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10.5935/0103-4014.20180024 Machado de Assis e sua crítica Pedro Meira Monteiro I

circulação e a recepção dos textos extrapolam o âmbito literário” (p.14). A de Machado de Assis são temas com- Essas quatro figuras pontuam os quatro plexos. O mais canônico dos escritores capítulos deste livro, que é a versão re- nacionais é também um dos mais sinto- trabalhada de uma tese de livre-docência máticos. Nele, estão cifradas as grandes defendida em 2013 na Universidade de questões que balizam a imaginação sobre São Paulo. São elas: (1) o primeiro Ma- o Brasil e sua literatura: regional e glo- chado esquadrinhado pela crítica, ainda bal, afrodescendente de inspiração euro- quando o criador do Brás Cubas vivia, peia, criador de narradores que minam no tempo em que Sílvio Romero e José o seu próprio poder, ora explicando o Veríssimo esgrimiam em torno da qua- país e sua complicada inserção mundial, lidade e do caráter nacional do autor; ora parecendo distanciar-se dos limites (2) o mito nacional, que se confunde à nacionais. Machado de Assis não dorme constituição de uma esfera cultural pró- em paz: seu corpo e sua memória são pria da era Vargas, e em torno do qual se chamados a auxiliar as mais diferentes forja todo um novo vocabulário crítico; causas e, não raro, o escritor se converte (3) o Machado de Assis “internacional”, num grande monumento escolar, embo- que começa a ser traduzido, entre ou- ra em outras ocasiões esse Machado ima- tros idiomas, para o inglês, e que não ginário se mantenha calado, como uma se entende sem a importante virada in- esfinge que nos olhasse de cima.1 terpretativa de Helen Caldwell; e (4) fi- Existem estudos competentes sobre nalmente o Machado de Assis “realista”, a recepção do autor, assim como longas figura que convida à discussão da com- listagens da interminável e muitas vezes plexa relação do autor com seu tempo inclassificável fortuna crítica machadia- e seu local, plano em que se projetam na. Contudo, faltava um estudo que des- os grandes debates que ainda hoje orien- se conta não só das ondas da recepção tam os estudos machadianos. – positiva ou negativa, admirada ou irri- Um dos muitos méritos de Macha- tada, colada ao texto ou capaz dos mais do de Assis, o escritor que nos lê está em extraordinários voos teóricos –, como revelar que alguns dos problemas que também das figuras que vão se forman- julgamos recentes estão mergulhados na do, à medida que a história lança novos longa duração, e muitas vezes estão já e velhos reptos para a compreensão do no nascedouro da crítica sobre Macha- autor carioca. Machado de Assis, o escritor do. No início do primeiro capítulo, por que nos lê se impõe à crítica machadiana, exemplo, ficamos sabendo que o des- por ter identificado e desenvolvido, com concerto que a chamada segunda fase da precisão e clareza, as inflexões “na per- ficção machadiana causa tem um antece- cepção e no entendimento da constru- dente na reflexão coeva daquilo que viria ção de quatro figuras do autor, em que a identificar-se posteriormente como sua os estudos críticos são agentes e sinto- primeira fase. A suposta falta de atenção mas de transformações que muitas vezes aos aspectos locais, ou a falta de “carna-

