Kenneth David Jackson

Nabuco a Machado/ Machado a Nabuco

ressonâncias KENNETH DAVID JACKSON é professor do Departamento de uma de Português e Espanhol da Universidade de Yale. correspondência trocávamos as nossas impressões literárias e políticas…”. Ainda é preciso cautela na leitura das cartas porque há dimensões inesperadas escondidas nas entrelinhas. Há evidências ao longo da correspondência de correspondência entre que Machado encontra em Nabuco certas e abrange um pe- características de personagem literária. ríodo de 43 anos (1865-1908). Graça Comenta Rouanet em entrevista a O Globo Aranha foi o primeiro a colecionar (Bertol, 2008, p. 3): “Há pouco eu folheava e anotar essa correspondência, num crônicas de A Semana Ilustrada e, em 1895, livro de 1923, reeditado postuma- ao comentar Um Estadista do Império, de mente em 1942. Além de ensaios Nabuco, Machado usa uma metáfora que biográficos e interpretativos, a coleção está em , sobre personagens apresenta 21 cartas sob a rubrica de “Na- que brotam das páginas”. A primeira carta abuco a Machado” e 32 sob a de “Machado de Machado, enviada a Londres em 1882, a Nabuco”. As cartas de Machado de Assis romanesca no espírito das Memórias Pós- na Correspondência de Machado de Assis, tumas de Brás Cubas, trata-se nada menos editada por Fernando Nery (Assis, 1932), de um epitáfio, comunicando que o amigo igualmente vêm seguidas das respostas de comum, o comendador Joaquim Arsénio Nabuco, mas sem os títulos; o compêndio Cintra da Silva, cônsul de Bolívia, Paraguai contém 19 cartas de Nabuco a Machado e 32 e Venezuela no Brasil, mandou gravar na cartas de Machado de Assis a Nabuco, todas pedra da sepultura da jovem esposa falecida, datadas a partir de 1882. Os dois volumes D. Marianinha Teixeira Leite, algumas das das Cartas a Amigos, de Nabuco, editadas palavras “de emoção, de verdade e de poe- por Carolina Nabuco (1949), estampam sia” que Nabuco publicara em homenagem 21 cartas de Nabuco a Machado, sem as àquela senhora no Jornal de Comércio a 21 respostas. Curiosamente, na Obra Completa de agosto de 1881. Quatorze anos mais tarde, de Machado, da edição da Editora Nova num desdobramento digno de um dos seus Aguilar (1979), falta a interessante carta de contos, Machado escreve novamente a Na- 19 de agosto de 1906, incluída em todas as buco, lembrando-lhe a morte de Marianinha edições anteriores. Essa correspondência – – “já lá vão muitos anos” – comunicando que Nabuco a Machado e Machado a Nabuco Joaquim Arsénio escolhera para o túmulo da – voltou à atenção dos leitores e estudiosos, segunda esposa, que falecera, algumas das depois de uns 50 anos, com a reedição pela mesmas palavras com que Nabuco lembrara Academia Brasileira de Letras, em 2003, a primeira: “[…] arrebatada na plenitude da dos comentários e notas de Graça Aranha, vida, como os anjos da Bíblia, nas vestes com um novo estudo de José Murilo de deslumbrantes que mal tocavam a terra Carvalho. Antecipam-se mais dados, talvez, […]”. Foi o suficiente para Nabuco ironizar da edição da correspondência completa de quatro anos mais tarde, ao responder de Paris Machado que a Academia prepara em dois a uma carta de Machado, a 6 de dezembro volumes, editada por Sérgio Paulo Rouanet, de 1899: “Quando vi a sua letra, pensei que a base da pesquisa de Irene Moutinho e era uma terceira edição do famoso epitáfio. Sílvia Eleutério. Diga logo que sim”. Essa correspondência impressiona, Fundada no caso do epitáfio e nas no enfoque do nosso estudo, pelos temas impressões de brilho e estilo deixadas em literários, mesmo quando trata de assuntos Machado, a correspondência toma novo práticos ou políticos. São esses temas lite- ritmo só a partir de 1896 e se intensifica rários e estéticos que aproximam os dois depois de mais oito anos. Nessa fase, de escritores, como Machado observa em 5 1896 a 1904, as cartas são esporádicas, uma de janeiro de 1902: “Apesar da diferença ou duas por ano, com longos intervalos. da idade, nós somos de um tempo em que Continuam formais e retóricas, abrindo só

