Missa Do Galo: O Enigma De Conceio
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1 CRÍTICA, DESLOCAMENTOS E TRANSGRESSÕES EM MISSA DO GALO DE MACHADO DE ASSIS Tania T. S. Nunes Resumo: Em 1977, o escritor Osman Lins convida Lygia Fagundes Telles e outros autores a escreverem cada qual um conto que fosse uma recriação de Missa do galo, de Machado de Assis, publicado em 1892. Estes dois contos são os objetos de leitura e análise nesta comunicação. Este trabalho busca realizar uma análise comparativa dos contos para apresentar a recepção crítica de Lygia enquanto “leitora do escritor” considerando o tema da sedução sob dois aspectos: o papel da mulher na sociedade do século XIX, bem como a percepção do visível e invisível na prosa machadiana. A idéia é demonstrar como a autora através do “nada” configurou “o prazer das dores velhas” ou “o enigma de Conceição” no sentido de promover a confluência entre arte e estética. Palavras chaves: corpo – linguagem - intertextualidade – recepção - percepção 2 CRÍTICA, DESLOCAMENTOS E TRANSGRESSÕES EM MISSA DO GALO DE MACHADO DE ASSIS Contando aquela crise do meu amor adolescente, sinto uma coisa que não sei se explico bem, e é que as dores daquela quadra, a tal ponto se espiritualizaram com o tempo, que chegam a diluir-se no prazer. Não é claro isto, mas nem tudo é claro na vida ou nos livros... Machado de Assis, O prazer das dores velhas, Dom Casmurro Eis-nos metidos em uma história secreta e numa floresta de enigmas a serem decifrados! Comecemos pela tela Santa Ana, a Virgem e a Criança de Leonardo da Vinci que traz o manto da Virgem que desenha um abutre e termina no rosto da criança. O artista ao comentar o vôo dos pássaros, interrompe para seguir uma recordação de infância: “parece que fui destinado a ocupar-me especialmente do abutre, pois uma das minhas primeiras recordações de infância é que, estando eu no berço, veio um abutre a mim, abriu-me a boca com sua cauda e por várias vezes com a cauda tocou-me os lábios.”i Esta consciência transparente de infância de Leonardo da Vinci, demonstrada por Freud, tem seu enigma e traz a verdadeira recordação de um tempo passado ou o fantasma da idade madura. O pai da psicanálise quer “desvendar o enigma”, mas o fato é que o abutre é o símbolo da maternidade. Acreditavam os egípcios que os abutres são fêmeas e são fecundados pelo vento. Parece que o grande pintor Leonardo teve conhecimento dessa lenda e que seu espírito de investigação tivesse para ele um caminho para escapar à vida, tendo acompanhado toda sua obra. Mas o que Leonardo e Machado têm em comum? Machado de Assis (1839-1908) é não só o velho bruxo da literatura brasileira, mas o grande bruxo do estilo em nossas artes. Parece que o fantasma do abutre também o acompanha tanto e quantas figuras femininas são exploradas em sua prosa. O mestre legou-nos vários enigmas, visto ser detentor de uma curiosidade sem fim. Dizia “eu gosto de catar o mínimo e o escondido. Onde ninguém mete o nariz, aí entra o meu, com a curiosidade estreita e aguda que descobre o encoberto.”ii A capacidade de perscrutar, de revelar um mundo “de dentro” que se esconde “por fora”, de perceber os contrastes e diferenças da vida definiram o espírito do escritor e vieram do contato de sua própria história de menino mulato que viveu e escreveu praticamente no decorrer do século XIX, quando as teorias racistas sustentavam a sociedade natural da raça branca 3 sobre negro, índios e mestiços. Ainda assim, o menino mulato, gago, epiléptico, feio e pobre tornou-se um intelectual da corte. A escolha da epígrafe de um capítulo de Dom Casmurro expressa que o leitor não pode passar desatento pelo texto de Machado de Assis. Sua obra exige um leitor com “olhos-de-ver” além das palavras, enquanto signos bem comportados na folha do papel. “Tudo são mistérios”, diz Braz Cubas. Casmurros, Dias, Capitus, Bentinhos, Brás Cubas, Marcelas, Conceições são mais do que personagens tornaram-se símbolos imaginários de uma época, nascidos da obra daquele que foi – e continua sendo – o grande criador de narrativas na literatura brasileira. Esta comunicação busca realizar uma análise comparativa dos contos Missa do galo de Machado de Assis (1892) e Missa do galo de Lygia Fagundes Telles (1977) para apresentar a recepção crítica da autora enquanto “leitora do escritor”, considerando o tema da sedução sob dois aspectos: o papel da mulher na sociedade do século XIX, bem como a percepção do visível e invisível na prosa machadiana. A idéia é demonstrar como a autora através do “nada” configurou “o prazer das dores velhas” ou “o enigma de Conceição” no sentido de promover a confluência entre arte e estética. A motivação para esta pesquisa parte da leitura de Missa