América, 1982.

SALLES, Cecília Almeida. Crítica Genética – Uma introdução. São Paulo: Editora da Pontifícia Universidade Católica - PUC, São Paulo 1992.

SAMOYAULT, Tiphaine. A intertextualidade. São Paulo: HUCITEC, 2008.

SARAIVA, António José. Gil Vicente e o fim do teatro medieval. Lisboa: Publicações Europa-América, 1965;

VICENTE, Gil. Os autos das barcas. 4.a ed. Lisboa: Publicações Europa-América, 1982.

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UMA ÉPOCA, UMA VIDA, NA BAHIA – 1928/1962: ESTUDO GENÉTICO DE DATILOSCRITO DE MANOEL PINTO DE AGUIAR

Elizete Leal Candeias Freitas19 Arivaldo Sacramento de Souza20

Considerando a proposta de realizar um estudo genético em datiloscritos de Manoel Pinto de Aguiar, faz-se necessário situá-lo no âmbito da Filologia e, consequentemente, no da Crítica Textual, assim como no campo da Crítica Genética, para que, posteriormente, possamos compreender os caminhos percorridos na discussão sobre a materialidade e os movimentos textuais encontrados. Portanto, revisaremos, aqui, algumas abordagens que aproximam teorias e sugerem ler o manuscrito moderno como o documento que guarda as vivências sócio-históricas do autor, do fazer o texto e da época em que ele foi construído, como um processo lento, progressivo e (possivelmente) inacabado. Entendendo a Filologia “[...] como o conjunto das atividades que se ocupam metodicamente da linguagem do homem e das obras de arte escritas nessa linguagem” (AUERBACH, 1972, p. 11), podemos, contemporaneamente, adotar posturas filológicas que leiam o texto nas diferentes versões em que o mesmo circula, dialogando com outros saberes, com o intuito de construir significados para o que apresenta cada versão textual, a depender do modo como o texto se mostra, através do seu suporte, de como foi estabelecido, das intervenções efetuadas, da maneira como circulou numa determinada sociedade, e até de como foi recepcionado por um público em questão. Para tanto, há de se fazer uma pesquisa exaustiva no processo de produção, circulação e transmissão de cada testemunho envolvido numa tradição para que se possa afirmar se são cópias uns dos outros, se estão ainda num processo de escrita, ou se são textos divergentes que se unem somente pela temática afim. É dessa forma que a postura filológica adotada na Antiguidade, em prol da reconstituição de um texto puro/higienizado/original/verdadeiro, vem sendo substituída por práticas editoriais que consideram as diversas produções de sentido encontradas na tradição (SOUZA, 2012, p. 186). A práxis filológica contemporânea é consequência de um processo lento que tem como referência o desdobramento da Filologia em outras disciplinas como a Linguística (histórica e diacrônica) e a Crítica Textual. Interessa-nos, portanto, apreciar como esta, “[...] que tem como objeto de estudo o texto, tanto na sua existência material e histórica como na função de

19 Mestranda pelo Programa de Pós-Graduação em Literatura e Cultura. E-mail: [email protected] 20 Professor do Instituto de Letras da Universidade Federal da Bahia. E-mail: [email protected] 92

testemunho documental e literário” (BORGES, 2003, p. 46), se apresenta em modalidades distintas e consonantes com o comportamento adotado por um editor. Das modalidades21 encontradas, destacamos a Crítica Textual Genética, pois, numa perspectiva filológica, permite entender o processo de escritura da obra ou de um determinado testemunho, a datar da sua gênese até a sua última forma encontrada, desde que se considere os estudos efetuados através de manuscritos sob a forma de esboços, notas, cópias e tudo que puder demonstrar marcas de manipulação autógrafa. Almeja-se, dessa forma, que a Crítica Textual e a Crítica Genética, caminhem de mãos dadas no transcorrer das análises efetuadas. Ressaltamos, porém, que a Crítica Textual, mesmo na modalidade Crítica Textual Genética, se diferencia da Crítica Genética, pois estuda a materialidade histórica de um texto, se ocupa de uma edição que considera a restituição, a intenção ou os movimentos de construção textual, visando o produto final; a Crítica Genética, por sua vez, tem o devir da obra como objetivo, e ampara-se num discurso crítico para explicar por quais processos de criação, de transformação e de escritura passou um determinado texto que poderá ser reconhecido, ou não, como obra literária. “Seu objetivo primeiro não é o estabelecimento do texto, mas a atualização dos mecanismos de escritura que subentenderam o processo criativo. Não é, portanto, o texto, mas, pela primeira vez, é o manuscrito que está no centro dessa nova disciplina” (GRÉSILLON, 2007, p. 133). Contudo, quando sugerimos o “caminhar de mãos dadas” da Crítica Genética e a Crítica Textual, esperamos que o trabalho tenha como culminância uma edição que contenha, não só um aparato de “variantes”22, mas “a interpretação de um processo, ou seja, de todos os caminhos, impasses e acidentes pelos quais passa a criação de uma obra” (GRÉSILLON, 2009, p.43). Nesses últimos anos, apesar das diferenças apresentadas entre a Crítica Textual e a Crítica Genética, muitas discussões foram efetuadas na tentativa de demarcar fronteiras entre as práticas do editor e do geneticista. Entretanto, notamos que muitos dados genéticos têm sido apresentados em quaisquer tipos de edição. Supomos, então, que a relevância dos estudos não se dará no entorno da Crítica Genética ou da Crítica Textual, mas uma devorará os métodos da outra para estabelecer um possível texto padrão ou para descobrir os processos de criação nos manuscritos, envolvendo, assim, prototexto, versões e o texto (WILLEMART, 1999, p. 202). Consequentemente, temos o que Willemart denomina de “terreno mútuo de

21A Crítica Textual Tradicional e a Crítica Textual Moderna; a Crítica Textual Genética e a Crítica Textual Sociológica, que vêm sendo pensada por estudiosos como Luiz Fagundes Duarte e Rosa Borges. 22 “[...] o termo variante significa, portanto, não mais variação em relação a um modelo, mas simplesmente diferença entre dois estados de gênese” (GRÉSILLON, 2007, p. 108). 93

entendimento” (1997, p. 97), onde a união da Crítica Textual com a Crítica Genética só tem a mostrar que um texto em estudo não é um dado, uma entidade estável, mas um processo variável, inacabado, e em perpétua transformação (TAVANI, 1997, p. 90). Após mostrar que “a filologia e a crítica genética não são dependentes uma da outra, mas são meios de abordagens diferentes do manuscrito” (WILLEMART, 1997, p. 97), e que podem interagir num determinado lugar, esclarecemos que, com um estudo genético inserido na perspectiva filológica, pretendemos fazer uma leitura de um datiloscrito de Pinto de Aguiar, enfatizando os sentidos que emergem deste datiloscrito, considerando a pluralidade dos movimentos textuais encontrados, assim como outros elementos que aparecem no texto, com o intuito de pensar o percurso seguido pelo escritor e apontar características de um projeto aparentemente construído. Através de mecanismos que perpassem pela Crítica Genética e pela Crítica Textual, mas que priorizem, sobretudo, os instrumentos metodológicos e críticos aplicáveis a essa específica situação textual, no que diz respeito à gênese, propomos estudo sobre o datiloscrito Uma época, uma vida, na Bahia:1928/1962(D62), datado de 1962, de autoria de Manoel Pinto de Aguiar, título da oração de posse proferida pelo mesmo, na ocasião da ocupação da cadeira de número 40, na Academia de Letras da Bahia (ALB). Para tanto, “tem-se então de tecer considerações sobre o suporte da escrita, os instrumentos utilizados para a escrita [...], o contexto sócio-histórico de produção [...] entre outros aspectos” (BORGES; TELLES, 2010, p.64-66). Analisaremos ainda os mecanismos da sua produção, movimentos de escritura, observação das diferentes versões, possíveis pesquisas desenvolvidas, intertextualidades, diálogos com outros textos (paratextos23), bem como os demais elementos que podem configurar processo de construção textual, visando, nesse corpus, uma interpretação do texto enfatizado. Como ponto de partida, entenderemos o D62 como um manuscrito moderno, e também, um objeto material, um objeto cultural e um objeto do conhecimento. Dessa forma, é Grésillon quem, didaticamente, define esse manuscrito como o objeto de trabalho,

aquele que porta os traços de um ato, de uma enunciação em marcha, de uma criação que está sendo feita, com seus avanços e seus bloqueios, seus acréscimos e seus riscos, seus impulsos frenéticos e suas retomadas, seus recomeços e suas hesitações, seus excessos e suas faltas, seus gastos e suas perdas. (GRÉSILLON, 2007, p. 51).

23Para Philippe Lane (1992, p. 13-21), o paratexto “é composto de um conjunto heterogêneo de práticas e de discursos que reúne [...] uma visão comum, aquela que consiste ao mesmo tempo em informar e em convencer, afirmar e argumentar...” (apud BORGES; TELLES, 2010, p. 67). 94

E continua:

[...] contém inscrições sobre o tempo da escritura, seja porque o próprio autor deixa transparecer a data, que acrescenta à data da primeira redação a da reescritura, seja porque a análise das ferramentas e dos traçados permite conjeturas sobre a cronologia (GRÉSILLON, 2007, p. 53).

Conforme observação da figura abaixo,

Figura1

a primeira folha do datiloscrito, objeto deste estudo, traz marcas autorais que se revelam em diversas informações, sejam elas demarcadoras do tempo ou do movimento da escritura. A figura 1 também mostra como podemos entender o manuscrito moderno na configuração de um objeto material, na medida em que permite análise “do suporte e do instrumento quanto à própria escrita e à sua disposição no espaço gráfico” (GRÉSILLON, 2007, p. 55). Nesse sentido, observamos que o datiloscrito foi estabelecido em 1962, é composto por 24 folhas, traz como suporte o papel, é apresentado em folhas datiloscritas de tamanho A4, agrupadas com clipe de metal afixado no ângulo superior esquerdo da folha, contendo título e subtítulos que representam cada etapa da história a ser narrada; o espaço gráfico utilizado é semelhante em todas as folhas do datiloscrito, nas quais o texto se apresenta em forma linear e corrida – característica do texto em prosa – e a mancha textual é encontrada apenas no anverso das folhas; possui título em caixa alta; a distância entre as linhas é variável devido à disposição irregular dos tipos da máquina de datilografia, já que a mesma traz a letra O/o sempre 95

datilografada em desnível com a linha; as 24 folhas são numeradas com algarismos arábicos, datilografados e dispostos entre hifens, centralizados na margem superior da folha; há trechos sublinhados mecanicamente e há outros trechos sublinhados à mão, com traçado ondulado e irregular; na primeira folha, no ângulo superior direito, há um OK manuscrito com caneta de tinta vermelha; a ferramenta de escrita utilizada é a datilografia, efetuada com máquina mecânica de fita preta; a escrita é disposta em datilografia com intervenções manuscritas nas linhas, entrelinhas e margens24; as observações encontradas nas margens possuem aparência fosca, semelhante à grafia com lápis; as rasuras25 são manuscritas, feitas com caneta de tinta azul, encontradas, em sua maioria, em acréscimos, ou preenchimento à mão, nos espaços deixados em branco durante datilografia; além de alguns deslocamentos, supressões e substituições por sobreposição. Das rasuras encontradas, algumas são visíveis e permitem a restituição do que outrora foi escrito, outras podem ser parcialmente restituídas com prejuízos no reestabelecimento da informação, e outras sobrescritas e ilegíveis, aparecidas sob o efeito de borrões. O manuscrito moderno, aqui estudado, será igualmente entendido como um objeto cultural, que, através do olhar do escritor, guarda a memória de um tempo enquanto patrimônio histórico, bem como um objeto do conhecimento, pois representará a história de sua construção, assim como a história do tempo em que foi construído, a partir das pistas deixadas. Assim sendo, procuramos ler o D62, enquanto objeto do conhecimento, como uma narrativa de si26, do próprio Aguiar, bem como do seu contexto histórico e sociocultural. Dessa forma, traz características autobiográficas, narrando sobre a sua infância e juventude, caracterizando sua terra natal, Alagoinhas-BA, tecendo comentários sobre o tornar-se acadêmico na ALB, além de enaltecer o talento de intelectuais que podem ter contribuído, direta ou indiretamente, para a sua formação. A partir do D62, observamos que Pinto de Aguiar, por ter nascido no interior da Bahia, sempre teve acesso a uma educação diferenciada, em relação a dos seus conterrâneos, utilizando-se dos mecanismos de progresso que disponibilizava a cidade, tal qual a estrada de ferro, e consequentemente, das informações advindas de todo o Brasil e do mundo através de livros, jornais e revistas; entendendo, precocemente, o seu contexto histórico, o que o fez

24Espaço denominado de “reservatório de ideias”, por Grésillon (2007, p. 80). 25Sobre as rasuras, diz-se que as mesmas representam perdas e ganhos. “Ela anula o que foi escrito, ao mesmo tempo em que aumenta o número de vestígios escritos.” Revela-se como um paradoxo através do qual repousa o interesse do estudo genético, pois revelam as mais diversas possibilidades durante o entendimento do devir texto (GRÉSILLON, 2007, p. 97). 26 Menção ao texto de Michel Foucault, A escrita de si. 96

galgar novas alternativas de crescimento pessoal e intelectual junto ao desenvolvimento social da cidade, o que se pode verificar na figura 2:

Figura 2

A figura 2 também expõe um pouco do repertório que embasou a educação e as práticas de erudição de Aguiar, o que se revela através dos títulos trazidos da Europa, e traduzidos no Brasil, cujas temáticas acabam por caracterizar o outro lado do Atlântico, referenciando, desta forma, uma outra maneira de viver, bem distinta das amenidades simplórias dos textos e contextos do interior da Bahia. Títulos como Eu sei tudo– uma versão do Je Sais Tout, revista francesa lançada em 1905 (era uma das revistas mais lidas por Pinto de Aguiar), assim como os outros títulos que representam a escritura francesa – assinados por nomes como os de Julio Verne, Alexandre Dumas e Émile Richebourg – mostram o parâmetro adotado para o conceito de Literatura, ressaltam um interesse literário precoce e apontam indícios de como Aguiar quer demonstrar sua formação intelectual. Pinto de Aguiar, em notável ascensão intelectual, muda-se de Alagoinhas para Salvador e, após sucessivos acontecimentos como o falecimento do seu pai, segundo casamento da sua mãe, e a não aceitação dos episódios ocorridos, muda-se de Salvador para o Rio de Janeiro, locais em que o mesmo termina os estudos e constrói laços que o configuraram como um homem dinâmico, intelectual das diversas áreas de atuação, a exemplo da advocacia, economia, política e as letras (edição, tradução, leitura e escrita). Estabeleceu-se num contexto entre (e pós) guerras, de onde adquiriu as vivências necessárias ao desenvolvimento de projetos marcados pela sua atuação; como urbanista, deixou um 97

legado na capital baiana que perpassa pela estruturação de bairros como o Rio Vermelho, o Jardim Lobato, o Vale dos Barris e o Dique do Tororó; preocupou-se com o proletariado baiano e desenvolveu planos de empréstimos, além dos projetos de habitação; e esteve inserido na direção de grandes empresas, a exemplo da Petrobrás, Eletrobrás e Itaipu (SAMPAIO, 2011). Esta descrição foi estabelecida depois de pesquisas efetuadas a partir das pistas deixadas através do D62. Por meio dele, podemos entender como Aguiar vivenciou a transição de uma estrutura econômica, social e política, nos anos 1920, época pela qual ele revela verdadeiro fascínio, mesmo sendo anos cruéis – de “fuga à escravidão (econômica e terrestre)”, devido à possibilidade de estar numa sociedade mais feliz e mais aberta para o universo (AGUIAR, 1962, f. 5-6). O estudo sobre a materialidade permite interpretar as preferências do escritor, revelando suas opções sobre a escrita: se escrita manuscrita à caneta, a lápis, à máquina de datilografia ou mesmo num computador; se escrita somente no anverso, se também no verso etc. Detectar essas escolhas consente entender, dentre outras possibilidades, se o processo de escritura foi efetivado com a intenção de não deixar “rastros”27, priorizando o “gênio do autor”28, ou se a escritura foi estabelecida com o intuito de registrar todas as idas e vindas, interrupções, modificações, substituições, dentre outros movimentos de reescritura. No caso do D62, percebemos que a intenção inicial era não deixar “rastros”, o que se explica através de uma carta deixada a um amigo, certamente alguém ligado à Academia de Letras, entendida aqui como paratexto representado pela figura 3, na qual Pinto de Aguiar narra sobre o seu próprio procedimento de escritura, que inicia com a “manoescrita” e, em seguida, efetiva-se com a cópia datilografada do texto fazendo as correções necessárias.

27De acordo com Biasi, os rastros são os indícios materiais que a genética textual propõe reencontrar e compreender num manuscrito (2010, p. 13). 28Biasi cita Edgar Poe para teorizar sobre o gênio criador, ou seja, para desmistificar a ideia do texto genial. Esclarece que a “intuição extática” é uma ficção construída pelo escritor que “fecha as portas do seu laboratório” e condena a ideia de que a obra pode ser o efeito de um trabalho (BIASI, 2010, p. 23). 98

Figura 3

Evidencia-se, na figura 3, que o D62 expressa o processo de passar a limpo, já que é um datiloscrito, o que Pinto de Aguiar revela como sendo a sua segunda etapa de criação textual. Desse contexto, interpretamos, também, que o escritor não conseguiu deixar seu texto pronto para publicação, mesmo depois de “pulir29 e cortar os excessos”, já que houve acrescentamentos na escritura, nos espaços deixados em branco durante datilografia, bem como revisão e modificação do texto, o que se explica através das rasuras encontradas. Consciente de que sua oração será publicada na Revista da Academia de Letras, Aguiar se revela criterioso com o seu texto, o que se explica pela carta enviada, assim como pelo número de reescrituras efetuadas pela necessidade de “pulir, cortar os excessos”, revisar, suprimir termos, escolher palavras ou expressões que melhor se adequem à forma com a qual ele quer se mostrar, conforme mostra o gráfico a seguir.

29 Verbo polir, utilizada no sentido de aperfeiçoar. 99

Gráfico 1 – Tipos de reescrituras encontradas no D62

45 40 35 30 25 20 39 33 15 27 10 16 5 2 1 0 Substituição por Supressão Acrescentamento Acrescentamento Acrescentamento Deslocamento sobreposição na entrelinha na própria linha nas margens superior

Dos movimentos de reescrituras encontrados, muitos fazem correções acrescentando dados que não foram inseridos durante datilografia, outros consertam os dados já datilografados. O quadro 1 demonstra os tipos de correções encontradas, bem como a preocupação e zelo do escritor com os ditames da norma culta.

Quadro 1 – Tipo de correções encontradas no D62

Tipo de correção Quantidade Tipo de correção Quantidade

Na acentuação 1 Acréscimo de informações 2

Na pontuação 44 Na concordância 13

Letras maiúsculas ou minúsculas 7 Na regência 2

Acréscimos de palavras “esquecidas” 4 Na ortografia 10

Antropônimos 9 Correção de teor estilístico 12

Topônimos - Borrões indefiníveis 10

Durante o trabalho com gênese, além de interpretarmos a materialidade e os movimentos de reescrituras, temos ainda como objetivo analisar as fases nas quais se encontram os manuscritos estudados. Dessas, sobressaem-se diversas categorias que explicam o momento de execução da escrita, como é o caso da fase redacional que, segundo Biasi, subdivide-se em subfases através das quais se percebe o dossiê como documentário redacional, de redação ou “rascunhos da obra, dos roteiros desenvolvidos, dos esboços e dos rascunhos, do momento de passar a limpo com as correções (2010). Compreendemos, portanto, que, das considerações efetuadas, e em consonância com o gráfico, o quadro e as 100

figuras apresentados, o datiloscrito exposto nesse estudo possui características de um texto em fase redacional, equivalente ao “momento de passar a limpo com as correções”, onde o número de rasuras aparece diminuído em relação a um manuscrito complexo, em momento de exploração e redação, revelando linhas e blocos de parágrafos mais claramente definidos (BIASI, 1997, p. 16). Porém, nesse nível de reescritura, apesar do D62 parecer “limpo”30 e pronto para ser publicado, o impresso do documento, representado pela figura 5, mostra que o mesmo passou por outras modificações, ou seja, por outros processos de reescrita, o que pode ser observado através do confronto entre as figuras 4 e 5:

Figura 4

Figura 5

30Expressão que remete ao texto passado a limpo, ou seja, em fase pré-editorial através do qual se reproduzirá a versão impressa (BIASI, 1997, p. 16-17). 101

Por sua vez, o confronto entre as figuras 4 e 5 mostra que as modificações textuais efetuadas do datiloscrito para o impresso sugerem a preocupação do escritor em construir um texto que esteja lapidado, corrigido e modificado, pronto para uma publicação.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Sabendo que o objeto da Filologia é o estudo do texto registrado em suporte material, e que essa materialidade, seguindo também uma perspectiva genética, interessa para entender a época, a cultura e as peculiaridades de um determinado testemunho, enfatizamos, sobre o corpus estudado, o suporte, as ferramentas de escrita, a escrita e a sua disposição no espaço gráfico e as intervenções localizadas, pois estas caracterizam a postura de Pinto de Aguiar diante do texto confeccionado31. Nesse sentido, Crítica Textual e Crítica Genética se aproximam, pois o interesse é comum no estabelecimento das hipóteses para a interpretação da materialidade e dos diversos movimentos textuais encontrados. Espera-se, portanto, que o estudo material do manuscrito, bem como as interpretações dos resultados decifrados, com o propósito único de reconstruir o texto em seu estado nascente (BIASI, 1997, p.2), obtenha como culminância uma edição. Todavia, esclarecemos, mais uma vez, que esse estudo não prioriza editar, mas encarrega-se de dar visibilidade para a parceria entre a Crítica Textual e a Crítica Genética, em função da pesquisa e da situação textual encontrada, com o intuito de mostrar o quanto podem estar mobilizadas para enriquecer a produção de sentido na materialidade ressaltada. Numa perspectiva crítico-genética32, a tradição textual selecionada para este estudo foi constituída do datiloscrito Uma época, uma vida na Bahia – 1928/1962, e obteve como paratexto uma carta enviada a um companheiro da Academia de Letras da Bahia, com conteúdo que aborda assuntos referentes à ocupação da cadeira de número 40 na referida Academia, bem como orientações de Pinto de Aguiar para o uso dos manuscritos da sua oração de posse, na iminência de publicação. Acrescenta-se ainda, que o testemunho estudado, apesar de trazer características autobiográficas, mostra um escritor modesto com sua própria história, pois destina grande parte de sua escritura para narrar os grandes feitos da época, bem como de seus contemporâneos; modéstia essa que não ocorre na seleção de palavras corrigidas, suprimidas e/ou acrescentadas na tessitura de um texto que deverá ser

31Confecção textual aqui é um conceito tomado para pensar na tessitura do texto. 32“[...] prática editorial que concilia duas metodologias, afins no campo da Filologia: a crítica textual e a crítica genética, [...] com o propósito de estabelecer o texto [...] e documentar o percurso seguido pelo autor na construção de cada texto ou da obra” (BORGES, 2012, p. 60). 102

bem redigido, de vocabulário rico, consonante com a sua época e a lexicografia vigente, abarrotado de informações, que traduzirão em sua aparência, um Pinto de Aguiar consciente de que sua imagem, sua representação e o seu labor para com as artes e as letras serão publicados junto com sua oração de posse. Tomando como referência os estudos de Marcello Moreira (2011), podemos entender que o texto, muitas vezes, é considerado somente em suas competências linguísticas em detrimento do “artefato sócio-histórico”, que integrados aos dados linguísticos, permitem uma compreensão histórica do objeto a partir do qual e sobre o qual se desenvolve o valor filológico. Dessa forma, devemos entender que o estudo da gênese, de um determinado processo de escritura, de uma fase de construção textual ou de um texto, depende de como vamos definir esse texto: “se acabado, ou se tomado como acabado” (SOUZA, 2015). Considerando essas informações, entendemos que o impresso da Oração de Posse aqui estudada não representa o “acabamento” do datiloscrito, mas tanto o texto publicado quanto o datilografado demonstram características próprias com uma temática afim, ou seja, são dois textos distintos que foram construídos, cada um, com o seu propósito. O datiloscrito, para a apresentação oral da Oração, no ato da posse; o impresso, para a publicação e representação de como Manoel Pinto de Aguiar quis se mostrar para o público da época e da posteridade.

REFERÊNCIAS

AGUIAR, Manoel Pinto de. Uma época - uma vida - na Bahia [:] 1928-1962. [Rio de Janeiro]: [S.I.], 1962.

AGUIAR, Manoel Pinto de. [Carta] 5 abr. 1962, Rio de Janeiro [para] [?], [Salvador]. 1f. Felicita o aniversário de um amigo e pede para que os originais do discurso proferido na Academia de Letras da Bahia sejam substituídos por outros revisados e ainda não enviados.

AUERBACH, Erich. Introdução aos estudos literários. Tradução José Paulo Paes. 4. ed. São Paulo: Cultrix, 1972. Disponível em: http://pt. scribd.com/doc/119034099/Introducao- aos-estudos-literarios. Acesso em: 05 maio 2014.

BIASI, Pierre-Marc de. A genética dos textos. Tradução Marie-Hélène Paret Passos. Porto Alegre: EDIPUCRS, 2010.

BIASI, Pierre-Marc. A crítica genética. In: BERGEZ, Daniel et al. Métodos críticos para a análise literária. Trad. Olinda Maria Rodrigues Prata. São Paulo: Martins Fontes, 1997. p. 1- 44.

BORGES, Rosa et al. Edição de texto e crítica filológica. Salvador: Quarteto, 2012.

103

CARVALHO, Rosa Borges Santos. A Filologia e o seu objeto: diferentes perspectivas de estudo. Revista Philologus, Rio de Janeiro, ano 9, n. 26, p. 44-50, mai-ago, 2003.

GRÉSILLON, Almuth. Elementos da crítica genética: ler os manuscritos modernos. Tradução Cristina de Campos Velho Birck et al. Porto Alegre: Editora da UFRGS, 2007 [1994].

GRÉSILLON, Almuth. Crítica Genética, prototexto, edição. Tradução Adriana Camargo. In: GRANDO, Ângela; CIRILLO, José. Arqueologias da criação: estudos sobre o processo de criação. Belo Horizonte: C Arte, 2009.

MOREIRA, Marcello. Critica Textualis in Caelum Revocata? Uma proposta de edição e estudo da tradição de Gregório de Matos e Guerra. São Paulo: EDUSP, 2011.

SAMPAIO, Consuelo Novais. Pinto de Aguiar: audacioso, inovador. Salvador: Press Color Gráficos Especializados Ltda, 2011.

SOUZA, Arivaldo Sacramento de. Edição sinóptica. In: BORGES, Rosa (et. al.). Edição de texto e crítica filológica. Salvador: Quarteto, 2012. p. 185-186.

TAVANI, Giuseppe. Filologia e Genética. Estudos: Linguísticos e Literários, Salvador: Programa de Pós-Graduação em Letras e Linguística; UFBA, n. 20, set. 1997.

WILLEMART, Philippe. A filologia, a crítica genética a serviço da interpretação do texto editado. Estudos: Linguísticos e Literários, Salvador: Programa de Pós-Graduação em Letras e Linguística; UFBA, n. 20, set. 1997.

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MONTEIRO LOBATO EDITOR: JARDIM SECRETO DE FRANCISCA DE BASTO CORDEIRO (1875-1969)

Emerson Tin33

Em dezembro de 2014, tive a oportunidade de adquirir uma carta inédita de Monteiro Lobato34, que assim vinha descrita pelo vendedor:

Pequena carta manuscrita e assinada por Monteiro Lobato em papel timbrado, datada de 21 de março de 1923. Não consegui decifrar algumas palavras, mas o conteúdo é mais ou menos este: “Sr. Francisco, em mãos sua carta última. Acho que seu livro está com um bom guia (?), que ------. A carta de ---- deve sair na revista de junho, e o resto que ficou (?) aqui vae. Eu continuo firme na minha ideia primitiva: fazer o livro com unidade – só de pensamentos. O resto ficava para outros livros, mais tarde. Não acha que deve ser assim? Em junho ------. Lobato” Muito bom estado de conservação.

Seguindo as informações apresentadas pelo livreiro e antes de ter acesso ao documento, comecei a formular algumas hipóteses em torno da carta: quem seria o destinatário, identificado como “Sr. Francisco”? Talvez o escritor Martim Francisco Ribeiro de Andrada (1853-1927), um dos editados por Lobato. Afinal, a carta se referia a um livro, e Martim Francisco havia publicado dois deles pela Monteiro Lobato & Cia.: Rindo, de 1919 (ainda pela chancela da Revista do Brasil) e Contribuindo, de 1921. Seria um novo projeto de publicação, já que Lobato pretendia “fazer o livro com unidade – só de pensamentos”? E de quem seria a carta mencionada por Lobato, cuja autoria o livreiro não conseguira distinguir, e que seria publicada na “revista de junho”? Eram muitas as questões, mas a solução delas só poderia vir no momento em que me visse com a carta nas mãos. Chegada a carta, percebi que alguns elementos haviam sido decodificados equivocadamente pelo livreiro, a começar pela data da carta, que não era 21 de março de 1923, mas 31 de maio. Quanto ao destinatário, não se tratava de Sr. Francisco, um homem, portanto, ou Martim Francisco, como eu supus, mas de Sra. Francisca, uma mulher! Quem seria essa Sra. Francisca? Ao prosseguir na leitura da carta, outro elemento desfez um enigma: a carta que seria publicada no número de junho da Revista do Brasil, conforme projetava Lobato, era do russo

33Doutor em Teoria e História Literária pelo Instituto de Estudos da Linguagem da UNICAMP (2007). Professor Doutor I das Faculdades de Campinas. Professor Conselheiro do time Enactus FACAMP desde 2013. 34Tive conhecimento da existência da carta por meio do Prof. Marcos Antônio de Moraes (IEB/USP), que gentilmente me avisou que estava à venda na página “Estante virtual”. 106

Leon Tolstoi (1828-1910). Com isso, eu já tinha uma pista: procurar, na Revista do Brasil, nesse período, algum texto que se referisse a – ou que trouxesse alguma carta de – Tolstoi. Consultando a revista, encontrei, no número de julho (e não no de junho), o texto “Ultimo escripto de Tolstoi, por Francisca B. Cordeiro”. Francisca B. Cordeiro? Quem seria ela? O dicionário de Heloisa Buarque de Hollanda e Lucia Nascimento Araújo (1993, p. 114) traz essa pequena nota:

FRANCISCA (CAROLINA SMITH DE VASCONCELOS) DE BASTO CORDEIRO Rio de Janeiro, RJ, 1875 — 1969 Escritora e organizadora de saraus lítero-musicais, foi figura importante das letras, principalmente nas décadas de 20 e 30 [...].

A partir desse nome, comecei a desenrolar o fio da trama em torno da misteriosa carta de Lobato, cuja transcrição é a seguinte:

[papel timbrado: MONTEIRO LOBATO / RUA GUSMÕES, 70 / Caixa 2-B – S. PAULO] S.Paulo 31.5.923 Sra. Francisca Em mãos sua carta ultima. Acho / que seu livro está com um bom guia, / que tal é o Oiticica. A carta de Tolstoi deve sair / na revista de Junho, e o resto / que ficou aqui vae. Eu continuo firme na minha / idéa primitiva: fazer o livro com / unidade – só de pensamentos. O / resto ficava para outros livros, mais tarde. Não acha que deve ser assim? Em Junho devo apparecer por / ahi e então conversaremos melhor De seu aor. e cª. Lobato

Como vimos, a “carta de Tolstoi” viria a ser publicada com o título de “Ultimo escripto de Tolstoi” apenas na revista de julho de 1923, e não na de junho, como previa Lobato. Oiticica, o “bom guia” mencionado por Lobato, é José Oiticica (1882-1957), catedrático do Colégio Pedro II, com quem Lobato mantinha relações e que viria a ser autor, entre outras obras, de um Curso de Literatura, publicado postumamente, em 1960.Mas qual seria o livro a que se referia Lobato? Tratava-se de Jardim secreto, que seria publicado entre o final de 1923 e o início do ano de 1924. Embora não haja data registrada na edição35, é possível imaginar sua publicação nesse período, já que o prefácio, assinado por Coelho Neto, é datado de junho de 1923, e as primeiras resenhas do livro começariam a ser publicadas na imprensa a partir de março de 1924.

35A ausência de data na edição foi motivo de equívocos, como o de Alexandre Eulálio (1989: 194), que registra Jardim secreto como sendo de 1925 (talvez levado a isso por ter o livro recebido a menção honrosa da Academia Brasileira de Letras em 1926). 107

Em que consistia esse Jardim secreto? Era o livro de estreia da escritora. Como lembra Brito Broca, em seu artigo A revolução editorial de Monteiro Lobato (1994, p. 65) Monteiro Lobato, ao lançar escritores “novos, soube escolher, de preferência, os que podiam interessar o público”. Antes de ser o título de um célebre best-seller para colorir, já existiam os romances de Marcel Prévost (1862-1941), Le jardin secret, de 1897, e de Frances Hodgson Burnett (1849- 1924), The secret garden, publicado em livro em 1911. “Jardim secreto” também era o título que o médico baiano Carlos da Veiga Lima (1889-1939) pretendia dar a um livro anunciado em vários números da Revista da semana 36, periódico em que mantinha a coluna “Consultório Médico”. O livro de Veiga Lima, ao que tudo indica, seria bastante semelhante ao de Francisca de Basto Cordeiro, pois reuniria, além de contos, algumas máximas e reflexões do autor. Diante da coincidência dos títulos, Veiga Lima acabou, aparentemente, publicando seu livro sob outro título: O sorriso da chimera, pelas Edições Pan, em 1924.37 A escolha do título, para o editor Monteiro Lobato, não era questão irrelevante. Afinal, nesse mesmo ano de 1923, Lobato, em carta ao poeta taubateano Cesídio Ambrogi (1893-1974), recomendava:

Não acho bom o título; um tanto pretensioso. Precisamos descobrir um melhor. Os títulos femininos são os melhores; falam à libido do homem – e forçam a saída. As Moreninhas, ótimo título. Ou coisa assim, que dê a entender que há mulheres lindas dentro. (TIN, 2007, p. 403)

O livro de Ambrogi seria publicado justamente com o título sugerido pelo editor. Conselho semelhante seria dado a Alberto Rangel (1871-1945), em carta de 9 de junho de 1923:

36“Pensamentos sem direcção [...] (Do livro Jardim Secreto).” (Revista da semana, Anno XXIV, nº 3, 13 de janeiro de 1923, p.2); “Publicarei brevemente novo livro de contos ‘Jardim Secreto’ que será entregue proximamente ao editor. Gratissimo. DR. VEIGA LIMA” (Revista da semana, Anno XXIV, nº 10, 3 de março de 1923, p.42); “Diante da natureza o espirito se singularisa – a emoção da fórma adivinhada ma luz indecisa da paizagem é como a primeira impressão amorosa: um deslumbramento... A paizagem é sempre um estado de alma. Agradeço a gentileza da sua carta, tão finamente espiritual. Quando publicarei ‘Jardim Secreto’? Ainda este anno. A arte enche a alma de alegria e felicidade e dá ao espirito o sorriso encantado da chiméra! Gratissimo” (Revista da semana, Anno XXIV, nº 13, 24 de março de 1923, p.39); “Agradeço a amabilidade da sua carta. Já publiquei ‘Cidade Harmoniosa’ e publicarei ainda este anno ‘Jardim Secreto’, livro de contos. Sim, disse algures que o espirito é uma harmonia fóra da natureza. Enviarei aos consulentes um exemplar do ‘Jardim Secreto’.” (Revista da semana, Anno XXIV, nº 42, 13 de outubro de 1923, p.44). Em dezembro, Veiga Lima já passa a anunciar O Sorriso da Quimera, definido pelo próprio autor como “livro de contos e pensamentos” e publicado no mês de maio do ano seguinte: “Publicarei brevemente um livro de contos ‘O Sorriso da Chiméra’.” (Revista da semana, Anno XXIV, nº 51, 15 de dezembro de 1923, p.50); “Publicarei no proximo anno um novo livro de contos ‘O Sorriso da Chimera’, que já entreguei ao editor.” (Revista da semana, Anno XXIV, nº 52, 22 de dezembro de 1923, p.46) 37 Curiosa e coincidentemente, na seção “Alguns livros”, assinada por A. de S. e publicada, no dia 1º de novembro de 1924, na p.4, pelo jornal O Paiz, encontram-se resenhas de Jardim secreto, de Francisca de Basto Cordeiro, e de O Sorriso da Chimera, de Carlos da Veiga Lima. O próprio Veiga Lima viria a resenhar o livro de Francisca de Basto Cordeiro: “Jardim Secreto”. A.B.C., 12 de abril de 1924, p.7. 108

Lume e Cinza! Linda coisa deve ser! De mau título, porém. Nosso povo ledor avança de preferência em livros de títulos femininos. Imagina logo que há uma mulher dentro que faz das suas. Sou freudista, e aplico a teoria do alemão na capa dos livros. Título é o primeiro contato e se fala à libido do freguês ele logo o compra. Não imagina como saem mais os livros de títulos mulherengos que os de títulos másculos, ou abstratos. Se eu escrever uma tabela de logaritmos, um dia, hei de intitular: Aventuras de uma semivirgem. E derroto o Callet. Mude o título do Lume. Ponha, p. ex., As mulheres do Landou, e o livro sairá 5 vezes mais. A objeção de que tal título nenhuma relação tem com a obra, não procede. Título é nome, é designação. E que relação tem os nomes próprios com as pessoas que o trazem? Eu sou José, como poderia ser João ou Antonio. V. é Alberto como seria Teodoro. Porque mudar de sistema ao passar de homem a livro? (TIN, 2007: 310)

Jardim secreto até poderia não ser um título original 38, mas certamente agradou a Lobato, já que conciliava segredo e alma feminina – aspecto ressaltado no prefácio de Coelho Neto: “é este um livro de mulher” –, o que possivelmente interessaria ao público. Como se percebe deste trecho da carta, Lobato faz uma sutil objeção a uma possível sugestão da escritora quanto à estruturação do livro: “Eu continuo firme na minha idea primitiva: fazer o livro com unidade – só de pensamentos. O resto ficava para outros livros, mais tarde. Não acha que deve ser assim?” Ao afirmar que continuaria firme em sua ideia primitiva, Lobato posiciona-se quase que como um coautor do texto, dando-lhe a feição definitiva39. Além disso, a ideia primitiva de compor um livro com unidade, só de pensamentos, coadunava-se com o livro mais recente que havia saído dos prelos sob a assinatura do editor-autor: Mundo da lua, de Monteiro Lobato, publicado em 1923, seria descrito pela seção “Bibliographia” da Revista do Brasil (v. XXIII, anno VIII, n. 89, maio 1923, p.159) como “um livro todo inédito. Não são contos, são pequenos trechos de prosa que não passam de uma página ou pouco mais. Episódios da vida, cenas da rua, estados d’alma, observações [...]”.Um livro “só de pensamentos”, poderíamos dizer, portanto. A intervenção do editor Lobato, todavia, não se restringiria apenas ao processo de edição do livro. Afinal, não bastava editar o livro, era necessário vendê-lo, e o raciocínio utilizado em relação à citadíssima edição de 50 mil exemplares de Narizinho poderia se estender a toda a praxe comercial de Lobato:

O meu Narizinho, do qual tirei 50.500 – a maior edição do mundo! – tem que ser metido bucho a dentro do público, tal qual fazem as mães com o óleo de rícino. Elas apertam o nariz da criança e enfiam a droga e a pobre criança ou

38 A justificativa do título pode ser encontrada neste trecho: “Cada criatura occulta no coração um jardim secreto onde, como num cemiterio sepultou as affeições passadas. Ahi jazem annos, esquecidas. Mas, um dia, sem motivos quasi, os tumulos se reabrem. E os mortos voltam sorridentes ao coração em que a saudade os conservou... E o Passado resurge inteiro.” (CORDEIRO, [1923], p. 108). 39 Em relação a outros autores, podemos perceber que o processo de intervenção do editor Lobato se aprofundava mais. É o caso de Godofredo Rangel e seu romance Vida Ociosa, que já abordei em trabalho anterior (“Fragmentos da gênese de Vida ociosa, de Godofredo Rangel, n'A barca de Gleyre” In: X Congresso Internacional da Associação de Pesquisadores em Crítica Genética, 2010, Porto Alegre. Disponível em: http://ebooks.pucrs.br/edipucrs/anais/apcg/edicao10/Emerson.Tin.pdf. 109

engole ou morre asfixiada. Gastei 4 contos num anúncio de página inteira num jornal daqui. Faz de conta que é o Gelol. “Dói? Gelol.” (LOBATO, 1964, p. t.2, 230)

Em relação a Jardim secreto, certamente não seria o caso de gastar quatro contos num anúncio de página inteira num jornal. Todavia, seria o caso de fazer com que o livro encontrasse o caminho da crítica, por meio de nomes que o apadrinhassem. O primeiro deles seria justamente Coelho Neto (1864-1934). O escritor maranhense, a quem coube a função de prefaciar o livro, fazia parte do círculo de correspondentes de Lobato, era um dos medalhões editados por ele (no romance coletivo O mysterio, de 1920, escrito ao lado de Afrânio Peixoto, Medeiros e Albuquerque e Viriato Corrêa) e possivelmente estaria incluído também no rol de amizades da escritora. Ao que parece, porém, Coelho Neto levou mais longe – a pedido de Lobato, talvez? – seu papel de padrinho da nova escritora: enviou o livro a Múcio Leão (1898-1969), então crítico do Correio da manhã, que registra o fato em sua resenha publicada em 04 de abril de 1924: “O meu mestre, o sr. Coelho Netto, que prefaciou o livro da sra. Basto Cordeiro e que fez acompanhar de um cartão o exemplar que às minhas mãos chegou [...]”. Se enviar o livro a Múcio Leão teria sido uma estratégia editorial em busca de uma crítica favorável, o projeto parece não ter obtido muito êxito. A crítica de Múcio Leão é avassaladora. Inicia-se com uma descrição muito pouco elogiosa do livro e com a alusão à falta de originalidade do título:

A sra. Francisca de B. Cordeiro reuniu em volume algumas phrases soltas, algumas tentativas de pensamento. E deu ao seu livro o título de Jardim secreto.

Os leitores sabem que Marcel Prévost tem um livro com esse mesmo título. Mas que importa isso? Deve haver muito jardim secreto, por esse mundo a fóra... e, quando temos a originalidade de alguma bella idéa ou de alguma bella palavra, a culpa dessa originalidade não é, por ventura, unicamente nossa? O livro de Prévost é um romance de tristeza, de soffrimento, e, tambem, de doçura. E seria injusto compararmos, sequer, a intensa melancolia que nelle respiramos, com as maximas, invariavelmente banaes, tão pobres de sabedoria, que encerra o livro da sra. Basto Cordeiro.

Após carregar nas tintas da crítica, Múcio Leão procura amenizá-la, considerando que

esse Jardim secreto testemunha um esforço. E é generoso acolher esforços alheios. O meu mestre, o sr. Coelho Netto, que prefaciou o livro da sra. Basto Cordeiro e que fez acompanhar de um cartão o exemplar que ás minhas mãos chegou, sabe, na sua indulgencia, quanto isso é verdadeiro. Depois, talvez eu me engane muito: talvez o livro da sra. Basto Cordeiro não seja, em definitiva, senão uma auspiciosa promessa; talvez, elle indique que essa escriptora, continuando a tentar meditar durante dez annos, venha a dar-nos alguma obra interessante.

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Arremata a resenha, todavia, de modo cáustico:

Como quer que seja, e resumindo o meu juízo sobre essa collecção de notas e de phrases, eu direi que a sra. Basto Cordeiro nada tem do verdadeiro e claro espirito dos aphoristas. Seu livro representa, apenas, uma tentativa muito fragil de arte. Não deixa de ser louvavel, entretanto, que, numa época de frivolidade e de inconstancia, uma senhora procure pensar, quando já se vê cercada de netinhos.

Diante dessa crítica, uma das primeiras publicadas na imprensa, cabia uma reação. Essa reação viria da pena de José Oiticica, justamente o “bom guia” que Lobato mencionara em sua carta. Em “Num Horto”, artigo publicado no mesmo Correio da manhã duas semanas depois, em 19 de abril de 1924, Oiticica parece responder diretamente à acusação de Múcio Leão de que Francisca de Basto Cordeiro “nada tem do verdadeiro e claro espírito dos aforistas”:

Difficilmente poderia caber na feitura de Jardim Secreto estylo mais conciso, claro, elegante, fluente. A autora é uma aphorista nata. Ainda os pensamentos mais comezinhos ella os diz com precisão rara e rara harmonia de palavras. Eis algumas amostras dignas de La Rochefoucauld [...]

Despertava-se o interesse em torno do livro. Outras críticas viriam, menos ou mais elogiosas, até a consagração, em março de 1926, com a menção honrosa recebida da Academia Brasileira de Letras. Não era pouco para um livro de estreia.Francisca de Basto Cordeiro, hoje quase totalmente esquecida, teve importante papel na cena cultural carioca das primeiras décadas do século XX. Haveria outras cartas de Monteiro Lobato para ela? Ao que tudo indica, sim. Em abril de 1993, Eduardo de Oliveira e Eliane Azevedo, em reportagem publicada na revista Veja intitulada “Do lixo para a história”, noticiavam que,

por obra do acaso, um anônimo colecionador carioca deparou com um caixote de livros velhos cujo destino era a lixeira. Do monturo, ele resgatou uma preciosidade: dois álbuns de autógrafos repletos de assinaturas, poemas, dedicatórias, cartas e desenhos dos principais nomes da intelectualidade nacional e internacional de 1892 a 1966.40

40 A descoberta desses álbuns também é registrada por Heloisa Buarque de Hollanda e Lucia Nascimento Araújo: “Recentemente foram descobertos dois álbuns de autógrafos de sua propriedade, repleto de assinaturas e dedicatórias de grandes nomes das artes, nacionais e internacionais como o bailarino Nijinsky e os escritores Machado de Assis, Guimarães Rosa, Monteiro Lobato entre muitos outros” (1993, p. 114). 111

A dona dos álbuns: Francisca de Basto Cordeiro. Entre as cartas, pelo menos mais uma de Monteiro Lobato:

“Qual o perfume que usa no papel de carta?”, indaga, ansioso, Monteiro Lobato em sua missiva. “Achei-o tão delicioso que estou aflito por decifrar tal mistério.” Foi o escritor quem incentivou Francisca a publicar seu primeiro livro, Jardim Secreto, menção honrosa da ABL em 1926.

Onde estarão esses documentos? Somente mais pesquisas o permitirão saber e trazer mais informações sobre a atuação editorial de Monteiro Lobato na publicação de Jardim secreto. O que se tem até agora – “biografia e correspondência do autor, conhecimento da obra no seu conjunto, testemunhos de terceiros, eventos históricos” –, no entanto, já nos permite, como assinala Almuth Grésillon, ter “informações sobre as condições externas dentro das quais se situa uma gênese” (2007, p. 42). No caso de Jardim Secreto, uma gênese que aponta não somente para a construção da obra, mas também para a sua recepção crítica, numa intervenção sutil, porém firme, do editor Monteiro Lobato.

REFERÊNCIAS

BROCA, Brito. “A revolução editorial de Monteiro Lobato”. In: _____. O repórter impenitente. Campinas, SP: Editora da UNICAMP, 1994, pp.62-67.

CORDEIRO, Francisca de B. Jardim Secreto (Ensaios). São Paulo: Monteiro Lobato & Cia. Editores, [1923].

EULÁLIO, Alexandre. “Em torno de uma carta de Machado de Assis”. Novos estudos. CEBRAP, nº 23, março de 1989, pp.188-195.

GRÉSILLON, Almuth. Elementos de crítica genética: ler os manuscritos modernos. Tradução de Cristina de Campos Velho Birck... [et al.] Porto Alegre: Editora da UFRGS, 2007, p. 42.

HOLLANDA, Heloisa Buarque de, ARAÚJO, Lúcia Nascimento. Ensaístas brasileiras: mulheres que escreveram sobre literatura e artes de 1860 a 1991. Rio de Janeiro: Rocco, 1993.

LEÃO, Múcio. “Jardim Secreto”. Correio da Manhã, 04 de abril de 1924, p.4.

LOBATO, Monteiro. A Barca de Gleyre. São Paulo: Brasiliense, 1964.

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OLIVEIRA, Eduardo de,.AZEVEDO, Eliane. “Do lixo para a História: descoberto, por acaso, um tesouro que retrata quase um século da vida cultural do país”. Veja. São Paulo: Abril, 1993, pp.66-67.

OITICICA, José. “Num Horto”. Correio da Manhã, 19 de abril de 1924, p.4.

TIN, Emerson. Em busca do “Lobato das cartas”: a construção da imagem de Monteiro Lobato diante de seus destinatários. 2007. 548f. Tese (Doutorado em Teoria e História Literária) – IEL, UNICAMP, Campinas, 2007.

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ELEMENTOS FÍLMICOS NÃO ESPECÍFICOS: MULTIPLICIDADE DE DIÁLOGOS

Eva Cristina Francisco41 Edina Regina Pugas Panichi42

Ao indagar a respeito do processo criativo no cinema, nos deparamos com vários elementos que não se enquadram somente na feitura de um filme. São os classificados, segundo Martin (2003), elementos fílmicos não específicos, ou seja, pertencentes a outras artes como o teatro e a pintura. Componentes como a iluminação, o vestuário, o cenário e a cor têm também grande influência e efeito na realização de um filme. Assim, continuamos identificando o movimento do processo criador e estabelecendo diálogos múltiplos, mostrando o processo com toda a sua mobilidade funcionando como uma rede de relações. Um dos pontos que conecta esta rede é a iluminação nas cenas. Dialogando com artes como a fotografia e o teatro, diversos signos podem ser gerados pelo uso desse recurso. A iluminação pode servir para “definir e modelar os contornos e planos dos objetos, para criar a impressão de profundidade espacial, para produzir uma atmosfera emocional e mesmo certos efeitos dramáticos” (LINDGREN, 1963, p. 57). Além disso, as técnicas desse recurso da linguagem, aqui, cinematográfica, interagem com outros elementos relacionados à estética do filme como o trabalho da câmera e as técnicas responsáveis pela animação das cenas. Passando a iluminação despercebida pela maioria dos espectadores a despeito de seu poder de criação da expressividade da imagem.

41Doutora em Estudos da Linguagem pela Universidade Estadual de Londrina (UEL, 2016). Professora do Instituto Federal de São Paulo - Campus Avaré. 42Doutora em Letras pela Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho (1994). Professora colaboradora da Universidade Estadual de Londrina. 114

Figura – Juliana e sua Tia Vitória planejam a chantagem

Fonte: Elaborada pelas pesquisadoras (2014)

A luz exerce função técnica tanto no cinema quanto na fotografia. Sem ela não há imagem. Todavia, nas artes nas quais a luz é aplicada, ela exerce um papel de composição de atmosferas, de tom de climas emocionais e como demarcadora (onde o exibido e o não exibido constroem sentido). Na imagem acima, Juliana, que já tinha em mãos as cartas trocadas entre os amantes, pede a opinião da tia sobre o que poderia ser feito naquela circunstância. A tia da empregada decide, então, pedir dinheiro em troca das cartas e do silêncio. É possível notar a iluminação focada para as personagens em contraste com a escuridão em segundo plano, que insinua o sentimento de maldade, os planos maléficos das duas para prejudicar Luísa, enquanto a luz que foca as atrizes dá ênfase ao caráter das personagens e prenuncia a ação que vão empreender, ou seja, a chantagem. As cores utilizadas na cena também são escuras, sombrias, o que contribui com a significação pretendida, isto é, a crueldade das personagens. A filmagem dessa cena é feita em plano médio para situar o espectador no mesmo nível das personagens, causando o efeito de veracidade. Percebe-se que Juliana usa uma espécie de chapéu, que pode também trazer significados à cena. Por meio de uma leitura semiótica da imagem e considerando uma concepção universal de significado, o papel desempenhado pelo chapéu pode corresponder ao da coroa, símbolo do poder, da soberania. Juliana se mostra, agora, poderosa, superior à patroa, já que possui as provas da traição. O uso do chapéu, nessa cena, sugere esse significado. Encontramos, portanto, em harmonia, a interação e a interdependência dos itens que constituem a cena. Voltando à luminosidade empregada, identificamos os efeitos psicológicos e dramáticos que a iluminação nas cenas interiores pode surtir. O contraste luz/sombra (re)cria a atmosfera da cena, conduzindo o receptor à participação da história, pois constitui um 115

poderoso fator de ansiedade e ameaça que prende a atenção e instiga o desejo de saber a continuação dos acontecimentos da trama. Seja qual for a cena, iluminada artificialmente, os planos de composição de luz devem ser cautelosamente planejados, para que a fotografia do filme esteja em harmonia estética com o roteiro e a proposta do drama. O fotógrafo deve considerar a disposição da iluminação como se faz na fotografia estática, isto é, saber dividir a hierarquia das luzes para constituir seu ambiente. Assim, a luz é caracterizada em termos de sua função. Para a composição de qualquer iluminação, o fotógrafo deve ter ciência do tema principal que a cena deve expressar, seja este tema um ou vários elementos no mesmo enquadramento. O conhecimento sobre essa intenção principal dá as diretrizes para cada fonte de luz ou de sombra. A utilização da iluminação no cinema conduz à trama da criação cinematográfica. Percebemos múltiplas conexões que se encontram em permanente mutabilidade: o conhecimento sobre fotografia, a dicotomia luz x sombra, o contorno, o enquadramento preciso, a intencionalidade do diretor, dentre outros elementos que se inter-relacionam para compor um recurso que auxilia a expressividade no cinema, pois, segundo Salles:

Essa visão do processo de criação nos coloca em pleno campo relacional, sem vocação para o isolamento de seus componentes, exigindo, portanto, permanente atenção a contextualizações e ativação das relações que o mantêm como sistema complexo (SALLES, 2006, p. 22).

Outro fator pontual agrupado ao processo de criação aqui investigado e que dialoga com outras áreas é o vestuário. Escolhido para representar diversos fatores que caracterizam a história e os personagens (época, estilo, personalidade), também engendra efeitos significativos para melhor representação da narrativa. Tomando parte do conjunto dos meios de expressão cinematográfica, a utilização desse elemento no cinema não é diferente da que é feita pelo teatro. O profissional responsável pelo figurino deve caracterizar personagens. O vestuário é o que está mais inerente ao indivíduo, ou seja, o que dá vida à criação do personagem. O vestuário é responsável pelo embelezamento deste novo indivíduo criado pelo autor da história ou pela sua distinção, o que pode confirmar sua personalidade. Ele participa da interatividade dos elementos que compõem a trama cinematográfica e não pode estar separado dos demais “nós” dessa rede:

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Figura 2 – Luísa se prepara para a dança

Fonte: Elaborada pelas pesquisadoras (2014)

Quanto à imagem que utilizamos para ilustrar as considerações sobre o vestuário, trata-se da primeira visita de Basílio a Luísa. Ele tenta seduzi-la, primeiramente, convidando-a para uma dança. A cena, filmada em plano americano, destaca, de forma clara, o vestuário de Luísa, que identifica o estilo do fim da década de 1950. O traje da personagem também diz um pouco sobre sua personalidade: uma mulher casada, bem comportada, que não demonstrava intenção de exibir seu corpo por meio de roupas mais ousadas. Conforme Lotte Eisner (1985, p. 68):

O vestuário não é jamais um elemento artístico isolado. Deve-se considerá-lo em relação a um certo estilo de direção, cujo efeito pode aumentar ou diminuir. Ele se destacará dos diferentes cenários para pôr em evidência gestos e atitudes dos personagens, conforme sua postura e expressão. Por harmonia ou por contraste, deixará sua marca no grupamento dos atores e no conjunto de um plano.

O vestuário deve ser elaborado para todos do elenco, isto é, deve auxiliar o ator a incorporar um personagem e fazer com que o espectador acredite que tal intérprete realmente é o que mostra ser. Essa caracterização visual subsidia o contar de uma história. O figurino constitui um exemplo de informações que se inserem na linguagem cinematográfica. Podemos perceber que os efeitos de expressividade provocados pela influência do vestuário escolhido para compor a obra, toma parte da interatividade presente na criação fílmica. Tal interatividade constitui ações mútuas capazes de alterar o comportamento ou a natureza dos elementos envolvidos, nesse caso, os componentes que caracterizam o trabalho coletivo na obra. Isso gera combinações, associações, inter-relações, além de originar fenômenos de organização. Tais conexões dessa rede acarretam influência recíproca, um elemento agindo sobre outro e, ao mesmo tempo sendo afetado por outros componentes. 117

Em virtude da amplitude de reflexões sobre o cenário, delimitamos as considerações sobre o cenário interior da trama, já que este é o mais frequentemente filmado durante as gravações, conforme o diretor, Daniel Filho, afirma em um dos depoimentos dados ao making of do filme:

Estudei a luz que queria fazer. Queria fazer um “meio filme noir”. A luz tem essa coisa daquela casa fechada, num lugar lá em Pacaembu... então o Nonato fez uma iluminação multifundada. A direção de arte do filme, à medida que o filme passa, praticamente setenta por cento do filme, oitenta por cento do filme numa casa, foi uma engenharia complicada. Nós vimos a frente da casa (no começo do filme); nós vimos a lateral direita da casa onde ficava o carro estacionado (quando Juliana vai abrir o portão para Jorge sair com o carro); nós vimos a lateral esquerda da casa, que é onde a entrada do serviço da casa se dá (quando Luísa vai procurar a carta “perdida” no lixo externo (DANIEL FILHO, 2012).

O cenário, também constituinte da rede criativa do cinema, é um dos fatores mais importantes da preparação para a filmagem. O objetivo do cineasta é fazer o público crer no universo criado por ele. Para tanto, todos os componentes dessa ficção – dos edifícios aos veículos, passando pela escada da sala e o protagonista - devem atuar em conjunto para contar uma história. Múltiplos nexos em permanente variabilidade funcionam de forma recíproca para formar o todo do cenário que forma o todo do filme. A filmagem é um âmbito onde predomina a visualidade. Tudo o que está enquadrado pela câmera exerce um papel importante em mostrar quem são os personagens e o universo no qual esses estão inseridos. A programação para a construção de cenários de filmes começa muito antes de se dar início à produção. Com o surgimento no roteiro, deve incluir descrições de todos os ambientes e locações que serão usados nas filmagens. A partir de então, muitas outras etapas são empreendidas até que se chegue ao cenário completo para dar início ao trabalho da câmera. A investigação é um detalhe importante na fase preliminar da elaboração de cenários, principalmente, para filmes que se passam no passado ou no futuro – como é o caso da narrativa analisada aqui. A esse respeito, o próprio diretor de arte, Marcos Flaksman, comenta: A entrada da casa foi decidida, depois de bastante discussão, que seria pela porta da frente porque nós temos uma casa no exterior. Temos um primeiro andar, temos um segundo andar... as cenas se passam nesses lugares todos, simultaneamente. Nós achamos esse corpo de casa com dois pavimentos, mas o interior da casa é inteiramente reinventado. E é aí que está o negócio, nós não estamos fazendo demonstrativo. As pessoas recolhem coisas e vivem da maneira como elas querem viver, ou seja, é uma casa que não deveria possuir objetos que foram inventados após 1958 porque esse tempo não havia passado ainda, o resto estava valendo (DANIEL FILHO, 2012). 118

Sobre essa averiguação, os grandes estúdios contam com pesquisadores em tempo integral para encontrar detalhes sobre a arquitetura da época, as fotografias de arquivo e as imagens artísticas de prédios e locais históricos. Diante dessas considerações, percebemos que o cenário é peça fundamental no processo de criação fílmica e pode atribuir significações dramáticas a cada cena. Não se pode deixar de colocar a importância de certos elementos constituintes dessa atmosfera ficcional que estão presentes no filme. Para aqui, enfatizamos a presença da escada que aparece constantemente durante as filmagens. Dentre os significados atribuídos à escada, dentro de uma concepção universal de leitura de imagens, ela pode simbolizar as ascensões e as decadências da vida:

Figura 3 – Luísa lê o primeiro bilhete de Basílio

Fonte: Elaborada pelas pesquisadoras (2014)

Figura 4 – Luísa descendo e as roupas sujas

Fonte: Elaborada pelas pesquisadoras (2014)

Na imagem à esquerda, filmada em plano americano e ângulo plongée, é ilustrado o momento em que Luísa sobe as escadas lendo o primeiro bilhete de amor escrito pelo primo. A câmera a acompanha num movimento vertical para cima enfocando sua expressão de júbilo e paixão, ao subir as escadas com as flores. Ela se encontrava no auge da felicidade ao recomeçar o romance com o primo. O fato de subir as escadas, nesse momento da trama, sugere a ascensão ao encontro da felicidade, do amor, do sonho, como se estivesse subindo aos céus, às maravilhas da vida. Além disso, ela segura um buquê de rosas que também pode 119

atribuir significados à tentativa de conquista de Basílio, já que a rosa possui um papel simbólico do amor, da paixão. Já na imagem à direita, filmada em plano médio e ângulo contra-plongée, é ilustrada a decadência da mesma personagem sendo submetida a serviços domésticos por conta das chantagens de Juliana. Vemos Luísa no topo da escada com um cesto de roupas sujas a serem lavadas por ela mesma, enquanto Juliana saía para passear. Luísa descia dos “céus”, da vida de conforto e autoridade para a difícil realidade atribuída antes à empregada. Do céu a terra; de patroa a empregada; da alegria à tristeza; do sonho à realidade. Por meio da análise das imagens acima e dos depoimentos do diretor geral e diretor de arte, pode-se constatar que o cenário para esse filme foi construído com o objetivo de salientar a simbologia, a significação. Ele condiciona e, ao mesmo tempo, reflete o drama dos personagens. Esse elemento não específico do cinema, além de dialogar com a arte teatral, utiliza sua linguagem para comunicar o que está além dos olhos do espectador, mas que, de forma subliminar, consegue transmitir a mensagem. Temos, assim, o processo de criação como ato comunicativo. Porém, para que esta comunicação aconteça, é preciso levar em consideração que outros fatores interdependentes estão inseridos nesse contexto relacional: atores, diretor de arte, objetos, construções, entre muitos outros. Por isso a imprescindibilidade de se pensar a criação artística como um encadeamento complexo, não se ater ao isolamento dos elementos, aos esquemas presentes na obra e, ao invés de descontextualizar suas relações, despertá-las. Nessa complexidade, um constituinte (signo) se interliga a outro que interdepende de outro. Um universo sígnico que se relaciona e entrelaça diversos pontos convergentes por meio de associações, combinações, seleções, formando um encadeamento, conforme afirma Salles (1990, p. 71):

O signo, como uma tríade está ligado, inevitavelmente, a outro signo que subsequentemente origina outro signo e assim por diante ad infinitum. Essa ausência de autonomia intrínseca ao signo determina a continuidade do universo sígnico.

As considerações postas pela autora conduzem à investigação de outra unidade indispensável para a arte cinematográfica. Além de dialogar com a pintura, o uso das cores no cinema, muito devido à evolução deste, tem se tornado cada vez mais um elemento psicológico e dramático da ação, bem como exerce uma função expressiva e metafórica. Na sétima arte, a cor (assim como a luz) possui duas funções básicas: colaborar para a impressão 120

de realidade e construir sentido. As cores também têm o poder de recuperar, alterar e recriar realidades, tanto no cinema quanto nas artes plásticas. A utilização de certas cores em determinadas cenas vai além da tentativa de tornar a sequência fílmica verossímil. Os recursos cinematográficos que se utilizam da coloração do conteúdo enquadrado na tela possuem, muitas vezes, o poder de conjurar sentimentos e estabelecer atmosferas. É de praxe declarar que as cores quentes (amarelos, vermelhos, alaranjados) podem estimular sensações de excitação, calor, movimento. Já as cores frias (azuis, verdes, roxos) são capazes de sugerir o sentimento de repouso, frieza, tranquilidade ou, dependendo do contexto, tristeza. O uso das cores no cenário fílmico deve desempenhar uma incumbência essencialmente psicológica. Em detrimento da beleza, deve ser significativa. Assim, a presença da cor adequada a certo elemento e contexto da sequência visualmente narrada torna-se expressiva e consegue transmitir mensagens que não poderiam ser transmitidas (ou pouco efeito surtiria) sem a intervenção da cor. Nesse sentido, ela deve ser aplicada em missão de seu espírito dramatúrgico para não correr o risco de empobrecer a narrativa fílmica, pois:

A expressividade de uma cor dependerá das funções que desempenhe. Quando entra em combinações com outras cores, cada uma recebe dessa combinação determinadas funções espaciais, favorecendo a lógica das formas. O valor exato de uma cor é relativo e depende do contexto colorístico (TISKI-FRANCKOWIAK, 2000, p. 151).

Percebemos, assim, que o sistema dentro do universo cinematográfico é formado gerando significados e, em consequência disso, recriando a realidade. Nesse contexto, a aplicação das cores em determinadas cenas tem o poder de engendrar sentimentos, sensações e reflexos sensoriais, pois cada efeito visual que elas provocam resulta em determinada vibração em nossos sentidos e pode exercer o papel de estimulante ou perturbador na consciência, na emoção, nos impulsos e desejos do receptor, como podemos ilustrar:

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Figura 5 – Luísa acordando

Fonte: Elaborada pelas pesquisadoras (2014)

Figura 6 – Jorge chora sobre a esposa morta

Fonte: Elaborada pelas pesquisadoras, 2014.

A imagem à direita remete à manhã seguinte à primeira noite de amor entre Luísa e Basílio, após o reencontro. Ela acorda radiante e ainda mais apaixonada pelo primo. A personagem é filmada em plongée e a cena conota paixão e felicidade por meio das cores utilizadas no cenário. Observamos que as cores predominantes são em tons de rosa, o que, universalmente, sugere o sentimento de sedução e prazer. Percebemos que Luísa se posiciona bem no meio da cama, como se esta fosse só dela, como se o marido não fizesse mais parte de sua vida, como se ignorasse o casamento. Observamos, ademais, a estampa do papel de parede do quarto de Luísa, também em tons predominantes de rosa, o que insinua que a vida da personagem, naquele momento, tornara-se “flores”, que a felicidade amanhecia com ela, que a paixão se alimentava a cada manhã. Em contrapartida, na imagem à direita, vemos a cena filmada em preto e branco. Recordando a origem do cinema, essa combinação de cores acabou se tornando recurso da linguagem fílmica, podendo atribuir significados. No que diz respeito à referida filmagem, após muitas tentativas de diagnósticos e tratamento, Luísa não resiste aos sintomas e falece nos braços de Jorge. A cena é filmada em plano médio americano e, à medida que a câmera se 122

aproxima, o cenário vai perdendo a cor, até ficar em preto e branco. Tal recurso transformador de cores propõe o significado de que a vida de Jorge perdia o brilho, a vivacidade, uma fase - obscura se aproximava do dia a dia do personagem e a desgraça passa a dominar a trama. Mais uma vez deparamo-nos, dentro do contexto da linguagem aqui estabelecida, com a concepção de rede concatenada à dinamicidade e à transformação: luz, câmera, cores, cenário, atores, diretor de arte, artifícios, etc, entrelaçados em uma única tomada de decisão, cada um em sua função que se mostra interconectada gerando, assim, o significado da cena como um todo. A constante demanda pela inovação nas produções fílmicas colabora com a reformulação incessante da linguagem fílmica e seus componentes. Juntamente à evolução da sétima arte, tal linguagem sofre mutações e gera um sistema gradativamente complexo, com diversas possibilidades de aplicação, em decorrência dos vários códigos que a constituem. É por meio dessa linguagem, composta por inúmeros signos interdependentes, que se constroem as narrativas. As histórias representadas no cinema são traçadas por meio da combinação dos elementos que compõem a linguagem. Para uma efetiva utilização das cores na construção de sentido no cinema, são utilizados significados já existentes ou se elaboram outros através da relação com os demais elementos da cinematografia. Qualquer movimento está vinculado a outros e a cada qual é atribuído um significado que, quando associados são pactuados, ajustados. Observa-se que, quando a cor não é mais utilizada somente para estabelecer realismo às cenas, passa-se a executá-la como um código gerador de conceitos. Não só sua presença, como também sua ausência (como foi o caso da tomada em preto e branco), em concomitância com outras cores, estimulam a imaginação e a interpretação do espectador por meio dos símbolos produzidos pelo ser humano através de suas experiências. Enfim, segundo Salles (1998, p. 100), “o processo de criação é visto aqui como seleção de determinados elementos que são recombinados, correlacionados, associados, e, assim, transformados de modos inovadores”. Abordando de forma peculiar apenas um elemento dos considerados não específicos do cinema, constata-se o verdadeiro escopo de sua existência, bem como a significância da relação com os demais elementos. A cor, o cenário, o figurino/vestuário e a luz/iluminação são componentes que contribuem significativamente na criação de impressões e acepções nas cenas fílmicas. Multifacetados em suas funções, esses pontos, conectores e conectados entre si, conseguem reter a concentração do espectador no que está sendo representado na tela; valorizar ou minimizar ações e objetos; exibir aspectos 123

físicos e/ou psicológicos de personagens tal como suas relações sociais, etc., além de proporcionar realismo às cenas. Diálogos de gêneros múltiplos são agentes dos aspectos comunicativos e responsáveis pela tessitura das redes dos processos de criação. Presentes em todos os processos, essas interações são utilizadas de modo coordenado. A obra cinematográfica não demarca sua materialização a uma única e deliberada linguagem. O drama, a videografia, a música dentre tantos outros integrantes do produto se combinam, originando uma obra considerada híbrida. Assim, nos defrontamos, mais uma vez, com o sucessivo movimento de tradução intersemiótica, colocada, aqui, como transmutação em diferentes linguagens. No caso do cinema, constata-se que a trajetória criativa não é constituída somente por meio de imagens em movimento que narram uma história. Existe a interposição de códigos distintos em momentos, atuações e utilizações inúmeras, que formam o tecido complexo desse processo em toda sua coletividade.

REFERÊNCIAS

CHEVALIER, Jean; GHEERBRANT, Alain. Dicionário de Símbolos. Rio de Janeiro: José Olympio, 2005.

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______. Redes da Criação: Construção da Obra de Arte. Vinhedo: Editora Horizonte, 2006.

TISKI-FRANCKOWIAK, Irene T. Homem, comunicação e cor. 4. ed. São Paulo: Ícone, 2000.