16 REVISTA USP, São Paulo, n.83, p. 14-23, setembro/novembro 2009 na última fase, de 1906 a 1908, para tocar ausência”. Machado associa esses temas em assuntos pessoais, reafirmando e refor- ao exílio de um conselheiro diplomático, çando o respeito estabelecido e mantido para quem a memória por força substitui através dos anos. A maioria das cartas tro- a realidade: “Para nós, seus amigos, se al- cadas entre o escritor e o diplomata –19 de guma consolação há, é a têmpera que este Nabuco e 29 de Machado – foram escritas exílio lhe há de dar […]” (Assis, 1932, pp. nesses doze anos, época em que Nabuco 12-3). É nesse tema que se encontra talvez a completara 50 anos e Machado 60. Seguem natureza mais profunda do relacionamento a um período de aproximação e amizade que marca a correspondência futura. Uma entre os dois no quando, condição especial dessa correspondência, nas palavras de Carolina Nabuco, “já na a partir dessa fase, é o exílio de Nabuco República, encontraram-se diariamente à diplomata, cujas cartas sempre vêm do tarde para palestrar na Livraria Garnier, exterior – quatro francesas, seis inglesas, ponto de reunião dos intelectuais, depois e sete americanas – e alega Graça Aranha na Revista Brasileira, e por fim na Acade- que “Machado de Assis era o companheiro mia de Letras, de que foram, com Lúcio imaginário dessas peregrinações” (Aranha, de Mendonça, os principais fundadores” 1942, p. 41). É a imagem distante que um (Nabuco, 1949, pp. 1-5). tem do outro que guia e determina o conteú­ Na segunda carta que Machado lhe do da correspondência, além dos assuntos dirige, a 29 de maio de 1882, surgem dois a serem tratados; as cartas de além-mar dos temas que hão de marcar a profunda intensificam uma imagem abstrata, sim- impressão que Nabuco deixa em Machado, bólica e catártica do outro. Começam a determinando talvez o diapasão e o ritmo aparecer traços da criação de um duplo, um do seu mútuo tratamento. Comovido pela composto imaginativo complexo em que se beleza da homenagem que Nabuco fizera a estabelecem “afinidades secretas” (Rogers, Marianinha, Machado lhe promete um futu- 1970, p. 40), provocadas pela distância. Se ro brilhante quase à guisa de cartomante: “A considerarmos Nabuco na Europa como um sua hora há de vir…Você tem a mocidade, a duplo latente, na imagem de Machado, o fé e o futuro; a sua estrela há de luzir, para deslocamento das cartas deste indica uma alegria dos seus amigos, e confusão dos seus divisão do ser. O duplo adquire o sentido de invejosos”. É uma fortuna que faz lembrar as uma projeção, ou seja, um estar no mundo palavras da cabocla a Natividade no Morro dividido entre o Rio de Janeiro e o Velho do Castelo, no capítulo primeiro de Esau Mundo, que é para Machado a esfera de sua e Jacó: “Serão grandes, oh! grandes![…] formação e da origem filosófica e literária Seus filhos serão gloriosos. É só o que lhe de sua biblioteca. Para Nabuco, a Europa é digo. Quanto à qualidade da glória, cousas um exílio desejado, um retorno às origens futuras!” Já nessa segunda carta Machado da cultura, mas igualmente uma separação atribui a Nabuco a superioridade estética e do futuro que deseja e espera realizar na filosófica de um personagem: “A impressão política nacional. Segundo teorias filosó- que V. me faz é a que faria (suponhamos) ficas e psicológicas do duplo (Jourde & um grego dos bons tempos da Hélade no Tortonese, 1996, p. 64), a projeção consiste espírito desencantado de um budista”. em atribuir ao outro aquilo que o próprio Através dos anos Machado vai continuar a deseja, mas que está fora do seu alcance. louvar o seu estilo “adiantado e moderado” Nabuco e Machado se projetam na geo- e seu conhecimento das coisas. grafia do outro: Machado se congratula ao Um segundo tema que Machado levanta receber o galho de Tasso, máximo presente a respeito de Nabuco, a 29 de maio de 1882, poético colhido por Nabuco na Itália, e e que vai se reforçar nas cartas a seguir, Nabuco escolhe a distância os membros nasce com o epitáfio do caso Marianinha: da Academia. Há uma ambiguidade teórica “Compreendo a sua nostalgia, e não me- na mútua projeção, porém, que envolve a nos compreendo a consolação que traz a troca simbólica de identidades: o próprio

