2 JORNAL DA UNICAMP Campinas, 8 a 14 de setembro de 2008

Machado de Assis e a escravidão Foto: Academia Brasileira de Letras Mailde J. Trípoli liberdade, era justo aventar a idéia da gem, instituída para amenizar as rela- abolição. Luiz representa ao elemento ções entre senhor e escravo, aumentar a “Há pessoas que não escravo. Contudo o Sr. produção, garantir fidelidade e diminuir sabem, ou não se lembram não deu exclusivamente a paixão da as fugas e as revoltas, bem como as des- de raspar a casca do riso liberdade[...]. Luiz espera da revolu- pesas com segurança ostensiva. para ver o que há dentro”. ção, antes da liberdade, a restituição No conto, como em outras obras, Machado de Assis da filha; é a primeira afirmação da não há floreios nem uso de meias pa- personalidade humana; o cidadão virá lavras. Machado não transforma o ne- achado de Assis é depois. Por isso, quando no terceiro gro em herói ou ser extraordinário, nem incontestavelmen- ato Luiz encontra a filha já cadáver, e o pinta com as cores miseráveis da te um dos maiores prorrompe em exclamações e soluços, ideologia dominadora. Ele o apresenta escritores da lite- o coração chora com ele, e a memó- como ser humano que é, sujeito em sua ratura brasileira. ria, se a memória pode dominar a tais condição de oprimido. Sem fazer apo- Está citado no li- comoções, nos traz aos olhos a bela logia, mas de forma sutil, o autor, a seu vroM Gênio, de , reno- cena do rei Lear, carregando nos bra- modo, desnuda a realidade senhorial e mado crítico da atualidade, entre os ços Cordélia morta. Quem os compa- revela uma sociedade em que a condi- cem maiores escritores mundiais. Se- ra não vê nem o rei nem o escravo; vê ção econômica define o indivíduo, de- gundo Bloom, “Machado reúne os pré- o homem”. termina sua exclusão ou aceitação. requisitos da genialidade. Possui Serão essas palavras de um omis- Uma sociedade que, sob uma fachada exuberância, concisão e uma visão irô- so, dissimulado para não transparecer moderna e liberal, oculta as bases do nica ímpar do mundo”. sua condição racial? sistema colonial, o escravismo e o Apesar de todo reconhecimento e Bastante explícitos também são clientelismo, como bem explicita homenagens, cem anos depois de sua algumas poesias e contos, vale notar, Roberto Schwarz em Ao Vencedor as morte, há ainda quem insista em repe- escritos antes da abolição. O poema Batatas.11 tir a leviana afirmativa de Hemérito dos Sabina, publicado em 1875, por exem- A crônica foi outro gênero de pro- Santos, de que o escritor não se envol- plo. Embora incluído no livro Ameri- dução escrita que Machado de Assis veu na causa abolicionista e negou sua canas, foge à temática indígena, suge- exerceu com a habilidade criativa e origem. rida inclusive pelo título da obra. Sabi- crítica que lhe era peculiar. Nelas, en- Com o propósito de oferecer uma na é um longo poema que relata a se- contramos um Machado de Assis irô- contribuição, ainda que pequena, no dução de uma jovem mucama, não nico e sarcástico, que enfoca diversos estudo da personagem negra, seu múl- embranquecida, mas tratada de forma estágios do período abolicionista, as tiplo processo de construção, sócio-his- paternalista. Jovem, virgem de tez manipulações dos senhores, a violên- tórico-literário, e nele começar a des- morena, cabelos cor da noite escura, cia inerente ao sistema de dominação. velar a face da personagem negra na busto moldado em modelo clássico e Faz isso, ora de forma direta, ora dis- obra de Machado de Assis, desenvol- olhos brandos cor de jabuticabas. simulada, mas preservando um distan- vemos uma pesquisa, concluída em A conquista de Sabina não passa ciamento crítico e lançando mão dos 1997, que resultou no livro Imagens, pela violência física, prática comum na recursos de estilo que lhe eram comuns. Máscaras e Mitos; o negro na obra de “ideologia falocrática”9 Sant’Ana, Af- Muitos seriam os exemplos a serem Machado de Assis.1 fonso Romano de. - “O Canibalismo aqui elencados, mas por que não dei- “A ficção é imitação [...] da ação, isto Erótico na Sociedade Escravocrata.”In. xar para o leitor o prazer deste desve- é, disto que já conhecemos como ação e Revista do Brasil. : lar? Uma leitura mais atenta de algu- interação no envolvimento