FILMOGRAFIA

FILHO, Daniel. Primo Basílio. Lereby Produções, 2007. 125

RECRIANDO A GUERRA DOS MUNDOS, DE H. G. WELLS: A DINÂMICA CRIADORA DE AUDIOLIVROS BRASILEIROS A PARTIR DE ROMANCES E CONTOS DE LÍNGUA INGLESA

Flávio Azevêdo Ferrari43

O presente artigo, recorte da dissertação de Mestrado do autor, versa sobre os percursos trilhados pelo grupo de pesquisa Tradução, Processo de Criação e Mídias Sonoras (PRO.SOM): Estudos de Tradução Interlingual e Interartes44 da Universidade Federal da Bahia, para a criação de audiolivros adaptados a partir da tradução de obras literárias de língua inglesa. A Guerra dos Mundos (2015), audiolivro que apresenta uma peça radiofônica baseada no clássico romance homônimo de ficção científica do autor britânico Herbert George Wells (1866-1946), publicado em 1898, é a obra utilizada para ilustrar a dinâmica de criação do grupo, que hoje já conta com mais de 10 audiolivros publicados. Uma das obras mais adaptadas do gênero, conta a história da invasão da Terra por alienígenas de Marte. O caminho percorrido para a produção de A Guerra dos Mundos (2015) foi iniciado, portanto, a partir da tradução do texto The War of the Worlds (1898) para o português em 2013 até a publicação do audiolivro em 2015. Ao longo do caminho, a obra passou por diversos suportes e uma grande variedade de documentos de processo foi gerada. Um aspecto significativo da criação dos audiolivros do PRO.SOM é a natureza tríplice desses processos. São gerados três produtos/obras: uma tradução interlingual, um roteiro de peça radiofônica e a referida peça gravada em áudio. Esse trabalho pode ser visto sob o viés dos estudos genéticos do crítico Biasi (2010), segundo o qual, o processo de criação de uma obra se divide em quatro etapas: a fase pré-redacional, etapa precedente à redação, em que autor/autores podem desenvolver pesquisas, esquemas e planos de escrita; a fase redacional, estágio de textualização da obra; a fase pré-editorial, parte da gênese que envolve revisão e alterações para finalização do texto; e a fase editorial, etapa em que a obra é examinada pelo editor, podendo haver pedidos de correções e alterações anteriores à publicação. No caso das produções executadas pelo PRO.SOM, propõe-se, neste artigo, uma adaptação dos conceitos expostos por Biasi. Leia-se:

Figura 1 – Fases da criação de um audiolivro

43Doutorando no Programa de Pós-Graduação em Literatura e Cultura da Universidade Federal da Bahia. E-mail: [email protected]. 44 Mais informações sobre o trabalho realizado pelo grupo no endereço http://www.intervozes.com.br 126

Fonte: Elaborada pelo pesquisador (2016)

O gráfico demonstra que, para se chegar à terceira etapa do processo de criação em apreço, é necessário passar por dois outros momentos: o processo de tradução, bem como o processo de adaptação, que inclui a roteirização. Como, geralmente, as traduções dos romances não são publicadas juntamente com os audiolivros do Grupo PRO.SOM, não se considera a fase pré-redacional, nem a redacional do referido processo. O que se tem é uma fase pós-redacional, na qual a tradução é revisada e corrigida pelos pesquisadores. Quanto à fase de adaptação/roteirização, é importante notar que o roteiro passa por uma fase pós- redacional, quando são executadas revisões e leituras dramáticas para refinar o texto; posteriormente, após a gravação da peça, o roteiro é, junto com a referida gravação, ambos submetidos às fases pré-editorial e editorial, antes da publicação. Isso se deve ao fato de cada audiolivro do PRO.SOM ser publicado em CD junto ao roteiro da peça radiofônica impresso. Por fim, constata-se que o processo de tradução e adaptação/roteirização da obra de partida fazem parte da fase de pré-gravação da peça radiofônica, ou seja, a criação de um audiolivro do PRO.SOM contém outras gêneses relacionadas com o processo em análise. Observando registros da gênese do referido audiolivro, o primeiro passo após o processo de tradução foi dividir o texto entre os pesquisadores, por capítulos, para que destacassem, com cores diferentes, as partes mais importantes que poderiam ser utilizadas na adaptação. Esse processo foi realizado com o uso de uma ferramenta da internet, o Google Drive, que guarda o dossiê de criação da gênese em análise. Todos trabalhando no Google Drive podiam visualizar a atividade dos demais pesquisadores, à medida que faziam suas interferências no texto, já que as marcações de cada pesquisador eram identificadas por uma cor diferente. Essa etapa foi realizada a partir de um arquivo digitoscrito armazenado no Google Drive e editado no Google Docs, que pode ser visto nos recortes, a seguir:

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Figura 2 – Captura de tela de arquivo no Google Docs

Fonte: Dossiê genético de A Guerra dos Mundos (2015)

Importante ressaltar a relevância do Google Drive, neste processo de criação, já que foi usado como local de armazenamento privilegiado pelo grupo. Lançado em 24 de abril de 2012, o Google Drive é o serviço de armazenamento de arquivos gratuito da Google, onde seus usuários podem, além de fazer uploads de arquivos para o seu próprio disco virtual, também compartilhá-los, decidindo o nível de permissão de acesso para outras pessoas. De modo que é possível editar esses arquivos online, fazer backup e visualizá-los a qualquer momento e de qualquer dispositivo com acesso à internet. Para a edição de arquivos de texto, o Google oferece o Google Docs, ativo desde agosto de 2005. Nessa ferramenta, os usuários podem criar e editar documentos em rede, ao mesmo tempo, colaborando entre si em tempo real, sem se preocupar em perder as alterações, pois as mesmas são salvas automaticamente pelo Google. Aproveitando esses aplicativos, os integrantes do PRO.SOM puderam agilizar todas as etapas da gênese em análise, uma vez que podiam colaborar em conjunto, sem necessariamente estarem no mesmo local, ao realizarem as tarefas de tradução e revisão; construção do roteiro e revisão do mesmo. Quando os pesquisadores se encontravam reunidos fisicamente, essas atividades eram realizadas no Microsoft Word: processador de texto da Microsoft lançado em 1983, que permite a criação, edição e compartilhamento de trabalhos rápida e facilmente e é atualmente o processador de textos mais popular do mundo. A seguir, exemplo de um dos manuscritos digitais da criação de A Guerra dos Mundos (2015) criado no Word:

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Figura 3 – Captura de tela de digitoscrito no Microsoft Word

Fonte: Dossiê genético de A Guerra dos Mundos (2015)

Para Góes (2013), o Word facilita o trabalho de pesquisa e investigação geneticista porque: O espaço gráfico desse editor de textos comunga semelhanças com o espaço gráfico do papel, porém com novos usos e novas funções. Ele traz, por exemplo, um painel que dialoga com o usuário apresentando diversas ferramentas dispostas na forma de ícones e janelas, que podem contribuir para a fluidez do trabalho artístico. Ao digitar um texto, o escritor não lida com folhas de papel dispersas ou constituintes de um caderno, que finda sua área de escrita ao se preencher o último espaço em branco da página. Com o uso da barra de rolagem lateral, existente no aplicativo Word, o “papel virtual” funciona como um pergaminho de metragem indefinida, que rola para cima e para baixo, por tantas e quantas páginas o escritor achar necessário. Não cabe mais ao escritor o medo de chegar ao final da página e ter que reiniciar sua escritura em outra página em branco. (GÓES, 2013, p.26) Além dos argumentos levantados, é vital destacar a dinamicidade proporcionada pelo Word ao processo de criação artístico em análise dos integrantes do PRO.SOM, uma vez que, criado coletivamente, o roteiro de A Guerra dos Mundos (2015) sofria alterações em diversos momentos, portanto, tendo cada integrante a sua cópia digital do mesmo. Para identificação 129

de alterações, diferentes versões eram salvas, sempre indicando os nomes dos integrantes que realizaram alterações em determinado momento, como na figura:

Figura 4 – Captura de tela de digitoscrito comentado no Microsoft Word

Fonte: Dossiê genético de A Guerra dos Mundos (2015)

É possível, nesse exemplo, observar a ferramenta de comentários do programa, que são muito úteis, principalmente nos processos de revisão de texto. Neste caso, os balões de comentários foram utilizados para sugestões de possíveis trilhas sonoras para uma cena, que já são propostos nesse momento em que se faz a revisão do roteiro. Os hiperlinks adicionados levam até o site YouTube, de forma que outros integrantes tinham a possibilidade de escutar a música sugerida e, por vezes, opinavam sobre a compatibilidade da mesma com o texto dramático. Impressos os roteiros, surgiam as alterações feitas à mão. Fazem parte da gênese das peças radiofônicas do PRO.SOM diversas reuniões entre pesquisadores, atores, diretores e outras pessoas envolvidas para leituras dramáticas de roteiro e/ou correções dos mesmos, até que atinjam qualidade satisfatória em relação aos parâmetros do grupo. Por exemplo:

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Figura 5 – Exemplo de trecho de roteiro impresso com anotações feitas à mão

Fonte: Dossiê genético de A Guerra dos Mundos (2015)

Em algumas leituras dramáticas, certos diálogos foram completamente reescritos, o que demandou o espaço em branco dos versos das folhas de certas versões do roteiro: 131

Figura 6 – Exemplo de trecho eliminado do roteiro

Fonte: Dossiê genético de A Guerra dos Mundos (2015)

Figura 7 – Trecho da figura 6 reescrito

Fonte: Dossiê genético de A Guerra dos Mundos (2015)

Em arquivos de áudio, pode-se escutar e saber, exatamente, como foi feita a reescritura de cenas como a apresentada no manuscrito da figura 7. A maioria dos encontros envolvendo a criação de A Guerra dos Mundos (2015) foi gravada em áudio, através de aparelhos de gravação, gravadores de áudio de smartphones, ou filmada com a câmera do grupo. Na amostra acima, atenta-se que o trecho reescrito, de pouco mais de 3 linhas, é mais pungente que o texto eliminado, de 7 linhas. Isso se deve ao caráter de urgência do aviso dado pelo personagem, que orienta a população a evacuar a cidade durante os primeiros ataques alienígenas. Após as revisões do texto, foi iniciado o processo de escolha de atores para a gravação de A Guerra dos Mundos (2015). Nessa etapa, foi gerada, à mão, uma lista com possíveis vozes para os personagens da peça radiofônica: 132

Figura 8 – Exemplo de lista de elenco

Fonte: Dossiê genético de A Guerra dos Mundos (2015)

Na parte inferior da lista, estão todas as opções de atores com disponibilidade para gravar a peça. Na parte superior, constam os profissionais distribuídos de acordo com os personagens da peça radiofônica que lhes foram atribuídos. Como, na maioria das vezes, houve dificuldade de conciliação de horário dos atores, foi necessário fazer substituições na lista acima. Passada a fase de escalação dos atores, as gravações se iniciavam e, agora no estúdio do PRO.SOM, novos manuscritos digitais eram criados. Inaugurado em 2012, o estúdio conta com três microfones de alta performance, cabine de gravação, pré-amplificadores, caixas de 133

som e um computador iMac da Apple para gravar e editar os audiolivros. A figura a seguir mostra o estúdio em funcionamento:

Figura 9 – Captura de tela de vídeo mostrando gravação no estúdio do Pro.Som

Fonte: Dossiê genético de A Guerra dos Mundos (2015)

Dentro da cabine de gravação, um ator grava George, o personagem principal de A Guerra dos Mundos (2015). Nesse momento, é crucial o silêncio fora da cabine, pois, devido à grande potência dos microfones do estúdio, até pequenos ruídos podem ser captados e prejudicarem a gravação. Já do lado de fora, um pesquisador atua como técnico de som e opera o computador iMac, além de, por vezes, passar o texto com o ator e avisá-lo caso ele cometa algum erro na gravação. É necessária sempre a presença de um técnico de som constantemente atento ao software Pro Tools, programa de computador utilizado para gravar as peças radiofônicas, para que não ocorra clipagem, microfonia que se dá quando o som “estoura” por ser gravado muito alto. Portanto, para a qualidade do áudio gravado atingir o nível de qualidade desejado, este não deve ser nem muito alto (“clipado”, como é conhecido no meio), nem muito baixo. Conta-se, contudo, com uma margem de 6 dBs acima da clipagem para a gravação ser considerada, dentro dos limites estabelecidos, como aceitável. Capaz de captar, gravar e editar áudio e vídeo, o Pro Tools é uma estação de trabalho de áudio digital para os sistemas operacionais Microsoft Windows e OS X, da Apple; fabricado e desenvolvido pela empresa Avid Technology (AVID.COM). Segue trecho de uma sessão de gravação de áudio do Pro Tools, como pode ser visto na figura: 134

Figura 10 – Captura de tela de sessão do Pro Tools

Fonte: Dossiê genético de A Guerra dos Mundos (2015)

A faixa de áudio em azul representa a gravação sem cortes da voz de um personagem de A Guerra dos Mundos (2015), com todas as suas hesitações, falsos começos, diferentes versões de uma mesma fala, e até discussões entre o ator e o técnico de som e/ou diretor quanto a “cacos”, que são falas improvisadas ou introduzidas pelo ator na leitura ou performance do texto, possíveis reestruturações de frases, dentre outros. Outros manuscritos redigidos à mão retratam procedimentos mais técnicos, como o passo-a-passo para converter uma sessão de áudio do software Pro Tools em um arquivo de formato popular, como o .mp3 (MPEG-1 ou MPEG-2 Audio Layer III) e o .wma (Windows Media Audio). Tais ocorrências advêm do fato de que a maioria dos integrantes do PRO.SOM começou a trabalhar com edição de áudio ao entrar no grupo. O procedimento de conversão para esses formatos geralmente ocorre para compartilhamento de recortes a serem ouvidos em dispositivos que não aceitem o formato de arquivo das sessões de áudio do Pro Tools (.ptx), mencionado acima. Leia-se:

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Figura 11 – Manuscrito com procedimentos técnicos

Fonte: Dossiê genético de A Guerra dos Mundos, 2015.

Este procedimento intitula-se bounce que, na linguagem técnica, significa juntar todas as trilhas sonoras gravadas em apenas dois canais, o L/R (esquerdo e o direito). Finalizadas as etapas de edição e mixagem, a sessão de áudio final sofre o procedimento de bounce e o arquivo gerado é encaminhado para publicação. No que tange à adaptação de romances e contos de língua estrangeira para audiolivros brasileiros, o trabalho do PRO.SOM tem se demonstrado em constante aperfeiçoamento e evolução. Além da introdução de novos equipamentos no estúdio, o grupo segue aliando discussões teóricas acerca de áreas do saber correlatas com a Crítica Genética, como Tradução, Adaptação, Peça Radiofônica, Acessibilidade, Estudos de Roteirização, gravação e edição de audiolivros. O processo de criação aqui ilustrado reitera a afirmação feita por 136

Daniel Ferrer em seu estudo A Crítica Genética do século XXI, no qual o autor denomina esse campo do saber como uma ciência que “será transdisciplinar, transartística e transemiótica ou não existirá” (2002, p. 203). A dinâmica criadora do grupo revela enorme capacidade colaborativa dos integrantes da equipw, que transitam entre diferentes artes e mídias em busca do objetivo comum de difundir obras literárias em audiolivro. Para futuros estudos acerca da gênese de A Guerra dos Mundos, esta pesquisa disponibiliza a descrição de todos os arquivos que compõem o dossiê genético da obra, que também foi totalmente classificado e organizado em ordem cronológica. Talvez, uma futura pesquisa possa explorar a natureza da autoria colaborativa do grupo ou investigar mais a fundo as diferentes versões da gravação da peça radiofônica gerada.

REFERÊNCIAS

BIASI, Pierre-Marc de. A genética dos textos. Tradução de Marie-Hélène Paret Passos. Porto Alegre: EDIPUCRS, 2010.

FERRER, Daniel. A Crítica Genética do século XXI será transdisciplinar, transartística e transemiótica ou não existirá. In: ZULAR, Roberto (Org.). Criação em processo: ensaios de crítica genética. São Paulo: Iluminuras, 2002. p. 203 – 217.

GÓES, Sirlene Ribeiro. Legendando Raccoon & Crawfish: proposta de estudo do processo criativo de uma legendagem fílmica e de edição genética. 128f. + 1 DVD. Dissertação (Mestrado) – Instituto de Letras, Programa de Pós-Graduação em Literatura e Cultura, Universidade Federal da Bahia, Salvador, 2013.

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A POTÊNCIA ARQUIVÍSTICA DA ESCRITA DE JUDITH GROSSMANN

Henrique Julio Vieira45 Evelina Hoisel46

“O amor é a minha matéria-prima, por sua vez realimentado pelo meu trabalho, o que equivale a dizer que o trabalho é a matéria-prima do amor.” (Meu amigo Marcel Proust romance, de Judith Grossmann).

A partir da década de 1980, o processo de redemocratização na América Latina, o aparecimento da literatura testemunhal e a emergência de novas vozes no campo literário integraram o contexto da reorientação teórico-metodológica pela qual as ciências humanas passaram, com a valorização da pesquisa com fontes primárias, a indagação quanto aos regimes de produção de sentidos dos arquivos da memória social e cultural e a valorização do papel do sujeito tanto nos processos de criação artística, quanto na produção de conhecimento. A consolidação da crítica genética e da crítica biográfica nos estudos literários e culturais, nesse contexto, sinaliza a ampliação do corpus de estudo da pesquisa literária (SOUZA, 2002), sendo inseridas novas textualidades ao horizonte interpretativo das obras e seu processo de criação: cadernos de pesquisa, manuscritos autógrafos, depoimentos autorais sobre a gênese textual, correspondências, fotografias, objetos pessoais etc. Em A farmácia de Platão, Jacques Derrida (2005) analisa a interpretação platônica do mito egípcio para o surgimento da escrita pelas mãos de Theut, a divindade escriba dos deuses, e sinaliza a sua dupla potência de phármakon, remédio e droga. Para o sujeito clássico, a escrita permitiria aos homens a dádiva da recordação e da rememoração (hupómnésis), ao passo que também os distanciaria da lei natural da vida que instaura a fala (phoné) como expressão da Verdade e exercício da memória viva (mnémé) resguardada pelo Ser. Com o duplo gesto de re-produção e suplência (ou suplemento) da memória, a escritura e seu arquivo desestabilizariam a força da voz instauradora da lei e do sentido para estabelecer o espaço de diferença entre a memória viva e a letra grafada. A potência arquivística da escrita, nesse sentido, se realizaria menos por um processo de aferimento da fidelidade à lei e ao modelo do que pelo jogo especular entre a memória e o significante:

45Cursa Letras Vernáculas pela UFBA. Bolsista IC (CNPq) vinculado ao projeto de pesquisa O escritor e seus múltiplos: migrações e ao grupo de pesquisa em Teoria da Literatura, Literatura Comparada e Criação Literária (UFBA/CNPq). [email protected] 46 Professora Titular de Teoria da Literatura da UFBA. Pesquisadora CNPq. Coordenadora do projeto de pesquisa O escritor e seus múltiplos: migrações e do grupo de pesquisa em Teoria da Literatura, Literatura Comparada e Criação Literária (UFBA/CNPq). Presidente da Academia de Letras da Bahia. [email protected] 138

O limite (entre o dentro e o fora, o vivo e o não-vivo) não separa simplesmente a fala e a escritura, mas a memória como desvelamento e (re-) produzindo a presença e a rememoração como repetição do monumento: a verdade e seu signo, o ente e o tipo. O “fora” não começa na junção do que chamamos atualmente o psíquico e o físico, mas no ponto em que a mnese, em vez de estar presente em si em sua vida, como movimento da verdade, se deixa suplantar pelo arquivo, se deixa excluir por um signo de re-memoração ou de com-memoração. O espaço da escritura, o espaço como escritura, abre-se no movimento violento dessa suplência, na diferença entre mnéme e hupomnése. (DERRIDA, 2005, p. 66)

A diluição das fronteiras entre os gêneros literários e a convergência de diversas linguagens artísticas (literatura, cinema, fotografia, performance, música etc) são observadas por Florencia Garramuño (2014a; 2014b; 2014c) como manifestações da inespecificidade da arte contemporânea, a partir da qual foram hibridizados os elementos intrínsecos que outrora delimitavam as identidades au sens large. É, no entanto, a ideia de “limiar” delineada por Evelina Hoisel (1999a), na década precedente – no contexto de consolidação da Associação Brasileira de Literatura Comparada (ABRALIC) – que nos parece o operador crítico que melhor se aproxima da experiência literária de Judith Grossmann. Para Hoisel, os discursos da contemporaneidade abalaram as fronteiras entre os territórios linguísticos, geográficos, culturais e discursivos arregimentadas pelas noções de unidade, essência e pureza da metafísica ocidental, colocando em contato realidades díspares, “no ponto de tensão entre continuidade e descontinuidade, passagem de um mesmo para um outro” (p. 43). No conjunto da obra literária da escritora47, a aparição da palavra Romance nos títulos de seus livros aponta para a tentativa de afirmação do gênero literário, o que, entretanto, não representa a limitação de suas possibilidades criativas ou o estabelecimento de um modelo narrativo. Outrossim, reitera-se a hibridação do romance moderno, desde o século XVIII, com formas discursivas diversificadas (BAKHTIN, 1998; MAGRI, 2009), dentre as quais podemos identificar a narrativa biográfica (Robison Crusoé, de Daniel Defoe), a epistolografia (As ligações perigosas, de Choderlos de Laclos, Os sofrimentos do jovem Werther, de J. W. Goethe), a historiografia (Iracema, de José de Alencar, Viva o povo

47 Linhagem de rocinante: 35 poemas (São José, 1959); O meio da pedra: nonas estórias genéticas (José Álvaro, 1970); A noite estrelada: estórias do ínterim (Prêmio Brasília de Ficção/1976, Francisco Alves, 1977); Outros trópicos romance (José Olympio, 1980); Temas de teoria da literatura (Ática, 1982); Cantos delituosos romance (Prêmio Ficção da APCA/1985, Nova Fronteira, 1985); Meu amigo Marcel Proust romance (Fundação Casa de Jorge Amado, 1995; Record, 1997); Vária navegação: mostra de poesia (Prêmio COPENE de Cultura e Arte, Fundação Casa de Jorge Amado e COPENE, 1996); Nascida no Brasil romance (Bolsa Vitae de Literatura/1993, Fundação Casa de Jorge Amado e EDUFBA, 1998); Fausto Mefisto romance (Record, 1999); Pátria de histórias: contos escolhidos de Judith Grossmann (Imago/Fundação Cultural do Estado da Bahia, 2000); Todos os filhos da ditadura romance (EDUFBA, 2011). 139

brasileiro, de João Ubaldo Ribeiro, Meu querido canibal, de Antônio Torres), o discurso científico (Germinal, de Émile Zola, O Cortiço, de Aluísio Azevedo, Os Sertões, de Euclides da Cunha) ou o discurso filosófico (Canaã, de Graça Aranha). A ficcionalização de arquivos pessoais na construção de romances brasileiros contemporâneos tem sido nosso interesse de estudo mais recente, para o qual partimos da hipótese de que a potência arquivística da escrita literária pode se desenvolver a partir de dois movimentos: (a) através da incorporação de documentos de arquivos e fundos à materialidade do texto literário, como o fazem Chico Buarque no romance O irmão alemão, com as correspondências do arquivo da família Buarque de Holanda, ou Paulo Henrique Ferreira, em Álbum duplo: um rock-romance, com o arquivo online das músicas citadas ficcionalmente; ou (b) pela incorporação de práticas discursivas do arquivamento do eu (ARTIÈRES, 1998) – listas, diários, coleções, cartas, autobiografias, fotografias etc – na composição das narrativas, funcionando como engrenagens da “máquina literária” (DELEUZE, 2014), a exemplo de Judith Grossmann em Meu amigo Marcel Proust romance e Todos os filhos da ditadura romance, com seus fundos custodiados pela UFBA e pelo Arquivo-Museu de Literatura Brasileira da Fundação Casa de Rui Barbosa, e Silviano Santiago, em Mil rosas roubadas, com o acervo pessoal ficcionalmente doado ao amigo Zeca para que escrevesse, futuramente, a sua biografia. O processo genético de Meu amigo Marcel Proust romance foi composto por três campanhas de escritura (GRÉSILLON, 2007): a redação autógrafa da primeira versão entre 09 de janeiro e 18 de fevereiro, na Praça de Alimentação do Shopping Barra, em Salvador; a primeira reescritura, datiloscrita, entre 19 de fevereiro e 13 de março de 1995; e, por fim, a segunda reescritura, também datiloscrita, de 17 de março a 09 de abril de 1995. A escolha do shopping center como local de criação torna-se uma escrita-vivência paradoxal da pós- modernidade, pois a espetacularização da imagem pública do escritor, o registro do cotidiano de um espaço de consumo massivo e a inserção dos bens culturais na lógica do mercado são acompanhados da filiação aos romancistas do século XIX e XX e a crença no papel da arte e da literatura para a educação sentimental de homens e mulheres do novo milênio. Para Evelina Hoisel (1999b), Fulana Fulana reencena em sua escrita os salões parisienses frequentados por Marcel Proust com a ficcionalização do processo de criação literária no shopping, o “salão da pós-modernidade”. Ao poeta que perde a sua áurea no “lodo da macadamia” (BAUDELAIRE, 1995, p. 147) ou numa mesa da praça de alimentação, lhe caberia reconsagrar, pelas mãos de artista da palavra, o esplendor e o grão de beleza do instante mais fugaz dos passantes: 140

Trabalho no Shopping, em mesa em frente aos cinemas, em situação de namoro universal, envolvida por músicas pop que cantam o amor, beijos e abraços de jovens casais no cio, cheiro dos restaurantes e do fast food, crianças que esvoaçam como flores, trazendo prados da história da pintura, piqueniques, passeios nos parques aos domingos, mesmo sendo hoje quinta- feira. Assim deve ser para eliminar a convencional solidão do ato de criar. Já até me foi possível, mas hoje, não, o heroísmo do quarto-catedral, preciso de tudo isso que e a própria essência, o extrato mesmo, como um perfume, da pós-modernidade, Fernando Pessoa trabalhando/escrevendo no Café Irmãos Unidos, mutatis mutandis, eu, menina livre para sempre, sofrendo de claustrofobia de um lar, que, ao contrário dele... “o lar que nunca terei.” (GROSSMANN, 1997, p. 43)

A narração ficcional das etapas de criação do livro e a representação literária do arquivo formado com a gênese textual nos conduzem para uma leitura exorbitante ao texto literário impresso e publicado48, instância primeira de contato com o processo genético da obra. Como cenas de um grande ato dramático, Judith Grossmann projeta uma situação- textual MAMPR, a partir do jogo especular entre o livro publicado e a sua documentação textual organizada pela própria escritora na pasta Judith Grossmann: Matéria-Prima, que integra o seu arquivo literário custodiado pelo Grupo de Pesquisa em Teoria da Literatura, Literatura Comparada e Criação Literária (CNPq), do Instituto de Letras da UFBa. Publicado em dezembro de 1994, no jornal A Tarde (Salvador/BA), o release do crítico literário francês Nardo Zalko para L’impossible Proust, a biografia de Marcel Proust escrita por Roger Duchene, é guardada na Matéria-Prima como reporto ao predecessor primeiro do romance a ser escrito a partir do mês seguinte (janeiro). Segundo Zalko, o consagrado biógrafo conseguiria flagrar a vida literária do excêntrico romancista francês e a construção da sua imagem pública nos salões parisienses, assim como Fulana Fulana o faz na praça de alimentação do Shopping Barra.

48Fundação Casa de Jorge Amado, 1995; Record, 1997. 141

Figura 1 – Inesgotável Proust (Jornal A Tarde – caderno 2, 31 dez. 1994)

Fonte: Judith Grossmann: Matéria-Prima

142

Durante a fase redacional da obra, o relançamento do livro de poemas Inquisitorial do escritor baiano José Carlos Capinan (publicado inicialmente em 1966) seria inserido na rede discursiva tramada entre o romance e seu arquivo literário. Suscetível às ações do esquecimento e do fluxo de capital, que transforma incessantemente o espaço do shopping center e condiciona a permanência das lojas à sua rentabilidade financeira, a escritora incorpora os vestígios da sua extinta Livraria Civilização Brasileira na Matéria-Prima e narra ficcionalmente o evento, com a avaliação mordaz de Fulana Fulana: “Não é um lançamento propriamente, é mais um comício político. O livro não é novo, foi publicado há uns trinta anos, e está sendo relançado, como se diz agora. Evidentemente, estou aqui por outra coisa, que preciso descobrir”. (GROSSMANN, 1997, p. 52)

Figuras 2 e 3 – Correspondência da Editora Civilização Brasileira (Jan. 1995)

143

Fonte: Judith Grossmann: Matéria-Prima

A matéria-prima da escrita de Meu Amigo seria alimentada também na fase pós- redacional da obra com o artigo A morte num quarto de hotel, de Eneida Maria de Souza, publicado em junho de 1996 no jornal A Tarde. É o processo de leitura da própria obra e de temas da literatura que motivam a ampliação do arquivo literário posteriormente à publicação do romance, sobretudo no que diz respeito à singularização que os artistas realizam dos espaços por eles habitados. A anotação autógrafa no recorte de jornal comparado hotel L’Hotel, em Paris, com a morte do escritor Oscar Wilde, ícone da transgressão às convenções sociais do puritanismo inglês, com consagração do shopping e do Hotel Victória Marina, onde se encerra Meu amigo, através do ofício da escritora nestes locais: “O que exatamente se aplica a Meu Amigo Marcel Proust Romance de Judith Grossmann (veja grifo)” (JUDITH GROSSMANN: Matéria-Prima, 1996).

144

Figura 4 – A morte num quarto de hotel (Jornal A Tarde, 8 de jun. 1996)

Fonte: Judith Grossmann: Matéria-Prima 145

É, portanto, o amor, em suas múltiplas expressões, que alimenta a potência arquivística da escrita de Judith Grossmann. O amor devotado à arte e à literatura dos predecessores, a Victor, o ser amado, e à sua criação literária impõe o desejo de salvaguardá- los, legando-os aos leitores da posteridade para os quais a palavra poética, desejo e fruto destes modos de amar, será ofertada:

Situação especial para escrever, para criar? É qualquer uma. Penso no meu oásis, em minha miragem, de escrever no Shopping, no meu lugar do qual hoje estou pecaminosamente afastada. Mas eu preciso pecar, do contrário me faltará matéria-prima. Eu já respiro para isso, para produzir esta matéria viva, e passá-la a você, leitor, para que possa bebê-la, como um refrescante copo d’água, quando tiver sede, ou repousar nela, como numa cadeira de balanço, quando estiver cansado. (GROSSMANN, 1997, p. 52)

Ler a escrita, portanto, pressupõe ler as inscrições sígnicas da escritora, as rasuras, as hesitações, os processos de recordação e recalmento em sua materialidade textual, verificando-se como a rede discursiva formada por documentos paratextuais potencializa a leitura dos textos literários grossmannianos. A interpretação descentrada deste material mobiliza estratégias interpretativas de tendências críticas dos estudos literários, como as críticas filológica, biográfica, genética ou a psicanálise para a leitura destas zonas de intensidade sígnica, ou ainda, conforme propõem Gilles Deleuze e Félix Guattari (2011), destes “platôs” que se formam pelo entrelaçamento de ficção e realidade, autobiografia e autoficção, arquivo e invenção. Nessas zonas discursivas, por um gesto de amor à palavra e à literatura, Judith Grossmann se inscreve e cria representações diversificadas de si mesmo. A interpretação freudiana do aparelho psíquico através da metáfora do bloco mágico, superfície onde seriam arquivados os traços mnêmonicos, quando relida por Jacques Derrida, nos dá a dimensão das múltiplas forças que conformam a morte do escritor e o nascimento do sujeito da escritura, submetido à uma ética, uma estética, a um código linguístico e às imponderáveis pulsões da psique: “O ‘sujeito’ da escritura não existe se entendemos por isso alguma solidão soberana do escritor. O sujeito da escritura é um sistema de relações entre as camadas: o bloco mágico, do psíquico, da sociedade, do mundo.” (DERRIDA, 1995, p. 222). Philippe Willemart, por sua vez, ao comparar a concepção de sujeito da representação para Freud e Proust, diferencia o discurso do protagonista de O tempo redescoberto pela sua interseção de temporalidades, pela impoderável ação do tempo passado, do enunciado, sob o tempo presente da enunciação:

146

Enquanto o analisando tenta reconstituir uma história lógica de seu passado a partir do ‘eu’ imaginário de hoje, Proust vê um ‘eu’ fragmentado como um mosaico, constituído não somente de restos das pessoas amadas ou odiadas, mas de objetos que receberam o amor ou o desejo desses ‘eu’ do passado. (WILLEMART, 2005, p. 119)

É com este entrelaçamento do tempo passado e do tempo presente que se firma o legado proustiano da narrativa de Fulana Fulana, para quem o ato de escrever encenaria um retorno à cena originária do traço mnêmonico. Recordando-se de um dos encontros com Victor, a protagonista assim o escreve:

Este é um dos nossos encontros dos quais, pelo menos por enquanto, consigo me lembrar, a menos que outros me ocorram durante esta narrativa, que irá rápida e nervosa, pela simples razão de que ao narrar tais acontecimentos novamente o experimento, levam-me ao mesmo céu de sensações que lhes está na origem. Em dobro, com toda a certeza, inesgotáveis. (GROSSMANN, 1997, p. 16)

Sob pedras lavradas, o amor aos predecessores, ao ser amado e à sua própria obra é grafado em sua criação literária, nascida de uma postura erótica em relação à linguagem e aos múltiplos textos da cultura que inseminam a sua escrita, como Marcel Proust, Stendhal, Balzac, Flaubert, Machado de Assis, Clarice Lispector, Maria Callas, Andy Warhol, Marcel Duchamp, o filme Lassie, Daniel Mercury49. Investe-se de libido objetal o corpo do texto nascente, que se torna não apenas um livro sobre o amor, mas um livro-amor, espécie de síntese ideogâmica entre o referente e a estrutura do signo burilado na “oficina amorosa” (GROSSMANN, 1991; 2014), como nos indica a narradora:

Para isso é preciso que o trabalho seja não apenas necessidade, mas também prazer, que Eros esteja presente no próprio trabalho, unindo amor e trabalho, como no meu caso, trabalhar é pensar amor, dizer amor, para você, amado interlocutor [...]. O amor é a minha matéria-prima, por sua vez realimentado pelo meu trabalho, o que equivale a dizer que o trabalho é a matéria-prima do amor.” (GROSSMANN, 1997, p. 70-71).

Diante da rede textual fiada por Judith Grossmann entre o romance e a sua Matéria- Prima, não é preciso apenas amar para escrever, ou escrever para amar, mas amar para escrever e arquivar, e escrever e arquivar para se completar o gesto de amor a si mesmo, ao seu sistema de referências culturais e ao seu processo criativo. A intenção estética e autobiográfica da constituição de seus arquivos pessoais na UFBA e no Arquivo-Museu de

49Merece destaque o levantamento realizado por Viviane Freitas (2006), em sua dissertação de mestrado, do “jogo citacional” (p. 158) composto pelas referências à ícones da arte, literatura, filosofia, música, artes plásticas, filmes, marcas e a apropriação de trechos da tradição literária. 147

Literatura Brasileira da Fundação Casa de Rui Barbosa, no espaço de trânsito entre a Bahia e o Rio de Janeiro, é seguida pela generosa descrição autógrafa dos documentos arquivados. Nesse sentido, a ficcionalização destes arquivos nos textos grossmannianos contempla a intenção da escritora de preservar a sua obra da ação do tempo e do esquecimento. As estratégias de consignação e repetição do arquivo, analisadas por Jacques Derrida (2001) como os artifícios para o seu exercício de poder, são apropriadas pelo texto literária para a sua própria desconstrução. Coloca-se em evidência o trabalho criativo com a linguagem e com os temas reelaborados no texto ficcional, amorosamente alimentado por uma ética, por uma estética, por um arquivo e por uma biografia.

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151

ABORDAGEM PROCESSUAL NA PRODUÇÃO JORNALÍSTICA

Janaína Sarah Pedrotti 50

As reflexões em torno do jornalismo desenvolvidas neste artigo estão alicerçadas em uma abordagem que focaliza o fazer neste campo do conhecimento. Trazemos uma discussão sobre os meandros de produção da imprensa brasileira, no sentido de desvelar a complexidade dos sentidos múltiplos produzidos, que pelo processamento da semiose estão em permanente devir. Partindo do tema do XII Congresso da Associação dos Pesquisadores de Crítica Genética, 'Estudos de Processos do Século XXI: Multilinguismo, Multimídia e Multi-verso', este artigo apresenta uma forma de abordagem teórica sobre a dinâmica da imprensa, cada vez mais complexa em meio à conectividade local. A discussão é parte da investigação de doutorado da autora no Programa de Comunicação e Semiótica da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, cuja pesquisa analisa a cobertura da mídia em meio ambiente, com enfoco nos processos de produção dos jornais Folha de São Paulo, Estado de São Paulo, Folha do Estado e Araguaia MT. Porém, neste artigo, apresentamos uma reflexão sobre jornalismo em processo e a perspectiva teórica adotada para pensar tais questões. Os estudos em jornalismo têm uma trajetória ampla de correntes científicas. Algumas centradas nos efeitos em longo prazo, como a hipótese do agenda-setting (SHAW, 2000). Outras direcionadas à emissão, a exemplo da teoria do newsmaking (LEWIN, 1947, 145. Há ainda outras de influência filosófica e sociológica. Embora, essas interpretações sejam caminhos para pensar a comunicação, optamos por uma perspectiva que a estude por uma abordagem complexa, auscultando não só a dinâmica interna de produção nos veículos de comunicação de massa, mas também as diferentes vozes e sentidos produzidos além dessas estruturas. Ou seja, as que advêm da rede constituída no processo jornalístico. Outra dimensão a ser considerada é que cada produção jornalística tem especificidades próprias, não apenas em termos técnicos da plataforma de mídia a que é veiculada ou de

50 Doutoranda no Programa de Pós-graduação em Comunicação e Semiótica da PUC-SP e professora de Jornalismo na Universidade Federal de Mato Grosso (UFMT).

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conteúdo e significação, mas também impulsionadas pelos envolvidos no processo jornalístico, que denominamos como interlocutores. A ideia de quem é interlocutor (POSSARI, 2012) na contemporaneidade refere-se às dinâmicas comunicacionais que ao potencializaram a interação (produção de sentidos conjunta) e interatividade (interferência e modificação), possibilitam uma dinâmica que subverte o clássico tripé; emissão-mensagem-recepção. Ao entender o jornalismo como processo em construção, a perspectiva adotada está no contexto da crítica de processo (SALLES, 2008), por instrumentalizar o olhar sobre os processos de criação. A opção pela abordagem deve-se também pela necessidade de estudos sobre a imprensa que reflitam teoricamente seu próprio processo. A crítica de processo é uma expansão das pesquisas na crítica genética, em que se passa da centralidade de estudar a criação em objetos fixos (obras acabadas), para debruçar esforços sobre obras em contínua modificação. A crítica genética tem sua raiz formativa instituída em território francês, no Centro Nacional de Pesquisa Científicas ITEM/CNRS51 (Paris). Ao resgatar a trajetória de investigações neste campo, Salles (2011) lembra que a metodologia foi assim nomeada tendo como objeto de pesquisa a criação de textos literários. Embora, em diálogo com outras áreas, originou pesquisas sobre o processo de produção jornalística, produção artística, publicitária, entre outros campos. Desta forma, estávamos em meio a uma perspectiva que, ao ser colocada em contato com outras áreas, ganhava uma evidente expansão não apenas no objeto estudado, mas em sua abordagem. Uma vez que se muda o foco; de objetos estáticos, passamos à mobilidade, já que estamos tratando de elaborações dinâmicas, em que seus objetos são ressignificados, em uma mobilidade contínua, a obra em construção. A referência ao termo 'obra em construção' carrega as marcas dos princípios direcionadores ou projeto poético que a direciona. Segundo Salles (2006), o projeto de cada artista insere-se na frisa do tempo da arte, da ciência e da sociedade, em geral. A expansão conceitual do estudo da obra em processo é avaliada por Salles e Cardoso (2007, p. 47) que identificam na crítica de processo a possibilidade de uma discussão de obras processuais, uma vez que "[...] o crítico necessita de ferramentas que falem de movimento. Muitas dessas obras se dão no estabelecimento de relações, ou seja, na rede em permanente construção que fala de um processo".

51Institut des Textes et Manuscrits Modernes/Centre National de Recherche Scientifique. 153

Perspectiva desafiadora quando se pretende discutir o jornalismo, notadamente o produzido nas últimas décadas, que parece necessitar de um olhar que seja capaz de abarcar o movimento, uma vez que leituras de objetos estáticos não se mostram satisfatórias ou eficientes.

SEMIÓTICA

A criação compreendida como rede em construção vigora na dinâmica da produção coletiva, embora seja ativada também em escala individual. Dessa forma, refletimos sobre um movimento no campo da incerteza com variáves imprevistas e que ao ser investigado é desmistificado, pensado e colocado para reflexão. Esse processo de criação pode ser descrito, em uma perspectiva semiótica, como movimento dinâmico com tendências, sustentado pela lógica da incerteza, englobando a intervenção do acaso e abrindo espaço para a introdução de ideias novas. Ao dialogar sobre criação como processo sígnico, ou semiose, necessariamente o compreendemos como uma rede em construção. Charles Sanders Peirce (PEIRCE, 1995) denominou a ação do signo como semiose, e refere-se a um processo de ação de um signo onde toda nossa vida e pensamento são signos. Ou mesmo qualquer outra coisa que qualquer coisa possa ser também se constitui em signo. "Para aquém do limiar logocêntrico e mesmo do limiar antropocêntrico, a generalidade do conceito de semiose vai até a afirmação de que o universo inteiro está permeado de signos, se é que não seja composto exclusivamente de signos” (SANTAELLA e NOTH, 2004, p. 159). O jornalismo, por estar imerso no campo da linguagem, revela sua vocação para gerar signos. Ele mesmo é um signo que produz outros signos, entre eles, o da notícia. (HENN, 1996). A jornalista Aline Grego (2000, p. 40) assinala para essa vocação do jornalismo em gerar signos. “O jornalismo, imerso no campo da linguagem, revela, quotidianamente, sua vocação para gerar signos”. Falamos de signos que incentivam o processo de criação que, por sua vez, desenvolve- se também pelas interconexões da rede em formação, que “[...] pode ser descrita como um processo contínuo de interconexões instáveis, gerando nós de interação, cuja variabilidade obedece a alguns princípios direcionadores” (SALLES, 2015).

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Conceito de rede no pensamento complexo

Para refletir sobre o conceito de rede, Pierre Musso (2013, p. 36) retoma o seu histórico e aponta para o seu excesso de usos metafóricos, que embora possa parecer vazio em compreensão, de fato, é a prova de seu poder e de sua complexidade. A explosão conceitual do termo rede, para o autor, parece ser um novo paradigma ligado a um pensamento sobre as relações. Assumimos o conceito de rede trazido por Salles (2006, p. 27), a partir de Musso, em que se supera a dicotomia ao abranger a simultaneidade de ações, a ausência de hierarquia e o intenso estabelecimento de nexos. Rede que cria, recria em infindáveis elaborações e retroalimentação. A ideia do pensar no campo das relações insere-se no pensamento complexo. Edgar Morin aponta para a eminência e a obrigatoriedade do pensamento complexo para se refletir a pós-modernidade. Ao discorrer sobre o complexus, Morin dá as linhas gerais para uma estrutura do pensamento que reflita o todo indivisível. O todo, nessa perspectiva, é mais que a soma das partes. “Num segundo momento, a complexidade é efetivamente o tecido de acontecimentos, ações, interações, retroações, determinações, acasos, que constituem nosso mundo fenomênico” (MORIN, 2006, p. 13). A complexidade no jornalismo pode ser percebida a partir de diferentes angulações. Uma delas está atrelada à dinamicidade de produção e interpretação gerada tanto por parte dos leitores, como dos produtores da informação e dos que retroalimentam o sistema comunicativo. Características que são maximizadas quando desempenhadas em meio à tecnologia e conectividade global. Podemos refletir, por essa perspectiva, a partir da constituição da rede de ações, significação e sentidos, acionada em meio ao processo jornalístico.

JORNALISMO NA REDE COMPLEXA

O jornalismo em processo insere-se na trama acionada pela dinâmica de produção da área e nas significações e sentidos que emergem disso, em um movimento incessante. Denominamos esta questão como 'rede complexa do processo jornalístico'. A rede acionada nos meandros da produção jornalística é apontada pelos profissionais que refletem sobre o fazer da atividade. Marcelo Godoy, do ‘O Estado de São Paulo’, lembra “O trabalho que você vê no jornal no dia seguinte é feito por dezenas de pessoas e, não por 155

mini gênios que resolvem tudo sozinho” (GODOY, 2011). Um fazer coletivo, que mesmo em escala individual, está atrelado ao contexto dessas ramificações. Na produção da pauta, que ocorre antes dos profissionais entrarem em campo para apuração de seu material, é possível identificar essa rede em construção e as características próprias desse contexto. “A produção da pauta é uma produção coletiva e é uma dinâmica completamente diferente da época do pauteiro”, observa o diretor da Associação de Jornalismo de Investigativo, Marcelo Bereba (2011), ao analisar o atual contexto de produção do jornalismo em escala industrial. Mesmo que a pauta seja elaborada por um profissional, há diferentes camadas decisórias que orbitam neste sistema. Ana Estela Pinto (2009, p. 59), do jornal Folha de São Paulo, aponta para pelo menos quatro componentes: “descobrir o que é notícia, hierarquizar informação, prever etapas de apuração, antecipar a apuração do material”. A jornalista Sandra Passarinho (1984, p. 85) delineia bem essa característica do coletivo ao advertir que não existe o ‘eu’ no telejornalismo, “[...] o repórter sozinho não faz nada, a reportagem para dar certo precisa de equipe, ela tem que ser a mais entrosada possível". Embora a referência de Passarinho seja a uma mídia específica, essa relação pode ser transposta para o impresso, para a internet, ou mesmo, em plataformas híbridas, como pela web-rádio. Já que o jornalismo, em estruturação industrial, tem na atuação coletiva de produção, uma de suas características organizativas. Isso posto temos, então, uma rede singular constituída a cada produção. Na prática, isso é transmutado em uma mesma matéria; onde há fontes ouvidas aleatoriamente, outras definidas pela identificação do jornalista, ou mesmo pela disponibilidade de tempo. A vivência singular de cada um dos envolvidos no processo, as ramificações e interconexões da rede, também integram o processo. Esse solo teórico de diálogo e aprofundamento sobre o fazer da imprensa, pela análise da rede em construção, deu sustentação para a identificação dos princípios direcionadores do processo jornalístico. Desenvolvemos essa abordagem pela articulação conceitual sobre a produção não-linear, a criação coletiva, a interação na rede e a mediação na cobertura jornalística.

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UM OLHAR ENTRE OS NÓS DA REDE NO PROCESSO JORNALÍSTICO

Produção não-linear

Ainda que a dinâmica de cobertura da imprensa seja fixada por etapas sequências de produção (pauta, apuração, edição e revisão) e que até podem remeter a uma cadência linear, a ação dos profissionais da área dá-se em conexões, fluxos e contra fluxos descontínuos. Desse modo, do conceito linear de início, meio e fim de um trabalho, alçamos à dinâmica das inter-relações. A etapa final de uma edição pode, por exemplo, alterar o início de uma reportagem, em uma dinâmica fragmentada. Podemos ponderar sobre a tendência não-linear por uma análise em torno da notícia, não em sua acepção conceitual, mas centrada em sua dinâmica de produção. Erbolato (2008, p.56) aponta a notícia como elemento mais importante da prática jornalista. Da identificação do acontecimento - entendido como fenômeno de percepção do sistema - para a geração do sistema e consequente produção (ALSINA, 2009) perpassam camadas acionadas em uma ordem multidirecional a que propomos refletir. Mouillaud (2012) desenvolve esse pensamento sobre a não linearidade do fazer jornalístico pela analogia a um jogo de futebol. Nenhum espectador viu “uma” partida considerando que ninguém seria de fato capaz de captar a ‘totalidade’ de um jogo da cadeira de espectador no estádio, do sofá do telespectador, do posto do comentarista ou mesmo do banco de reserva. Uma vez que para a disputa ser captada, seria necessário fisgar, de uma só vez, “uma grande quantidade de relações fugindo de uma multiplicidade de focos” (MOUILLAUD, 2012, p.62). Assim, o que se tem, são perspectivas fragmentadas, alçadas ao patamar de notícia. Ao ter seus fragmentos reunidos “em uma dada ordem, ganha sentido. Que seria outro, se a ordenação dos fragmentos fosse diferente” (PEREIRA JÚNIOR, 2010, p. 25). A disposição desses fragmentos, ou seja, a seleção dos dados a serem processados, não é apreendida por sua sequência linear, mas por um percurso sem hierarquias, que varia de acordo com as interconexões intuídas no processo de elaboração. Pereira Júnior (2010) observa que o acontecimento jornalístico por excelência é uma versão do que se tornou padrão. Na medida em que aquilo que se considera como o real, começa a virar “fato” ao ser “enquadrado” por certas convenções e procedimentos. O que nos interessa é refletir sobre as implicações resultantes das diferentes dimensões do acontecimento 157

jornalístico. Para Costa Pereira, o mais significativo incide na imagem de que o ato de noticiar é uma forma de propor um mundo entre aspas:

Entre o acontecimento e o público muitas camadas se intrometem. Os sentidos, o repertório do sujeito e sua vivência atuam no ato de captação das informações, que não é feito no vazio. Há também um saber prático, acumulado pela comunidade profissional. (PEREIRA JÚNIOR, 2010, p. 27).

Ele aponta para os efeitos da fragmentação informativa, característica também identificada por Alsina (2009). Já que a totalidade do fenômeno só é possível através de cenas parciais ou pelo sistemático isolamento de outros enquadramentos “[...] a fragmentação informativa promove a descontinuidade da percepção e, com ela, a necessidade de novas conexões entre os eventos” (PEREIRA JÚNIOR, 2006, p. 28). Salles (2006) identifica essa característica não-linear como índice de um processo constitutivo da criação, ao dialogar sobre diferentes meios, pela perspectiva da ambiência das redes como criação. “Ao mesmo tempo, as permanentes referências a temas ou exemplos anteriores ou futuros evidenciam a não linearidade dos eventos constitutivos da criação. São índices da trama da criação”, (SALLES, 2006, p.171). Ao adentrar sobre a dinâmica de cobertura da imprensa, temos evidenciada a não linearidade como um princípio direcionador do processo jornalístico. Uma vez que esta potencialidade vigora por todo o percurso da rede formada em sua produção.

Criação conexa ao coletivo

Outro direcionador que influi na dinâmica de produção do jornalismo é sua articulação pelo fazer coletivo e processual, em consonância à discussão já exposta neste estudo. Uma vez que a produção, mesmo quando realizada em escala individual, acontece como uma trama tecida e estruturada nas relações, ela baseia-se no conceito de criação colaborativa. A referência à complexidade deve-se pela interação do coletivo, entremeado à escala individual da produção. A Jornalista Aline Grego (2000, p. 41) aponta para o emaranhado de sujeitos envolvidos e identifica o que denomina como singularidade do fazer jornalístico de ser, como um “[...] um processo coletivo, o que o torna mais complexo”. Dessa forma, a produção da notícia passa a vigorar neste contexto, em que mais interlocutores atuam na produção ou retroalimentação desse sistema. Trata-se de um movimento que estabelece interconexões e coletividade à rede e isto acontece de forma 158

multidirecional. Sobre essa tendência, Paulo Mussoi (2010, p. 56), diretor de interatividade e blogs de O Globo de 2002 a 2010, afirma que “[...] se torna quase imprescindível ao jornalista do século XXI aceitar que ele não é mais o único responsável por decidir o que é notícia. Esse poder está, cada vez mais, inexoravelmente, nas mãos dos leitores também”. Um percurso onde a ação está sujeita ao outrem, às interações e às concepções de diferentes sujeitos. Estes, por sua vez, recebem influência externa; seja da linha editorial da empresa, do contexto sócio-político, dos leitores, dentre outros. Neste contexto, a referência à rede no universo das elaborações jornalísticas é desenvolvida, neste estudo, em diálogos conceituais da crítica de processo no contexto das criações coletivas que se desenvolvem em meio ao processo jornalístico.

Interação na rede

A cobertura jornalística, quando pensada pela perspectiva processual, evidencia a dinâmica de interação em seu processo de produção. Da reunião de pauta matinal, às entrevistas em campo, ou na edição da reportagem, percursos de interação, em meio ao processo laboral contínuo dos jornalistas. Tendência pulsante, não apenas no contato entre a equipe profissional da área, mas onipresente no processo jornalístico, seja na influência com as fontes da notícia, na relação junto ao contexto onde os fatos retratados ocorrem, na vivência individual do profissional. Não é possível limitar os momentos de interação neste percurso. Mesmo que a tendência à interação adquira maior ênfase com a tecnologia, é um elemento constitutivo do jornalismo. Podemos esboçar essa relação inseparável da comunicação no contexto social e, consequente, mecanismo de interação, na discussão elaborada por Bordenave (1982, p. 17) onde defende que “[...] a comunicação não existe por si mesma, como algo separado da vida em sociedade. Sociedade e comunicação é uma coisa só. Não pode existir sociedade sem comunicação”. O teórico da comunicação evidencia a inerente relação comunicação/sociedade, que assume na possibilidade de interação sua prática constitutiva. Estamos falando de um percurso singular de produção cuja variabilidade assume nesses nós de interação um de seus princípios direcionadores em meio ao processo contínuo da imprensa. Mesmo no conceito de mensagem jornalística como informação está implícito a ideia de interação, em uma espécie de interação processada de forma global, para assim atender a necessidade da sociedade urbana que já não podia sozinha interagir com a comunidade de 159

forma a abranger sua totalidade. “Para o homem que se afasta do núcleo primitivo de uma sociedade tradicional e transita no espaço extenso e complexo do núcleo urbano entrelaçado com muitos outros núcleos urbanos, os problemas de informação se avolumam”, (MEDINA, 2008, p. 15). Ainda que nossa atenção não esteja na discussão conceitual da informação jornalística, trazemos essa reflexão com intuito de apontar a ideia implícita da interação como produto da comunicação coletiva. Mas muito mais nos interessa pensar a interação no campo do fazer jornalístico e refletir sobre os direcionamentos que disso propulsam. Pois são caminhos de influências mútuas, mesmo inconscientes, mas que estabelecem conexões e retroalimentam o percurso de produção, gerando a transição de uma rede simples para uma mais complexa. A tendência de interação, embora já inerente ao trabalho da imprensa, é potencializada com a tecnologia. Na produção noticiosa, por exemplo, há expansão dos interlocutores, na medida em que há um leitor que produz notícia. Ele tem a possibilidade de “produzir, junto com a redação formal do veículo que ele acompanha, um conteúdo mais adequado às suas necessidades” (MUSSOI, 2010, p. 57). Outra dimensão na discussão acerca da interação como princípio direcionar, e que tem significância no jornalismo, é a imprevisibilidade. Não sendo recomendável, determinar os desdobramentos sobre determinado processo. Uma vez que os caminhos podem ser reprogramados, a partir da interação dessa rede em constituição. Quando adotamos o paradigma das relações, colocamos as interações do processo em centralidade, em outras palavras, a interconectividade da rede. Para Salles (2006, p. 24), em diálogo com Gilles Deleuze e Félix Guattari, os elementos de “interação são os picos ou nós da rede, ligado entre si: um conjunto instável e definido em um espaço de três dimensões”. A interação é concebida nos estudos da crítica de processo como uma propriedade da rede indispensável para “falarmos dos modos de desenvolvimento de um pensamento em criação” (SALLES, 2006, p. 26). Trazemos essas reflexões sobre a interação no contexto do jornalismo, pelo instrumental da crítica de processo, como direcionadora no percurso de investigação do pensamento em criação.

Mediação

O jornalismo como processo atua no campo das significações. Sentidos produzidos em meio à mediação do comunicador em seu contexto de atuação, que vão compondo-se a cada 160

apuração. Percurso em que a atuação do profissional produz significado nesta tessitura coletiva. A imersão na dinâmica de produção da área evidência o mecanismo da mediação como atrator do processo, no sentido de vigorar como uma espécie de campo gravitacional da atuação jornalística. Tendência identificada como um modo de ação que persiste por toda a dinâmica de trabalho da imprensa e cuja variabilidade atua como direcionadora, no sentido de reger um modo de ação na área. Künsch (2000) aponta para a presença do jornalista–mediador ao refletir sobre a entrevista jornalística, como um diálogo interativo entre os sujeitos. Tendência que opera não apenas em uma produção da área, mas atua em todo o processo de criação do jornalista. O alcance das significações geradas a cada reportagem é destacada por Eliane Brum (2013), onde não apenas evidência essa dimensão, como algo intrínseco à rede de sujeitos envoltos na tessitura coletiva de uma reportagem, como também a baliza como responsável por sua transformação como sujeito. “Se um dia eu voltar a mesma de uma viagem para o Amapá ou para a periferia de São Paulo, abandono a profissão”, conta Brum (2013, p. 9) ao lembrar que renasce e se recria a cada reportagem. Ao apontar a presença do sujeito jornalista na reportagem, Brum supera a dicotômica relação escritor/escrituras, e reconhece a atuação de diferentes sujeitos e interconexões, onde ela mesma é parte envolta e partícipe da metamorfose processual. Isso em um contexto de apuração em que a referência à mediação não é apenas concreta, em termos de contato com pessoas recorridas para obtenção de dados, mas imaterial no tocante às relações culturais, econômicas, estruturais, entre outras. Significações e descobertas que nem sempre estão estampadas em falas aspadas ou na composição orquestrada de uma reportagem:

É preciso calar para ser capaz de escutar o silêncio. Olhar significa sentir o cheiro, tocar as diferentes texturas perceber os gestos, as hesitações, os detalhes, apreender as outras expressões do que somos. Metade (talvez menos) de uma reportagem é o dito, a outra metade o percebido. Olhar é um ato de silêncio. (BRUM, 2013, p 191).

Aqui podemos trazer a discussão de que tratamos de um conceito de criação no contexto da mediação em que temos as marcas da subjetividade, no permanente embate com a dita objetividade jornalística. Um preceito de influência positivista-funcionalista, a objetividade que embora inatingível, ainda vigora como um dilema operante na prática comunicacional e nas práticas científicas. 161

Há diferentes dimensões que atuam na ‘rede do processo jornalístico’. Embora as produções tenham singularidade, há um campo gravitacional comum, que denominamos como princípios direcionadores do processo. Dessa forma, olhar a cobertura jornalística também por seu processo possibilita pensá-la por sua complexidade. Percurso investigativo que vai além do produto final, resultante na matéria jornalística. Isso porque até mesmo a linguagem jornalística é constituída de forma que essas significações não sejam perceptíveis. Para refletir a complexidade em que os produtos midiáticos são elaborados, faz-se obrigatório passar pela singularidade da atividade, que também é tecida como uma rede de interconexões, firmada pelo ato coletivo o qual é transformado numa estrutura única, mas não menos complexa, formada por hesitações, acréscimos, apagamentos e até mesmo ausências que só serão descobertas por meio do estudo do processo genético.

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O MOVIMENTO CRIATIVO EM QUEM CONTA UM CONTO, AUMENTA UM PONTO DE LISETE NAPOLEÃO MEDEIROS

Jaqueline Lima da Silva52 Márcia Edlene Mauriz Lima53

INTRODUÇÃO

O presente artigo tem como fundamento teórico-metodológico a Crítica Genética que, ao investigar o processo criativo de uma obra, revela as ações do artista durante esse complexo processo de planos, pesquisas e rascunhos. Com a análise de diversos documentos que compõem a gênese criativa, consegue-se visualizar os caminhos percorridos durante a criação, os critérios que regeram o seu desenvolvimento. Ao relacionar cada rasura, nota e rascunho, é possível buscar reconstruir, seguindo as pistas deixadas pela artista, o processo do nascimento do texto literário estudado. Tendo como objetivo descrever o processo de criação de Quem conta um conto, aumenta um ponto, levaram-se em consideração documentos de processo e o texto publicado. Pretende-se analisar alguns dos documentos do processo criativo, visando detectar rasuras de supressão, adição, deslocamento e substituição, comparar os documentos de processo e descrever a transformação progressiva ocorrida durante a escrita. Utilizou-se pesquisa bibliográfica, baseada em livros pertencentes ao campo de pesquisa da Crítica Genética As informações partirão da organização e da análise de um caderno e dois fólios (denominados fólios 01 e 02) autógrafos da autora, somados à primeira edição de Quem conta um conto, aumenta um ponto. Os dados serão descritivos, retratando os elementos encontrados através de uma análise, que acompanha o registro do testemunho autoral. Assim, será feita descrição de uma parte dos documentos de processo, a observação do processo de criação da obra e das mudanças ocorridas entre esses documentos de processo e a obra finalizada, com intenção de reconstituir e compreender o processo de escritura. A pesquisa justifica-se pela importância de conhecer e discutir essa nova ciência, que tem como meta desvendar e compreender o processo criativo de uma obra, buscando descrever o processo de criação da gênese à obra tida como final, através das marcas deixadas

52Graduada em Letras pela Universidade Estadual do Piauí. Especialista em Língua e Literatura pelo Instituto Estadual do Maranhão. 53 Doutora em Letras pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul. Prof. Adjunto 4 da Universidade Estadual do Piauí. 164

pelo escritor durante esse processo, a partir de documentos autógrafos, os quais se apresentam como uma rica fonte de estudo, que os livros acabados não conseguem oferecer aos pesquisadores.

A CRÍTICA GENÉTICA E OS BASTIDORES DO PROCESSO CRIATIVO

Os estudos genéticos investigam a obra de arte a partir de sua gênese. O texto definitivo de uma obra é resultado de um trabalho que se caracteriza por uma transformação progressiva, correções, pesquisas e planos. Os critérios utilizados pelo autor durante a escritura podem ser observados na substituição de uma palavra, no corte de um trecho, na adição ou eliminação de um elemento, e até mesmo nas leituras, anotações e planos feitos antes da escritura. Esse estudo proporcionará um saber diferente e inédito, que auxilia ou dá uma nova dimensão para a compreensão da obra, multiplicando as suas possibilidades de leitura. De acordo com Salles (1992, p.25):

Este tipo de estudo não nos proporciona somente uma informação complementar àquela do texto: fornece, na verdade, um saber diferente. A Crítica Genética nos faz penetrar na terceira dimensão da arte, aquela do vir- a-ser – a gênese do texto, a linguagem in statu nascendi.

O pesquisador desvenda as pistas do processo da mente do artista, constrói um dossiê, que permite estabelecer as inter-relações entre os diferentes documentos de processo da obra estudada. Para tanto, é necessário que se relacione cada nota, cada rascunho e rasura, elaborando um novo texto, chamado prototexto. Para Salles (1992, p. 53), “[...] o prototexto não é o conjunto de manuscritos, mas esse novo texto formado pelo conjunto de documentos que coloca em evidência os sistemas lógicos que o organizam”. O prototexto é um material rico, que demonstra um movimento que raramente se encontra em um livro, formando um sistema que se organiza em direção à obra publicada ou em estado de publicação. Cecília Salles (1992, p. 48), teoriza: “O objeto da Crítica genética caracteriza-se pela dualidade de sua natureza: é um dado material enquanto documento observado e é uma construção intelectual enquanto texto que foi constituído pelo próprio crítico”. Ou seja, o dossiê se refere aos documentos em si, enquanto o prototexto está ligado às escolhas do pesquisador, uma interpretação, já que os documentos escolhidos por ele não constituem o total de documentos anteriores a uma obra, seria a elaboração crítica dos diferentes documentos que compõem os diversos momentos do processo criativo. 165

A Crítica Genética estuda o diálogo entre o texto que se escreve no papel e aquele que o escritor escreve, ao mesmo tempo, na sua mente, cujo registro concreto pode ser percebido através das rasuras. Portanto, a partir dos estudos genéticos, torna-se possível aproximações com as operações mentais do artista ao construir o seu texto, buscando-se entender a estética de um determinado processo.

QUEM CONTA UM CONTO, AUMENTA UM PONTO, DE LISETE NAPOLEÃO MEDEIROS

O presente artigo tem como objetivo analisar os manuscritos de Lisete Napoleão Medeiros, observando suas anotações, rascunhos e rasuras e refazer o caminho que ela percorreu, além de trazer os elementos que influenciaram as escolhas tomadas durante esse processo. Para melhor compreensão da análise genética do corpus e por não existir ainda um padrão acerca dos códigos utilizados, nessa pesquisa foram adotados os seguintes sinais: {} para acréscimo, <> para rasura de substituição e [] para rasura de supressão. A análise dos documentos de processo da obra estudada pode revelar o percurso evolutivo da mente criadora do artista desde as primeiras ideias, até a arte considerada como final.

O movimento genético observado nos documentos de processo de Quem conta um conto, aumenta um ponto

Através do dossiê, é possível observar nas pistas da criação deixadas pelo movimento genético, os pensamentos da autora nas notas e rasuras. O dossiê genético de Quem conta um conto, aumenta um ponto, é composto pelo seguinte prototexto: o caderno autógrafo da autora e dois fólios, estes numerados de fólio 01 e fólio 02. No caderno autógrafo da escritora, observa-se o movimento da gênese criativa desde o planejamento dos títulos, a disposição que deveriam ter as histórias no livro, até a fase redacional de diversos textos que comporiam a obra, carregados de elementos genéticos, visualizados nas rasuras de adição, supressão e substituição. Com esse estudo é possível começar a entender como se deu a arquitetura criativa da obra estudada. Salles (2011, p. 26) diz: “[...] Há, por parte do artista, uma necessidade de reter alguns elementos que podem ser possíveis concretizações da obra ou auxiliares dessa concretização”. Encontra-se na página 14 (quatorze) do caderno autógrafo da autora, logo abaixo da data 1994, uma lista com supostos nomes dos capítulos na ordem que deveriam compor o 166

sumário da obra. Seguidamente ao provável sumário da obra, encontra-se uma nota acompanhada de um asterisco que diz: “Recontar e/ou reinventar cerca de 40 estorinhas para crianças ou um público infanto juvenil” (sic). Durante o estudo genético observou-se que foram feitos alguns acréscimos e deslocamentos da escritura manuscrita em relação à obra acabada. Comungando do pensamento de Salles (2011, p. 26), podemos dizer que “Os documentos de processo são, portanto, registros materiais do processo criador. São retratos temporais de uma construção que age como índices do percurso criativo.”

Figura 1 – Plano do suposto sumário do livro

Fonte: Acervo da autora

Ao se recorrer à obra finalizada, observa-se que a autora decidiu acrescentar outras histórias, e o que se vê no sumário definitivo é a lista antes planejada com o acréscimo dos capítulos: {O Calote da Loira}, {A Negra que Matou os Leões}, {O Encanto da Ilha}, A Baleia {Adormecida}, {Santo Antonio Aparecido}, {O Morro da Cruz}, {Pé-de- Garrafa},{Pinto-Pelado},{Cabelobo}, {Lobisomem}, {Zumbi-de-Caboclo}, {Miridam}, {Barba-Ruiva}, {Velha do Peito Só}, {Pé-de-Anjo}, {Belzebu}, {Foguinho Misterioso}, {Morou, Tá na Boca}, {O Menino do Boné Vermelho} e o {O Boi de Dona Briolanja}. Chama-se atenção para o capítulo intitulado no manuscrito como A Baleia, ao qual a autora fez o acréscimo do adjetivo {adormecida} ao título. Durante a análise, observaram-se as marcas deixadas no processo criativo; dentre elas, muitos acréscimos. Essas adições revelam o momento da criação em que Lisete Napoleão, 167

diante de uma diversidade de casos populares, decide adicionar mais histórias à obra. Essa escolha traz consequências à disposição dos títulos, a ordem em que são apresentados na obra final. Ao compararmos o texto final com o documento autógrafo (figura 1), nota-se que com os acréscimos acima descritos são encontrados entre uma história e outra, 19 (dezenove) capítulos somados aqueles que compuseram a primeira anotação da autora. No verso da décima quarta folha, contém uma anotação referente ao objetivo do livro e logo abaixo à escolha do título da obra, escrito com caneta preta, onde é possível observar que a autora grifa de caneta vermelha o que o que mais tarde viria a ser título definitivo.

Figura 2 – Anotação encontrada do caderno autógrafo da autora, com possíveis títulos para a obra

Fonte: Acervo da autora

No fólio 01 a autora volta a pensar no título que daria à obra. É possível observar anotações escritas com lápis referentes a essa escolha. Além da opção “Quem conta um conto, aumenta um ponto”, já registrada anteriormente no caderno autógrafo, que constitui o prototexto desta pesquisa, agora se lê: “Contando as lorotas que ouvi”. Na segunda opção, mais uma vez, fica claro o estilo que autora pretende dar à obra, uma linguagem simples, bem próxima da realizada entre aqueles que se apropriam e difundem os casos populares do imaginário piauiense. Logo abaixo, um esquema de como ficaria disposto sequencialmente o livro, seguido de uma anotação planejando o sumário que diz: “Sumário: 50 estórias (as 10 de assombração), outra de santo-surreal-animais-índios-...”. Entre as cinquenta histórias pretendidas, apenas trinta e oito foram publicadas na obra, mas é possível observar que a autora optou por começar com histórias de assombração, seguidas de casos populares, que envolvem a fé, em meio a lendas surreais nas quais atuam animais e índios. A análise desse documento, nos leva ao encontro da teoria de Cecília Salles (2011), que chama a atenção para 168

um processo de armazenamento de informações que auxiliam o processo criativo e a concretização da obra, contidos nos manuscritos.

Figura 3 – Fólio 01, com planos para o título e esquema de como cada parte que compõe o livro deveria ficar disposta na obra acabada

Fonte: Acervo da autora

Um pouco mais abaixo, encontra-se uma observação sobre a ilustração do livro, que deveria constar em cada história, o que serviria de atrativo para o público infanto juvenil, foco da publicação. Por fim, a autora registra: “1995/1996-julho/janeiro”, que, de acordo com seu relato oral, naquele momento, referia-se a possíveis datas de publicação da obra. O manuscrito contém vestígios que revelam o caminho que a artista percorreu até conseguir uma obra com determinadas características. Dessa forma, com a análise dos documentos de processo é possível resgatar o processo de composição da obra. Durante a análise do registro autógrafo presente no fólio 02, verifica-se que na frente da página, há a continuação da redação do capítulo Santo Antônio Aparecido, agora por completo. O texto apresenta algumas rasuras, que levam o pesquisador bem próximo da intimidade do processo criativo. No início do texto Santo Antônio Aparecido no fólio 02, o trecho “Na cidade de Campo Maior” é suprimido e substituído por “Nos arredores de Teresina”, mais tarde na obra acabada, a opção antes abandonada é recuperada. Seguindo a leitura do documento, encontram-se algumas rasuras de adição feitas com lápis, no texto antes escrito com caneta 169

preta: “Pescadores que encontraram {a} imagem, levaram-na para a cidade e com o apoio da comunidade, {começaram a construção de} construíram uma igreja para o santo, mas toda manhã, quando chegavam ao local para edificar {a} igrejinha, a imagem não se encontrava mais ali, voltava sempre para o local onde foi achada ou seja, perto do córrego”.

Figura 4 – Manuscrito do capítulo Santo Antonio Aparecido, encontrado no fólio 02 (frente)

Fonte: Acervo da autora

Vários movimentos genéticos são observados durante a análise do manuscrito e do texto acabado, entre as muitas rasuras feitas no manuscrito, algumas permaneceram na obra final, outras foram substituídas ou suprimidas, houve ainda, acréscimos de trechos. No último parágrafo, percebe-se a substituição de por . Verifica-se, na obra acabada, que a maioria das mudanças projetadas na reescritura desse capítulo, presentes no fólio 02, permaneceram. Grésillon (2007, p. 65) destaca que “a escrita é em alguns momentos, gritos de emoção (Bataille) que o geneticista pode nela ler rupturas que intervêm de súbito no desenvolvimento escriptural mais ou menos regular [...]”. A observação do processo criativo que esses documentos guardam, permite através dos vestígios e marcas deixadas pela mão da autora Lisete Napoleão, adentrar no espaço da criação e acompanhar o funcionamento do pensamento criativo, e muitas coisas que foram intuídas e imaginadas durante esse processo para melhorar a escrita. As rasuras transmitem as inquietudes que se fizeram presentes no processo de criação da obra Quem conta um conto, aumenta um ponto. Observando esse movimento através da análise do dossiê genético, é possível remontar o processo de criação, e observar os elementos que influenciaram as 170

escolhas da autora até a obra final. Os documentos de processo permitem ver, segundo Cecília Salles (1992, p. 35) “os diversos componentes da escritura na combinação de suas relações de onde nasce o movimento da gênese”. Em suma, durante a análise do movimento genético de Quem conta um conto, aumenta um ponto, observam-se na escritura de Lisete Napoleão, aspectos típicos da cultura popular do Piauí. Em cada escolha feita pela autora durante o desenvolvimento da obra, fica clara a decisão frequente por expressões presentes na oralidade piauiense, o que torna a linguagem ainda mais acessível ao público indicado, no caso, o infanto-juvenil.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Os objetos de estudo dessa pesquisa foram os documentos de processo da obra Quem conta um conto, aumenta um ponto. Apoiando-se teórica e metodologicamente na Crítica Genética, reconstituiu-se com base nos documentos que compuseram o dossiê genético, o processo criativo da obra. Observou-se, através dos passos deixados nos documentos autógrafos, que caminho Lisete Napoleão percorreu ao escrever Quem conta um conto, aumenta um ponto. A análise dos documentos de processo da obra estudada feita na pesquisa, permite o acompanhamento da inquietude criativa evidenciada nas rasuras, que refletem o funcionamento do pensamento da artista durante o ato criativo, as influências que a teriam levado a determinadas escolhas durante a realização do trabalho desenvolvido ao longo da escritura. Logo é possível reconstituir a gênese da criação de Quem conta um conto, aumenta um ponto através dos vestígios deixados pela mão de Lisete Napoleão, tendo como base o estudo dos seus documentos autógrafos, que permitem alguns resultados. A investigação genética efetuada através da interpretação, descrição e análise dos fólios e do caderno que compuseram o dossiê genético de Quem conta um conto, aumenta um ponto, evidenciaram o movimento genético na escritura, da seguinte forma: as rasuras feitas pela escritora nas anotações autógrafas foram de adição, supressão e substituição. As escolhas tomadas durante a gênese criativa são constatadas nas mudanças que se concretizaram no decorrer da composição da obra. No caderno autógrafo, encontra-se a fase redacional de muitas histórias que compõem o livro, estas contêm mais rasuras de adição e substituição de palavras e/ou trechos, que supressões. Já o fólio 01 possui um processo genético de planejamento e esquemas, com a sua observação é possível acompanhar as ideias referentes à escolha do título do livro, assim 171

como a disposição sequencial das unidades que comporiam a obra, de acordo com os planos da autora. Algumas anotações foram reformuladas no fólio 02 que é composto pela reescritura e continuação da redação de alguns capítulos. Comprova-se que muitos ajustes e mudanças observadas nesse documento, permaneceram na obra final. De acordo com a investigação desenvolvida neste estudo, verificou-se que a maior parte dessas modificações encontradas nas rasuras foram devido às pesquisas da autora que, a cada etapa da escritura buscava uma adequação do texto às características gerais da obra. Em suma, a análise dos manuscritos de Lisete Napoleão revela diálogos entre a autora e o texto, durante a gênese criativa, que modificaram e enriqueceram a obra acabada. Os documentos analisados demonstram a forma como se desenvolveu a arquitetura da criação, as marcas encontradas nos manuscritos, mostram um método de criação artística que busca termos que conservem as características da oralidade piauiense, de modo a tornar as histórias que compuseram a obra mais autêntica e a linguagem cada vez mais coerente ao público infanto juvenil, ao qual a obra foi direcionada. Esse estudo proporciona ao leitor informações que complementam a leitura do texto ao nos oferecer uma nova dimensão para compreensão da obra e um saber diferente do oferecido pela obra tida como final.

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POEMAS DO GRANDE SERTÃO: DISCUTINDO A “ABSOLUTA FIDELIDADE” DE RENATO CASTELO BRANCO

Lia Raquel Rodrigues de Sousa54 Márcia Ivana de Lima e Silva55

Nada é mais empolgante do que ver-se, transmudado em segundos. Renato Castelo Branco

INTRODUÇÃO

A escrita, o exercício de transpor para o papel algo que é resultado de processos de consciência transformados em palavra, levou a iniciar a discussão em torno da “absoluta fidelidade”, que Renato Castelo Branco, na sua obra Poemas do grande sertão (1993), diz manter aos clássicos nacionais que lhe serviram de inspiração. A obra Poemas do grande sertão (1993) está dividida em dois momentos e cada um deles foi inspirado em um clássico da literatura brasileira. O primeiro, em GrandesSertão: veredas (1986), de João Guimarães Rosa; e o segundo, em Os Sertões (1984), de Eucludes da Cunha. Ao propor a discussão da “absoluta fidelidade” de Castelo Branco, optou-se por abordar poemas que compõem o segundo momento de seu livro, especificamente, os que estão sob os títulos: “O vaqueiro”, páginas 38 a 39; e “A vaquejada”, páginas 43 a 44; inspirados na obra Os Sertões (1984) respectivamente sob os títulos “O vaqueiro” (páginas 122 a 124) e “A vaquejada” (páginas 128 a 130). A escrita de Renato Castelo Branco encontra no conto Pierre Menard, autor do Quixote de Jorge Luis Borges (1989), semelhanças que abordam o laborioso ato de escrever e reescrever de clássicos da literatura nacional e internacional como o Dom Quixote de la

54Cursou Licenciatura Plena em Letras Espanhol pela Universidade Estadual do Piauí-UESPI (2012); Especialização em Crítica Genética e Organização de Arquivos pela Universidade Estadual do Piauí-UESPI (2015). É Membro pesquisadora do Núcleo de Estudos em Memória e Acervo-NEMA/UESPI cadastrado no CNPq (desde 2010). Técnica em Biblioteca pelo Instituto de Educação Antonino Freire-IEAF (2015). Cursando Especialização em Educação a Distância pela Universidade Estadual do Piauí-UESPI. É tutora a distância do curso de Licenciatura Plena em Letras/Espanhol-UESPI/UAB/NEAD (2015). E-mail: [email protected] 55Cursou Licenciatura em Letras (Português e Alemão) pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (1986); Mestrado e Doutorado em Teoria Literária pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (1991 e 1996). É professora do Instituto de Letras da UFRGS. Pesquisa criação literária, com ênfase em Crítica Genética. Coordena o acervo de Guilhermino Cesar. Tutora PET Letras. E-mail: [email protected] 174

Mancha (2004), Os Sertões (1984) e Grande sertão: veredas (1986). Para refletir sobre o processo de escrita dos poemas do livro de Castelo Branco, bem como discutir a fidelidade do autor ao clássico que deu origem ao segundo momento de sua obra, utilizou-se o datiloscrito que trata do processo de criação de Poemas do grande sertão (1993) e do livro Os Sertões (1984), de Euclides da Cunha. Seguiu-se, para tal análise, um referencial teórico metodológico predominantemente bibliográfico e documental, buscando refletir sobre uma questão pessoal e empírica a partir de suposições. Este texto foi produzido a partir da leitura e da seleção de dois dos poemas de Castelo Branco e da seleção dos trechos no livro Os Sertões (1984), que lhes deram origem. Seu cunho é qualitativo e quantitativo, na medida em que os poemas são descritos, analisados e comparados aos trechos da obra que os originou, nos quais cabem estudos de metrificação e rima. A análise dos dados obtidos se deu indutivamente, através da interpretação dos fenômenos observados e da atribuição de significados que foi dada a estes. Portanto, o corpus da análise são os dois poemas escolhidos da obra publicada, acima referidos, analisados sob a perspectiva dos estudos e das abordagens da Crítica Genética, sendo relevantes as colocações de Salles (2004,2008), Willemart (1990, 2000, 2005, 2009), Lima (2009), bem como as contribuições da Teoria Literária com Compagnon (2010). O estudo do corpus leva à verificação da “absoluta fidelidade” que, tanto Renato Castelo Branco, quanto Jorge Luis Borges dizem manter às obras que originaram suas produções.

A REESCRITURA DE RENATO CASTELO BRANCO56 EM POEMAS DO GRANDE SERTÃO

Poemas do grande sertão foi publicado em 1993. É um livro de poemas com 57 páginas, das quais 45 formam os dois momentos da obra. O primeiro, sob o título de “Poemas

56Renato Pires Castelo Branco nasceu no ano de 1914 em Parnaíba no Piauí e faleceu em 1995 em São Paulo. Aos 18 anos deixou sua terra natal para concluir seus estudos e trabalhar no Rio de Janeiro. Como a maioria dos jovens de sua época, formou-se em Direito. Foi advogado, publicitário, jornalista e escritor. Fez carreira publicitária em São Paulo, dedicando 50 anos de sua vida à publicidade e tornando-se referência para os publicitários de sua geração e os da geração atual. Fez cursos de pré-história em Paris. Foi membro das Academias Piauiense e Parnaibana de Letras do Piauí. Na área literária, cultivou os gêneros lírico e narrativo, especializando-se no romance histórico. Escreveu também poemas, estes procuram mostrar temas atuais e variados como: alegria, tristeza, indignação, esperança, ternura e um profundo amor ao homem e ao Brasil. Esteticamente, sua poesia é simples, seus versos são trabalhados de maneira paulatina, com rimas em linguagem clara e concisa. Seu acervo digital encontra-se atualmente no Instituto de Estudos Brasileiros – IEB/PUC de São Paulo. 175

do grande sertão”, traz 14 poemas inspirados em Grande sertão: veredas (2004), de João Guimarães Rosa; o segundo momento é representado com o título “Os sertões”, sendo que seus 12 poemas nasceram da obra do mesmo título, de Euclides da Cunha. As páginas seguintes do livro dão conta das críticas à primeira edição do poema “Os sertões”, trazendo as apreciações de críticos de diversos jornais da década de 40, quando este foi publicado individualmente, como as opiniões de: Edmundo Moniz do Carioca no Rio de Janeiro em 13 de março de 1943; Eloy Pontes do Globo no Rio de Janeiro em 3 de julho de 1943; J. O. Orlandi do O Estado de São Paulo em 15 de abril de 1943 e Lemos Brito do A Vanguarda no Rio de Janeiro em 29 de março de 1943. A reescrita de Castelo Branco retoma o já escrito de um modo singular, pois o autor inspira-se na narrativa de Euclides da Cunha ao selecionar trechos nos quais considera possível a metrificação e a rima para escrever seus poemas, algo que se assemelha à proposta de Jorge Luis Borges em seu conto Pierre Menard, autor do Quixote (1989). Ambos os escritores imitam o existente, porém, Castelo Branco o recria, dando sua versão particular. O escritor piauiense, tal qual coloca Aristóteles (s.d), ao afirmar que o poeta imita as coisas de maneira distintas e diversas, glosou as obras de Euclides da Cunha influenciado pela pulsão de ver (Willemart, 2009, p. 3). Castelo Branco se deixou tocar por algo já presente, contornando, apalpando, investigando seu objeto de inspiração para entender todos os seus segredos, passando pela pulsão de ouvir (Willemart, 2009, p. 3) para, a partir das vozes ouvidas, submeter-se a essas e produzir os próprios poemas. Seus poemas tratam de temas atuais, velhos conhecidos do homem que ele tanto estima – o sertanejo nordestino –, como: alegria, tristeza, indignação, esperança, bem como certa ternura para com a terra e o homem, os quais inspiram sua lírica. Castelo Branco é dono de uma poesia esteticamente “simples”, na qual os versos são trabalhados de maneira paulatina e as rimas trazem uma linguagem concisa, clara. Márcia Edlene Mauriz Lima (2009, p. 107) sugere que sua linguagem é o ponto de destaque de todos os poemas que escreve “pela transparência com que organiza e distribui o jogo estético de imagens, trabalhando, assim, cada vocábulo”. Assim, o pensamento que Castelo Branco imprime em seus poemas traz ao leitor a imagem de um homem e um autor atento ao contexto cultural de sua época; sua escrita se comunica de forma pessoal e humana com o receptor, ao transformar prosa em uma poesia tão íntima daquele que nela, e por ela, é retratado.