REVISTA USP, São Paulo, n.83, p. 14-23, setembro/novembro 2009 17 encontra no outro qualidades que ele não fevereiro de 1907: “Não sei se terei tempo possui, mas com que se identifica. Pode de dar forma e termo a um livro que medito ressentir-se o outro por isso, tornando a e esboço; se puder, será certamente o último” figura ao mesmo tempo estranha e familiar, (Nery, 1932, p. 70). Refere-se a Memorial de pois representa o desejo de ser outro, mas Aires, romance-diário narrado por um velho ao mesmo tempo uma maneira de mascarar diplomata que volta ao Brasil depois de uma esse desejo latente. São essas algumas das vida passada no exterior, havendo deixado o dimensões escondidas nas entrelinhas e na túmulo da esposa falecida na Europa. Mesmo retórica respeitosa. com o exemplo anterior em Dom Casmurro O caso do “famoso epitáfio” continua de uma esposa abandonada na Europa, o a marcar a correspondência, dominada caso de Capitu, pode ser que no Memorial pelos temas de morte, exílio e consolação Machado tenha pensado em trocar de papéis epistolar. É ainda para a Europa que Ma- literariamente com o seu correspondente na chado envia a carta de 5 de janeiro de 1902, criação da personagem do Conselheiro, que intimando que “duas linhas bastam para o autor chega a anunciar clandestinamente lembrar que tal coração guarda a memória ao diplomata-narrador. É na última carta de quem ficou longe, e fez bater ao compas- que lhe dirige, a 1o de agosto de 1908, que so da afeição antiga e dos dias passados”. Machado anuncia o envio do “meu Memorial A significação desse sentimento se torna de Aires” e acrescenta uma frase intrigante, mais aguda para Machado com a morte da muito possivelmente de dissimulação, es- esposa Carolina, a 20 de outubro de1904, condendo a homenagem: “Você me dirá o e a ausência, uma realidade não apenas que lhe parece”. A projeção do narrador no geográfica mas transcendente. Desabafa- diplomata parece se confirmar no símbolo se da “catástrofe” numa carta a Nabuco, da flor amarela usada por Conselheiro Ai- a 20 de novembro, na qual retoricamente res e Nabuco na lapela, símbolo de eterna agradece a solidão que faz com que possa juventude. Curiosamente, Machado recusara viver mais intensamente com a lembrança o título de “conselheiro”, depois abolido pela da pessoa amada, ainda observando num república. Num artigo de 1926, o crítico aforismo que “a vigília aumenta a falta da João Ribeiro cita , indeciso pessoa amada”. Nabuco tenta animá-lo, sobre a maneira de se dirigir a Machado de na carta de 17 de novembro de 1904, com Assis e lamentando não poder tratá-lo de palavras que Machado aceita como “altas, “Conselheiro Machado”: “Convinha que o cabais e verdadeiras”, nas quais o diplomata Imperador lhe desse o título de Conselheiro, alega retoricamente que foi um ato de mi- como deu a Rui Barbosa… O ‘Conselheiro sericórdia Carolina morrer primeiro, porque Machado’ resolveria as nossas hesitações” as viúvas sofrem tragicamente, e porque o (Ribeiro, 1952, pp. 242; 244). Em defesa viúvo compensará o vácuo do coração com do título, aponta que “nem envolve nobreza a consolação de outro romance, que será “a nem privilégio algum, senão o do espírito maior dívida da nossa língua para com o e da prudência humana” (Ribeiro, 1952, p. túmulo à cuja sombra V. vai se acolher”. A 245). Tal o Conselheiro do romance em que ausência de sua Carolina parece associar-se Machado se projetara, em forma de diário e na tristeza de Machado ao exílio de Nabu- memorial, no auge da sua correspondência co, à afeição antiga e talvez à sua elevação com o diplomata verdadeiro. como embaixador aos Estados Unidos, que Um terceiro tema em que Machado Machado reconhece numa carta de 11 de percebe uma profunda afinidade com janeiro de 1905 endereçada a “Meu caro Nabuco aparece na interessante carta de Embaixador”. Não parece por acaso que, 19 de agosto de 1906, ausente das Obras depois da visita de Nabuco ao Rio de Janeiro Completas, em que Machado comenta o para a Conferência Pan-Americana (21/7 a livro de “pensamentos e recordações”, 26/8 de 1906), Machado anuncia a ideia de Pensées Detachées et Souvenirs, publicado um novo e último livro, numa carta de 7 de por Nabuco em Paris no mesmo ano. Na

