O Poema “Sinhá”, De Machado De Assis
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Navegações ENSAIOS v. 6, n. 1, p. 8-15, jan./jun. 2013 O poema “Sinhá”, de Machado de Assis The poem “Sinhá” by Machado de Assis JOSÉ AMÉRICO MIRANDA UFMG – Belo Horizonte – Minas Gerais – Brasil Resumo: O poema “Sinhá”, publicado por Machado de Assis na obra Crisálidas (1864), seu primeiro livro de poesias, é, neste artigo, analisado em seus aspectos formais, consideran- do-se suas relações com obras anteriormente compostas por poetas românticos brasileiros, algumas delas já apontadas por outros críticos literários, e outras nunca antes identificadas. A análise revela o senso de equilíbrio do poeta Machado de Assis, assim como a simetria da composição, princípios característicos da arte clássica, como algo que distingue sua poesia da de outros poetas românticos seus contemporâneos. Manuel Bandeira identificara a relação do poema com obras dos poetas Casimiro de Abreu e de Fagundes Varela; este artigo aponta, também, relações do poema “Sinhá” com poesias de Antônio Augusto de Queiroga e de Álvares de Azevedo. Palavras-chave: Machado de Assis; Crítica de poesia; Poesia brasileira Abstract: The poem “Sinhá”, by Machado de Assis, published in his first book of poetry, entitled Crisálidas (1864), is analysed in its formal aspects, establishing connections between it and texts of other Brazilian romantic poets previously identified by other critics, and other relations not yet known by the scholars. The poem’s analysis reveals the author’s sense of stability as well as the simetry of composition, principles of classicism in art, as characteristics of Machado de Assis as a poet, especially in comparison with the romantic poets of his time. Manuel Bandeira has identified relations between “Sinhá” and poems by Casimiro de Abreu and by Fagundes Varela. This article points out also relations with poems by Antônio Augusto de Queiroga and Álvares de Azevedo. Keywords: Machado de Assis; Poetry criticism; Brazilian poetry Sinhá O teu nome é como o óleo derramado. Cântico dos cânticos. Nem o perfume que expira A flor, pela tarde amena, Nem a nota que suspira Canto de saudade e pena Nas brandas cordas da lira; Nem o arrulho enternecido Nem o murmúrio da veia Das pombas, nem do arvoredo Que abriu sulco pelo chão Esse amoroso arruído Entre margens de alva areia, Quando escuta algum segredo Onde se mira e recreia Pela brisa repetido; Rosa fechada em botão; Nem esta saudade pura Do canto do sabiá Escondido na espessura, Nada respira doçura Como o teu nome, Sinhá! (ASSIS, 1976, p. 152) Os conteúdos deste periódico de acesso aberto estão licenciados sob os termos da Licença Creative Commons Atribuição-UsoNãoComercial-ObrasDerivadasProibidas 3.0 Unported. O poema “Sinhá”, de Machado de Assis 9 I dedicado à palavra é seguida da redução B Infrm, isto é, “Brasileirismo informal”. A poesia de Machado de Assis, que lhe serviu de A data de entrada no português escrito, o poema porta de entrada para o mundo da literatura, não tem de Machado de Assis a corrige para pelo menos treze sido objeto de interesse para muitos críticos. Crisálidas, anos antes, ou quinze, se se considerar a publicação em seu primeiro livro de poesias, publicado em 1864, foi periódico. Curioso é que, no próprio século XIX, a palavra criticado na época de seu aparecimento, principalmente, já havia suscitado o interesse pelo menos de um poeta. O pela liberdade de sua musa, ou seja, pela multiplicidade padre José Joaquim Correia de Almeida, no segundo vo- heterogênea de poemas pouco conectados entre si, e lume de seus Sonetos e sonetinhos (1887), publicou este: pelos altos e baixos que apresentava – essas oscilações qualitativas mencionadas pela crítica jamais foram Eu daqui vejo que lá no hemisfério português apontadas com clareza. O principal aspecto positivo desconhecem muita vez reconhecido na obra foi a vocação lírica de seu autor nossa linguagem de cá. (Cf. MACHADO, 2003, p. 45-66). É muito provável No bom dicionário, que há, que tais avaliações tenham desempenhado um papel e que no reino se fez, na reformulação do livro quando da publicação de sua tu, Brasileiro, não lês segunda edição, nas Poesias completas (1901): o poeta a palavrinha – sinhá. rejeitou dezesseis dos 28 poemas do livro; conservou Não sei se afeto servil apenas doze, privilegiando a unidade lírica da obra. dos pretos de tanga azul Entre os poemas mantidos no livro, “Sinhá” é peça sin- inventou esse primor. gular, pelo acabamento técnico e pelos contornos preci- O certo é que no Brasil sos da composição. O poema foi composto em 1862 e pu- não o desdenha o taful, blicado pela primeira vez em O Futuro (Cf. SOUSA, 1955, e é testemunho de amor. p. 364-365), periódico fundado pelo poeta português (ALMEIDA, 1887, p. 25) Faustino Xavier de Novais, que residiu