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POEMAS DO GRANDE SERTÃO: MARCAS GENÉTICAS DE UMA REESCRITURA

O processo de análise e descrição da reescritura de Castelo Branco deu-se mediante a leitura de seus poemas e da seleção dos trechos no livro de Euclides da Cunha, que lhes deram origem. Do seu livro, 02 (dois) poemas foram selecionados, descritos e comparados aos trechos da obra que os originou, nos quais cabem a metrificação e a rima, informações que podem ser qualificadas e quantificadas. O corpus desta análise é a obra publicada Poemas do grande sertão (1993) de Renato Castelo Branco, a partir do roteiro de sua criação expresso no datiloscrito sobre esta, centrando-se em dois poemas do segundo momento do livro de Castelo Branco os quais estão sob os títulos “O vaqueiro” nas páginas 38 a 39 e “A vaquejada” nas páginas 43 a 44, inspirados na obra Os Sertões (1984), respectivamente, sob os títulos “O vaqueiro” nas páginas 122 a 124 possuem trechos do capítulo III; e “Os Sertões” nas páginas 119, 120 e 130, aos quais foram introduzidas rimas nos poemas sob título “O vaqueiro” e “A vaquejada” nas páginas 128 a 130 da obra de Euclides da Cunha. Os quadros abaixo trazem trechos dos dois poemas de Renato Castelo Branco, transcritos à esquerda e, à direita, os trechos, respectivamente, sob o mesmo título da prosa de Euclides da Cunha. Neles se observa o jogo de palavras que Castelo Branco realizou para dar a rima necessária à sua reescrita.

Seleções para a reescritura de Poemas do grande sertão Poemas do grande Sertão, de Renato Os Sertões, de Euclides da Cunha Castelo Branco O vaqueiro O vaqueiro É impossível idear-se cavaleiro mais chucro. [...] É impossível idear-se cavaleiro Pendido para a frente, em instável posição, mais chucro e deselegante; sem todo o seu corpo oscila à feição da andadura posição, pernas coladas ao bojo da dos pequenos cavalos do sertão. montaria, tronco pendido para a fretne e oscilando à feição da andadura dos pequenos cavalos do sertão, desferrados e maltrados, resistentes e rápidos como poucos. 177

Em suas vestes de couro curtido, [...] O seu aspecto recorda, vagmente, à seu aspecto sugere, a quem o veja, primeira vista, o de um guerreiro antigo o de um campeador medieval exausto da refrega. As vestes são uma exausto da peleja. armadura. Envolto no gibão de couro curtido, de bode ou de vaqueta; apertado no colete também de couro; calçando as perneiras, de cour curtido ainda, muito justas, cosidas às pernas e subindo até as virilhas, articuladasem joelheiras de sola; e resguardados os pés e as mãos pelas luvas e guarda-pés de pele de veado ̶ é como a forma grosseira de um campeador medieval desgarrado em nosso tempo. Mas o brilho do sol [...] Esta armadura, porém, de um na armadura que ostenta, vermelho pardo, como se fosse bronze não rem cintilações e não lampeja. flexível, não tem cintilações, não Ela é fosca e poenta. rebrilha ferida pelo Sol. É fosca e No seu vermelho-pardo, poenta. Envolve ao combatente de uma envolve pobremente um guerreiro sem batalha sem vitórias... glórias, preparando-se sempre para a luta, numa imensa batalha sem vitórias!

Seleções para a reescritura de Poemas do grande sertão Poemas do grande Sertão, de Renato Os Sertões, de Euclides da Cunha Castelo Branco A vaquejada A vaquejada É mês de junho... mês da vaquejada... [...] Ferrados em junho, os garrotes novos A vaqueirama se congrega em peso perdem-se nas caatingas, com o resto das na extensa várzea limpa e complanada. malhadas. Ali os rareiam epizootias De todas as fazendas convizinhas intensas, em que se sobrelevam o rengue 178

afluem os campeiros, folgazões. e o mal triste. Os vaqueiros mal Agrupam-se um momento no rodeio, procuram atenuá-las. Restrigem a concertam nos detalhes, atividade às corridas desabaldas pelos dividem as funções. arrebatadores. E afinal, tudo assente, [...] Esta solidariedade de esforços a lida se inicia num instante. evidencia-se melhor na vaquejada, Arremetendo do rodeador, trabalho consistindo essencialmente no prestes desaparece a vaqueirama reunir, e discriminar depois, os gados de perdida na caatinga circundante diferentes fazendas convizinhas, que por ali vivem em comum, de mistura em um compácuo único e enorme, sem cercas e sem valos. Realizam-na de junho a julho. Escolhido um lugar mais ou menos central, as mais das vezes uma várzea complanada e limpa, o rodeador, congrega-se a vaqueirama das vizinhanças. Concertam nos dispositivos da empresa. Distribuem-se as funções que a cada um caberão na lide. Por algum tempo a arena permanece [...] Desaparecem em minutos os silenciosa e deserta. sertanejos, perdendo-se no matagal Até que de repente circundante, O rodeio permanece por um estrídulo tropel de cascos sobre algum tempo deseto.. pedras De repente estruge ao lado um estruge ao lado. estrídulo tropel de cascos sobre pedras, Uma nuvem de pó tufa nos ares. um estrépido de galhos estalando, um estalar de chifres embatendo; uma tufa nos ares, em novelos, uma nuvem de pó; [...]

Castelo Branco escreveu seus poemas, propondo uma homenagem aos autores das obras que parafraseou. Durante seu processo de criação, buscava corresponder-se com os próprios autores dessas obras, quando possível, ou com escritores aos quais recorria para que 179

estes lhe enviassem suas apreciações quanto ao que estava produzindo. É o caso de Poemas do grande sertão (1993), no qual em seu processo de criação/recriação, Castelo Branco comunicou-se com Fábio Lucas57 e recebeu deste uma carta na qual seu apreciador diz, entre outros elogios, que é uma ideia magnífica ‘fazer ecoar nos seus versos a prosa poética de Guimarães Rosa e de Euclides da Cunha, tendo o sertão como letmotiv’. Fábio Lucas finaliza: ‘De qualquer forma, “Poemas do Grande Sertão” se impõem pela criatividade. E o prazer da leitura é intensificado pela boa solução gráfica. Parabéns’. A carta recebida por Castelo Branco é também parte de seu processo de criação refletido nas marcas genéticas deixadas – a metrificação e a rima – que encontrou em Os Sertões (1984), para escrever seus poemas dotados de uma formação ideológica e política, na qual sua preocupação com os marginalizados, os menos favorecidos, o homem simples e trabalhador da terra, assim como a terra, são protagonistas.

POEMAS DO GRANDE SERTÃO X OS SERTÕES: DISCUSSÃO E REFLEXÃO SOBRE A “ABSOLUTA FIDELIDADE” DE RENATO CASTELO BRANCO A EUCLIDES DA CUNHA NOS POEMAS SELECIONADOS

O livro Os Sertões (1984), como expõe M. Paulo Nunes (2002, p. 29), “[...] é uma obra que pode participar dos gêneros lição de história, romance, epopeia, tragédia [...]”. No caso do livro de Castelo Branco, ele a vestiu/revestiu em forma de poemas, dando uma intensidade singular à sua essência. Os poemas de Renato Castelo Branco expressam o que coloca Antoine Compagnon (2010) quando diz que o autor cede o lugar principal da obra à escritura, mas esta não representa ou não pode “representar” nada anterior à sua enunciação. Daí se coloca que a origem do texto desaparece com o autor.

57Natural de Esmeraldas (MG), da safra de 1931. Autor de importante e vasta obra de Crítica literária. Professor na Universidade Federal de Minas Gerais, em Belo Horizonte, sofreu perseguições durante os piores anos da ditadura militar (1964-1975), vindo a perder a Cadeira em que lecionava. Em 1997, quando da comemoração de seu aniversário, em homenagem prestada pela grande imprensa de Minas Gerais, o escritor e jornalista Roberto Drummond resumiu um conceito geral, quando se referiu a Fábio Lucas como o que há de melhor na Crítica no Brasil, ao lado de Antônio Cândido e de Wilson Martins. Lecionou Literatura Brasileira em várias Universidades no exterior. Ex- Diretor do Instituto Nacional do Livro. Ex- Presidente da União Brasileira de Escritores/ Seção de São Paulo, por vários mandatos eletivos. Integra a Academia Mineira de Letras bem como a Paulista. Disponível em: http://www.jornaldepoesia.jor.br/flucas.html. Acesso: 07 jun 2015. 180

Em relação a Poemas do grande sertão (1993), Antoine Compagnon (2010) diz que:

A explicação da obra de arte é sempre procurada do lado de quem a produziu”, como se, de uma maneira ou de outra, a obra fosse uma confissão, não podendo representar outra coisa que não a confidência. [...] “o autor nunca é mais que aquele que escreve, assim como eu não é outro senão o que diz eu [...] (COMPAGNON, 2010, p. 50).

Analisando o texto que Castelo Branco deixou datilografado, no qual ele explica como fez para dar corpo à obra Poemas do grande sertão, percebe-se que o autor deixou a escrita conduzi-lo, chegando não a desaparecer, e sim, mesclando-se a ela, pois o “scriptor é o sujeito da enunciação e não preexiste à sua enunciação, mas se produz com ela, aqui e agora” nas palavras de Compagnon (2010, p. 50) e Willemart (2009, p. 39). A análise do datiloscrito, bem como a leitura da obra Os Sertões (1984) e do segundo momento de Poemas do grande sertão (1993), levam a perceber a obra de arte a partir de sua construção e o crítico genético como alguém preocupado com a melhor compreensão do processo de criação que deseja analisar (SALLES, 2004), acompanhando seu planejamento, sua execução e seu crescimento. No caso da presente investigação, deseja-se analisar esse processo na escrita de Castelo Branco. Para Salles (2004), o crítico genético:

É um pesquisador que comenta a história da produção de obras de natureza artística, seguindo as pegadas deixadas pelos criadores. Narrando a gênese da obra, ele pretende tornar o movimento legível e revelar alguns dos sistemas responsáveis pela geração da obra. Essa crítica refaz, com o material que possui, a gênese da obra e descreve os mecanismos que sustentam essa produção (SALLES, 2004, p. 12-13).

Assim, o diálogo que Castelo Branco deixa registrado no datiloscrito, bem como a identificação dos trechos de Os Sertões (1984) nos quais ele introduziu metrificação e rima – suas marcas genéticas – desenham seu processo criativo, deixando índices relevantes. Poemas do grande sertão (1993) pode ser visto como uma tentativa de compreender os processos de invenção intelectual e estética de seu autor. Castelo Branco faz algo parecido com o “autor” de um conto escrito por Jorge Luis Borges, Pierre Menard, autor do Quixote (1989). Neste conto, o autor Pierre Menard afirma:

Não queria compor outro Quixote – o que é fácil – mas o Quixote. Inútil acrescentar que nunca enfrentou uma transcrição mecânica do original; não se propunha copiá-lo. Sua admirável ambição era produzir algumas páginas que coincidissem – palavra por palavra e linha por linha – com as de Miguel de Cervantes (BORGES, 1999, p. 20). 181

O Quixote, que inspirou Pierre Menard, coloca o leitor na condição de não dar conta de toda a complexidade da obra em questão, pois o estimula a pensar a arte e a escrita segundo Maria Augusta da Costa Lima. O conto de Jorge Luis Borges reforça essa tentativa de pensar a arte e a escrita. Castelo Branco, por sua vez, provoca o leitor, deixando uma mensagem em seu datiloscrito: Se o leitor tiver a paciência de comparar os poemas com as páginas respectivas, estou certo de que constatará sua absoluta fidelidade. Só em pouquíssimos casos utilizei palavras que não constam da obra de Guimarães Rosa, onde isto foi absolutamente necessário à metrificação e à rima. (LIMA, 2009, p. 75)

Seguindo a “sugestão” de Castelo Branco – também na obra de Euclides da Cunha, pois o datiloscrito expõe o mesmo processo para os dois autores – buscou-se essa “fidelidade”, identificando-se os trechos nos quais a metrificação e a rima foram introduzidas, assim como se procurou um diálogo com a obra de Jorge Luis Borges através do “autor” Pierre Menard, para além da constatação da “fidelidade” de ambos às obras que os inspiraram, discutindo-se e questionando-se o fazer da escrita. As discussões sobre a escrita de Poemas do grande sertão (1993) através da Crítica Genética e da Teoria da Literatura passam pelo que Ítalo Calvino (1999) sugere ao dizer que escrever prosa não tem diferença alguma de escrever poesia porque, nos dois casos, tanto o de Jorge Luis Borges quanto o de Renato Castelo Branco, o que há é a busca de uma “expressão necessária, única, densa, concisa, memorável” que abarque o fazer de cada obra. Nesse sentido, Castelo Branco usa a influência regional para imprimir suas marcas genéticas pela própria identificação que possui com a “região Nordeste, com as questões sociais daquele local e com os autores que escrevem esse tipo de texto”. (Lima, 2009, p. 80).

CONSIDERAÇÕES FINAIS

A “absoluta fidelidade” que Castelo Branco diz manter é algo improvável, pois seu texto foi escrito em uma época diferente daquela da obra que o inspirou. O sentido e a linguagem de sua escrita são opostos/diferentes/distintos. Assim como coloca Compagnon (2010, p. 48-49) ao falar de Borges e de seu conto: “Enfim, o apólogo... não são as mesmas”, pode-se afirmar que, tanto o Autor do Quixote quanto o de Poemas do grande sertão reescrevem as obras. 182

Luis Borges propõe uma interpretação alegórica ao escrever sua versão do Quixote. Induz o leitor a procurar compreender a intenção oculta de seu texto pelo deciframento das figuras nele contidas. Tanto Luis Borges quanto Castelo Branco levam seus leitores a despertar inquietações e incertezas, a tomar partido de qual teoria cabe ou não na análise de uma ou outra obra, fazendo-os ir além do que as obras refletem. Maria Augusta da Costa Vieira afirma que o leitor de Quixote não dá conta de toda a complexidade da obra, pois ela o estimula a pensar a arte de escrever – algo possível nas reescrituras de Renato Castelo Branco e Jorge Luis Borges. Castelo Branco, assim como Pierre Menard, não escrevem algo original, pois o sentido de suas escritas se constrói em um “espaço de fronteira, na fronteira entre o tempo da escrita e o do relato, entre o tempo da escrita e o da leitura”, como expõe Beatriz Sarlo (1998, p. 27). O Quixote de Menard e os Poemas do grande sertão devem ser lidos no marco de um espaço cultural em que se busca imprimir sobre a fuga dos sentidos e impressões a que o leitor pode ser conduzido, um sentido histórico que o leve para além das primeiras interpretações. Castelo Branco escreve a partir da prosa, porém, seu processo de escrita e as condições históricas modificam todos os enunciados. Beatriz Sarlo (1998) afirma que Menard é mais rico em sua escrita do que o clássico que o inspirou porque estudou para criar o seu Quixote, enquanto que Cervantes o criou espontaneamente. E Castelo Branco fez o mesmo que Menard? Mesmo supondo que Cervantes e Menard fossem “iguais”, isso não poderia ser; na verdade, eles são diferentes. O que os diferencia é o momento de enunciação de cada um, o contexto, o tempo, a história, tal qual ocorre com Castelo Branco e sua reescritura. Castelo Branco atua em sua obra usando a memória procedural, pois o que ele recebeu ao ler o clássico de Euclides da Cunha, ele modificou e o entregou ao público de uma forma diferente, para uma leitura e uma interação diferentes.

REFERÊNCIAS

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CERVANTES, Miguel de. Dom Quixote de La Mancha. São Paulo: Nova Fronteira, 2004. 183

COMPAGNON, Antoine. O demônio da teoria: literatura e senso comum. 2. ed. Tradução de Cleonice Paes Barreto Mourão, Cleonice Fortes Santiago. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2010.

CULLER, Jonathan. Teoria literária: uma introdução. Tradução de Sandra Vasconcelos. São Paulo: Beca Produções Culturais Ltda, 1999.

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GRÉSILLON, Almuth. Elementos de crítica genética: ler os manuscritos modernos. Tradução Cristina de Campos Velho Birck. Porto Alegre: UFRGS, 2007.

GRÉSILLON, Almuth. Frontières et horizons de la critique génetique. Conferência na Universidade de São Paulo em novembro de 2000.

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NUNES, Manoel Paulo. Os Sertões: uma reflexão sobre a sociedade brasileira. Presença, Teresina, Ano XVII, nº 29, 2002.

LIMA, Márcia Edlene Mauriz. O inacabamento do acabado: a reescrita de Teodoro Bicanca, de Renato Castelo Branco. Porto Alegre, 2009. 238f. Tese (Doutorado em Letras), Programa de Pós-Graduação da Faculdade de Letras – PUCRS.

SARLO, Beatriz. Borges. Un escritor en las orillas. : Ed Sudamericana, 1998.

SALLES, Cecília Almeida. Crítica genética: fundamentos dos estudos genéticos sobre o processo de criação artística. 3. ed. Ver. São Paulo: EDUC, 2008.

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WILLEMART, Philippe. Os processos da criação: na escritura, na arte e na psicanálise. São Paulo: Perspectivas, 2009.

SALLES, Cecília Almeida. Crítica genética e psicanálise. São Paulo: Perspectiva; Brasília, DF: CAPES, 2005.

SALLES, Cecília Almeida. Bastidores da criação literária. São Paulo: FAPESP: Iluminuras, 1990.

VIEIRA, M. A. C. Dom Quixote de La Mancha. UNIVESP TV. Literatura Universal. 12 abr. 2013. Disponível em: https://www.youtube.com/user/univesptv e em: https://www.youtube.com/watch?V=fBBr257F_6o. Acesso em: 20 jan. 2017.

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"A ESCULTURA DE PALAVRAS TAMBÉM TEM SUAS BELEZAS": MÁRIO DE ANDRADE LEITOR DOS PARNASIANOS

Ligia Rivello Baranda Kimori58

As bibliotecas de escritores são espaços do diálogo destes especiais leitores com nomes e títulos ali presentes e, por vezes, conservam sinais da criação de novas obras, passíveis de serem recuperadas. A biblioteca de Mário de Andrade, marcada por matrizes de sua criação, vinculadas ou não à sua marginália, representa uma importante via de acesso à sua produção, pois preserva aspectos de determinados percursos do poeta e do polígrafo. Através de suas notas, acompanhamos o escritor que apura a própria escrita e o crítico, que elabora, retoma e reformula cogitações estéticas. Com o texto em mãos, o leitor se depara com questões, busca respostas. A atitude passiva muda no instante em que os olhos param. Algo chama a atenção: refaz, rasura, reelabora, ratifica. E só assim segue em frente. Aquelas linhas dizem – despertam a lembrança de leituras, permitem associações, criam contradições, alimentam – algo é transformado. Há uma importante marginália nos volumes parnasianos pertencentes a Mário de Andrade59 que, atualmente, constam de sua biblioteca, entendida como duas coleções: a que participa do Acervo Mário de Andrade, no Instituto de Estudos Brasileiros, na Universidade de São Paulo (IEB/USP) desde 1968; trata-se de uma coleção de 17.624 títulos, entre livros e revistas. A segunda reúne 441 títulos, que restaram dos 600 tirados por Mário de Andrade de suas estantes para doação à Biblioteca Pública de Araraquara em 1943, colaborando com a formação de um acervo, nessa cidade do interior paulista onde viviam parentes e amigos do escritor. Nos parnasianos do leitor Mário, há um número expressivo de notas de leitura, que se ligam à análise da estrutura dos poemas, de soluções estilísticas, da versificação, da sonoridade na construção da frase e ao estudo do vocabulário60. Percebe-se que o escritor-

58Doutoranda em Literatura Brasileira pelo Programa de Pós-Graduação da FFLCH/USP, orientadora: Telê Ancona Lopez; bolsista da FAPESP. Email: [email protected] 59No mestrado, recuperei e estudei as anotações presentes nas obras de Francisca Júlia, Raimundo Corrêa, Alberto de Oliveira, Olavo Bilac e Vicente de Carvalho, parnasianos que fundamentam a série “Mestres do passado”, composta de sete artigos publicados no Jornal do Comércio, em São Paulo, nos dias 2, 12, 15, 16, 20, 23 de agosto e 1º de setembro, 1921. Vide: KIMORI, Ligia Rivello Baranda. Os mestres no passado: Mário de Andrade lê os parnasianos brasileiros. Dissertação de mestrado com bolsa da FAPESP no Programa de Pós-Graduação em Literatura Brasileira. FFLCH-USP, 2014; orientadora: Prof.ª Dr.ª Therezinha A. Porto Ancona Lopez. 60No doutorado, faço uso dos resultados do mestrado, ampliando o escopo. Isso significa, em primeiro lugar, estender o corpus, reunindo todos os parnasianos, brasileiros e franceses, que se mostram atualmente na biblioteca de Mário de Andrade, isto é, nos dois acervos já mencionados, que somam um total de 35 volumes. 186

leitor alimenta projetos em andamento, reserva elementos para construir caminhos, estuda e discute poesia. No primeiro artigo da série “Mestres do passado”, Mário de Andrade indica como pensou em escrever sobre os parnasianos, apontando sua forma de ler:

Assim: reli cuidadoso toda essa coleção de livros magníficos – projetores de luz sobre a minha infância de estudos literários. Que lindos, posto que envelhecessem! Conservam-se belos, não porque sejam arte, mas porque são belos. Além disso, muitos dos versos parecem conservar a frescura proveniente da sinceridade, do carinho, da ilusão que os ditou. Porém é claro: não me pus a reler essas obras parnasianas com a alma vária, pueril e fantástica, correspondente ao meu tempo, mas fui buscar, dentre as minhas muitas almas, aquela que construí para entender a geração parnasiana. Todo homem afeiçoado a leituras diversíssimas, acostumado a viajar, cheio de simpatia e desejo de aprender, pelos vários climas literários, crente infantil da sinceridade dos poetas, cria dentro de si um corimbo de almas diferentes, das quais se serve à medida que passa de um a outro autor de tendências dessemelhantes. Só a visão estreita, a escravização ignóbil dos que se ilharam numa escola permite a ignorância infecunda dos que tem uma alma só, paupérrima e impiedosa (ANDRADE apud BRITO, 1971, p. 256).

Mário de Andrade que, em 1929, se definirá enquanto poeta – “Eu sou trezentos, sou trezentos-e-cinquenta” (Andrade, 2013, p. 295), ao se declarar dono de um “corimbo de almas diferentes”, em que expressa sua capacidade de reconhecer a beleza nas obras do parnasianismo, ao mesmo tempo em que, sendo moderno, aventura-se, como crítico, em outros “climas literários”. Pode, então, analisar com liberdade os seus mestres do passado. Analisa, aprende e apreende formas. A aquisição de técnicas mostra-se como um paradoxo ao verso moderno. No entanto, tal labor proporciona a Mário de Andrade a conquista do verso livre, mediante o seu trabalho com as estruturas, com a observação da construção do poema – elementos cruciais que insuflam seu ideário estético e ajudam-no a delinear certa concepção de poesia – dando margem a possibilidades impares. No poeta moderno Mário, veremos a clareza de que “o verso livre não representava a ausência de técnica, e sim uma nova técnica”, como lembra o professor Paulo Henriques Britto (2014, p. 29). E a poesia passa sempre pela música, um elemento também muito importante na formação do poeta; e a sonoridade ecoa no lápis do leitor que pesquisa, nos parnasianos, sobretudo em Bilac. Em Via láctea (BILAC, 1909), além de se reconhecer a forte musicalidade do texto – escansão, métrica, rima, aliterações e assonâncias –, marca-se o compasso e o andamento dos versos, como se a página do livro se transformasse em partitura. 187

Ali, o professor de Música do Conservatório tem a oportunidade de desvelar o seu conhecimento técnico. As leituras parnasianas de Mário de Andrade guardam aspectos de sua formação como um poeta e crítico literário, que conserva recursos colhidos nos velhos mestres. Trata-se de um leitor dedicado, que pesquisa, esmiúça, traça planos e se corrige; que, ainda, remodela ideias alheias nas margens dos livros em suas prateleiras. As anotações apontam ideias em marcha contínua; apresentam um autor leitor, que deixa lembretes para si mesmo e, como crítico coautor, que interfere na obra publicada, o poeta visita formas alheias. As marcas evidenciam sua obsessão continuada de trabalhar a matéria lida: escreve, reaproveita, expande, enfim, busca outras percepções de poesia. Em um recorte de apenas um tipo de anotação do leitor, selecionei analisar o vocabulário utilizado61. Em Raimundo Correa, impressionam as marcas deixadas sob os vocábulos. Poesias (1910) conserva mais de cem palavras sublinhadas, sendo que, grande parte, com sinônimos apontados:

P.35-39 XIV – ODE PARNASIANA (16 estrofes)

P.36: Notas MA: estudo do vocabulário parnasiano:

1. Palavra sublinhada no v. 21: “A’s margens do Permesso!” 2. Palavra sublinhada no v.25 “E múrice orna o olympico painel”, e anotação do significado: púrpura; 3. Palavra sublinhada no v.. 26 “A harpa acrisola só no amor; e, em leves”, e anotação do significado: acendrar – purificar. 4. Palavra sublinhada no v.30 “Fazendo que, sem amarujentos travos” e anotação do significado: amargosos. 5. Palavras sublinhadas no v.39 “Pulsar, em marcio, horrisono arrabil”e anotação dos significados: marcial/ antigo instrumento musical/ de uma ou 2 cordas.. 6. Palavras sublinhadas no v. 41 “A ti, de Erato coube a lyra insonte”e anotação dos significados “Musa da elegia”/ “inofensivo, inócuo” (grifos do autor).

No poema “Soror Pallida”, no mesmo livro de Raimundo Correia, o leitor observa, de forma minuciosa, o trabalho parnasiano com a estrutura vocabular. No comentário, estão registradas as páginas onde se encontram certos padrões de escolha das palavras, sequência de

61 Como metodologia, na transcrição e classificação das notas autógrafas de Mário de Andrade apostas aos seus volumes parnasianos, adotou-se o itálico em todos os manuscritos do autor. 188

termos afins. O perfil de pesquisador atento e dedicado torna-se evidente nesse vai e vem das folhas, buscando semelhanças na composição dos versos:

P. 91 XLVIII – SOROR PALLIDA (soneto)

P.91: Notas MA: 1. Substantivos sublinhados no v. 14 e expoente (1), remetendo ao comentário no rodapé:

“Uma flôr, uma phrase, um pensamento”(1)

2. Comentário no rodapé: (1) É curioso de notar-se a assiduidade com que R. Corrêa/ usa e abusa de uma serie de substantivos ou de adjetivos/ em um verso. E geralmente ele o faz no fim de sonetos/ ou de quadras. Vide páginas 87, 73, 61 (duas vezes), 27 etc./ Essa usança tornou-se tão comum nos poetas modernos/ principalmente em alguns que sonetos hão que se podem/ considerar como meras enumerações. Bilac, nos sonetos/ já conhecidos do seu novo livro “Tarde” abusa dessas/ enumerações não nome de substantivos só ou de adje-/tivos mas de frases (grifos do autor).

Nota da pesquisa: MA faz referência às seguintes enumerações:

ü “Versos a um artista”: p.27, v.8 – “Pincel, lapis, buril, cinzel e penna”

ü “Sonho turco”: p.61, v.78 – “Lanceolados, rispidos e agudos...” v. 84 – “Musculosos, elasticos e viris...”

ü “Primaveril”: P.73, v.14 – “Pequenos, microscópicos, chinezes...”

ü “Lembrança”: p.87, v.14 – “Tenue, longínqua, branda, solitária...”

O leitor Mário inicia a tarefa de recolher um vocabulário raro, recorrendo a dicionários para, em um estudo meticuloso, registrar sinônimos e significados de certas palavras. Nessa leitura-pesquisa, destaca, define palavras e, muitas vezes, agrega elementos históricos ligados ao vocábulo estudado – etimologia, grafias possíveis, formas de utilização de certos vocábulos. Desse modo, pode discutir determinados usos, a propriedade de cada expressão e também acrescentar palavras novas à sua coleção. Então, justifica-se no rodapé da p. 67, em “Salomé”, de Martins Fontes (Verão, 1917), em comentário ao v. 101 “Assim lhe diz: ‘Da-me em estreme...’ (1)”: Nota MA: (1) Na significação antiquada de quinhão, pertença – É excusado dizer que G. F. [Gustave Flaubert] é quem diz isso. Não quero amostrar-me, com pedanteria como erudito e conhecedor. Bem prova disso são as 189

inúmeras palavras desconhecidas que tenho achado e às quais pus singelamente a significação junto (grifos do autor).

No artigo “Empalhador de passarinho”, publicado em novembro de 1938, n’O Estado de S. Paulo62, o crítico Mário de Andrade conceitua a dimensão do vocabulário parnasiano, pontuando o que considera um prejuízo no jogo com as palavras:

A possível impassibilidade parnasiana foi especialmente uma desconsideração à fluidez riquíssima da palavra, suas sugestões, suas associações, sua música interior e vagueza de sentido pessoal. Pregaram e realizaram o emprego da palavra exata, a palavra em seu valor verbal, a palavra concebida como um universo de seu próprio sentido, enfim, a palavra escultoricamente concebida (ANDRADE, 1946, p. 10).

Para ilustrar melhor o contato do leitor com os termos lapidados pelos velhos mestres, apresento Martins Fontes, Verão (1917). Na primeira estrofe de “Na floresta da água negra” (Fontes, 1917, p. 42), entre os v. 10-12, o leitor deixa marcados os exageros do autor na escolha de palavras:

Notas MA: 1. Palavras sublinhadas e expoente (1) no v. 10: “Em luteos (1) lumaréos e vibrações urentes,” e anotação do significado: (1) Luteo. C. F.63 não consigna a palavra. Luteolina substân-/cia corante da resêda amarela.; estudo do vocabulário parnasiano; 2. Expoente (2) no v. 12, remetendo ao comentário na margem superior: “Jalnes, rufas, de tons gualdos e fulvescentes”. (2)

(2) O A. espanta o leitor com uma língua nova, que este, in-/feliz, não conhece. Ha manifesta intenção de épater. Na/ designação das labaredas ha simplesmente tolice. Flavas,/ jalnes, gualdos e fulvecentes vem a dar quasi no mesmo,/ principalmente os tres primeiros qualificativos (grifos do autor).

A verborragia parnasiana incomoda o leitor, que não se furta em comentar cada deslize dos poetas que, para ele, desgastam os versos, na tentativa exagerada de impressionar, abusando de sinônimos e reiterando imagens já utilizadas. O estudo pormenorizado das palavras, na busca de seus significados e sinônimos, prolonga-se na observação e na crítica à

62 Em sua dissertação de Mestrado, a pesquisadora Marina Damasceno de Sá preparou a edição de texto fiel e anotado desta obra. Vide: SÁ, Marina Damasceno de. O empalhador de passarinho, de Mário de Andrade: edição de texto fiel e anotado. Dissertação de mestrado. Orientadora: Profª Telê Ancona Lopez. São Paulo: Universidade de São Paulo, 2013. 63 Referência a Antonio Cândido Figueiredo, filólogo e escritor português. 190

padronização de soluções de estilo decalcadas nos vocábulos. Outro exemplo do trato com vocabulário, ainda no mesmo poema de Martins Fontes, está à p. 49:

Notas MA: 1. Palavras sublinhadas no v.17-18 e expoentes (1) e (2), remetendo ao comentário no rodapé; estudo do vocabulário parnasiano:

As palmeiras gentis (1), sobre as balseiras brunas, Entre os jiquitibás alvadias (2) e calmas,

(1) Então existem ainda palmeiras gentis para/ um poeta que usa e abusa dum vocabulário nu-/ meroso? É descuido sem razão o lugar comum. (2) Alvadias porquê? Ah! por causa do luar... Desculpe (grifos do autor).

Na nota de margem – encenação diante do espelho – pergunta-se, responde em tom irônico, avalia o peso dos vocábulos, caçoa da tentativa de exatidão vocabular parnasiana. O leitor não é, de fato, jejuno. Quando aprecia um poema, observa a sua estrutura, pois conhece bem o estilo parnasiano; de modo que tem argumentos para julgar. Discípulo bem preparado, discute em pé de igualdade com os mestres, imune aos efeitos das rimas preciosas ou das palavras grandiloquentes que tanto impressionavam os leitores brasileiros, nessa época. Crítico arguto, tenta compreender a forma de construção adotada. Na página seguinte, continua:

Notas MA: 1. Adjetivos e verbos sublinhados e enumerados nos v.37-39; e expoente (1) no v.39, remetendo ao comentário no rodapé; estudo do vocabulário parnasiano: 1 2 “Crespa, a vegetação é tão ampla e tão densa, 3 4 5 6 Irregular, cerrada, intrincada e disforme, 1 2 3 4 Que se enrosca, entrelaça, emmaranha e condensa, (1)

Formando paredões de uma espessura enorme!”

(1) Porventura, o p. tenha querido demonstrar a opulência/ do seu vocabulario com êste fluxo de verbos e qualifica-/ tivos que não acabam mais. Mais isso é e será sempre/ um defeito: O milhor meio de ser rico, é não dar a parecer que se o é (grifos do autor).

A recorrência de comentários enfatizando o manejo parnasiano das palavras deixa perceptível como os exageros incomodam o leitor, tiram a leveza do verso que se torna vazio em um eco de enumerações sem justificativa, distante do trabalho com a sonoridade interna e o ritmo melódico no fraseado, que são essenciais ao futuro poeta moderno. 191

Em um comentário na revista modernista Klaxon nº8/9, equivalente a dezembro de 1922/ janeiro 1923, Mário de Andrade retoma sua leitura da peça de teatro de Martins Fontes, Arlequinada, publicada naquele período:

Com efeito: conhecimento nítido e louvável da língua. Vocabulário extensíssimo. Habilidade fora do comum em construir neologismos regulares. Espírito também regular. Mas tudo isso somado, multiplicado não dá Poesia, oh não! Como profissional do verso medido o popular médico decaiu. Há em Arlequinada uma porção de alexandrinos fragilíssimos. E, o que é pior, batidos, martelados (ANDRADE, 1922-23, p. 29-30, grifos do autor).

O crítico aponta os excessos vocabulares e “os qualificativos trombetas do parnasianismo”64, como anota, certa vez, em um poema de Bilac, apesar de reconhecer a qualidade do escritor na precisão vocabular, que lhe será sempre tão cara em todo seu percurso como autor, mas também como crítico e pesquisador. Os qualificativos, muito frequentes nos versos parnasianos, são estudados de maneira particular pelo leitor: acredita que sonoridade e sentido não devem se perder no exercício da metrificação e na busca de rimas raras:

P.13: “Apparição nas águas”

Nota MA: pares adjetivo-substantivo sublinhados e comentário: “Clytia, a filha da Hellade divina, Jamais foi vista assim do louco amante No claro banho! Como a grega ondina, Paixão, delírio, ardente amor inspira Teu corpo fluctuante Sobre as aguas do mar, mansas e mansas! Ficam-te à flux as perfumadas tranças: Tal no banho aromático a hetaira.” (OLIVEIRA, 1912, p. 13)

Notar como a abundancia de qualificativos prejudica este período

Além de excessivos, os adjetivos sublinhados neste exemplo caracterizam os substantivos, mas não somam sentido diferenciado, preciso, nem permitem associações líricas, recurso que agregaria valor aos versos do poeta da Pauliceia, como lembra a ensaísta Nelly Novaes Coelho (1970, p. 84):

O que predomina na poesia mariodeandradina é o adjetivo caracterizador, – aquele que resulta necessário ao desvendamento do ser a que se refere,

64 Comentário crítico de MA ao soneto “Delenda Carthago”, de Olavo Bilac (Poesias, 1909, p.42). 192

aquele que resulta indispensável na comunicação da mensagem e não pode ser eliminado sem prejuízo do dizer poético (= “coração arlequinal”, “alma doente como um longo som redondo”, “entes frementes”, “corpo manso”, “calor exausto”, “Tigueras agressivas”, “Água pesada e oleosa”, “arranha- céus valentes”, “emaranhada forma humana”, etc, etc).

Esse uso característico de qualificativos acrescenta sentido aos versos, além de ampliar a carga semântica de cada termo escolhido. Na leitura dos parnasianos, Mário de Andrade encontra e guarda construções interessantes na forma, palavras que agregam intenções tanto líricas quanto precisas em termo de elaboração do verso, o que inclui adjetivos:

Nota MA: adjetivo sublinhado: “O seu jasmíneo corpo em torno expira” (CORREA, 1910, p. 94)

“Quanta ilusão multicôr!” (CARVALHO, 1912, p. 6)

Refletindo sobre o movimento de condenar e aprovar, apreender, estudar o vocabulário nestes poemas, o leitor, impregnado da estética parnasiana, chega a embarcar no texto quando retoca um verso de Raimundo Corrêa, no interesse, talvez, de harmonizar termos raros. Em “Missa da Ressureição”, propõe substituir “barba” por “mento” (queixo), no mesmo plano de “mão nevirosada”:

P.42: “Missa da ressurreição” Nota MA: palavra sublinhada e substituição sugerida: O mento :

“E, a barba sobre a mão nevirosada” (CORREA, 1910, p. 42, grifos do autor).

Pode-se imaginar que, no afã de sublinhar vocábulos raros – mais de cem no diálogo com esse mesmo autor, no livro Poesias, – o feitiço tenha envolvido o feiticeiro quando o título “Fabordão”, ali grifado, ingressa no verso de “Inverno”, em Há uma gota de sangue em cada poema: “O vento rosna um fabordão...” (Andrade, 2009, p. 38, grifos do autor). A busca do lirismo emerge das páginas parnasianas anotadas e o interesse por novas expressões molda o trabalho artístico, pois, conforme Antonio Candido (1994, p. 136), “a poesia é, antes de mais nada, uma aventura de descobrimento. É poeta aquele homem que vai descobrindo significações novas nas coisas velhas e, principalmente, sentidos novos em coisas novas – antes dele inexploradas”. A leitura dos parnasianos traz, para Mário de Andrade, palavras insuspeitadas, vocábulos e usos que descortinam construções, formam a 193

bagagem do leitor na coleta de material lírico, nas mais diversas fontes, e suas notas acrescentam ao livro o sentido novo de um dicionário de possibilidades. Essa nuança positiva aparece em nota a “Nix et Nox”, de Martins Fontes (1917, p. 191), após os últimos versos:

Na soturna furna Da amplidão nocturna, Funda catacumba, Retumba.

O trovão, e echoa, Rabido reboa, Em atrôos roucos E ocos.

Chora a natureza. Tedio com certeza, Neste choro triste Existe.

Que melancolia! Que monotonia! Symboliza esta água A magua?

P. 191: Nota MA: comentário no rodapé: Isto é sublime. Não ha nada na nossa lingua/ que atinja a tristeza suave, a melancolia saudosa,/ a langue monotonia destas estrofes. Nem Antonio/ Nobre soube ser suavemente triste assim. E real-/mente, não ha [como] negar que a palavra empresta á poesia/ uma grandíssima parte do seu valor, principal-/mente em gêneros como êste. E aquí é que se nota a/ força e a beleza da nossa lingua que apesar que tam/ rica em sonoridades e viveza consegue atingir esses/ tons nevacentos e baços da lingua francesa de que/ Garrett já dizia: “os franceses, porque não mais podem/ com a mofina lingua que Deus lhes deu”. E Verlaine nada fez milhor do que “Nix et nox”.

A estima pelas palavras é evidente nas anotações de leitura, nos textos que Mário de Andrade escreve. Há sempre a busca da adequação semântica. Por isso, ele faz constantemente rasuras, que pluralizam o texto, indica outras formas de construí-lo, procura usar com propriedade cada expressão. No artigo O empalhador de passarinho, analisando os vocábulos parnasianos, saboreia um tanto da forma de selecionar termos:

A escultura de palavras também tem suas belezas. A solaridade, a luz crua, a nitidez das sombras curtas de certos verbalismos enfunados, pelo próprio afastamento em que estão da verdadeira poesia, têm seu sabor especial, pecaminoso... (ANDRADE, 1946, p. 12).

194

É preciso criar nova forma – estilo – sem provocar a exaustão dos sentidos e esvaziar o impacto sobre os leitores, repisando fórmulas e sistematizando ideias. Mário aprecia elementos técnicos, mas evita valorizá-los enquanto norma, como ressalta Nelly Novaes Coelho (1970, p. 23): “A gratuidade da técnica pela técnica é que o que reprovava, denunciando a estereotipação daquilo que fora inicialmente um achado criador”. Viria a confirmar isso no ilustre prefácio de Pauliceia desvairada:

Marinetti foi grande quando redescobriu o poder sugestivo, associativo, simbólico, universal, musical da palavra em liberdade. Aliás: velha como Adão. Marinetti errou: fez dela sistema. É apenas auxiliar poderosíssimo. Uso palavras em liberdade. Sinto que o meu copo é grande demais para mim, e inda bebo no copo dos outros (ANDRADE, 2013, p. 67).

O conflito evidente entre tensão formal e expressividade lírica marca a fala do poeta. Mário busca como artifício a ressignificação da palavra e na música como elemento essencial da linguagem poética, que daria lugar às “palavras em liberdade”. Palavras e versos livres, completa Paulo Henriques Britto (2014, p. 35), “não no sentido de não haver regras, e sim no de ter o poeta liberdade de criar suas próprias regras”, fugindo da sistematizações, da palavra esperada para penetrar nas camadas finas do som e sentido. O diálogo nas notas de leitura, refletido na obra publicada e inédita, bem como na epistolografia andradiana, faz emergir questões cruciais do leitor-escritor, tais como a oscilação das ideias, o juízo sobre a experiência estética do outro e a própria, as soluções poéticas possíveis. O estudo disciplinado que Mário faz da contribuição recebida dos parnasianos desautoriza a simplificação de certos historiadores afeitos a ignorar, nos modernistas, uma herança parnasiana. É, sem dúvida, importante para a compreensão dos caminhos de Mário de Andrade moderno e dos caminhos modernistas, o conhecimento de seu diálogo de crítico e de artista com os parnasianos, quando em sua leitura ele os examina com vagar e dimensiona uma estética que ainda vigora em seu tempo, mas que vai sendo por ele percebida como estética do passado. Passado também seu de poeta moderno.

REFERÊNCIAS

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ANDRADE, Mário de. Poesias completas, v. 1. Edição de texto apurado, anotada e acrescida de documentos por Tatiana Longo Figueiredo e Telê Ancona Lopez. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2013.

ANDRADE, Mário deObra Imatura. Rio de Janeiro: Agir, 2009.

ANDRADE, Mário de “Parnasianismo” In: O empalhador de passarinhos, de São Paulo: Martins, 1946.

ANDRADE, Mário de.“Artigos”. Klaxon nº8/ 9. São Paulo, dezembro de 1922- janeiro 1923, p. 29-30.

ANTONIO CANDIDO. “Poesias”. Revista do Instituto de Estudos Brasileiros – Nº 36. São Paulo: 1994.

BILAC, Olavo. Poesias. 4ª. ed. Rio de Janeiro/ São Paulo/ Belo Horizonte: Livraria Francisco Alves, 1909.

BRITO, Mário da Silva. História do modernismo brasileiro: antecedentes da Semana de Arte Moderna. Rio de Janeiro: Ed. Civilização Brasileira, 1971.

BRITTO, Paulo Henriques. “O natural e o artificial: algumas reflexões sobre o verso livre”. Elyra – Revista da rede internacional Lyracompoetics nº 3, 2014, p.27-41.

CARVALHO, Vicente de. Versos da mocidade. Porto: Livraria Chardon, 1912.

COELHO, Nelly Novaes. Mário de Andrade para a jovem geração. São Paulo: Saraiva, 1970.

CORREA, Raimundo. Poesias. Lisboa: Antonio Pereira, 1910.

FONTES, Martins. Arlequinada. Santos: Instituto D. Escholástica Rosa – B. Barros & Cia, 1922.

FONTES, Martins. Verão. Santos: Instituto D. Escholastica, 1917.

OLIVEIRA, Alberto de. Poesias: 1ª série. Rio de Janeiro: Garnier, 1912.

SÁ, Marina Damasceno de. O empalhador de passarinho, de Mário de Andrade: edição de texto fiel e anotado. Dissertação de mestrado. Orientadora: Profª Telê Ancona Lopez. São Paulo: Universidade de São Paulo, 2013.

SALLES, Cecília Almeida. Gesto inacabado: processo de criação artística. São Paulo: Annablume, 2004.

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ENTRELAÇANDO DOCUMENTOS: MOSTEIRO DE SÃO BENTO DA BAHIA NA REDE

Lívia Borges Souza Magalhães65 Alícia Duhá Lose66

A FILOLOGIA NO SÉCULO XXI

Conforme aponta Cano Aguilar (2000), várias civilizações antes dos gregos preocupavam-se com a preservação dos textos como, por exemplo, os textos sagrados e, por isso, já faziam uso de algumas práticas filológicas, mesmo antes do estabelecimento da ciência Filologia. O olhar para a história das práticas filológicas destaca que, constantemente, o trabalho nessa área primava por

[...] preservar dos estragos do tempo as obras que lhe constituem o patrimônio espiritual; salvá-las não somente do olvido, como também das alterações, mutilações e adições que o uso popular ou o desleixo dos copistas nelas introduzem necessariamente (AUERBACH, 1972, p. 11).

Então, em outras palavras, o filólogo tinha a missão de restituir a forma original do texto, ou melhor, construir o arquétipo dela. Tal arquétipo era oriundo do “apagamento” das modificações presentes nos escritos, que podem ser classificadas como exógenas ou endógenas: exógenas, quando provenientes de fatores externos ao texto, como: umidade, ataque de insetos e/ou ação humana; ou endógenas, quando oriundas do próprio processo de transmissão, como ficcionaliza José Saramago (1989) no livro História do Cerco de Lisboa; quando o revisor de textos, Raimundo Benvindo Silva, protagonista da obra, resolve, por vontade própria, inserir um Não em um fato da história do cerco, isso faz com que haja uma modificação significativa no dado apresentado pela historiografia oficial:

[...] com a mão firme segura a esferográfica e acrescenta uma palavra à página, uma palavra que o historiador não escreveu, que em nome da verdade histórica não poderia ter escrito nunca, a palavra Não, agora o que o livro passou a dizer é que os cruzados Não auxiliarão os portugueses a

65 PPGLinC-UFBA/ Mosteiro de São Bento da Bahia / FAPESB. E-mail: [email protected] 66 UFBA/Mosteiro de São Bento da Bahia / CPDOC. E-mail: [email protected]

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conquistar Lisboa, assim está escrito e portanto passou a ser verdade, ainda que diferente, o que chamamos falso prevaleceu sobre o que chamamos verdadeiro, tomou o seu lugar, alguém teria de vir contar a história nova, e como (SARAMAGO, 1996, p. 29).

Coube a Karl Lachmann, considerando qual seria o papel do filólogo, sistematizar o debate sobre edições críticas de textos bíblicos e construir uma metodologia capaz de inserir a Filologia no rol das ciências que lidam com o texto. Bérdier e Henri Quentim figuram, logo após a sistematização lachmaniana, propondo outros métodos para práticas filológicas, novidades que também ocasionam uma ampliação na compreensão sobre o que é a Filologia e, consequentemente, no estabelecimento de uma definição do termo (BORGES; SOUZA, 2012). Anos se passam e os teóricos da área não cansam de tentar eleger um conceito para essa ciência, tanto que Auerbarch (1972) a define como um conjunto de atividades diversas, que se ocupam da linguagem do homem. Tais atividades são: edição crítica de textos, Linguística, as pesquisas literárias e a explicação dos textos. A visão auerbachiana faz com que toda a prática que atrela língua, texto e cultura seja considerada como filológica. É, sem dúvida, um retorno à tradição de enxergar o filólogo como um erudito. Ainda tentou-se, “sob a influência das recomendações positivistas” (BORGES; SOUZA, 2012), separar a Filologia das suas práticas históricas, bem como o estabelecimento de disciplinas estanques dedicadas à língua e à literatura; caberia à Filologia apenas a crítica textual, um labor que se debruça sobre os textos para observar a produção da prática da cultura escrita, da transmissão e circulação social do texto. Essa nova configuração de Filologia fez com que houvesse um apagamento daquele desejo antigo de livrar os textos das modificações sofridas em prol da observação de todas as suas variantes. Vale ressaltar que, pelo caráter hermenêutico da Filologia, conforme aponta Telles (2000), por vezes, o texto solicita do filólogo um trabalho de apagamento das mudanças que ocorrem, ao longo da escritura, é o, caso, por exemplo, do Livro de Aforamentos do Mosteiro de São Bento da Bahia (1743-1874), um manuscrito monotestemunhal do acervo do Mosteiro de São Bento da Bahia em que estão assentados os primeiros contratos de aforamentos dos terrenos pertencentes ao referido mosteiro da cidade de Salvador. Tal “solicitação textual” foi proveniente do avançadíssimo estado de deterioração do suporte em que o conjunto de documentos se encontrava lavrado.

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Todos os caminhos percorridos pelas práticas filológicas fizeram com que houvesse a compreensão de que o filólogo trabalha com o texto e este é um produto cultural - cultura aqui sendo entendida como tudo o que é produzido e recebido pelo homem - dotado de significações desde a sua produção até a recepção e que, de hipótese alguma, pode ser entendido fora desse contexto. Apaga-se, assim, o estereótipo de que o crítico textual é um “mero preparador de textos a serem entregues depois, prontos para a interpretação” (PICCHIO, 1979. p. 211). Cabe ao pesquisador da área, na busca por um trabalho de excelência, recorrer constantemente a outras ciências, como, por exemplo, a Linguística, a Paleografia, a Diplomática, a História; ou seja, qualquer área do saber, que o auxilie na compreensão do material em estudo, fazendo com que, como diz Picchio (1979), o trabalho deixe de ser quantitativo e passe a qualitativo. E, dentro desse âmbito, enquadra-se também a utilização dos recursos tecnológicos capazes de facilitar a execução da ciência e possibilitar a criação de edições capazes de suprimir significativamente a demanda social por informação. Talvez esteja no processo de construção de edições digitais a solução para esse clamor do século XXI.

COLOCANDO O MOSTEIRO NA REDE

Em 1582, nove monges oriundos do Mosteiro de Sã Marinho de Tibães desembarcaram na cidade de Salvador, na Bahia, para iniciar o processo de construção daquele que seria o primeiro mosteiro das Américas, o Mosteiro de São Bento da Bahia. A vinda dos monges negros, como eram chamados os beneditinos, em função das suas vestes pretas, marca, também, a transplantação de uma série de tradições medievais, preservadas nos mosteiros da Europa, trazidas para a América e, consequentemente, para o Brasil. Pode-se exemplificar tal transplantação ao analisar a cultura de preservação da memória, proveniente da Regra de São Bento, patriarca dos beneditinos, que determinava que todos os monges, durante suas tarefas diárias, dedicassem algumas horas à prática de leitura. Se havia leitura, certamente, estaria sinalizada a necessidade de um local para armazenamento dos escritos; estabelece-se, então, a relação direta que há entre mosteiros, arquivos e bibliotecas. O mosteiro do novo mundo, também, foi agraciado com uma biblioteca que, após 432 anos, é composta por

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[...] Setor de Referência, onde ficam obras impressas do séc. XIX ao XXI, com boa parte dos títulos já catalogadas na base de dados informatizada e disponíveis para empréstimo e consulta; o Setor de Obras Raras (no Centro de Documentação e Pesquisa do Livro Raro Dr. Norberto Odebrecht), com obras impressas do séc. XVI ao XIX, às quais apenas pesquisadores previamente autorizados têm acesso, e o Arquivo do Mosteiro, onde ficam todas as obras mais preciosas, por sua raridade e antiguidade, todos os textos manuscritos, e os documentos relativos à ordem monástica e a sua sede, também de acesso restrito a pesquisadores autorizados. Tal Arquivo, que até pouco tempo se encontrava em um espaço interno, em ambiente de clausura, agora está sendo deslocado para uma sala especial no interior da Biblioteca, onde foram instalados arquivos deslizantes confeccionados sob medida para este fim. (ANDRADE, 2010)

Desde 2006, o Grupo de Pesquisa do Mosteiro de São Bento da Bahia passou a atuar fazendo investigações sobreas obras salvaguardadas pelos monges na biblioteca monástica baiana. Após oito anos de pesquisa e investigação, o Grupo conseguiu produzir algumas edições. Atualmente, pode-se elencar: a) a Edição da Coleção de Livros do Tombo, série de documentos considerados como Memória do Mundo pela UNESCO, onde estão registradas

[...] informações que alcançam um período que vai dos séculos XVI ao XVIII. Os textos constituem-se de traslados do original, autenticados, de acordo com os termos de abertura e de encerramento, por tabelião, afirmando-se que, depois de copiados, foram lidos e achados conforme os originais. (ANDRADE, 2010, p.18);

b) a Edição do Livro de Aforamentos

[...] um códice cujas páginas, escritas do ano de 1743 até 1874, guardam uma série de contratos de aforamentos de terras que haviam sido doadas ao Mosteiro de São Bento da Bahia, ou seja, trata-se de um documento notarial que remonta a configuração social, geográfica, histórica e linguística da Cidade de Salvador entre os séculos XVIII e XIX. (MAGALHÃES, 2010, p. 9);

c) a Edição das Cartas de Profissão dos Monges, um conjunto de documentos “tidos como símbolo de total entrega à vida religiosa do iniciante à vida monástica e testemunhos do compromisso e obediência que este prometeu a sua ordem e a sociedade em geral” (JESUS, 2014, p. 23). Foi possível pontuar, assim, o momento em que se inicia a vida monástica, funcionando, então, esse conjunto de documentos como registro de certidão de nascimento dos monges para a vida religiosa;

d) a Edição dos Sermões de Frei Domingos da Transfiguração Machado, um corpus que

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[...] se constitui de sermões manuscritos entre o final do séc. XIX e início do XX, pelo monge responsável pela restauração da Congregação Beneditina Brasileira, Dom Frei Domingos da Transfiguração Machado, um baiano da Ilha de Itaparica. Trata-se, na verdade, de alguns rascunhos e esboços de pregações a serem proferidas na homilia de determinadas datas litúrgicas, sendo, portanto, um material rico em supressões, acréscimos, rasuras e deslocamentos – uma marca das diferentes fases de gestação dos textos. Trata-se ainda de sermões, gênero textual caracterizado pelo forte apelo argumentativo. (NUNES, 2012, p. 14);

e) a Edição do Dietário, que relata “brevemente, a vida e a morte de cada um dos monges que viveu e morreu nessa instituição religiosa [Mosteiro de São Bento da Bahia], sendo organizado conforme ordem cronológica de falecimento dos monges” (LOSE, et al., 2009, p.13);

j) a Edição do Livro de Crônicas, “um manuscrito cunhado de 1914 até 1934 onde estão registradas, como o nome sinaliza, as crônicas do mosteiro baiano” (MAGALHÃES, 2013, p. 21).

Entretanto, apesar da coadunação do processo de fazer pesquisa e edição, cada trabalho realizado com um manuscrito encerra em si a sua temática, os seus critérios e as suas peculiaridades; ou seja, são trabalhos produzidos pelos pesquisadores em momentos específicos. Mediante tal fato, faz-se o questionamento que norteará toda a produção desse trabalho, caracterizado como uma pesquisa do nível de doutoramento: como organizar uma edição que una todas as edições já elaboradas pelo Grupo de Pesquisa do Mosteiro de São Bento da Bahia, fazendo com que elas se tornem complementares em prol de um resgate mais minucioso da história/memória do já referido mosteiro? A resposta estaria na edição digital.

A edição digital

O mundo atual vive em uma realidade que, desde os anos 50, se intitula de Era da informação.

Junqueira (2012) pontua que a expressão "era da informação" foi usada, primordialmente por Peter Drucker em um livro que relatava a postura dos soldados americanos após o retorno da II Guerra Mundial: todos eles queriam ter acesso imediato e garantido às universidades. Entretanto, coube ao sociólogo Dinel Bell a demarcação do surgimento dessa nova era. Para este, tudo começou em 1956 quando reparou um aumento significativo de profissionais prestadores de serviço e uma diminuição de operários, seria, então, mais uma revolução na indústria. (MAGALHÃES, 2013). 202

Ela se configura, basicamente, por uma necessidade constante de obtenção de informação de maneira prática, rápida e objetiva. O computador e a sua rede mundial, conhecida como Internet, alavancaram consideravelmente essa configuração da sociedade, uma vez que eles possibilitaram um aumento significativo na velocidade de troca de notícias e informações. Dentro desse âmbito, configurou-se uma forma de edição que corrobora o proposto por Picchio (1979), quando afirma que o filólogo precisa fazer jus ao seu tempo e, para isso, deve utilizar todos os instrumentos possíveis em prol de uma edição de melhor qualidade. Fala-se, aqui, da edição digital, definida por Lose (2004, p. 13, grifo da autora) como:

A edição digital, e não edição meramente em formato digital, mostra-se um tipo completamente adequado à Filologia que precisa não somente trabalhar o texto, mas também o paratexto, as informações que contextualizam e dão sentido ao documento editado. Nas edições anteriores tais informações vinham como arredores, mas na edição digital esse arcabouço informacional está totalmente integrado ao texto transcrito, criando assim uma sintonia perfeita entre a transcrição e todas as informações que foram necessárias para que o filólogo adentrasse esse texto, e, consequentemente, desempenhasse sua função (de trazer o texto fidedigno) com mais confiança e clareza. O entorno do texto é sempre fundamental para uma boa edição e a edição digital possibilita esse diálogo de forma natural e soberana. A edição digital mostra-se completa, pois o editor pode escolher os critérios de qualquer tipo de transcrição já existente e fazer dialogar isso através de hiperlinks com seu paratexto, além de desdobramento de abreviaturas, movimentos de correção do autor, em caso de texto moderno, entre outras possibilidades. Além disso, tornar o texto digital é possibilitar sua divulgação de forma mais fácil, acessível e abrangente.

Essa possibilidade de escolha de critérios, apresentada pela edição digital, poderá ser a solução para uma construção, que reúna os trabalhos de edição do Grupo de Pesquisa do Mosteiro de São Bento da Bahia; uma vez que se trata de trabalhos estanques, somente com a reunião dessas edições é que será possível estabelecer os seus critérios. Vale destacar, também, que esse conceito de 2011 pode ser ampliado, visto que, Lose (2011) situa a utilização dos hiperlinks como estrutura para unir o texto ao paratexto, um termo cunhado por Gérard Genette, em 1989, para designar todo o material que acompanha um texto, com a finalidade de auxiliar o processo de leitura e compreensão do mesmo. Dessa forma, pressupõe-se um texto central e outros, marginais, que trabalham em função do centro. A proposta de edição ora apresentada não vislumbra essa centralidade. Todos os textos têm sua importância e relevância. Segue-se, então, à assertiva de Chartier (2009, p. 106) afirma que “[...] o livro eletrônico através de hipertexto e hiperleitura transforma as relações 203

possíveis entre as imagens, os sons e os textos associados de maneira não linear. A técnica digital torna os textos móveis, maleáveis, abertos”. Além disso, o foco elencado para este trabalho é o Mosteiro de São Bento da Bahia e todos os manuscritos editados serão unidos com o objetivo de se elaborar um registro histórico/memorialístico da instituição; assim, pode-se tornar essas informações acessíveis ao público, com o intuito de que tal trabalho venha a subsidiar pesquisas posteriores, nas áreas de Linguística, História, Teologia, Antropologia, enfim, das mais distintas áreas científicas.

A delimitação do corpus

Sabe-se, no entanto, que produzir um registro único, que reúna 432 anos, não é um trabalho rápido e, por isso, firmou-se a necessidade de se fazer um recorte para estruturara pesquisa. Buscaram-se, então, as indicações do teórico Le Goff (2003), que apresenta a escrita em um processo evolutivo, que assumiu um caráter mais mnemônico e, por isso, passou a ser um auxiliar da memória. Esta seria responsável pela remissão a um conjunto de funções psíquicas, que levam os seres humanos a atualizarem impressões ou informações passadas, ou o que eles representam como passado. Assim, o acesso ao passado é possível graças ao uso da linguagem. O autor, ainda, salienta que o ato mnemônico fundamental é o "comportamento narrativo", que se caracteriza, principalmente, pela sua função social. Encontrou-se em mais um manuscrito do acervo do Mosteiro de São Bento da Bahia, Livro de Crônicas (1920-1934) esse caráter narrativo apontado por Le Goff (2003), pois, tal manuscrito preserva narrativas organizadas cronologicamente sobre o cotidiano da instituição beneditina, constituindo-se como o próprio limite cronológico para o recorte da pesquisa a ser desenvolvida. O tempo é um elemento indissociável nessas crônicas. Cada dia, mês e ano, bem como os fatos ocorridos são registrados, o que com que esse gênero se configure como uma forma de preservação do contexto político, econômico, social e histórico de um determinado espaço, em uma determinada época. A pesquisa em questão abarca a vida no Mosteiro de São Bento da Bahia dos anos de 1920 até 1934 e, claro, registra: as pessoas que viviam nessa época; a cidade; o estado e o país em que o mosteiro está inserido e aos quais ele se reporta por questões da própria estrutura religiosa; além dos fatos que movimentaram a sociedade da época, como, por exemplo, a chegada da luz elétrica nas residências, ou o primeiro voo de avião sobre a cidade de Salvador

204

O documento de base

O Livro de Crônicas do Mosteiro de São Bento da Bahia, um manuscrito cunhado de 1914 até 193467, em que estão registradas, como o nome sinaliza, as crônicas do mosteiro baiano; é o 398º livro do Arquivo do referido mosteiro, de acordo com a notação original da instituição, colada na folha de guarda de todos os códices arquivados no Arquivo Arquiabacial.

Figura 1 – Capa do Livro de Crônicas do Mosteiro de São Bento da Bahia – 1920/1934

O papel é pautado, de baixa gramatura e levemente encerado. Todos os fólios apresentam numeração impressa apenas no recto, na extremidade superior direita, em algarismos arábicos, seguindo a ordem crescente, de 1 a 200. Essa numeração se inicia no fólio 1 recto, onde se encontra também o "Termo de Abertura", e acaba no fólio 200, em cujo verso está o "Termo de Encerramento". A numeração omite, porém, o número 21, atribuindo, no seu lugar, a marcação "Nº22"; o livro tem, portanto, 199 fólios. Os textos presentes no manuscrito apresentam uma ordem cronológica, mas não sequencial, posto que, algumas datas terminam ficando sem registro algum. Há de se notar, porém, que todos os fatos considerados importantes para a ordem são minimamente descritos, o que culmina no perfeito

67Apesar dessa sinalização, faz-se necessário ressaltar que o termo de abertura do livro e o primeiro registro nele presente são de 1909. 205

enquadramento do material lavrado com uma literária descrição de crônica construída pelo segundo cronista:

Janeiro 1920

Desde a origem da nossa Ordem ha em todos mosteiros monjes encarregados de apontar os acontecimentos mais importantes segundo a ordem do tempo. Estas narrações historicas chamam-se chronicas e o conjunto dellas forma os annaes em que descrevem os successos anno por anno. ____ Nada mais justo e razoavel do que esta instituição propria da Ordem benedictina, a qual segundo a vontade de Deus o ideal e o modelo a familia christã, ha de conservar este piedoso costume que se nota nas familias do mundo. ______Os paes e sobretudo as mães apontam os dias, em que os seus filhos nasceram ou fizeram a sua primeira communhão o dia em que se casaram elles mesmo, ou um dos seus filhos, não esquecendo-se de marcar a data de acontecimentos tristes, que são a morte de um caro membro da familia. ______Si este costume louvavel se acha no mundo, não pode faltar na familia monastica. Cabe então ao chronista, em nome e por ordem do Abbade que é o pae da familia, a tarefa nobre e importante de narrar os factos annuaes do mosteiro, e transmittir as chornicas respectivas aos mosteiros da mesma Congregação, afim de chegarem ao conhecimento de todos os trabalhos intellectuaes e moraes, as vicessitudes, emfim o progresso espiritual e temporal de cada mosteiro, de estreitarem-se os laços da caridade fraterna e de conser- varem-se piedosamente as tradições da propria Congregação. Penetrado deste espirito de familia, confiado no auxilio de Deus, garantido pela benção do R(everendissi)mo S(enho)r D(om) Abbade esforçar-me-hei por desempenhar dig- namente esta importante tarefa de chronista para edifi- cação e interesse dos queridos irmãos est in omnibus glorificitica Deus. (CRONICAS, 1920, p. 19).

QUAL A IMPORTÂNCIA DO RESGATE DA HISTÓRIA BENEDITINA?

Os monges, ao chegarem à Bahia, passaram a fazer parte da vida da população da época. Conforme aponta Rego (1982), as doações e contribuições não paravam de chegar para auxiliar a firmação do mosteiro nas terras soteropolitanas, consolidando a união entre os beneditinos e os soteropolitanos, aliás, entre os beneditinos e os brasileiros. 206

Tal união existe até hoje e foi através dela que se conseguiu suplantar a invasão holandesa ocorrida em 1624, quando o mosteiro foi transformado em um quartel; conseguiu- se sobreviver às ordens do Marquês de Pombal de extinguir a existência de ordens religiosas no Brasil; conseguiu-se manter a existência da instituição quando o governador J.J. Seabra determinou a demolição da mesma para dar lugar à modernidade; conseguiu-se construir um elo nos anos de chumbo da ditadura militar, fazendo com que o mosteiro figurasse como um esconderijo para pessoas procuradas pelos ditadores (SENNA, 2011). O Livro de Crônicas do Mosteiro de São Bento da Bahia¸ (1920-1934) documento de base do presente estudo, apresenta registrado o cotidiano da abadia baiana, a primeira das Américas, e, em paralelo, vários fatos de conhecimento da historiografia oficial, como, por exemplo: a presença dos primeiros aviadores que atravessaram o Atlântico Sul em Salvador; ou, ainda, as festas de comemoração do centenário de independência da Bahia. Contudo, ao mesmo tempo, figuram registros peculiares do olhar de quem escrevia (o monge cronista) e de onde escrevia (a abadia baiana). Exatamente por esse teor é que esse documento testemunhal de assentamento era lavrado depois da observação dos fatos ocorridos, merecendo ser resgatado das estantes do Arquivo para o conhecimento da comunidade, nos dias de hoje. Em suma, a história do mosteiro beneditino baiano mescla-se com a história de Salvador, da Bahia e, consequentemente, do Brasil. Por isso, um trabalho visando um resgate da história/memória da instituição termina ganhando um tom bastante significativo. Ademais, ele, certamente, contribuirá para pesquisas futuras sobre a instituição propriamente dita e, também, sobre os mais diversos aspectos da sociedade baiana dos anos de 1920 até 1934, período abordado no Livro de Crônicas do Mosteiro de São Bento da Bahia, que servirá de base para a edição. Para a realização desse trabalho, estão sendo consideradas as seguintes etapas metodológicas: a) levantamento de referências existentes sobre a Filologia Textual, a História do Mosteiro de São Bento da Bahia, a História da Bahia, webdesign e webdevelopment, em virtude do conteúdo dos textos que serão trabalhados e da proposta elencada para se trabalhar com eles; b) revisão das edições do Livro de Crônicas, Dietário, Aforamentos, da Coleção de Livros do Tombo e das Cartas de Profissão elaboradas pelo Grupo de Pesquisa do Mosteiro de São Bento da Bahia; 207

c) produção de índices onomásticos e toponímicos dos manuscritos supracitados, com base nos elementos apresentados no Livro de Crônicas do Mosteiro de 1914-1934 para, através desses índices, se construir uma relação entre os documentos. Considere-se que tais personagens e espaços são elementos da narrativa em questão, constituindo texto em que se enquadra o Livro de Crônicas do Mosteiro de São Bento da Bahia. Também, há referências à construção de um registro historiográfico, já que, a História se faz com pessoas e/em lugares executando e/ou vivenciando fatos.

E, por fim (ou por início), caminha-se na preparação de uma edição dentro dos clamores comuns à humanidade do século XXI sobre o valor histórico e cultural do primeiro Mosteiro das Américas. Logo, esta é a forma do Grupo de Pesquisa do Mosteiro de São Bento da Bahia contribuir com o Manifesto das Humanidades digitais, que visa “[...]o progresso do conhecimento, o reforço da qualidade da pesquisa em nossas disciplinas e o enriquecimento do saber e do patrimônio coletivo” (DACOS, 2011, online).

REFERÊNCIAS

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208

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NUNES, Marília Andrade. Edição dos Sermões de Frei Domingos da Transfiguração Machado: do rascunho ao hipertexto. 2012. 342 f. Dissertação (Mestrado em Letras) – Programa de Pós-Graduação em Letras e Linguística, Universidade Federal da Bahia, 2013. DVD.

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209

GÊNESE, SÍMBOLOS E CORES: UM ESTUDO SOBRE O PROCESSO DE CRIAÇÃO DA CAPA DO LIVRO PAREMIOLOGIA NORDESTINA, DE FONTES IBIAPINA

Lueldo Teixeira Bezerra68 Márcia Edlene Mauriz Lima69

INTRODUÇÃO

O presente artigo teve por objetivo descrever o processo de criação da capa do livro Paremiologia Nordestina, do escritor piauiense João Nonon de Moura Fontes Ibiapina70 que, que em sua primeira edição, contou com a participação do escritor como coautor na produção da referida capa. Para analisar o processo de criação da capa, foi necessário buscar o movimento genético pela mão do escritor, ao longo do processo criativo, tendo como aporte teórico o suporte da crítica genética. Para o desenvolvimento da análise, trabalhou-se com o levantamento de hipóteses, visto que o geneticista faz uso dos manuscritos do autor e da memória testemunhal para corroborar as ideias que lhe ocorrem ao analisar os documentos de processo que tem em mãos. Partindo dessa postura de análise, a produção de Fontes Ibiapina foi compreendida ao se fazer uma comparação crítica entre as litogravuras e a capa investigada, buscando-se com isso uma compreensão maior do texto em questão.

LITOGRAVURA: UMA PRODUÇÃO ARTESANAL

Para entender o processo de criação da capa do livro Paremiologia Nordestina, de Fontes Ibiapina, foi necessário compreender o funcionamento da arte litográfica, uma vez que

68Graduado em Letras-Português pela Universidade Estadual do Piauí - UESPI. Especialista em Linguística e Literatura pelo Instituto de Ensino Superior Múltiplo – IESM. Pesquisador do Núcleo de Estudos em Memória e Acervos – NEMA. 69Doutora em Letras pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul – PUCRS. Professora da Universidade Estadual do Piauí. Coordenadora do Núcleo de Estudos em Memória e Acervos – NEMA. 70Nascido na zona rural de Picos, município do Estado do Piauí, em "Lagoa Grande", aos 14 de junho de 1921, filho de Pedro de Moura Ibiapina e Raimunda Fontes de Moura. Fontes Ibiapina deu início a seus estudos em sua terra natal, dando continuidade em Teresina, bacharelando-se em Direito, no ano de 1954, pela velha Faculdade da Praça Demóstenes Avelino. Como estudante dedicou-se por um determinado tempo ao jornalismo. Concluiu o seu curso de Direito, logo em seguida inicia sua carreira na magistratura, atuando como juiz em várias comarcas do Piauí, sendo a última na cidade de Parnaíba, onde atuou como crítico publicando semanalmente artigos nos jornais locais. Como um bom intelectual, frequentava a camada intelectual da cidade, e como tal participou da fundação da Academia Parnaibana de Letras tornando-se um dos seus presidentes. Faleceu em 10 de abril de 1986. 210

a mesma assume o papel de manuscrito, ou seja, a prova que atesta os rastros deixados pelo escritor durante a elaboração da obra acabada. A litografia71 ou clichê é uma técnica que consiste na impressão de uma imagem desenhada sobre uma base, em geral, de um calcário especial denominado "pedra litográfica" ou “ardósia”. Tal imagem recebe esse nome quando é esculpida na pedra. Mas ela pode ainda ser gravada em uma placa de metal, o zinco. Fazendo uso dessa técnica, o artesão recorre a um pedaço de madeira para servir de base da litogravura. Essa base tem a mesma altura de um “tipo”, peça tipográfica que corresponde a uma imagem ou letra no processo de impressão. Nela é colada a ardósia ou placa de metal, que facilita a reprodução do desenho sobre o papel. Em seguida, utiliza-se tinta para revestir a parte em alto-relevo do desenho. Na fase final, faz-se uso de um tipo de prensa para revelar a imagem sobre o papel, ou em outro suporte. Um detalhe interessante é que o desenho sai ao contrário do que foi gravado sobre a litogravura, o que exige um maior trabalho do artesão. Essa pedra é cortada em blocos finos, formando placas de espessuras mínimas, normalmente de 0,1 mm, que devem ficar no comprimento desejado pelo artista para a reprodução da imagem. Outra técnica utilizada na litografia é o desenho feito a lápis ou pena sobre o metal, local em que se passa uma camada de gordura sobre a base escolhida. Em seguida, passa-se água sobre toda a parte do desenho, depois, uma camada de tinta é aplicada sobre a placa. A parte a ser reproduzida será apenas aquela em que foi aplicada a gordura. Em seguida, a litogravura é colocada sob uma prensa, que comprimirá o desenho sobre o papel, reproduzindo a imagem desejada. O estado que mais produz um dos minérios utilizados nesta técnica, a ardósia, é o Estado de Minas Gerais. Era para este Estado que Fontes Ibiapina costumava enviar seus contos para concorrer a publicações nas revistas Alterosa e Cigarra, ambas de Minas Gerais, participando do concurso literário Minas Brasil. Segundo Aquino & Nascimento (2011), o escritor foi premiado, durante a década de 50, por nove vezes, com os contos Rebentão, Trinta e dois, Tropeiros, Onça da mão torta, Aleixo, Memórias de um canário, Tangerinos, dentre outros. Algumas dessas litogravuras do escritor estão terminadas, outras inacabadas. Os desenhos encontrados nos textos de Fontes Ibiapina são plantas, animais, letras, seres

71 FERREIRA, Aurélio Buarque de. Mini Aurélio: o dicionário da língua portuguesa. 7. ed. Curitiba: Editora Positiva, 2008. p. 519. 211

humanos, casas e objetos peculiares do sertão piauiense, confeccionados entre o uso da pedra litográfica e o da placa de metal. Diferente de outros escritores, Fontes Ibiapina fazia questão de acompanhar o design gráfico das capas, se portando, assim, como coautor. A capa estudada nesta pesquisa foi, portanto, produzida em um período no qual o Piauí não possuía editoras particulares, contando apenas com a Companhia Editora do Piauí – COMEPI, durante as décadas de 70 e 80. Logo, a capa analisada foi criada por meio da técnica litográfica. Assim, neste estudo, a litogravura torna-se um documento de processo autoral, pois, segundo Salles (2008, p. 38), “os documentos de processo são [...] registros materiais do processo criador. São retratos temporais de uma gênese que agem como índices do percurso criativo”. Portanto, o estudo do processo de criação da capa de Paremiologia Nordestina, de Fontes Ibiapina, foi realizado por meio de comparações entre as litogravuras e a capa, visando encontrar alterações feitas pela mão do autor na sua construção, bem como, rasuras de adição, supressão, deslocamento ou de substituição. Vale ressaltar que a obra Paremiologia Nordestina é a única que possui os documentos de processo da capa e contracapa sob a curadoria do Núcleo de Estudos em Memória e Acervos. Estes documentos foram produzidos com a técnica litográfica. Portanto, analisou-se a capa e a contracapa da obra em apreço.