físico e soci- FUNARJ, 1984. N. 1/84. p. 14., des- mas das obras e se pode perceber de al”,2 afirma Paul Ricoeur. Ao buscarmos Machado de Assis: abordagens explícitas e nas entrelinhas crita de forma magistral por Castro que lado o escritor está. Para isso, se a personagem negra na literatura, Alves, em “A Cachoeira de Paulo necessário, não faltam bons guias: estamos também buscando a represen- Afonso”. A abordagem é romântica. O Roberto Schwarz, John Gledson, Sid- tação desta “ação e interação” do elemen- As Vítimas Algozes são o que po- favam a vida, sacudindo as moscas, e narrador, indiferente como o rio, “ao ney Chalhoub e outros. Podemos adi- to negro na sociedade do seu tempo. demos chamar de romance de tese, três bois... nenhum ente humano. Pa- mal ou bem que lhe povoa a margem” antar que a preocupação de Machado No tempo de Machado, as teorias conforme Silviano Santiago: “no ro- receu-lhes que isto era melhor do que desnuda a alma de ambos. de Assis era com o homem, o ser huma- raciais e crenças etnocêntricas ainda mance de tese, a verdade se insinua por ter morrido? Era pior”.6 O jovem conquistador, Otávio, vol- no e sua interioridade psicológica e apregoavam uma hierarquia etnográ- detrás de cada palavra, de cada gesto, Jacobino, sem os sustentadores de ta para a corte. “Com ela a alma não moral. O escravo, antes de sua condi- fica na qual o negro ocupava o último cada cena, induzindo o leitor a pensar sua “identidade”, percebe-se sem ima- fica. De seu jovem senhor.” Não fica a ção servil, era um ser humano; e assim grau da escala social. Assim, embora ser ela a única a apreender corretamen- gem no espelho, único espaço onde, alma, mas fica-lhe um filho no ventre. Machado o via e o retratava em sua obra. elemento integrante (juntamente com te o significado das cenas ou do drama ainda, podia se refletir. O que restou A reação dos companheiros de desven- Experimente ler, reler! Permita-se um o branco e o índio) da civilização bra- apresentado pelo texto”4. Nesse senti- na fazenda foram apenas os animais, tura é de total falta de solidariedade, passeio pelo universo cifrado das obras sileira, era marginalizado. A literatura do, Macedo não está sozinho. instrumentos de produção; bens semo- impera a inveja, o ciúme, a maledicên- machadianas. Por prazer, deleite-se! não o omitiu, mas sua voz e ação, mui- O contraponto é que, ao criar uma ventes, categoria em que os escravos cia e a superstição. “Após os dias da tas vezes, quando não apagadas, foram imagem do negro escravizado, basean- eram incluídos. A questão é que os ani- saudade, os dias da esperança”, e a Mailde J. Trípoli é autora do livro tolhidas, distorcidas, ou mascaradas. do-se na concepção ideológica senho- mais não representam a alteridade, no decepção. Otávio volta casado. Em Imagens, Máscaras e Mitos; o negro na Sua presença, em geral, se dá por tipos. rial, o autor do discurso, de certa for- sentido de refletir a identidade do ou- desespero, Sabina pensa em se matar, obra de Machado de Assis (Editora da O indivíduo representa o coletivo. ma constrói, também, a sua própria tro. Na ausência do escravo, cai por mas no último momento desiste. Unicamp) O discurso a seu respeito variava imagem. Em oposição à selvageria, à terra a ordem escravocrata e com isso O poema, embora aparente descre- conforme o posicionamento de quem indolência, à submissão, à promiscui- o autoconceito de superioridade apre- ver a aceitação do cativeiro, denuncia escrevia: estereotipada, a imagem do dade, ele é a civilidade, a moral, o do- goado pela ideologia vigente em rela- a trágica ironia do paternalismo e as NOTAS: negro, passa de dócil, infantil, fiel, mínio, a posse, a superioridade. Ele é ção aos senhores. suas conseqüências. Uma faceta da es- subjugada a violenta, feroz, vingativa, em o que o outro não é. Sem se dar conta, Há nesse conto um absoluto silên- cravidão, muito conveniente aos se- 1 TRÍPOLI, Mailde Jerônimo. Imagens, Máscaras e Mitos: o negro na obra de razão dos interesses do momento e con- talvez, de que nesta construção, ausen- cio a respeito tanto da escravidão quan- nhores e, em parte, responsável pela Machado de Assis. Campinas/SP, Editora texto em que é inserido o estereótipo. tando-se o outro, a sua tão bem to aos possíveis acontecimentos rela- crença de que, no Brasil, a vida dos es- UNICAMP, 2006 Nos discursos, porém, a classifica- construída imagem deixa de existir. cionados aos escravos fugidos. Entre- cravos era amena. 