Gonçalves Dias, Machado De Assis E Racionais Mc's: a Invenção Do Centro

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Gonçalves Dias, Machado De Assis E Racionais Mc's: a Invenção Do Centro IdeAs Idées d'Amériques 16 | 2020 Les marges créatrices : intellectuel.le.s afro- descendant.e.s et indigènes aux Amériques, XIX-XXe siècle Gonçalves Dias, Machado de Assis e Racionais Mc’s: a invenção do centro Gonçalves Dias, Machado de Assis and Racionais Mc’s: the invention of the center. Gonçalves Dias, Machado de Assis et Racionais Mc’s: l’invention du centre. Valmir Luis Saldanha da Silva Edição electrónica URL: http://journals.openedition.org/ideas/8842 DOI: 10.4000/ideas.8842 ISSN: 1950-5701 Editora Institut des Amériques Refêrencia eletrónica Valmir Luis Saldanha da Silva, « Gonçalves Dias, Machado de Assis e Racionais Mc’s: a invenção do centro », IdeAs [Online], 16 | 2020, posto online no dia 01 outubro 2021, consultado o 22 outubro 2020. URL : http://journals.openedition.org/ideas/8842 ; DOI : https://doi.org/10.4000/ideas.8842 Este documento foi criado de forma automática no dia 22 outubro 2020. IdeAs – Idées d’Amériques est mis à disposition selon les termes de la licence Creative Commons Attribution - Pas d'Utilisation Commerciale - Pas de Modification 4.0 International. Gonçalves Dias, Machado de Assis e Racionais Mc’s: a invenção do centro 1 Gonçalves Dias, Machado de Assis e Racionais Mc’s: a invenção do centro Gonçalves Dias, Machado de Assis and Racionais Mc’s: the invention of the center. Gonçalves Dias, Machado de Assis et Racionais Mc’s: l’invention du centre. Valmir Luis Saldanha da Silva Introdução 1 Neste artigo, buscamos tratar do papel que a estrutura social e histórica do Brasil nos séculos XIX e XX desempenhou na situação de intelectuais negros e mestiços brasileiros. Isso tanto em relação ao espaço social autorizado institucionalmente, como é o caso de Gonçalves Dias (1823-1864) e Machado de Assis (1839-1908), quanto à tomada dos espaços sociais por meio de um discurso contundente, como o fizeram os integrantes do grupo musical Racionais Mc’s, fundado em 1988. 2 Sabendo que a definição sobre o que são valores marginais e centrais, dentro de uma cultura, é extremamente complexa, nossa intenção é contribuir para esse debate por meio de uma análise de produções estéticas dos intelectuais supracitados em relação ao ponto de vista ético e moral prevalente no contexto da recepção primeira de suas obras e no lastro histórico deixado. Isso porque os caracteres histórico-sociais são um dos elementos responsáveis tanto por impulsionar quanto por silenciar um ou outro tema artístico, um ou outro autor, um ou outro estilo e declará-los como sendo oficiais ou marginalizados. Gonçalves Dias 3 A vida e a obra de Antônio Gonçalves Dias já são bastante conhecidas por quem tem interesse na formação da identidade nacional brasileira. O poeta da Canção do exílio, mestiço, “filho de um comerciante português e de uma mestiça, talvez cafuza, pois o IdeAs, 16 | 2020 Gonçalves Dias, Machado de Assis e Racionais Mc’s: a invenção do centro 2 poeta se dizia descendente das três raças que formaram a etnia brasileira” (Bosi A., 2006 : 104), foi o maior expoente da estética romântica nacionalista e indianista. Para Bosi, por exemplo, “A lírica de Gonçalves Dias singulariza-se no conjunto da poesia romântica brasileira como a mais literária, isto é, a que melhor exprimiu o caráter mediador entre os polos da expressão e da construção” (Bosi A., 2006 : 104). Isso porque a obra do poeta maranhense vinha na esteira da independência política, de 1822, em que “a literatura foi considerada parte dum esforço construtivo mais amplo, [...] este senso de dever patriótico, que levava os escritores não apenas a cantar a sua terra, mas a considerar as suas obras como contribuição ao progresso” (Candido A., 1981 : 10). 4 Como se vê, esse nacionalismo idealizante envolvia a obra dos intelectuais da época. Também porque o Brasil “logo depois da independência precisava encontrar um passado independente da história colonial, pois esta era comum com Portugal. E Portugal era, na época, o inimigo, a nacionalidade de que a brasileira precisava distinguir-se” (Leite D. M., 2007 : 225). Nesse sentido, a natureza tropical brasileira e principalmente o indianismo surgem como o principal eixo de sustentação de uma identidade que precisava ser inventada. 