O PROCESSO DE CRIAÇÃO DA CAPA DO LIVRO PAREMIOLOGIA NORDESTINA

A obra de arte resulta de um trabalho marcado por transformações crescentes no que se refere à sua produção, sendo que o próprio artista é o gerador dessas transformações. É essa movimentação provocada pelo artista, que gerará documentos que serão do interesse da Crítica Genética, tendo como escopo tais documentos, que se comportam como provas do percurso trilhado pelo artista.

Segundo Grésillon (2007, p. 51),

[...] o manuscrito opõe uma escrita ‘em estado selvagem’, em que cada página possui uma forma e sua semiótica própria: liberdade de gestão de espaço gráfico, variabilidade da orientação, do comprimento e dos números de linhas, riscos e acréscimos cujo traçado trai, com muita frequência, um estado particular de pulsões e de afetos [...].

212

É com toda essa complexidade, que o manuscrito assume a função de objeto de estudo da Crítica Genética, uma vez que ele vai testemunhar o processo de criação da obra de arte. Assim, os documentos de processo terão dois papéis: primeiro é o de armazenamento, que consiste na aquisição de informações que funcionarão como auxílio para a criação da obra de arte; o segundo, o de experimentação, que nada mais é que o momento de concretização, de produção da obra de arte. É com esse papel, que a obra vai tomando forma. Segundo Salles (2008, p. 114),

O desenho de criação, na especificidade das artes visuais, age como um campo de investigação, ou seja, são registros da experimentação: hipóteses visuais são levantadas e vão sendo testadas e deixam transparecer a natureza indutiva da criação. Possibilidades de obras são testadas em esboços que são parte de um pensamento visual.

Assim sendo, o olhar do geneticista está direcionado para a busca de explicações sobre a criação, que somente os documentos de processo podem oferecer. Lima (2009, p. 22), em seus estudos sobre a função dos documentos de processo, afirma que eles “[...] atestam os vários momentos da criação artística, traduzindo as marcas da intimidade do fazer literário”. E são esses momentos que esta pesquisa se propôs a descrever buscando compreender a produção artística da obra Paremiologia Nordestina. Para compreender a lógica do sistema de produção da capa da obra Paremiologia Nordestina e entender suas possíveis explicações, seguiu-se um ritual de investigação dos documentos de processo. Esse ritual consistiu em descrevê-los, classificá-los, perceber sua periodicidade e, por fim, as relações que são estabelecidas entre esses documentos e a obra entregue ao público, ou seja, a capa pronta. Fez-se, assim, um acompanhamento crítico- interpretativo dos documentos de processo. Para Grésillon (2007, p. 19), corroborando com os estudos da crítica de processo, afirma que

Esse novo olhar implica uma escolha, no mínimo preferências: as da produção sobre o produto, da escritura sobre o escrito, da textualização sobre o texto, do múltiplo sobre o único, do possível sobre o finito, do virtual sobre o nevarietur, do dinâmico sobre o estático, da operação sobre o opus, da gênese sobre a estrutura, da enunciação sobre o enunciado, da força da escrita sobre a forma do impresso (Grifos do autor).

A presente pesquisa teve uma finalidade analisar a criação artística da referida obra em profundidade. Tal interesse levou-nos a buscar a história da criação de Fontes Ibiapina. De modo que para a construção da capa de Paremiologia Nordestina, o escritor executou o 213

seguinte processo criador: esculpiu uma peça e, a partir dela, surgiu a capa. Acompanhando essa trajetória, apresenta-se um documento de processo imagético essencial, que é a litogravura da capa de Paremiologia Nordestina:

Figura 1 - Litogravura da capa do livro Paremiologia, de Fontes Ibiapina

Fonte: Acervo do escritor

O desenho da litogravura tem por medida 15,4 cm de comprimento, 13,1 cm de largura e 2 cm de espessura. Quanto às letras utilizadas, na litogravura em análise, o nome Paremiologia foi gravado de forma inversa, da direita para a esquerda, maneira que usualmente se costuma criar uma litogravura. Paremiologia foi registrado com letras maiúsculas de 2 cm, tendo em alto-relevo os traços que contornam as laterais das letras formando o referido nome. Para a reprodução da capa foi utilizada uma tinta de cor azul, ainda encontrada nas litogravuras dos dias de hoje. Os ditos que Fontes Ibiapina utilizou em sua obra, tais como [a besteira do sabido é pensar que todo mundo é besta], [gente besta é cavalo do cão], entre outros, formam um espiral72. A fonte da letra utilizada na gravação desses ditos é maiúscula, tendo espaçamentos

72Círculo de ditos, adágios e máximas localizado no centro da capa da obra Paremiologia Nordestina, de Fontes Ibiapina. 214

diferentes entre si por se tratar de um trabalho manual e de tamanhos diversificados. O espiral que é formado por esses ditos tem por medida 13 cm de cumprimento por 13 cm de largura. O escritor utilizou uma estrela no lugar do ponto final para separar um dito do outro. O zinco utilizado para gravar a imagem tem a cor grafite e recebe tinta azul para realçar as letras no ato de impressão da capa. Ainda hoje, há, na litogravura, vestígios da tinta utilizada no período da impressão. A referida litogravura pertence à fase pré-editorial73. Na visão de De Biasi (2010), nesse momento, a capa começa a se aproximar de sua conclusão, pois o penúltimo experimento já foi realizado; ou seja, o jogo de cores. Assim sendo, a proposta de confecção da capa de Paremiologia Nordestina possui texto, imagem e cor. Fontes Ibiapina, ao dar início à criação da sua obra, entra em um processo de reflexão, utilizando seu imaginário, como também, fazendo conexões entre os fatos externos para só assim partir para a criação artística. Corroborando com Salles (2008, p. 33),

O artista cria um sistema a partir de determinadas características que contribuindo em um processo de atribuições, transformações e ajustes; que vai ganhando complexidade à medida que novas relações vão sendo estabelecidas.

O processo de criação na arte acontece de diferentes formas, dependendo do suporte que a comportará. Assim, constituem--se as complexidades apontadas por Salles durante a produção da obra de arte. Analisando a capa de Paremiologia Nordestina, é possível atestar alguns acréscimos feitos por Fontes Ibiapina, na arte final. Vejamos na imagem a seguir:

73 Segundo De Biasi (2010), a fase pré-redacional corresponde ao momento em que o manuscrito sai da mão do copista e retorna a mão do escritor que dá sua avaliação final e libera o manuscrito para a editora. 215

Figura 2 – Capa da primeira edição do livro Paremiologia Nordestina

Fonte: Almeida, Lanna Caroline Silva de

A arte gráfica de Paremiologia Nordestina é de Aristóteles Ibiapina, filho de Fontes Ibiapina. A obra foi lançada em 1975 e contém 189 páginas. Trata-se de ditos populares do Piauí, mostrando o modo de falar piauiense enquanto identidade cultural do estado. Esses ditos, além de serem usados no texto, foram talhados na litogravura, formando um espiral. A capa é de papel cartão supremo 250 e seu miolo de papel soft 80. Mede 21,8 cm de comprimento, 14,3 cm de largura, com brochura de 0,9 cm de largura. As fontes das letras são distintas. O nome Paremiologia continua em letras maiúsculas, com traços grossos, tendo a cor azul nas laterais das letras. O nome é centralizado na capa com letras de 2 cm de comprimento. O espiral é formado por letras maiúsculas, que possuem espaçamentos diferentes entre si. Ao todo, o espiral continua no tamanho de 13 cm de comprimento por 13 cm de largura. Fontes Ibiapina faz rasuras de acréscimos no percurso entre a litogravura e a capa pronta. O escritor acrescenta à capa dois nomes, que não participaram do projeto da litogravura; os nomes são [Fontes Ibiapina] e [Nordestina]. Com duas fontes de letras distintas, ambas pertencentes à família Zap, fonte de letra utilizada no programa Offset, o 216

nome Fontes Ibiapina se encontra na parte superior da capa, recuado à esquerda, feito em um tamanho menor que o adjetivo Nordestina, que pertence ao título da obra. O autor opta pela ausência de cores fortes, escolhe um tom branco no fundo da capa e azul nas letras. O formato da capa, pensado por Fontes Ibiapina, chama a atenção do leitor quando se depara com os ditos populares, que formam um espiral na capa. Para a gravação dos nomes acrescentados na capa, Fontes Ibiapina e Nordestina, o autor busca um recurso gráfico mais moderno que a arte litográfica, o offset; trata-se de um recurso planográfico, que consiste em repulsão de água, gordura e tinta sobre o papel, formando uma solução gordurosa, que oferece uma impressão mais sofisticada. As letras dos nomes acrescentados possuem o mesmo espaçamento entre si, apresentando apenas um espaçamento maior para separar o nome Fontes de Ibiapina. Abaixo do nome Paremiologia, Fontes Ibiapina acrescenta o adjetivo [Nordestina] com letras maiúsculas. Todas possuem o mesmo tamanho, 0,05 cm de comprimento, tendo um tamanho menor e com traços distintos do nome Paremiologia. O adjetivo se encontra na parte inferior da capa, recuado à direita. Na capa pronta, Fontes Ibiapina mantém o mesmo tamanho das letras e do espiral feitos na litogravura. Os acréscimos na capa pelo escritor mostram que, depois da litogravura, ele altera o projeto da capa, juntando a técnica da litogravura, ao recurso offset para a conclusão editorial da capa da obra. Assim, na capa da obra Paremiologia Nordestina, é perceptível a consonância entre os símbolos. Pode-se observar um espiral com os ditos que o escritor utilizou dentro da obra, ao construir seu texto. Na contracapa, o espaço esboçado por Fontes é constituído por um cacto, uma ave e um elevado de terra. As cores escolhidas, o branco e o azul, na tonalidade clara, representam o espaço piauiense em seu plano. Essa consonância é mais perceptível na obra acabada, quando a mesma ganha cores e formatos diversos.

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A litogravura da contracapa de Paremiologia Nordestina

Figura 3 – Litogravura da contracapa do livro Paremiologia Nordestina, de Fontes Ibiapina

Fonte: Acervo do escritor

Prosseguindo com a análise da construção da capa da obra Paremiologia Nordestina, a figura seguinte mostra a litogravura, que constitui a contracapa da obra:

Figura 4 – Contracapa do livro Paremiologia Nordestina, de Fontes Ibiapina

Fonte: Almeida, Lanna Caroline Silva de 218

A litogravura, que constitui a capa do livro em análise, mede 23,9 cm de comprimento, 15,6 cm de largura, 2,1 cm de espessura, feita em madeira e metal. A base é de madeira prensada, composta por 4 placas que juntas constituem um bloco de 23,9 cm de comprimento, 15,6 de largura e 2 cm de espessura. A placa em que se encontra colado o desenho do cacto tem uma espessura diferente, pois está danificada, com parte dela escurecida. Esse bloco de madeira recebe o nome de compensado. A imagem formada em uma placa de metal é constituída por três desenhos unificados em alto-relevo, na mesma placa metálica: uma elevação de terra, um cacto e um pássaro. O que delimita os desenhos é o alto-relevo que os dimensiona sobre a placa. A imagem mede 22,4 cm de comprimento, tendo sua base mais larga, contendo 5 cm de comprimento e 15,4 cm de largura. Ainda há sobre o desenho um resíduo de tinta azul usada na projeção da imagem, no momento da revelação do projeto considerado final. Essa litogravura também pertence à fase genética pré-editorial. Nela, Fontes Ibiapina busca finalizar o processo de criação da capa de sua obra. A figura abaixo representa a contracapa em sua versão tida como final, pronta e acabada: Na contracapa entregue ao público, Fontes Ibiapina não altera as dimensões dos desenhos gravados sobre ela. Na imagem acima, pode-se perceber como o escritor havia planejado a contracapa, apenas com desenhos sem muitos detalhes. O escritor mantém, na contracapa, as mesmas cores usadas na capa frontal, mas a diferença é que o autor optou apenas por intensificar a cor azul no design da contracapa, dando um contraste maior sobre o fundo branco. Assim, o branco assume mais uma função: além de servir como pano de fundo, passa a representar o céu daquela paisagem; a imagem que, antes, na litogravura, só mostrava uma elevação de terra, um cacto e um pássaro, quando impressa sobre o papel, representa mais um elemento, o céu. O desenho do pássaro fica separado do cacto, que continua perto de uma elevação de terra exposta na capa. Na litogravura, percebe-se que o desenho era unificado em toda a sua placa metálica. Já na capa considerada como pronta, o pássaro aparece separado dos outros elementos da cena, dando uma impressão de vôo livre. Pode-se perceber que Paremiologia Nordestina é a única obra de Fontes Ibiapina que tem sua capa e contracapa criadas por meio da litografia. A última fase pela qual a litogravura da capa de Paremiologia Nordestina passa no seu processo de criação, consiste no trabalho que compete à editora, sob as orientações do escritor. A obra é reproduzida e chega a seu ponto considerado como final quando se tem a 219

primeira edição da capa. De Biasi (2010) denomina esse momento de fase editorial. Após essa fase, a obra chega ao público, quando se inicia o processo de recepção do seu texto.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Durante o estudo sobre o processo de construção da capa de Paremiologia Nordestina, de Fontes Ibiapina, foi possível compreender o funcionamento da arte litográfica em sua produção. Pode-se entender, também, que se trata de uma arte rara e em desuso no estado do Piauí, porém, de suma importância para o entendimento do processo de editoração de livros ali publicados, uma vez que a litogravura se alia ao processo tipográfico. A capa analisada foi produzida no estado do Piauí por Aristóteles Ibiapina e seu pai, Fontes Ibiapina. Com traços bem elaborados, a referida capa mostra o regionalismo pregado pelo escritor e que se reflete sobre sua arte gráfica. Nela, há a representação de aspectos típicos do sertão piauiense, como: a fauna, a flora, a linguagem daquela gente e o próprio sertão. A construção da capa de Paremiologia Nordestina se deu com a contribuição de dois recursos: o litográfico e o offset. Com um trabalho a priori totalmente manual, foi produzida por meio da técnica litográfica e recebeu como acabamento uma outra menos manual, o offset, que permite recursos mais estéticos quanto ao design das letras, que formaram o título da obra e o nome do autor. A capa analisada pertence à única obra do escritor, que tem sua capa e contracapa criadas pela técnica litográfica. Nela, os acréscimos feitos por Fontes Ibiapina, em offset, aparecem na fase pré-editorial quando o escritor acrescenta seu nome e o adjetivo [NORDESTINA] ao título da obra. Com esta análise, pode-se compreender o processo de edição de livros no período em que no estado do Piauí não contava com gráficas particulares, apenas a Companhia Editora do Piauí – COMEPI, para a reprodução das obras. Além disso, foi possível entender o processo de criação da capa de Paremiologia Nordestina, analisando as litogravuras e comparando-as com a capa tida como pronta, elencando os acréscimos feitos por Fontes Ibiapina. São com estes acréscimos que o escritor demonstra o espaço piauiense não só apena no texto verbal, mas também, quando se fez uso de imagens representando o espaço piauiense.

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REFERÊNCIAS

BERGEZ, Daniel [et al.]; Métodos críticos para a análise literária. Trad. Olinda Maria Rodrigues Prata. São Paulo: Martins Fontes, 2006.

BIASI, Pierre-Marc de. A genética dos textos. Trad. Marie-Hélène Paret Passos. Porto Alegre: EDIPUCRS, 2010.

DE AQUINO, Jakeline Rodrigues; NASCIMENTO, Daniel Arruda. Fontes Ibiapina: Cultura e Identidade do Sertão Piauiense. 2011.

FERREIRA, Aurélio Buarque de Holanda. Miniaurélio: o dicionário da língua portuguesa. Curitiba: Ed. Positivo, 2008.

GRÉSILLON, Almuth. Elementos de crítica genética: ler os manuscritos modernos. Trad.Cristina de Campos Velho Birck. Porto Alegre: UFRGS, 2007.

IBIAPINA, João Nonon de Moura Fontes. Paremiologia Nordestina. Teresina: COMEPI, 1974.

LIMA, Márcia Edlene Mauriz. O inacabamento do acabado: a reescrita de Teodoro Bicanca, de Renato Castelo Branco. Tese (Doutorado em Letras) – Faculdade de Letras, Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, 2009.

PINO, Cláudia Amigo; ZULAR, Roberto. Escrever sobre escrever: uma introdução crítica à crítica genética. São Paulo: WMF Martins Fontes, 2007.

SALLES, Cecília Almeida. Crítica genética: uma introdução, fundamentos dos estudos genéticos sobre os manuscritos literários. São Paulo: EDUC, 2008.

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O ARQUIVO PESSOAL DE ARIOVALDO MATOS NO HORIZONTE CONTEMPORÂNEO DA CRÍTICA TEXTUAL

Mabel Meira Mota74

CONSIDERAÇÕES INICIAIS

Instabilidade, fragmentação e incompletude. Considera-se que seja esta a tríade dominante no cenário cultural contemporâneo, orientado para uma abordagem do uso de arquivos pessoais. Ao inscrever-se sob o signo do precário e do incompleto, o arquivo pessoal de Ariovaldo Matos ajusta-se às reflexões atuais em torno das noções de memória, autoria, documento, verdade e tempo, pois é construído a partir de estratégias de produção e acumulação documental, bem como de atos biográficos, que o dotam de significação e de elementos capazes de incluí-lo no rol da pluralidade de formas de subjetivação, que assumiu, com o passar dos séculos, a escrita de si. Além disso, o seu arquivo pessoal se inscreve como espaço privilegiado para potencializar as rasuras efetuadas pelos “pensadores da diferença” na tradição metafísica ocidental e seus efeitos no campo da Filologia. Desse modo, faz-se necessária uma reflexão sobre “as tramas do arquivo”, considerando o duplo sentido da palavra “trama”, registrado nos dicionários: no sentido de tessitura, de emaranhado de fios que enlaçam sujeitos, espaço, textos e temporalidades diversas, de um lado; e como encadeamento de cenas e encenação de subjetividades, de outro. Em seu aspecto de tessitura, o arquivo pessoal do dramaturgo e jornalista baiano remete para sua própria urdidura como um sistema de significação documental, que faz com que o arquivo possa ser tratado como um texto, uma modalidade de “produção do eu”. Entretanto, enquanto espaço propício à encenação de subjetividades, coloca-nos frente ao questionamento do efeito de uma possível verdade, de unidade, de estabilidade e de permanência, que o arquivo é capaz de produzir; além disso, pode-se indagar de que maneira ele contribui para uma retomada crítica das fontes primárias e para a renovação das práticas editoriais voltadas para a recuperação da memória literária “pelo abandono do projeto totalizante e unificador da modernidade para se afixar nas diferenças que delineiam o fragmentado e vigoroso arquivo cultural da atualidade” (SOUZA, 2011, p. 40). A perspectiva que se pretende ler o arquivo pessoal do escritor Ariovaldo Matos será enquanto texto, que se apresenta como um “evento cultural e social”, em decorrência da sua

74 PPGLitCult – UFBA. 222

constante movência, bem como da rede de possíveis intenções e subjetividades, que lhe afetam e por ele são afetadas. Através do arquivamento de si, Ariovaldo – o narrador (re) conhece-se. Tece múltiplas imagens de si numa narrativa sempre fragmentária e incompleta, cuja estrutura espaço-temporal é atravessada por seleções, ordenamentos e silenciamentos necessários para mobilizar uma memória individual no intuito de representá-la. O arquivo pessoal do escritor, jornalista e dramaturgo Ariovaldo Matos possui uma historicidade, que lhe é peculiar, que faz com que sua estrutura seja instável, tanto em relação à equivalência entre vivência individual e acúmulo documental, quanto à estabilidade e fixidez espaço- temporal. No que diz respeito a uma abordagem que reúna a arte e a vida, ou seja, o material poético ao biográfico, Eneida de Souza (2004) sugere, a partir da metáfora do baralho, que “[...] diante do vasto material que se tem em mãos, é necessário separar, comparar, dissecar, organizar e misturar os naipes com os documentos, num tempo posterior ao jogo de cartas, num momento de pós-memória” (SOUZA, 2004, p. 56). A metáfora do baralho, sugerida por ela, revela-se pertinente para articular o arquivo pessoal de Ariovaldo Matos e as representações do escritor e do intelectual. Para entrar no jogo de imagens estabelecidas pelo próprio escritor, precisamos estar preparados para levar em conta o embaralhamento dos fatos, o “modo cortado e fragmentado de narrar” (SOUZA, 2004, p. 56), sem esquecer que, por trás de uma aparente desordem, pode ou deve haver uma lógica própria de ordenamento. Nesse baralho, que é o arquivo do escritor, precisamos identificar dentre os naipes representativos de suas várias facetas – os biografemas barthesianos –, aqueles que nos interessam para preparar nossa própria estratégia de jogo, quais sejam: o jornalista, o militante, o contista e, principalmente, o dramaturgo. Nesse contexto, de início, é importante responder aos seguintes questionamentos: como a documentação foi acumulada, ao longo da vida de Ariovaldo Matos? Qual o caminho percorrido por essa documentação? E, por fim, quais interferências, de ordem e de volume, essa documentação sofreu com o tempo? Para isso, apresenta-se, primeiramente, uma breve leitura do escritor e dos múltiplos papeis por ele desempenhados na cena intelectual baiana.

DELINEANDO UMA BIOGRAFIA

Ariovaldo Magalhães Matos, nascido em 24 de agosto de 1926, à Rua da Poeira, no bairro de Nazaré, em Salvador, cursou o ginásio no Instituto Baiano de Ensino e o colegial no Colégio Estadual da Bahia (Colégio Central), conhecido nacionalmente pelo engajamento 223

estudantil nas questões políticas. Quando jovem, começara a cursar Jornalismo, na Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas, da Universidade Federal da Bahia, até o terceiro ano, quando passou a trabalhar como jornalista amador em veículos de comunicação locais. Em 1946, o jovem aprendeu o jargão e o ofício de jornalista, tornando-se membro da equipe do semanário do Partido Comunista do Brasil (PCB), O Momento, num contexto em que o comunismo, por meio do prestígio alcançado internacionalmente pela URSS num período de insegurança política; e nacionalmente, pelo forte apelo de Luis Carlos Prestes à intelectualidade brasileira progressista. Foi neste semanário, posteriormente tornado jornal, que avultou Ariovaldo Matos na cena intelectual baiana, num período particularmente conturbado da sociedade brasileira que, internamente, experimentava as primeiras implicações das mudanças decorrentes da Revolução de 30 e da ascensão de Getúlio Vargas à presidência da república. A atividade jornalística foi, de fato, uma das grandes paixões de Ariovaldo Matos, além de sustentar parte de sua obra literária e teatral. Foram as inquietações do jornalista que mobilizaram seus primeiros escritos. Ao mesmo tempo, paixão e necessidade, o jornalismo representou para Ariovaldo Matos a porta de entrada para o mundo das letras, espaço no qual o escritor começou a se dedicar a uma tentativa de transformar em matéria ficcional a pauta do jornalista. Tal relação entre a atividade jornalística e a mais especificamente literária revela-se no seu primeiro romance, Corta-Braço, elaborado entre 1951 e 1953, e publicado em 1955, apesar das dificuldades encontradas. Em 1963, é considerado “agente de Pequim e de Moscou” (GUERRA, 2009, p. 116), sendo que Ariovaldo Matos foi perseguido e obrigado a refugiar-se na casa de amigos, dentre os quais se destacam Irênio Simões, Barbosa Romeu e João Batista de Lima e Silva. Após este episódio, foi preso e recolhido ao Quartel do Barbalho. Essa experiência, entretanto, motivou a criação do volume de contos, Últimos Sinos da Infância, inicialmente intitulado Cartas de Bochum. No mesmo ano, estreia, no teatro Santo Antônio, sob a direção de Orlando Senna, sua primeira produção teatral, A Escolha ou O Desembestado, adaptada do conto O Desembestado, do livro Últimos sinos da Infância. Com esta obra teatral, Ariovaldo Matos conquistou o segundo lugar75, no Prêmio Jorge Amado para Dramaturgia, instituído pela Fundação Teatro Castro Alves. A Engrenagem, segunda produção teatral de Ariovaldo Matos, estreia, em 1969, na Sala do Coro, do Teatro Castro Alves. Trata-se de um texto evidentemente filosófico, que tece

75O primeiro lugar foi conquistado por João Augusto com a peça A Morte de Quincas Berro D’água, inspirada na novela de Jorge Amado. 224

críticas sociais a partir de uma narrativa centrada num jovem que procura recuperar uma arma, herança familiar, que se encontrava em poder da amante de seu irmão, com quem fizera um pacto de morte. Irani ou As Interrogações foi escrito por Ariovaldo Matos entre 1971 e 1976. A ideia de escrever este texto surgiu após o falecimento de Genaro de Carvalho, artista plástico baiano, amigo do autor. Ressalta-se, aqui, que os textos teatrais de Ariovaldo Matos foram produzidos durante a Ditadura Militar, momento em que houve forte repressão à classe teatral, o que fez com que grande parte de seus textos tenham sido submetidos ao exame censório. A interferência da censura na produção de Ariovaldo Matos alcança seu auge em O Ringue, texto de temática psicológica, em que o personagem rememora fatos da infância de um deputado, que é ridicularizado, ao longo da narrativa. Não se contentando com o veto à peça O Ringue, Ariovaldo Matos adapta-o para um livro, que reúne vários contos e poemas, denominado Anjos no Ringue, lançado no mesmo ano. Neste livro, além de uma “espécie de balé falado”, o autor apresenta o prólogo da peça A humanização do Espantalho, sem previsão para ser encenada ou publicada. E todos foram heróis cada qual ao seu modo, terceiro título que compõe a obra dramatúrgica de Ariovaldo Matos, trata-se de uma peça que remete para o momento da abertura política vivenciada à época. Escrito a partir de um conto de sua própria autoria, Aeromoça, publicado no livro Anjos no Ringue, a peça traz, ainda, versos de Garcia Lorca e de Pablo Neruda. Em 1970, publica também o romance Os Dias do Medo, cuja abordagem política ganha destaque. Acerca do título e da temática da obra, afirma tratar-se de uma obra que reflete sobre os vários tipos de medo, sobretudo, do medo político. Nesta obra, o escritor dá um testemunho sobre os dias que passou na prisão, após a invasão de seu apartamento e de sua prisão em 1964 (GUERRA, 2006). Em 1981, publica seu último livro de contos, Colagem Desvairada em Manhã de Carnaval, cujo conto, Ostras, demonstra a persistência do olhar minucioso e crítico do jornalista, que aborda a ocupação urbana da região dos Alagados, em Salvador. Na mesma esteira do romance-reportagem Corta-Braço, este conto tem como ponto de partida a necessidade de apresentar as minorias, sustentando a posição ideológica do autor que, apesar de ter se afastado do Comunismo, ainda comungava de alguns de seus ideais. Há, ainda, Anjos Caiados, romance publicado postumamente, em 2006, mas cujo manuscrito com emendas encontra-se preservado no arquivo pessoal do autor. Ocorre, e esse é um dado significativo, que Ariovaldo Matos veio a falecer cedo, em julho de 1988, aos 61 anos. Nesse sentido, ainda que se possa atribuir um começo à prática de 225

arquivamento de si, a partir da delimitação do período coberto pela sua documentação, o arquivo, emaranhado de fragmentos, assim como o sujeito que lhe institui, impõe ao intérprete lidar com falhas e lacunas. O arquivo-texto construído por Ariovaldo Matos para (re) construção de sua trajetória, a partir de sua própria perspectiva, é composto por documentos que foram convenientemente reunidos no seu gabinete particular, lugar onde poucos foram autorizados a entrar (MATOS, F.; 2010). Neste, lê-se um perfil multifacetado, entrevisto nos documentos referentes aos diversos campos em que atuou. O jornalismo encontra-se representado apenas por dois recortes de jornais de sua autoria, assim como, por dois números de O Momento76. Estes itens, ainda que em pequeno número, apontam para a atuação de Ariovaldo Matos como jornalista ligado ao PCB, ao mesmo tempo em que indicam uma contradição entre arquivamento e a significativa importância dada pelo próprio Ariovaldo Matos a essa atividade, bem como, pelo reconhecimento obtido entre seus pares por sua atuação como jornalista. O mesmo não ocorre com os documentos ligados à atividade literária, representada por uma caixa composta por manuscritos diversos, sem ordenamento aparente, senão quando grampeados num mesmo volume. Apresentam-se, em geral, fragmentários e não identificados. É importante salientar que, em geral, são manuscritos de contos, novelas e romances, não só éditos, como também inéditos, que contêm marcas autografas decorrentes do processo de revisão e construção dos textos. Apresenta-se o Ariovaldo Matos como leitor de si mesmo e as diferentes campanhas empreendidas na elaboração de artefatos artísticos, como o manuscrito do romance inédito, O Quinteto de Ondina, no qual se percebe uma pequena incidência de emendas e rasuras. Uma lacuna que também merece destaque é aquela referente à produção teatral de Ariovaldo Matos. Supõe-se que essa dispersão possa ser explicada sumariamente pela dispersão do material na mão de amigos ou da equipe técnica envolvida na encenação, evidência do próprio processo de criação teatral, em que o dramaturgo, muitas vezes, entrega o texto para encenação, não se preocupando em guardá-lo, pois compreende que a preparação do texto para encenação demanda um trabalho de reescritura, de adaptação do mesmo, em função das necessidades do levantamento da cena. Apesar dessa lacuna, nos dossiês formados por recortes de jornais são preponderantes os recortes de jornais contendo notas, reportagens, notícias e entrevistas a respeito dos espetáculos. O único documento existente no arquivo

76Foram encontrados nos números do jornal O Momento, além de artigos de Ariovaldo Matos, artigos assinados por Jorge Amado, Guido Guerra e Levi Vasconcelos. 226

referente aos espetáculos de Ariovaldo Matos é um contrato de locação do teatro para a encenação de A Engrenagem. Por fim, é importante salientar que a narrativa de vida observada no arquivo pessoal do jornalista baiano é sempre fragmentária e incompleta, uma vez que sua própria estrutura espaço-temporal seleciona, ordena, silencia e mobiliza a sua memória individual no intuito de representá-la. O arquivo pessoal do escritor, jornalista e dramaturgo Ariovaldo Matos possui uma historicidade que lhe é peculiar, que faz com que sua estrutura se mostre instável quanto à equivalência entre vivência individual e o próprio arquivo pessoal, bem como no que tange à estabilidade e fixidez espaço-temporal. Tal instabilidade é perceptível, principalmente, na contradição entre o destaque dado ao jornalista e ao dramaturgo pela mídia, ou no depoimento de amigos, nou ainda, no volume documental existente quanto à sua produção jornalística e dramatúrgica.

OS MOVIMENTOS DO ARQUIVO

Pode-se pensar a constituição do arquivo como um texto que não é estático e inesgotável, mas que está sempre num continuo movimento. Além disso, devemos considerar que o arquivo-texto construído por Ariovaldo Matos conviveu, ao longo de sua história, com seleções, apagamentos e ênfases baseadas em intencionalidades e em relações de poder que evidenciam sua fragilidade enquanto “verdade absoluta”, ao mesmo tempo em que remete para o aspecto instável e polissêmico da memória, reconfigurada a (re) construção do referido arquivo. Com o falecimento de Ariovaldo Matos, em 1988, e a mudança da família para um apartamento menor, parte da documentação disposta no gabinete do autor se perdeu. Sobre isso, esclarece o filho do autor: “Depois que meu pai morreu tivemos que vender a casa, na qual moravam, na época, além do Ari, minha mãe e Zé. Compramos então um apartamento porque não tínhamos como manter a casa, e no apartamento não cabia todas as coisas” (MATOS, F., 2010). Após a referida mudança, parte desta documentação foi entregue aos cuidados do amigo Guido Guerra, a quem Ariovaldo Matos muito estimava e costumava compartilhar suas ideias e discutir seus textos. Nesse contexto, o arquivo de Ariovaldo Matos vai de encontro aos arquivos arquetípicos, uma vez que implode a ideia de fixidez e estabilidade, apontando para um “processo em devir”, que pode ser suplementado pela mediação de outros sujeitos, permitindo pensar numa biografia para o arquivo, que considera percursos e engrenagens 227

registrados. Os movimentos que configuram o arquivo advêm das escolhas do titular quanto aos fragmentos de sua vida que merecem ser arquivados, o que depende, em alguma medida, de como este sujeito se apropria de certas práticas arquivísticas e de determinados padrões de acumulação e conservação; ou de como essas práticas e esses padrões são mantidos ou rasurados/deslocados por outros sujeitos-leitores. Assim, a historicidade do conjunto documental demonstra a possibilidade de existência de outros agentes da constituição desse conjunto em “arquivo” e as forças sociais consumidas no processo de constituição e preservação desse acervo. Dentre as forças catalisadas no processo de re (constituição) e preservação do arquivo previamente acumulado por Ariovaldo Matos, destacam-se aquelas que impulsionaram dois “movimentos” do arquivo: aquele advindo da ação da censura, instituída durante a Ditadura Militar; e aquele efetuado pelos amigos e colaboradores do escritor, dentre os quais se destaca Guido Guerra. Um dos movimentos do APAM, que lança luz sobre os diferentes sujeitos envolvidos no processo de sua constituição e reconfiguração, é a perseguição política sofrida por Ariovaldo Matos, que demonstra como a estrutura do seu arquivo retém “[...] a marca dos interesses, dos valores e das estratégias dos grupos sociais a que se refere” e engendra “uma atividade de simbolização mediante a qual [alguns] grupos manifestam sua existência material, política e intelectual” (MICELI, 2001, p.249). É o caso da intervenção policial, narrada pelo próprio Ariovaldo Matos, em entrevista concedida a Adinoel Motta Maia, durante o período da Ditadura Militar, considerando as marcas legadas por esta intervenção na estrutura do arquivo. Somente em 1960 voltei a publicar livro, A Dura Lei dos Homens, com selo da Editora São José, Rio, Capa de Lênio Braga e prefácio de Jorge Amado. Devo registrar que Jorge promoveu a divulgação nacional e disso resultou um pequeno monte de registros em jornais do Sul Maravilha. E cartas. Uma, de Álvaro Lins, continha recomendações notáveis e indicava-me autores que me poderiam ajudar. Essas cartas e esses registros críticos desapareceram devido a sucessivas invasões de minha moradia no curso dessa coisa que aconteceu em abril de 1964. Ou, como outros querem, em março. E, com essa documentação [,] centenas de livros. Bom, acabei no 19BC onde me é obrigado dizê-lo, fui tratado com respeito, na medida que um prisioneiro político compreenda os constrangimentos decorrentes da condição que, a força das armas, lhe é imposto (MAIA, 1981, p. 6, grifo nosso).

Nessa direção, como um significativo passo, coloca-se a necessidade de rasurar a ideia de ordem tida como original, basilar para o tratamento dos arquivos no âmbito da Arquivística Tradicional, primeiramente porque o arquivamento de si implica em uma “narrativa de 228

acontecimentos” (VEYNE, 1971, p. 15), produzida pelo titular em diversos momentos irrepetíveis de sua trajetória e passível de ajustes, de novos começos advindos das energias sociais catalisadas em razão das relações de poder em jogo, como no caso das marcas deixadas pela Ditadura Militar. Estamos, assim, diante de acontecimentos sempre marcados pela variedade de posições ocupadas pelo individuo, nunca diante da memória, da ordem original, do projeto (HEYMAN, 1998). A história do arquivo pessoal de Ariovaldo Matos “[...] ultrapassa e o conecta ao que está fora do arquivo, ao que talvez nem tenha sido registrado, ou ao que dele tenha sido excluído” (NEDEL, 2013, p. 141). Os documentos do APAM materializam, portanto, uma ordem de marcas e valores, que orientaram seus usos e sua circulação enquanto “texto”. Guido Guerra confere um destino à documentação de Ariovaldo Matos, após sua morte. À maneira do arconte, ele “empreende a luta contra a dispersão” (DERRIDA, 2001, p. 50), luta esta que se ressente, desde o início, do sucesso. Começa reunindo recortes de jornais que registram a morte, o sepultamento, as figuras políticas e os artistas, que estiveram presente no enterro, além dos depoimentos, das homenagens póstumas, das reimpressões de obras publicadas e das entrevistas inéditas. Pelas mãos de Guido Guerra, amigo, colaborador, revisor, editor e leitor de Ariovaldo Matos, podemos ver como as produções do dramaturgo e do romancista reverberam no discurso e nas impressões de seus contemporâneos. “Hóspede da Tempestade”, foi assim que Guido Guerra definiu Ariovaldo Matos em sua coletânea de entrevistas, Imortal Irreverência (2006). Voltado para “fixar a presença de Ariovaldo Matos (1926-1988) no panorama da literatura baiana, em particular, e brasileira em geral, ainda que prescindindo situar o jornalista no seu tempo e espaço” (GUERRA, apud MATOS, 2006, p. 19), Guido Guerra recolhera depoimentos de jornalistas, escritores e amigos, após a morte de Ariovaldo, publicando-os na edição póstuma da coletânea de contos A Ostra Azul, a qual prefaciou e estabeleceu uma cronologia da vida e da obra de Ariovaldo Matos. A representatividade de Ariovaldo Matos no cenário baiano ganha destaque, sobretudo, pelas mãos de Guido Guerra, quando recolhe estes depoimentos de amigos, colegas de imprensa e admiradores de sua genialidade, consternados por uma perda tão precoce e que ocupam as páginas de jornais de grande circulação, na capital baiana. Com a morte de Guido Guerra, em 2006, o material reunido por Celi Guerra, sua viúva, foi entregue aos cuidados de José Ricardo Malaquias Matos, filho de Ariovaldo Matos. Este, por sua vez, por estar deixando a cidade para morar em Santa Cruz de Cabrália, deixou a 229

documentação aos cuidados de Sérgio Costa77, que a acomodou em seu escritório, sem nunca a ter manipulado. Conforme Marques (2012), “a formação de arquivos literários é estimulada pela consagração da imagem do escritor”, mas também, pode acontecer o inverso “ao se enfatizar o papel dos arquivos literários como instâncias não apenas de guarda e conservação, como também de produção de variadas representações do escritor, potencializando suas imagens”. Foi na perspectiva de oferecer à sociedade, sobretudo baiana, acesso às variadas representações de Ariovaldo Matos – autor, leitor dramaturgo, jornalista, contista, militante político –, que, em 2012, contatou-se sua família no intuito de recolher informações e documentos acerca de sua produção teatral. Informados sobre a existência de um pequeno arquivo, cuidamos de sua transferência e aspectos legais. Iniciou-se, assim, outro movimento do APAM. No campo da Filologia, conciliando as práticas da Arquivística Literária e da Crítica Textual, elaborou-se um inventário dos materiais que constituem o Arquivo Pessoal de Ariovaldo Matos (APAM), realizando uma leitura crítica desse arquivo, com destaque para sua produção dramatúrgica, e, em especial, para Irani ou As Interrogações, recortada para edição. Partiu-se do inventário do arquivo do autor, cujas fontes materiais fornecem elementos para compreender o escritor e os múltiplos papéis por ele desempenhados, para o entendimento dos processos de produção, transmissão e recepção sua produção teatral (MOTA, 2011). Para inventário de parte do APAM, procedeu-se à organização dos itens em séries78 e subséries, considerando, para isso, a espécie documental. Internamente, os documentos foram ordenados alfabeticamente pelo último sobrenome do autor. São elas: Série Coleção Bibliográfica, Série Atividades Profissionais, Série Correspondência; Série Documentos Pessoais; Série Documentação Complementar; Série Fotografias; Série História Editorial e Teatral; Série Memorabilia; Série Produção Intelectual; Série Fortuna Crítica; Subsérie Crítica Literária; e Série Documentos Diversos (MOTA, 2011). Do conjunto das séries em que foram arranjados os documentos do arquivo de Ariovaldo Matos, selecionaram-se as séries: Produção Intelectual, Publicações na Imprensa, Documentos Complementares e Memorabilia para apresentação de inventários das mesmas, consideraram-se as produções de Ariovaldo Matos, no âmbito do jornalismo, do teatro e da

77De acordo com Fred Matos [Informação verbal] Sérgio Costa é um amigo da família. 78De acordo com Janice Gonçalves (1998, p. 27) uma série corresponde ao “conjunto de unidades de um mesmo tipo documental”. 230

Literatura, enquanto as demais séries configuraram-se como documentação paratextual, contribuindo para a investigação filológica, interpretação e estabelecimento do texto crítico de Irani ou As Interrograções (MOTA, 2011). Nesse sentido, o encadeamento múltiplo de tantos “começos” para o arquivo de Ariovaldo Matos leva-nos a compreender como Nietzsche, Freud e Marx promoveram, conforme Foucault (1997), um rasurar do pensamento metafísico ocidental, ao problematizarem a questão da interpretação para além de uma lógica da completude, da totalização. A “nova hermenêutica” remete para o inacabado da interpretação, para a incompletude dos arquivos-texto em que não se chega a uma estrutura única e final, pois uma interpretação sempre leva à outra, sendo que cada arquivista manipula “a estrutura técnica do arquivo” (DERRIDA, 2001, p. 29) a partir de seus próprios objetivos. Dessa forma, o arquivo apresenta-se como ponto de emergência do qual emanam diversas escolhas possibilitadas pelo comportamento político dos sujeitos que nele deixam seus vestígios. Ressalta-se, ainda, que o arquivo do escritor baiano suplementa a memória cultural e intelectual da sociedade na qual ele estava inserido, funcionando como via de acesso ao campo de produção simbólica a que pertenceu Ariovaldo Matos, o que permitiu que se pudesse compreender o modo peculiar como percorreu o espaço social em que viveu e suas relações com o conjunto de outros agentes envolvidos nesse processo.

Tentar compreender uma vida como uma série única e, por si só, suficiente de acontecimentos sucessivos, sem outra ligação que a vinculação a um ‘sujeito’ cuja única constância é a do nome próprio, é quase tão absurdo quanto tentar explicar um trajeto no metrô sem levar em conta a estrutura da rede, isto é, a matriz das relações objetivas entre as diversas estações. Os acontecimentos biográficos definem-se antes como alocações e como deslocamentos no espaço social, isto é, mais precisamente, nos diferentes estados sucessivos da estrutura da distribuição dos diferentes tipos de capital que estão em jogo no campo considerado. [...] Essa construção prévia é também condição de qualquer avaliação rigorosa do que poderíamos chamar de superfície social, como descrição rigorosa da personalidade designada pelo nome próprio, isto é, o conjunto de posições simultaneamente ocupadas, em um momento dado do tempo, por uma individualidade biológica socialmente instituída, que age como suporte de um conjunto de atributos e de atribuições que permitem a intervenção como agente eficiente nos diferentes campos (BORDIEU, 2004, p. 81-82).

Enquanto “acontecimento biográfico”, o APAM expressa uma vontade do autor de guardar documentos representativos de sua existência, que aponta para os posicionamentos sucessivos de Ariovaldo Matos em relação aos seus contemporâneos nos diferentes campos em que atuara. É possível, entrever, a partir dele, uma rede de interesses e contatos. O 231

arquivo possibilita que se instaurem rupturas que conduzem a novas chaves interpretativas para a intrincada rede de relações sociais que perpassam a produção e publicação dos textos em questão. Assim, a narrativa arquivística afasta-se da perspectiva estática das biografias tradicionais, pautadas na linearidade progressiva e na causalidade. Demonstra que como lugar para a encenação de memórias, não são repositórios da verdade mais íntima e genuína sobre o homem e o escritor, mas sim, de textos carregados de historicidade e dinâmica próprias. Os diferentes movimentos de escrever e de apagar efetuados por diferentes mãos tornam possível relacionar os arquivos às biografias, uma vez que seus movimentos informam tanto sobre o biografado quanto sobre o biógrafo. Interpreta-se, portanto, o sujeito arquivado, por si e pelo outro, a partir do estabelecimento de uma relação de interação entre os paratextos acumulados para propor o desenvolvimento de uma práxis filológica crítica sobre a produção intelectual de Ariovaldo Matos.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

A atuação da Filologia contemporânea tem se direcionado para o abandono do projeto falido de estabelecer um texto mais próximo do “original”, ou segundo a última “vontade do autor”, voltando-se para uma leitura dos possíveis, dos múltiplos e das rasuras (BORGES; SOUZA, 2012). Assume-se que, em qualquer projeto de edição, o texto estabelecido é fruto de interpretações que têm como resultados outras interpretações. Cada edição pode ser lida, então, como acontecimento, no sentido foucaultiano de “irrupção de uma singularidade única e aguda, no lugar e no momento de sua produção” (FOUCAULT, 1979, p. 46-50), pois o que define o lugar único de cada edição são as condições de sua produção (subjetivas, temporais, espaciais, estéticas e ideológicas) e as marcas materiais específicas que explicitam o processo de construção editorial. Os arquivos de escritores tornam possíveis novas maneiras de intervenção e múltiplas possibilidades de leitura, que resultarão em novos vestígios a serem incorporados à sua historicidade. Dentre estas leituras, destacam-se as abordagens críticas, tanto textual, como genética e sociológica, que contribuem para a revisão do estatuto da escrita, ao serem expostos seus artifícios, suas dinâmicas, seus esquecimentos e suas virtualidades. Coadunam- se com o descentramento das noções de texto e de autoria as questões atinentes aos paratextos e ao papel do editor, como sujeito que mobiliza o conjunto de fragmentos que resulta em uma 232

versão tida como final, materialidade representativa do traçado e do trajeto de escritura do autor.

REFERÊNCIAS

BORDIEU, P. A Ilusão Bibliográfica. In: Razões práticas. Campinas: Papirus, 2004.

BORGES, Rosa; SOUZA, Arivaldo Sacramento de. Filologia e edição de texto. In: BORGES, Rosa; SOUZA, Sacramento de; MATOS, Eduardo Silva Dantas de; ALMEIDA, Isabela Santos de (Orgs.). Edição de texto e crítica filológica. Salvador: Quarteto, 2012. p. 15-59.

DERRIDA, Jacques. Mal de arquivo: uma impressão freudiana. Tradução de Claudia de Moraes Rego. Rio de Janeiro: Relume Dumará, 2001.

FOUCAULT, Michel. Nietzsche, Freud e Marx: theatrum philosoficum. Tradução Jorge Lima Barreto. São Paulo: Princípios, 1997.

_____.Nietzsche, a genealogia e a História. In: ______. Microfísica do Poder. Org. por Roberto Machado. Rio de Janeiro, Edições Graal, 1979.

GUERRA, Guido. Imortal Irreverência. Salvador: Assembléia Legislativa do Estado da Bahia, 2006.

HEYMAN, Luciana. Indivíduo, memória e resíduo histórico. Uma reflexão sobre arquivos pessoais e o caso e Filinto Muller. Estudos Históricos, Rio de Janeiro, v. 11, n. 21, p. 41-66, 1998.

NEDEL, Letícia Borges. Da sala de jantar à sala de consultas: o arquivo pessoal de Getúlio Vargas nos embates da história política recente. In: TRAVANCAS, Isabel; ROUCHOU, Joelle; HEYMAN, Luciana (Org.). Arquivos Pessoais: reflexões multidisciplinares e experiências de pesquisa. Rio de Janeiro: FGV, 2013. p. 131-164.

MAIA, Adinoel Mota. Um depoimento do escritor Ariovaldo Matos e a comemoração do Dia Nacional do Livro. Jornal da Bahia, Salvador, 25 out. 1981.

MARQUES, Reinaldo. O arquivo literário e as imagens do escritor. In SOUZA, Eneida Maria de, TOLENTINO, Eliana da Conceição, MARTINS, Anderson Bastos (Org.). O futuro do presente: arquivo, gênero, discurso. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2012. p. 59-89.

MATOS, Ariovaldo. Anjos Caiados. Salvador: Academia de Letras da Bahia/Assembléia Legislativa do Estado da Bahia, 2006.

MICELI, SÉRGIO. Biografia e cooptação (o estado atual das fontes para a história social e política das elites no Brasil. In: Intelectuais à Brasileira. São Paulo: Companhia das Letras, 2001. p. 345-354.

233

MOTA, Mabel Meira. Da trama do arquivo à trama detetivesca de Irani ou as interrogações, de Ariovaldo Matos : leitura filológica do arquivo e edição do texto. Dissertação (mestrado) - Universidade Federal da Bahia, Instituto de Letras, Salvador, 2011.

SOUZA, Eneida Maria. Janelas Indiscretas. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2011.

______. Pedro Nava, o risco da memória. Juiz de Fora: Funalfa Edições, 2004. p. 56

VEYNE, Paul. Comment on Écrit l’Histoire. Paris: Seuil, 1971.

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A ESCOLHA OU O DESEMBESTADO: A CONSTRUÇÃO DE UMA TEATRALIDADE

Mabel Meira Mota79 Rosa Borges80

CONSIDERAÇÕES INICIAIS

Partindo das modificações textuais, busca-se analisar as escolhas realizadas pelo dramaturgo, tanto na construção do texto teatral – considerando o processo de adaptação do conto para o teatro –, no intuito de trazer à cena interpretativa as representações de várias facetas da baixa classe média da década de 1960, quanto os registros das diversas formas que a peça assume em decorrência do processo de adaptação efetuado pelos encenadores e da submissão dos textos à avaliação da Censura. Na dinâmica das modificações textuais, é possível, ainda, observar as marcas que mostram uma preocupação do dramaturgo com o texto teatral como objeto de leitura, percebidas no texto publicado. Neste trabalho, apresenta-se uma leitura da rede de intenções e significações que caracterizam o jogo teatral e que vão construindo suas próprias “formas finais”, almejando-se compreender a produção, transmissão e circulação do texto teatral de Ariovaldo Matos. Por fim, enfatizar-se-á o processo de adaptação do conto para o texto teatral pelas mãos do próprio dramaturgo e a (re)escritura do texto em função da sua publicação, em 1970; e suas implicações na proposição de um modelo editorial que atenda a dinâmica do texto teatral em estudo.

TRADIÇÃO E TRANSMISSÃO DO TEXTO: UMA LEITURA DOS TESTEMUNHOS

A Escolha ou O Desembestado (ED) foi o texto de estreia de Ariovaldo Matos na cena teatral baiana e aquele que teve maior destaque na mídia local e nacional. Nesse texto, a ação dramática situa-se em torno de Tancredo, homem humilde e subserviente que, cansado de sua vida miserável, decide “desembestar na vida”, ou seja, enriquecer por vias ilegais. Em uma de suas viagens pelo país, no décimo aniversário da morte de sua fase de pobreza, decide visitar o amigo Albano e percebe que este havia se casado com Zulnara, mulher recatada e simples, seguidora fiel dos preceitos cristãos que se mostra alienada aos “problemas mundanos”.

79 UFBA 80 Orientadora – UFBA 236

Inicialmente, Zulnara não se deixa corromper com as proposta de Tancredo para um “desembestamento” do casal. Prevalece no texto críticas à classe média em seus múltiplos aspectos: a ignorância quanto à realidade conturbada vivida pelo país, a aceitação passiva da miséria, os impasses morais, a religiosidade extremada, a alienação, a corrupção gerada pelo dinheiro, dentre outros temas, mostrados a partir de uma visão analítica e de conflito. Leitor e admirador de Brecht, Ariovaldo Matos aborda exemplos de alienação e corrupção, a partir de situações envolvendo prostitutas, operários e beatas, com o intuito de refletir acerca da “alienação” imposta à classe média, por outras classes que detém o poder e para mantê-lo, faz uso da educação religiosa, para fins de controle. Tancredo é um “personagem associal”, exemplo de comportamento negativo, mas que interessa por ser ele um “revolucionário virtual”, conforme a premissa de Brecth que “quer deixar que o revolucionário emerja do tipo malvado, egoísta, sem qualquer ética”, conforme aponta Benjamin (1981 apud KOUDELA, 1991, p.36). É ele que detém, na conjuntura narrada, os meios de produção, os meios de corrupção e de compra. No entanto, ressalta-se que as ações socialmente “úteis” não são propostas como modelares em si, mas devem ser conquistadas através da representação do “associal”, ou seja, Tancredo mesmo não sendo um modelo ideal de burguês é o instrumento utilizado para os questionamentos sociais levantados. Tancredo, ao narrar sua metamorfose social, permite questionar: Vale a pena ser puro e resignado? Se é realmente feliz, submetendo-se a uma vida pobre, mas “digna”? É útil submeter-se a uma concepção religiosa que oprime? É útil para quem? Desse modo, embora pareça louco e irresponsável, no que diz respeito à submissão aos preceitos cristãos da subserviência, Tancredo, no modelo associal, mostra-se o único consciente. Seu materialismo declarado está relacionado com a realidade histórica da passividade, da impossibilidade de ascendência e de mobilidade social. O sucesso da recepção local e o destaque na crítica especializada motivou a circulação de A Escolha ou O Desembestado em diferentes regiões do território nacional, mesmo com as limitações impostas no regime militar81. A apropriação do texto por diferentes encenadores e

81Convém ressaltar, ainda, que além das diversas encenações, o texto dramático serviu como ponto de partida para a criação de um script/roteiro para peça televisada, dirigida por Antunes Filho e transmitida no Programa Teatro 2, na Televisão Cultura, emissora da Fundação Padre Anchieta do Estado de São Paulo, em 1976 (BRANDÃO, 2009).

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a consequente circulação do texto resultou, portanto, numa tradição82 composta pelo texto publicado pelo autor, juntamente com o texto da peça A Engrenagem, no volume Teatro I (1970), e por um corpus documental composto por nove datiloscritos83, obtidos como resultado da atividade de recensio. Enumeram-se os testemunhos que transmitiram a peça teatral A Escolha ou O Desembestado. São eles:

1) Texto de Ariovaldo Matos registrado por ele, em abril de 1968, na Sociedade Brasileira de Autores Teatrais (SBAT). Apresenta-se em duas vias que reproduzem um único texto, diverso apenas quanto à existência de cortes empreendidos pela censura: a) Testemunho Datiloscrito registrado por Ariovaldo Matos na SBAT, sob o número 10513 (ED.AM.68); b) Testemunho Datiloscrito encenado por Orlando Sena, em abril/maio de 1968 (ED.AM.OS.68); 2) Testemunho Impresso, publicado no volume Teatro I, em 1970 (ED.AM.70); 3) Texto de Ariovaldo Matos, adaptado por João Augusto, para encenação no Teatro Paiol, São Paulo, 1970 (ED.AM.JA.70). 4) Texto de Ariovaldo Matos, adaptado por João Augusto, para encenação no Teatro Paiol, São Paulo, 1970. Trata-se da versão de ED.AM.JA.70, na qual são expurgados os cortes, em atendimento do exame dos censores (ED.AM.JA.70/C); 5) Texto de Ariovaldo Matos, adaptado por João Augusto, para encenação na Bahia, em 1977. Apresenta-se em três vias, que reproduzem um único texto, diverso apenas quando aos carimbos e cortes resultados de prática censória:

82De acordo com Pérez Priego (1997, p. 51-52), entende-se por tradição “[...] la relación de los testemonios que nos han transmitido la obra”. 83Para a identificação dos testemunhos adaptou-se a metodologia preparada por Rosa Borges dos Santos, coordenadora da ETTC, para elaboração do Arquivo Texto Teatrais Censurados. Assim, utiliza-se ED, para identificar o título da peça A Escolha ou O Desembestado; AM, como identificador de “Ariovaldo Matos”; OS (Orlando Senna), JA (João Augusto), AJ (Aderbal Júnior) para identificar os encenadores; referência ao ano de cada encenação; e, quando houver, referência à submissão do texto ao exame censório, como SBAT e DCDP/DPF. Para o testemunho datiloscrito registrado por Ariovaldo Matos na Sociedade Brasileira de Autores Teatrais (SBAT) e para o testemunho impresso adotou-se o identificador do texto (ED), a identificação do texto de Ariovaldo Matos (AM) e a indicação do ano.

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a) Testemunho com carimbo da Sociedade Brasileira de Autores Teatrais (SBAT), localizado no Núcleo de Acervo de Teatro do Espaço Espaço Xisto Bahia (ED.AM.JA. 77/SBAT); b) Testemunho com carimbos da Divisão de Censura de Diversões Públicas (DCDP), localizado no Núcleo de Acervo de Teatro do Espaço Espaço Xisto Bahia (ED.AM.JA.77.DCDP); c) Testemunho sem carimbos, localizado no Arquivo Nacional, em Brasília (ED.AM.JA.77). 6) Texto de Ariovaldo Matos, adaptador por Aderbal Jr. para encenação no Teatro Paiol, São Paulo, em 1980 (ED.AM.AJ.80).

A Escolha ou O Desembestado (ED) foi escrita por Ariovaldo Matos entre 1965 – ano em que publica o conto que serve de roteiro para construção do texto teatral, O Desembestado, na coletânea de contos Últimos Sinos da Infância (1965) –, e 1967, quando foi submetida ao Concurso de Peças Teatrais, instituído pela Fundação Teatro Castro Alves, em 1967, no qual obteve segundo lugar, sob o título A Escolha. A partir do cotejo dos diferentes testemunhos infere-se que A Escolha ou O Desembestado apresenta uma tradição em que há quatro versões para o texto, uma vez que ED.AM.OS.68 e ED.AM.AJ.80 reproduzem a mesma matriz, do texto registrado por Ariovaldo Matos na SBAT (ED.AM.68); e ED.AM.JA.77 reproduz a mesma matriz do texto publicado pelo autor 1970. Tais versões devem ser consideradas em suas singularidades. São elas: a versão registrada por Ariovaldo Matos na SBAT; a versão publicada pelo dramaturgo; a versões de João Augusto de 1970 e aquela advinda do processo de Censura (ED.AM.JA.70/C)84, uma vez que cumpriram percursos diferentes, conforme suas próprias materialidades manifestam.

84A ação da censura no texto de Ariovaldo Matos é lida a partir da materialidade dos testemunhos. Contudo, na tradição de A Escolha ou O Desembestado, ED.AM.JA.70/C é considerado uma versão por guardar a memória de uma ação que lhe é anterior e que se registra pela ausência de palavras ou trechos de ED.AM.JA.70 que foram vetados pela Censura.

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CIRCULAÇÃO DO TEXTO: A ESCOLHA OU O DESEMBESTADO COMO EVENTO CULTURAL E SOCIAL

A Escolha ou O Desembestado reflete o resultado de um complexo processo de transformação e ajuste de um conto de autoria de Ariovaldo Matos85, O Desembestado, publicado em Últimos sinos da infância (1965). Apesar da ausência de traços representativos da dinâmica do processo de adaptação do conto para a produção do texto dramático em seu arquivo pessoal, percebe-se, que se retoma o título, o tema e conteúdos narrativos do conto para a construção de uma nova trama, o texto dramático, entendendo-o no seu entrelugar”86, situado entre o campo literário e as artes performáticas, ou seja, entre a dimensão verbal e a dimensão performática/cenográfica. Pra Pierre-Marc de Biasi (2010, p.9) a obra é “o efeito das suas metamorfoses e contém a memória de sua própria gênese”. É nessa perspectiva que Silva (2003) apresenta uma leitura do processo de reescrita do conto de Machado de Assis, “Linha reta e linha curva”, considerando sua gênese no manuscrito do texto teatral, “As forcas caudinas”, as manipulações autorais no folhetim e a posterior publicação em “Contos fluminenses”. Unindo os procedimentos e métodos da Crítica Textual e da Crítica Genética, a autora apresenta uma transcrição diplomática do manuscrito acompanhada de uma reprodução fac-similar, conservando a escrita e as marcas autorais; enquanto uma edição crítica é apresentada considerando as alterações efetuadas em duas edições anteriores. Ao cotejar o manuscrito com o conto publicado em folhetim e o conto com a peça, Silva (2003) demonstra a possibilidade de editar um conto considerando sua gênese no processo de adaptação de um gênero para outro, com o intuito acompanhar o processo de criação machadiano. Não obstante, acreditamos que no percurso contrário, considerando a adaptação do conto para a peça, a inexistência de traços visíveis a partir de esboços, rascunhos ou notas que registrem a memória da peça A Escolha ou O Desembestado sendo adaptada do conto O Desembestado, não frustra a possibilidade de tomar o conto como ponto de partida da construção do texto teatral. Assim pretende-se localizar os vestígios representativos da transformação de um gênero em outro por meio do cotejo entre conto e peça teatral

85A operação semiótica de transcriação se presentifica como um traço marcante de sua produção dramatúrgica, verificado também em E todos foram heróis cada qual ao seu modo, adaptado do conto “Aeromoça”. 86Aqui tomado no sentido de descontinuidade e dispersão na perspectiva foucaultiana e na leitura de Silviano Santiago, no âmbito dos Estudos Culturais.

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(ED.AM.68)87 e de uma análise do processo de adaptação, dando a ler a lembrança88 do conto no texto dramático e a presença deste para além do conto, considerando a problemática de tal empreendimento para as reconfigurações necessárias à compreensão e à edição dos textos teatrais no âmbito da Crítica Textual. No conto O Desembestado a narrativa se passa em um único dia, 21 de junho, no qual o personagem Tancredo surge no apartamento do amigo, Albano, e de Zulnara, sua esposa, para convidá-los a deixar a vida mediana que vivem em São Paulo e tornarem-se ricos na Bahia. Na passagem pela residência desse casal, o protagonista narra suas façanhas para “desembestar”, isto é, enriquecer; ao mesmo tempo em que os leva a confrontarem suas convicções e princípios. Zulnara, principalmente, é seduzida pelas palavras de Tancredo que nela desperta “um desejo de aventura, algo que a inquietava” (MATOS, 1965, p.87). No texto da peça a estrutura discursiva não conhece uma transformação muito radical, já que a própria estrutura do conto de Ariovaldo Matos oferece elementos facilitadores à sua adaptação para o palco, pois é um texto que não oferece restrições temporais e espaciais, uma vez que a narrativa se passa em um único dia e num único espaço, o apartamento do casal. Trata-se, ainda, de um texto com poucos personagens e constituído, em grande parte, em diálogo, o que ampliou as possibilidades de sua adaptação e a construção do que Anne Ubersfeld denomina de “matriz textual de representatividade”, que serviria como demonstração dos procedimentos utilizados pelo autor para iluminar “os núcleos de teatralidade do texto” (UBERSFELD, 2010, p.6). Conforme Ângela Barreto (1983), em comentário a uma entrevista concedida por Ariovaldo Matos, “o conto, um gênero difícil, é o preferido de Ariovaldo que em geral após a décima ou décima quinta lauda, põe o trabalho de lado com a certeza que venha a servir no futuro, o que em regra acontece”, como foi o caso de A Escolha ou O Desembestado. A construção do conto abre-se, portanto, para outras redes e tramas, abarcando as várias possibilidades de leituras/traduções que dele poderiam se fazer. Hutcheon (2011, p.28) destaca que a adaptação pressupõe uma “repetição sem replicação” (HUTCHEON, 2011, p. 28). A adaptação não maltrata sua fonte, “abandonando-a para a morte ou já morta, nem é mais pálida que a obra adaptada. Ela pode, pelo contrário, manter viva a obra anterior, dando-lhe uma sobrevida que esta nunca teria de outra maneira”

87Tomou-se para cotejo com o conto ED.AM.68 por se tratar do texto registrado pelo dramaturgo na Sociedade Brasileira de Autores Teatrais (SBAT). Considera-se esse testemunho no qual se estabelece um nível terminal do texto de A Escolha ou O Desembestado. 88Para Hutcheon (2011, p.29) adaptação, “é uma forma de intertextualidade [...] como palimpsestos por meio da lembrança de outras obras que ressoam através da repetição com variação” (HUTCHEON, 2011, p. 29).

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(HUTCHEON, 2011, p. 234). O processo de transformação dos comentários do narrador exemplifica essa relação entre o conto e a peça, principalmente no que se refere à descrição dos personagens. Na peça, as descrições são reaproveitadas e enfatizadas através das falas, dos gestos, do vestuário e do comportamento cênico dos personagens. No texto dramático, apesar de não existir uma diferença radical no que tange ao conteúdo narrativo do conto, percebe-se que Ariovaldo Matos reduziu os trechos que destacam o contexto de enriquecimento do personagem Tancredo. No conto, a narrativa move-se em direção a pormenorização do passado do personagem Tancredo e dos motivos e condições que o levaram a “desembestar”. Em contrapartida, na peça enfatiza-se o presente do personagem e as atitudes que revelam a urgência de expressar aos amigos sua riqueza sem, no entanto, historicizá-la, conforme se percebe na fala em que ele descreve superficialmente o contexto de seu “desembestamento”:

TANCREDO Isto acaba, eu sei que isto acaba, não dura, acaba logo (A Zulnara) Sabe, madame, eu também, no começo, era tímido, tanto que Albano têve coragem de vir para São Paulo, me convidou, insistiu, quis pagar minha passagem, mas eu disse, não, Albano, irmão, eu não vou – e ele veio e eu fiquei mofando na Bahia. Porque eu era tímido, madame, era medroso, mas a verdade era que em mim algo mais refervia, madame, fervia e refervia. Uma ambição medonha, aquilo foi me cozinhando, cozinhando, cozinhando, cozinhando e um dia eu desembestei. E agora estou aqui, rico, riquíssimo, e vocês vão ficar ricos também, riquíssimos! Por isso me dá cá este abração (ED.AM.68, f.5)

Assim, o cotejo da peça com o conto é fundamental para evidenciar como Ariovaldo Matos aproveita elementos da narrativa na passagem de um gênero a outro e para acompanhar o processo de criação do núcleo dramático da peça. Entende-se aqui, que a adaptação reflete uma relação de repetição e ao mesmo tempo de diferença entre os textos (HUTCHEON, 2011), pois o texto dramático ED aproveita-se, em grande parte, da sequência narrativa do conto, mas se liberta da rigidez e das limitações que o caracterizam, ampliando-o, fato evidenciado pela inserção da comitiva de Tancredo – composta por duas prostitutas e um violonista – e de diversas cenas advindas do seu uso como recurso para expansão da narrativa, necessária ao prolongamento da peça, e pela inserção de diferentes composições musicais: Bolero de Nelson Gonçalves; Carolina, de Chico Buarque; Acalanto, de Dorival Caymi; Coração de Papel, de Sérgio Reis; Século do Progresso, de Noel Rosa e; Era um garoto, dos compositores italianos Migliacci e Lusini.

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Conforme Hutcheon (2001, p.44), “[...] as adaptações de contos por vezes são obrigadas a expandir as fontes consideravelmente”. A relação entre o conto O Desembestado e a peça teatral ilustra essa afirmação, principalmente quando o conto chega ao final – quando o personagem Tancredo, não conseguindo desembestar os amigos, desiste e vai embora – e o texto teatral persiste, agora em um novo trajeto, mobilizado pela inserção da comitiva que acompanha Tancredo. Essa comitiva é necessária à manutenção do comportamento associal e anárquico do personagem; e a sua rememoração, pois o fazem relembra sua fase pobre. Assim, a adaptação feita por Ariovaldo Matos, enquanto criação e prática, engendra, portanto, a construção de regulações internas demandadas pela passagem de um meio unicamente verbal como conto para um meio multifacetado a peça de teatro, “que pode jogar não somente com palavras (escritas e faladas), mas ainda com música, efeitos sonoros e imagens fotográficas animadas, explica a pouca probabilidade de uma fidelidade literal [...] (STAM, 2008, p. 20). Os signos verbais e não verbais manipulados por Ariovaldo Matos para construção da peça A Escolha ou O Desembestado, fixam, contudo, apenas um estado do texto, pois a indeterminação e a incompletude são inerentes à escritura dramatúrgica e o sentido do texto dramático será construído apenas quando seus leitores e/ou encenadores lhe atribuírem outra função e significado quando do processo de leitura e/ou da construção imanente à escritura da montagem teatral. Conforme Ariovaldo Matos, em entrevista a Adinoel Motta Maia (1981, p. 6):

Em 1967, tentando ganhar um Prêmio da Fundação Teatro Castro Alves, escrevi a peça O Desembestado, abiscoitando um segundo lugar (Joao Augusto, hoje morto, infelizmente, com justiça pegou o primeiro). No ano seguinte fui condenado como sujeito altamente subversivo. Levei alguns meses preso e os aproveitei para retrabalhar os textos teatrais [...]. Disso resultou a possibilidade de editar, em 1970, o volume Teatro, contendo aquelas duas peças – A Engrenagem e A Escolha ou O Desembestado [...].

Da fala de Ariovaldo Matos é possível destacar duas questões importantes para a compreensão da circulação de A Escolha ou O Desembestado: o primeiro, que o texto foi adaptado do conto para ser submetido ao concurso promovido pela Fundação Teatro Castro Alves; e o segundo, que este texto foi lido e (re)escrito por ele considerando tanto sua encenação quanto a sua publicação. Com base na fala de Ariovaldo Matos e levando-se em conta a informação de que o autor criava seus textos diretamente na máquina de datilografia, acredita-se que ED.AM.68 seja uma cópia autografa, em que se passou a limpo uma versão anterior, eliminando

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vacilações características de uma primeira tentativa de escrita. Apesar da ausência de elementos que apontem para um processo genético anterior, os procedimentos efetuados por Ariovaldo Matos fornecem subsídios para o entendimento do percurso de escrita, que permitem considerar ED.AM.68 como o testemunho no qual se estabelece um nível terminal do texto, que poderia selar uma última etapa da escritura de A Escolha ou O Desembestado, principalmente devido à importância dada ao registro na SBAT, à época. Conforme Pavis (2007, P.405) “[...] para analisar o texto [no teatro], convém sabermos se o lemos como uma obra literária ou se o recebemos no interior de uma encenação”. Nessa perspectiva, as modificações textuais empreendidas por Ariovaldo Matos em ED.AM.68 possibilitam a alteração da finalidade de A Escolha ou O Desembestado: um texto para ser lido. Observa-se o dramaturgo como leitor de si mesmo, cuja leitura cria outro “futuro” para seu texto, abrindo novos caminhos que mobilizam recortes e enxertos, materializados em ED.AM.70. A partir de uma nova finalidade, dar a ler o texto como objeto de leitura, independente, portanto, de sua concretização cênica, Ariovaldo Matos tece uma nova trama textual, uma nova versão do texto, considerando a difusão coletiva e pública de A Escolha ou O Desembestado, por meio do impresso. Do cotejo estabelecido entre ED.AM.68 e ED.AM.70 apresenta-se o processo de “relação, afirmação e denegação que resulta no texto dado a público” (CAMARGO, 2001, p.202). As diferenças entre ED.AM.68 e ED.AM.70 são expressivas, principalmente, quanto às textualidades didascálicas89. Luiz Fernando Ramos (2001) caracteriza este espaço como o lugar de enunciação imediata do dramaturgo90, que inscreve no literário a dimensão física e tridimensional da cena, articulando a sua encenação no plano imaginário.

Enquanto registro estável daquela primeira encenação imaginária, as rubricas oferecerão ao pesquisador um ponto privilegiado de observação. Serão tanto o último vestígio de uma encenação passada (real ou imaginária), quanto a raiz potencial de todas as encenações futuras. Mesmo que referindo-se a algo que não existe ainda, ou que já não existe mais – um espetáculo efetivo –, refletirão potencialmente, como narrativa literária, a cena desejada pelo seu autor (RAMOS, 2001, p.12-13).

Nessa esfera, a rubrica revela-se ao mesmo um tempo rastro do exercício de criação dramatúrgica e um espaço privilegiado para o direcionamento das leituras do texto. Pode,

89 Ramos (2001) emprega comumente textualidades didascálias e rubricas. 90Urbesfeld (2010) define como distinção fundamental entre diálogo e didascálias, as características da enunciação. No diálogo é a personagem quem fala, enquanto nas didascálias, é o próprio autor que se manifesta, nomeando as personagens, indicando os gestos e ações.

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também, conter informações importantes que servirão como norte para outras encenações virtuais feitas por todos os seus leitores possíveis e/ou leitores especializados, como os encenadores e a equipe de montagem, resultando em espetáculos concretos diferenciados, pois a leitura é “[...] inevitavelmente parcial, pessoal, conjuntural” (STAM, 2008, p. 21). A análise das rubricas de ED, em suas versões ED.AM.68 e ED.AM.70, permite afirmar que esse espaço é caracterizado em ED.AM.70 por apresentar, principalmente, dois elementos: 1) Reescritura do espaço cênico: nesse espaço, Ariovaldo amplia a descrição do espaço cênico, no sentido de demarcar os elementos que compõem a cena e agregar novos signos que materializem o efeito pretendido por ele, tendo em vista à materialização do espetáculo.

Primeiro ato Sala de um apartamento classe média: duas (Sala de um apartamento classe média, duas janelas, a porta que dá para a cozinha, janelas. Percebe-se que, fora, na rua, há outra que comunica com o hall. Percebe-se anúncios a neon, que se acendem e se apagam, que, fora, na rua, anúncios a neon se acendem intermitentemente. De uma porta surge um e se apagam, intermitentemente. Atrás de um homem e uma mulher, ela de robe, biombo – é bom que seja verde e que tenha recompondo o cabelo. Acomoda-se sôbre um flôres impressas – surgem um homem e uma tapête grosso de nylon, branco). (O senhor mulher, ela de robe, recompondo o cabelo. O Albano, funcionário público, e a sra. Zulnara, homem abotoa a camisa. A sugestão é a de sua espôsa, doméstica. que êles estiveram no quarto e se amaram. (ED.AM.68, 1968, f.1) Êle a beija na nuca, ela levanta os ombros: teme ser excitada. Acomodam-se, em seguida, sôbre um tapete grosso, branco, de nylon. São êles o Sr. Albano, de uns 30 anos, funcionário público, e a sra. Zulnara, doméstica, de 25 anos, sua êsposa. (ED.AM.70, 1970, f.1, grifo nosso)

2) Reescritura da cena: neste espaço evidencia-se a importância dada pelo dramaturgo aos aspectos teatrais, como na descrição das relações estabelecidas entre as personagens, das suas emoções e temperamentos, dando particular atenção aos gestos e movimentos, pondo em evidência, ainda, uma preocupação com o ritmo desejado para a peça.

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Enquanto Zulnara responde afirmativamente, Enquanto Zulnara responde mas sem interesse, meneando acabeça. Albano afirmativamente, com gesto de cabeça, mas levanta-se, beija-a na testa, e olha para o sem interesse (ela pensa na Madre Elisa...) aparelho de TV. Soa, porém a campainha. Albano levanta-se, beija-a na testa, e olha Alguém está na porta, Albano marcha para abrí- para o aparelho de TV: tem pressa em ligá- la e mal o faz um homem agitado entra na sala, lo. Soa, porém, a campainha – alguém esta alegre). (Tancredo, Albano, Zulnara) na porta. Albano marcha para a porta, abre- (ED.AM.68, 1968, f.3). a e mal o faz um homem entra na sala, expansivo, alegre. É Tancredo Batista d’Almada (ED.AM.70, 1970, p.53).