18 REVISTA USP, São Paulo, n.83, p. 14-23, setembro/novembro 2009 Acervo da Fundação Joaquim Nabuco

Joaquim Nabuco em 1889 carta, Machado louva a coexistência em com o autor dos Pensées Detachées o gosto Nabuco do homem público e do pensador: pela expressão sucinta de ideias e reflexões “Esta obra […] vem mostrar que em meio filosóficas, como confessa: “Desde cedo, li dos graves trabalhos que o Estado lhe con- muito Pascal, para não citar mais que este, fiou, não repudia as faculdades de artista e afirmo-lhe que não foi por distração. que primeiro exerceu e tão brilhantemente Ainda hoje quando torno a tais leituras, e lhe criaram a carreira literária”. Comparte me consolo no desconsolo de Ecclesiastes,

REVISTA USP, São Paulo, n.83, p. 14-23, setembro/novembro 2009 19 acho-lhes o mesmo sabor de outrora”. Ao comentar o estilo dessas páginas de Nabuco, parece que Machado está descrevendo a técnica dos próprios escritos:

“Pensamentos valem e vivem pela observa- ção exata ou nova, pela reflexão aguda ou profunda, não menos querem a originalidade, a simplicidade e a graça do dizer […]. Há nestas páginas a história alternada da influ- ência religiosa e filosófica, da observação moral e estética, e da experiência pessoal, já agora longa. O seu interior está aqui aberto às vistas por aquela forma lapidária que a memória retém melhor […]. V. as inscreve de modo direto ou sugestivo, e a nota espiritual é ainda a característica das suas páginas. Que em todas resplandece um otimismo sereno e forte […]” (Assis, 1932, p. 66).

Por força da imaginação, em alguns exemplos selecionados dos pensamentos que comenta, Machado já vê livros intei- ros; as suas escolhas surpreendem pela proximidade a aforismos nos seus roman- ces conhecidos: “‘Mui raramente as belas vidas são interiormente felizes; sempre é preciso sacrificar muita coisa à unidade’, é das que evocam recordações históricas, ou observações diretas, e nas mãos de al- guém, narrador e psicólogo, podia dar um livro”. Em outras frases repara na eficácia da ortografia para ensinar melhor uma lição política: “Muita vez se perde uma vida, por- que no lugar que cabia ponto final se lança um ponto de interrogação”; e reconhece a origem de muitos ditos filosóficos da boca do povo, “por modo direto e chão”: “Se houvesse um escritório de permuta para as felicidades que uns invejam aos outros, todos iriam lá trocar a sua”. Machado até cita, muito à sua maneira, uma reflexão que põe em relevo todas as nossas observações e as torna duvidosas: “A borboleta acha-nos pesados, o pavão, malvestidos, o rouxinol, roucos, e a águia, rasteiros”. Esse gênero para Machado vai muito além do “apenas poético” para expressar aos olhos do grande autor beleza, verdade, saudade e mistério, indo ainda além da filosofia em que as palavras não mais valem. Na própria obra