2 ção não é estanque. Textos qualifica- ”O si- A crença na igualdade, pelo trata- RICOEUR, Paul. “L’Identité Narrative.” In. É o que se pode ver, bem elabora- tanto, como reflete Eni Orlandi, Revue des Sciences Humaines. No 221 dos em uma das duas categorias, às do, no conto O Espelho5: esboço de lêncio é. Ele significa.”7 Ao calar-se, mento privilegiado, impede de ver: “o vezes, trazem em seu interior peque- uma teoria da alma humana, de Ma- Machado abre espaço para uma signi- fundo abismo tenebroso e largo que 4 SANTIAGO. Silviano. Desvios da Ficção. In nos deslizes do autor, que denunciam chado de Assis, publicado em Papéis ficação outra, que a óbvia. Uma forma separa”10 senhores e escravos. A deli- PATROCÍ NIO, José do. - Mota Coqueiro. .P. 13. um posicionamento diferente do anun- Avulsos, em 1882. sutil, para gerar idéias. cadeza não garante o afeto, nem evita ciado ou proposto. As Vítimas Algozes, Nele, Jacobino, um jovem pobre, é Mas, se no conjunto da obra do au- o abandono da escrava, mas facilita a 5 ASSIS, Machado de. “O Espelho“. In. Papeis de Joaquim Manoel de Macedo, publi- promovido a alferes da Guarda Nacio- tor estão incorporados elementos his- “caçada” do sinhozinho. Além disso, Avulsos. cado em 1869, é um bom exemplo dis- nal. Tal fato é festejado e motivo de tóricos e sociais a serem lidos nas en- provoca sentimentos desagregadores Rio de Janeiro: Garnier, s/d. p. 221-235 to; embora se apresente como um libe- orgulho para toda a família. Na fazen- trelinhas, há também momentos em dentro do meio escravo, afastando a 6 ASSIS. Machado de. - “O Espelho”. In O lo contra a escravidão, seu discurso é, da de sua tia, uma fazendeira escra- que sua colocação é explícita. Isto ocor- solidariedade e a confiança. Preserva Conto de Machado de Assis. Rio de Janeiro: ao mesmo tempo, antinegro. Para de- vista, não é mais chamado pelo nome, re, sobretudo, nas crônicas e na críti- a imagem ideológica, segundo a qual Civilização Brasileira, 1980. p.142. monstrar quão danosa é a instituição só pelo título. Todos os escravos estão ca. Vejamos, por exemplo, o trecho de escravo é gente dotada de maus senti- 7 PUCCENELLI. Eni Orlandi. - As Formas do da escravidão e a necessidade de abo- obrigados a tratá-lo de “senhor alferes”. uma carta endereçada a José de Alen- mentos, quando não de apatia, servi- Silêncio: No Movimento dos Sentidos. li-la, o autor anuncia que contará estó- Um dia, estando a tia ausente da fa- car, datada de fevereiro de 1868, na lismo e resignação. Campinas: Editora da UNICAMP, 1993. 2a. ed. rias verdadeiras e mostrará “os vícios zenda, os escravos fogem, abandonan- qual Machado tece elogios a Castro Enquanto Castro Alves denuncia a 8 Assis, Machado. Crítica. (Coleção feita por 8 ignóbeis, a perversão, os ódios, os fe- do o alferes, privando-o da admiração Alves . Esta carta era, de fato, a crítica violência explícita a que os escravos Mario de Alencar). Rio de Janeiro, Livraria rozes instintos do escravo, inimigo a que estavam obrigados. do escritor, sobre o drama Gonzaga, e, principalmente as mulheres, negra e Garnier, Sd. p.54 e55. (grafia atualizada). natural e rancoroso do seu senhor”3 “Achei-me só, sem mais ninguém, escrito pelo poeta, portanto, destinada mulata, estavam expostos, Machado 10 MACEDO. entre quatro paredes (...) Nenhum fô- a ser lida pelo público. revela outras formas de violência, nem ASSIS, Machado de. “Sabina”. Op. Cit., p.423 Joaquim Manoel de. - As Vítimas lego humano.(...) ninguém, um mole- “Eu não podia, por exemplo, dei- sempre tão explícitas, mas igualmente 11Schwarz, Roberto. Ao Vencedor as Batatas. Algozes: quadros da escravidão. Rio de quinho que fosse. Gatos e galinhas tão- xar de mencionar aqui a figura do pre- cruéis e doloridas. A violência, que pas- São Paulo, Duas Cidades, 1981. p. 20. Janeiro: Garnier, 1871. 2a. ed., p. XIV.. somente, um par de mulas, que filoso- to Luiz. Em uma conspiração para a sa pela dissimulação e falsa camarada-

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