Percebe-se pelos acréscimos de rubricas, que há em ED.AM.70 uma preocupação em aumentar o apelo à percepção gestual e visual, sugerindo traços das personalidades dos personagens, que são delineados não apenas através do que falam, mas dos gestos específicos de cada um. Além disso, em ED.AM.70 é visível um aumento significativo do número de rubricas no intuito de suprir, através de elementos cênicos, aquilo que não havia em ED.AM.68 na esfera dos diálogos. A entrega do texto para publicação, que preliminarmente seria um indicador de que Ariovaldo Matos chegara a um suposto texto final, é rasurada na medida em que, no segundo semestre de 1970, ano em que publicara o volume Teatro I, o texto continua a ser encenado, produzindo novas versões advindas de diferentes subjetividades. Percebe-se, deste modo, a impossibilidade de determinar um estado fixado absoluto para o texto teatral.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Na leitura do processo de produção, transmissão e circulação do texto teatral de Ariovaldo Matos são percebidas situações diversas, que apontam para uma tradição ativa, dinâmica e fragmentada. A complexidade das situações textuais encontradas quando o objeto de pesquisa é o texto teatral têm contribuído para uma ampliação ao aporte teórico da Crítica Textual, levando a uma nova forma de atuação que tem como pressuposto o abandono do projeto falido de estabelecer um texto mais próximo do “original”, ou segundo a última “vontade do autor”, voltando-se para uma leitura dos possíveis, dos múltiplos e das rasuras (SANTOS; SACRAMENTO, 2012). Assume-se que, em qualquer projeto de edição, o texto estabelecido é fruto de interpretações que tem como resultados outras interpretações. Cada edição pode ser lida, então, como leitura especializada, como acontecimento, no sentido foucaultiano de “irrupção de uma singularidade única e aguda, no lugar e no momento de sua produção” (FOUCAULT, 1997, p.46-50), pois o que define o lugar único de cada edição são

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as condições de sua produção (subjetivas, temporais, espaciais, estéticas e ideológicas) e as marcas materiais específicas que explicitam o processo de construção editorial. Devemos pensar, ainda, que na prática editorial dos textos teatrais censurados, ainda que o objeto material, o texto escrito, esteja mais facilmente acessível – em decorrência dos acervos e arquivos – e estejamos afastados temporalmente do objeto efêmero que gostaríamos de “reter”, a representação cênica, do ponto de vista da metodologia da edição, devemos buscar compreender o que é próprio da dimensão verbal para evitar que se perca a potência do que caracteriza a dimensão performática/cenográfica. Essas reconfigurações são importantes para a compreensão do objeto texto teatral, dado à fragilidade do senso autoral e de sua instabilidade, constantemente um encadeamento do(s) “’aqui(s) e agora(s)’ de cada cena que se completa(m) publicamente até o cair do pano desta atividade social” (CAMARGO, 2001, p.199). Além disso, fazem emergir novas práticas editorias no campo da Crítica Editorial, onde o inacabamento do texto teatral não representa um entrave ao estabelecimento de edições dinâmicas possibilitadas pelo uso da informática aliado à prática editorial.

REFERÊNCIAS

BARRETO, Ângela. Escritor pensa na literatura como uma aliada da paz. A Tarde, Salvador, 19 maio 1983.

BIASI, Pierre-Marc de. A genética dos textos. Tradução de Marie-Hélène Paret Passos. Porto Alegre: EDIPUCRS; 2010. 176p. – (Coleção DELFUS; 2).

CAMARGO, Robson Corrêa de. Teatro, texto, versão ou versões anteriores: um primeiro encontro entre a Crítica Gen[ética e o espetáculo teatral. In: Manuscrítica – Revista de Crítica Genética. nº 10 (junho de 2001). São Paulo : Annablume / Associação de Pesquisadores do Manuscrito Literário, 2002. Disponível em: < http://www.revistas.fflch.usp.br/manuscritica/article/view/943>. Acesso em: 03 mar. 2015.

FOUCAULT, Michel. Nietzsche, Freud e Marx: theatrum philosoficum. Tradução Jorge Lima Barreto. São Paulo: Princípios, 1997.

HUTCHEON, L. Uma Teoria da Adaptação. Tradução de André Cechinel. Florianópolis: Editora da UFSC, 2011.

KOUDELA, Ingrid Dormien. Brecht: um jogo de aprendizagem. São Paulo: Perspectiva, 1991.

MAIA, Adinoel Mota. Um depoimento do escritor Ariovaldo Matos e a comemoração do Dia Nacional do Livro. Jornal da Bahia, Salvador, 25 out. 1981.

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RAMOS, Luiz Fernando. A Rubrica como literatura da teatralidade. In: Revista Sala Preta. Revista do Programa de Pós-Graduação em Artes Cênicas. v.1. n.1. São Paulo: USP, 2001. PRIEGO, Miguel Ángel Pérez. La edición de textos. Madrid: Síntesis, 1997.

PAVIS, Patrice. Dicionário de Teatro. Tradução sob a direção de J. Guinsburg e Maria Lúcia Pereira. 3. ed. São Paulo: Perspectiva, 2007.

SANTOS Rosa Borges dos; SOUZA, Arivaldo Sacramento de. Filologia e edição de texto. In: SANTOS, Rosa Borges dos; SOUZA, Sacramento de; MATOS, Eduardo Silva Dantas de; ALMEIDA, Isabela Santos de (Orgs.). Edição de texto e crítica filológica. Salvador: Quarteto, 2012. p.15-59.

SILVA, Ana Cláudia Suriani. Linha reta e linha curva: Edição crítica e genética de um conto de Machado de Assis. Campinas: Unicamp, 2003.

STAM, Robert. A Literatura através do cinema: Realismo, magia e a arte da adaptação.

Tradução de Marie-Anne Kremer e Gláucia Renate Gonçalves. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2008.

UBERSFELD, Anne. Para ler o teatro. Tradução José Simões. São Paulo: Perspectiva, 2010.

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O SHOW DO EU91: A CONSTRUÇÃO FICCIONAL NA CORRESPONDÊNCIA DE CAIO FERNANDO ABREU

Mara Lúcia Barbosa da Silva92

Para Paula Sibilia (2008), uma das grandes indagações da atualidade quando o eu e o mundo ordinários tornaram-se o centro das atenções, é o questionamento sobre a veracidade das afirmações divulgadas em blogs, weblogs, fotologs, videologs, sites de compartilhamento de conteúdo multimídia como o YouTube, e redes sociais, como o FaceBook e o finado Orkut. Podemos citar, ainda, o microblog Twitter e o “álbum” de fotografias Instagram, que não foram listados pela pesquisadora. Essas mídias e redes, guardadas as suas devidas proporções, podem ser consideradas, segundo Sibilia (2008), roupagens novas dos secretos diários, das cartas, dos álbuns de fotografia, dos porta-retratos. No entanto, diferem-se entre si, substancialmente, no que se refere à separação entre os âmbitos público e privado da existência, pois, “neste século XXI que está ainda começando, as ‘personalidades’ são convocadas a se mostrarem” (SIBILA, 2008, p. 23), elas expõem agora o que a autora chama de “extimidade” (SIBILA, 2008, p. 29). Outro aspecto de distinção apontado por Sibilia diz respeito à constituição dos sujeitos e das suas subjetividades, entendidas aqui, num primeiro momento, como “modos de ser e de estar no mundo, longe de toda essência fixa e estável que remete ao ‘ser humano’ como uma entidade a-histórica de relevos metafísicos, seus contornos são elásticos e mudam ao sabor das diversas tradições culturais” (SIBILA, 2008, p. 16). Para Sibilia (2008), essas novas formas de expressão, os usos “confessionais” da internet, podem ser classificadas como práticas autobiográficas, considerando-se a definição estabelecida por Philippe Lejeune na qual ocorre um pacto de leitura por parte do leitor, que acredita coincidirem as identidades do autor, do narrador e da personagem de determinada narrativa. Afirma Lejeune, que a autobiografia se define como uma “narrativa retrospectiva em prosa que uma pessoa real faz de sua própria existência, quando focaliza sua história individual, em particular a história de sua personalidade” (LEJEUNE, 2014, p. 16). Ao levarmos em consideração a aproximação estabelecida por Sibilia entre, por um lado, as antigas e as recentes narrativas confessionais e, por outro, o seu questionamento sobre

91Título do artigo remete à parte do título do livro de Paula Sibilia, O show do eu: a intimidade como espetáculo. 92Bolsista de Pós-doutorado PNPD/CAPES – PPGL/UFSM. 250

a veracidade desses relatos, acreditamos que a velha e boa correspondência – produzida por um alguém para outro alguém, a quem se quer, de alguma forma, impressionar, emocionar, convencer, informar, divertir, apaixonar – também possa ser alvo de questionamento quanto à sua plena veracidade, e apresentar, o que nos interessa explorar – um caráter ficcional. Em Epistolografia e crítica genética, Marcos Moraes (2007) já chamava a atenção para a existência de uma mise-en-scène do sujeito signatário, que se molda como personagem em face de seu interlocutor com a finalidade de seduzi-lo. Ele sinaliza também como a crítica genética precisa dar passos cautelosos no universo da epistolografia no sentido de considerar que toda carta propicia a formulação de persona. Pretendemos pensar a epistolografia de Caio Fernando Abreu tendo como noção norteadora a especulação sobre o caráter ficcional que pode se manifestar na correspondência, cujo objeto de análise, no momento, é o livro organizado por Italo Moriconi, Caio Fernando Abreu: cartas, composto pela seleção de 152 missivas enviadas pelo autor para conhecidos, colegas de profissão, amigos e familiares entre 1965 e 1996, ano da sua morte, vitimado pela aids. A correspondência de Caio Fernando Abreu é muito extensa e está depositada em vários centros de pesquisa pelo Brasil, sendo um deles o Delfos – Espaço de Documentação e Memória Cultural93, localizado na Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUCRS), em Porto Alegre. O Delfos abriga dezenas de acervos e o de Caio apresenta um total de 2.780 itens, dos quais 1540 se referem à categoria correspondência, que compreende, além das cartas, cartões postais, bilhetes, convites currículos e documentos comerciais, entre outros. Existe, portanto, bastante material a ser explorado, o que demanda a solicitação de autorizações à instituição, à família e a alguns dos destinatários. Na introdução da coletânea, Moriconi declara:

Na medida em que o trabalho de Caio era escrever, as cartas fazem parte do mesmo movimento produtivo de que brotam suas crônicas, suas ficções, suas peças teatrais, suas resenhas e matérias jornalísticas, assim como presumivelmente seu diário, ainda não revelado ao público. Tudo produto de um mesmo processo de vida se fazendo na escrita, enunciação e enunciado condicionando-se mutuamente, escrita alimentando-se de vida, vida transcendida pelo simbólico, metáfora que universaliza. (ABREU, 2002, p. 15)

93CAIO FERNANDO ABREU. Disponível em: . Acesso em: 20 jan. 2016.

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A organização estabelecida por Moriconi divide-se em duas partes. A seção Começo: o escritor compreende o período de 1965 a 1979, quando Caio parte de Santiago do Boqueirão, sua cidade natal, para morar em Porto Alegre. Nessas páginas, apresentam-se os primeiros movimentos da vida profissional de Caio, que se assina Caio Fernando Abreu, ou apenas Caio, na maioria das cartas. Na outra seção – que inicia o livro –, Todas as horas do fim, surge o alterego, Caio F., nome criado como uma brincadeira em referência ao título brasileiro da obra Eu, Christiane F., 13 anos, drogada e prostituída, originada de depoimentos da jovem adolescente alemã, Christiane Vera Felscherinow, sobre a sua vida de drogas e prostituição na Berlim dos anos 1970. Essa assinatura (Caio F.) acompanhará o autor, ao longo de sua vida, e se tornará sua marca registrada, ironicamente adjetivada de várias formas: inicialmente, como o primo de Christiane F.; depois, como o primo Brazilian de Christiane; o primo careta de Christiane; o primo intelectualizado de Christiane; I’m the best; finalmente, um escritor positivo!; still alive ou the Christiane’s brother. Nesse conjunto de correspondência de Caio Fernando Abreu, podemos observar as vertentes apontadas por Marcos Moraes no artigo Mário de Andrade: epistolografia e processos de criação (2006), no qual afirma que a correspondência de escritores abre-se, normalmente, para três grandes perspectivas de exploração: como expressão testemunhal, que define um perfil biográfico do autor; como forma de se conhecer os bastidores da vida literária do autor, como seus problemas, arranjos e as burocracias que enfrentou; e, como laboratório de criação, ao permitir que se adentre por um projeto literário, conhecendo-o desde a sua concepção primeira e acompanhando-o, através de sua trajetória criativa e editorial. Além dessa tríade exploratória, acreditamos que a epistolografia de Caio F. nos possibilita identificar mais duas perspectivas de estudo. A primeira delas é a da correspondência como espaço de observação do contexto que o circunda. Nesse caso, ele cria uma espécie de crônica da situação social brasileira, o que, de certa maneira, é também uma forma de expressão testemunhal, já que apresenta o modo como o autor percebe o Brasil e suas circunstâncias, bem como o modo como elas o afetam. Para ilustrar esse aspecto, citamos uma carta de Caio para o amigo e diretor teatral Luciano Alabarse, de 28 de janeiro de 1985, enviada de São Paulo, para onde se mudara dias antes. Caio menciona a eleição para a Presidência da República de Tancredo Neves, ocorrida em 15 de janeiro:

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Estou aqui há exatamente 12 dias. Foi difícil mudar. É sempre difícil. Primeiro fugi, adiei coisas. Depois aceitei, ganhei alguma energia no dia exato da eleição de Tancredo Neves – mudei no dia seguinte, em ritmo de ‘Muda Brasil (ABREU, 2002, p. 104).

A mudança de casa – uma alteração física, espacial –, é mobilizada pela possibilidade de que ocorram transformações no país com a chegada de um civil ao poder, representante da união das forças de oposição a um governo que se estabelecera de forma repressora e autoritária, tendo se estendido por 20 longos anos. Contudo, a esperança de Caio e dos brasileiros que estavam cientes do que, de fato, acontecia no país, teve curta duração. Tancredo Neves foi acometido por uma grave doença que o levou à morte, causando o temor de nova regressão política. Caio comenta tal situação, também para Alabarse, em 12 de abril do mesmo ano:

Creio que Tancredo morre entre hoje e amanhã. Acho essa história de uma ironia e de uma crueldade raras. Tudo muito nefasto, como diria o Gil. Sim, teremos que engolir Sarney e outro governo tipo Figueiredo – e mais inflação, e mais desemprego, e mais terceiro-mundismo, e mais solidão e desencontro entre as pessoas. Tudo caminha aceleradamente para o fim, e nós vamos ter que assistir Armagedon de dentro ( ABREU, 2002, p. 123).

Em vários outros momentos de sua correspondência, Caio demonstra, de forma crítica, o seu ponto de vista sobre os acontecimentos que ocorriam no país, questões elencadas em outro recorte de nossa pesquisa. A outra perspectiva apontada – na qual nos deteremos – é a da correspondência como espaço de ficcionalização do espaço onde o autor vivia. Italo Moriconi atesta que sua seleção e organização das cartas de Caio observam esse caráter:

Busquei recuperar o romance fragmentado de uma vida. No romance de uma vida, mais por ser romance do que por ser vida simplesmente, tudo que é relatado parece adquirir sentido, sendo o sentido maior dado pelo próprio fim da vida, ponto final do romance mas não necessariamente fim do escritor, já que escritor e escritora são aqueles indivíduos que sobrevivem a si próprios através de carta deixada aos pósteros, sua obra escrita. Diante dos dois limites, o começo e o fim, o que acontece no meio adquire características de verdadeiro épico do cotidiano. (Apud ABREU, 2002, p. 16)

O corpus que analisaremos já nos conduz, portanto, nesse sentido, mas acreditamos em poder acrescentar alguns aspectos novos a tal discussão. Provavelmente, as vidas de todos nós, com os devidos e bem selecionados recortes, algumas mais outras menos, resultariam em

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romances, novelas ou, na “menor” das hipóteses, narrativas curtas. E, considerando um documento (uma carta) que nos põe a par de determinados fatos, num contexto epistolográfico-narrativo, parece-nos que a constituição de uma persona é um caminho praticamente incontornável e até natural. Nesse sentido, a vida de Caio, o Fernando Abreu, assim como as suas cartas, constituem um ser humano, um artista intenso, múltiplo, criativo e dramático. Por formação – iniciou o Curso de Arte Dramática, trabalhou como ator e “ensaiou” ser diretor, mas acabou por se dedicar à dramaturgia – e sua natureza, sob a própria pena, tem todo o escopo para ser ficcionalizada. Escrevendo para Sérgio Keuchgerian, de São Paulo, aos 27 dias de janeiro de 1987, à época trabalhando no jornal Estado de São Paulo, Caio relata uma situação vivenciada na Suécia, em 1973:

Lembro dos meses que passei em Estocolmo, numa cidade universitária – Kungshambra – onde só havia suecos, dinamarqueses, finlandeses, noruegueses. Teve uma noite de lua cheia – e era midsummer, pleno verão, não havia noite, só duas horas de penumbra crepuscular – que saí a caminhar em busca de alguém para conversar. Dizer ôi (ou hei, em sueco), ou Inte präte svenska (“não falo sueco”) que fosse. E nada, não encontrei ninguém. Caí (pode?) no meio do asfalto chorando. Arranhei as unhas no asfalto de pura solidão. E aquela lua cheia enorme lá em cima, e os bosques atrás, com os castelos de verão do rei – tudo parecia sinistro. Parecia que eu ficaria para sempre lá, ao lado do Pólo Norte, e que isso não tinha o menor sentido. (ABREU, 2002, p. 147)

No trecho relatado, é possível constatar que há um processo de ficcionalização da situação referida, na medida em que ao relato é impresso certo exagero, bem como nos atos, nos sentimentos e no cenário envolvidos: tudo parece sinistro, sendo que a lua é cheia, enorme, assim como a solidão. O fato é que o narrar é inerente ao homem e a narração tem a característica primordial de relatar o que já se passou. Nesse sentido, todo e qualquer movimento executado pelo homem torna-se passado num piscar de olhos e, assim, tudo é passível de ser narrado. Um fato relatado, narrado numa correspondência, passa por pelo menos dois filtros: o da memória, que, para o Caio F.: “é safada: elimina o amargo, a peneira só deixa passar o doce” (ABREU, 2002, p. 92); e o da linguagem, que, conforme Sibilia:

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não só ajuda a organizar o tumultuado fluir da própria experiência e a dar sentido ao mundo, mas também estabiliza o espaço e ordena o tempo, em diálogo constante com a multidão de outras vozes que também nos modelam, coloreiam e recheiam” (SIBILA, 2008, p. 31).

Esses dois filtros são intrínsecos à constituição de quaisquer relatos eprocessos, mesmo que inconscientes, de ficcionalização. Na carta para a amiga Jacqueline Cantore, em 20 de maio de 1983, Caio trata da sua saúde e reproduz um recurso que costuma utilizar em algumas de suas narrativas – o emprego de hífens unindo as palavras de uma frase:

Claro que puxei meu chicotinho de vison (aquele da Fiorucci) e dê-lhe: oh-o- que-estou-fazendo-da-minha-vida-sozinho-e-abandonado-num-hotel-talvez- com-uma-pneumonia-dupla-como-é-que-vim-parar-aqui-se-morrer- asfixiado-durante-a-noite-só-vão-descobrir-daqui-a-um-mês-porque- ninguém-vai-se-importar-etc-e-etc (ABREU, 2002, p. 45)

Podemos perceber, nessa fala hifenizada, a presença do mesmo caráter melodramático da citação anterior, ao enfatizar ironicamente o autoflagelo, com um chicote de grife, bem como, a solidão. Em correspondência posterior, também para Cantore, em junho de 1983, Caio relata uma discussão que tivera com a poeta Ana Cristina Cesar (Ana C.) sobre uma paquera entre ele e outro amigo dela, que era comprometido. Caio reproduz o diálogo, colocando aspas nas falas e termina escrevendo: “Corta para mim, na chuva, caminhando horas perdido no fim do Leblon sem achar táxi nem ônibus nem viv’alma. ” (ABREU, 2002, p. 56). Percebemos que o missivista utiliza-se de um recurso que seria o modo dramático da narrativa, ao dar voz às “personagens”, que no drama presentificam a cena, o diálogo, a ação. Utiliza-se, também, de um termo do cinema – corta-, trazendo o foco da situação para si, enfatizando a recorrente menção à solidão. Ainda nessa longa carta, são apresentadas sete laudas impressas e Caio reproduz, novamente, o emprego do hífen. Aparentemente, esse recurso não se apresenta como um uso restritivo ou específico em seu texto, pois pode ser empregado como uma pausa, um corte, uma cisão na narrativa que se produz, muitas vezes, como um fluxo de consciência, conforme a frase a seguir: Torturas, não-devo-ir-sim-devo-ir-mas-ele-tenho-certeza-que-não-irá-é-tudo- uma-trama-e-se-pintar-o-caso-ou-Ana-e-derem-escândalo-não- definitivamente-não-vou-só-passo-em-frente. Tomei banho, acendi vela para Oxalá. E fui. (ABREU, 2002, p. 56)

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É interessante comentar que, assistir a filmes no cinema era um dos prazeres de Caio F.; em várias de suas cartas, ele comenta o que deseja assistir, o que já assistira, faz críticas e recomendações aos seus destinatários. Portanto, relatar fatos, pensando na própria vida como um filme é uma estratégia perfeitamente compreensível para o autor. Em carta para Luciano Alabarse, em 24 de agosto de 1984, Caio narra um acontecimento como se fosse a cena final de um filme:

A propósito: depois de uma noite linda com Pedrinho, [...] a última imagem foi a ponta do dedo indicador dele acariciando a ponta do meu dedo indicador através das grades da janelinha do elevador. Cena de cinema. E a voz dizendo que vinha a São Paulo daqui a uma, quem sabe duas ou três semanas. Porta do elevador fecha enquanto sobem os créditos. (ABREU, 2002, p. 95)

A amiga, Jacqueline Cantore, também chamada de Marilene, modo como o próprio Caio também se autodenomina em algumas missivas, é a destinatária de uma carta de 26 de março de 1985, na qual o trânsito entre o que entende como realidade como e ficção torna-se flagrante, através do emprego de vários recursos – alguns narrativos – na descrição de uma tragicômica cena caseira cotidiana:

Marileeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeene, sinto-me à beira de receber uma carta thua, mas não consigo me controlar de tanta novidade, chê. Então me ponho a escrever, 15 para as quatro de um dia paranóide (Tancredo está hospitalizado nas Glínicas daqui, dizem que levou um tiro do segurança, meeeeeedo total – mas isso é pano de fundo social), eu aqui sozinho, após a saída de Hilda, the slave. Bueno, vamos lá. S’as que ontem, segunda, esta Marilene aqui QUASE MORREU QUEIMADA? Estava ela no fogão, mui lépida, assando umas coxas de franga, quando eis senão que sente um odor estranho vindo das bandas do dito fogão. Ela estava, mui poeticamente, de costas para o fogão, observando aquela pêxa grávida no aquário, que não se decide a parir (vão ser arianos, os demônios, eu esperava pêxes de Pêxes, s’as?). Então me viro (observe a mudança espontânea & natural da têrcera para a primêra pessoa) e eis que, atrás do fogão, vejo CHAMAS ENORMES ATÉ QUASE O TETO. [...] Marilene, ousadíssima, queria avançar entre as chamas para DESLIGAR O FORNO (ela não tinha grana para comer e sua maior preocupação era que as coxas ficassem inutilizadas, isto é, carbonizadas). Bueno, corremos para o corredor do prédio. [...] Gritos, sussurros, gemidos, faniquitos. Fumaça, cheiro de gás, “apaguem os cigarros!” (Marilene correu para seu quartinho e, num sopro, apagou a vela de sete dias, juro), & LABAREDAS CADA VEZ MAIS ALTAS. Bom, o extintor apagou tudo: espuma branca por toda a cozinha e toda a sala. E fim. Marilene foi espiar se a pêxa tinha abortado: raçuda, ela – continua grávida. Ai, a tremedeira. Que medo! (ABREU, 2002, p. 115-116).

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O trecho citado apresenta recursos, como: a presença da figura queer de Marilene, que é tanto o signatário “travestido”, como uma figura feminina (Marilene, a incendiária) da qual fala na 1ª e na 3ª pessoas, quanto, também, a destinatária (a sua interlocutora, Jacqueline Cantore); o intertexto na menção ao filme Gritos e sussurros, de 1972, de Ingmar Bergman, e na aproximação ao clima do teatro besteirol e seu humor ligeiro, descompromissado; a metaficção, ao comentar o próprio ato de escrita, chamando a atenção da mudança da 1ª para a 3ª pessoa na narrativa, aliada à constatação de que a menção a Tancredo Neves e à situação na qual se encontra fazem parte do fundo social à narração, que está empreendendo; a escrita em 1ª pessoa, como autor da carta, e a escrita na 3ª pessoa, introduzindo um narrador observador e colocando-o como personagem da narração. Nessa carta, há um imbricamento espontâneo e habilidoso das instâncias do que entende por realidade e também ficção.

Leyla Perrone-Moysés, no artigo “Sinceridade e ficção nas cartas de amor de Fernando Pessoa” (2000), relata uma interessante situação quanto à existência de “personagens” na epistolografia. Trata-se da intervenção, no namoro real de Fernando Pessoa e de Ofélia, do heterônimo Álvaro de Campos, a quem a jovem tratava como um ser de carne e osso. Ao longo do namoro, o fictício Campos torna-se cada vez mais presente na correspondência trocada pelo casal, ao ponto de acabar substituindo Pessoa, tornando-se, assim, um dos pivôs do rompimento da relação. A obra ficcional de Caio Fernando Abreu conseguiu traduzir de modo exemplar a sociedade que o circundava; não é, portanto, à toa que ele se tornou um ícone de sua geração. Segundo Regina Zilberman (1992), a narrativa de Caio centra-se no âmbito interno das figuras humanas, que são muitas vezes esvaziadas de sua identidade. Essa situação é ocasionada por um modo de convivência imposto por uma sociedade que corrói a personalidade do indivíduo e cuja consequência constitui uma solidão constante, que se perpetra pela impossibilidade de recuperar os laços afetivos. E, por seu lado, a “obra epistolográfica” de Caio F. apresenta riqueza, intensidade e profundidade tais, que não deve em nada à sua ficção, pois a persona que emerge dessas laudas é tão interessante e inquietante quanto os seus homo fictus. A persona Caio F. trazida à tona por sua correspondência, também nos permite observar um ser caleidoscópico nas suas percepções e emoções, de quem é possível notar uma subjetividade delineada também através da interlocução do autor com seus correspondentes, com “o outro”. Segundo Paula Sibilia:

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Há limites, porém para as possibilidades criativas desse eu que fala e desse eu que se narra. Pois o narrador de si não é onisciente: muitos dos relatos que dão espessura ao eu são inconscientes ou se originam fora de si: nos outros; aqueles que, além de serem o inferno, são também o espelho e possuem a capacidade de afetar a própria subjetividade. Porque tanto o eu quanto seus enunciados são heterogêneos: para além de qualquer ilusão de identidade, eles sempre estarão habitados pela alteridade. Toda comunicação requer a existência do outro, do alheio, do não-eu, por isso todo discurso é dialógico e polifônico, inclusive os monólogos e os diários íntimos: sua natureza é sempre intersubjetiva. Todo relato se insere em um denso tecido intertextual, entremeado com outros textos e impregnado de outras vozes – absolutamente todos, sem excluir sequer as mais solipsistas narrativas do eu (SIBILIA, 2008, p. 31-32).

No conjunto de cartas organizado por Moriconi, as outras vozes são perfeitamente perceptíveis no jogo epistolográfico de Caio Fernando Abreu. Temos um universo de 32 correspondentes, entre os diversos amigos, dos mais aos menos íntimos, além de familiares, parceiros de empreitadas comerciais, etc. Na correspondência de Caio F. as várias facetas que vêm à tona aparecem através de um jogo narrativo, que pode ser mais ou menos ficcional, mais ou menos revelador. As cartas para os pais relatam seus passos profissionais, as questões financeiras, algumas das suas inquietações de alma. As destinadas aos amigos íntimos dão conta dos sucessos e dos desenganos amorosos, dos périplos sexuais, da vida noturna, também das inquietações da alma, do que ele lê, das pessoas que conhece e com quem tem convivido. Já as missivas para amigos com os quais há o compartilhamento do ofício, Caio fala sobre o escrever, sobre como essa questão se dá para ele, sobre o modo como ocorrem negociações, contatos e contratos, sobre os problemas para editar e publicar, as atividades que cercam a publicação e divulgação de um livro. Não é possível fazer uma divisão estanque desses eus que se manifestam, em maior ou menor grau, ao longo de sua correspondência, mas não há dúvidas de que são eus distintos. A troca epistolar realizada por Caio parece-nos que adquire também um caráter de autoanálise, pois ele empreende um “derramamento emocional” que, em muitos momentos, assemelha-se a um monólogo, a um solilóquio, cuja finalidade parece ser poder ouvir-se a si mesmo. Esse eu que se busca e os outros eus, que se percebem nesse trânsito epistolar, dão conta de uma subjetividade característica da era moderna, momento no qual surge a ideia de intimidade, de recolhimento pessoal que, paradoxalmente, convocava os sujeitos, reclusos em seus espaços de intimidade, a se “confessarem”, num movimento no qual “o universo íntimo veio à tona, em meio àquele intenso movimento que enalteceria a autenticidade de cada um” (Sibilia, 2008, p. 106).

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Para Paula Sibilia (2008), a subjetividade não é algo imaterial, que reside no sujeito; toda subjetividade é embodied, encarnada em um corpo, e embedded, embebida, em uma cultura intersubjetiva. É inegável que a experiência do sujeito deva ser modulada pela interação com os outros e com o mundo. Quando ocorrem mudanças no âmbito externo, cultural, o campo da experiência subjetiva também se altera, em jogo por demais múltiplo, complexo e aberto. Ainda segundo Sibilia (2008), as experiências subjetivas podem ser estudadas em função de três perspectivas diferentes: a primeira, num nível que focaliza a trajetória de cada indivíduo como um sujeito único; a segunda abrange todas as características comuns ao gênero humano; e a terceira envolve uma dimensão, que visa detectar aqueles elementos comuns a alguns sujeitos e contempla aqueles aspectos da subjetividade claramente culturais, frutos de certas pressões e forças históricas nas quais intervêm variados vetores, que impulsionam o surgimento de certas formas de ser e estar no mundo. A subjetividade da modernidade, que subjaz à figura de Caio Fernando Abreu, apresenta-se tanto na sua obra ficcional que, como já dito anteriormente, ele soube de modo exemplar captar as idiossincrasias de seu tempo, quanto nas suas escritas de si, nas quais o indivíduo Caio Fernando Abreu apresenta algumas de suas múltiplas faces. Para Caio escrever era um ato visceral: “[...] Pra mim, e isso pode ser muito pessoal, escrever é enfiar um dedo na garganta. Depois, claro, você peneira essa gosma, amolda-a, transforma, pode até sair uma flor. [...]” (ABREU, 2002, p. 519), por isso escrevia poemas, narrativas, dramas, diários e cartas, sobre as quais dizia: “A gente não deve permitir que as cartas se tornem obsoletas, mesmo que talvez já tenham se tornado.” (ABREU, 2006b, p. 196). Temos a noção plena de que estamos trabalhando com um recorte já realizado pela leitura de Italo Moriconi. Nossa intenção no presente trabalho era chamar a atenção para aspectos específicos da ficcionalização da vida de Caio Fernando Abreu, personagem de suma importância, não só na história do contexto literário brasileiro, mas também como homem de seu tempo.

REFERÊNCIAS

ABREU, Caio Fernando. Caio Fernando Abreu: cartas. Org. Italo Moriconi. Rio de Janeiro: Aeroplano, 2002.

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ABREU, Caio Fernando. Correspondência (1980-1987). In: ______. Caio 3D: o essencial da década de 1980. Rio de Janeiro: Agir, 2006b. p. 193-251.

CAIO FERNANDO ABREU. Disponível em: < http://www.pucrs.br/delfos/?p=caiofernando>. Acesso em: 20 jan. 2016.

LEJEUNE, Philippe. Pacto autobiográfico: de Rousseau à internet. Tradução de Jovita Maria Gerheim Noronha e Maria Inês Coimbra Guedes. Org. Jovita Maria Gerheim Noronha. 2. ed. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2014.

MORAES, Marcos Antonio de. Epistolografia e crítica genética. CIÊNCIA E CULTURA. Revista da Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência, Rio de Janeiro, n. 1, p. 30-32, jan./ fev./ mar. 2007.

MORAES, Marcos Antonio de. Mário de Andrade: epistolografia e processos de criação. MANUSCRÍTICA. Revista de Crítica Genética. São Paulo: APML, n. 14, dez. 2006. p. 65-70.

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SIBILIA, Paula. O show do eu: a intimidade como espetáculo. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2008.

ZILBERMAN, Regina. A literatura no Rio Grande do Sul. 3. ed. Porto Alegre: Mercado Aberto, 1992. (Série Revisão, 2

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CONEXÕES E INTERAÇÕES DO PROCESSO DE CRIAÇÃO NO ENSINO DE DESIGN DO PRODUTO: MODOS DE DESENVOLVIMENTO DO PENSAMENTO

Marcelo José Oliveira de Farias94

PROCESSO DE CRIAÇÃO NO ENSINO DO DESIGN

Este artigo é parte das inquietações, que movem a pesquisa de doutorado que venho desenvolvendo no âmbito do Programa de Estudos Pós-Graduados em Comunicação e Semiótica da PUC-SP, sendo a sua questão central: Como o projeto de design do produto na formação profissional confronta com as estratégias do aluno de design no processo criativo em rede? Assim, estamos no domínio do empírico, partimos para observar e analisar as conexões (ligações, uniões, vínculos) e interações (influência mútua, ação recíproca) na dinâmica do ensino de design do produto, que se estabelecem entre a invariável – programa ou paradigma moderno expresso no projeto de design do produto –, e a variável – estratégias do aluno de design como decisão, coordenação e ação das forças implícitas no contexto da criação. Para compreendermos tais conexões e interações do processo de criação no contexto do ensino de design do produto, que orientam a construção e o desenvolvimento do pensamento do aluno, decidimos acompanhar, observar e registrar as atividades desenvolvidas em sala de aula no Curso de Design da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo – Fau-Usp, e no Curso de Design industrial do Centro Universitário Senac-SP, que compõem amostra representativa do cenário atual das escolas no Brasil. Para fundamentar esse estudo, adotamos a perspectiva teórica da crítica de processo de criação desenvolvida por Salles (2011; 2010; 2008ª;2008b), que analisa o fenômeno da criação em termos de rede, descrita como um processo contínuo de interconexões instáveis, gerando nós de interação, cuja variabilidade obedece a alguns princípios direcionadores. As conexões e interações que se estabelecem na criação oferecem, assim, indicações para o modo como se organizam as tramas do pensamento, revelando aspectos organizadores, direcionadores e comunicacionais no âmbito do ensino de design.

94Doutorando Programa de Estudos Pós-graduados em Comunicação e Semiótica da PUC/SP na linha de pesquisa II – Processo de criação nas mídias. 262

Com base na teoria da crítica de processo, adotamos o postulado dos três tipos de raciocínio, argumento ou inferência, empregados em “[...] toda ou qualquer investigação científica: abdução ou descoberta de uma hipótese; dedução ou extração das consequências da hipótese; indução ou teste da hipótese” (SANTAELLA, 2005, p. 41), estipulados por Peirce na sua Semiótica Geral (ciência formal e normativa) ou Lógica crítica, no sentido lato.

DESIGN DO PRODUTO

É uma atividade criativa, que se utiliza de processos de observação, imaginação, configuração e representação, com o propósito de organizar e arranjar elementos técnicos e estéticos numa linguagem de produto, por meio de um percurso denominado projeto, a fim de viabilizar sua produção material. Nesse sentido, “design é uma atividade, que agregada a conceitos de criatividade, fantasia cerebral, senso de invenção e de inovação técnica[...] gera expectativa de o processo de design ser uma espécie de ato cerebral” (BÜRDEK, 2006, p. 225). Estamos tratando de um modo de produção cultural, que se desenvolveu a partir do século XVIII com a Revolução Industrial sob as aspirações e promessas do programa e paradigma do pensamento moderno; ou seja, uma atividade, segundo Cardoso (2000, p.16), marcada por uma “ambiguidade, uma tensão dinâmica, entre um aspecto abstrato de conceber/projetar/atribuir e outro concreto de registrar/configurar/formar”. Assim, design é entendido como um ofício em movimento, com fronteiras borradas e indefinidas, em que aspectos abstratos e concretos se inter-relacionam para compor um percurso de criação orientado pelo conceito de projeto.

O ENSINO DO DESIGN NO BRASIL

Diante da questão apresentada, inicialmente, decidimos recuperar acontecimentos significativos da história do design no Brasil, que definiram o seu rumo. Sua origem e instalação foram marcadas por duas escolas alemãs, a pioneira e notória Escola Bauhaus, fundada em 1919 por Walter Gropius, e a Hochschule für Gestaltung (Escola Superior da Forma) – HfG de Ulm, fundada em 1953 por Max Bill. A primeira, sob a influência das artes abstratas e da pintura cubista na virada do século XIX para o XX, buscou uma nova e moderna unidade entre a arte e técnica, com ênfase no modelo indutivo dado pela “auto- experimentação e auto-averiguação” (BÜRDEK, 2006, p. 26). A segunda foi a mais

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importante iniciativa após a Segunda Guerra Mundial, que articulou um forte interesse da ciência com a configuração, influenciando “[...] a teoria, a prática e o ensino do design, assim como a comunicação de diversas formas [...]” (BÜRDEK, 2006, p. 41). Nesse sentido, ambas orientaram a criação de muitas escolas pelo mundo. O deslocamento e a tradução da plataforma e do programa de ensino da HfG de Ulm definiu o modelo e a estrutura da primeira Escola Superior de Desenho Industrial – Esdi, criada no Rio de Janeiro em 1962, bem como, das demais escolas de desenho industrial95, que surgiram no país. A transposição dessa matriz com tradição no design racionalista alemão, que adotava métodos matemáticos com rigor científico, produziu, consequentemente, reflexos involuntários numa cultura “tropical”, marcada por fluxos e cruzamentos. Como explica Niemeyer (2007, p. 123), “a imposição desses padrões, contrários as nossas raízes barrocas, impediu a expressão da estética modernista na escola e coibiu, por longo tempo, a emergência de outras abordagens”. Construída sob uma perspectiva estrangeira, restrita às questões do ambiente acadêmico e contrária a um modo de pensar entrecruzado, a Escola Superior de Desenho Industrial negou seu contexto cultural “mestiço e barroco96”. Assim, o discurso do design no Brasil manteve, por décadas, relativo estranhamento com a cultura brasileira. Como exemplifica Flusser (1998, p.100), “alienação tem significado relativo à realidade, e estar alienado significa estar separado da realidade”.

PARADIGMA E PARADIGMA MODERNO – PENSAMENTO DEDUTIVO

A partir desse panorama, passamos a compreender porque a sólida matriz do paradigma moderno, unido ao racionalismo e funcionalismo alemão definiram nosso modo de pensar, ensinar e fazer design com ênfase no dedutivo; ou seja, de fora para dentro, tendo como referência a produção estrangeira. Consequentemente, esse trajeto histórico interviu nas nossas crenças, em nossos valores e conceitos sobre design. Outro fato que corrobora para esta análise foi o distanciamento entre a proposta de ensino de design da Esdi em relação ao processo de industrialização brasileira iniciado na década de 1950, que objetivava copiar ou reproduzir o design dos produtos europeus e americanos. De acordo com Niemeyer (2007, p. 20), sabemos que em se tratando da Esdi, “os

95 Desenho Industrial era a nomenclatura atribuída, naquele período, aos cursos de design do produto. 96 O termo mestiço aqui não remete a cor, mas aos métodos e modos de organização do pensamento não binários. (PINHEIRO, 2013, p. 94).

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responsáveis pela atividade acadêmica da escola [...] privilegiaram seu isolamento e independência, valorizando a preservação de modelos internos, em detrimento da integração na dinâmica universitária”. O caráter dogmático defendido pela Escola Superior de Desenho Industrial reforçou o distanciamento dos alunos da possibilidade de desenvolver uma visão crítica do papel do design na cultura brasileira sob a perspectiva dos princípios propostos pela HfG de Ulm. Como foi sinalizado no tópico anterior, o posicionamento defendida pela Esdi ignorou, também, as ideias do movimento modernista brasileiro, que tinha como enfoque entrelaçar elementos da cultura brasileira com as tendências artísticas das vanguardas europeias na primeira metade do século XX. Logo, as circunstâncias de como o ensino do design foi instalado produziu efeitos na construção e no modo de desenvolvimento do pensamento do designer. As experiências culturais que nos acompanham, como uma matriz que estrutura o conformismo e uma normalização, impõem um traço no modo de fazer design, denominado por Morin (2011, p. 29) como imprinting cultural, que “[...] marca os humanos, desde o nascimento, com o selo da cultura, primeiro familiar e depois escolar, prosseguindo na universidade ou na profissão.”

PROJETO DE DESIGN DO PRODUTO – PENSAMENTO DEDUTIVO E INDUTIVO

Design, portanto, é um processo lógico e sistemático, orientado por regras, normas e requisitos, mas também por experimentos, descobertas e inferências. Assim, podemos definir o projeto de design do produto como um método de caráter científico, próprio do pensamento dedutivo (de fora para dentro), mas que abre espaço para o indutivo (de dentro para fora). Nesse sentido, não estamos tratando de um método específico, mas da sobreposição dos diversos procedimentos discutidos pelas metodologias de design do produto que, apesar das diferentes denominações, conservam o mesmo eixo, caracterizado pela sequência e sucessão ordenada de fases: (1) Definição do problema; (2) pesquisa; (3) requisitos; (4) desenvolvimento; (5) solução, que orientam o percurso da criação, denominado de projeto de design do produto. Foi possível constatar, na primeira fase deste estudo, por meio das observações no acompanhamento das aulas e através das declarações de alguns professores, que existe uma tensão dinâmica entre, por um lado, o eixo do projeto, as estratégias e decisões dos alunos no percurso descrito,, e por outro, uma tendência ao desvio e afastamento das coordenadas do projeto. Diante desse fato, teóricos do design emitiram suas ressalvas, declarando que os

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métodos não devem ser utilizados como “receitas”, fórmulas ou prescrições. Como declara Bürdek (2006, p. 256), “ao treinamento em métodos de projeto pertence à necessidade de saber em que casos deve se aplicar qual repertório. Sobretudo este fato requer uma distância crítica da metodologia”. Para Bomfim (1995, p. 5), o método não é promessa de solução, mas depende de um programa interdisciplinar:

Métodos nada mais são do que instrumentos de trabalho e, portanto, é preciso evitar o mito de que sua utilização em projetos é garantia de sucesso. O bom resultado de um projeto depende da capacidade técnica e criativa de quem o desenvolve. Métodos e técnicas podem, contudo, auxiliar na organização, ou seja, oferecem suporte lógico ao desenvolvimento de um projeto.

Apesar dessas recomendações sobre o uso do método de projeto, as estratégias e manobras do pensamento criador do aluno são desconsideradas e ignoradas no processo de design, comumente apresentado como um dado implícito que pertence ao campo da subjetividade e do inconsciente, inerente ao aluno criador. Por meio dessa constatação, não estamos negando a relevância e importância do projeto; afinal, por meio da adoção do método projetual “[...] o design se tornou quase que pela primeira vez ensinável, aprendível e com isto comunicável” (BÜRDEK, 2006, p. 226).

PROCESSO CRIATIVO EM REDE – PENSAMENTO DEDUTIVO, INDUTIVO E ABDUTIVO

Em relação ao design, um processo criativo [...] sem dúvida, (BÜRDEK, 2006), depende do domínio, da articulação e coordenação dos três tipos de pensamento: dedutivo (prescrição), indução (experimentação) e abdução (iluminação), já mencionados, que correspondem aos conceitos de tendência normativa, ação transformadora e acaso, que movem o percurso da criação em rede. O pensamento abdutivo é entendido, neste estudo, como o pensamento que surge luminosamente, ou seja, “de repente, enquanto estamos pensando sobre os fatos e nos esforçando para organizá-los [...]” (SALLES, 2011, p. 169). No entanto, vale sublinhar que esse tipo de raciocínio encontra-se “ausente” dos estudos sobre processo de design. Os motivos desse fato não são contemplados pelo presente estudo, porém, é preciso considerar seu impacto na construção e no desenvolvimento do pensamento do aluno de design.

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Logo, entendemos que a presença do raciocínio abdutivo no indutivo e dedutivo contribui para o conhecimento humano; ou seja, para a compreensão do pensamento complexo e para a tomada de consciência do processo de criação pelo designer a fim de que não se defendam as velhas dicotomias como: configuração objetiva e subjetiva; racional e emocional; formal e funcional:, estética e técnica; de aparência e de conteúdo, dentre outras, que enfraquecem as reflexões no campo do design. Segundo a teoria da crítica de processo, a criação é descrita como rede em construção. Estamos tratando, portanto, de uma ação transformadora, de um “percurso criativo observado sob o ponto de vista de sua continuidade [...] numa cadeia de relações, formando uma rede de operações estritamente ligadas” ( SALLES, 2011, p. 93). Esse novo paradigma está associado ao pensamento das relações e múltiplas conexões em permanente mobilidade, com o propósito de se compreender os diferentes modos como se organizam as tramas do pensamento na criação. No projeto de design do produto, o percurso ocorre por meio de processos interativos de conexão, inter-relação e interlocução, ou melhor, “[...] ações recíprocas que modificam o comportamento ou a natureza dos elementos envolvidos; supõem condições de encontro, agitação e turbulência [...]” (SALLES, 2008b, p. 24). No entanto, observamos que no campo do design, esse mesmo modo de pensar o processo de criação caracterizado pelas inter-relações e influências mútuas, é entendido como processo de configuração.

A configuração não se dá em um ambiente vazio, onde se brinca livremente com cores, formas e materiais. Cada objeto de design é o resultado de um processo de desenvolvimento, cujo andamento é determinado por condições e decisões – e não apenas por configuração [...] Lidar com design significa sempre refletir sobre as condições sob as quais ele foi estabelecido e visualizá-las em seus produtos. (BÜRDEK, 2006, p. 225).

DEDUTIVO, INDUTIVO E ABDUTIVO NA CONSTRUÇÃO DO PENSAMENTO

Como propõe Salles, “o percurso criativo pode ser observado sob a perspectiva da construção de conhecimentos” (2011, p. 127), dado no cruzamento entre (a) o paradigma moderno e programa dedutivo, consolidado pela Revolução Industrial, que forjou a matriz do design, impondo uma normalização, (b) o projeto de design do produto como plano lógico ou método dedutivo e indutivo que descreve e detalha o percurso de desenvolvimento do produto, e (c) o processo criativo em rede como ação intelectual de projetar e conceber,

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que combina tanto processos abdutivos quanto processos indutivos e dedutivos. Assim, o percurso da criação “deixa transparecer conhecimento guiando a construção de significado envolvendo referência a uma tendência. A criação é [...] conhecimento obtido por meio da ação” (SALLES, 2011, p. 127). Como sugere Morin (2011, p. 9), “[...] a revolução atual não se dá no terreno do combate, mas no campo da complexidade do modo de organização das ideias. Assim, pensar implica recusar de modo permanente o avanço das simplificações”. Logo, não podemos desconsiderar que os ambientes culturais das instituições são favoráveis à manutenção, conservação e redução do modelo de ensino do design.

[...] nossa educação nos ensinou a separar e isolar as coisas. Separamos seus objetos de seus contextos, separamos a realidade em disciplinas compartimentadas umas das outras. A realidade... é feita de laços e interações, e nosso conhecimento é incapaz de perceber o complexus – aquilo que é tecido em conjunto. (Id., 2002 apud SALLES, 2008b, p. 24).

É no amálgama desses três modos de pensamento, que emergem as hipóteses deste estudo, que busca elucidar possíveis caminhos para compreender o processo de criação em rede no ensino de design do produto. Assim, tais conflitos, afastamentos e abandonos do eixo do projeto oscilam em decorrência da variável do professor que ora decide afastar-se desse movimento para cumprir o programa e projeto dedutivo, deixando passar despercebido o movimento abdutivo, ou ainda, “abandonando” temporariamente o programa e o projeto para experimentar manobras e rupturas que lhe pareçam oportunos. Bem como, ele pode desconsiderar, ou não, tendências de caráter individual no processo, como os valores, as crenças, preferências e o gosto do aluno, que também influenciam nas suas decisões, escolhas e no rumo da criação.

É verdade que, todo conhecimento, inclusive o científico, está enraizado, inscrito e dependente de um contexto cultural, social, histórico. Mas, o problema consiste em saber quais são essas inscrições, enraizamentos, dependências, e de perguntar-se se pode aí haver, e em que condições, uma certa autonomização e uma relativa emancipação do conhecimento e da ideia. (Id., 2011, p. 18).

Diante dessas reflexões, não podemos esquecer a discussão sobre a “crise do design” anunciada por Argan (1995, p. 181) nos anos de 1980. Esta “[...] manifesta-se como uma divergência crescente entre programação e projeto”, em que o pensamento dialógico do projeto, que tenta controlar o destino (passado e futuro) será substituído por soluções

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dialéticas da programação, seguindo uma ordem pré-estabelecida (síntese), e deixando pouco ou nenhum espaço para a imaginação e para o fazer empírico.

CONCLUSÃO

Nesse sentido, considerar que o processo de criação no contexto do ensino de design está subjacente ao método de projeto, expresso como fase do percurso a serviço do programa, é colocar sob a guarda do argumento indutivo e, prioritariamente, do dedutivo, o fenômeno da criação, desconsiderando os afastamentos e os abandonos do eixo do projeto. No entanto, não pretendemos questionar a relevância e importância dos métodos de projeto, ou as determinações e normas que orientam o ensino de design em favor de um modo de criação sem propósito; mas desejamos compreender as interações, conexões e interlocuções, ou melhor, as tensões, os conflitos e desequilíbrios produzidos no entrelaçamento entre o modo dedutivo, o indutivo e o abdutivo no processo de criação em rede. Desejamos, de fato, argumentar sobre o desenvolvimento do pensamento criador, considerando a reflexão e a consciência do aluno de design do produto em relação ao seu processo de criação.

REFERÊNCIAS

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SANTAELLA, Lúcia. Matrizes da linguagem e pensamento. 3 ed. São Paulo: iluminuras: FAPESP, 2005.

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SOM E FÚRIA: O PROCESSO CRIATIVO DE UMA MÍDIA TELEVISIVA A PARTIR DA LINGUAGEM TEATRAL

Marieli de Jesus Pereira97

CONSIDERAÇÕES INICIAIS

Há cinco décadas, os pesquisadores se debruçavam, especialmente, sobre os manuscritos literários. Hoje, os Estudos de Processo têm como objeto de análise o processo criativo das mais variadas mídias e linguagens artísticas, não mais se concentrando, prioritariamente, sobre os bastidores da criação literária. O geneticista francês Daniel Ferrer (2002), em seu texto A Crítica Genética do século XXI, escrito no final da década de 1990, já trazia reflexões sobre o alargamento das fronteiras dos estudos genéticos, tratando dos aspectos interdisciplinares e intersemióticos, que são inerentes aos procedimentos de análise da Crítica Genética. Com relação a esse campo teórico, metodológico e analítico, a geneticista brasileira Cecilia Salles é a pesquisadora que mais tem se empenhado em tratar do caráter intersemiótico, que marca os estudos do processo criativo, sejam eles pertencentes às artes visuais, ao teatro, à dança, à música ou a qualquer outra linguagem. A expansão da abrangência dos Estudos de Processo permitiu que a construção de obras eletrônicas e midiáticas também pudesse ser examinada. Assim, obras literárias digitais, jogos eletrônicos e produções televisivas passaram a ser alvo de análise e interpretação no intuito de descortinar as ações executadas em função da obra em devir. Contudo, essa mudança de paradigma dos Estudos de Processo impele, obrigatoriamente, a ampliação do conceito de manuscritos que registram o fazer artístico, pois se, no passado, esses manuscritos autógrafos bastavam para o estudo da gênese artística, agora pode ser incluído a esse estudo todo e qualquer material capaz de atestar o processo de criação da obra em análise, como vídeos, entrevistas, fotos, desenhos, bilhetes e relatórios virtuais, salvos por programas específicos de computador, ou quaisquer outros possíveis testemunhos. Dessa forma, propõe-se aqui a análise da produção de uma série de televisão que ficcionaliza o processo criativo da peça teatral Som e fúria (2009), uma adaptação da série canadense Slings and arrows (2003), construída pela Rede Globo em parceria com a

97 Doutorado pelo Programa de Pós-Graduação em Literatura e Cultura do curso de Letras da Universidade Federal da Bahia. 272

produtora O2 Filmes, dirigida coletivamente por Fabrizia Pinto, Fernando Meirelles, Giselle Barroco, Rodrigo Meirelles e Toniko Melo. O material sobre a elaboração dessa obra televisiva encontra-se em três DVDs, que comportam quatro vídeos com o making of da série. Assim, o dossiê genético é composto por:

Registro Tipo de Duração Quantidade Conteúdo documento 01 Vídeo 00:05:53 01 Making of 02 Vídeo 00:04:58 01 Making of 03 Vídeo 00:05:29 01 Making of 04 Vídeo 00:04:59 01 Making of

A partir desse dossiê, detalha-se o prototexto da seguinte forma: a) Vídeo 01, intitulado Série e Elenco, está presente no disco 1, com depoimentos dos diretores Fernando Meirelles e Toniko Melo, bem como declarações de Celso Yamashita, assistente de produção, e Cecília H. de Melo, que fez parte do elenco, além de ser também produtora. b) Vídeo 02, sob o título Arte e Figurino, constitui parte do disco 2, com declarações de Cássio Amarante, diretor de Arte; de Anna Van Steen, coordenadora da maquiagem; e Verônica Julian, figurinista. c) Vídeo 03, intitulado Fotografia e Pós-produção, que está inserido no disco 3, contém depoimentos de Tamis Lustri, coordenador de pós-produção; Luciano Foca, colorista; e Gustavo Leão, que trabalhou na composição de cenas. d) Vídeo 04, com o título Produção, também incluído no disco 3, apresenta declarações de Ari Pini, produtor executivo; e de Tomas Portela, assistente de direção.

Esses suportes digitais contêm registros de alguns momentos da referida produção, expondo algumas das práticas de articulação sócioprofissional, responsáveis pela coerência, unidade conceitual e técnica da obra. Além disso, esses documentos revelam as etapas de construção da obra em análise, bem como algumas das suas referências e seus elementos geradores.

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Essa relação entre a pluralidade dos processos e a forma de desenvolvimento do pensamento de cada sujeito envolvido na criação é enfatizada na seguinte afirmação de Salles (2006, p. 95):

[...] o processo criador tende para a construção de um objeto em uma determinada linguagem ou uma inter-relação delas, dependendo do modo de expressão que está em jogo. Seu percurso é intersemiótico, isto é, em termos bem gerais, sua textura é feita de palavras, imagens, sons, corpo, gestualidade etc. [...] As linguagens que compõem esse tecido e as relações estabelecidas entre elas dão singularidade a cada processo.

Ter essa assertiva em mente para análise da série televisiva em questão é fundamental para o melhor entendimento de seu processo, pois há diferentes linguagens envolvidas em tal produção coletiva. A série é intermidiática porque relaciona diferentes mídias, preponderantemente, televisão, cinema e teatro; e intersemiótica porque reúne e favorece o trânsito de diferentes signos entre variadas linguagens da arte, como: fotografia, desenho, computação gráfica, literatura, dentre outras. Assim, apesar do complexo entrelaçamento das redes de informações que caracterizam a série Som e fúria (2009), tem-se como meta analisar o modo como ocorreu a sua construção, considerando as interpretações e interações estabelecidas durante a criação.

CONSTRUÇÃO DE SOM E FÚRIA

As obras de Shakespeare têm sido reconfiguradas em todas as linguagens artísticas e mídias, inclusive na mídia digital, que utiliza como suporte de difusão de informações, sobretudo, o CD, o DVD, o Blu-ray, o rádio, o cinema, a fotografia e a televisão. No mesmo compasso do desenvolvimento tecnológico, a reprodução da obra shakespeariana e as referências feitas a ela deixaram de existir apenas nos textos escritos ou nos palcos dos teatros (PERNISA JR., 2010). Ainda que a televisão seja uma mídia digital utilizada como “instrumento de democracia direta” (BOURDIEU, 1997, p. 13), não apenas pelo que apresenta, mas também por seu grande alcance, os interesses econômicos e políticos que fomentam a estrutura da produção televisiva se encarregam de transformar esse meio em um instrumento de manipulação ideológica e comportamental. Contudo, possivelmente, com o intuito de exercer o cunho democrático desse meio de comunicação de massa, a produção da série Slings and arrows (2003) deselitiza a obra de Shakespeare e a devolve ao seu lugar de origem, o povo, já

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que o Bardo se utilizou da cultura, especialmente os contos populares, na criação de suas peças. Segundo Henderson (2007), a dramaturgia shakespeariana pode ser considerada tanto como um tributo ao folclore, como uma forma de sofisticação da cultura popular. Por sua vez, a obra de Shakespeare também passou a ser alvo do tributo feito pela série de televisão em questão. A construção dessa série de televisão é parte de um complexo sistema de produção artística em que a obra de arte se constitui como objeto gerado e, ao mesmo tempo, gerador de produtos artísticos. Sobre esse ciclo de produção, Santiago (2004, p. 114) declara que:

A obra de arte no momento em que passa a ser produzida e reproduzida tecnicamente perde algo, mas ganha, como consequência, os infinitos lugares e contextos da sua reprodução. E, se perde o valor de culto, também se refuncionaliza passando a ter uma práxis social leiga [...].

Corroborando essa assertiva, observa-se que a série em análise reconfigura a obra de Shakespeare, reestrutura conceitos e técnicas de diversas artes e mídias, contextualizando a obra em devir sócio-historicamente; ainda, são utilizados alguns elementos do percurso de criação teatral, como contexto da narrativa, que passa a assumir a função de instrumento fomentador de reflexões sobre o comportamento dos indivíduos em sociedade. Slings and arrows (2003) é a série canadense que serviu de molde para a versão brasileira; nessa versão, a fotografia, a iluminação, o posicionamento de câmeras e os cenários foram reproduzidos para a refeitura da série no Brasil. Em 12 episódios geridos por cinco diretores, a série Som e fúria (2009) foi produzida em quatro meses de filmagens com o uso de duas câmeras RED (câmera digital de alta resolução), além da participação de mais de 120 atores e atrizes, que utilizaram mais de 500 figurinos. A criação da infraestrutura para a produção da série visava conciliar a agenda do grande elenco e dos cinco diretores, um processo complexo que priorizou o dinamismo e a praticidade, buscando o aproveitamento máximo de tempo e espaço. Assim, a gravação de cenas não seguiu a sequência de apresentação, e nem a sucessão de episódios, o que subverteu a ordem convencional da fabricação de trabalhos televisivos, aproximando-se, assim, dos procedimentos utilizados na construção de obras cinematográficas. Outro aspecto que tornou a produção da série televisiva semelhante a do cinema foi a utilização da câmera RED e dos recursos tecnológicos necessários para a edição, considerando questões de continuísmo, fotografia, composição, efeitos sonoros e produção de

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imagem, como, por exemplo, o uso da plataforma AVID, ferramenta de edição de vídeos digitais de alta resolução. Por ser uma produção de televisão, que aborda o processo criativo de uma companhia teatral, foi inevitável pensar e sinalizar as diferenças entre as linguagens teatral e televisiva: diferenças de ritmo, de noções de espaço, de diferentes tempos de construção, tecnologias, escalas e manipulação de materiais foram abordadas na série. A produção teatral foi ficcionalizada e retratada como um processo que preza a construção orgânica, ou seja, a elaboração fundamenta-se na experiência corporal e sensorial, destaca o uso da palavra, do som e do silêncio para transmitir mensagens, emprega grande intensidade e amplidão de movimentos, tornando a produção teatral mais demorada; prática distinta da produção televisiva, que prioriza, sobretudo, a imagem em um processo de construção com cadência industrial, além de utilizar o gestual e a expressão corporal com pouca amplitude e a focalização de ações com mais minúcia.

INTERAÇÕES E REINTERPRETAÇÕES EM SOM E FÚRIA

As condições de produção da máquina midiática, mais especificamente da mídia televisiva, são instituídas por questões externas e internas referentes à obra em devir. Os elementos externos referem-se às circunstâncias socioeconômicas, culturais e técnicas; os internos estão ligados às relações semióticas, que promovem a realização da obra. Assim, com o intuito de destacar os aspectos intersemiótico e intermidiático desse processo criativo, a análise foi feita sob a perspectiva de construção em rede discutida por Salles (2006), que aponta para a interação e as relações socioculturais vistas como ações preponderantes no movimento contínuo, ininterrupto, não linear e dinâmico da produção de uma obra de arte. As interações e interpretações fomentam a produção artística, por isso é possível afirmar que “todo processo de criação é um percurso tradutório que nos oferece um instrumento fértil, para discutirmos a poética contemporânea” (SALLES, 2006, p. 157). Tomando esse conceito por base, percebe-se que, na série Som e fúria (2009), sugere-se que os personagens criados por Shakespeare são semelhantes aos sujeitos que convivem na sociedade contemporânea. Além disso, essa série oportuniza a reflexão e a discussão das normas sociais que regem o comportamento dos indivíduos. Essa representação dos discursos que normatizam as relações sociais é ato comum entre as artes e as mídias. Charaudeau (2015) afirma que os discursos circulantes têm

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diferentes funções nas mídias, que se entrecruzam permanentemente na sociedade; porém, observa-se que a que se sobressai na série em questão é a função de dramatização.

Essa é assegurada por discursos que relatam os problemas da vida dos homens, a maneira pela qual esses, em confronto com as forças do visível e do invisível, levam sua vida, por intermédio de imaginários, num combate sem tréguas entre as forças de seu próprio desejo e as forças do destino que se impõem como fatalidade. Tratam-se aqui das histórias, dos relatos ficcionais, mitos e outros discursos que registram o destino humano. (CHARAUDEAU, 2015, p. 119).

A partir desses registros ficcionais, entende-se que o estudo do processo criativo excede a mera descrição ou reconstrução dedutiva dos passos do artista ao realizar sua obra, compreendendo-se que a análise crítica sobre os procedimentos do desenvolvimento de uma obra em construção visa observar como as relações socioculturais são convertidas em criação artística. A crítica de processo reativa as interações realizadas pelo criador tanto social como historicamente. De acordo com Salles (2006, p. 37), deve-se aprender “[...] a lidar com a criação na perspectiva temporal onde tudo se dá na continuidade, ao longo do tempo – no universo do inacabamento.” Para isso, é necessário considerar o contexto sócio-histórico, econômico e cultural no qual o processo criativo está inserido, bem como os nexos que são estabelecidos sem a possibilidade de delimitação rigorosa do seu início e do seu fim, já que ele ocorre em movimento contínuo. Ainda assim, é possível eleger um ponto de partida para a análise. Para efeito de recorte, escolheu-se, como marco inicial da produção da série televisiva no Brasil, o encantamento pela série Slings and arrows (2003) do produtor, tradutor e diretor de Som e fúria (2009), Fernando Meirelles. Após as devidas negociações com relação à venda de direitos autorais e às questões referentes à sua exibição, as devidas adaptações e aproximações entre a série de partida e sua versão brasileira foram feitas por meio de um trabalho coletivo, que priorizou a interpretação de conceitos para a construção da obra. Foram também consideradas as formas e técnicas da série canadense como referência. Assim, pode-se mencionar, como exemplo desse jogo interpretativo de formas e conteúdo, a escolha do título da série. O título em inglês foi retirado do texto de Hamlet, peça escrita por Shakespeare por volta de 1600, mais especificamente, do seguinte trecho:

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Hamlet – Ser ou não ser: eis a questão. Será mais nobre sofrer na alma Pedradas e flechadas do destino feroz Ou pegar em armas contra o mar de angústias – E combatendo-o, dar-lhe fim? (SHAKESPEARE. Hamlet. Ato III, Cena I, grifo nosso)98.

Este excerto incita a reflexão sobre que atitude tomar diante das dificuldades e dos sofrimentos da vida, um dos motes da série televisiva, que mostra o dia a dia de pessoas envolvidas na produção de espetáculos teatrais. Levando em consideração esse argumento da série canadense e aspectos socioculturais do público brasileiro, foi decidido que o título da versão brasileira seria uma frase de outra peça de Shakespeare, Macbeth, escrita em 1606.

Macbeth – [...] A vida não passa de uma sombra que caminha, um pobre ator que se pavoneia e se aflige sobre o palco – faz isso por uma hora e, depois, não se escuta mais sua voz. É uma história contada por um idiota, cheia de som e fúria e vazia de significado. (SHAKESPEARE. Macbeth. Ato V, Cena V, grifo nosso)99.

Este trecho também trata das dificuldades da vida, mas Fernando Meirelles considerou que o público brasileiro se identificaria mais com a frase “som e fúria” do que com a expressão “pedradas e flechadas”. Isso porque, semanticamente, o primeiro título traz a ideia de musicalidade e força, características atribuídas ao povo brasileiro; portanto, trata-se de uma perspectiva diferente da segunda composição de palavras, que remete à violência. Além disso, o título brasileiro foi retirado de um trecho, que faz uma analogia entre a vida e o teatro, síntese do teor da série de televisão em questão. Outro aspecto adaptado, de acordo com o contexto sociocultural brasileiro, foi a construção de cada personagem e sua representatividade, destacando-se, como exemplo, a reconstrução do personagem Nahum, funcionário do teatro, interpretado por Rothaford Gray, na série canadense, e por Gero Camilo, na versão brasileira. Em ambas as séries, o estereótipo de que grupos sociais marginalizados não têm cultura nem poder de análise crítica é questionado por meio desse personagem que, mesmo ocupando uma posição social

98Hamlet - To be, or not to be- that is the question: Whether 'tis nobler in the mind to suffer Theslings and arrows of outrageous fortune Or to take arms against a sea of troubles, And by opposing end them. (SHAKESPEARE. Hamlet. Act III, Scene I). 99Macbeth – [...] Life’s but a walking shadow, a poor player that struts and frets his hours upon the stage – and then is heard no more: it is a tale told by an idiot, full of sound and fury, signifying nothing. (SHAKESPEARE. Macbeth. Act V, Scene V).

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desprestigiada, tem pleno domínio sobre o que se considera como alta cultura. Para isso, no Canadá, a imagem explorada é a do biótipo africano e no Brasil a do nordestino, grupos geralmente marginalizados socialmente por serem considerados inferiores. Além da escolha do biótipo adequado, para que os discursos socioculturais sejam expressos ou contestados visualmente por meio dos personagens, a maquiagem e o figurino são fundamentais. Contudo, é importante ressaltar que, nessa série, para os maquiadores e os figurinistas, os maiores desafios para a criação da identidade visual dos personagens foram o uso da maquiagem para a alta definição de imagem digital e a conciliação conceitual entre a figura dramática e seu contexto, pois, na primeira década dos anos 2000, as técnicas de maquiagem para esse tipo de filmagem ainda eram incipientes; por isso, foram necessários variados estudos, pesquisas e testes para que fosse obtido o resultado esperado. Ademais, a série ficcionaliza os bastidores de uma companhia teatral, os personagens são atores e atrizes, que interpretam outros personagens. Isso multiplicou o número de criações de maquiagem e figurino, como pode ser observado, por exemplo, na construção do personagem Elen Vanlau (Andréa Beltrão), atriz principal da companhia que sofre com o seu envelhecimento. Ela atua como Titânia, Lady Macbeth e Ofélia e, por isso, foram criados diferentes figurinos e maquiagens para ela e os personagens que interpreta dentro da realidade criada para a série, aliás só para essa personagem foram confeccionados, aproximadamente, trinta figurinos. A revelação dos bastidores do teatro foi revestida pela linguagem televisiva, cinematográfica e, também, das graphic novels, gênero textual na qual a narrativa em prosa literária é apresentada em desenho ou quadrinhos, e tem extensão de um livro (WEINER, 2003). Isso pode ser observado, por exemplo, na cena em que o ator Jaques Maia (Daniel de Oliveira) ensaia para interpretar Hamlet; cena inspirada na graphic novel Sin City, criada por Frank Miller em 1991, e ainda, na sua versão homônima para o cinema, dirigida por Frank Miller, Quentin Tarantino e Robert Rodriguez, lançada em 2005. O efeito usado nessa cena agrega o peso dramático requerido por seus criadores, além de marcar a obra com uma das tendências artísticas da contemporaneidade. Assim, com base nas ações interpretativas realizadas para a criação da série em questão, ratifica-se a assertiva de Salles (2006, p. 153), que explica o movimento criador “[...] como uma complexa rede de inferências [...]”.

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CONSIDERAÇÕES FINAIS

O processo de construção de espetáculos teatrais foi o elemento gerador da produção da série de televisão, que faz alusões e releituras de toda a obra de William Shakespeare, recriando os seus personagens mais emblemáticos em um contexto atual, ressaltando, por sua vez, os sentimentos daqueles envolvidos na produção teatral, desde o porteiro do teatro aos patrocinadores do espetáculo. A produção da série televisiva Som e fúria (2009) inova por incluir técnicas e linguagens artísticas diversas em seu processo criativo, mas, também, ratifica o caráter intersemiótico e intermidiático típico de produções de obras de arte contemporâneas. Nas diversas associações e interações desenvolvidas na criação do objeto em questão, algumas delas pontuadas nessa breve análise, percebe-se que a recriação das obras de Shakespeare e as referências feitas a elas por meio da série abordada são apropriações que rememoram, atualizam e recontextualizam o trabalho do Bardo, que, além da realização de novas leituras e interpretações, tornam toda a sua obra acessível e perpétua.

REFERÊNCIAS

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CHARADEAU, Patrick. Discurso das mídias. Tradução de Angela Correa. São Paulo: Contexto, 2015.

FERRER, Daniel. A crítica genética do século XXI será transdisciplinar, transartística e transemiótica ou não existirá. In: ZULAR, Roberto. Criação em processo: ensaios de crítica genética. Tradução de Verónica Galindez Jorge. São Paulo: Iluminuras, 2002.

GRÉSILLON, Almuth; THOMASSEAU, Jean-Marie. Cenas de gêneses teatrais. In: Processos de criações interartes: cinema, teatro e edições eletrônicas. ANASTÁCIO, Sílvia et. al. (Org.). Vinhedo: Horizonte, 2014. p. 117 - 136.

HENDERON, Diana. From popular entertainment to literature. In: SHAUGHNESSY, Robert. Shakespeare and popular culture. New York: Cambridge University Press, 2007. p. 6 - 25.

PERNISA JR., Carlos. Comunicação digital: jornalismo, narrativas, estética. Rio de Janeiro: Mauad X, 2010.

SALLES, Cecilia Almeida. Redes da criação: construção da obra de arte. São Paulo: Horizonte, 2006.

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SANTIAGO, Silviano. O Cosmopolitismo do pobre: crítica literária e crítica cultural. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2004.

SHAKESPEARE, William. Hamlet. Tradução de Millôr Fernandes. Porto Alegre: L&PM, 2009.

SHAKESPEARE, William. Hamlet. In: The Complete Works of William Shakespeare. New York: Barnes & Noble, 1994.

SHAKESPEARE, William. Macbeth. Tradução de Beatriz Viégas-Faria. Porto Alegre: L&PM, 2008.

SHAKESPEARE, William. Macbeth. In: The Complete Works of William Shakespeare. New York: Barnes & Noble, 1994.

SOM e fúria. Direção: Fabrizia Pinto, Fernando Meirelles, Giselle Barroco, Rodrigo Meirelles, Toniko Melo. Produção: Fernando Meirelles, Andréa Barata Ribeiro, Bel Berlinck. Roteiro: Fernando Meirelles. Intérpretes: Andréa Beltrão, Felipe Camargo, Pedro Paulo Rangel e outros. 2009. DVD, widescreen, color. Produzido por: TV GLOBO e O2 Filmes. Baseado na série Slings and arrows.

WEINER, Stephen. Faster than a speeding bullet: the rise of the graphic novel. Edited by Chris Couch. Introduction by Will Eisner. New York: NBM Publishing Inc., 2003.

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CARTAS DE UM EREMITA EM PARIS: ANOTAÇÕES À MARGEM DO EPISTOLÁRIO DE ITALO CALVINO (1940-1985)

Maurício Santana Dias100

Este ensaio101 tem como ponto de partida o trabalho de edição, tradução e anotação que estou fazendo do epistolário de Italo Calvino. Ao propor uma edição brasileira das cartas de Calvino escritas entre 1940 e 1985, pretendo oferecer ao leitor de língua portuguesa um retrato múltiplo desse complexo protagonista da cultura italiana, sem negligenciar nenhum aspecto de sua atividade multiforme: o escritor, o cidadão engajado, o editor, o tradutor, o jornalista, o ensaísta, o interlocutor e amigo dos mais relevantes intelectuais e artistas de seu tempo. Gostaria de começar citando a estudiosa alemã Franziska Meier102 que, em artigo publicado na revista Épistolaire de abril de 2012, intitulado L’art épistolaire – un laboratoire d’ideés et de style, analisa o “caso Italo Calvino” constatando, logo de início, sua contumacíssima atividade epistolar:

Nous posséderions beaucoup plus de lettres si le téléphone n’avait pas révolutionné les modes de communication à partir des années soixante. Cependant, malgré le téléphone, Calvino n’a pas cesse d’écrire des lettres. Au contraire, il a toujours préféré la communication par écrit. On peut sans doute le considérer comme une sorte de maniaque ou même de drogué de l’art épistolaire103 (MEIER, 2012, p. 81).

De fato, estamos falando de um acervo de milhares e milhares de cartas, cuja maior parte – estimo que pelo menos 70% – ainda permanece inédita, apesar do volume de 1.600 páginas editado por Luca Baranelli em 2000 (Cf. CALVINO, 2000), intitulado Lettere 1940-

100Professor da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo (USP) 101Este texto é decorrente de meu estágio de pesquisa como bolsista Fapesp na Université Sorbonne Nouvelle – Paris 3 em 2015, com supervisão da professora Claudia Poncioni, a quem agradeço pela acolhida. Gostaria de agradecer também a Luca Baranelli, amigo, ex-colega da Einaudi e editor das cartas e inéditos de Italo Calvino; e a Marcel Bénabou, diretor do Oulipo na época em que Calvino viveu em Paris, com os quais tive longas conversas, respectivamente em Siena e em Paris. Luca Baranelli, inclusive, gentilmente me cedeu um conjunto documental valioso para pesquisa. 102Meier selecionou, anotou e prefaciou a edição alemã das cartas de Italo Calvino, traduzidas por Barbara Kleiner: Italo Calvino: Ich bedaure, daß wir uns nicht kennen. Briefe 1941-85. Übersetzt von Barbara Kleiner; ausgewählt, kommentiert und mit einem Nachwort versehen von Franziska Meier. München: Hanser-Verlag, 2007. 415 p. 103“Nós teríamos bem mais cartas se o telefone não tivesse revolucionado os meios de comunicação a partir dos anos 1960. No entanto, apesar do telefone, Calvino não parou de escrever cartas. Ao contrário, ele sempre preferiu a comunicação por escrito. Pode-se sem dúvida considerá-lo uma espécie de maníaco ou até de viciado da arte epistolar.” (Tradução nossa)

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1985. Essa edição da I Meridiani Mondadori, realizada por Baranelli com indiscutível rigor crítico, foi tomada como base para meu trabalho de organização, tradução e anotação; entretanto, é importante antecipar que pude ampliar esse corpus epistolar com documentos inéditos coligidos em recente visita de pesquisa à França e à Itália, realizada em 2015. Partindo da constatação de que havia poucos interlocutores franceses nas missivas publicadas, a despeito do fato de o escritor italiano ter tido fortes relações com a França (em especial no período em que fixou residência em Paris, entre 1967 e 1980), essa pesquisa em acervo tinha como objetivo principal localizar manuscritos inéditos em arquivos públicos e privados. Desse modo, a edição em preparo tomará por base a rica edição de Baranelli e, além disso, apresentará documentos inéditos em livro – três dos quais serão integralmente apresentados neste texto. Do que já foi publicado até o momento, pouco se refere à vida íntima de Calvino, em parte por desejo de sua viúva, Esther Calvino, ainda viva; em parte por uma opção do próprio Calvino editor de cartas, que, numa missiva a Carlo Minola de 4 de julho de 1977, falando a respeito da publicação do epistolário do amigo e escritor Elio Vittorini, afirmou:

A questão da primeira mulher [de Vittorini]. Refleti muito sobre isso. A carta é bonita, mas também é verdade que a vida privada dos cidadãos privados tem o direito de ser resguardada dos olhares indiscretos. Então fiz o corte que você vai ver, e pus em nota: “omitidas 18 linhas sobre o fracasso do primeiro casamento [...]” (CALVINO, 2000, p. 1337).