ESTUDOS AVANÇADOS 32 (92), 2018 355 lidade” dos personagens, já eram apon- figura de exceção justamente pelo “efei- tadas pelos críticos da década de 1870, to equívoco” (p.64) de sua obra, que indicando que Machado de Assis seria, parece dar razão às interpretações mais como várias vezes sugere este livro, per- diversas, por vezes mesmo opostas. cebido como um “corpo estranho” na O segundo capítulo abrange a pro- paisagem literária brasileira. Podemos gressiva consagração do autor, desde o até nos perguntar se a questão de um embaraço que o corpo estranho causou Machado de Assis “afrodescendente” entre as hostes modernistas, até o surgi- já não estava armada na percepção do mento de uma tríade que estabeleceria “Doutor Fausto”, que resenha nada me- um novo plano interpretativo: Augusto nos que Ressurreição e vê, no romancista Meyer, Lúcia Miguel Pereira e Astrojil- estreante, o impasse entre a “limpidez da do Pereira. De formas diversas, a biogra- escrita” e a origem pobre do autor “tri- fia explicava a literatura, mas eram tam- gueiro” (p.26). bém os mecanismos profundos de uma O primeiro capítulo mostra como, sociedade patriarcal que vinham à tona nos embates entre José Veríssimo e Síl- nas novas análises de Machado de Assis. vio Romero, e na posição menos extre- Como que elevando a crítica anterior a mada de Araripe Júnior, já se arma a novo patamar, e enfrentando a figura que tensão que atravessaria a leitura da obra incomodara ou espantara os modernis- machadiana, jogada, na imaginação crí- tas, os novos críticos atribuíam, ao autor tica, entre o compromisso com o meio de , estatuto de criador local e a inspiração estrangeira, que logo genial, atento às armadilhas das paixões será associada ao humor de matriz in- humanas e ao tecido social em que elas glesa. Um dos pontos fascinantes do florescem. A excentricidade machadiana, estudo de Hélio Guimarães é como ele com seu lugar deslocado na linhagem da nota que, ao errar o alvo, os críticos por literatura nacional, reencontrava agora vezes acertavam nas questões. Assim, a explicações de ordem psicológica, e sua virulenta crítica de Romero, que vê um novidade seria compreendida a partir de Machado anacrônico e imitativo, forne- um impasse existencial que foi por mui- ce pasto para a crítica futura, que viria a to tempo associado à crise dos quarenta dividir-se entre a detecção da forma so- anos, com a célebre doença que levou cial entranhada na ficção, as fontes lite- Machado e Carolina a Nova Friburgo, rárias e filosóficas de corte universalista, de onde o autor regressaria com a ideia até chegar às leituras mais abertamente do seu Brás Cubas, afiado no mais lúcido comparativas. A investigação atenta do estilo e numa inclemente visão da comé- entorno crítico em que se foi publican- dia humana. Nesse ponto, Hélio Guima- do a obra machadiana revela, ademais, rães é feliz ao mostrar que a crítica inicia- a preocupação do autor das Memórias da na década de 1930, quando a estátua póstumas de Brás Cubas em responder às de Machado (que fora erguida em 1929) leituras que se faziam de sua obra. As- começa a ganhar “movimento”, forma o sim, Machado insiste na matriz inglesa, esteio da própria crítica contemporânea. promovendo um rico deslizamento no É como se víssemos, pelas lentes do au- gosto em geral francófilo do universo le- tor de Machado de Assis, o escritor que trado brasileiro. Machado constitui uma nos lê, e Roberto Schwarz

356 ESTUDOS AVANÇADOS 32 (92), 2018 surgindo como leitores de Lúcia Miguel of Machado de Assis, publicado em 1960 Pereira e – este último, na Califórnia e traduzido ao português como bem nota o autor desse estudo, na década passada. Numa interpretação bebera na crítica anterior de Alcides interessada dos modelos clássicos que Maya, ao mesmo tempo em que corroía estariam operando na feitura de Dom o “medalhão” em que Machado corria o Casmurro – especialmente o seu inter- risco de se converter. texto shakespeariano – a crítica norte- O Estado Novo varguista encontrou, -americana, como se sabe, gira a bússola no Machado realçado pela crítica e já en- e passa a defender o reverso do que havia tronizado na década anterior, um corpo por tanto tempo sido aceito: a culpa de simbólico a ser trabalhado pelas políti- Capitu. Os leitores de Machado de Assis cas culturais. Aí se dá a monumentaliza- notarão, ao ler esse capítulo, que a ambi- ção do autor mulato, homem do povo guidade de Capitu, e mesmo o narrador e genial, a ser reverenciado e tornado não confiável que tanto renderia na críti- patrimônio, o que acontece em diversas ca posterior, já estão prefigurados em al- frentes, incluindo a literatura pedagógi- gumas intervenções isoladas, anteriores ca, que aliás amanharia o solo para a re- à década de 1960, mas que demorariam tomada cívica de Machado de Assis em a se cristalizar numa leitura amplamen- outros contextos e meios, como no caso te reconhecida. O silêncio em relação à do cinema, ainda no primeiro período ruidosa tese de Caldwell é eloquente, e varguista, e da telenovela, já em plena está todo no livro que Eugênio Gomes ditadura militar, na década de 1970. O publicou em 1967, O enigma de Capitu, processo não se dava sem acidentes, é que pode ser visto como uma resposta claro, como sugere o delicioso despacho à crítica norte-americana, sem contudo de um secretário de Educação do Rio citá-la. Mas por que os ciúmes de Ben- Grande do Sul, que em 1938 se negou to Santiago seriam mantidos debaixo a autorizar que uma escola pública fosse do tapete por tanto tempo? O autor de chamada “Machado de Assis”, alegan- Machado de Assis, o escritor que nos lê res- do que não caberia a uma instituição de ponde: ensino elementar incorporar o nome de Talvez porque apenas a partir da dé- um “fascinante inoculador de venenos cada de 1960, com todos os movi- sutis” (p.119). Mais uma vez: mesmo mentos de contestação que eclodi- ram no Ocidente, a desconfiança em quando erram, os leitores críticos pare- relação à autoridade do narrador e a cem acertar... hipótese de que Capitu não tivesse O terceiro capítulo, que me parece traído puderam ter alguma resso- o mais cheio de provocações, pode ser nância entre leitores que passaram a lido como um discreto puxão de orelha questionar os papéis tradicionais de na crítica especializada, que tende à au- homens e mulheres, as relações de tossuficiência e a certo sentimento de gênero e o autoritarismo das estru- superioridade em relação àquilo que se turas sociais no Brasil e no mundo. produz às margens, incluída aí a crítica (p.179) estrangeira. O caso paradigmático, que Chega a ser engraçado, e um pouco fornece eixo ao capítulo, é o de Helen embaraçoso, que em 1963 a Academia Caldwell, autora de The Brazilian Othello Brasileira de Letras tenha oferecido a