do Galo; variações sobre o mesmo tema, ao saber que Lygia Fagundes Telles escreveu seu conto sob encomenda. Sua narrativa invade o mundo do conto de Machado; razão por que consideramos instigante esta proposta de leitura, ou seja, um conto reescrito dentro da mesma proposta do outro e, não, a partir do término do outro. Missa do galo de Machado de Assis é um conto de memória. O narrador lembra uma conversação que teve com uma mulher em sua juventude. O texto apresenta-se repleto de ambigüidades e suspensões. Importam mais nesta leitura, o diálogo e o jogo de sedução em que as palavras revelam e desvelam, constroem e desconstroem a narrativa pelas reticências deixadas e no meio tom de conversa dos protagonistas, pelo silêncio e pelo não-dito. O tema do conto machadiano é a sedução. Mas como esta se revela no século XIX e como Lygia a resgata no século XX? Com mestria e estilo inigualável, o “bruxo do Cosme Velho”, como o conclamou o poeta Carlos Drummond de Andrade, consegue – como sempre o faz – na condução da teia mágica da narrativa enredar o leitor. Transforma um simples diálogo de uma pessoa insone e de outra que aguarda pelo passar do tempo para a ida à missa do galo 4 em uma obra de extremo valor literário, aliás, como qualquer palavra sob um leve toque machadiano. Na verdade, nada acontece, mas tudo se desenrola em torno desse nada. O conto foi publicado pela primeira vez, em 1892, a partir de uma colaboração esporádica que o autor fazia à revista Semana, com a morte desta publicação surgiu a Revista Brasileira, dirigida pelo crítico José Veríssimo que o republicou em 1895. Mais tarde, em 1899, Machado de Assis, insere o conto em seu livro Páginas Recolhidas. Missa do galo foi publicado em período áureo da carreira do grande mestre. No mesmo ano em que publicou este conto, lançou seu romance Dom Casmurro, estava o autor com cinqüenta e três anos, portanto, na força de sua criação literária. Machado de Assis é um autor que requer muitos adjetivos para tecer qualquer elogio a seu favor, porém, seus textos não esgota os enigmas e artimanhas criados a partir de uma ambigüidade irônica que é o seu tema essencial. O centenário de morte do autor é mais do que uma razão para um encontro literário em que a figura do grande romancista se alteia entre nós. Este é, na verdade, um encontro de leitores. Um encontro de amantes apaixonados pela força da palavra machadiana. Já o conto Missa do galo de Lygia Fagundes Telles integra um projeto literário idealizado e organizado pelo escritor Osman Lins, em 1977, com a proposta de vários autores recriarem o tema do conto machadiano. Esta obra reúne seis contos e foi intitulada Missa do galo; variações sobre o mesmo tema. Uma experiência estética inovadora. Os dois contos são, sem dúvida, ricos não só pelo aspecto estilístico, semântico, moral-religioso que os compõem, mormente pelo envolvimento do psico-social, mas também por que foram escritos em épocas bastante diferentes (1892-1977). O conto de Lygia Fagundes Telles (1945-1960) faz uma intertextualidade com o conto de Machado de Assis oitenta e cinco anos depois da publicação de Missa do galo. Ao mesmo tempo, a autora mostra o quanto à temática machadiana ainda instiga a novas e interessantes narrativas. Lygia Fagundes Telles pertence a grande geração de contistas e romancistas que surgiram na terceira fase do Modernismo. Alguns de seus contos se assemelham em características aos de Machado de Assis. A autora em sua obra se acerca do íntimo da alma humana, na busca do impossível. Sua escrita é caracterizada pelos críticos literários como “prosa intimista” ou “prosa de sondagem psicológica”. Com seus textos 5 complexos e penetrantes, a autora escreveu seu nome no cânone literário brasileiro como a melhor representante deste estilo. O crítico Deonísio da Silva se pronunciou sobre a obra dessa autora, com as seguintes palavras: Senhora de um poder narrativo fora do comum, já demonstrado tanto em romance quanto em contos, (...) Lygia brinca com os textos, cuja urdidura semelha às vezes desconexa, mas deslumbra o leitor ao lembrar-lhe ao final das tramas que há, sim, uma estrutura comum a assoalhar todos os fragmentos: por mais fortuitos que seja o acontecimento que ela pinçou de um cotidiano cheio de trivialidades, é certo que a escritora o envolve numa linguagem que o arrebata para o plano do amor e suas desconcertantes disciplinas.iii Machado e Lygia uma bela comunhão de escritas é o que percebe nestas obras. A narrativa de Missa do galo de Machado de Assis inicia em uma simplicidade quase ingênua. O fato central do enredo é destacado: a conversação entre uma senhora e o narrador – o jovem Nogueira que vem do Estado do Rio de Janeiro para estudar na cidade.