Atitude semelhante – que revela uma presença nada neutra do organizador, com deliberado intuito de preservar aspectos da vida privada – ele já havia adotado dez anos antes, quando editou os dois volumes de cartas de Cesare Pavese pela Einaudi (Cf. CALVINO, 1966). Apesar desse excesso de discrição, seja por seu grande volume, seja pela extensão de assuntos tratados, o epistolário de Calvino é um campo fundamental para o entendimento de seu percurso e de sua formação como escritor, contituindo-se em um precioso arquivo da criação que, ao fim, pode ser lido quase como um Bildungsroman do intelectual. De resto, por ter sido editor da Einaudi em um período de expansão quantitativa e qualitativa da editoria na Itália, por ter militado dez anos cruciais no PCI (de 1947 a 1957), Calvino conviveu e se correspondeu com os protagonistas da cultura italiana em diversas áreas, o que permite observar – de um ponto de vista privilegiado – uma intrincada rede de sociabilidade, com historiadores, antropólogos, filósofos, cientistas políticos, juristas, cineastas, músicos, críticos literários, romancistas e poetas. Sendo assim, ler seu vasto epistolário significa entrar na arena dos principais debates e polêmicas que ocorreram durante

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o período da Guerra Fria. Especificamente na vida literária e intelectual do período, vale lembrar que, a partir de 1947, Calvino conviveu intensamente com escritores e intelectuais como Cesare Pavese, Natalia Ginzburg, Elio Vittorini, Norberto Bobbio, Cesare Cases, Primo Levi e muitos outros, com quem trocou um número considerável de missivas. A propósito, uma das cartas inéditas de Calvino reunidas em viagem de pesquisa à França e à Itália chama a atenção por comprovar uma atividade editorial fecunda e nem sempre documentada nos créditos de seus trabalhos, como os dedicados ao amigo Cesare Pavese. Portanto, fazer circular a correspondência de um autor como Calvino pode colaborar para a compreensão de certas perspectivas do trabalho intelectual nem sempre devidamente problematizados, como se vê nesta carta inédita enviada a Renato Bertacchini, datada “Turim,

13 de outubro de 1960”:

Caro Bertacchini vejo agora os recortes da Gazzetta dell’Emilia com seu artigo sobre os Racconti de Pavese. O organizador do livro sou eu. Não assinei, e geralmente não assino esses trabalhos de organização editorial, assim como não assinei a organização de outros inéditos de Pavese. Tentei fazer um livro ao mesmo tempo bom de ler e filologicamente correto, baseado nos manuscritos, fornecendo datações precisas e notícias úteis para os estudiosos que um dia farão as edições críticas. Onde havia diferentes versões, escolhi a mais rica e completa; onde partes canceladas apresentavam interesse, eu as mantive, com a devida informação. Até hoje não se fez uma edição com variantes da obra de Verga; pode-se dizer que nenhum escritor italiano posterior a Manzoni teve uma edição assim; seria o caso de fazê-la imediatamente para Pavese. Pensamos que não e que a fórmula que escolhemos permite simultaneamente apresentar um livro para o público e servir de guia ao especialista. Quanto a Feria d’agosto, tínhamos cogitado sobre se era o caso de organizá- lo como o senhor sugere. Mas Feria d’agosto é um livro que continua a existir em si, sendo reeditado como tal. E não é feito apenas de contos: a última parte também reúne ensaios, sem nada de narrativo. Então pensamos que _deixando a Feria d’agosto sua estrutura (“de poema”, dizia Pavese)_ era melhor fazer um livro novo, que seguisse cronologicamente a gênese da narrativa pavesiana, publicando tudo: os contos editados em Feria d’agosto, os publicados por Pavese apenas em jornais e revistas, os que permaneceram inéditos (tanto os de minha primeira recolha para o volume póstumo Notte di festa quanto os que eu descartara naquela ocasião), e todos os fragmentos e inacabados. Ora, o Pavese narrador foi publicado inteiro, exceto as versões sucessivas de um mesmo texto, e de acordo – bem entendido – com uma determinada escolha, isto é, deixando de fora as tentativas mais juvenis. Mesmo aí foi preciso recorrer a uma opção pessoal minha: decidir a partir de que ano deveríamos começar. Pavese foi um escritor de maturação lenta, com um período de incubação trabalhoso, mas pleno de interesse. Quem sabe, mais tarde, esses escritos poderão fazer parte de uma coletânea de páginas da adolescência e da juventude, que será de interesse para o público dos

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pavesianos mais aficionados. Creio ter respondido às suas questões mais importantes e estou à sua disposição para qualquer outro esclarecimento. Despeço-me com cordialidade Italo Calvino104

Segue transcrição a partir do manuscrito inédito:

Torino, 13 ottobre 1960 Caro Bertacchini, vedo i ritagli della Gazzetta dell’Emilia col suo articolo sui Racconti di Pavese. Il curatore del libro sono io. Non mi sono firmato, come non mi firmo di solito in questi lavori di cura editoriale, così come non mi sono firmato per la cura degli altri inediti di Pavese. Ho cercato di fare insieme un libro da leggere, e un libro filologicamente corretto, basato sui manoscritti, e che fornisce le datazioni precise e le notizie utile per lo studioso che un giorno farà le edizioni critiche. Dove c’erano diverse versioni ho scelto la più ricca e compiuta; dove parti cancellate presentavano interesse, le ho tenute, avvertendo. Un’edizione con varianti non si è fatta ancora per Verga; si può dire che nessune scrittore italiano, posteriori a Manzoni, l’abbia avuta; era il caso di farla subito per Pavese? Pensiamo de no e che la formula che abbiamo usata sia quella che permette insieme di presentare un libro per il pubblico e di servire da guida allo specialista. Quanto a Feria d’agosto, avevamo pensato se era il caso di organizzare come Lei dice. Ma Feria d’agosto è un libro che continua a esistere a sé, a essere ristampato. E non è fatto solo di racconti; l’ultima parte contiene anche prose saggistiche senza nulla di narrativo. Abbiamo pensato allora che – lasciando a Feria d’agosto la sua struttura (“di poema” diceva Pavese) – era meglio fare un libro nuovo che seguisse cronologicamente la genesi della narrativa pavesiana, pubblicando tutto: i racconti editi di Feria d’agosto, quelli pubblicati da Pavese solo su giornali e riviste, quelli lasciati da lui inediti (sia quelli della mia prima scelta per il volume postumo Notte di festa, sia quelli che avevo allora scartati); e tutti i frammenti e gli incompiuti. Ora il Pavese narratore è stato pubblicato tutto, tranne le versioni successive d’un testo, e a partire – si capisce – da una certa data, cioè lasciando da parte i tentativi più giovanili. Anche lì è dovuta intervenire una mia scelta personale: decidere da che anno dovevamo cominciare. Pavese è stato scrittore di maturazione lenta e ha un periodo d’incubazione faticoso ma pieno d’interesse. Questi scritti potranno far parte magari in seguito d’una raccolta di pagine dell’adolescenza e della giovinezza, che avrà interesse per il pubblico dei pavesiani più affezionati. Credo d’aver risposto ai suoi quesiti più importanti, e sono a Sua disposizione per ogni altra delucidazione. La saluto con cordialità Italo Calvino

Embora aspectos da biografia, da construção literária e da sociabilidade do escritor estejam bem presentes na edição italiana criteriosamente preparada por Luca Baranelli

104 Carta inédita de Italo Calvino enviada a Renato Bertacchini, com datação “Turim, 13 de outubro de 1960” Original em italiano; tradução nossa.

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(CALVINO, 2000), notamos que importantes documentos ainda poderão ser agregados em futuras publicações. Um período que promete ser revelador nesse aspecto é aquele que abrange a estada na França, entre 1967 e 1980. Quando Calvino passa a residir regularmente em Paris (e aqui já passo ao ponto mais específico deste meu ensaio), tinha acabado de publicar As cosmicômicas (1965) e de traduzir As flores azuis (1967) de Raymond Queneau, obras que marcaram uma espécie de virada formal em seu percurso de escritor. É quando ele abandona de vez os resquícios de realismo que ainda aparecem em uma obra como O dia de um escrutinador (1963) e começa a pensar a literatura sistematicamente em suas relações possíveis com as ciências (biologia, astronomia, cosmologia, geologia, matemática), o que resulta em uma presença cada vez mais forte da arte combinatória na composição de suas narrativas. Não por acaso, com a publicação de As cidades invisíveis (1972), Calvino passa a fazer parte oficialmente, como membro estrangeiro, do seleto grupo do Oulipo [Ouvroir de Littérature Potentielle] francês, do qual Queneau e Georges Perec eram seus principais interlocutores e amigos.105 Todos esses “movimentos” calvinianos se delineiam com nitidez nas cartas desse período – sejam inéditas, sejam efetivamente editadas –, apontando para uma visão cada vez mais complexa dos problemas estéticos e políticos do século XX. Portanto a experiência francesa, que lhe franqueou entre outras coisas um olhar estrangeiro e distanciado das questões especificamente italianas, teve um impacto considerável não apenas nos procedimentos formais que passaram a predominar em sua obra literária, mas no próprio modo de perceber e elaborar os dados de uma realidade cada vez mais avessa a abordagens que se pretendessem estáveis ou unívocas. Vale dizer que a própria representação da realidade histórica se torna cada vez mais problemática e fragmentária em Calvino, resultando naquela tensão irresolvível entre “mundo escrito” e “mundo não escrito” que caracterizaria seus últimos livros. Essas tensões, porém, a depender do interlocutor, podem ganhar uma leveza que somente a generosidade do escritor poderia imprimir, como em uma carta inédita em seu epistolário dedicada aos alunos do ensino médio, em que agradece e comenta os trabalhos dos alunos sobre seu último livro Palomar:

105Sobre a produção de Italo Calvino nesse período, cf.: CAPPELLO, 2007; LAVERGNE, 2012; MANGANARO, 2000. Adicionalmente, remeto aos seguintes periódicos dedicados a Italo Calvino: BOLLETTINO di Italianistica. Rivista di critica, storia letteraria, filologia e linguística, n. 1, 2013; MAGAZINE Littéraire, n. 165, oct. 1980; MAGAZINE Littéraire, Paris (), n. 274, fev. 1990.

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Paris, 11 de março de 1985 Caros amigos da IVª L, agradeço muito pela carta recebida em 9 de novembro e por seus trabalhos sobre Palomar. Sim, em Palomar o problema do conhecimento está presente e nele tentei representar uma parte de mim mesmo, mas busquei sobretudo fazer exercícios elementares de observação das coisas, de me propor objetivos de conhecimento limitados, evitando na medida do possível a abstração e o saber intelectual. Concordo com vocês que literatura é memória, mas ela também tem um olhar para o futuro, não tanto no sentido da previsão, mas da interrogação sobre o mundo. Quantas coisas acreditamos saber e, na realidade, as conhecemos apenas por ouvir dizer; partindo dessa constatação é possível começar a escrever, para medir quanto nos separa de uma verdadeira experiência. Claro, pode-se perfeitamente mentir ao escrever, por exemplo, fingir que somos especialistas em alguma coisa, mas para fazer isso é preciso estar bem consciente de que você está fingindo, você não pode iludir também a si. E isso também é um método cognitivo: compreender o que não se sabe e a diferença que há entre saber e não saber. A vocês e a seu professor meus mais calorosos cumprimentos, Italo Calvino106

Segue transcrição do documento original:

Parigi 11 marzo 1985 Cari amici della IVa L, vi ringrazio molto della vostra lettera del 9 novembre e del vostro lavoro su Palomar. Sì, in Palomar c’entra il problema della conoscenza e ho cercato di rappresentare una parte di me stesso, ma soprattutto ho cercato di fare degli esercizi elementari d’osservazione sulle cose, di propormi degli obiettivi di conoscenza limitati, evitando il più possibile l’astrazione e un sapere intellettuale. Sono d’accordo con voi che letteratura è memoria però ha anche uno sguardo rivolto al futuro, non tanto nel senso della previsione quanto dell’interrogazione sul mondo. Quante cose che crediamo di sapere, in realtà le conosciamo solo per sentito dire; partendo da questa constatazione ci si può mettere a scrivere, per misurare quanto ci separa da una vera esperienza. Certo, scrivendo si può benissimo mentire, per esempio far finta d’essere esperti di una qualsiasi cosa, ma per far questo bisogna essere ben cosciente che stai facendo finta, non puoi mistificare anche con te stesso. E anche questo è un metodo di conoscenza: capire quello che non si sa e la differenza che c’è tra saperlo e non saperlo. A voi e al vostro professore il più caloroso saluto e augurio di Italo Calvino

Ao selecionar as cartas pensando em uma edição brasileira, procurei acompanhar de perto esses movimentos e “passagens obrigatórias” do escritor. Recordo que minha viagem de pesquisa à França e à Itália procurou acrescentar alguns capítulos à já complexa narrativa epistolar calviniana, sobretudo àquela que diz respeito ao convívio do escritor com membros

106 Carta inédita em livro de Italo Calvino aos alunos da IV L do Liceu Científico “Leonardo da Vinci” de Reggio Calabria, com datação Paris, 11 de março de 1985. Fac-símile do original ms. em “Orlando esplorazioni” (Vivo Calvino!), 4, outono de 2013, p. 5. Original em italiano; tradução nossa.

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do Oulipo.107 Nesse sentido, embora não tenha obtido em minhas pesquisas em acervos franceses nenhuma carta de Calvino a Queneau ou a Perec, por exemplo, percebe-se um diálogo permanente com esses autores, principalmente em cartas trocadas com escritores italianos como Gianni Celati, Sergio Solmi ou Primo Levi – que, vale lembrar, também era cientista. No entanto, como as cartas sempre constituem um discurso lacunar, uma vez que, tomadas em sua unidade, não trazem as respostas dos interlocutores e oscilam muito no registro e na forma – vale ainda esclarecer que, até o momento, não há publicações dedicadas especificamente à correspondência recíproca com cartas de Calvino –, é preciso que o editor- tradutor interfira constantemente no texto com notas exegéticas e de tradução (além de notas de edição pertinentes), sem as quais muitos daqueles “movimentos” se tornariam ilegíveis para o leitor brasileiro de hoje. Por tudo isso, a edição das cartas de Italo Calvino é de excepcional relevância não só por revelar os bastidores da criação de um dos principais escritores do século XX, mas também – ou sobretudo – por constituir um notável painel das principais discussões de seu tempo nos mais diversos campos, como estética, política, antropologia e ciências. Sobre a edição brasileira, seria importante discorrer brevemente sobre alguns dos critérios adotados. As notas exegéticas de minha autoria, que farão parte da edição brasileira, buscam elucidar episódios, personagens e referências aos mais variados temas, próprios do contexto italiano, mas estranhas a um leitor não italiano. Notas específicas de tradução entram em um universo situado entre a linguagem e a exegese, procurando mediar a leitura ao oferecer mais dados sobre passagens em que ocorram o uso de expressões dialetais, expressões idiomáticas, poemas em versos (que a meu ver não devem ser traduzidos literalmente, sob pena de se perder inevitavelmente sua expressão) ou frases em língua estrangeira, sobretudo o inglês e o francês. Ou seja, as notas de tradução, diferencial na edição que ora proponho, procuram oferecer parâmetros para uma comunicação efetiva entre dois sistemas linguísticos e culturais distintos, respeitando suas especificidades e enriquecendo a leitura propiciada pelas cartas. Com base em uma ampla pesquisa de edições de cartas, os critérios adotados para o livro que ora propomos foram paulatinamente depurados durante a estada na França. Por óbvio, a seleção foi pensada sempre tendo em vista o leitor de língua portuguesa. Portanto,

107 Italo Calvino participou ativamente das reuniões do Oulipo, como percebemos por meio das atas do grupo. Além disso, publicou livros pelo selo “La Bibliothèque Oulipienne”, como os seguintes títulos: Piccolo Sillabario Illustrato (1978) e Comment j'ai écrit un de mes livres (1982).

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apesar de se basear na edição de Baranelli, apresenta algumas diferenças relevantes em relação a ela, tais como as que dizem respeito à anotação. As notas reproduzem integral ou parcialmente as da edição do livro italiano; por vezes, tais notas foram eliminadas por completo, tendo em vista a adequação ao público brasileiro. As transcritas a partir da edição italiana não receberam nenhum adendo adicional, ao passo que as acrescidas por mim podem ser identificadas com a marcação “(N.T.)”. Para o estabelecimento do texto das cartas inéditas, houve uniformização para escrita de títulos, de palavras estrangeiras, maiúsculas etc. Apresento, como marca distintiva, notas de edição que versam sobre as condições físicas do manuscrito, sobre dificuldades de transcrição, sobre a presença de rasuras e emendas no texto etc. Vale dizer que adotei a nomenclatura de Luca Baranelli para especificar a condição do autógrafo: “ms” é empregado para “manuscrito” escrito à mão; “ds” para “datiloscrito” autógrafo assinado pelo autor, que não passou pelo processo de cópia. Tendo em vista que a proposta é traduzir esses documentos, as notas de edição mais relevantes (considerando-se que se trata de uma edição fidedigna e uniformizada) e as notas exegéticas são apensas ao documento efetivamente traduzido. Sempre que a fonte tomada por base não for a edição preparada por Baranelli (CALVINO, 2000), esclarecimentos serão devidamente registrados. Dentre peças inéditas recentemente coligidas, destaco e exponho a seguir a carta enviada por Italo Calvino ao poeta Edmond Jabès (1912-1991), cujo original, em francês, se encontra na Bibliothèque Nationale de France, Le site Richelieu-Louvois, seção de Manuscritos. Aliás, as cartas de Calvino a interlocutores francófonos coligidas até o momento foram todas escritas em francês, trazendo uma complexidade adicional a este trabalho, visto que passei a trabalhar com duas línguas de partida: o italiano e o francês. A título de ilustração e conclusão deste texto, apresento, a seguir, o documento traduzido abaixo:

Paris, 10 de março de 1978 Caro senhor, li com atenção seus dois livros e agradeço muito por tê-los enviado a mim. Acho fascinante a interrogação que o livro conduz sobre si mesmo, construindo-se em torno de uma impossibilidade de alcançar sua própria substância. A forma de sua meditação, que se articula numa grande riqueza de vozes e de imagens, me parece exemplar de uma literatura-limite pela qual tenho especial apreço. Uma tradução italiana? Sei bem o que um editor pode me responder: o leitor apaixonado pelas sondagens mais vigorosas da poesia e do pensamento prefere ler os textos originais, e não suas traduções. Uma tradução italiana só108 se justifica quando há a perspectiva de atingir um público mais amplo.

108 No original em francês, Calvino escreve “suelement” em vez de “seulement”, aqui traduzido como “só”.

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Espero vivamente que se possa chegar a isso quanto a seus livros em um futuro próximo. Por ora, o que vou fazer é indicar a leitura de seus livros a alguns leitores de qualidade dentre meus amigos e esperar que essas sementes deem frutos... Estou muito contente de o ter lido e seguirei seu trabalho com grande interesse. Caro senhor, conte com minha alta estima e consideração.

Italo Calvino109

Segue transcrição integral do manuscrito inédito:

Paris le 10 mars 1978 Cher Monsieur, j’ai lu avec attention vos deux livres et je vous remercie beaucoup de me les avoir envoyés. Je trouve fascinant l’interrogation que le livre conduit sur soi-même, en se construisant autour d’une impossibilité à atteindre sa propre substance. La forme de vôtre méditation, qui s’articule en une grande richesse de voix et d’images, me paraît exemplaire d’une littérature-limite que j’ai bien au coeur. Une traduction italienne? Je sais bien déja ce qu’un éditeur peut me repondre: le lecteur passioné aux recherches les plus poussées de la poèsie et de la pensée prefere lire les textes originaux et pas les traductions. Une traduction italienne se justifie suelement quand on peut envisager d’atteindre un public plus large. J’éspère vivement qu’on puisse arriver à ça pour vos livres dans un future prochain. Pour le moment, ce que je vais faire c’est de faire lire vos livres à quelques lecteurs de qualité entre mes amis, et attendre que ces semailles donnent des fruits... Je suis très content de vous avoir lu et je suivrai vôtre travail avec un grand interêt. Croyez, cher Monsieur, à une considération chaleureuse.

Italo Calvino

REFERÊNCIAS

BOLLETTINO di Italianistica. Rivista di critica, storia letteraria, filologia e linguística, semestrale, n.s., anno X, n. 1, 2013.

CALVINO, Italo. Comment j'ai écrit un de mes livres. Paris: La Bibliothèque Oulipienne 1982. v. 20.

_____ . Lettere 1940-1985. A cura di Luca Baranelli. Milano: I Meridiani Mondadori, 2000.

_____. Piccolo Sillabario Illustrato. La Bibliothèque Oulipienne: Paris, 1978. v. 6.

109 Carta manuscrita inédita em folha de papel A4 (29,5 x 21cm) branco, de baixa gramatura, preenchida a caneta tinteiro preta, frente e verso; Pasta 3 do Fond Edmond Jabès, folha 201, BnF; envelope 16 x 11,5 cm com carimbo de “12 h, 11-3-1978”, “Av. General Leclerc (14º), Paris 14”; destinatário “M. Edmond Jabès, 7 rue de l’Epée-de-Bois, 75005, Paris”; remetente “Italo Calvino, 12 Square Chatillon, 75014, Paris”; Fonte: BnF. Original em francês; tradução nossa.

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CAPPELLO, Sergio. Les années parisiennes d’Italo Calvino (1964-1980). Sous le signe de Raymond Queneau. Paris: Presses de l’Université Paris-Sorbonne, 2007.

MAGAZINE Littéraire, Paris (France), n. 165, oct. 1980.

MAGAZINE Littéraire, Paris (France), n. 274, fev. 1990.

LAVERGNE, Isabelle. Italo Calvino. Écrivain du paradoxe. Paris: Hermann Éditeurs, 2012.

MANGANARO, Jean-Paul. Italo Calvino. Paris: Le Seuil, 2000.

MEIER, Franziska. L’art épistolaire – un laboratoire d’idées et de style. Le cas d’Italo Calvino. Épistolaire, Revue de l’AIRE, Librairie Honoré Champion, n. 38, p. 79-88, 2012.

PAVESE, Cesare. Lettere 1945-1950. A cura de Italo Calvino. Torino: Einaudi, 1966.

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TROCANDO O PALCO PELO MICROFONE: DIRIGINDO A PEÇA RADIOFÔNICA A MÁQUINA DO TEMPO

Mirela Dornelles Gonzalez Paz110 Sílvia Maria Guerra Anastácio111

INTRODUÇÃO

Existe ainda hoje no mercado brasileiro uma carência muito grande de audiolivros, especialmente de textos literários em língua inglesa traduzidos para o português. Utilizamos o texto de H. G. Wells, The time machine, originário da língua inglesa, como base para este trabalho. Sendo um texto complexo para ser traduzido, requereu do Grupo de Pesquisa PRO.SOM um trabalho de tradução e revisão de vários meses, seguido da seleção de partes do texto traduzido que seriam, de algum modo, aproveitadas para a mídia sonora em construção. Foi realizada, primeiramente, a tradução interlingual do texto de Wells do inglês para o português; em seguida, partiu-se para a adaptação desse texto traduzido, que seria roteirizado; e, finalmente, passou por uma tradução intermidiática, já que o texto migrou da literatura impressa para uma mídia sonora, a peça radiofônica. A Peça Radiofônica surgiu na Alemanha, na década de 20. Despertou o interesse dos ouvintes por sua dinamicidade e irreverência para a época, tendo então marcado a história da linguagem e da radiofonia. Esse gênero evidenciou que a linguagem verbal tem um potencial enorme e, neste caso, independe dos impulsos imagéticos pictóricos para que a imaginação do ouvinte seja despertada. Dentre os elementos de uma Peça Radiofônica, temos a voz que, com a palavra, os ruídos, a música, o silêncio, a intervenção técnica e artística do criador constroem um novo universo para o público ouvinte:

Para a consolidação da estética de uma linguagem essencialmente sonora, a peça radiofônica e seu desdobramento revelam-se como um caminho inspirador em direção a um universo novo no qual palavra e som, ruídos e silêncio, ou mesmo, música, propõem a partir de efeitos técnicos e/ou humanos, uma realidade criativa surpreendente, e até mesmo, transformadora (PEIXOTO, 1980, p. 7).

110 Graduanda do Bacharelado Interdisciplinar em Artes, UFBA. Graduanda em Artes Cênicas com habilitação em Interpretação Teatral, UFBA. Membro do grupo de pesquisa PRO.SOM. 111 Professora Permanente dos Programas de Pós-Graduação das linhas de Língua e Cultura e Literatura e Cultura do Instituto de Letras da UFBA. Bolsista de Produtividade do CNPq.

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O rádio, até nos dias atuais, tem um papel fundamental em nossa sociedade, não sendo apenas veículo de transmissão de notícias e entretenimento, mas sim um dos maiores meios de comunicação. Assim, desde os anos 20, quando na Alemanha o autor e diretor teatral Berthold Brecht escreveu sobre a importância dos dramas radiofônicos e se utilizou deles para expor opinião sobre a guerra por meio de suas obras, se observa a extrema relevância desse meio. E quando se fala em comunicação radiofônica, hoje, ela engloba não apenas o rádio, mas também todas as mídias sonoras, incluindo o audiolivro. Foi com a consciência da importância e da responsabilidade da mídia radiofônica, hoje e ontem, que os pesquisadores e artistas envolvidos se debruçaram sobre esse trabalho com dedicação e seriedade. A releitura do texto de H. G. Wells, The time machine, traduzido como A máquina do tempo para o Brasil dos dias de hoje levantou, desde o processo de criação do seu roteiro, pontos para reflexão dos quais toda a equipe participou e, em se tratando de um processo de criação coletiva, traz um pouco de cada um dos seus integrantes. Para estudar esse processo de criação, o trabalho foi feito com base no eixo teórico- metodológico da Crítica Genética que, de acordo com Cecilia Salles, entende que uma obra de arte nasce a partir de um processo de criação que inclui transformações progressivas em sua trajetória, sendo elas o ponto de análise dos geneticistas. Grésillon, pesquisadora importante da área, afirma que:

O objeto dos estudos genéticos é o manuscrito de trabalho, aquele que porta os traços de um ato, de uma enunciação em marcha, de uma criação que está sendo feita, com seus avanços e seus bloqueios, seus acréscimos e seus riscos, seus impulsos frenéticos e suas retomadas, seus recomeços e suas hesitações, seus excessos e suas faltas, seus gastos e suas perdas (GRÉSILLON, 2007, p. 51).

Seguindo esses estudos, o grupo entende a importância da montagem de um dossiê genético contendo todos os passos de evolução deste trabalho, desde a tradução interlingual, esboços de roteiro até comentários e vídeos dos dias de gravação.

VÁRIAS MÃOS EM BUSCA DE UM ROTEIRO, UM DIRETOR EM BUSCA DE UM ATOR

Levando em conta que uma obra de autoria coletiva como o audiolivro apresenta traços de hibridismo no seu processo de criação pelo fato de ser o resultado de uma multiplicidade de perspectivas que se cruzam na construção de um roteiro, a presença de

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todos os pesquisadores, desde a tradução do texto para o português, possibilitou que o trabalho de cada um pudesse ser muito mais efetivo do que se tivesse sido fragmentado, cada um em sua função específica, apenas. Como o que interessa a este trabalho são questões relacionadas à tradução intermidiática e ao trabalho de direção da peça radiofônica A máquina do tempo, é a partir da construção do roteiro e da gravação da obra que serão levantadas reflexões para análise. Até chegar à versão entregue ao público, integrando os documentos de processo, o roteiro foi constituído por 5 versões intituladas: esqueleto do roteiro, escaleta, roteiro de fato, roteiro de gravação e roteiro pós-recepção. Na etapa da escrita do roteiro, visando à gravação da mídia sonora em questão, foram aproveitados trechos de cada capítulo traduzido da obra literária de Wells para, a partir daí, dar a esse material uma nova roupagem em que o discurso da oralidade e a adaptação ao contexto de recepção seriam a tônica do trabalho. Como pode ser visto na imagem a seguir, em uma das etapas do processo de escrita, subverteu-se, inclusive, o gênero do protagonista do texto de partida, pois O Viajante do Tempo passaria a ser A Viajante do Tempo; se chamaria, então, Júlia.

Figua 1 – Recorte do documento de Esqueleto do Roteiro, localizado no Gdrive do grupo PRO.SOM

Houve, ao longo do processo, algumas mudanças significativas tanto na história, quanto nas escolhas dos personagens que entrariam no audiolivro. A maior delas, talvez, tenha sido a mudança de gênero da personagem principal, como se pode observar no

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deslocamento das características de um protagonista masculino para feminino, na imagem anterior112. Ainda na etapa de criação do roteiro, iniciou-se o trabalho de produção do audiolivro propriamente dito, pois, a cada momento em que uma nova cena ficava pronta, a pesquisadora-diretora já procurava visualizar quais atores seriam selecionados para dar vida aos personagens que iam nascendo. O fato é que quando os personagens iam tomando forma no papel, a necessidade de buscar atores que incorporassem aquelas falas ia ficando maior, mais urgente. Pelo fato de outra integrante do grupo também ser estudante de Artes Cênicas, ao longo do processo de criação do roteiro, ambas se disponibilizavam, com frequência, a fazer leituras do texto a fim de ajudar em sua concepção, buscando incutir-lhe dinamismo e dramaticidade. A identificação com as personagens foi tão grande que, também por falta de atores voluntários que tivessem o perfil vocal necessário para atuar no processo de gravação de certos papéis masculinos, ficou decidido que as duas integrantes do Grupo PRO.SOM, que eram alunas de Artes Cênicas, assumiriam respectivamente, dois papéis importantes da história a ser gravada. Estando o foco do presente artigo direcionado para o aspecto da direção e do treinamento dos atores para a gravação da peça pela aluna responsável por tais atribuições que, também gravou uma personagem importante da trama, ocorreu que esse acúmulo de papéis não foi uma tarefa simples de ser desempenhada ao longo do processo. Entretanto, ao vivenciar, também, o trabalho do ator em uma peça radiofônica e, ao trazer a sua experiência dos palcos para o que estava vivenciando no estúdio PRO.SOM – no Instituto de Letras onde as peças são ensaiadas e gravadas – foi possível definir, mais claramente, qual seria a abordagem com os outros atores que trabalhariam sob a sua direção. O processo de escolha dos atores se deu por meio de uma pré-seleção, que foi feita, através do banco de atores voluntários que o grupo já possuía e de alunos-atores, colegas de curso das bolsistas de Artes Cênicas do Grupo de Pesquisa PRO.SOM. Essa escolha foi baseada nos perfis dos personagens criados e no perfil vocal dos atores. Assim que o roteiro ficou pronto para ser gravado, ocorreu uma primeira leitura com toda a equipe de atores, no estúdio do PRO.SOM, para a discussão e definição dos papéis. Houve consenso de que os perfis dos atores combinavam com os respectivos papéis e, como alguns tinham uma capacidade vocal bem desenvolvida, foram designados a interpretar mais

112 Observe-se que foram utilizados operadores da Crítica Genética: < > para acrescentar e [ ] para deletar informações em um texto.

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de um personagem. Aliás, esta é uma prática que não se costuma adotar na gravação dos audiolivros por se temer que o ouvinte reconheça o mesmo timbre de voz em mais de um personagem e tal fato afete a compreensão ou a inteligibilidade da história que está sendo ouvida.

Figura 2 – Recorte do documento de processo Roteiro de Fato, localizado no Gdrive do grupo PRO.SOM

No caso do ator em questão, trata-se de um profissional que trabalha com dublagem e afeito à mudança de entonação de voz ao assumir personagens diferentes. No roteiro, ele desempenhou os papéis da Máquina, do Guarda de Trânsito e do repórter no Noticiário de TV, tendo os dois últimos, aparições pontuais. Para dar vida à Máquina do Tempo, foi solicitado ao ator que colocasse uma voz com característica robótica e caricaturada. Assim, junto com os efeitos que seriam usados na edição, a voz estaria o mais perto de uma máquina como a que se pretendeu incluir na história. Pode-se perceber que essa intenção pensada já na escritura do roteiro, passada ao ator e trabalhada na edição de som, com a edição de efeitos sonoros e buscando-se utilizar uma linguagem próxima aos comandos de um aparelho tecnológico acabou por gerar o produto desejado no audiolivro gravado. Entretanto, ao se fazer um teste de recepção com uma pessoa deficiente visual, ele foi capaz de identificar que um mesmo ator havia desempenhado os três

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papéis e foi necessário colocar efeitos sonoros nas vozes para torná-las mais distintas, durante o processo de edição. Os dias de gravação foram definidos no cronograma de trabalho do estúdio e obedecendo a disponibilidade de horário da pesquisadora-diretora da peça. Foi possível realizar essa etapa de gravação nos dias 6, 7, 8, 9, 13 e 14 de julho de 2015.

Figura 3 – Dia de gravação no estúdio PRO.SOM. 09/07/2015

Já no primeiro dia de gravação, a pesquisadora-diretora da peça percebeu que, como os atores de teatro têm por característica, com frequência, impostar a voz em um volume mais alto que o microfone do estúdio consegue suportar, esse aspecto teve que ser trabalhado. O que se costumava fazer com cada ator que ia gravar o seu papel era um ensaio na pré- gravação, no próprio estúdio. Nesse momento, atentava-se, também, para essa questão do modo como cada voz estava sendo colocada para que não ocorresse uma clipagem do som na trilha do software Pro.Tools, programa usado para gravação e edição de áudio no estúdio. Quando ocorre a clipagem, há uma sobrecarga sonora, que se torna visível na janela do Pro.Tools, que acusa o problema com um sinal vermelho, à margem esquerda da tela de gravação. Essas clipagens, se persistentes, causam problemas insolúveis na edição e mixagem, o que acontece quando é ultrapassada a margem de segurança de 6dB, o limiar de tolerância e flexibilidade do programa. A pesquisadora-diretora teve que enfrentar esse problema e trabalhar em sintonia com a mesa de gravação para que não houvesse uma perda dramática; nesses momentos,

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foram feitos ajustes técnicos, reduzindo o volume de gravação na placa de som, de modo que o ator não precisasse diminuir muito o tom de sua voz, o que acabaria por prejudicar a intenção da fala. Assim, as gravações foram sendo direcionadas, uma a uma, dando indicações aos atores no momento da interpretação. Pelo fato do estúdio PRO.SOM ser de pequena dimensão, para evitar a ressonância, cada papel foi gravado separadamente pelo ator, enquanto alguém, do lado de fora do aquário de gravação ficava dando as “deixas” – termo utilizado no teatro para a fala que antecede a vez do outro ator – através de um microfone ligado a um fone de ouvido usado pelo ator; ou então, se essas falas já tivessem sido gravadas, quem estivesse operando a mesa de som soltava, aos poucos, as falas já anteriormente gravadas para o ator via fone de ouvido. Nesse momento, a pesquisadora-diretora orientava os atores a incutir às suas falas a intenção ou o tom desejado em determinada cena; com frequência, buscava, então, a naturalidade desejada ou um tom “menos teatral” como um dos parâmetros essenciais para a gravação, o que não ocorria se a voz estivesse empostada. O termo “menos teatral” ocorreu diversas vezes à diretora quando ouvia os atores gravando e, então, ela pode se dar conta da complexidade do trabalho que estava realizando no estúdio. O fato é que atores de teatro não costumam estar preparados para o processo de gravação de mídias em meio radiofônico, pois até a distância desse ator do público interfere na interpretação. A gravação no estúdio implica em um tom mais intimista. Contudo, apesar das dificuldades, o audiolivro foi concluído, inclusive com o apoio de toda a equipe, visto se tratar de um empreendimento de autoria coletiva. No momento da recepção, observou-se que a história gravada em audiolivro conseguiu envolver os ouvintes, especialmente pelo seu dinamismo, pela vivacidade da gravação das falas e pela riqueza dos efeitos sonoros capazes de criar a ambiência desejada. O que se pode observar é que durante a gravação radiofônica, houve uma preocupação dos atores com a própria expressão corporal, considerando que a voz é uma extensão do corpo. Assim, o ator radiofônico tem o mesmo objeto de trabalho do ator teatral, seu corpo, e este deve ser preparado e cuidado da mesma forma. Considerando o que diz Stanislawski113 e pensando sobre o convencimento e interiorização do personagem, pode-se ter o “Se mágico” como um grande aliado no trabalho do ator radiofônico: e se eu fosse esse personagem? E se eu estivesse nessa situação? Usando perguntas como essas, e visualizando-se nas determinadas situações como o próprio

113 Constantin Stanislawski (1863-1938) foi ator e diretor de teatro. Tornou-se célebre por criar um sistema de ensino da arte de representar chamado “Método Stanislawski”.

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personagem, o ator radiofônico pode encontrar nessa ferramenta um grande aliado em seu trabalho de construção física e vocal. Percebeu-se, também, que além de investir na naturalidade das falas, era necessário investir nas ações dramáticas. Como não se pode contar no audiolivro com o recurso das imagens pictóricas, é preciso fazer o ouvinte trazer para a sua tela mental imagens via sensações, emoções e vivências expressadas através de sons, ruídos, trilhas sonoras, música, pausas e, principalmente, da impostação das palavras. A maior descoberta foi trazer o silêncio para o espaço radiofônico. A direção da peça teria o silêncio como um grande aliado para que, em momentos de pausa, a imaginação do ouvinte fosse capaz de completar uma determinada frase, antes que ela pudesse ser ouvida. Também, o silêncio poderia ser agregado a uma trilha sonora ou marcaria um momento de tensão. Por isso, por exemplo, o ator que interpretou o padre na cena de um enterro foi solicitado a fazer pausas entre uma fala e outra a fim de preencher os espaços de gravação com um silêncio denso, propício àquele momento dramático de tensão, como se pode imaginar no recorte a seguir:

Figura 4 – Recorte do documento de processo Roteiro de Fato, localizado no Gdrive do grupo PRO.SOM

Na verdade, o que se constatou é que as pausas interferiam no ritmo da gravação e, consequentemente, da interpretação. Por isso, era importante investir nelas, sempre que fosse conveniente.

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Como se pode observar, este artigo traz recortes da gênese do audiolivro em análise, pois há um interesse do grupo de pesquisa em valorizar não apenas o audiolivro entregue ao público, mas o seu processo de criação. Buscou-se, durante toda essa caminhada, registrar, através de gravações de voz ou vídeo os ensaios, as discussões do grupo, o trabalho do ator ou do diretor, enfim, de toda a equipe, para que se pudesse refletir sobre as etapas do trabalho executado e se aprender com ele. Assim, os princípios teórico-metodológicos da Crítica Genética serviram de guia, durante todo o tempo, a esses estudos, permitindo que se guardasse toda a evolução do trabalho, desde um primeiro rascunho até a versão entregue ao público. Segundo Cecilia Salles (2008), a crítica genética pretende oferecer uma nova possibilidade de abordagem para as obras de arte, observando-as a partir de seus percursos de fabricação, oferecendo, assim, uma perspectiva de processo à obra. Observou-se que tal perspectiva de trabalho foi muito importante, especialmente, na etapa da gravação, pois, pelo fato de a trilha sonora do Pro.Tools registrar todos os eventos ocorridos no estúdio, inclusive erros, toda a equipe teve a oportunidade de ouvir várias versões de uma mesma fala, mais de uma vez, até que a direção acreditasse ser aquela a execução ou a interpretação que se pretendia alcançar. Foi possível analisar essas falas e entender, então, porque tinha sido escolhida esta versão e não aquela. Ao longo do processo, foi desenvolvido um método que se poderia chamar de “microfone aberto”. Ou seja, o ator estaria livre a dar seu texto quantas vezes quisesse, poderia voltar se errasse ou repetir seguidamente aquele texto, conforme sua vontade, necessidade ou pedido da direção, o que o deixava mais à vontade para gravar. Desse modo, tanto o ator se sentia mais confortável em executar sua performance de uma maneira mais natural, quanto o processo ganhava mais recursos para estudo.

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Figura 5 – Captura de tela de software Pro.Tools - Dia de edição 29 de julho de 2015

Também, para facilitar a etapa seguinte do processo, a edição, decidiu-se numerar as versões escolhidas das falas guardadas na trilha do Pro.Tools, já que ali estavam, em sequência, todas as falas, as que seriam aproveitadas ou não. Portanto, o fato de se deixar as trilhas “sujas”, ou melhor, com todas as versões gravadas e sem apagá-las imediatamente permitiu que, na edição, quando havia um problema na montagem dessas falas, fosse possível escolher a que se desejava usar, dentre as possibilidades disponíveis; enfim, foi possível lidar com escolhas em todas as etapas.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Abrir a cortina da direção, bem como da produção de uma mídia sonora e mostrar um pouco do que foi o processo de criação da peça radiofônica A máquina do tempo é também um modo de analisar e estudar um longo percurso, enfim, de compartilhar ideias de um contato mais íntimo com o processo de montagem dessa linguagem artística. O universo radiofônico deveria ser visitado e experimentado por todos, inclusive pelos próprios artistas que, na maioria das vezes, não conhecem muito sobre essa linguagem. Pode-se observar que há um amplo campo de estudo no que concerne ao preparo do ator de teatro que deseja também trilhar esse caminho e é notório que a experiência dos palcos

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contribui muito para uma boa performance na gravação de uma peça radiofônica, mas isso não basta. Novos focos de aprimoramento se fazem necessários para um profissional que atue na radiofonia, como o desenvolvimento de técnicas vocais e o cuidado com a voz e a sua colocação de um modo mais específico frente ao microfone de um estúdio. Esses elementos são importantes para qualquer ator, mas para o ator-radiofônico eles são essenciais. E, em consonância, é exigido do diretor uma posição que contemple esse trabalho. A direção é responsável por reunir, pensar e organizar os elementos essenciais para a montagem de uma obra artística. Por isso, no caso em questão, pode-se perceber que a criação em análise inclui não somente o diálogo e o trabalho com os atores, mas também o entendimento de como funciona o processo de gravação em um estúdio, como ocorre a montagem das falas em uma trilha sonora, os recursos radiofônicos e efeitos disponíveis para obter a ambientação desejada, dentre outros aspectos que corroboram para o resultado de uma obra artística que será levada ao público.

REFERÊNCIAS

GRÉSILLON, Almuth. O manuscrito moderno: objeto material, objeto cultural, objeto de conhecimento. In: GRÉSILLON, Almuth. Elementos de crítica genética: ler os manuscritos modernos. Porto Alegre: Editora da UFRGS, 2007.

KOLB, Richard. O desenvolvimento da peça radiofônica artística a partir da essência do rádio. In: SPERBER, George (Org.). Introdução à peça radiofônica. São Paulo: Editora E.P.U, 1980.

PEIXOTO, Fernando. Descobrindo o que já estava descoberto. In: SPERBER, George (Org.). Introdução à peça radiofônica. São Paulo: Editora E.P.U, 1980.

SALLES, Cecilia Almeida. Crítica genética: fundamentos dos estudos genéticos sobre o processo de criação artística. São Paulo: Educ, 2008.

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SPRITZER, Mirna. O corpo tornado voz: a experiência pedagógica da peça radiofônica. Tese apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, 2005.

STANISLAWSKI, Constantin. A preparação do ator. Tradução de Pontes de Paula Lima (da tradução norte-americana). Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1964.

WELLS, Herbert George. The time machine. London: William Heinemann, 1895.

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A INFLUÊNCIA DA REDE SOCIAL FACEBOOK NA PRODUÇÃO DE CORDÉIS

Nilson Oliveira Moura114 Aparecido José Cirillo115

Para falar da Literatura de Cordel116 é necessário, antes, conceituar esse gênero literário. Para isto, utilizar-se-á o conceito de Marcos Haurélio (2010), que a define como poesia popular:

A Literatura de Cordel é a poesia popular, herdeira do romanceiro tradicional, e, em linhas gerais, da literatura oral (em especial dos contos populares), desenvolvida no Nordeste e espalhada por todo o Brasil pelas muitas diásporas sertanejas (HAURÉLIO 2010, p. 16).

Já Marlyse Meyer (1980) preleciona que tanto a literatura culta quanta a popular têm origem na tradição oral de contar histórias e de passar às gerações vindouras o acervo da anterior – e não descarta ainda que o acesso desses artistas populares a um público maior de leitores se deu graças ao surgimento das máquinas impressoras domésticas. O gênero distingue-se por exigir daquele que o pratica a obediência às formas e, por ser construído em versos estruturalmente simples, respeita o esquema rítmico definido e a métrica. Um dos modelos de estrofes mais utilizados é a sextilha, estrofe de seis versos ou seis linhas e esquema rítmico a b c b d b (o primeiro, o terceiro e o quinto versos soltos, e rimados entre si o segundo, o quarto e o sexto); outro modelo é a septilha, estrofe de sete versos ou sete linhas, com o esquema rítmico a b c b d d b (o primeiro e o terceiro soltos, enquanto que o segundo, o quarto e o sétimo são rimados e, juntos, o quinto e o sexto). Quando surgiu, o gênero tinha entre suas funções entreter o público e levar informação às regiões mais distantes, que na época encontraram nesse estilo um meio de acesso a notícias diversas. Com uma temática vasta, essa forma de escrita prima pela linguagem coloquial,

114 Pesquisador vinculado à Associação de Pesquisadores em Crítica Genética (APCG). Possui graduação em Letras Português pela Universidade Federal do Piauí, especialista em Crítica Genética e Organização de Arquivos, pela Universidade Estadual do Piauí (UESPI). 115 Pesquisador vinculado ao GEPPC/LEENA-UFES (grupo de pesquisa em Processo de Criação); Professor Permanente do Programa de Mestrado em Artes da UFES e artista plástico. Graduado em Artes pela Universidade Federal de Uberlândia (1990), tem mestrado em Educação pela Universidade Federal do Espírito Santo (1999) e doutorado em Comunicação e Semiótica, pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (2004). Atualmente é professor Associado da Universidade Federal do Espírito Santo. Desenvolve pesquisas com recursos do CNPQ/CAPES/ FAPES. 116 Para mais informações consultar, também, as obras: Cordel - leitores e ouvintes, Autêntica, 2001, de Ana Maria de Oliveira Galvão; O que é literatura de cordel, Brasiliense, 2005, Joseph M. Luyten; visitar os sites da Academia Brasileia de Literatura de Cordel, http://www.ablc.com.br/index.html e Fundação Casa de Rui Barbosa http://www.casaruibarbosa.gov.br/.

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tornando-se popular entre as classes com menor domínio da leitura e da escrita. Durante muito tempo, cordelistas produziam seus textos e os comercializavam nas feiras populares, pendurados ou não em cordas, ou até mesmo barbantes, dependendo da região e do período histórico em que eram feitos. Com o surgimento e popularização da internet, alguns artistas enxergaram, na grande rede, uma ampliação do espaço de divulgação de seus trabalhos. Isso proporcionou, também, o acesso a um novo grupo de leitores. O novo ambiente pôs o poeta em contato com uma quantidade variada de ferramentas interativas e outra dinâmica parece ter sido imposta à recepção da obra e, portanto, à mediação autor/leitor. O contato direto que se estabeleceu com os leitores, através de comentários, curtidas e compartilhamentos fez surgir uma nova geração de cordelistas, os que produzem diretamente na plataforma da rede social. Mas que tipo de influências pode receber o texto de cordel, em sua gênese, em seu processo de criação, produzido diretamente na e para a rede social Facebook, para adequar-se a esse novo público? Assim, parece haver uma necessidade de esclarecer se o texto de cordel pode ser influenciado por este novo veículo em sua gênese, quando o cordelista passa a produzir no e para o ambiente virtual. Para explicar se tais mudanças favorecem a conquista de novos leitores, utilizando-se de uma linha de pesquisa denominada crítica genética, espera-se responder a tais questionamentos contribuindo, assim, com os estudos sobre a gênese da criação no cordel. Partimos da hipótese de que quando o cordelista passa a produzir no e para o ambiente virtual, em específico para a rede social Facebook, o tamanho de suas obras diminui passando a produzir textos influenciados por seus leitores. Destacamos aqui que redes como o Facebook permitem que o autor escreva somente para si, ou para um grupo específico de amigos, ou seja, o fato de usar uma rede social não necessariamente significa que essa produção se destine para leitura neste ambiente, a opção por tornar o post público é de quem publica. Por isso, destaca-se aqui a intencionalidade do artista de cordel em escrever para esse ambiente, e não apenas nele; ele não escreve para um leitor particular ao longo do seu processo criativo. Ao escolher o modo “público” para a postagem, sabe-se que essa será de acesso universal, ai se revela a intenção de escrever para esse meio de comunicação.

DAS FEIRAS LIVRES AO FANTÁSTICO MUNDO DA GRANDE REDE

Com versos simples, esquema rítmico que faz ecoar nos ouvidos dos leitores e ouvintes a melodia perfeita e uma excelente capacidade de improvisar, o cordelista transforma

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o produto de seu trabalho num importante instrumento de entretenimento e veículo de informação. Falar de cordel no ambiente digital até pouco tempo atrás seria algo fora do contexto, incoerente. Entretanto, por ser um gênero que sempre buscou as massas, era vendido nas feiras e mercados populares ou onde houvesse concentração de pessoas. Tão logo a internet se popularizou “se transformando numa rede de contatos sociais” (SPADARO, 2013, p. 9-10), as redes sociais tornaram-se meio de diversão e entretenimento que passou a contar com a adesão de grupos dos mais diferentes segmentos da sociedade. Parece que o cordelista também viu nesse espaço um novo ambiente adequado para a divulgação e circulação de seu trabalho. A rede social passa a ser vista como um espaço que “permite experimentar novas formas de contato e de expressão pessoal” (SPADARO, 2013, p. 10). Experiência essa sempre buscada por cordelistas, que viram no ambiente virtual a possibilidade de constituir grupos de pessoas ligadas por assuntos, no qual é possível o compartilhamento de conteúdo, ideias e a facilidade de interação. Esse ambiente proporciona, como nenhum outro, a possibilidade de reconhecimento medido através de comentários, compartilhamentos e curtidas. A adesão do cordelista ao ambiente virtual, em especial à rede social Facebook, parece ter exigido dele uma adaptação, pois o principal espaço de publicação é “uma espécie de quadro de avisos no qual é possível escrever a cada instante, usando uma frase curta, o que se está fazendo” (SPADARO, 2013, p. 97). Escrever em frase curta, de improviso, não é um desafio para o cordelista, que domina com maestria as regras da composição literária de seu gênero. Considerando o que Meyer (1980, p. 3) defende sobre o folheto ser um livrinho “impresso em papel-jornal com um número variado de páginas, sempre múltiplas de quatro”, com o número de páginas em relação direta ao tipo de assunto, variando entre 8, 16, 32, 48 percebe-se que o tamanho de sua obra vem diminuindo ao longo dos anos. Assim, o próprio pensamento rizomático do ambiente virtual parece ter o poder de alterar essa métrica, mas não a lógica da publicação. Nesse caso, virtualizada, a estrutura de páginas é trocada pela lógica da barra de rolagem.

REDE SOCIAL E CORDEL: INFLUÊNCIAS QUE MARCAM A GÊNESE DA POESIA

Ao produzir um texto diretamente em seu perfil na rede social o autor da produção deixa acessível ao pesquisador as marcas desse processo. Assim, para a análise desse processo

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criativo do cordelista optou-se pela base teórico-metodológica da crítica genética. Esta escolha não se dá apenas pelo foco no estudo do processo criativo; interessa-nos a crítica genética exatamente porque o centro desse debate é buscar evidenciar como o projeto poético desses cordelistas utiliza meios contemporâneos em seus processos criativos que geram documentos de processo digitais. Estudos dessa natureza se mostram de grande valia e imprescindíveis para verificar se e como o projeto poético desses artistas pode ser atualizado numa tecnologia digital, evidente nas redes sociais, em especial no Facebook, na qual todas as postagens e comentários vão sendo armazenados e gerando uma obra cujo aparente inacabamento é um fato. O cordelista faz com sua obra aquilo que afirmam Cirillo e Grando (2009), coloca-a aos sentidos daqueles que o seguem, independente desta ter sido ou não finalizada, ele compartilha todo o seu processo. Os autores também mencionam a crítica genética como uma possibilidade teórico- metodológica.

A crítica genética apresenta-se, pois, como uma possibilidade teórico- metodológica para a demarcação desse campo impreciso que envolve a mente criadora em movimento, o que é feito a partir dos vestígios deixados nesse percurso da mente criadora, os quais podem ser definidos como documento de processo – estes são o material de trabalho dos estudos genéticos (CIRILLO; GRANDO, 2009, p. 16).

A pesquisa em crítica genética no ambiente virtual tem como facilidade o acesso ao material que compõe a obra produzida em tal ambiente, documentos de processo digitais. O desafio foi, inicialmente, reconhecer e demarcar esses documentos. Vale destacar que a opção do autor pelo modo “público” da postagem garante a qualquer um o acesso constante a todas as alterações e comentários referentes às postagens feitas pelo cordelista. Assim, para criar o corpus de trabalho foi necessário navegar pelas redes sociais dos artistas cordelistas que as usam como local de criação e publicação, catalogando assim, suas postagens. Acesso esse que, no caso especifico desta pesquisa, realizou-se por meio de computador conectado à rede social em procedimento bastante simples: analise e seleção do material publicado, posteriormente tudo era salvo em formato PDF. Citando os mesmos autores (2009, p. 14), “os estudos do processo de criação se iniciam olhando para um momento pontual, aquele que marca o final da obra”. No caso especifico de Somos nordeste (2015), objeto de estudo desta pesquisa, esse ponto ocorre onze dias após as primeiras publicações, o acompanhamento do processo da obra nos permite afirmar que esse ponto em que o autor declara o processo como obra, ou como o possível tolerável de Louis Hay, se dá nesse momento.

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Para a consecução dos objetivos estabelecidos por esta pesquisa, após várias visitas à rede social Facebook, objetivando conhecer os perfis de cordelistas e as possibilidades de uso desta rede social como matéria e suporte da escrita, observou-se durante onze dias um intenso movimento, período de construção da obra Somos nordeste (2015), organizada por Gélson Pessoa. Para comprovar uma possível influência da rede social sobre a gênese da criação de cordelistas que produzem nesse tipo de ambiente, o virtual. Em 24 de março de 2015 Medeiros publica o post considerado pelas pesquisas como marco inicial da obra, no mesmo dia Pessoa publica três outros posts, sendo que o último deles torna-se o primeiro post da obra. Nos dias 25, 26 e 27 Pessoa faz outras quatro postagens. É neste período que ocorre a construção da obra, por meio da ferramenta comentários e da caixa in-box. No dia 04 de abril do mesmo ano Pessoa faz a publicação definitiva da obra em formato de álbum. No intervalo entre 27 de março e 04 de abril a obra acontece nas interações provocadas pelas publicações anteriores. Para tanto, se produziu um dossiê, considerando o que afirmam Pino & Zular (2007) ser este composto pelo material reunido que envolve a produção da obra. O dossiê é composto pelo material baixado das páginas virtuais de alguns dos cordelistas que fazem parte da produção do texto pesquisado, figura 1.

Figura 1 – Material baixado dos perfis de Medeiros e Pessoa

Fonte: Facebook de Medeiros e Pessoa

O referido cordel foi construído com a participação dos leitores que comentavam as postagens de Pessoa. A obra em análise é uma compilação de estrofes que eram publicadas pelo autor diariamente nestas postagens, via ferramenta comentários e ou in-box, no perfil virtual da rede social Facebook do organizador. A boa receptividade do público, medida através de ferramentas interativas disponíveis na plataforma virtual, garantiu que a obra em análise fosse sendo construída com a participação de leitores, mais tarde transformados em

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autores, poderíamos aqui inclusive pensar em uma obra produzida de modo colaborativo, algo mais complexo e participativo, com os autores externos. Assim, foi possível observar aspectos mediadores da interação artista/público/obra e o processo de criação em ato sem ignorar o que afirmam Cirillo e Grando (2009, p. 28): “esses documentos são uma possibilidade e a obra, deles decorrente, é uma escolha entre outras possíveis”, e continuam: “[...] a obra apresentada é uma versão dentro de um sem fim de possibilidades”. Em suas publicações, Pessoa marcava os cordelistas que ele acreditava ter interesse em participar daquilo que ele chamou de “brincadeira poética”, verifica-se nesse processo um modo claro, uma intencionalidade de ter não apenas o leitor comum como parceiro nesse processo, mas contar com a possível colaboração de outros cordelistas especializados, o que nos parece revelar um interesse em ter uma crítica especializada trabalhando junto também. Com a quantidade de estrofes recebidas, enviadas por meio de comentários e posts, o organizador ficou confortável para escolher as que melhor se adequassem ao seu projeto, elaborando assim uma obra que tem como marca esse caráter colaborativo, ou seja, com uma interação ativa do leitor que, mais que apenas ler, auxilia o processo de escritura. Entende-se que isto não retira o lugar do cordelista, mas redimensiona seu papel na contemporaneidade das mídias digitais. Levando em conta Pino & Zular (2007), ao afirmarem que o processo criativo pode ser reconstituído a partir dos rastros da criação deixados pelo artista, optou-se pela reconstrução das etapas pelas quais o organizador passou até a publicação do texto final, em 04 de abril de 2015, divulgado em forma de álbum na página do organizador Gélson Pessoa117. Com isso, objetivou-se fazer o que Cirillo e Grando (2009, p. 18) chamaram de “estudo do processo de criação, do percurso de gestação da obra”. O primeiro vestígio dessa criação, a que tivemos acesso, foi publicado pelo cordelista Marcos Medeiros, dia 24 de março de 2015, conforme esclarece Pessoa (2015):

A minha iniciativa desta coletânea surgiu quando o meu grande Amigo o Poeta Marcos Medeiros postou na sua página do Facebook um Poema sobre o Nosso Nordeste, daí eu comentei o poema em versos também e foram surgindo mais comentários em versos (PESSOA, 2015, online).

A partir da publicação de Medeiros e do início deste estudo de caráter crítico-genético, inicia-se o que, segundo Grésillon (2002, p.147), é o método da crítica genética “o desnudamento do corpo e do curso da escrita e a construção de uma série de hipóteses sobre as operações de escrita”. Desse modo, passamos a explicitar algumas das hipóteses levantadas

117 Material já excluído do perfil do autor na rede social do organizador.

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nesta pesquisa. A primeira, sobre a gestação dos primeiros rastros da obra Somos nordeste (2015): Pessoa produziria, inicialmente, um trabalho autoral. Quando Medeiros publicou sua estrofe, ele recebeu dois comentários de diferentes cordelistas, duas estrofes que seguiam o mesmo esquema rítmico, o modelo adotado pelos poetas clássicos (ABCBDDB), também de sete versos, sobre a mesma temática. Essa hipótese se confirma com duas publicações de Pessoa em seu perfil na rede, figura 2.

Figura 2 – duas primeiras publicações da obra de Pessoa

Fonte: www.facebook.com-/Gelsonpessoa?fref=ts.

Na primeira estrofe publicada, inicialmente, no comentário da publicação de Medeiros, a postagem de Pessoa representa a primeira tentativa de produzir um trabalho autoral. Há a inclusão de signos icônicos que, na concepção semiótica de Pignatari (2004, p. 24) são explicados como o “que se organiza por similaridade, por analogia”. Desse modo, a inclusão da fotografia de uma paisagem nordestina passa a agregar outro valor à publicação do cordelista. A outra publicação representa a segunda tentativa de produção autoral que Pessoa faz de sua obra. Uma estrofe de dez versos, o elo entre as duas publicações é, sem dúvida, o texto não verbal, um ícone que representa a região nordeste, uma imagem complementando a mensagem do poeta. Marca também o que Salles (2008) define como uma “memória criadora”, algo que se movimenta, e não um local onde se armazenam informações. Pode-se pensar aqui em memória em movimento. Essa publicação de Pessoa representa esse movimento, o artista que vê na obra do outro um universo de possibilidades. Em uma nova publicação, Pessoa reúne a estrofe de Medeiros e as estrofes que este recebeu em forma de comentários à sua publicação. Essa postagem representa uma

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descontinuidade e a mudança no projeto de Pessoa, de uma produção autoral para organizar uma produção que reúna vários autores, preferencialmente de diferentes regiões do Brasil. Citando Salles (2008), talvez a ilusão de Pessoa em produzir algo que satisfaça plenamente seu público. A hipótese para a modificação no projeto de Pessoa é a falta de adesão de cordelistas às suas duas publicações – lembramos aqui que a estratégia de “marcar” alguém em uma postagem no Facebook é uma estratégia de sedução para que o citado interaja com a postagem, uma espécie de convite velado à participação. Ao publicar dois posts (figura 2) Pessoa marca noventa e nove amigos. Assim como na postagem de Medeiros, que mesmo não marcando amigos recebeu os comentários acredita-se que Pessoa esperava uma boa receptividade o que não se verifica já que ele não recebeu nenhum comentário em forma de cordel. Esse fato parece evidenciar uma possível influência que a rede social produz na gênese do trabalho de cordelistas como Pessoa. Em um novo post, Pessoa torna a publicar o post de Medeiros e os dois comentários recebidos; essa publicação é o texto inicial da obra Somos nordeste (2015). É a retomada da dinamicidade e a incerteza do processo criador da qual fala Sales (2008), dadas as possibilidades da criação artística em ato; isto pode ser observado pela aparente falta de segurança provocada pelas alterações que o poeta vive fazendo, a constante busca para produzir algo melhor. São idas e vindas, retomadas, adequações, possibilidades que o autor vai promovendo na obra na esperança de novas avaliações, reaproveitamentos ou até mesmo rejeições. Na publicação, Pessoa une os textos verbais de Medeiros e os comentários recebidos, em sua postagem, de Pessoa e Beradeiro, acrescidos de um texto não verbal. A partir desse fato, tem-se o que se pode definir como o possível início da construção da obra em estudo. A obra Somos nordeste (2015), versão final publicada em 04 de abril de 2015, em forma de álbum, reúne um total de onze imagens, compostas de texto verbal inserido sobre o não verbal. Dez imagens com seis estrofes cada e uma com cinco. A obra inicialmente pretendia reunir uns 50 poetas de todo o Brasil, mas, ao final, Pessoa (2015) finaliza apresentando 65 autores. As publicações realizadas por Pessoa, duas que representam a tentativa de produção autoral e a publicação, marco inicial da obra Somos nordeste (2015), trazem alguns movimentos escriturais na organização da obra. Considera-se como movimento o “[...] apontamento de uma diferença ou tensão entre dois documentos relativos a um mesmo trecho de uma narrativa ou de um poema” (PINO; ZULAR, 2007, p. 126). As referidas publicações

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apontam diferenças entre um mesmo documento que irá compor a obra. Rasuras, considerando-se também a definição dada pelos autores citados, podem remeter a vários tipos de movimentos. As rasuras são identificadas quando se comparam as publicações que Pessoa realizou até a divulgação definitiva da obra. A comparação entre um post publicado no dia 24 de março, primeiro post da obra, e outro publicado dia 25, segundo post verifica-se o acréscimo de três novas estrofes. Dia 26, novo post, com o acréscimo de mais duas estrofes. Se comparar a publicação do dia 26 com a de 04 de abril verifica-se um processo de exclusão de estrofes. Uma nova publicação de Pessoa, em 27 de março de 2015, é uma postagem com o título Somos nordeste, com numeração de 01, contendo doze estrofes, entre elas a de Medeiros e os dois comentários recebidos. Tal publicação comprova movimento de acréscimo. Na definição de Pino & Zular (2007, p. 139-141), trata-se de “uma construção [...] inserida dentro de uma linha [...] sem que nenhuma outra tenha sido descartada”. É o que se pode identificar quando comparada àquela publicação de Pessoa com as três estrofes, publicadas no dia 24, em que a mesma é uma continuação da anterior. No primeiro texto/imagem da obra, verifica-se intenso movimento de reescrita, a existência de várias versões nas quais é possível se constatar acréscimos, eliminações, redução no tamanho da fonte, acréscimo de numeração para identificar a produção e mudança na cor da fonte do nome de alguns autores, considerando para estes movimentos, também, a definição dos mesmos autores citados anteriormente e adaptando-a para o ambiente virtual, eliminação de um texto sem substituição, uma vez que, em se tratando de ambiente virtual, não é possível considerar que uma elaboração seja riscada, podemos acompanhar as trocas, mas esse documento digital não tem uma ferramenta que permita evidenciar a “substituição”, o trecho ou palavra alterada é literalmente “eliminada”. As possíveis rasuras não se evidenciam no mesmo documento, mas na comparação das diferentes postagens ou comentários. O texto não é rasurado, é eliminado em uma nova versão. Algumas hipóteses parecem justificar tais rasuras: para mudar a cor da fonte do nome de autores, fato registrado em uma publicação, seria necessário destacá-los da cor da fonte dos textos, dando a eles maior visibilidade. Uma hipótese para explicar isso é uma possível reação de leitores/autores, o que pode ser demonstrado em comentário emitido por Assunção (2015) na publicação datada de 28/03/15: “Oportuna foi a correção da tinta das assinaturas dos autores no mural. A segunda página que está por ser completada deve também ser corrigida de preto para o branco”. Para texto e nome de autores, Pessoa usava a fonte em cor branca. Cada estrofe traz o nome de seu autor. Em uma publicação anterior a reação do leitor/autor, o

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nome do autor aparece na cor preta. Esse fato reforça a hipótese levantada quanto à influência que a rede social provoca na gênese da criação de cordelistas. Influência esta causada em função do processo de escrita está ocorrendo na rede social, um processo participativo que caminha em direção a uma obra colaborativa. O mesmo comentário comprova, também, a hipótese de que os leitores consideravam o texto 01 concluído após a publicação da última versão. A numeração deste, nos cantos superiores, direito e esquerdo com o número 01 reforça a hipótese de obra concluída e expectativa quanto ao texto seguinte. Em nova publicação, Pessoa apresenta a postagem numerada de 01 com apenas seis estrofes. Para a redução da quantidade de estrofes do texto publicado, de 12 para 6, a hipótese é a busca de melhoria da qualidade da publicação que o organizador considerou finalizada e entregue ao público. A diminuição na quantidade de estrofes por imagem influenciou diretamente no espaço destinado ao texto e por consequência permitiu o uso de uma fonte maior nas estrofes. Os posts com doze estrofes apresentavam baixa qualidade de visualização. Uma hipótese sobre o definitivo posicionamento de cada estrofe na publicação final do trabalho só seria possível acessando-se todo o material que o organizador utilizou na produção do trabalho que se deu em ambiente virtual e em seu laboratório de produção. Com mencionou-se anteriormente o organizador recebia material via comentários em seus posts e caixa in-box, material este, disponível para consulta, mas não cedido pelo organizador para análise. Entretanto, merecem destaque algumas observações feitas sobre o material coletado. A primeira delas refere-se ao texto 01 que, após várias versões, antes do texto final118, deixa de fora oito estrofes. O material a que se teve acesso não permite explicar ou que se construa alguma hipótese sobre tais rasuras. Sabe-se que as três estrofes presentes na primeira versão constam na versão final do texto 01. A estrofe de Medeiros, que deu origem à obra organizada por Pessoa, a de Beradeiro e Assunção, esteve presente desde a segunda versão. Gomes e Lyra tiveram suas estrofes inseridas pela primeira vez na versão final. Na versão virtual da obra em análise participavam tanto cordelistas como simples leitores, pessoas que nunca haviam publicado um cordel. Para o texto 02, o organizador apresentou apenas uma publicação antes da versão final, composta por 12 estrofes dentre as quais apenas uma consta na versão final; houve, nesse caso, eliminações e acréscimos. Para os outros nove posts publicados na “versão Facebook” da obra, em 04 de abril de 2015, não houveram publicações em posts como

118 Compreende-se por versão final para efeitos deste trabalho a publicação realizada pelo organizador em 04 de abril de 2015. Fato este que marca a entrega ao público, da versão aqui definida “versão Facebook” da obra estudada. O termo versão Facebook justifica-se porque em outro momento a obra será publicada em uma “versão impressa”.

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ocorreu com os dois primeiros. Destacamos aqui, que mesmo com a ausência de postagens, o processo todo se deu no ambiente virtual, pois os comentários particulares (inbox) foram considerados para a versão apresentada, mas esse processo expõe a incompletude do processo criativo e a falibilidade de qualquer análise. Como destacam Cirillo e Grando (2009), por mais completo que seja um dossiê, ele é apenas uma marca inicial do processo da mente criadora em ato, nunca acessível em sua totalidade; os documentos de processos são índices da mente criadora em ato, da qual nem mesmo o autor tem acesso à totalidade dos processos e procedimentos que conduziram as escolhas. No final de agosto de 2015, Pessoa fez o lançamento da versão impressa da obra Somos nordeste (2015), apresentando alguns pontos relevantes que merecem destaque para complementar a análise feita em suporte digital. Um dos pontos que se destacam na versão impressa é a existência de capa, requisito para publicações do livreto impresso. Nessa versão, também, encontram-se rasuras, observando os conceitos anteriormente definidos. O título da versão Facebook, Somos nordeste (2015), é substituído por Sou da terra nordestina (2015), aparentemente uma clara alusão a um pertencimento geográfico inclusivo, que admite um pertencimento a uma geografia ampla e mediada: já no primeiro verso da estrofe que inicia a obra, uma hipótese que justifica a escolha do organizador por mudar o título na versão impressa é o fato do novo título encontrar-se presente em aproximadamente 60% das estrofes que compõem o texto, e, quanto à versão impressa, acredita-se que tenha funcionado como uma espécie de refrão impulsionador para os autores. O termo Somos nordeste, título da versão Facebook, justifica-se possivelmente por acréscimo ao título que nominava o projeto de obra autoral do organizador de Sou nordestino (figura 2). Outra hipótese para o título é o fato de ele estar presente no texto publicado por Medeiros, na expressão “orgulho de ser nordestino” (MEDEIROS, 2015), presente na linguagem não verbal da publicação. Não temos índices de que o termo no plural seja decorrente de uma assimilação por parte do cordelista do processo multiautoral utilizado; destacamos que o processo nos parece colaborativo, mas como uma prática autoral de diluir o próprio conceito de autoria. Nos aprece premeditado e precipitado afirmar que o título no plural seja uma evidência material da incorporação dessa colaboratividade pelo autor – tal afirmativa necessita de um trabalho investigativo de maior envergadura em outros processos semelhantes do autor para verificar o impacto disto no seu projeto poético como um todo. Outras rasuras referem-se ao acréscimo de onze estrofes, eliminações e substituições. A versão impressa divide-se em sextilhas e septilha. Também foi registrada nesta versão a eliminação da linguagem não verbal do corpo do texto, ficando presente apenas na capa, tipo

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de texto recorrente em toda a versão do Facebook. A utilização da linguagem não verbal na produção dos cordelistas contribui para atrair leitores para as produções.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Por vários dias observaram-se e seguiram-se vários cordelistas no ambiente virtual da rede social Facebook, objetivando evidenciar se eles produziam seus textos diretamente no mural de seus perfis e, a partir de tais publicações, identificar e qualificar alguns movimentos de escritura por fim optou-se por analisar a construção organizada pelo cordelista Pessoa. Pode-se considerar que se encontrou o que se procurava, pois esses leitores/autores: cordelistas e não cordelistas, participantes da obra em análise, produziram diretamente no mural da rede social, ou, pelo menos, grande parte de sua escritura se deu em ato na rede, ainda que isso seja um método aparentemente utilizado por poucos cordelistas; mas destaca-se que essa aproximação pode abrir uma nova modalidade de cordel, atualizando esse traço cultural da produção literária nordestina. Verificou-se que muitos deles escreveram num editor de textos para somente depois publicar; outros escreveram diretamente no mural da rede social, porém, nesses casos, pouco pôde se verificar do movimento de reescrita. A busca por cordelistas que produzissem diretamente na plataforma virtual proporcionou acompanhar a construção da obra Somos nordeste (2015). Uma coletânea organizada por Gélson Pessoa com a participação de sessenta e cinco poetas populares, cada um contribuindo com uma estrofe. Uma obra construída nas páginas da rede social com publicações diárias, que tinham por função motivar os cordelistas que produziam suas estrofes, uns diretamente na página, utilizando-se da ferramenta comentário, outros via mensagens, caixa in-box, enviadas diretamente para o organizador. O organizador utilizava-se de ferramentas da rede social para instigar colegas a participarem da produção; diariamente eram feitas publicações de versões dos textos no perfil dos convidados. Tais publicações eram correspondidas por meio de curtidas, compartilhamentos e comentários. Este último era ferramenta bastante utilizada para a publicação de estrofes que iriam compor a obra. O organizador publicou versões apenas dos dois primeiros posts dos onze publicados na versão Facebook. A hipótese que justifica tal atitude seria o fato de o organizador já dispor de material suficiente para concluir seu projeto. No dia 27 de março de 2015, foi publicada a

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versão I do post 02, data em que o organizador, possivelmente, já possuía as estrofes dos 50 poetas, objetivo inicial do projeto. A pesquisa revelou que a produção no ambiente virtual, via mural da rede social Facebook, provocou uma diminuição no tamanho da obra do cordelista. A hipótese para isso é a própria dinâmica da rede social, um leitor exigente que gosta de imagens e textos curtos. O que antes poderia chegar a um livreto com até 64 páginas, resumiu-se, em alguns casos, a uma estrofe de quatro ou mais versos. O cordelista, mesmo sendo hábil na escrita de improviso, nem sempre produz diretamente no ambiente da plataforma virtual. Portanto, conclui-se que, o projeto colaborativo pensado para essa obra, da forma como foi pensado, somente poderia ocorrer em uma rede social, com a dinâmica das tecnologias digitais, nos moldes como se encontram hoje. Não nos parece que seria possível a construção da obra Somos nordeste (2015), como apresentada, em outros tempos ou em outros processos. Esta obra é, certamente, o esboço de uma nova possibilidade de atualização da literatura de cordel em tempos de rede. Somente o tempo afirmará isto.

REFERÊNCIAS

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A ORGANIZAÇÃO DO MATERIAL FOTOGRÁFICO DE OTTO STUPAKOFF: O OLHAR DO FOTÓGRAFO SOBRE A SUA PRODUÇÃO

Patricia Kiss Spineli119 Edson do Prado Pfützenreuter 120

Otto Stupakoff (1935-2009), natural de São Paulo, foi um fotógrafo brasileiro que produziu trabalhos comissionados e autorais. Consolidou sua carreira através das artes aplicadas, fotografando para editorais de moda, capas de discos e publicidade. Teve maior projeção profissional, tanto nacionalmente quanto internacionalmente, na fotografia de moda. O resgate da obra de Stupakoff está sendo realizado pelo Instituto Moreira Salles, que adquiriu o acervo da obra do fotógrafo referente ao período de 1955-2005. Stupakoff buscou condições para a realização de um trabalho autoral, mantendo intercâmbio artístico com a comunidade de artistas plásticos de São Paulo, entre eles Wesley Duke Lee. Em seus ensaios de moda e retrato, Stupakoff frequentemente fazia referências a grandes pintores como Balthus, evidente citação de referência artística (FERNANDES JÚNIOR, 2010). Stupakoff teve produções incorporadas em museus como MOMA, MASP e MAM e exposições coletivas e individuais, internacional e nacionalmente, nas décadas de 1960, 1970 e 2000. Dentre os destaques das exposições há: The Best of Harper's Bazaar, Doubleday Gallery, Nova Iorque (1970); São Paulo Fashion Week, Pavilhão da Fundação Bienal (2005), Otto Stupakoff: fotografias, Instituto Moreira Salles (IMS), Rio de Janeiro e São Paulo (2009) e Beleza e inquietude, Instituto Moreira Salles, Rio de Janeiro (2016). Na cronologia profissional de Stupakoff consta que estudou no Art Center College of Design (antigo Art Center School) na década de 1950 (1953-1955) em Los Angeles, Califórnia e iniciou sua carreira fotográfica no Rio de Janeiro em 1956 em agências publicitárias e no estúdio de gravação Odeon. Em 1958, na cidade de São Paulo, inicia sua atuação em fotografia de moda e também fotografa para a revista Cláudia (editora Abril). Dentre as revistas de renome para as quais fotografou, destacam-se: (1) Brasil: Manchete, Cláudia, Vogue Brasil; (2) França: Vogue, Elle, Stern, Marie Claire (3) Estados Unidos da América: Harper’s Bazaar, Look Magazine, Glamour, Life e Esquire. Foi responsável pela primeira capa da edição da Revista Vogue Brasil no anos de 1970 (Figura 1).

119 Doutoranda na PPG Artes Visuais da Unicamp. 120 Professor Doutor nas Artes Visuais da Unicamp. 318

Figura 1 – modelo Betsy Monteiro de Carvalho

Fonte: Vogue Brasil, anos 1970, Otto Stupakoff.