ESTUDOS AVANÇADOS 32 (92), 2018 357 Machado de Assis (1839-1908)

358 ESTUDOS AVANÇADOS 32 (92), 2018 Helen Caldwell uma medalha, que de empática de personagens que resistiriam fato nunca foi entregue. A má fortuna à tipificação a que tendem, nas análises das reflexões de Caldwell seguiria firme, de cunho mais estritamente histórico ou passaria pelas críticas de Wilson Martins, sociológico. e seria relativizada por Silviano Santiago, A figuração de um Machado “realis- já no final da década de 1960, quando ta” é esmiuçada por Hélio Guimarães, a “verossimilhança” da narrativa é des- que explicita o caráter político do pro- construída, e a lente crítica é novamente jeto crítico de Schwarz anterior a 1964, voltada para as engrenagens sociais que que tem na denúncia do ponto de vista condicionam a história contada por Ben- execrável dos narradores machadianos o to Santiago, em que o ciúme desempe- seu ponto forte e talvez mais problemá- nha papel central. A circulação macha- tico, se dermos ouvidos às críticas que diana para além do Brasil, deslanchada lhe endereça Bosi. Já Gledson ocupa lu- com as traduções dos anos 1950 ao in- gar não menos importante no debate, glês, se fortaleceria num jogo de leituras ao atentar para a fatura da voz narrati- e leitores que incluem a própria Helen va, sobretudo nos romances maduros. Caldwell, William Grossman, Waldo É uma pena que o panorama dessa figu- Frank e, mais tarde, e Sal- ração “realista” perca de vista, em espe- man Rushdie, sem contar essa espécie de cial quando se detém sobre a complexa momento pop da carreira internacional questão da voz narrativa nas crônicas, as de Machado de Assis, que mais recente- reflexões de Sidney Chalhoub, que pare- mente descobriu-se ser um dos autores ce escondido numa nota de rodapé. Mas prediletos de . a questão talvez mais importante está na A figuração do “autor realista” ocu- relativa fixidez do ponto de vista daque- pa o quarto e último capítulo, que se les que detectam, em Machado de Assis, inicia com uma espécie de genealogia a denúncia inapelável do patriarcalismo que aponta para Lúcia Miguel Pereira e do paternalismo brasileiros. A essa fi- e ganha densidade crítica em Raymun- xidez, Hélio Guimarães parece querer do Faoro, abrindo-se para as reflexões contrapor um ponto de vista mais flui- de Roberto Schwarz e John Gledson, do, erradio e indeterminado. Daí que a cuja atenção ao tecido social entranha- voz contrastante de Bosi ocupe um lugar do no texto – seja como forma em sen- ao mesmo tempo discreto e central no tido lukacsiano, no caso do primeiro, panorama. Aí se entende, também, que seja como alegoria histórica, no caso do Abel Barros Baptista e Michael Wood segundo – lhes permite superar a noção apareçam como uma espécie de antído- mecanicista da literatura como reflexo, to, não de todo nomeado, ao ponto de que estava no marxismo mais duro de vista que quer encerrar o universo da sig- Astrojildo Pereira. Já em Alfredo Bosi, nificação em sentidos estáveis e inalterá- o intencionalismo com que Schwarz e veis. Entretanto, o próprio Gledson não Gledson interpretam a construção dos é prontamente associado àquela fixidez, narradores machadianos encontra um já que haveria algo de tridimensional em limite importante, que se explica no sua compreensão dos personagens, mas jogo de afastamento e aproximação que também dos leitores de Machado de As- marcaria a mirada às vezes cruel, às vezes sis. Seja como for, esse livro mostra que