20 REVISTA USP, São Paulo, n.83, p. 14-23, setembro/novembro 2009 as máximas são ainda mais sugestivas e um lapso do editor, que desrespeitou os penetrantes, dando outro sabor ao enredo: preceitos de Machado “de não revelar os “[…] as palavras, o verbo, as expressões seus livros, antes de impressos, mesmo que vestem as coisas, são o seu jogo imagi- aos seus íntimos”, como confessou Graça nário, a sua ginástica de câmara secreta. O Aranha. Voltando de Chicago em 1908, maravilhoso malabarista depois de deixar a Nabuco leu imediatamente o romance que o frase arrastar-se, fá-la saltar repentinamente esperava; achou-o desconsolado, passando e goza desse salto, como uma acrobacia logo depois a receitar para o autor “um ba- da vontade, que o diverte e nos encanta” nho de mocidade prolongado e constante” (Aranha, 1942, pp. 45-6). (Nery, 1932, p. 90). Não é a primeira vez Ao encerrar a carta, Machado comenta que tomou o papel de conselheiro; em 1904 a releitura de “Massangana”, capítulo de ofereceu conselhos de animação a Machado Minha Formação (1900), com que retorna depois do falecimento da esposa: “No seu ao assunto da ausência e das memórias, liga- caso a imaginação, o interesse intelectual, das a Carolina e ao romance em formação. o trabalho é um ambiente que permite em Ao considerar o retrato da vida no engenho parte à dor a evaporação excessiva […]. do norte, levanta a imagem de um mundo V. compreenderá que o vácuo do coração do passado perdido para sempre: “Tudo aí, precisa ser compensado pelo movimento desde o sino do trabalho até a paciência do e pela agitação do seu espírito” (Assis, trabalhador, a velha madrinha, senhora do 1932, p. 50). engenho, e a jovem mucama, tudo respira Sempre no contexto de uma confidência esse passado que não torna, nem com as de amigo, algumas de suas observações, doçuras ao coração do moço antigo, nem embora breves e mais alusivas do que com as amarguras ao cérebro do atual concretas, destacam-se pela perceptividade pensador”. É uma afinidade suprema que como precursores de opiniões críticas apli- Machado reconhece em Nabuco, unidos na cadas posteriormente à obra de Machado. perda do passado, lembrado nos “retratos Escrevendo de Londres em 8 de outubro de verdadeiros e sentimento” que Machado 1904, lamentando a sentença negativa sobre sente na leitura de “Massangana”. Esse a demarcação da fronteira com a Guiana, passado é evocado por ambos, revisitando distingue entre as obras de ficção e as cartas a inocência da juventude com as amarguras do celebrado autor: da velhice. Em 1906, a leitura dos Pensées Detachées e de “Massangana” foi influente “Mas que vivacidade, que ligeireza, que do- em Machado, no momento em que concei- çura, que benevolência a do seu espírito, eu tuava o último romance, a que parece aludir ia dizendo, que beatitude! Você pode cultivar entre as linhas de sua saudação, “Adeus, a vesícula do fel para a sua filosofia social, meu caro Nabuco, ainda uma vez agradeço em seus romances, mas suas cartas o traem. a impressão que me deu”. Você não é somente um homem feliz, vive na A correspondência de Nabuco a Macha- beatitude, como convém a um Papa, e Papa do é igualmente pessoal e afetuosa, porém de uma época de fé, como a que hoje aí se altamente retórica. Além do assunto prático tem na Academia. Agora não vá dizer que o da organização da Academia Brasileira de ofendi e o acusei de hipocrisia, chamando-o Letras e da nomeação dos seus membros, de feliz” (Assis, 1932, pp. 46-7). processo minado de considerações polí- ticas, as cartas voltam sempre a assuntos É uma observação confirmada pelo literários. É uma geração que se lê avi- depoimento de Rouanet sobre as cartas damente; Nabuco felicita Machado pelo inéditas que prepara para publicação no novo livro, numa carta de 12 de junho de segundo semestre de 2008: 1900, confessando que “tinha sorvido na fonte”. Nabuco e Graça Aranha leram as “Lendo essas cartas segundo o fluxo crono- provas de Dom Casmurro em Paris, por lógico, dia após dia, vemos um Machado