Entre 1957 e 1965, estabeleceu estúdio em São Paulo e, em meados da década de 1960, mudou-se para Nova York, onde iniciou sua carreira internacional. Em 1972, mudou-se para Paris, retornando para o Brasil no final de 1976. Em dezembro de 1980, mudou-se para Nova York, onde permaneceu até meados dos anos 2000. Em 2005 retornou definitivamente ao seu país de origem. Há fortes indícios de que Stupakoff foi o pioneiro da fotografia de moda no Brasil. O fotógrafo declarava que jamais havia visto uma foto de moda publicada no país e que ele realizou essa primeira imagem com a modelo Duda Cavalcanti trajando um vestido do estilista Dener na casa de Heitor dos Prazeres em 1955 (ALLEONE, 2012). Na Rodhia, década de 1960, iniciaram os editoriais de moda: “O mercado de trabalho de foto de moda não existia, foi formado nessa época por Licínio, Lívio Rangan e eu” (STUPAKOFF apud MENDES; ARRUDA, 2001, p.10). Segundo Stupakoff, o período que passou em Nova York, na década de 1960, especialmente na Harper’s Bazaar, foi significativo para o desenvolvimento do seu estilo pessoal. Cultivou um estilo próprio, chamado por ele de “brasileiro”, que sempre ressaltava a espontaneidade e sensualidade de seus modelos.

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Sou fotógrafo de moda que tem ojeriza a fotos posadas. Sempre tentei que as modelos fossem o mais descontraídas possível, que fossem atrizes, que pudessem viver a situação com a qual elas se deparariam na locação (STUPAKOFF apud CHICO, 2009, p. 50).

Os fotógrafos Bob Wolfenson e Fernando Laszlo apontam no trabalho de Otto Stupakoff a primazia pela sensibilidade, delicadeza, graça e imenso humanismo de seu olhar (FERNANDES JUNIOR, 2006). Stupakoff também dizia que procurava registrar a fotografia de moda como uma foto familiar (FERNANDES JUNIOR, 2006). Para entender a originalidade de Otto Stupakoff, Entler (2012) propõe que sejam vistas também as produções além da moda: viagem, familiares, retratos de amigos. Em alguns depoimentos, é possível verificar que sua visão de fotografia era algo mais amplo. Para ele, era de vital importância para um fotógrafo manter o foco não só na fotografia, mas também buscar referências na literatura, pintura, no desenho e na música. Para Stupakoff, a fotografia de moda era a única que propiciava ao fotógrafo a oportunidade de se expressar tanto quanto uma ilustração, um trabalho editorial, uma reportagem. Nessas produções, o fotógrafo costumava se abster dos estereótipos que depois de alguns anos passaram a reger a fotografia de moda. Divulgava também que seu maior interesse era o ser humano e defendia que o profissional fotografa com a mente e o coração, não com a câmera, que seria incapaz de ver. O estudo da obra de Otto Stupakoff se justifica pela contribuição que o mesmo fez à cultura visual brasileira. Em sua produção, há trabalhos autorais e séries de retratos, nus, fotografia de rua, viagens e abstratas menos conhecidas. Pela trajetória de Stupakoff percebe- se a consolidação de um fotografo versátil.

O MATERIAL FOTOGRÁFICO COMO OBJETO DE ESTUDO

Na fotografia, o processo de criação pode ser estudado pelo referencial teórico da crítica de processo, cuja proposta metodológica traz aporte para discussão sobre o ato criador, o acompanhamento de percursos criativos e a análise de documentos de processo na arte e nas ciências (SALLES, 2007, 2008a, 2008b). A crítica de processo está apta a investigar processos de criação em diferentes linguagens e aborda signos pertencentes aos mais diferentes sistemas semióticos: desenhos, esculturas, escritos, entre outros que podem apresentar-se agrupados ou avulsos.

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O signo fotográfico pertence a um conjunto de significações e tradições que o definem como tal e pertence a um sistema semiótico que envolve convenções. O conhecimento das convenções que estruturam a linguagem fotográfica torna possível sua apreensão e compreensão como fenômeno. Nos procedimentos investigativos da crítica de processo são identificados fundamentos que permitam a compreensão de signos visuais a partir de sua gênese, para “(...) desvelar o conjunto de significações que permite ver a obra sobre uma nova abordagem: a do processo e não do produto” (CIRILLO, 2010, p. 6). Dessa forma, pode-se recorrer à crítica de processo juntamente com a semiótica peirceana para desvendar esse processo criativo. No estudo da morfologia da criação, as singularidades, buscando generalizações sobre o processo de criação, são instrumentos que favorecem a ampliação das possibilidades de discussão sobre o processo criativo. O estudo do material produzido por determinado fotógrafo poderá trazer indícios sobre sua trajetória criativa. Dentre esses materiais estão os negativos, as folhas de contato121 e as cópias fotográficas. Além disso, alguns fotógrafos usam anotações visuais e verbais à parte ou no próprio material fotográfico. Um dos tipos de materiais mais importantes para a compreensão da criação na fotografia são as folhas de contato. Através delas pode-se estudar o processo de escolha do material enviado para publicação. No estudo da escolha de determinada fotografia em detrimento de outras, busca-se discutir a potencialidade da ação de escolha. Isso significa que cada versão (no caso de sequências fotográficas, cada um dos fotogramas) contém um potencial e um objeto acabado, finalizado (no caso, a imagem escolhida) e que representa, de certa forma, um momento específico do processo que é entregue ao público. Para Bob Wolfenson (INSTITUTO MOREIRA SALLES, 2009), quando uma imagem é selecionada para publicação em livros ou revistas, pode tornar-se consagrada e relegar ao esquecimento as demais que compunham a sequência original. Existem muitos tipos de inscrições, textos e símbolos, que podem ser feitos em uma folha de contato, os quais podem ser indicações e anotações para o próprio fotógrafo ou para outrem como laboratorista, editor, curador. Percebe-se alguns símbolos comuns que permeiam os copiões de diferentes fotógrafos: setas; marcações retangulares em vermelho, amarelo, azul ou branco (as mais comuns) sobre a miniatura; círculos; estrelas; marcações com X; indicações de alterações (cortes, desfocagens, clareamentos, escurecimentos).

121 A folha de contato, também conhecida como copião fotográfico, são imagens positivadas do filme negativo. Funciona como ferramenta de edição, índice para arquivos de negativos e também para oferecer ao fotógrafo a primeira visão daquilo capturado no filme.

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Com base nessas marcações, juntamente com outros materiais de apoio (textos, referências fotográficas, entrevistas) é possível construir hipóteses sobre o processo criativo do fotógrafo e suas indicações de edição fotográfica.

ORGANIZAÇÃO DO MATERIAL FOTOGRÁFICO DE OTTO

Os materiais fotográficos que Stupakoff transmitiu ao Instituto Moreira Salles consta de 16.000 negativos, algumas folhas de contato e impressões. Sérgio Burgi, coordenador de fotografia do Instituto Moreira Salles, diz ser surpreendente um fotógrafo da importância de Stupakoff apresentar um material fotográfico relativamente pequeno, algo que cabia em uma maleta (BURGI, 2014122). Uma das hipóteses é que por ser, na maioria das vezes, trabalhos comissionados, uma parte do material produzido pelo fotógrafo tenha ficado nas editoras. A passagem do seu material fotográfico ao IMS foi negociada e realizada pelo próprio Otto Stupakoff e foi o mesmo também quem organizou seu material para repassar à instituição. Segundo Virginia Albertini, coordenadora-assistente do acervo fotográfico do Instituto Moreira Sales (ALBERTINI, 2014123), não é comum de se ver nas doações essa organização prévia realizada por Stupakoff. Em sua organização pessoal, Stupakoff fez a seguinte ordenação: alguns negativos foram divididos em duas caixas pretas e em ambas as caixas o conteúdo é de negativos acondicionados em porta-negativos (print file)124. Outros negativos estão em caixas numeradas onde constam envelopes pardos que acondicionam esse material. Há ainda uma caixa à parte somente com material do trabalho que Stupakoff fez no Camboja. Esse projeto fotográfico consistiu no registro da população e da situação do país assumidos pelos rebeldes do Khmer Vermelho. Na Caixa 1, que diz respeito à primeira seleção de Stupakoff, o fotógrafo escreve: “Minha seleção negativos 1955-2005; Total negativos escolhidos como os mais importantes para serem scaneados em alta (1 cópia para o fotografo) e, os originais preservados: 148 35mm. Minha seleção negativos 1955-2005”. Nessa caixa, os print files estão soltos em determinada sequência (que não fica clara se é aleatória ou sequência de importância pelo fotógrafo). Os negativos em 35 mm fazem parte de sequências fotográficas de determinados

122 BURGI, Sérgio. Fonte oral. Depoimento concedido a Patricia Kiss Spineli em 2 de junho de 2014. 123 ALBERTINI, Virginia. Fonte oral. Depoimento concedido a Patricia Kiss Spineli em 1 de junho de 2014. 124 Print file é o material no qual são armazenadas as tiras do filme fotográfico revelado.

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trabalhos comerciais ou fotografias pessoais ou autorais. Observa-se que, nessa seleção, as sequências não estão completas, i.e, uma parte da série estaria nessa primeira seleção e outra parte da série estaria em outra caixa. Normalmente, no print file o fotógrafo indica o título do trabalho. Exemplo: “Bazaar: Leslie Bogart” e é comum observar a marcação em “X” em vermelho no próprio print file (em papel manteiga), talvez, os fotogramas escolhidos por ele (figura 2).

Figura 2 – Leslie Bogart, 1967. Otto Stupakoff

Fonte: Instituto Moreira Salles

Como parte do material entregue ao Instituto Moreira Salles, há uma relação de folhas de contato numeradas e grafadas como OS 127; OS 315, por exemplo. Sendo OS de Otto Stupakoff e o número dado àquele copião.

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Podemos verificar pela figura 3, abaixo, que OS 127 diz respeito ao ensaio Pietro Maria Bardi realizado em 1978. Na sequência da esquerda para direita os fotogramas digitalizados pelo IMS receberam as seguintes numerações: 031OS_127_3; 031OS_127_17; 031OS_127_20. Por essa nomenclatura, fica evidente para o pesquisador que estiver acessando o arquivo de Stupakoff a que folha de contato física se refere a numeração (127) e qual é o fotograma da sequência (nesse exemplo, fotogramas 3; 17 e 20). Para ter acesso às anotações específicas de Stupakoff, o pesquisador precisa recorrer ao copião impresso. No ensaio realizado com Bardi, somente pelo copião impresso foi possível verificar que há uma marcação em retângulo vermelho no fotograma 3, possível escolha de fotograma.

Figura 3 – Pietro Maria Bardi, 1978. Otto Stupakoff

Fonte: Instituto Moreira Salles

A OS 315, que também faz parte da caixa 1, diz respeito ao Teatro em Ho Chi Minh, antiga Saigon no Vietnã. Nessa sequência, há 36 fotogramas com as escolhas indicadas nas imagens 16; 18 e 19 (figura 4). Da esquerda para direita: 031OS_315_16; 031OS_315_18 e 031OS_315_19.

Figura 4 – Teatro em Ho Chi Minh, 1967. Otto Stupakoff

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Fonte: Instituto Moreira Salles

Na Caixa 2, segunda escolha de Stupakoff, há a titulação: “Negativos de Otto Stupakoff (1955-2005). Segunda escolha porém, de qualidade de conteúdo. Não existe mais uma terceira escolha”. Há poucas indicações de seleção na Caixa 2. Somente em alguns print files há a marcação em X com caneta indicando a escolha do fotograma. A maioria dos fotogramas estão em 35mm, outros são em 6X6, como a série de Tom Jobim (1956-1957, indicação de data do próprio fotógrafo). Em alguns print files há anotação em caneta ao lado do título indicando uma possível escolha do fotógrafo (figura 5). Exemplo: “Rene D’Harnoncourt (MOMA) ≠29 e 18?” (esse último circulado). A hipótese é de que o fotógrafo selecionou os fotogramas 29 e 18 e tendeu a escolher o 18.

Figura 5 – René d´Harnoncourt, diretor do MoMA, New York, 1977. Otto Stupakoff

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Fonte: Instituto Moreira Salles

As caixas contendo os envelopes pardos receberam as seguintes numerações: Caixa 10/17, 11/17 e 12/17. Sendo que a Caixa 10 guarda envelopes de 3 à 50; a Caixa 11, envelopes de 51 à 80; e a Caixa 12, envelopes de 81 à 136. A numeração das caixas descritas acima foram realizadas pelo Instituto Moreira Salles, mas a divisão dos negativos nos envelopes foi organizada por Stupakoff. Nesses envelopes pardos há negativos de temas e motivos diversos: família, Vogue Brasil, São Paulo 1960, por exemplo. Em alguns envelopes, há somente o título do conteúdo datilografado à máquina datilográfica. O título indica o conteúdo do envelope como nos exemplos: “Pauline – [datilografado]. Vizinha – 3036 Day Are (?) Coconut Grove, FL. Rosto marcante, na piscina e em pé no APTO. Vendedoras jóias importadas” [anotado em caneta preta]125. Em alguns envelopes há algumas anotações com certas particularidades, por exemplo: “Diversas – Todas boas” (Para ampliar e transformar (sépia) em Biombo de 3 partes)”. “Angels 4 X 5”. Apesar da indicação de 4X5, nesse envelope há também negativos de outro formato, indicando que Stupakoff pode ter sintetizado a informação em um título que nem sempre corresponde ao conteúdo integral dos envelopes. A caixa 7 contém slides e molduras. São diapositivos126 de diversos trabalhos em cor. Há cromos com algumas reproduções de páginas de revistas e são imagens que não estão em sequência, i.e, cromos isolados deslocados de sua sequência do mesmo trabalho fotográfico. Há também os negativos referentes à chapa de grande formato, 4X5 polegadas. Esses são tratados na nomenclatura como negativos flexíveis, são chapas individualizadas, próprias

125 As observações entre colchetes são dos autores desse trabalho. 126 Diapositivos, também conhecidos como cromos, são filmes positivos.

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do grande formato, portanto, não há uma sequência de fotograma e sim a ampliação da própria chapa. O material do Camboja está em uma caixa à parte e apresenta tanto os negativos quanto as folhas de contato. Nos print files do Camboja, Stupakoff faz algumas indicações no próprio porta-negativo e escreve o resumo do lugar como: “Câmara de tortura Prisão de Tuol – Sleng, Bairro de Pnom-Pehn numa antiga escola. 16.000 foram mortos aqui”. Acompanha o material uma pasta em L, onde é possível ler:

Cambodia Pnom-pehn Siem-peap Bottambang Transporte no pais, cortesia do “Cambodia Trust” com base em Oxford, Inglaterra. Fotos (e 20 pinturas digitalizadas) foram postas a leilão na “Academia de Ciências” de N.Y em leilão organizado pela “Christie’s. Fora poucas anotações que fiz em um mês, o texto deve ser re-escrito. “Anima Mundi” veio a ser um título utilizado demais. “Morte e ressurreição” como tema me parece mais apropriado. (...) Acho que fotos mais antigas, com a retícula do jornal ampliada também devem contar o genocídio que não presenciei. Livro deve ser vendido com o livro. Os negativos estão perdidos. Necessário scan (????)”127.

Há também diversas anotações do fotógrafo, principalmente nas folhas de contato, indicando tanto as imagens selecionadas, quanto orientações ao laboratorista referentes aos procedimentos para as ampliações das imagens. A título de exemplo, descrevemos as anotações em três folhas de contato: uma delas apresenta a seguinte inscrição em branco “Fábrica de pernas”, e a seleção no fotograma 3 indicada pelo símbolo de uma seta branca. Em outro contato lê-se: “Prisão tortura Tuol Sleng” com seleção do fotograma 11 e a indicação verbal “will crop tone is good 16X20” rasurada, ainda nessa folha há indicação da seleção do fotograma 12 através do uso do símbolo de uma seta branca. Em um terceiro copião deste material, a seleção indica o fotograma 8, em que há um apontamento para uma pequena área da imagem propondo “Burn in” 16X20”, que, nos termos usuais da comunicação utilizada no laboratório fotográfico, significa escurecer uma parte da imagem que ficou superexposta. Com essas indicações, percebe-se que Stupakoff utiliza de símbolos como: setas, seleção retangular no fotograma e expressões verbais para comunicar suas intenções em relação aquelas imagens. Como dito anteriormente, na divisão entre Caixa 1 e Caixa 2, as sequências não estão necessariamente juntas. Os fotogramas de uma mesma série podem estar em parte na Caixa 1 e em parte na Caixa 2, por exemplo. Esse desmembramento realizado pelo próprio Stupakoff

127 A interrogação em parênteses é do IMS, pois não foi possível decifrar a grafia do fotógrafo.

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indica-nos que ele não considerava a sequência toda como uma primeira escolha. Dentro de determinada série de fotogramas, alguns seriam mais significativos que outros. Entretanto, para o pesquisador que desejar ter ideia do conjunto, é necessário ordenar a sequência pela numeração atribuída ao copião. Atualmente, as sequências fotográficas em 35mm e médio formato, os diapositivos, os negativos em grande formato, cópias fotográficas e algumas fotografias individualizadas estão digitalizados e disponíveis para consulta via sistema Cúmulus do IMS. Para o desenvolvimento do presente trabalho, a consulta a esse material foi realizada via material digitalizado recorrendo-se ao material físico em alguns momentos. No caso de material fotográfico, o Instituto Moreira Salles promove a digitalização do acervo e, com isso, permite a visualização geral do conteúdo. Como critério para a digitalização, são mantidos todos os fotogramas que fazem parte de uma série. A tendência do instituto, segundo Albertini (ALBERTINI, 2014128), é considerar todos os fotogramas que apresentam imagem mínima, mesmo que tenha apenas uma indicação, um resquício de imagem. O Instituto Moreira Salles tem a função de acondicionar, catalogar e preparar para a pesquisa todo material de determinado autor. Na salvaguarda desse material, fica condicionado a decisão de como será catalogado e refinado para consulta do pesquisador externo. No caso de Otto Stupakoff, a decisão recaiu em obedecer uma lógica de catalogação do próprio instituto ou manter a ordem que o autor propôs. Na primeira visita em 2014 ao Instituto Moreira Salles para visualizar o arquivo de Otto Stupakoff, presenciamos a manutenção e organização mais “pura” do material, i.e, muito próximo de como o fotógrafo havia entregado ao instituto e pouco trabalhado ou modificado pela instituição mantenedora. Nesse primeiro momento, havia a tendência de se manter os conjuntos na maneira como o fotógrafo os teria organizado e catalogado. Posteriormente, já em 2017, com o acervo digitalizado, constatamos a manutenção de uma organização que contempla as particularidades e o cuidado que Stupakoff teve para preparar seus arquivos. Isso evidencia ao pesquisador a ordenação do próprio Stupakoff, que é significativa para entender o olhar do fotógrafo frente a sua obra.

128 ALBERTINI, Virginia. Fonte oral. Depoimento concedido a Patricia Kiss Spineli em 1 de junho de 2014.

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CONSIDERAÇÕES FINAIS

Os rastros de criação deixados pelo fotógrafo são compostos de negativos, cópias, folhas de contato, entre outros. Por meio desses materiais, é possível estabelecer um confronto entre o que foi produzido e o que foi publicado. O fotógrafo, como agente ativo no processo de edição, manutenção e organização do seu material fotográfico, pode elucidar muito sobre seu processo de criação. Há situações em que muitos autores não se preocupam com a ordenação do seu material, delegando essa tarefa a um agente direto. Esse organizador de coleções teria então a liberdade e função de proporcionar a leitura daquele material. Outros, no caso de Stupakoff, realizam essa organização juntamente com seus agentes e, com isso, deixam implícito a importância que dá à sua produção. Desse modo, permite ao pesquisador entrar nesse universo e perceber a significância de cada obra na vida do autor. Esse é mais um indício da criação que pode ser analisado durante a pesquisa. Alguns fotógrafos armazenam e organizam seu material de forma peculiar. Na organização do material fotográfico de Otto Stupakoff, é possível verificar a propensão em situar esse material de forma a mostrar suas preferências por alguns ensaios fotográficos e, também, entregar sua obra ao IMS ordenadamente. Isso fica evidente quando Stupakoff separa o material considerado mais significativo em duas caixas intituladas de primeira e segunda escolhas. Para o pesquisador de processo de criação em fotografia, ter acesso à sequência de imagens registradas em um ensaio fotográfico, assim como às anotações do próprio fotógrafo, seja nos copiões ou nos print files, é de importância ímpar na compreensão do trabalho desse autor. As folhas de contato, com as marcações e indicações do fotógrafo, permitem o levantamento de argumentos que indicam o processo de trabalho de Stupakoff no sentido de analisar e editar o próprio material. Aponta-se para um futuro estudo mais aprofundado o material da Caixa 1 e do Camboja. Para o que foi intitulado Caixa 1 está a seleção pessoal de Stupakoff e, por meio desse material, é possível comparar, através do que o próprio fotógrafo selecionou como o material mais significante em sua carreira, as potencialidades do que não foi publicado e confrontar o que disso foi exposto ao público. Já o material do Camboja apresenta um olhar pessoal de Stupakoff sobre uma determinada situação, sem o apelo da produção de moda. Além disso, contém folhas de contato, negativos e anotações de Stupakoff que são de grande

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valia para investigação a que se propõe o desenvolvimento da pesquisa sobre o trabalho do fotógrafo em questão.

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DA COSTA E SILVA: CARTA/POEMA À AMADA

Raimunda Celestina Mendes da Silva129 Marcos Antonio de Moraes130

A escrita de si revela importantes aspectos da vida e da obra de um autor. Eurídice Figueiredo (2013, p. 22) assevera que a correspondência como expressão (auto)biográfica é particularmente importante para se conhecer as opiniões, os vínculos afetivos ou de amizade que os escritores mantêm com a família e os colegas. Como afirma Perrone-Moisés (2000, p. 178), “os poetas em suas cartas íntimas, põem o seu coração mais a nu do que em seus poemas”. A carta, além de espaço autobiográfico e testemunhal, propicia a criação poética, pois o escritor nem sempre se distancia do viés literário. Aguiar afirma que,

é como se o discurso literário já fosse algo intrínseco, e por isso mesmo, além de os autores descreverem o dia a dia e as dificuldades de se construir uma obra, também produzem um conteúdo com recursos próprios da literatura (AGUIAR, 2012, p. 15).

Ou seja, nas correspondências, os escritores contam de si e dada a afinidade que mantêm com seus receptores, sentem-se tão “à vontade” que “burilam” a linguagem, fator que aproxima o gênero epistolar do texto ficcional. Essas marcas são perceptíveis nas cartas do poeta Antônio Francisco da Costa e Silva expostas no museu Odilon Nunes na cidade de Amarante no Piauí. Uma delas, a que ora analisar-se-á, foi escrita em 22 de janeiro de 1913, destinada à sua noiva Alice de Salles Salomon. Antônio Francisco da Costa e Silva nasceu em 23 de novembro de 1885, em Amarante, no Piauí, na Rua das Flores; filho de Rodolfo Hermógenes da Costa e Silva e Veneranda Angélica Santana de Oliveira e Silva. Iniciou seus estudos na cidade onde nasceu, recebeu dos pais uma educação severa que lhe tolhia as traquinagens próprias dos meninos de sua geração. Em 1900, foi estudar em Teresina, capital do Estado, e ainda muito jovem foi para Recife, matriculando-se na faculdade de Direito, levando na bagagem alguns dos poemas que compuseram seu livro de estreia.

129 Professora Doutora na Universidade Estadual do Piauí. 130 Professor Doutor na Universidade de São Paulo. 332

Seus primeiros versos, porém, foram publicados na Revista do Grêmio Literário Amarantino. Em 1908, publicou Sangue, com predomínio do estilo simbolista. Privilegiando a temática amorosa, abordou também amor materno, a terra natal, o rio Parnaíba, a tristeza e a saudade. Luís Romero, professor e crítico, afirma em relação à obra: "É uma poesia [...] cujos símbolos: terra, água, ar, sol, luz, céu evocam uma confissão dolorosa de separação das origens" (LIMA, 2003, p. 76). Em 1920, o poeta interrompeu o curso de Direito, indo a Belo Horizonte assumir o cargo de escriturário da Delegacia do Tesouro Nacional. Lá conheceu Alice de Salles Salomon, de quem se enamora e com quem casara em 24 de junho de 1914. Na sua trajetória profissional, em 1912, foi removido para a Delegacia do Tesouro Nacional em São Paulo. Em 1913 adoeceu, pediu licença médica, foi para o Rio e depois para Recife, reingressando na Faculdade e lá termina o curso de Direito. Em setembro do mesmo ano, voltou para a Delegacia do Tesouro em Minas Gerais. Mais uma vez fora transferido para o Rio de Janeiro, em 1917, onde lança Zodíaco, seu segundo livro, considerado sua obra-prima, predominando como temática a natureza e a terra natal, além de elaborar poemas que revelam preocupação com a destruição da natureza, como se percebe em “A Queimada” e em “A Derrubada”. Mesclam-se na obra a técnica apurada parnasiana e o verso livre. Pandora, seu terceiro livro, foi lançado em 1919, mesmo ano em que voltou para Belo Horizonte para assumir mais uma vez a Delegacia do Tesouro Nacional. É a obra do poeta mais voltada ao Parnasianismo, com forte presença dos elementos da cultura greco-romana e um apurado rigor de composição. Com Alice, o poeta tivera três filhos: Márcio, Mário e Benedito; o nascimento deste último provocou algumas complicações pós-parto que ocasionaram o falecimento da mãe; acontecimento que lhe inspirou a obra Verônica, publicada em 1927. Livro elegíaco, calcado na dor, que reflete a solidão, a tristeza, o amor e o sentimento de perda. Da Costa e Silva ainda foi nomeado delegado para São Luís, Porto Alegre, São Paulo, Manaus, Acre. Em 1928, contraiu segundas núpcias com Creusa Fontenelle de Vasconcelos de cuja união nasceram os filhos Alice, Alberto e Elisabeth. Alhambra (1925-1933) era a obra trabalhada por Da Costa e Silva quando faleceu, ficando incompleta. O amor é a temática mais pungente, sendo também evidenciados o olhar lírico sobre a família, a religiosidade e as recordações da paisagem natal, destacando-se os poemas: "Carta a Minha Mãe" e "Oração Silenciosa"; "Santa Teresa" e "O Carrossel Fantasma", respectivamente. A confluência para a estética modernista começa a se evidenciar nesses poemas. Verhaeren (1917), obra intermediária entre a quarta publicação, Pandora (1919), é considerada por Marques (2000, p.31) “uma publicação isolada e que parece uma

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realização de caráter mais circunstancial”. Postumamente seu filho Alberto da Costa e Silva organizou uma coletânea de versos publicados em Sangue, Zodíaco, Verhaeren, Pandora, Verônica e Alhambra, a edição de 1950 intitulada Poesias Completas. Foi cognominado “Príncipe dos poetas piauienses”, autor da letra do Hino do Piauí; ocupou a cadeira de número 21 da Academia Piauiense de Letras. Faleceu no dia 29 de junho de 1950, no Rio de Janeiro.

A CARTA: SUA HISTÓRIA

A carta de Da Costa e Silva para Alice, objeto deste estudo, pertenceu ao acervo pessoal da esposa do poeta. Atualmente, exposta no museu Odilon Nunes na cidade de Amarante no Piauí, torna-se um material com o qual pesquisadores poderão apreender processos criativos do autor. A carta em análise é um documento que possui características históricas e literárias. A localização e a data, São Paulo, 22/01/1913, ligam-se a um período em que o poeta residiu na capital paulista como funcionário público. Em 1913, casou-se no Recife com Dona Alice de Salles Salomon.

Figura 1 – Fotografia de Alice de Salles Salomon

Fonte: Revista Presença- Edição Especial: 100 anos Da Costa e Silva, Ano VI, N 13, Teresina-PI, 1985.

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Alice faleceu em 2 de outubro de 1919, após complicações pós-parto do filho Benedito, que nascera em 18 de setembro do mesmo ano. Moraes (2007, p. 1) menciona três possibilidades de estudo das cartas: primeiro, “recuperar na carta a expressão que define um perfil biográfico”; segundo, “apreender a movimentação nos bastidores da vida artística de um determinado período”; terceiro, “vê o gênero epistolar como ‘arquivo da criação”. A carta de Da Costa e Silva para Alice é um espaço de criação do artista, de realização pessoal ao declarar seu grande amor pela futura esposa. Porém, as cartas que compõem o espólio do artista ainda continuam merecendo um olhar mais aguçado dos pesquisadores da epistolografia e da crítica genética, a fim de que se possa explorar gradativamente essa faceta da escrita do poeta, ainda desconhecida. As cartas propiciam a percepção das dificuldades teóricas e práticas pelas quais passou o escritor em sua criação literária e das alternativas apontadas para vencê-las, enriquecendo, dessa forma, o conhecimento da historiografia literária piauiense.

LENDO A CARTA131

Minha adorada Alice, Pedes-me que te escreva, Por que dizer-te devo Tudo que eu ja te disse Porque falar-te ainda Do que já sabes tanto, Si o teu amor é santo, Si o meu amar não finda Ficasse agora eu mudo, Ou mesmo analfabeto, Do nosso eterno affecto Já te dissera eu tudo. Palavras vãs, ao vento, Seriam minhas phrazes, Si em pensamento fazes Todo meu pensamento. Minh’alma a’ tua unida Dispensa esses dizeres, Hogi que os nossos seres Vivem da mesma vida. Contudo, não se cança

131 Na transcrição foram respeitadas as características ortográficas originais: letras maiúsculas e minúsculas, sinais diacríticos, estrofes em recuo, parágrafos (2ª parte) com o objetivo de facilitar a leitura da carta e torná- la acessível a qualquer leitor, especializado ou não, isto é, usou-se a edição diplomática.

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De novo a confessar-te Que és tú minha esperança E eu te amo em toda parte E como te interesses Que eu dê noticias, tem-nas, Em troca pede apenas Por mim nas tuas preces. Eu não vou bem. O clima É cada vez mais rude. Como se tem saúde Longe de que se estima? Para quem vive ausente Que mal peor existe. Que o de viver-te triste Com o coração doente? Sem alegria e calma, Eu vivo da saudade Que hoje domina e invade Os mundos da minh’alma Escreve-me, que eu ando, Sem ter o teu conforto, Como uma náu sem porto, Sem leme e Sem comando... Ando, sem ter caminho, A toâ pelo espaço, Orpham do teu abraço. Viúvo do teu carinho. Minh’ alma é uma caçoula,132 Sempre que em ti eu penso, A ti offertar o incenso Do affecto do teu Lôla Minha bôa noiva: Estou ancioso pela tuas noticias. Escreve-me, meu amor. Saudosas lembranças aos teus. Estou fazendo o possível para ahi estar a teu lado a 1º do vindouru. Espera-me. Pede a Deus pelo nosso amor e pela felicidade do teu noivo

Da Costa e Silva. S. Paulo, 22 - 1- 1913.

132 Caçoula – vaso em que se queimam perfumes.

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CARTA A ALICE: UM OLHAR LITERÁRIO

Antonio Candido em O estudo analítico do poema faz algumas reflexões para conceituar poesia. Segundo ele, a poesia:

É tomada como a forma suprema de atividade criadora da palavra, devida a intuições profundas e dando acesso a um mundo de excepcional eficácia expressiva. Por isso a atividade poética é revestida de um caráter superior dentro da literatura, e a poesia é como a pedra de toque para avaliarmos a importância e a capacidade criadora desta (CANDIDO, 1996, p. 12).

O comentário do teórico é essencialmente esclarecedor para o estudo da epístola transcrita acima, pois esta se encontra revestida de poesia. Da Costa e Silva escreveu a carta permeando a mensagem de todo sentimento que envolve um homem apaixonado, expressando uma visão pessoal do amor que sente por Alice e toda angústia que sentem causada pela distância que os mantêm afastados. É um poema que apresenta uma certa carga dramática e uma tensão existencial: “Ando, sem ter caminho / À toa pelo espaço, / órfão do teu abraço, / viúvo do teu carinho” (estrofe 12). A função da carta de informar, de contar, de comunicar, nesse caso, integra-se à intenção subjetiva de um eu que intenta registrar a dor causada pelo espaço que os afastam, mas a carta/poema aproxima quem está longe de quem escreve em São Paulo, e, dessa forma, reforça a natureza poética do texto, por revelar um eu-lírico perdido, sem caminho, vagando sem rumo, órfão da presença física da amada. Recorrendo ainda a Candido, quando afirma:

A vida é contraditória, e como os poetas não cansam de lembrar amor e ódio, prazer e dor, alegria e tristeza, andam juntos [...]. O amor é tudo o que vimos, e ele é aspiração de plenitude graças a qual o nosso ser se organiza e se sente existir (CANDIDO, 1996, p.22).

A estrofe 12, citada no parágrafo anterior, reforça toda essa contradição. O discurso serve de refúgio para um eu-lírico que utiliza a escrita como abrigo e espaço de criação de um “eu e de um mundo, às vezes tão próximo a sua realidade, outras vezes, tão próximo à ficção”. (NASCIMENTO, 2014, p. 2).

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Figura 2 – Cópias do manuscrito da carta p. 1-4133

Fonte: Museu Odilon Nunes, Amarante-Piauí

Figura 3 – Cópia do manuscrito da carta p. 2-3

Fonte: Museu Odilon Nunes, Amarante - Piauí

133 A imagem da carta foi reproduzida por digitalização escaneada, meio que permite o estudo da língua no aspecto histórico, quanto linguístico em todos os níveis: pontuação, ortografia e acentuação gráfica; o paleográfico e alguns aspectos codicológicos e diplomáticos.

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Neves (1988, p. 191) lembra que “a carta constitui uma ambivalência; é a exterioridade de uma interioridade. É uma forma de tornar público o privado, de lançar, na sociedade, o indivíduo”. Focault corrobora ao afirmar:

Escrever é, pois, ‘mostrar-se’, dar-se a ver, fazer aparecer o rosto próprio junto ao outro. E deve-se entender por tal que a carta é simultaneamente um olhar que se volve para o destinatário (por meio da missiva que recebe, ele sente-se olhado) é uma maneira de o remetente se oferecer ao seu olhar pelo que de si mesmo lhe diz. De certo modo, a carta proporciona um face a face (FOCAULT 1992, p. 9).

A carta transcrita anteriormente apresenta-se escrita de duas formas diferentes: a primeira em versos, sendo as estrofes pares recuadas; no final, após a assinatura carinhosa: “Lôla”, como era conhecido em família; na segunda parte, há uma quebra do ritmo do poema, pois o poeta usa a prosa como se estivesse escrevendo outro texto, a começar pelo vocativo: “Minha bôa noiva” (sic.) e os pedidos que faz em seguida com um discurso emotivo e persuasivo, finalizando com a assinatura como é conhecido por todos: “Da Costa e Silva”. Ao dirigir-se à amada, o poeta reforça o amor que sente por ela, exprimindo desabafo, quase um lamento de dois corações separados pela distância, marca reforçada pelo uso de interrogações diretas e indiretas nas duas primeiras estrofes, repetições, assim como por meio da utilização recorrente de figuras de linguagem: metáfora, comparação, anáfora, hipérbole, inserindo um teor literário ao texto, como nos exemplos a seguir: 1. Hipérboles: “Tudo que eu já te disse” (verso 4); “Si o meu amor não finda?” (verso 8); “Já te dissera eu tudo” (verso 12); “Os mundos da minh’alma” (verso 40). 2. Comparação: “Como uma nau sem porto,” (verso 43). 3. Metáforas: “Se o teu amor é santo,” (verso 7); “Minh’alma é uma caçoula”. O uso de figuras de linguagem é comum na fala cotidiana e no texto não literário, cujo objetivo é informar, ser útil ao leitor, com linguagem clara, objetiva. No discurso literário, que é arte, criação artística, predomina a função poética da linguagem, a qual provoca diferentes emoções no leitor, levando-o a interpretações diversas, sendo as figuras de linguagem que o torna mais expressivo e poético. Da Costa e Silva, nos cinquenta e dois versos, utiliza vocábulos que se adaptam não só às necessidades do ritmo, mas que se comportam de modo variável, conforme o uso que o missivista faz delas; isto é, deve-se distinguir o uso que se faz da mesma palavra no discurso referencial do uso que faz o poeta. O eu-lírico na oitava estrofe, verso 25, afirma taxativo: “Eu não vou bem”. Espera-se que fale de uma doença, mas ele quebra a expectativa do leitor ou ouvinte ao dizer: “O clima/ É cada vez mais rude.” E aí vem outra indagação: “Como se tem

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saúde/ Longe de quem se estima?” Prossegue com a lamentação, concluindo na estrofe seguinte: “Com o coração doente?” A doença do coração é pela ausência da amada, ou seja, não é dor física, é a ausência ou a distância que o faz sofrer. A conotação é a marca presente na carta, o que reforça a literariedade da mesma, isto é, a especificidade do literário pode ser definida em razão de dois critérios primordiais: o primeiro é a função estética do texto, que é dada pelo fato de possuir uma elevada carga semântica; o segundo é a organização interna do texto, pois o autor codificando-o em vários níveis: escreve a carta em forma de poema, fato não usual, pois o gênero epistolar apresenta- se comumente em prosa, organizado em parágrafos; porém finaliza-a em forma de parágrafos, gerando dúvidas e espanto no leitor sobre o porquê dessa estrutura. Dessa forma, o poeta distancia-se em relação à norma padrão de escrita do gênero epistolar, uma vez que a correspondência possui destinatário certo: Alice; nela, a mensagem não criará dúvidas, já que há sintonia entre emissor e receptor que falam o mesmo código: o do amor. Já o leitor usará a intuição que lhe fornecerá caminhos pessoais necessários para o entendimento da arte na busca de respostas novas e criativas. Essa codificação tanto da estrutura, quanto da linguagem implica mobilização de fatores conscientes, mas também inconscientes, que Jakobson chama de “fenômenos de latência verbal intuitiva” (1998, p. 23), presentes na produção da obra literária, principalmente da poesia lírica em análise, centrada na primeira pessoa, vinculada à função emotiva da linguagem. Da Costa e Silva particulariza sua carta, apresentando-a em treze estrofes de quatro versos rimados e metrificados, apesar de Chociay afirmar que:

uma estrofe nada mais é do que um período a que se impõe feição diversa da habitual: locuções e sentenças têm de fluir através de um esquema global prévio, do qual os versos – linhas com número fixo de sílabas e medido posicionamento acentual – representam medidas relativamente arbitrárias (CHOCIAY 1994, p.1).

Essa norma era seguida pelos preceptistas antigos, ainda nas palavras de Chociay (1994), isto para diferenciarem prosa de poema. Em Da Costa e Silva, percebe-se que o andamento e a cadência dos versos reforçam o aspecto de realização tradicional da poesia que indica estar-se diante de um texto poético, tanto pela sua leitura quando penetra os ouvidos pela declamação, quanto pela visualização que se faz do texto. Peiffer diz sobre o metro e o ritmo que:

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[...] o metro é o exterior e o ritmo o interior; o metro é a regra abstrata, o ritmo a vibração que confere vida; o metro é o Sempre, o ritmo o Aqui e o Hoje; o metro é a medida transferível, o ritmo é a animação intransferível e incomensurável (PEIFFER apud CHOCIAY, 1994, p. 3).

Chociay chama atenção para o comentário acima, ao dizer que as palavras do teórico não devem ser “entendidas como mero jogo retórico, mas como a simples fiel constatação de um fato, e com a humildade de quem se reconhece maravilhado ante sua complexidade” (CHOCIAY, 1974, p. 3). A carta de Da Costa e Silva é um poema, com versos hexassílabos, isto é, de seis sílabas poéticas, com sílabas tônicas na primeira, quarta e sexta sílabas métricas, como se explicita através das duas primeiras estrofes:

Mi/nha a/do/ra/da A/li/ce Pe/des/-me /que/ te es/cre/va, Por/ que/ di/zer/-te/ de/va Tu/do /que eu/ já/ te/ dis/se,

Por/que/ fa/lar/-te/a in/da Do/ que/ já /sa/bes/ tan/to, Se o/ teu/ a/mor/ é /sa/nto, Se o/ meu/ a/mor/ não/ fin/da?

Na escansão, conta-se até a última sílaba tônica do verso. Alguns elementos como elisão, sinalefa, sinérese são perceptíveis nos versos acima, por exemplo: a) Sinalefa – acomodação numa só sílaba métrica de duas ou três vogais em contato de palavras diferentes, presente no primeiro verso da primeira estrofe; b) Sinérese – uso de crase ou ditongação de duas vogais em contato no interior de um vocábulo, a exemplo de “a in-”, conforme se vê em “ainda”, no primeiro verso da segunda estrofe; c) Elisão e sinalefa – quando o encontro interverbal é de três ou quatro vogais, a primeira se elide, sobrevindo a sinalefa entre as restantes. Encontra-se um exemplo no verso 49: “Mi/nh’al/ma é u/ma/ ca/çou/la”. Candido lembra que:

[...] o ritmo é algo visceral em relação à sensibilidade do homem, e não um mero recurso técnico. Ele espelha toda a inquietação, as alterações de espírito e da sensibilidade, a concepção do mundo, sofrendo influências das transformações da arte e do pensamento (CANDIDO, 1996 p.56).

Da Costa e Silva faz uso de versos de seis sílabas poéticas, consegue impor um ritmo ao poema, dando-lhe unidade rítmica e fazendo transpor toda angústia, toda emoção que lhe

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corrói a alma, o que talvez não acontecesse com versos de uma métrica maior, dada a extensão do poema. Quanto ao posicionamento das rimas, são interpoladas ou opostas (ABBA), e analisando-se o valor, têm-se ricas e pobres:

“Alice” e “disse” – rica, substantivo e verbo (primeira estrofe) “Escreva” e “deva” – pobre, verbo e verbo (primeira estrofe) “Mudo” e “tudo” – rica, substantivo e pronome (terceira estrofe)

Muito ainda se tem a dizer sobre os aspectos fonéticos do poema, ou melhor, do texto da carta. Cabe, agora, abordar a entonação frasal. Vilanova (1977, p. 16-17) chama atenção para que se diferencie a frase declarativa da interrogativa, da exclamativa e da imperativa, porque dependendo de quem as pronuncia, o ritmo pode ser ascendente ou descendente: Da Costa e Silva faz perguntas diretas e indiretas; então, ora o ritmo é ascendente ou descendente, pois não se pode esquecer dos acentos afetivo e intelectual que permeiam todo texto, reforçando o comportamento dos apaixonados e que isso produzia transformações no comportamento dos amantes. A carta de Da Costa e Silva à Alice deixa o leitor maravilhado, pois este participa de algo tão íntimo: as confissões, os devaneios de um casal apaixonado que se encontra separado. Como afirma Neves (1988, p. 191), “a carta é a presença de uma ausência [...] o destinatário não está presente”, a carta reitera um afastamento, sua escrita é interposta pela subjetividade do emissor que retrata aquilo que experiencia e sente no momento da escrita. Se a carta é uma forma de comunicação, ao analisá-la o pesquisador observará tanto o seu caráter de eficácia social, quanto a expressão de subjetividade, pondo em destaque o que diz Willemart, adepto de um novo conceito de ampliação do espaço de atuação no campo de estudo sobre o processo criativo:

[...] a crítica genética abrange desde o universo mental do escritor até as marginálias dos livros lidos, sua correspondência passiva e ativa, os livros consultados e os estudos de exogênese em geral; em aval, a crítica genética estuda o acabamento por outros da obra inacabada (a obra de Marcel Proust terminada por Roberto, seu irmão), as encenações diversas de uma peça de teatro ou as apresentações de uma mesma partitura musical, as ‘edições’ sucessivas de um texto ou de um quadro pelo autor (WILLEMART, 2001, p. 200).

É válido notar que Da Costa e Silva transmite em Carta à Alice sua vivência em São Paulo, imortalizando por meio da linguagem um costume que perdurou no século XX, a

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comunicação por meio de cartas, entregue por “um conhecido”, ou pelos Correios, além de situar na história os sujeitos dessas vivências: ele e a noiva. A carta é um documento que testemunha o panorama histórico e social vivenciado pelo missivista e serve de espaço para sua criação poética.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

A análise da carta/poema revela que a literariedade da carta de Da Costa e Silva está na forma como o eu-lírico se dirige à amada, ou seja, com os elementos que o encaixam na categoria de literário: forma de poema com as estrofes se alternando em recuo, com a técnica de metrificação perfeita e o esquema rítmico trabalhado, o estranhamento como função da linguagem artística. Pode-se ilustrar o estranhamento com a linguagem criada pelo poeta: signos linguísticos carregados de afetividade, predomínio da função poética da linguagem em todo texto, não só com o uso das figuras de linguagem; dos pronomes minha, meu, eu, me, mim e verbos na primeira pessoa o que destaca a função emotiva, como também pela imagem que o eu-lírico apresenta dos dois como um único ser, aspecto que coloca a poesia em primeiro plano. A quarta e a quinta estrofes criam e reforçam essa imagem poética, gerando uma impressão altamente abstrata no leitor/ouvinte: “Minh’alma à tua unida / Dispensa esses dizeres, / Hoje que os nossos seres / Vivem da mesma vida”. Chklovski (1976, p. 39) examina a língua poética e percebe que o caráter estético se revela pelos mesmos signos; “em certos casos particulares, a língua da poesia se aproxima da língua da prosa”, que embora sendo a mesma da poesia se diferencia na estética. Uma reflete o cotidiano, o comum. A outra, “o estranho”, “o diferente”. Alice, destinatária da missiva, decifra a mensagem de acordo com a relevância das informações referentes ao amor que possui e nutre pelo poeta; enquanto os leitores decodificam e compreendem a mensagem dada à intensidade do amor que os une, da privação do contato físico e também pelo fato das cartas de amor serem surpreendentes e elas pertencerem a um espaço entre a realidade e a ficção, uma vez que se originam na memória humana e se materializam em discurso, muitas vezes, carregados de uma carga acentuada de subjetividade, de invenção, de escolhas no ato da criação. Buscou-se, com a leitura e a análise da carta, mostrar os vínculos entre o gênero epistolar e literatura, apontando como o autor explora a literariedade no espaço em que geralmente predomina o discurso referencial. Apontou-se os traços relevantes da poética do

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autor, assim como o teor e o tom do discurso literário. Cabe assinalar a importância da crítica genética, voltada para a observação do processo individual de criação do escritor, revelando em seus manuscritos sua visão de sujeito, não só a particular, como também sua compreensão da sociedade no tempo em que viveu.

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CRÍTICA GENÉTICA E HUMANIDADES DIGITAIS: UMA INTERFACE POSSÍVEL

Sandro Rogério Silva de Carvalho134 Sergio Romanelli135

INTRODUÇÃO

Durante as aulas da disciplina Crítica Genética no Programa de Pós-Graduação em Literatura, no segundo semestre de 2015, e ao longo dos encontros do NUPROC (Núcleo de Estudos do Processo Criativo), ambos na Universidade Federal de Santa Catarina, surgiu a necessidade de refletir sobre a importância, a necessidade e o formato de uma edição genética na era digital. Desta reflexão, identificamos que a apresentação da edição genética no formato digital vai ao encontro de uma área de pesquisa mais abrangente: a das Humanidades Digitais. Neste contexto, este trabalho visa discutir a interface entre as pesquisas em Crítica Genética (CG) e Humanidades Digitais (HD), enquadrando as pesquisas em CG na era digital como pertencentes ao campo coberto pelas HD. Tal interface não se restringe à publicação de edições genéticas digitais, mas também a todo o aparato digital utilizado nas fases de captura e análise das informações, bem como no estudo da gênese de obras de arte que já nascem em formato digital. Assim como o livro eletrônico não substituiu a publicação em papel, propomos aqui o abandono total das edições genéticas impressas. As características do meio digital, porém, encerram o ambiente perfeito para as necessidades de representação fragmentária, extensa e complexa de uma edição genética, através de hiper-ligações, e a construção dinâmica interativa de representações dos documentos que influenciaram de maneira direta ou indireta na composição da obra de arte. Conforme Biasi (2014), o desenvolvimento de grandes corpora literários (Proust, Valéry, Flaubert, etc.) e do paradigma de pesquisa iniciado por Louis Hay coincidem com o período de popularização das ferramentas tecnológicas. O autor também salienta que:

[...] foi a revolução digital dos anos 1980-1990, o processador de texto, as bases de dados e o crescimento de Internet que redefiniram inteiramente o

134 Graduado em Ciências da Computação e graduando do Curso de Bacharelado em Letras - Língua Alemã e Literaturas na Universidade Federal de Santa Catarina. Bolsista PIBIC-CNPq. Email: [email protected] 135 Professor Doutor na Universidade Federal de Santa Catarina-Bolsista em produtividade do CNPq. Email: [email protected]

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campo e as ferramentas de estudo de gênese ao trazer respostas às questões lógicas e quantitativas que ficavam até então insolúveis (2014, p. 213).

Lose e Magalhães (2015), por sua vez, apresentam uma discussão da edição digital ligada à filologia, à edição crítica, cujo produto é um novo texto. Entretanto, para a crítica genética “o produto de uma edição genética não é um novo texto, mas uma representação, o estabelecimento de uma relação e uma explicação dos documentos de gênese existentes.” (D’IORIO, 2014, p. 185). Sendo assim, a edição genética tem uma vocação ainda mais forte para o formato digital.

CRÍTICA GENÉTICA

A Crítica Genética (CG) surge na França, em 1968, quando um grupo de pesquisadores encarregados de organizar os manuscritos do poeta alemão Heinrich Heine encontra problemas metodológicos ao lidar com os manuscritos. No Brasil, ela é introduzida por Philippe Willemart, em 1985, e preocupa-se hoje não só com o texto literário, mas abrange o universo da criação humana, incluindo as artes, a literatura e a mídia. O objetivo dessa orientação metodológica é desvendar os percursos de criação, mostrar o processo que leva à obra final dando ênfase a ele, valorizando-o. Segundo Salles (2000), a CG surge com o desejo de compreender melhor o processo de criação artística a partir dos registros deixados pelo artista deste seu percurso. Ressalta-se que, embora se saiba que não há como ter acesso a todo o processo de criação, e sim apenas a alguns de seus índices, se pode, através da CG e em contato com a materialidade desse processo, conhecê-lo melhor. Salles (2000) salienta que a CG analisa o documento autógrafo, ou seja, escrito pelo próprio autor sem ter sofrido processo de publicação, para assim poder compreender com o movimento de criação quais foram os mecanismos de criação e qual foi o percurso de desenvolvimento da obra. Dessa forma, o manuscrito muda de concepção: de objeto de colecionador, ele passa a ter valor científico (BIASI, 1997). Mesmo sendo o manuscrito objeto de pesquisa de outros estudos, na CG ele torna-se suporte para que se possa revelar a trajetória criativa de um autor; é através dele que se seguem as “pegadas” do escritor durante seu percurso de criação. Segundo Biasi (1997, p. 05), o objeto da CG é essa “dimensão temporal do texto em estado nascente”, que engloba a pesquisa de documentos, a preparação, a redação, a correção do texto; fases geradoras de um processo gradual de produção. Esse percurso é elucidado

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através do estudo dos manuscritos deixados pelo autor, que podem variar conforme a época, o autor ou a obra analisada. Além disso, é uma pesquisa baseada em documentos “em processo”, em oposição a pesquisas que se valem de objetos supostamente “acabados”. Esses documentos são registros materiais do processo criador, são retratos temporais de uma gênese, que agem como referências da trajetória criativa. Outro ponto a ser exposto sobre os documentos de processo136 é que há neles uma diversidade de linguagens, podem-se encontrar registros verbais, visuais ou sonoros, tendo as características de uma tradução intersemiótica, ou seja, de uma linguagem para outra. Segundo Hay (2007), a CG nasceu observando como os escritores escrevem o que escrevem; seu objeto, a escritura, é visível e específico, pois é a etapa central do processo de criação. Seu método é o de compreender a obra no seu devir, na plenitude de suas significações possíveis. Ela visa o momento do processo da escritura, na realidade de sua execução. Esse objeto da CG, segundo Salles (2008), é um objeto móvel, um objeto em criação que evidencia o caminho percorrido pelo artista para chegar à obra. Sendo assim, a CG considera que uma obra não é o que vemos como resultado final, e sim uma cadeia de agregações de ideias (ROMANELLI, 2013), ou seja, um produto complexo que atinge um ponto final após um longo caminho. Ressalta-se que esse processo não é o mesmo para cada autor, que acaba recebendo influências do meio em que está inserido, e refletindo, assim, na obra. O percurso que faz o autor ao construir sua obra: as rasuras, as emendas, as modificações, fazem parte da composição do texto e contribuem para que se desvele seu processo criativo. Para Willemart (1993) o estudo das rasuras mostra o homem dividido em autor-scriptor e autor-leitor, que a cada leitura refaz seu texto. Assim, a rasura adquire uma importância excepcional, pois é o momento em que há o desdobramento do escritor e do leitor em um terceiro, ou seja, a releitura ocasiona o surgimento da autocrítica do autor; ele enxerga o texto como objeto e o vê de fora como se fosse outro. Nesse intuito de compreender o processo de criação a partir de evidências buscadas nos manuscritos do autor é que se insere a CG. Ademais, sua proposta é tirar a criação artística da esfera do incompreensível na qual era inserida. Estabelecer um prototexto implica em escolher um ponto de vista crítico determinado. Hay (1985 apud SALLES, 2000, p. 62) diz que é complexo se estabelecer o prototexto, pois é

136 Ressaltamos que essa é uma definição utilizada por Cecília Salles em 1992 e reforçada em 2000. Para ela, o termo documentos de processo define melhor os documentos analisados de várias linguagens artísticas do que os termos prototexto ou dossiê genético.

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necessário realizar uma nova leitura desse material constituído de grafismo fixo e profuso. Desse modo, a transcrição do manuscrito deve ter como objetivo a clareza do objeto, sua realidade para que assim o resultado de sua representação seja adequado. Assim sendo, para esse propósito, o crítico genético precisa escolher uma forma de transcrição que permita reproduzir ou assinalar os mais diversos tipos de ocorrências, acréscimos, supressões e substituições no texto. Após essa fase de transcrição do manuscrito, o geneticista inicia a fase em que ele estabelece relações entre os diferentes registros. Os vestígios deixados pelo escritor fornecerão meios para captar fragmentos do funcionamento do pensamento criativo, e seus gestos repetidos deixam aflorar seu ato criador. Biasi (2010) pondera que a edição genética visa proporcionar a visibilidade do processo realizado pelo autor. Tem como finalidade elucidar o trabalho do escritor, o processo de escritura e a gênese da obra. No seu formato científico, há duas formas desenvolvidas pela edição genética, as edições que se interessam por uma fase precisa da gênese e as edições que procuram apresentar todos os manuscritos referentes ao mesmo produto literário. Temos assim, as edições horizontais, que se preocupam por uma fase precisa da gênese, e as verticais, que procuram publicar a totalidade do dossiê de gênese. A edição horizontal visa a reconstituição de um determinado momento do processo de trabalho, porém não se refere aos rascunhos137 da obra. Entretanto, poderá ocorrer com rascunhos, se esses se apresentarem como uma gênese de “estruturação redacional”, que acontece quando o escritor redige a obra num só jato. A edição vertical não se interessa por um dado momento das fases da obra, e sim visa reconstituir o processo de escritura de ponta a ponta do itinerário genético. Essa forma de edição in extenso encontra um grau maior de dificuldade de realização, pois a dimensão do corpus pode ser enorme. As edições verticais podem ser integrais ou parciais. A edição vertical integral é dividida em duas formas, a cronológica (fólio por fólio) ou microssequencial (fragmento por fragmento). Já para as parciais encontram-se três formas: a exploração lacunar de um dossiê genético, a seleção de um trecho dentro do dossiê genético completo que é muito extenso, e a focalização em um segmento de pequena dimensão acompanhado de um estudo de gênese detalhado (BIASI, 2010, p. 105-6). Há ainda as edições verticais seletivas, em que os documentos transcritos são acompanhados por comentário, propondo diversas abordagens críticas dos fenômenos genéticos observados.

137 O conjunto de documentos que corresponde ao trabalho redacional é chamado de rascunho, são os manuscritos muitas vezes cobertos de rasuras, etc. (BIASI, 2010, p. 42-3).

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Biasi, em seu livro A genética dos textos (2010), considera que uma edição genética tem função de facilitar futuras pesquisas, pois uma vez publicado o material, os críticos poderão se remeter a ele para suas pesquisas interpretativas sem passar pelo trabalho exaustivo de classificação e decifração do dossiê. O que até então tinha permanecido complicado era não somente reconstituir a partir de todos os documentos disponíveis o percurso de criação, mas tornar visível e acessível esse percurso aos pesquisadores e leitores interessados nos mecanismos de criação de qualquer obra de arte, lacuna que agora as edições genéticas digitais podem preencher.

HUMANIDADES DIGITAIS

Ao longo dos anos, e especialmente nas últimas duas décadas, acadêmicos das ciências humanas e da computação colaboraram no desenvolvimento de ferramentas para auxiliar nos estudos envolvendo a interpretação dos artefatos humanos, as humanidades. No entanto, os estudiosos geralmente datam o início desta colaboração em 1949, quando o jesuíta e teólogo italiano Roberto Busa se aproximou de Thomas J. Watson, fundador da IBM, buscando ajuda na indexação das obras de São Tomás de Aquino. Busa obteve sucesso, porém seu objetivo não incluía máquinas de busca nem contagem de palavras, mas sim uma "interpretação doutrinária" da teologia de Aquino. O computador foi um meio para uma melhoria qualitativa de seu objetivo (BUSA, 1980). No processo, entretanto, Busa e Watson constataram que as funções de busca e ordenação feitas pelo computador eram ferramentas atraentes para facilitar certos aspectos da investigação., assim como o armazenamento e a recuperação de informações. A partir desse momento, as ciências humanas e a computação foram interligadas, inicialmente em experimentos e, em seguida, em esforços para a criação de uma infraestrutura digital sustentável para a pesquisa em humanidades (GARDINER; MUSTO, 2015). A interseção entre as humanidades e o mundo digital criou um ambiente no qual as ciências humanas tornaram-se sujeitas a novas abordagens, levantando questões sobre a natureza das ciências humanas e, ao mesmo tempo, abrindo caminho para novos métodos de investigação. A variedade de plataformas, aplicações técnicas e ferramentas computacionais vêm mudando drasticamente a maneira como os humanistas trabalham, como fazem pesquisa, como reúnem, organizam, analisam e interpretam as informações, e também como divulgam seus resultados. Como o digital afeta este trabalho? Enquanto alguns acreditam que o digital está mudando fundamentalmente o trabalho do humanista, outros continuam a acreditar que o

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digital apenas os ajuda a trabalharem melhor. Alguns até acreditam que o digital pode estar prejudicando a natureza fundamental deste trabalho. Muitos humanistas tendem a ver as Humanidades Digitais (HD) como uma metodologia que traz as ferramentas e o poder computacional para dar suporte ao trabalho tradicional das humanidades. Os cientistas da computação tendem a ver as HD como o estudo de como o formato digital afeta as disciplinas nas quais é usado e o que essas disciplinas têm para contribuir para o conhecimento na computação (GARDINER; MUSTO, 2015). Há certa controvérsia na definição exata do que seriam as HD. Um capítulo de um livro destinado a debater questões em torno do tema (GOLD, 2012) traz vinte e uma definições escolhidas de uma bem mais vasta lista online. Dentre estas, destacamos a seguinte:

[...] A tarefa das humanidades digitais, sendo uma prática transdisciplinar, é facilitar a comunicação entre seus praticantes e cultivar um discurso que envolva o compartilhamento de experiências no uso das tecnologias de representação, computação e comunicação para dar suporte ao trabalho de interpretação inerente às humanidades. (GOLD, 2012, p. 70, tradução nossa)138

Embora a amplitude de áreas de conhecimento cobertas seja grande, o que é notado é como a computação atravessou as disciplinas para fornecer não apenas ferramentas, mas os pontos focais metodológicos. Há, por exemplo, um interesse compartilhado em preservar artefatos físicos (escrita, pintura, escultura, entre outros), que são deixados para nós por acaso (ruínas e outros detritos da atividade humana), ou aqueles que têm sido quase impossível capturar de forma adequada (música, performance e eventos). No entanto, muitas disciplinas têm ido muito além do simples desejo de preservar esses artefatos, lidando com o processamento e gerenciamento de dados, representando-os e manipulando-os de uma forma diferente, de modo a revelar propriedades e traços não evidentes quando o artefato estava na sua forma original. Além disso, as HD agora também se preocupam com a criação de artefatos que já nascem digitais e exigem, por si só, um rigoroso estudo e compreensão (SCHREIBMAN, 2004). Um exemplo de revelação de propriedades de artefatos através do uso da tecnologia pode ser notado na recuperação de palimpsestos, papiros e manuscritos deteriorados, utilizando-se da captação de imagem multiespectral (não visíveis ao olho humano). Assim

138 [...] The task of the digital humanities, as a transcurricular practice, is to bring these practitioners into communication with each other and to cultivate a discourse that captures the shared praxis of bringing technologies of representation, computation, and communication to bear on the work of interpretation that defines the humanities. (GOLD, 2012, p. 70)

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foram recuperados o Palimpsesto de Arquimedes139, os Papiros de Herculano140 (MOCELLA et al., 2015), os Rascunhos Inéditos de William Faulkner141, entre outros142. No caso de Faulkner, durante o processamento das imagens, notou-se uma impressão digital que presume-se ser do autor. Este fato instigou a investigação para se utilizar essa tecnologia na determinação da autenticidade de manuscritos. Fazemos notar a importância de tal ferramenta para a CG, revelando rasuras apagadas e diferentes camadas em manuscritos, que poderiam trazer à tona uma gama de novas interpretações sobre o processo criativo do autor. É possível que daqui a dez ou vinte anos o atributo digital soe como pleonasmo ao ser associado às humanidades. Conforme mais e mais artefatos culturais sejam digitalizados ou já sejam criados digitalmente, será banal se referir a métodos digitais para estudar as criações humanas, e simplesmente pensaremos neste método de estudo como humanidades (SCHREIBMAN, 2016). Existem catálogos de ferramentas digitais utilizados em humanidades. Por exemplo: Digital Research Tools (DiRT)143, Digital Methods Initiative (DMI)144 e Text Encoding Initiative Tools (TEI Tools)145. Uma ferramenta de especial interesse para a transcrição de manuscritos é a tranScriptorium146 que tem como objetivo o reconhecimento de caracteres manuscritos, incluindo a aprendizagem da caligrafia característica do autor. Dois exemplos de edição genéticas digitais são os dos grupos Projekt HyperNietzsche147 (D’IORIO, 2000) e The Beckett Digital Manuscript Project148 (VAN HULLE; NEYT, 2015), ambos com acesso limitado. O projeto de Edição Genética Digital dos manuscritos de Dom Pedro II conduzido pelo NUPROC na UFSC já conta com alguns manuscritos digitalizados e transcritos, enquanto outros ainda carecem de digitalização e transcrição. Além da etapa inicial de captura de imagens, também estão previstas as seguintes atividades: realizar as transcrições (lineares, diplomáticas e hiperdiplomáticas), análise minuciosa dos documentos e criação dos percursos genéticos.

139 http://archimedespalimpsest.org/about/imaging/ 140 http://dx.doi.org/10.1038/ncomms6895 141 http://www.lazarusprojectimaging.com/previous-projects/faulkner/ 142 http://www.lazarusprojectimaging.com/previous-projects/ 143 http://dirtdirectory.org/ 144 https://wiki.digitalmethods.net/Dmi/ToolDatabase 145 http://www.tei-c.org/Tools/ 146 http://transcriptorium.eu/ 147 http://www.hypernietzsche.org/doc/transcriptions/ 148 http://www.beckettarchive.org/

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EXEMPLO DE INTERFACE

Com a finalidade de tornar mais claro no que consiste a Edição Genética Digital acima mencionada, forneçamos um exemplo. Dom Pedro II traduziu a obra Hitopadeça do sânscrito ao português. Tal tradução foi alvo de análise na tese de doutorado de Adriano Mafra (2015), integrante do projeto. A Figura 1 mostra o manuscrito do incipit da tradução feita pelo imperador. O manuscrito quando reproduzido é denominado fac-símile. Esta é tão somente a imagem do fólio escrito. Já a Figura 2 apresenta a transcrição diplomática, que procura reproduzir fielmente a topografia do fólio manuscrito: tamanho e posição dos caracteres no fólio, tipo e cor da tinta, orientação da escritura, etc. Em nosso exemplo, podemos notar a representação do risco após a palavra “então”, o “eis” em sua posição intermediária entre as linhas e o “au” acima do “o” em “Hitopadeça”. A transcrição hiperdiplomática ou interativa na Figura 3 é uma sobreposição da transcrição diplomática sobre o manuscrito, deixando visível somente um retângulo da diplomática dependendo da posição do cursor controlado pelo usuário. Dessa forma, a edição digital possibilita o exame de ambos as representações simultaneamente. É interessante notar que, no papel ou em imagens digitais não-interativas, as imagens não se sobrepõem. Há na página do NUPROC um exemplo interativo com o primeiro fólio da tradução do Hitopadeça149. A Figura 4 traza transcrição linear referente à área apresentada na Figura 1. Ela se dá através de caracteres tradicionais utilizados em documentos tanto impressos quanto digitais. Notamos que o símbolo ˇ indica um elemento que foi adicionado naquele local e o sobrescrito indica que o elemento não está na mesma linha, porém logo acima do elemento anterior. O “au” está sobrescrito logo após o “o”, indicando que o “au” está escrito acima do “o”.

149 http://nuproc.cce.ufsc.br/egd/

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Figura 1 – Manuscrito ou fac-símile

Figura 2 – Transcrição Diplomática

Figura 3 – Transcrição Hiperdiplomática ou Interativa

Figura 4 – Transcrição Linear

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Figura 5 – Exemplo de Percurso Genético

Um percurso genético pode ser representado por um grafo, onde os nodos são fólios manuscritos, e as flechas o relacionamento entre os fólios. A Figura 5 mostra um exemplo de percurso genético. Nela notamos os nodos numerados de 1 a 5 e as flechas identificadas pelas letras de “a” até “e”. Os fólios de manuscritos representam: Reescrita do poema “Das Lied von der Glocke” de Frederich Schiller em alemão; Diário do imperador citando que havia reescrito o poema “Das Lied von der Glocke” e que começara sua tradução ao português; Primeiro fólio da tradução do poema “Das Lied von der Glocke” ao português; Segundo fólio da tradução do poema “Das Lied von der Glocke” ao português; Terceiro fólio da tradução do poema “Das Lied von der Glocke” ao português. As flechas neste exemplo são direcionais, ou seja, contém uma origem e um destino representando que: O fólio do diário faz referência à reescrita do poema; O fólio do diário faz referência à tradução do poema; O fólio 4 é uma tradução do fólio 1;

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Os fólios 3 e 4 são sequenciais e o 3 vem antes do 4; Os fólios 4 e 5 são sequenciais e o 4 vem antes do 5. Sendo assim, notamos que existem diferentes tipos de relações, sendo: Referência, onde a fonte referencia o destino (flechas “a” e “b”); Tradução, onde o destino é uma tradução da fonte (flecha “c”); Sequência, da qual a fonte é um fólio anterior ao de destino dentro do mesmo documento (“d” e “e”). Notamos também que, neste exemplo, o fólio 4 está destacado, ou seja, estamos interessados nos relacionamentos do mesmo. Sendo assim, todos os fólios que estiverem relacionadas diretamente ao 4 apareceram no grafo. Se tivermos interesse nos relacionamentos do fólio 2, por exemplo, haveria a construção de um novo grafo, certamente contendo os fólios 1 e 4, bem como todos os outros que se relacionam diretamente com o fólio 2. Notamos que a representação do percurso genético depende da granularidade almejada. Bartscherer (2003) identifica três níveis de granularidade: documento, fólio e trecho. Utilizamos o fólio em nosso exemplo como nível de granularidade. Essa escolha depende do objetivo da pesquisa.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Um maior diálogo entre a CG e as HD seria benéfico a ambas, visto que o compartilhamento de soluções a problemas comuns resultariam em avanços, tanto à CG, quanto ao conjunto de áreas abrangidas pelas HD. O trabalho de edição genética digital no Brasil ainda é bastante incipiente, e esperamos que, com o trabalho feito com os manuscritos de Dom Pedro II conduzido pelo NUPROC, possamos estabelecer um modelo para fomentar a publicações de edições genéticas digitais no país. A experiência acumulada será divulgada pelas vias formais nacionais e internacionais, e as ferramentas e metodologias disponibilizadas para acesso público com o uso das práticas de software livre / código aberto.

REFERÊNCIAS

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D'IORIO, P. O que é uma edição genética digital? In: PASSOS, Marie-Hélène Paret et al (Org.). Processo de criação interartes: cinema, teatro e edições eletrônicas. Vinhedo: Editora Horizonte, 2014, p. 183-190.

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ROMANELLI, S.; SOARES, N. G.; SOUZA, R. Dom Pedro II: um tradutor imperial. Tubarão: CopyArt, 2013.

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GILBERTO FREYRE EM DIÁLOGOS EPISTOLARES DO MODERNISMO: FACETAS DA CORRESPONDÊNCIA COM ALFREDO FREYRE, GUSTAVO CAPANEMA, MANUEL BANDEIRA E OLIVEIRA LIMA

Silvana Moreli Vicente Dias150

Escritor que se desmascara com o mesmo ímpeto com que constrói novas e renovadas facetas – sempre esmiuçando a vida privada e dialogando com seu tempo, com o compromisso de comentador empenhado da vida pública –, Gilberto Freyre (1900-1987) deixou uma obra complexa que desafia, até hoje, seus intérpretes. A epistolografia do ensaísta pernambucano ainda é pouco conhecida pelo público leitor, de modo que escassamente podemos lançar mão de obras de fato publicadas como fonte de pesquisa. Apesar dessa carência, para compor uma espécie de narrativa epistolar que deverá acompanhar uma seleção de correspondências? Que atualmente preparo – fio interpretativo este que certamente deve ser fiel à precariedade e à contingência da missiva como forma literária –, venho procurando fazer um levantamento de cartas dispersas, além de documentos inéditos, que se encontram em diversos arquivos pessoais. Neste breve ensaio, busco revisitar algumas das cartas de Freyre já publicadas, procurando articulá-las de modo a flagrar nuanças de sua posição autoral na esfera privada e pública. Três obras serão recuperadas aqui: Cartas do próprio punho sobre pessoas e coisas do Brasil e do estrangeiro (FREYRE, 1978), organizada por Sylvio Rabello; Em família: a correspondência de Oliveira Lima e Gilberto Freyre (EM FAMÍLIA, 2005), organizada por Ângela de Castro Gomes; e Tempos de Capanema (2000), organizada por Simon Schwartzman, Helena Maria Bousquet Bomeny e Vanda Maria Ribeiro Costa. Além disso, reapresento passagem exemplar da correspondência inédita do poeta Manuel Bandeira e de Gilberto Freyre, objeto de pesquisa de meu doutorado, de modo a permitir que o leitor observe a multiplicidade de registros epistolares do autor de Casa-grande & senzala, coadunando-se com a persona autoral múltipla evocada em seus ensaios, sobretudo aqueles escritos na década de 1930. Vejamos.

150 Pós-doutoranda no IEB-USP, com bolsa CAPES (no âmbito do Prêmio CAPES de Teses 2009). Supervisão de Marcos A. de Moraes. 360

CARTAS DE APRENDIZ: SENTIDOS DA AMIZADE “SINCERA” DE GILBERTO FREYRE COM MANUEL DE OLIVEIRA LIMA

Como sublinha Ângela de Castro Gomes na edição de cartas de Oliveira Lima [1867- 1928] e Gilberto Freyre, o conjunto de missivas trocadas entre o diplomata e historiador radicado nos Estados Unidos com o estudante estabelece um espaço efetivo de troca intelectual, mas não só: a ligação e a identificação entre ambos deslizam, aos poucos, para o campo da afetividade, a ponto de declararem um sentimento filial-paternal recíproco, o qual, porém, não implica distensão intelectual. É nesse espaço complexo que se desenham as linhas de uma amizade sincera, sem aparentes máscaras, sem subterfúgio, como sublinha Freyre em carta datada de “Lisboa, Consulado do Brasil, 05/02/1923”: “Porém creia, meu caro amigo, que o amo de todo coração [...] O que uma pessoa de bem não esquece é a inspiração recebida d’outra – e sua vida e a sua alma e a sua amizade quase paternal têm sido para mim forte inspiração” (EM FAMÍLIA, 2005, p.167). A residência do casal Oliveira Lima e Flora torna-se uma referência forte para Freyre nos anos 1920. Sobretudo nos anos passados nos Estados Unidos e em sua viagem à Europa – que de certo modo constitui uma espécie de finalização do périplo de formação antes do definitivo retorno ao Recife, em 1923, deixado em 1918 –, Oliveira Lima é uma base segura a quem Freyre pode recorrer, que o aconselha, o estimula e dá suporte para seus primeiros voos intelectuais. Distante da ideia de uma consciência desintegrada ou em crise, o jovem que fala acumula experiências, lapida sua trajetória, confia em seu destino. Recife e Pernambuco, nessas cartas, são espaços distanciados, longínquos, embora sempre presentes como tema – lembre-se que Freyre envia periodicamente artigos para o jornal Diário de Pernambuco. Assim, Freyre do início dos anos 1920 lança-se em uma formação híbrida e cosmopolita, animada por um atento Oliveira Lima, ele próprio um sujeito culto, mobilizador de um conhecimento complexo e multidisciplinar, que poderia bem corporificar a sobrevivência de certo ethos da aristocracia em decadência, em tempos de avanço da máquina e da especialização.151

151 Recordo-me aqui de Lionel Trilling quando fala da contradição de Rousseau – “Apesar de sua preocupação com a igualdade, sua vida ideal tinha como base um gosto pelo estilo aristocrático; a fantasia que dele fazia, a partir da qual criou coragem num período crucial de sua adolescência, jamais foi repudiada” (TRILLING, 2014: 88-89). De qualquer modo, vale a pena relembrar que, no campo da atividade pública, Oliveira Lima foi um crítico da República recém-fundada, segundo ele dominada pelas oligarquias. Por esse motivo, chamavam-no de monarquista. Profundo conhecedor da história brasileira, seu livro Dom João VI no Brasil, de 1908, é considerada uma obra-prima da historiografia nacional.

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Segundo Gilberto Freyre, a visão abrangente implícita na obra de Oliveira Lima gozou de pouco reconhecimento por conta de sua longa ausência da terra natal. Para Freyre:

Ao pernambucano-cosmopolita Oliveira Lima, a visão que animou sua obra inteira de historiador-sociólogo foi esta: a do Brasil visto em sua projeção atlântica e até transatlântica; em sua vastidão continental; em suas relações com as outras duas Américas; e não apenas considerado em sua realidade telúrica de conjunto de Brasis em profundidade, um deles Pernambuco (FREYRE, 1970, p. 117).

De fato, Oliveira Lima, o “cosmopolita transatlântico”, aconselha Freyre a seguir para São Paulo e duvida de sua realização pessoal e profissional em Pernambuco. O historiador sublinha que a formação de Freyre nos Estados Unidos teria propiciado uma adesão aos valores da modernidade, transcendendo a mesquinhez do ambiente provinciano. Nesse sentido, em perspectiva fortemente dicotômica, Oliveira Lima desenha a atitude cosmopolita, moderada, equilibrada, pouco afeita a exaltações e verborragias. Comentando artigo de Freyre publicado no Diário de Pernambuco, em 11 de setembro de 1921, em que tece considerações sobre seu cotidiano e sua casa em Washington, o historiador ressalta, como valores literários comuns a ambos, o tom equilibrado:

Mil vezes obrigado pelo seu tão simpático artigo do Diário. O que nesse artigo mais admirei e mais estimei foi a discrição, a moderação, a falta de exagero, a medida tão pouco brasileira infelizmente. Deus lh’o conserve porque me parece ser o predicado melhor do escritor. O Sr. a tem, como eu também me gabo de tê-la, porque nossa educação intelectual se fez um pouco distante dos meios espirituais brasileiros. O Sr. é produto norte- americano, como eu sou um produto cosmopolita, com fortes laivos portugueses, do português de lá, da barba até a cinta152.