ESTUDOS AVANÇADOS 32 (92), 2018 359 o empenho hermenêutico que marcou o sabor da recepção da obra de Macha- a figuração de um Machado nacional e do de Assis estão muitas vezes na defesa brasileiro, na década de 1930, segue fir- apaixonada das posições, como aliás este me e forte, embora encontre nas visões livro revela em abundância. de Wood e de Barros Baptista um obs- Mas afastar-se do bulício da crítica táculo, talvez mesmo um trampolim em não será, no fim das contas, um derra- que poderíamos nos sentir “no ar, antes deiro gesto machadiano, como se o úni- de mergulhar”, segundo o belo verso do co desejo fosse observar com calma o cancioneiro popular, evocado à p.256. espetáculo das paixões, sem o qual nada Por fim, não resta dúvida de que este neste mundo faz mesmo muito sentido? é um estudo fundamental. Pela sua cla- reza, mas também pelo equilíbrio com Nota que acompanha a leitura da obra macha- 1 Como se lê numa resenha recente: “Sem- diana em seu movimento pela história, pre me impressionou a frequência com Machado de Assis, o escritor que nos lê é que Machado de Assis é chamado de ‘es- passo incontornável para compreender finge’. Imagino o gracioso bigode, sob que o valor atribuído aos grandes auto- o familiar pincenê, estampado na face da res é também uma invenção comparti- grande Esfinge a perscrutar o deserto. lhada. [...] Ao ler os intérpretes de Machado, to- Há um único detalhe, neste livro, mamos emprestado o pincenê do mestre que me põe a pensar no que talvez lhe para sorrateiramente observar os mundos que eles habitam. A crítica literária imita falte. Acontece que, nele, o próprio Hé- a lenda: a resposta ao enigma da esfinge, lio Guimarães se encontra por vezes um quando vier, não será uma verdade do tanto escondido, tímido talvez, como outro mundo, mas, sim, o próprio ho- um narrador discreto que evita imiscuir- mem” (Flora Thomson-DeVeaux, Lendo -se à cena. Os leitores de Machado de a nós mesmos no reflexo de Machado, Assis, o escritor que nos lê talvez deixem Quatro Cinco Um, maio 2017, p.24). o livro, tão rico e cheio de novidades, com vontade de entender melhor onde Referência está o próprio crítico que acabaram de ler: em quais redes se insere, como avan- GUIMARÃES, H. de S. Machado de As- sis, o escritor que nos lê. São Paulo: Editora ça na leitura de sua própria geração e Unesp, 2017. de seu próprio trabalho, onde se apoia, quando duvida e onde ousa escarnecer. Nem sempre vemos com clareza os seus caninos, com exceção, porventura, do Pedro Meira Monteiro é professor de Lite- terceiro capítulo e da crítica subliminar ratura Brasileira na Princeton University, e diplomática à matriz determinista na Estados Unidos. interpretação de Machado, no quarto @ – [email protected] capítulo. É como se, ao evitar a mordi- Recebido em 19.2.2018 e aceito em da, ele inadvertidamente revelasse seu 25.2.2018. próprio tédio diante do embate rijo. Se correta essa minha suposição, trata-se de I Princeton University, Princeton, Estados algo bastante curioso, já que a graça e Unidos.

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