REVISTA USP, São Paulo, n.83, p. 14-23, setembro/novembro 2009 21 novo. As cartas de juventude não confirmam tudo”, frase que Nabuco aplica ao Memorial, o estereótipo de um sujeito casmurro, ensi- soa muito próxima às palavras com que mesmado, antissocial, frio nas relações hu- Machado comentava e louvava as colunas manas. O jovem Machado, o Machadinho, de Londres lidas no Jornal de Comércio, era um sacana, boêmio, papava todas as de 1883: “Sua reflexão política, seu espírito atrizes francesas” (in Bertol, 2008, p. 2.) adiantado e moderado, além do estilo e do conhecimento das coisas, dão muito peso Mas Rouanet ainda aceita a tese se- a esses escritos”. Julgando pela descrição gundo a qual Machado se torna pessimista do estilo do Memorial deixada por Graça e negativo com a idade: “As cartas des- Aranha, é um estilo mais ao gosto român- constroem o estereótipo que é verdadeiro tico e sentimental de Nabuco do que o dos para o segundo Machado… A figura dele romances anteriores: como melancólico, pessimista, vai se con- solidando na maturidade e sobretudo na “É outro Machado de Assis. Não é mais o velhice”. É essa noção de um “segundo escritor desdenhoso, desabusado, atrevido, Machado” que Nabuco desmente, através que fragmentara o Universo moral e o ana- de uma distinção sutil entre o homem e a lisara cruelmente com o maldito espírito sua vida cotidiana, de um lado, e a filosofia que nega […]. A petulância do espírito social que tece nos romances. A traição da foi convertida em mansidão, a ironia em habitual disposição feliz, a que Nabuco piedade, a desconfiança em abandono, a refere-se, tem a ver com esse disfarce de dúvida em esperança da outra vida” (Ara- rabugice, com que Machado mantinha a nha, 1942, p. 67). vida intelectual, filosófica e literária distante do seu espírito íntimo. Depois da leitura Mais uma vez, os dois se contrastam e se do Memorial, em 3 de setembro de 1908, complementam como duplos apenas latentes: ao contrário de achar um Machado deses- nessa correspondência entre duas figuras perado, faz elogio à “frescura do espírito” gigantes tão forte é a imagem do outro que que o impressionou no romance. Nabuco o ilustre conselheiro só consegue reconhecer não precisava usar da obra para entender o o autor escrevendo da capital do império, en- homem, muito pelo contrário, mostra que quanto o mestre autor só pensa em retratar o o entendeu intimamente, dentro e fora da conselheiro, escrevendo no estrangeiro, com obra. Se na leitura do Memorial encontrou a simpatia habitual mas dissimuladamente, Machado pessoalmente desconsolado e como era o hábito dos dois. recomendou-lhe a companhia de jovens, ainda acrescentou uma ressalva irônica: Ainda há, na última fase, de 1905 a 1908, “Mas o benefício de infiltrar a mocidade outro assunto que aproxima as duas figuras, não seria para você só, seria também para a nomeação de Nabuco como primeiro em- eles. Você é a mocidade perpétua cercada baixador brasileiro em Washington, D.C., de todas essas afetações de velhice”. em janeiro de 1905: “Começa V. a história Referindo-se à leitura de Memorial de desta nova fase da nossa vida diplomática”, Aires, na carta que Machado nunca lerá, escreve Machado. “Você sabe que é sincero Nabuco ainda encontra um autorretrato do este meu gosto de o ver levantado pelo seu autor: “Quanto ao seu livro li-o letra Brasil até onde merece a sua capacidade”. por letra com verdadeira delícia por ser Nessa nova fase, Machado se dedica ao mais um retrato de você mesmo, dos seus reconhecimento da língua em que escreve e gostos, da sua maneira de tomar a vida e de em que se fala na nova república brasileira, considerar tudo. É um livro que dá saudade que Nabuco vai promover numa aliança com de você, mas também que a mata”. Não a república americana. Por isso Machado o parece ter ocorrido ao senhor embaixador e cumprimenta pelas suas conferências, que lê conselheiro distante que o retrato poderia ser no Jornal de Comércio, e dá os parabéns pelo na verdade dele. A “maneira de considerar doutoramento na Universidade de Yale. Ao

22 REVISTA USP, São Paulo, n.83, p. 14-23, setembro/novembro 2009 comentar os três discursos sobre Camões, na em posição subalterna à língua espanhola; carta de 28 de junho de 1908, é no lugar e Você será assim mais uma vez o embaixador na primazia da língua, porém, seja na União do nosso espírito. Um abraço pelas distin- Pan-Americana seja no ambiente intelectual ções que aí tem recebido e que são para o americano, que Machado insiste: nosso Brasil inteiro”.

“Obrigado por todos e particularmente pelo Estando os dois no auge das suas habili- que trata do lugar de Camões na literatura. dades literárias, empenhados em conseguir É bom, é indispensável reclamar para a o reconhecimento do país e da sua língua no nossa língua o lugar que lhe cabe, e para palco mundial, acaba a correspondência com isso os serviços políticos internacionais que o falecimento de Machado em 29 de setembro se prestarem não serão menos importantes de 1908, deixando um conselheiro, homem que os puramente literários. Realmente é público, longe do Brasil e outro, literário, triste ver-nos considerados, como V. nota, andando pelas suas derradeiras páginas.

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