Do mesmo modo, a troca epistolar entre Freyre e Oliveira Lima pautar-se-ia pela moderação, pela simplicidade da expressão e pela sinceridade. Embora tais características pareçam ser informadas por categorias retórico-poéticas da preceptiva epistolar, o que permitiria afirmar que simplesmente elementos próprios do gênero são reafirmados, são autores que escrevem na aurora do Modernismo e que procuram desenhar um estilo pessoal – portanto, de natureza individual, em uma sociedade em que as hierarquias são cada vez mais opacas, tênues e questionadas – como contraponto aos excessos de uma retórica ornamental e superficial dos herdeiros da belle époque tropical, viva naqueles que partilhavam da “superficialidade e ênfase na vivência e no materialismo caro e voltado para o status”

152 Carta de Oliveira Lima a Gilberto Freyre, com datação “Washington – 3536, 13.th str., N.W., 21/10/1921.

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(NEEDELL, 1993: 269). Sua opção pela clareza evoca, no limite, uma crítica veemente a uma linguagem vazia, de floreios, de formalismos e carente de espontaneidade.153 Assim, em busca de uma linguagem mais direta e clara, Freyre descreve, nas cartas, os livros que lê, tece reflexões críticas, testa suas hipóteses interpretativas, além de discutir seus interesses acadêmicos, com um interlocutor perspicaz e exigente. O jovem pupilo, imbuído de uma missão que evoca o temperamento europeu do período entre-guerras, é quase sempre saudado pelo paternal Oliveira Lima.154 Como exemplo, em carta datada de “Silver Bay, Nova York, 02/08/1921”, Freyre enfoca seu cotidiano ameno de férias, tecendo considerações estéticas a partir dos livros que lê:

Silver Bay, Nova York, 02/08/1921 Mui prezado amigo: Escrevo-lhe da beira deste lindo lago. É meu terceiro dia aqui. E já me sinto outro. A viagem para cá foi muito interessante. Vim numa das barcas que fazem a viagem entre New York e Albany. Deixei New York no lusco-fusco e estava linda a paisagem à beira do rio – primeiro Riverside, depois casas de campo, fábricas, etc. Chegamos a Albany na manhã seguinte. De lá para Silver Bay foi também agradável. Belo encanto, Silver Bay, que, como sabe, já conhecia, tendo aqui passado 10 dias com um grupo de rapazes latino- americanos. No verão há aqui congressos: de estudantes da Y. M. C. A., da Y. W. C. A., etc. Durante o resto do ano funciona uma escola (prep.. school) para meninos de inteligência acima da média. Minha vida aqui é simples. Levanto-me às 6, passeio a pé na companhia de um livro, remo, escrevo, às 4 banho no lago. E vou dormir às 9 – o que há tempo não fazia. Tenho lido bastante.

153 O ideal informal e íntimo da linguagem encontra diversas ressonâncias no cotidiano, como aparece em artigo em que Freyre aborda seu ideal de jardim português, franciscano e predominantemente rústico, como oposto aos jardins chics afrancesados: “A tradição portuguesa é sem dúvida a que devia estar sendo aqui – no Brasil – desenvolvida, com um maior e mais forte relevo dos efeitos de espontaneidade e, sobretudo, procurando-se nos jardins o máximo de sombra. / Mas com a mania das avenidas à francesa e à americana, veio também a mania desses canteiros simétricos, geométricos, rigidamente alinhados. Canteiros de cimento imitando troncos de árvores para dar uma nota de rústico.” (FREYRE, 1979, p. 156-7. Do artigo “Acerca de jardins” publicado em Diário de Pernambuco no dia 3 de maio de 1925). Aliás, Gilberto Freyre, Oliveira Lima e o pai de Gilberto, Alfredo Freyre (este a ser abordado em seguida), eram declarados admiradores da literatura, da arte e da cultura portuguesas.

154 Frise-se, porém, que essa atitude aparentemente humilde de Freyre não implica, por outro lado, ausência de crítica ou discordância. Apreciações sobre o livro de Oliveira Lima História da Civilização, em resenha de Freyre publicada na Revista do Brasil (n.80, ago. 1922), foram incisivas, como nesta passagem: “Creio que o reparo mais desfavorável que se possa fazer ao recente livro do Sr. Oliveira Lima é o lugar subalterno que, na hierarquia dos fatos, dá o autor ao elemento econômico. Aliás este reparo, que lhe fiz em carta, aceita-o o Sr. Oliveira Lima, apenas o justifica, ou antes o explica, com a escassez de espaço. Dada, porém, a limitação de espaço, o material a diversificar deveria ser outro, não o econômico.” (EM FAMÍLIA, 2005, p. 259). Assim sendo, as tensões certamente existiam.

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Continuo a leitura de L’histoire eclairée par la clinique, de que lhe falei. Estou também travando conhecimento com críticos literários alemães que só conhecia de nome: Von Hofmannsthal, Volkett, Hebbel etc. Depois vou mergulhar na leitura da Escandinávia. Talvez me possa fazer sugestões a respeito. Tenho Hamsun, Strindberg e lá lera Ibsen. Acho Strindberg muito zolaesco. Uma novela alemã que me deleitou foi Dame Care, de Sudermann. Trouxe o meu Fradique, o meu Oscar Wilde e um livro de Naidu – que são favoritos. E as Reminiscências de Tolstoi, por Gorki, que apenas li de fugida. Vejo que tenho escrito demasiado. Desculpe-me. Meus afetuosos cumprimentos à exma. família e à Mme. Mendonça. Creia- me seu sincero / admirador, /Gilberto Freyre (EM FAMÍLIA, 2005, p. 103- 4).

As linhas da sinceridade epistolar que se apresentam no conjunto trocado entre Freyre e Oliveira Lima são especialmente numerosas no início dos anos 1920, quando o autor, fora da terra natal, frequentava a residência do casal Oliveira Lima, tornando-se escassas após o retorno do sociólogo ao Brasil. No universo da vida privada, essas também se manifestariam quando Freyre enfrenta seu segundo exílio, agora forçado: com a Revolução de 1930, após fugir do alcance dos rebeldes, ele, então, procura afirmar o compromisso de lealdade familiar com seu pai, Alfredo Freyre, e sua família.

“TANTA LIDA P’RA TÃO CURTA VIDA?”: CARTAS AO PAI

O exílio de Freyre em 1930 foi consequência de uma fuga repentina, ao lado do governador de Pernambuco Estácio Coimbra – este acusado de envolvimento no assassinato de João Pessoa, então governador da Paraíba –, por conta do avanço das forças revolucionárias de outubro de 1930. Seguiram para Lisboa e, no ano seguinte, Freyre recebe convite para dar aulas em Stanford. Despede-se de Estácio Coimbra e segue viagem para os Estados Unidos em 1931. Ao rememorar a viagem no livro autobiográfico póstumo De menino a homem, contrapõe exemplarmente o luxo e a angústia: “Uma vez instalado em camarote quase de príncipe, veio-me uma angústia difícil de ser vencida. A angústia de pensar quanto, naquela hora, meus pais estavam ainda curtindo, no Recife, a dor das perdas que haviam sofrido de modo o mais brutal. Os dois quase sem roupa. Roubados seus objetos mais queridos.” (FREYRE, 2010, p. 33). As cartas da época a Alfredo Freyre [1874-1961] e família parecem numerosas. Sem o pessimismo que parecia tingir por vezes os escritos sobre a época – o que ocorre, por exemplo, na correspondência inédita com José Lins do Rego –, busca, no

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diálogo com o pai, um equilíbrio que lhe permite renovar-se em tempos de severa crise, como na seguinte missiva de 11 de dezembro de 1930, enviada de Lisboa:

Peço todo esse cuidado para os livros porque deles vou depender muito na minha nova fase de vida. Penso às vezes que todos esses desastres, toda essa desgraça, tudo isso “foi por bem”, como diz a lenda ou anedota do castelo de Cintra, que um desses dias visitei. Assim como por um estado místico que não sei explicar eu vinha com a antecipação clara de uma desgraça na vida, tenho agora outra intuição, de que foi “por bem”, embora isso signifique recomeçar tudo de novo, num esforço doloroso. Às vezes só com um grande solavanco como esses certas forças adormecidas naqueles que veem tudo como “tanta lida p’ra tão curta vida” despertam por um momento e dão de si alguma coisa. Mais pela dor ou pelo orgulho que são sempre criadores, do que pelo entusiasmo de fazer coisas, privilégio dos que não sentem por toda a parte vozes de “não vale a pena” menos solenes porém mais irônicas que os “never more” do poema célebre. Não sei se me faço compreender com toda essa mistura de coragem e de pessimismo. Peço-lhe de novo que abrace por mim todos os de casa, inclusive os pequenos, o amarelinho e Robertinho, sempre na minha lembrança. Diga a Pernambucano e a Albertina que breve escrevo a eles e a Zé Antônio e Jarbas; e que eles deem lembranças a todo o pessoal da casa azul, gente e anjas que é como chamo, como V. sabe, as Paes Barreto. Outro abraço do / Gilberto (FREYRE, 1978, p. 51-52).

Mais adiante, após minucioso relato dos temas abordados nos cursos oferecidos em Stanford, em 1931, como professor convidado, Freyre parece intuir, em outra missiva ao pai, as linhas gerais do seu elogio da miscigenação, que tomaria forma definitiva e consagrada em Casa-grande & senzala, seu magnum opus de 1933. O universo da intimidade torna-se também, como se vê, um laboratório de ideias e de formas, que encontram a liberdade de circulação justamente no contexto da lealdade familiar a qual o interlocutor inspira, como nesta carta de 16 de abril de 1931, enviada de Stanford:

[...] O curso de “seminar” e de relações do Brasil com estrangeiros, incluindo o estudo da atitude da Inglaterra na questão do comércio de escravos para o Brasil, reconhecimento do Brasil pelos Estados Unidos e pela Inglaterra, etc. Trabalho muito, trabalho pesado. Mas vai se dando conta dele. De Portugal já trazia várias notas interessantes tomadas lá em arquivos e bibliotecas. É pena não ter comigo notas que possuo em Pernambuco (ou possuía, não sei). Em Lisboa estive sempre com o João Lúcio de Azevedo que é ao meu ver o maior historiador, hoje, de Portugal ao Brasil. Como diz Fidelino, da mesma envergadura de Alexandre Herculano. Já o conhecia de 1922 ou 3; mas desta vez ficamos muito amigos. Está velhinho, mais de setenta, e doente. Mas de uma vivacidade de espírito admirável. Depois de chegar aqui, recebi carta de Mencken. Pede-me artigo para o “American Mercury”. Continua um dos tipos mais interessantes desta terra. O Armstrong, espero encontrar em meu regresso; ou então na Europa. Fixar- me aqui ou em qualquer parte fora de Pernambuco, está absolutamente fora do meu programa. Mas não adianta falar neste ponto. Com relação ao Brasil, acho que V. carrega muito as cores. Não há que estranhar que o Brasil

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atravesse uma fase como a de agora. Poderá mesmo prolongar-se por muito tempo assim. Mas nada nos autoriza a concluir que somos o “país perdido” de que se fala há tempos. Poucos países tão interessantes como Brasil; a aventura brasileira de miscigenação é uma das grandes aventuras modernas (moderno no amplo sentido histórico) – uma aventura nacional tão interessante quando a russa ou a americana. Ele é grande demais para que aos seus processos de ajustamento falte a violência dramática que em fenômenos geológicos um tanto parecidos a este nosso, social, étnico, econômico, caracteriza os terremotos. Não creio que desde Cristo ninguém nem nenhuma nação tenha feito ao mundo, à fraternidade dos homens, tamanha contribuição como a que há de resultar de mistura de raças no Brasil. O brasileiro não é todo defeito, nem mestiçagem; qualidades excelentes já se sentem nele; vão se esboçando e afirmando na confusão. O período é doloroso porque é de transição. Ainda não desapareceu de todo o preconceito de branquidade; a vergonha de ser mulato ainda se manifesta em pretensões ridículas. A época inda é de novos – poderosos, novos cultos, novos ricos, arrivismo em várias expressões. Mas sem deixar de haver nisto alguma coisa de interessante, ao lado do muito que há de doloroso – principalmente para filhos e netos de senhores de engenho. Devemos levantar a vista acima das coisas do momento, e impregnarmo-nos do ar, do grande ar de aventura, que sobre o Brasil, onde cores, sangues, tradições se misturam para um resultado único, excepcional. Não imaginava que ia escrever tanto (FREYRE, 1978, p. 56).

A energia apaziguadora de Freyre, que minimiza e por vezes oblitera o conflito, transparece em cartas para a família. Enforma-se uma tranquilidade – a despeito do trabalho intelectual ofegante – mitigada em outros escritos da intimidade, como em suas memórias. Essa carta, por exemplo, reforça, performativamente, uma tentativa de enfraquecer a solidão e impingir um otimismo que destoa do cenário incerto em tempos de crise econômica e política. Seria como um filho distanciado que escreve em apoio a um pai que ficou na terra arrasada para liderar a recomposição da vida familiar, atingida pelos acontecimentos da Revolução de 1930. O sujeito que luta contra a desintegração se autorretrata, porém, com um comedimento e uma seriedade raros quando em diálogo com seus amigos modernistas.

A(S) VERDADE(S) DAS MÁSCARAS: FREYRE E OS AMIGOS MODERNISTAS

Leitor contumaz de Oscar Wilde, como percebemos pela carta a Oliveira Lima antes citada, Freyre poderia tomar as seguintes do escritor irlandês como epígrafe:

Not that I agree with everything that I have said in this essay. There is much with which I entirely disagree. [...] For in art there is no such thing as a universal truth. A Truth in art is that whose contradictory is also true. And just as it is only in art-criticism, and through it, that we can apprehend the Platonic theory of ideas, so it is only in art-criticism, and through it, that we can realise Hegel’s system of contraries. The truth of metaphysics are the truths of masks (WILDE, 2014, p. 17).

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O valor intelectual da atitude irônica de Freyre é reconhecido por Manuel Bandeira [1886-1968] com humor em sua crônica “A nova gnomonia”. Segundo Bandeira, na trilha do amigo Jaime Ovalle: “O drama íntimo dos onésimos é não sentirem entusiasmo por nada, não encontrarem nunca uma finalidade na vida”. Por outro lado, em situações de responsabilidade, atuam “com o mais inflexível senso de dever”. Para Bandeira, Gilberto Freyre seria um Onésimo, que “duvida, sorri, desaponta” (BANDEIRA, 1958: 202). Capaz de superar o desinteresse com a correção irônica, de trazer reflexão e atitude distanciada em situações de constrangimento individual, de desesperança e de tendência alienante, Freyre parece, de fato, apresentar aquele sense of humour dos que riem ou ficam indiferentes mesmo diante das situações mais absurdas. A sinceridade como contígua a uma perspectiva ingênua é, então, solapada. A carta, nesse sentido, pode ser um espaço de confronto, de teatralização, de abertura descomedida para o diferente e para o desigual. Assim o parece no diálogo de Freyre com seus amigos modernistas, como Bandeira. O diálogo ganha um valor de ficcionalização, de construção autoral e autobiográfica, ausente nas cartas a Oliveira Lima e a Alfredo Freyre. Recupero missiva inédita a Manuel Bandeira escrita em 9 de junho de 1931, quase dois meses depois da carta anteriormente citada, a Alfredo Freyre:

Dear Flag: Sinto-me um mulambo. Acabo de ler, anotando, retificando, marcando com lápis [ilegível] cincoenta blue book, como aqui chamam aos cadernos de exame ou cadernos de 32 páginas! Alguns estudantes espalharam-se em 2 cadernos. Posso dizer que o curso foi um sucesso. Tive entre os estudantes, tanto os do lecture course, que são esses 50, como os do Seminar(5), alguns excelentes. Deixo neles bons camaradas – mais do que isso, começos de amizades que entretanto terão de morrer, com a distância, como outras que têm morrido. Que besta e triste esta vida de scholar gipsy, um dia aqui, logo a 2000 milhas de distância, relações quebradas: Era contra isso que eu queria reagir encolhendo-me no meu retiro provinciano como um gato borralheiro. Que falhem os que andam atrás do Sucesso eu compreendo; mas que falhem os que fogem do sucesso me parece uma malvadeza de Deus ou do Destino – de seja lá que força sobrenatural nos dirija. Mando-lhe um exemplar do meu exame em História Social do Brasil. Também lhe devo [ilegível] que talvez você receba cartas de estudantes meus de Stanford; Não deixe de responder. Os livros, nada; não chegou um só. Mas é o mesmo pau o meu reconhecimento, que é grande, tanto à sua gentileza como à do nosso bom amigo Rodrigo. [ilegível] a Sociologia. Peço-lhe que mande seu Libertinagem a Isaac Goldberg, 65 Crawford St, [Growe] Hall Station, Boston, Mass. Lembranças aos amigos. Daqui da Califórnia, vou a Carolina do Sul visitar um amigo que se diz meu discípulo na maneira de interpretar história social; e que me dedicou o seu livro sobre a história da Carolina, uma espécie de Pernambuco americano. É de uma velha família. Depois a New York, onde quero principalmente estudar os radicals. Antes uma visita ao meu amigo Mencken em Baltimore. De New York, Europa. E um desses dias, aí chegará num cargueiro ou na 3º classe de um alemão este

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provinciano (cosmopolita, cigano, romântico, modern, intellectual, radical, reacionário, revolucionário, ortodoxo, Raul Dos Passos – (irmão do Dos Passos, daqui, o de Three soldiers). Seraphim Jung, Jorge Rialto, Antonio Ricardo etc. etc. – oxoniano, M. A. Columbia, Stanfordiano, etc. etc. etc.). Raspado tudo isso, o provinciano, a quem todas as festas da Califórnia não fazem esquecer o gosto amargo (desculpe esse classicismozinho) de um maracatu do Outeiro (sem Ascenso e sem “Regionalistas” presentes). Entretanto, eu posso raspar tudo isso de mim? Na província, a nostalgia do grande mundo não me deixará de todo; as memórias, que estavam secando, abriram-se de novo em verdadeiras feridas. Meu caro Flag, desculpe tanta literatura; não é só literatura. / Abraços do Gilberto

Vemos que os diferentes estilos autorais convivem na epistolografia de Gilberto Freyre. Colocá-las lado a lado permite refletir sobre a complexidade de sua escrita, sobre as diferentes dimensões do eu que são configuradas no espaço epistolar. Nesse sentido, uma coletânea pode ser vista como experimentações de leituras, primeiro do organizador – cuja imagem se aproxima do curador, como atividade que demanda pesquisa, crítica e reflexão permanentes –, depois, do próprio leitor. Mais ou menos comprometida com a afirmação de um espaço autobiográfico com regras próprias e com um laboratório de temas e formas ainda não científicas ou esteticamente estabilizados, na trilha da reflexão de Walnice Nogueira Galvão sobre o lugar das cartas nos estudos literários,155 a carta permite observar essas possibilidades no fluxo das contingências. A adesão e o distanciamento problemáticos do eu com relação à escrita explicam-se também pelo caráter performático da carta – no fluxo da vida, o sujeito que escreve nunca é o mesmo, sempre está em transformação. Distanciamento crítico e autoironia antecedem a escrita da obra mais conhecida de Freyre, Casa-grande & senzala, que pode ser lida sob o signo da polifonia, da autobiografia híbrida e da ambiguidade constitutiva. Inclusive, vários de seus intérpretes ressaltam a tensão como uma característica definidora de sua obra produzida na década de 1930, como Antonio Candido, segundo o qual sua prosa é marcada por uma “ambiguidade dinâmica” (CANDIDO, 1962). Algumas décadas depois, Luiz C. Lima analisou a flutuação conceitual entre determinação racial, climática, cultural e econômica em Casa-grande & senzala, aproximando-a da oralidade (LIMA, 1989). Na década seguinte, Ricardo B. de Araújo revisitou exemplarmente os “antagonismos em equilíbrio” no interior da obra de Freyre dos anos 1930, pondo relevo à qualidade ensaística de sua prosa (ARAÚJO, 1994). Mais recentemente, Maria L. Pallares-Burke, por exemplo,

155 Para Walnice Nogueira Galvão: “Assim, podemos ter nas cartas: 1) Elementos preciosos para a reconstituição de percursos de vida. 2) Fontes de ideias e de teorias não comprometidas pela forma estética. 3) Em certos casos ainda – como os de Madame de Sevigné e de Sóror Mariana Alcoforato – um estatuto exclusivo devido à qualidade impecável da escrita.” (GALVÃO, 1997, p. 124).

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percorreu as influências em tensão, sobretudo britânicas, no período formativo de Freyre (PALLARES-BURKE, 2005) e Elide R. Bastos observou, na dialética entre decadência e sobrevivência, como antagonismos que poderiam ser irreconciliáveis se estabilizam na cultura patriarcal (BASTOS, 2006). Nesse contexto, a máscara da nação – contraditória, desmedida e desigual – desenha- se ao mesmo tempo em que o autor se fragmenta, se reinventa, se refaz. Como nas cartas a Bandeira, a correspondência com Rodrigo Melo Franco de Andrade [1898-1969], sua ponte entre o retiro provinciano e a metrópole carioca, trabalha com um misto de registros, entre a escrita simples, direta e paratática e a escrita polifônica, irônica e distanciada. A criação de tipos, desse modo, estabilizados provisoriamente em imagens antagônicas como aquelas de seus ensaios de formação do Brasil (casa-grande x senzala, sobrados x mocambos e ordem x progresso), é contígua à própria definição paradoxal e problemática que cria para si na interação epistolar, em que um elemento se interpenetra no outro (como o moderno x o arcaico, o privado x o público, o racional x o irracional), concorrendo para a construção complexa da imagem do indivíduo e da sociedade. O reconhecimento definitivo de Freyre no espaço público, ocorrido após o lançamento comemorado de Casa-grande & senzala, não evita, porém, que uma acomodação problemática caracterize sua ação cultural no limite da estereotipia, quando propõe a construção de símbolos alternativos e autônomos da nacionalidade. A monumentalização, que reforça as continuidades em detrimento das rupturas, confunde-se com a estabilização das forças contraditórias que é exaltada em Casa-grande & senzala e Sobrados e mucambos, tornando-se força insidiosa, como lemos na carta a seguir, enviada a Gustavo Capanema [1900-1985], em 31 de janeiro de 1942, do Paraguai, em que o autor relata, diretamente ao ministro, os frutos de uma viagem financiada pelo governo brasileiro. Aliás, nesta carta é possível observar a confluência entre cultura e política de tal modo que se pode ponderar que Freyre, como nenhum outro intelectual da época, se prestou, de fato, a articular uma integração ideológica a serviço do avanço econômico estimulado pelo Estado Novo de Getúlio Vargas.156 Leia-se:

156 Para Jessé Souza: “Casa-grande & senzala de Freyre inverte esse argumento [o de que sociedades mestiças como a brasileira estavam condenadas ao subdesenvolvimento] no seu contrário ao celebrar o encontro racial como positivo, e não como mácula inarredável. De resto, como ideologia, e aqui não importa nenhuma forma consciente de irmandade ou inimizade entre os indivíduos Freyre e Getúlio, esta se presta maravilhosamente aos novos fins de integração ideológica como uma das pilastras da arrancada econômica proposta pelo Estado Novo” (SOUZA, 2012, p. 187).

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[...] A propósito: como supunha, como lhe disse, este ponto pode ser a base natural, nada forçada, de maior aproximação cultural dos povos da América espanhola conosco. Já tenho falado do nosso congresso, para o ano, de estudos ameríndios e encontrado entusiasmo pela ideia. Nós somos, dos grandes povos da América do Sul, e, ao lado do México, o menos europeu e, essencialmente, o menos colonial na sua cultura e por conseguinte, em posição de ser o pioneiro de uma nova cultura americana, na qual se valorizem, em vez de se subestimarem, os elementos não-europeus. Esta minha velha tese, sempre que a exponho, encontra a maior simpatia. Aqui, enorme. A ideia do monumento ao índio – uma de suas esplêndidas ideias – será recebida com entusiasmo em toda a Indo-América, que também começa a sentir – e com razão – que o nosso Vargas é um dos seus leaders. Por que não ser o monumento, a figura de Indo-América? O Celso poderia fazer coisa magnífica. E teria uma mística mais poderosa do que a do índio? Bem, meu caro menino, espero carta sua ao chegar a Buenos Aires [...] (SCHWARTZMAN; BOMENY; COSTA, 2000, p. 336-338).

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Assim sendo, uma seleção da correspondência ativa de Freyre pode, a partir de certas tensões e imagens fundamentais, abrir espaço para discussões renovadas, permitindo um entrelaçamento de questões em perspectiva inédita, sem descuidar das evidentes contradições. Muito embora já tenha havido publicação com a finalidade de divulgar cartas de Freyre, como a que obteve a anuência do próprio missivista, organizada pelo amigo Sylvio Rabello na década de 1970, ela não apresenta aparato crítico, com notas de edição ou mesmo notas exegéticas. De resto, é organizada em seções nomeadas conforme o destinatário, o que não possibilita recompor uma narrativa epistolar integradora. Ainda que reconheçamos nela o valor de sua indiscutível originalidade, há espaço para se elaborar outra seleção, com peças inéditas do autor a diversos interlocutores, a serem editadas em formato crítico, preferencialmente dispondo-se os documentos em ordem cronológica. O livro que mais se aproxima desse objetivo de tratamento crítico, aliás, é Em família, organizado pela historiadora Ângela de C. Gomes – no conjunto de obras dedicadas a Freyre, o único, é verdade, a perfazer a correspondência recíproca de missivistas –, o qual, embora não apresente notas de cunho filológico, traz um aparato de notas exegéticas e de paratextos que enriquecem a edição. Em família cumpre bem seu objetivo de levar ao público uma documentação rica e, em grande parte, até aquele momento, inédita, mas é uma iniciativa editorial, nesse sentido, solitária, de uma das grandes especialistas no período abrangido pela correspondência. Meu projeto, na medida do possível, e ciente das dificuldades, pretende aprofundar iniciativas comprometidas com a edição de fontes, conciliando-a a metodologias, de caráter

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inclusivo, mais comumente aplicadas a textos literários.157 Subjacente a esse projeto ora em desenvolvimento, está uma ideia implícita que não pretende amainar as contradições, mas, sim, vê-las produtivamente e compreendê-las como fruto de seu tempo e do seu espaço, abrindo-se para o leitor de hoje um panorama o mais complexo possível, pautado pela pluridisciplinaridade. Sem almejar constituir-se como uma construção integral e definitiva, peças da correspondência permitem intuir aspectos do entre-lugar da identidade do sujeito da escrita, com suas crises, dúvidas ou ímpetos criativos. Assim sendo, orbitam num terreno instável e problemático, discurso permeado pela ficção, ao mesmo tempo em que convidam a especular sobre a matéria viva e os escombros da História. Interessa aqui menos distinguir o verdadeiro, e mais perceber zonas de conflito e tensões, confrontando a correspondência com outros discursos híbridos do autor, como seus ensaios histórico-sociológicos, seus perfis biográficos e seus textos memorialísticos, que, aliás, estabelecem uma relação ambígua com a construção do relato, uma vez que nem sempre fica claro o distanciamento reflexivo que há entre o ato da escrita e os acontecimentos e redes de sociabilidade ali abordados.158 Como no desenho de Jean Cocteau retomado por Eneida Maria de Souza, Freyre poderia dizer: “Je suis un mensonge qui dit toujours la verité” [Sou uma mentira que diz sempre a verdade] (SOUZA, 2011, p. 24), esvaziando o argumento de antípodas como Joaquim Inojosa, para quem o autor deliberadamente mistificaria.159 Na trilha da autenticidade que pede licença à verdade cronológica e ao tempo cronométrico, Freyre, desde seus escritos mais íntimos e privados, narra-se, ficcionaliza-se, ao mesmo tempo em que cria uma imagem singular de país. Nesse sentido, vemos que as cartas podem entregar-se produtivamente à leitura desimpedida, à

157 Reconheço o mérito das edições baseadas sobretudo na divulgação de textos inéditos, mas pretendo em meu trabalho uma conciliação que implique também o estabelecimento crítico do texto epistolar. Aspectos desse desafio interdisciplinar foram muito bem avaliados por Rita Marquilhas (2008). Reforce-se que, diante da escassez de fontes no que diz respeito à epistolografia de Gilberto Freyre, é imperativo considerar as publicações prévias acima mencionadas para a realização de leituras abrangentes de suas cartas. 158 Refiro-me aqui especificamente a Tempo morto e outros tempos: trechos de um diário de adolescência e primeira mocidade, 1915-1930 (SP: José Olympio, 1975) e a De menino a homem: de mais trinta e de quarenta, de sessenta e mais anos (SP: Global, 2010). Sobre a questão da escrita autobiográfica em Freyre, cf., por exemplo, M. L. Pallares-Burke ao discorrer sobre o livro de 1975: “[...] fica claro que o texto foi escrito e reescrito ao longo dos anos, houvesse ou não um núcleo original de entradas feitas na própria época dos eventos que descreve. Quando se comparam, por exemplo, alguns fatos ali narrados com o que outros documentos comprovadamente da época revelam, o caráter memorialístico de Tempo morto fica evidente” (PALLARES-BURKE, 2005, p. 25). Nesse contexto, é evidente que as cartas vêm colocar um capítulo a mais no necessário cuidado em se tomar o texto, concomitantemente, como fonte e como espaço de criação, de ficcionalização. 159 O título de um dos livros dedicados a “desmascarar” Freyre, de autoria de Inojosa, é literal nesse sentido: “Sursum corda!: desfaz-se o ‘equívoco’ do manifesto regionalista de 1926: foi redigido em 1952, escreve Gilberto Freyre” (1981). Sursum corda, em latim, significa “corações ao alto”, o que nos permite imaginar a emoção sentida por Inojosa – que reinvindica a função histórica de introdutor do Modernismo no Recife – ao “repor” os fatos em seu devido lugar.

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análise ou à exegese, contribuindo para repensar o lugar de manuscritos inéditos no cânone, bem como perfazer a opera omnia de autores fundamentais do nosso Modernismo, ainda por ser construída.

REFERÊNCIAS

ARAÚJO, R. B. de. Guerra e paz: Casa-grande & Senzala e a obra de Gilberto Freyre nos anos 30. Rio de Janeiro: Ed. 34, 1994.

BASTOS, E. R. B. As criaturas de Prometeu: Gilberto Freyre e a formação da sociedade brasileira. São Paulo: Global, 2006.

CANDIDO, A. Gilberto Freyre crítico literário. In: AMADO, Gilberto et al. Gilberto Freyre – sua ciência, sua filosofia, sua arte. Rio de Janeiro: J. Olympio, 1962.

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A DESCRIÇÃO DOCUMENTAL DOS CADERNOS DE ANOTAÇÕES PESSOAIS DO JORNALISTA PIAUIENSE JOEL DE OLIVEIRA

Solange Hiller Herthz Santos160

INTRODUÇÃO

O desejo de estudar a documentação do jornalista Joel de Oliveira surgiu da experiência em trabalhar na Hemeroteca do Arquivo Público do Piauí (APPI), que recebeu a denominação desse jornalista quando ele fez doações de suas coleções de jornais e revistas para a Instituição. Pode-se inferir desse pequeno gesto o processo talvez inerente a Joel de Oliveira, que colecionou parte da história do Estado do Piauí por meio de jornais, pois afinal, era jornalista. Entretanto, tal memória não se restringe aos jornais, pois parte de suas lembranças chegaram até o APPI posteriormente, quando nos foi confiada sua coleção de cadernos pessoais. Estes cadernos constituirão o foco do presente trabalho. Até aqui, fica claro que há dois conjuntos documentais distintos em suas espécies: jornais e cadernos. Os cadernos serão denominados “Coleção de Cadernos”, a qual constituirá o recorte adotado na metodologia desta pesquisa, considerando o tempo exíguo para descrição e análise do corpus selecionado. Para analisarmos a “massa documental”, inicialmente foi montado um quadro de arranjo da documentação – fruto do trabalho de conclusão de curso da presente pesquisadora – e, a partir do panorama que essa ferramenta de classificação nos permitiu visualizar, realizamos a descrição documental dos cadernos de anotações pessoais de Joel de Oliveira, dos quais ressaltamos as características físicas, que nos ensejaram a elaborar um resumo de seu conteúdo com os principais dados, a partir da ISAD (G): norma geral de descrição arquivística. Com essa metodologia de descrição, disponibilizamos parte da memória piauiense para a comunidade acadêmica e interessados em geral, começando pela Coleção de Cadernos de Joel de Oliveira. Poderá o leitor perguntar por que um conjunto de cadernos com anotações pessoais está depositado no arquivo público, e como ele pode interessar e colaborar na construção da história piauiense. Para responder essas perguntas, revisaremos alguns pontos importantes, começando por nossa legislação.

160 Bibliotecária/Documentalista, Especialista em Crítica Genética e Organização de Arquivos. Trabalha no Instituto Dom Barreto e Memorial Zumbi dos Palmares. E-mail: [email protected]

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No Brasil, a Lei nº 8.159, de 8 de janeiro de 1991, estabelece a política nacional de arquivos públicos e privados. O Capítulo 2, artigo 2°, oferece a definição de arquivo:

Conjunto de documentos produzidos e recebidos por órgãos públicos, instituições de caráter público e entidades privadas, em decorrência do exercício de atividades específicas, bem como por pessoa física, qualquer que seja o suporte da informação ou a natureza dos documentos.

Ou seja, consideramos arquivos o conjunto de origem pública ou privada. E ainda com a Lei nº 8.159, encontramos no Artigo 12, especificamente dedicado aos arquivos privados:

Art.12. Os arquivos privados podem ser identificados pelo Poder Público como de interesse público e social, desde que sejam considerados como conjunto de fontes relevantes para a história e desenvolvimento científico nacional.

Os valores de relevância não serão discutidos no presente trabalho, mas podemos deduzir que, pelo perfil intelectual do jornalista Joel de Oliveira, sua documentação foi considerada como um conjunto importante a ser conservado pelo APPI. A legislação em destaque pontua e conceitua arquivos, mas precisamos caminhar para uma abordagem teórica. Heloísa Liberalli Bellotto é uma referência na área de arquivos no Brasil e oferece esclarecedores conceitos sobre a natureza dos mesmos. No Dicionário Brasileiro de Terminologia Arquivística (2005, p. 27) a definição de arquivos apresenta os seguintes parâmetros:

1. Conjunto de documentos produzidos e acumulados por uma entidade coletiva, pública ou privada, pessoa ou família, no desempenho de suas atividades, independentemente da natureza do suporte.

E, de acordo com Bellotto, em Arquivos permanentes: tratamento documental (2004, p. 256), os arquivos pessoais são:

[...] papeis ligados à vida familiar, civil, profissional e à produção política e/ou intelectual, científica (...). Enfim, os papéis de qualquer cidadão que apresente interesse para a pesquisa histórica, trazendo dados sobre a vida cotidiana, social, religiosa, econômica, cultural do seu tempo em que viveu ou sobre sua própria personalidade e comportamento.

Analisando as definições, subtende-se que as pessoas físicas formam arquivos, pois durante a vida exercem funções e produzem e acumulam documentos que atestam seu curso

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de vida. Alguns arquivos públicos recebem a documentação pessoal de homens que exerceram funções públicas (políticos, administradores, etc.) ou participaram da vida social e cultural de sua comunidade (escritores, jornalistas, dentre outros). Esse é o caso do APPI, e tal documentação merece tratamento arquivístico para que novos vieses da pesquisa histórica do Estado possam surgir, ou colaborar na elucidação das fontes tradicionais da pesquisa local.

O FUNDO ARQUIVÍSTICO JOEL DE OLIVEIRA

Optamos por inicialmente chamar de Arquivo Joel de Oliveira o conjunto documental do referido jornalista, que está sob a salvaguarda do APPI, pois segundo Camargo (2009, p. 28), para os arquivos pessoais, “o mais correto seria dizer arquivos de pessoas (desta ou daquela pessoa, tratada individualmente)”, pois isso facilita o processo de individualização do conjunto documental e evita conflitos com expressões análogas. Para entendermos a forma de organização do Arquivo Joel de Oliveira, primeiro temos que analisar um termo fundamental dentro da Arquivologia: o conceito de fundo. Segundo o Dicionário Brasileiro de Terminologia Arquivístico (2005, p. 87), considera-se fundo arquivístico: “conjunto de documentos de uma mesma proveniência”, isto é, o conjunto de documentos (produzidos e acumulados) durante a trajetória institucional e/ou de vida de um produtor (pessoa física ou jurídica/pública ou privada). Para descrição do fundo, utilizamos a ISAD (G): norma geral internacional de descrição arquivística, 2ª edição, editada pelo Conselho Internacional de Arquivos que fornece os elementos para descrição de fundos arquivísticos. A mesma recebe a denominação de descrição multinível em razão de partir do geral para o particular. Aplicando a metodologia proposta, temos inicialmente a seguinte ficha:

Fundo: Joel de Oliveira. Notação: BR APPI JO. Datas-limite: 1900-1943. Dimensão e suporte: quatro metros lineares de documentos, principalmente textuais, composto de 92 volumes (códices) com recortes de artigos de jornais nacionais; 53 cartões de compromissos sociais, 61 de felicitações, 18 de cartões de temas gerais, 124 telegramas, 103 cartões-postais, três álbuns de Paris e um de Londres, dois cadernos de anotações pessoais. Nome do produtor: Joel Genuíno de Oliveira

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Biografia: Joel Genuíno de Oliveira (1906 – 1969), mais conhecido como Joel de Oliveira, piauiense de Campo Maior. Poeta, historiador e jornalista, é considerado o maior paremiólogo piauiense. Escrevia em quase todos os jornais de Teresina sob o pseudônimo de JobVial. Tinha por hobby colecionar publicações piauienses. Era membro da Sociedade Parnaibana de Expansão Cultural. Histórico de fundo: documentação doada ao APPI na década de 80 (século XX) pela família do jornalista. Situação jurídica: não possui nenhum documento legal que restrinja seu acesso e uso. Sem documento de doação. Âmbito e conteúdo: o fundo possui principalmente recortes de artigos de jornais de circulação nacional principalmente sobre a temática educacional. Tais recortes são importante fonte de pesquisa da história brasileira no período getulista. O fundo possui, também, registro de atividades intelectuais desenvolvidas por Joel de Oliveira, dentre as quais destacamos algumas tipologias: poesias, crônicas e correspondência pessoal (convites, cartões de apresentação e cartas). Avaliação e seleção: a documentação não sofreu processo de avaliação no APPI, por se tratar de fundo pessoal. Incorporações: fundo fechado. Sistema de Arranjo: o fundo foi organizado com base na ISAD (G) do CIA. O quadro de arranjo estabelece as seguintes séries: Periódicos (PE) compreendendo a seguinte Subséries: Artigos de Jornais (AI); a Série Produção Intelectual (PI) com a Subsérie Artigo (AR) e Subsérie Anotações Pessoais (AP), e a Série Correspondência (CO), com as subséries Cartões (CA) e Cartas (CT). Documentação ordenada cronologicamente. Condições do Acervo: facultado ao público sem restrições. Todos os direitos de utilização dos documentos foram transferidos para o Arquivo Público do Piauí. Sua reprodução é permitida, desde que observadas as normas da instituição. Idioma: Português. Instrumento de Pesquisa: Catálogo de recortes de jornais: jornalista Joel de Oliveira (bibliografia sinalética, 1940). Nota: para descrição das unidades documentais (artigos de jornais) utilizou-se a NBR 6023: informação e documentação: referências: elaboração, 2002. Os códices foram etiquetados para facilitar a localização. Os cartões e cadernos de anotações pessoais foram acondicionados em envelopes com etiqueta de identificação e guardados em caixa-arquivo.

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Para composição da notação foi criado o seguinte critério: sigla do país de origem da documentação: BR=Brasil, sigla do órgão a qual pertence a documentação: APPI = Arquivo Público do Piauí; abreviatura do nome do produtor do fundo: JO = Joel de Oliveira; sigla da série: PE = Subsérie Periódicos e da subsérie: AR = Artigo; códice (numerado de forma crescente) e folha e/ou envelope (numeração crescente). Exemplo: BR APPI JO PE/AR Cód. 1/3. Responsável pela Descrição: Solange Hiller Herthz Santos Bezerra, técnica do Arquivo Público do Piauí, em maio de 2007.

METODOLOGIA PARA DESCRIÇÃO DOS CADERNOS DE ANOTAÇÕES PESSOAIS

Iniciamos o trabalho realizando pesquisa bibliográfica, pois Lakatos e Marconi (2009, p. 57) esclarecem: A pesquisa bibliográfica, ou de fontes secundárias, abrange toda bibliografia já tornada pública em relação ao tema de estudo, desde publicações avulsas, boletins, jornais, revistas, livros, pesquisas, monografias, teses, material cartográfico etc., até meios de comunicação orais: rádio, gravação em fita magnética e audiovisuais: filmes e televisão.

As fontes bibliográficas foram analisadas e fichadas, retirando os questionamentos essenciais que permitiram elaborar o corpus do trabalho. Paralelamente, empregamos a observação como forma de coleta de dados. De acordo com Lakatos (2009, p. 76), a observação “não consiste apenas em ver e ouvir, mas também em examinar fatos ou fenômenos que se deseja estudar”. No processo de organização do conjunto documental – em arquivos permanentes - é mister definir o arranjo que segundo Schellenberg (apud Belloto, 2004, p. 135), é o “processo de agrupamento dos documentos singulares em unidades significativas e o agrupamento, em relação significativa, de tais unidades entre si”, ou seja, através do arranjo estrutura-se a ordenação dos documentos provenientes dos arquivos correntes e intermediários. Essa estruturação visa identificar o processo/fluxo documental e facilitar o processo de descrição. Para o Professor David Gracy II (apud Bellotto, 2004, p. 142), o arquivista deve considerar os seguintes pontos para a definição do arranjo:

Proveniência - história da entidade ou biografia do indivíduo produtor do fundo; origens funcionais – atividades específicas das quais os documentam resultam; conteúdo – a extensão dos vários tópicos, eventos e períodos; tipos de materiais.

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Percebemos que o arranjo reflete a vida documental do produtor, desde o momento da criação e/ou acumulação dos primeiros documentos, apresentado o fluxo documental e os tipos documentais do produtor, dentre outras características. O arranjo apresenta a organização da documentação de forma lógica; entretanto, é através da descrição que os dados contidos no conjunto documental tornam-se acessíveis aos pesquisadores, ou seja, pela descrição identificamos o conteúdo do mesmo, sua localização, enfim, seu valor cultural. Lopez (2002, p. 12) realça a importância do processo de descrição comparando-o ao “analfabeto diante de um livro, que ele pode pegar e folhear, mas ao qual não pode ter acesso completo por não possuir meios que lhe permitam compreender a informação”, retificando que a atividade de descrição é imprescindível para o acesso às informações de um fundo documental. A materialização da descrição ocorre através dos instrumentos de pesquisa, ou seja, de ferramentas que disponibilizam as informações de acordo com o nível (instituição/empresa; fundo, grupo; série e unidade documental) e base da descrição (conjuntos documentais amplos; séries; unidades documentais e assunto e/ou corte temático). Para descrição dos cadernos de anotações pessoais do jornalista Joel de Oliveira foi escolhido o catálogo, pois o mesmo demonstra a relação orgânica entre o produtor e suas atividades profissionais e intelectuais. Na apresentação do catálogo – escolhido aqui em formato de tabela para facilitar a visualização - selecionamos os seguintes itens: acervo (produtor do arquivo), código de referência (notação adotada para particularizar o acervo), unidade de arquivamento (acondicionamento do documento), posição no quadro de arranjo, gênero textual, descrição (informações físicas do item e observações sobre o formato de apresentação das informações pelo autor – dados da escrita), referências onomásticas (nomes citados pelo produtor), suporte do documento, técnica de registro, localidade (local de produção), datas (inicial e final), idioma, autor, conteúdo (resumo sucinto das informações de cada página do caderno), estado de conservação e status (acesso ao pesquisador).

REFERENCIAL TEÓRICO

Vivemos na era da globalização e a Internet permite que nos comuniquemos com pessoas que estão a milhares de QUILÔMETROS de distância uma das outras; temos acesso aos fatos praticamente no momento que eles ocorrem, e, por isso, hoje se fala tanto de

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informação e do fácil acesso. O sentido de informação é extenso, e o uso da mesma também. Manuel Castells (apud Vieira, 2008, p. 5) esclarece:

O que caracteriza a atual revolução tecnológica não é a centralidade de conhecimentos e informação, mas A? aplicação desses conhecimentos e desta informação para a geração de conhecimentos e de dispositivos de processamento/comunicação da informação, em um ciclo de realimentação cumulativo entre a inovação e seu uso.

Significa que a informação é usada e reutilizada, gerando novas informações que alimentam novas informações num fluxo contínuo de conhecimento em série. Uma pessoa durante sua trajetória de vida acumula e produz documentos - ou seja, informações (grupo orgânico/mantém relações entre si) que testam momentos de sua vida, suas relações pessoais ou profissionais e seus interesses (hobbies, etc.). São imagens, diários de viagens, anotações de estudos, cartas, recibos ou simples rascunhos. Tais documentos, quando reunidos em conjuntos, formam um arquivo pessoal. De acordo com Lopez (2003, p. 75):

[...] mesmo os documentos que não se enquadram estritamente nas características típicas podem ser entendidos enquanto documentos de arquivos, desde que tenham sido produzidos no decorrer de alguma função inerente à vida do titular (...) e tenham sido preservados como prova de tal atividade.

De acordo com o texto acima, os cadernos de anotações do jornalista Joel de Oliveira são parte de um acervo arquivístico, permitindo o desenvolvimento de atividades de arranjo e descrição arquivística que garante a compreensão e disponibilização de seu conteúdo, facilitando o acesso aos pesquisadores. Para Camargo (2009, 36), os arquivos pessoais possuem “natureza essencialmente instrumental”, ou seja, a capacidade de ajuizar as diferentes atividades do produtor da documentação; não apenas documentos autobiográficos, mas podem abrir inúmeras possibilidades de estudos. Na mesma perspectiva, Bellotto (2004, p. 263) apresenta que “o historiador não analisa o documento pelo documento; antes, utiliza-o como ponte para o passado, ou do arquivo para a realidade”. Dessa forma, ele “capta” as informações contidas nos documentos primários e secundários e as elabora/organiza como conhecimento histórico. Atualmente, a comunidade científica procura os arquivos pessoais visando ampliar o leque de fontes documentais. Nesse mister, a descrição dos cadernos de anotações pessoais do

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jornalista Joel de Oliveira é uma fonte de pesquisa disponível que precisa ser descrita, para que tanto sua história de vida seja conhecida e reconhecida, como para que novas fontes documentais ajudem a contar a “nova história” do tempo e espaço onde Joel de Oliveira esteve inserido. Um caderno de anotação pessoal é um item informacional importante dentro do arquivo pessoal. Não o caderno em si (objeto), mas o que o mesmo pode significar, surgindo vários questionamentos ao longo da sua leitura. Siqueira (2009, p. 17) diz sobre o caderno: “ajuda na materialização, na percepção e na afirmação de uma outra postura possível a se assumir no mundo”, ou melhor, aponta os possíveis “caminhos” que o produtor trilhou para preparar um artigo, livro, peça. De certa forma quem lê o caderno invade a privacidade do autor, descobre suas angústias, dúvidas, alegrias, maneira de escrever, suas marcações no papel, o seu sentir, pensar e olhar; o que o autor Siqueira (2009, p. 18) denomina de “portal para um outro tempo possível”, o tempo do produtor do caderno.

CATÁLOGO: CADERNO DE ANOTAÇÕES PESSOAIS DO ARQUIVO JOEL DE OLIVEIRA

Devido ao grande volume de informações de cada caderno, optamos por apresentar o resumo de um dos cadernos analisados e descritos. O catálogo completo estará disponibilizado na Hemeroteca Joel de Oliveira - Arquivo Público do Piauí/Casa Anízio Brito (Rua Coelho Rodrigues, 1016, Centro, CEP. 64000-160, Teresina-Piauí, Fone (86)3221-5541.

Caderno 1

Acervo Jornalista Joel de Oliveira Código de referência Envelope número 1 Unidade de Arquivamento Anotações Pessoais (AP) Gênero documental Textual Título [Caderno 1] Descrição Caderno contendo 72 folhas, sendo paginado pelo autor até a folha 51. Tamanho: 21cm x 13,5cm, encadernação em espiral. Uso de canetas de cores diferentes (preta e azul). Alguns assuntos apresentam títulos. Também é comum, no início de um assunto, a

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primeira letra ser cortada com um traço. Nas folhas 44-45, os assuntos estão organizados cronologicamente (data do lado esquerdo. Comum iniciar assunto com um travessão e colocar um traço grande no meio da linha para indicar mudança de tema. O autor denomina as páginas 50-55 de “Adágios versificados”, e as mesmas são numerados, e algumas são marcados com o sinal de “+”. Folha 68 apresenta uma lista de dívidas. Nas folhas 69 a 72 consta um índice onde o autor elencou 88 assuntos. Assuntos principais: Anátemas, Astronomia, Biografia, Curiosidade, Educação, Etimologia, História, Legislação, Língua, Política, Provérbios, Sociedade. Português típico da primeira metade do século XX (consoantes dobradas, uso de “y” no lugar do “i”). Referências onomásticas Addis-Abeba (Etiópia) Albano (poeta) Alemanha Amazonas (rio) Ana Neri (Cruz Vermelha Brasileira) Anita Garibaldi (Guerra dos Farrapos) Antonia de Arêa-Leão Antonio Carlos Simoens da Silva Antonio José de Moraes Durão Argos Arquimedes Caixa Beneficente dos Servidores do Estado do Piauí Cambray Batista Canal de Suez Suporte Papel Técnica de registro Manuscrito Localidade [Teresina] Data inicial [19--] Data final [19--] Idioma Português e latim Autor Joel Genuíno de Oliveira

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Conteúdo do documento BR APPI JO PI AP Cad 1/01 Biografia do Conselheiro Antonio Saraiva BR APPI JO PI AP Cad 1/02 Expressões latinas BR APPI JO PI AP Cad 1/03 Expressões latinas BR APPI JO PI AP Cad 1/04 Biografia do matemático Arquimedes BR APPI JO PI AP Cad 1/05 Biografia do político brasileiro, Visconde Almeida Garret BR APPI JO PI AP Cad 1/06 Etimologia de palavra (voto de minerva) BR APPI JO PI AP Cad 1/07 História do Brasil (proclamação da República), José do Patrocínio e Capistrano de Abreu BR APPI JO PI AP Cad 1/08 Biografia de José do Patrocínio BR APPI JO PI AP Cad 1/09 Biografia de D. Pedro I, D. João VI, Carlota Joaquina, Maria da Glória. Princípio de Arquimedes BR APPI JO PI AP Cad 1/10 Etimologia de palavra (nababos) inclui Pasteur e ministro mongol (Duruy) BR APPI JO PI AP Cad 1/11 Anátema. Cita o poeta repentista José Pereira da Silva e o presidente do Maranhão, Pedro José da Costa Barros BR APPI JO PI AP Cad 1/12 Provérbios. Etimologia (“assinar de cruz”) BR APPI JO PI AP Cad 1/13 Etimologia (bombordo, estibordo, mausoléu). História (Jardins Suspendos da Babilônia) ... BR APPI JO PI AP Cad 1/68 Finanças pessoais (dívidas com Botica do Povo e D. Maria) BR APPI JO PI AP Cad 1/69 Índice ... BR APPI JO PI AP Cad 1/72 Índice Estado de conservação Bom Status Disponível para consulta

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CONSIDERAÇÕES FINAIS

Os arquivos pessoais são conjuntos documentais desafiadores para os arquivistas, primeiro porque não seguem a lógica institucional baseada em estrutura e função, mas são orientados por interesses pessoais, relações de amizade e vivência profissional; e segundo porque podem colaborar na elucidação de fontes históricas tradicionais. Os cadernos de anotações pessoais do Joel de Oliveira fornecem um conjunto de informações que justificam a alcunha do mesmo: maior paremiólogo piauiense; como também diversas informações que podem colaborar nos estudos históricos piauienses, tais como: biografias e informações sobre as primeiras missas piauienses. Os cadernos pessoais do jornalista Joel de Oliveira são um importante patrimônio documental e cultural, pois agregam valores que caracterizam parte da história piauiense do século XX, merecendo, portanto, preservação e divulgação.

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ANEXO A – Imagem dos cadernos de anotações pessoais

BR APPI JO AP Cad 1/69 Índice

Foto: autora

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ENTRE DORES E AMORES: O CROCHÊ COMO LINGUAGEM NO CADERNO DIÁRIO DE REGINA RODRIGUES

Tatiana Campagnaro161 Aparecido José Cirillo162

INTRODUÇÃO

Este artigo integra a pesquisa de mestrado que investiga o processo de criação da artista plástica mineira Regina Rodrigues (1959-). Radicada em Vitória-ES desde a década de 1990, Rodrigues utilizou como principal meio em suas criações a linguagem cerâmica. A artista apropriou-se das técnicas desse fazer milenar e passou a utilizá-las explorando seu potencial não funcional, voltando seu interesse para as características próprias dos materiais utilizados. Suas experiências estéticas se distanciam da cerâmica utilitária e artesanal e se inserem no campo tridimensional da Arte Contemporânea. Neste estudo, embasado na crítica genética, analisamos as três primeiras páginas escritas de um caderno, onde Rodrigues faz os primeiros apontamentos sobre sua experiência com um novo meio de expressão, o crochê. Buscamos por vestígios do processo de criação que nos permitiam uma melhor compreensão da tessitura do movimento criador.

A MATERIALIDADE DO CADERNO E A NATUREZA DAS ANOTAÇÕES

Louis Hay (1999), ao fundamentar a crítica genética, propôs uma classificação dos objetos segundo suas funções. Nessa proposta, o caderno como documento integra um grupo composto por objetos que tiveram suas páginas submetidas a um processo de fixação por meio de costura, grampeamento ou brochura, com o intuito de assegurar a disponibilidade de todos os elementos ao mesmo tempo. As páginas analisadas neste estudo pertencem a um caderno de capa dura vermelha (Figura 01), um pouco menor que o tamanho A4 (248X190 mm). Sua estrutura interna possui

161 Universidade Federal do Espírito Santo. 162 Pesquisador vinculado ao GEPPC/LEENA-UFES (grupo de pesquisa em Processo de Criação); Professor Permanente do Programa de Mestrado em Artes da UFES e artista plástico. Graduado em Artes pela Universidade Federal de Uberlândia (1990), tem mestrado em Educação pela Universidade Federal do Espírito Santo (1999) e doutorado em Comunicação e Semiótica, pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (2004). Atualmente é professor Associado da Universidade Federal do Espírito Santo. Desenvolve pesquisas com recursos do CNPQ/CAPES/FAPES. 388

100 folhas brancas de gramatura encorpada (56 g/m²), sem pauta e sem número, onde apenas 28 foram utilizadas pela artista. Para facilitar nossa análise, atribuímos numeração às páginas do caderno, anverso e reverso, de 1 a 56 (incluindo as páginas em branco). Como Rodrigues utiliza na maioria das vezes apenas as páginas do anverso, ou seja, as páginas impares à direita da brochura, nosso foco se volta para as páginas 1, 3 e 5.

Figura 1 – Capa do caderno vermelho de Regina Rodrigues

Fonte: foto Tatiana Campagnaro

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Para Hay (1999, p.7), o caderno se configura como um “[...] espaço duplamente interior [...]” por ser suporte para uma escrita intelectual privada. Hay afirma ainda que esse aspecto discreto o torna propício para experimentação e risco, e que essa escrita íntima, na maioria das vezes se desenvolve de forma fragmentária e heterogênea (1999). O conteúdo do caderno de Rodrigues se encaixa perfeitamente na definição de Hay (1999). A riqueza de informações se distribui ao longo das páginas em uma diversidade de códigos: textos verbais, desenhos, colagens de e-mails, convites de exposição, bilhetes de viagem e um adesivo para exame cardiológico que também aparece colado na capa do caderno. Neste suporte, os registros textuais também não são uniformes, aparecem em algumas páginas à caneta, ora na cor azul, ora na cor vermelha. Porém, em sua maioria, foram feitos a lápis163, com uma caligrafia miúda e inclinada, que sugere a velocidade do gesto que as gravou sobre o papel. Esses registros se apresentam em alguns momentos como uma lista de palavras e frases e, em outros, como textos contínuos que narram ou descrevem pensamentos, reflexões ou situações específicas, acompanhados ou não por desenhos. Estes textos relatam experiências com novos materiais e técnicas; descrevem formas; demonstram o encantamento da artista com novas descobertas; apontam para futuros projetos; falam de limitações, dores físicas e sentimentos pessoais como saudade e esperança. Neste caderno, a vida cotidiana e o projeto poético de Rodrigues habitam o mesmo território, onde o sensível impede qualquer delimitação de fronteira entre vida e obra. A presença constante de datas acompanhando as anotações, geralmente localizadas na parte superior da página, aproxima este caderno a características próximas a de um diário. Segundo Hay (1999, p. 7), “[...] A característica distintiva do diário é de ordem funcional: constitui-se pela malha da escrita no tempo. [...]”. O diário, como um reservatório de textos, revela uma interação entre a noção de tempo e de memória. Seus textos têm a capacidade de armazenar o vivido, guardam uma escrita passional, que reflete, do ponto de vista das emoções, o modo como o artista percebe o mundo. Entendendo o caderno em análise como um suporte para armazenagem da memória, investigamos o recorte temporal desses escritos. Observando as datas registradas na primeira e na última página, concluímos que o tempo no presente caderno abrange o período que se estende do início de 2007 a meados de 2009. Percebemos também que estes registros mantêm uma regularidade constante entre os meses de fevereiro e agosto de 2007. A partir deste

163 Sua escrita a lápis foi realizada em um tom muito claro, o que dificultou a documentação dessas páginas por meio de registro fotográfico ou escaneamento.

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momento, a artista fez uma pausa abrupta e longa em seus registros, só retomando os apontamentos em 10 de abril de 2009. Comparando este recorte temporal do caderno com a produção artística de Rodrigues no mesmo período, constatamos que: o início do caderno em 2007 coincide com as primeiras experiências da artista/ceramista com crochê; o intervalo de tempo sem registro é o período onde Rodrigues realizou Coluna (Figura 02), seu primeiro trabalho em crochê com fio de cobre, exposto na mostra Nomadismo e Territorialização (2008). Com a retomada da escrita em 2009, a artista discorreu sobre a produção pertencente a série Gozo (Figuras 03 e 04), apresentadas na exposição De Amores e Utopias (2009), onde trabalhou a cerâmica associada ao crochê com fio de cobre.

Figura 2 – Coluna, primeiro trabalho realizado por Regina Rodrigues em crochê com fio de cobre. Reapresentado na exposição Uma oleira de vida inteira, Galeria de Arte Espaço Universitário, 2015

Fonte: fotos Ari Oliveira

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Figuras 3 e 4 – Regina Rodrigues, Gozo 1 e Gozo 2, cerâmica e crochê com fio de cobre, Galeria Ana Terra, 2009

Fonte: fotos cedidas pela artista

Após este olhar mais amplo sobre o caderno, voltamos nossa atenção para suas três primeiras páginas, onde a artista inicia os apontamentos sobre essa nova experiência utilizando o crochê como linguagem plástica. Para uma maior clareza, utilizaremos aspas para destacar as palavras retiradas do texto da artista que se inserem em nossos comentários.

O CROCHÊ COMO LINGUAGEM NO CAOS DAS PRIMEIRAS PÁGINAS

Diferente dos demais textos verbais deste caderno, as três primeiras páginas escritas, trazem uma lista de palavras e pequenas frases, muitas vezes, conectadas por setas ou destacadas por contornos circulares e retangulares. As palavras escritas a caneta vermelha sob um título em azul, “Reunião 02/07 (anotações e comentários)”, não nos possibilitou identificar que tipo de reunião se tratava, nem mesmo de traçarmos uma relação precisa entre as palavras ali contidas (Figura 05). A artista articulou suas anotações de forma livre, em uma

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escrita fragmentada que mais sugere do que afirma seus pensamentos, o que não nos permitiu ter clareza sobre o tema ao qual se referia:

Figura 5 – página 1 do caderno vermelho de Regina Rodrigues

Fonte: foto Tatiana Campagnaro

Foi somente em um trecho da parte inferior da página 9 (Figura 06), que as anotações da artista confirmaram nossa suspeita quanto às proposições abordadas no emaranhado das três primeiras páginas.

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Figura 6 – Imagem e transcrição de trecho da página 9 do caderno vermelho de Regina Rodrigues

Fonte: foto Tatiana Campagnaro

Por que tecer? Tecer pra que?

Esse processo me levou a escrever, a ter um caderno de anotações, a pensar, a fazer e a pensar, um contínuo processo de ir e vir.

Um novo caminho com novas possibilidades.

Este trecho confirma nossa suposição que esse caderno se coloca como um confidente para a artista. Rodrigues, que até então desenvolvia seus trabalhos plásticos na cerâmica, nesse momento, experimenta um novo meio de expressão. O crochê, palavra que aparece escrita sem destaque entre outras na primeira página, se revela como este meio, “um novo caminho com novas possibilidades”. As indagações feitas pela artista nesse trecho do caderno, “Por que tecer? Tecer pra que?”, revelam que Rodrigues não tinha total consciência dos motivos que a conduziam nessa nova experiência, nem de onde pretendia chegar. Entretanto, estas incertezas a motivaram a escrever. Após a confirmação de que as anotações da artista abordavam suas reflexões sobre sua nova aventura com a tecelagem, retornamos às palavras inseridas na dinâmica caótica das primeiras páginas. Como se fossem pontas de um iceberg, esses escritos trouxeram à superfície aspectos, direções e sentidos no projeto poético da artista. Essas primeiras anotações, feitas de forma aleatória e aparentemente desconectas, começam a se relacionar e indicar possíveis pontos de reflexão da artista. Rodrigues iniciou seus apontamentos com o nome do escultor romeno Brancusi. Não podemos afirmar o que levou a artista a registrar o nome desse pioneiro da escultura abstrata, mas podemos encontrar elementos na poética de Rodrigues que dialogam com questões pertinentes à obra de Constantin Brancusi (1876-1957). Brancusi, segundo Argan (1992), ao se libertar da monumentalidade e da técnica prodigiosa de seu mestre Rodin, buscou captar a essencialidade plástica das formas absolutas. Para Read (2003) a forma em Brancusi se

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desenvolveu sob os ideais de harmonia universal e precisão para com os materiais. O autor explica que “[...] a obra de arte toma forma conforme a energia criativa do artista contente com o material de seu ofício” (READ, 2003, p.77). Podemos observar, nos trabalhos em cerâmica de Rodrigues que antecedem a data do presente caderno, uma forte relação entre forma, gesto e matéria. Rodrigues desafiou os limites da argila como matéria prima da cerâmica, explorando suas características essenciais como cor e plasticidade. Outro ponto que pode ser associado a Brancusi e que foi abordado em uma entrevista com Rodrigues, é o incomodo que os tradicionais cubos usados pelas galerias causaram na artista no início de sua carreira, despertando-lhe o desejo de buscar outras formas de montagem para seus trabalhos (RODRIGUES, 2014). Como segundo tópico da página, aparece a palavra “Ambiguidade”, de onde bifurcam duas linhas que conduzem a outras palavras, seguidas de uma observação entre parênteses: “técnica (fazer feminino)” e “forma (desafiadora)”. Com essa duplicidade de sentidos, Rodrigues nos sugere duas linhas de pensamento: uma ligada à técnica e outra ligada à forma. São diversos tópicos, palavras e frases nessas três primeiras páginas escritas que podem se relacionar com estes elementos. Conduzimos nossa investigação por essa primeira linha de pensamento por supormos que a artista refletisse sobre a função do crochê enquanto técnica. Rodrigues expos a técnica como um “fazer feminino” e o tecer, como um “fazer popular” e “artesanal”. Complementou escrevendo que o crochê, com sua “carga de utilidade”, está associado ao “uso doméstico”. Se pensarmos que “[...] o artista é um captador de detritos da experiência, de retalhos da realidade [...]”, como afirma Salles (2001, p. 97), podemos supor que Rodrigues estivesse associando a técnica do crochê a um fazer tradicional vinculado a valores simbólicos e ideológicos de uma cultura. Possivelmente algo que remeta a suas memórias de infância no triângulo mineiro, região com registros de tradição familiar ligada a produção de fibras, fios e tecidos (CAVALCANTE, 2014). Em entrevista, Rodrigues relatou que cresceu em meio a rocas de fiar e que aprendeu a fazer roupas de boneca em crochê ainda criança. (RODRIGUES, 2015). Ainda refletindo sobre o uso do crochê, Rodrigues escreveu “quase foge da questão da arte” e complementou no tópico abaixo “falta de utilidade”. A nosso ver, os pensamentos da artista transitavam em um campo delicado da Teoria da Arte, mais especificamente, na fronteira entre Arte e Artesania. Não pretendemos aqui nos aprofundar nessa questão, buscamos apenas trazer à tona possíveis reflexões da artista.

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Na página seguinte (página 3) Rodrigues continuou suas considerações sobre esse tema e escreveu em dois tópicos seguidos: “pretensão de obra de arte” e “experiência estética muito grande”. Vale aqui destacar que a experiência estética envolve uma relação com a forma, palavra que apareceu juntamente com a técnica, ligada à palavra ambiguidade. Nesse sentido, acreditamos que em suas ponderações, estudava a possibilidade da nova experiência com o crochê adquirir o status de obra de arte, mesmo sendo um fazer artesanal. Na terceira página (página 5) a artista se perguntou: “Qual é a questão artística?”. Como se fosse uma resposta lógica, colocou logo abaixo em um diagrama as frases “Diálogo com as coisas. Tricotando - passando a limpo”. Na sequência escreveu “artista-faz”, “alguém tem que explicar aquilo”. Até que ponto a obra de arte precisa de uma explicação? Com uma seta, Rodrigues continuou “fruição e não explicação”. Essa sequência de tópicos nos leva crer que a artista preferiu se deixar levar pelas novas experiências ao invés de procurar explicações para o que fazia. Voltando à primeira página, ainda vinculada a técnica, porém abordando a manualidade, a artista escreveu “trabalho-tátil (relação com ele)” e mais abaixo usou a palavra “tatialidade”. Visto que, a palavra tatialidade não foi encontrada no dicionário, acreditamos que a intenção de Rodrigues tenha sido usar a palavra tatilidade – faculdade de sentir ou de ser sentido pelo tato (MICHAELIS, 2015). Provavelmente, desejava indicar o contato físico, a relação imediata entre a artista e a matéria em um trabalho que envolvia a “repetição no fazer”, se referindo a repetição do gesto na criação dos pontos que dão origem a forma. O contato físico com a matéria é uma característica que a artista também vivenciava em suas criações na cerâmica, onde os trabalhos surgem diretamente da manualidade de quem manipula a matéria. Por sua vez, a repetição é um elemento bastante explorado pela artista em várias de suas obras em cerâmica. Não só na repetição do gesto, mas também na repetição de módulos para criar o objeto final. Gravetos (1993), Contato (1997), Prospecção (1999), Em torno de... (2002), são algumas de suas obras que possuem essa característica. Nesse contexto, os pontos do crochê se aproximam dessa função de módulo que se repete na conformação do objeto final. Rodrigues colocou essa “relação intima do fazer” como uma “etapa estratégica” e com uma seta indicou que isso era um “programa”. Ou seja, o contato com a matéria, o toque íntimo com a linha, a repetição do gesto são, nas palavras da artista, “um fazer que vai se moldando q/ vai se limitando”. Rodrigues usou entre parênteses a palavra “perturba”, mas é possível inferir que, a dúvida e a incerteza que a perturbavam se constituíam no desafio que a alimentava. A artista se permitiu conduzir o fazer em um território livre, aberto para o novo, o

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que foi registrado por ela na frase “onde tem um não saber – permite q/ ele se desenvolva”. Rodrigues ainda usou a palavra “dispretenção” [sic] (na ortografia correta, “despretensão”), ausência de ambição (MICHAELIS, 2015) e afirmou que esta é “requerida pela coisa (intimidade)”. A própria artista aponta esse campo aberto, “o construindo fazendo” como uma “tendência do projeto”. Ainda na página 3 (Figura 07), ela usou a expressão “escultura de linha-escultura”. Com uma seta, partindo da palavra linha, conduziu a leitura para a expressão escrita abaixo, “própria do desenho”.

Figura 7 – Detalhe da página 3 do caderno de anotações de Regina Rodrigues

Fonte: foto Tatiana Campagnaro

A maneira como a artista escreveu sugere uma reflexão sobre a função da linha, que é um elemento básico do grafismo, importante na composição visual. Definida por Kandinsky (1970) como uma sucessão de pontos ou como o rastro de um ponto em movimento, a linha é um registro gráfico que pertence originalmente ao desenho. Mas quando pensamos em “escultura de linha”, como escreveu Rodrigues, esta não mais pertence ao plano bidimensional. A linha do desenho nos devaneios da artista passou a ser o fio, em algumas experiências, formado por fibras longas delgadas e retorcidas de material têxtil, e em outras, pelo metálico e resistente fio de cobre. Podemos aqui fazer um paralelo com um questionamento de Kandinsky em suas análises sobre os elementos da pintura. “Em que momento desaparece a linha como tal e nasce o plano?” (1970, p. 90). Para Rodrigues, a linha ou o fio, tecido em “redes” pelos pontos do crochê, cria o plano. A “linha é o veículo” que conduz o gesto na criação do volume da escultura. Rodrigues então, “coloca p/ a linha uma tarefa que não é dela”, a tridimensão. Durante a análise das primeiras páginas observamos o uso recorrente da palavra “tempo”. Na primeira página, de forma esquemática, quase como em um fluxograma, Rodrigues compara o tempo do fazer cerâmico com o do tecer, nesse caso no crochê (Figura 08).

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Figura 8 – Detalhe da página 1 do caderno de anotações de Regina Rodrigues

Fonte: foto Tatiana Campagnaro

Neste esquema, a nosso ver, Rodrigues comparou a relação estabelecida entre o artista e o tempo de produção nos diferentes meios: cerâmica e tecelagem. Técnicas que proporcionam ao artista experiências distintas - “Tempos diferentes” na “dedicação” do artista. Na cerâmica, além do tempo dedicado a modelagem existe um tempo de “espera” de secagem e queima que, de certa forma, independe da ação do artista. Portanto a cerâmica tem o tempo da ação e o tempo da espera. Já na tecelagem, esse tempo de espera, que independe da ação do artista, não existe. O tempo é do fazer, está na ponta dos dedos do criador que decide por mais um ponto, ou por aumentar o ponto, ou por desmanchar o ponto. Assim, ponto a ponto, em tempo real, o fio se converte em trama num fazer que, segundo as anotações da artista, é mais suave. Na tecelagem o tempo pertence a ação. Ainda nessa mesma anotação, Rodrigues ligou a palavra “tecer” à seguinte frase “mais a questão do tempo do que a cerâmica”. Mas que tempo é esse? O tempo dedicado por ela a cada uma das técnicas ou o seu momento atual? No final da terceira página a palavra tempo volta a aparecer (Figura 09). Neste apontamento a artista se refere ao “tempo vivido”, um tempo que, segundo Bergson (COSTA, 2015), independe do tempo do relógio. É um tempo tempo-qualidade, tal como aparece na consciência, é o tempo da experiência em virtude das situações e sentimentos que dela decorrem. Logo acima aparece a palavra “expiação”, do verbo expiar, palavra derivada do latim que significa redenção da culpa, um sofrimento, um castigo (FERREIRA, 2004, p. 839). Fazendo uma relação entre os dois termos, poderíamos supor que a artista passasse por momentos difíceis, momentos de provas, onde talvez tivesse que superar alguma dificuldade. Logo abaixo aparece a palavra “diálogo”, que se repete no quadro destacado à direita com a frase “Tempo do diálogo com a obra”, como se esse tempo de provação fosse ocupado pelo seu relacionamento com o trabalho em andamento.

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Figura 9 – Regina Rodrigues, detalhe da página 5 do caderno de anotações

Fonte: foto Tatiana Campagnaro

Em outro quadro destacado nesta mesma folha, aparecem as frases, “Diálogo com as coisas” e “Tricotando – passando a limpo” (Figura 10). Mais uma vez, os escritos da artista dão margem para associação do tempo dedicado a tecelagem com questões pessoais. Algo que precisa ser entendido, esclarecido, resolvido, passado a limpo.

Figura 10 - Regina Rodrigues, detalhe da página 5 do caderno de anotações

Fonte: Foto Tatiana Campagnaro

Outro trecho envolvendo a palavra tempo chama nossa atenção e nos fornece pistas sobre os pensamentos, anseios e desejos da artista (Figura 11). “Formatos inesperados”, indicam que artista não planejava as formas. Pelo contrário, surgiam com o fazer, que lhe despertava o desejo de “trabalhar até o tempo acabar”. Novamente, voltamos a questão: que tempo é esse? Nessa ação, o “fio” conecta a artista ao fazer, mas fundamentalmente, a conecta com um desejo maior expresso na frase: “existe um projeto interno – família”.

Figura 11 – Regina Rodrigues, detalhe da página 3 do caderno de anotações

Fonte: Foto Tatiana Campagnaro

Por fim, o caos das anotações nas primeiras páginas confirmou nossas suspeitas sobre o conteúdo deste caderno. Nele, a artista registrou o tempo presente. Tempo este, que não separa a artista, a ceramista ou a tecelã da pessoa Regina Rodrigues. Entre dores e amores, Rodrigues tece, sonha, deseja, se desafia, se descobre, se molda, se constrói. Suas

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experiências com o crochê e as tendências do seu projeto poético sustentam o seu projeto de vida.

REFERÊNCIA

ARGAN, Giulio Carlo. Arte moderna. São Paulo: Companhia das Letras, 1992

COSTA, Virginia; MEDEIROS, Marcelo. O Tempo vivido na perspectiva Fenomenológica e Eugène Minkowski. Disponível em: . Acesso em: 30 set. 2015

CAVALCANTE, V. P.; KANAMARU, A. T. A tradição familiar de entrelaçar fios em contexto urbano: investigação sobre produção artesanal têxtil familiar em Brasília (DF). São Paulo: Artigo apresentado no 2° congresso têxtil e de moda 2014. Disponível em: . Acesso em: 07 set. 2015

“expiação”. FERREIRA, Aurélio Buarque de Holanda. Miniaurélio: minidicionário da língua portuguesa. Curitiba: Posigraf, 2004, p. 389.

HAY, Louis. A montante da escrita. Tradução de José Renato Câmara. Rio de Janeiro: Fundação Casa Rui Barbosa, 1999.

KANDINSKY, Wassily. Ponto, linha, plano: contribuições para análise dos elementos picturais. Lisboa: Ediciones 70. 1970.

“tatilidade”. MICHAELIS. Moderno Dicionário da Língua Portuguesa. Disponível em: . Acesso em: 10 dez. 2015.

“despretensão”. MICHAELIS. Moderno Dicionário da Língua Portuguesa. Disponível em: . Acesso em: 15 dez. 2015. SALLES, Cecilia. Gesto Inacabado: processo de criação artística. São Paulo: FAPESP, 2001.

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READ, Herbert. Escultura moderna: uma história concisa. São Paulo: Martins Fontes, 2003.

RODRIGUES, Maria Regina. Maria Regina Rodrigues: depoimento [abr. 2014]. Entrevistador: Tatiana Campagnaro Martins. Vitória, 2014. 1 arquivo MP3 (23:59 min.).

MARIA, Regina Rodrigues: depoimento [set. 2015]. Entrevistador: Tatiana Campagnaro Martins. Vitória, 2014. 1 arquivo MP3 (23:59 min.).

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SOBRE AS ORGANIZADORAS

Cecilia Almeida Salles é Prof.ª Titular do Programa de Pós-Graduação em Comunicação e Semiótica da PUC/SP. Coordenadora do Grupo de Pesquisa em Processos de Criação. Graduação em Língua e literatura inglesas pela PUC/SP; mestrado e doutorado em Linguística Aplicada e Estudos de Línguas pela mesma universidade. Concluiu o pós- doutorado no Departamento de Cinema, Rádio e Televisão da Escola de Comunicação e Artes da Universidade de São Paulo. Atuando, principalmente, nas seguintes áreas: comunicação, processos de criação, semiótica, crítica genética e artes.

Sílvia Maria Guerra Anastácio é Prof.ª Titular do Instituto de Letras da Universidade Federal da Bahia (UFBA); Bolsista de Produtividade em Pesquisa do CNPq – Nível 2; Docente Permanente dos Programas de Pós-Graduação em Literatura e Cultura e Língua e Cultura do Instituto de Letras da UFBA; Coordenadora do Grupo de Pesquisa Tradução, Processo de Criação e Mídias Sonoras (PRO.SOM): Estudos de Tradução Interlingual e Interartes. Graduação em Letras com Especialização em Tradução, Interpretação e Revisão pela PUC-RJ; mestrado em Literaturas de Língua Inglesa pela UFRJ; doutorado em Comunicação e Semiótica pela PUC-SP; pós-doutorado em Literatura Comparada pela UFMG; pós-doutorado em Mídias Digitais pela PUC-SP. Atua, frequentemente, nas seguintes áreas: processos de criação em diversas linguagens; tradução; intermidialidade; estudos interartes; acessibilidade; estudos de narrativas e produção de mídias sonoras.