5 O caráter oficial dessa invenção repousava, de um lado, na aceitação do programa de Almeida Garrett, que em 1826 escreve o ensaio História abreviada da língua e poesia portuguesa e lamenta que “a educação europeia” atrapalhe o olhar mais original para “as majestosas e novas cenas da natureza” (Leite D.M., 2007 : 222). De outro lado, repousava principalmente na aceitação do programa de Ferdinand Denis, que escreve o Résumé de l’histoire littéraire du Portugal, suivi du Résumé de l’histoire littéraire du Brésil, em 1826. Em seu texto, Denis analisa as letras de Portugal e do Brasil para o público francês de modo separado, uma vez que a nação brasileira se constituía como ser autônomo. Para o pensador francês, a raça e o ambiente geográfico deveriam ser materiais essenciais da literatura “americana”, já que: A América deve ser livre tanto na poesia como no seu governo. [...] Se os poetas dessas regiões fitarem a natureza, se se penetrarem da grandeza que ela oferece, dentro de poucos anos serão como nós, talvez nossos mestres. [...] Mas [o poeta] não esqueça também os erros do passado [...]; lamente as nações exterminadas, excite uma piedade tardia, mas favorável aos restos das tribos indígenas; e que este povo exilado, diferente na cor e nos costumes, não seja nunca esquecido pelos cantos do poeta. [...] Quer descenda do europeu, quer esteja ligado ao negro ou ao primitivo habitante da América, o brasileiro tem disposições naturais para receber impressões profundas. (Denis F., 1978 : 36-38) 6 Pouco depois, a entrada do Imperador e mecenas D. Pedro II no Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro (IHGB), criado em 1838, proporcionou que a estética romântica fosse transformada em “projeto oficial, em verdadeiro nacionalismo” e, justamente por isso, devesse “inventariar o que deveriam ser as ‘originalidades locais’” (Schwarcz L., 1998:131). Além do Imperador, outros importantes nomes da classe intelectual como Gonçalves de Magalhães, Manuel de Araújo Porto-Alegre, Joaquim Norberto de Sousa Silva, Joaquim Manuel de Macedo e Francisco Adolfo Varnhagen faziam parte do IHGB, ou melhor, como bem observa Wilton Marques (2010:21), “entraram para a burocracia imperial por portas abertas pela mão seletiva do favor”. Sendo o favor “nossa mediação quase universal” (Schwarz R., 2000:16), após o sucesso dos livros Primeiros cantos (1847) e Segundos cantos (1848) “Gonçalves Dias, apoiado notadamente no sucesso de suas IdeAs, 16 | 2020 Gonçalves Dias, Machado de Assis e Racionais Mc’s: a invenção do centro 3 ‘poesias americanas’, foi sendo, aos poucos, incorporado a esse seleto grupo de escritores vinculados ao próprio Imperador.” (Marques W., 2010:45). 7 Assim, mesmo acreditando “ingenuamente ou não, ser reconhecido, sobretudo, por seus méritos literários e intelectuais” (Marques W., 2010:44), Gonçalves Dias não conseguiu – ou talvez nem fosse possível – escapar do mecanismo do favor e em março de 1849 foi nomeado professor de Latim e de História do Brasil no Colégio Pedro II. Analisando documentos históricos e biográficos sobre Dias, Marques afirma que “sua nomeação aponta mesmo para o fato de o poeta, sócio do IHGB há quase um ano e meio, ter conseguido tal cargo por ter, na verdade, se aproximado do ‘seleto grupo’ de escritores vinculados ao próprio Imperador.” (Marques W., 2010:49). Ora, o que todos esses dados revelam é que, de fato, Antônio Gonçalves Dias demonstrava enormes qualidades literárias, bem ao gosto do que o espírito da época pedia, mas por não ter vindo de família abastada, sua estabilidade só seria conseguida através de apadrinhamentos, pois “seja do próprio Imperador, seja de algum ministro, Gonçalves Dias sabia plenamente que a dependência era um mal necessário a sua sobrevivência.” (Marques W., 2010:56). O poeta na contramão 8 Como se vê, o fato de ser mestiço não foi, nesse sentido, um problema para que Gonçalves Dias atingisse os mais altos patamares dentro da burocracia do Segundo Reinado brasileiro, já que seu talento de poeta e principalmente a boa vontade com que ele foi recebido por pessoas importantes dentro do Império foram determinantes para que ele se estabelecesse. O mesmo, no entanto, não se poderá dizer em relação à vida privada de Dias, já que “o poeta viu recusado um pedido seu de casamento; ao que se sabe, não a jovem Ana Amélia, mas a sua família opôs-se por preconceito de cor” (Bosi A., 2006:104). Essa relação conflituosa entre os elementos oficiais e externos, que colocam o poeta no centro da cultura brasileira, e os particulares e internos, que não dissimulam os preconceitos raciais nas relações sociais brasileiras, ressoará em uma obra sobre a qual a crítica literária manteve silêncio durante muito tempo e, só agora, começa a recuperar: a Meditação. 9 Essa obra inacabada constitui-se de três capítulos denominados Fragmentos, escritos entre 1845 e 1846 e publicados separadamente na revista Guanabara em 1850, em que um jovem e um velho dialogam sobre o destino do Brasil, suas “raças, os escravos, os índios à margem do progresso, a iniquidade da vida política” (Candido A., 1981:52). A crítica mais recente questionará justamente o fato de que, mesmo os Fragmentos tendo sido publicados ao longo de 1850, em um periódico que desempenhava a função de um “quase ‘diário oficial’ do romantismo local”, “até onde se conseguiu averiguar, não foi encontrado nos jornais ou revistas da
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