no Rio de Janeiro e com cuja irmã, Carolina, veio a se casar o poeta Machado O padre não esclarece a que dicionário publicado em de Assis. O poema foi depois incluído em Crisálidas. Portugal se refere, embora tenha mencionado dois outros Em sua singeleza, a poesia não tem atraído a atenção dicionários da época em nota a outro poema do mesmo dos críticos: não foi incluída em nenhuma das antologias livro: o de Antônio José de Carvalho e João de Deus e o mais importantes de poesia romântica: nem na de Manuel de Gaspar Álvares Marques (ALMEIDA, 1887, p. 90). Bandeira, que comentou muito ligeiramente o poema Quanto ao Dicionário prosódico de Portugal e Brasil, (BANDEIRA, 1994, p. 12), nem na de Edgard Cavalheiro, de Antônio José de Carvalho e João de Deus, a edição de nem na de Péricles Eugênio da Silva Ramos (este 1895 ainda não trazia o vocábulo. nem mesmo incluiu Machado de Assis entre os poetas Outro estudioso das obras da juventude de Machado românticos; nem incluiu o poema na antologia em volume de Assis, Jean Michel-Massa, também comentou o intitulada Machado de Assis: Poesia, da coleção Nossos poema, em trecho dedicado à colaboração do escritor para Clássicos, que organizou para a Editora Agir), nem na de o periódico O Futuro, em cujas páginas o poema apareceu Valentim Facioli e Antônio Carlos Olivieri (que também impresso pela primeira vez, em abril de 1863. Certamente não incluíram Machado de Assis). impressionado pela epígrafe bíblica, tomada ao Cântico Ao que tudo indica, Cláudio Murilo Leal foi um dos dos cânticos, escreveu Massa que o poema “é como um poucos críticos que o comentou brevemente, afirmando oásis no deserto” a que se reduzira a vida do autor naquela que se trata do “mais brejeiro poema de Crisálidas” e ocasião: que “transmite aquele sentimento de brasilidade que o autor detecta e propugna para seus pares no percuciente Talvez se deva ver aí mais do que uma paráfrase da ensaio ‘Notícia da atual literatura brasileira – Instinto de Bíblia, cuja inspiração é nitidamente indicada pela Nacionalidade’ ” (LEAL, 2008, p. 95). epígrafe: “O teu nome é como o óleo derramado.” A peculiaridade local do vocábulo “Sinhá”, de O poeta utilizou a versão do Pe. Antônio Pereira de Figueiredo, que traduzira o texto sagrado da Vulgata, que Houaiss, na “chave do dicionário” de sua autoria, na segunda metade do século XVIII. Este versículo dá como “data em que entrou no português” o ano de é a primeira referência direta à Bíblia e a citação faz 1877, registrando, como referência, a sétima edição lembrar que Machado de Assis não meditou apenas do Dicionário da língua portuguesa, de Antônio de no Eclesiaste. A doçura que traspassa nos versos Morais Silva, se registra em sua dicionarização – no dedicados à Sinhá é um enigma anunciador de Dicionário Houaiss da língua portuguesa o verbete esperança. (MASSA, 1971, p. 356) Navegações, Porto Alegre, v. 6, n. 1, p. 8-15, jan./jun. 2013 10 Miranda, J. A. É difícil pensar em “paráfrase” da Bíblia; o verso Nem o arrulho enternecido e (a) citado pertence à Introdução do Cântico dos cânticos, em Das pombas, nem do arvoredo f (b) que a voz lírica é feminina: Esse amoroso arruído e (a) Quando escuta algum segredo f (b) Pela brisa repetido; e (a) – Ah! beija-me com os beijos de tua boca! Nem esta saudade pura g (c) porque os teus amores são mais deliciosos que o vinho, e suave é a fragrância de teus perfumes; Do canto do sabiá h (d) o teu nome é com um perfume derramado: Escondido na espessura, g (c) por isto amam-te as jovens. (Ct 1, 2-3) Nada respira doçura g (c) Como o teu nome, Sinhá! h (d) É igualmente difícil compreender por que Machado de Assis conservou essa epígrafe, já que suprimiu Como se vê, o esquema é o mesmo em ambas as muitas delas dos poemas que conservou no livro, e, décimas, embora as rimas não se repitam. O próprio principalmente, rejeitou todas as poesias de assunto esquema de rimas nos autoriza a dividir cada décima bíblico ou religioso, como “O dilúvio”, e aquelas cujos em duas quintilhas: na primeira o esquema de rimas é temas são as virtudes teologais – fé, esperança e caridade. ababa; na segunda, cdccd. Não apenas o esquema se A melhor explicação para a persistência da epígrafe altera, na passagem da primeira para a segunda metade talvez resida no encanto propriamente poético dos versos da estrofe; as próprias rimas não são as mesmas. Além bíblicos. disso, sendo todo o poema composto por apenas um Independentemente de sua relação com a epígrafe, período gramatical, as estrofes ficam separadas uma da o poema “Sinhá” não é desprovido de interesse; o senso outra por ponto e vírgula, e, internamente, cada uma delas crítico de Machado de Assis parece ter assinalado isso, fica dividida, justamente no final do quinto verso, também pois, tendo eliminado mais da metade dos poemas da por ponto e vírgula.