44 Antônio Bento e a vanguarda artística brasileira no final da década de 1950

Ana Paula França Carneiro da Silva Este artigo fomenta a discussão sobre as diferentes vertentes da abstração desenvolvi- das no Brasil, analisando o discurso crítico de Antônio Bento e seu empenho em defen- der a arte informal como a verdadeira vanguarda brasileira em face da arte concreta e neoconcreta.

Crítica de arte, Antônio Bento, arte informal, vanguarda artística.

A partir do século 19 e, mais ainda, das van- tante de sua terra natal, por meio de um guardas do século 20, uma crítica de arte já periódico sediado na cidade do Rio de Ja- não podia ser simplesmente descritiva ou neiro, que sua contribuição no certame da interpretativa. À medida que a arte perdia a crítica de arte se consolida e sua reputação nitidez de sua função sob nova constituição de defensor da tendência informal na abs- social, calcada em outros meios e modos de tração em território nacional se delineia. produção, a cisão entre o artista e a socie- O tipo de arte abstrata, denominado infor- dade tornava-se mais evidente. Essa fissura mal, expressionista abstrato ou tachista, sem foi o preço pago pela autonomia artística e, unanimidade ou precisão, defendido pelo crí- ao mesmo tempo, reforçou a necessidade tico Antônio Bento, ganha mais visibilidade de um mediador, alguém que pudesse, de através das principais exposições realizadas alguma maneira, restabelecer os laços per- nos últimos anos da década de 1950, espe- didos. É dentro desse quadro, traçado pela cialmente, da IV e V edições da Bienal Inter- modernidade, que a relevância do exercício nacional de São Paulo. Logo, enquanto al- crítico será considerada também em terri- guns profetizavam a morte da pintura, ou- tório nacional. No Brasil, reflexões sobre a tros artistas, denominados ainda pintores e natureza da crítica de arte e sobre o papel gravadores, produziam seus melhores traba- do profissional que a exerce ocuparam em lhos. Manabu Mabe, Fayga Ostrower, Frans muitas ocasiões as colunas especializadas Kracjberg, , Tikashi Fukushima, presentes em periódicos de grande circula- Loio Pérsio, Yolanda Mohalyi, entre outros, ção. Uma dessas colunas era assinada por adentram a década de 1960 produzindo Antônio Bento (1902-1988), crítico dentro dessa tendência, largamente desen- paraibano que estudou direito e foi eleito volvida nos EUA e na Europa. Concomitan- mais de uma vez deputado estadual no Nor- temente, faz-se presente intensa discussão Antônio Bandeira crítica sobre suas produções e premiações, deste. Apesar da origem nordestina, foi na Village tranquille, 1957 alimentando a polêmica sobre a relevância Óleo sobre tela, cidade de São Paulo o início de sua estreita de suas realizações. 55 x 46cm relação com a arte e o contato íntimo com Fonte: Retrospectiva Antônio 1 Bandeira. Catálogo de exposição, o trabalho da pioneira geração de moder- Nesse sentido, a coluna Artes do jornal São Paulo: Masp, : MAM, 1995 nistas brasileiros. Do mesmo modo, foi dis- Diário Carioca foi importante espaço de arti-

A R T I G O • A N A P A U L A F R A N Ç A C A R N E I R O D A S I L V A 45 culação teórica. Com regularidade, Antônio da abstração no contexto cultural brasileiro Bento publicou nessa coluna textos que con- ganha dimensões mais definidas. Antônio templaram não só as artes visuais, mas tam- Bento não se isentou do novo desafio e as- bém música, teatro e dança, entre outras sumiu a tarefa de ensinar a compreender artes. À medida que realizava seu contínuo inclusive o tipo de arte que não recorre à exercício, o crítico esforçava-se para mos- representação de figuras do mundo visível. trar os princípios que regiam e justificavam Para a realização de seus desígnios, em nome seu espaço cativo. Levando em considera- da acessibilidade e objetividade, investe no ção essencialmente a função de restabele- desmantelamento de certos equívocos. O cer o contato estremecido entre a arte e a principal deles, segundo o crítico, seria a rela- sociedade, empenhava-se também em evi- ção ainda corrente entre Concretismo e arte denciar sua aversão à figura estereotipada de vanguarda. Em artigo homônimo, 3 publi- de crítico das “elites”. Segundo Antônio Ben- cado em inícios de 1957, ano em que a arte to, o meio de circulação determinava a ade- informal seria destaque na quarta edição da quação dos métodos aos quais o crítico de Bienal Internacional de São Paulo, sua iniciati- arte deveria recorrer e o jornal era veículo va muito provavelmente visa preparar o ter- direcionado à “massa”, portanto, o conteú- reno para a aceitação de obras abstratas mui- do do texto crítico nele impresso não po- to diferentes daquelas que receberam as deria apresentar linguagem inacessível ao maiores atenções nas primeiras edições des- público a que era direcionado. Em A pintura se evento. Segundo sua tese, principalmente moderna e sua crítica,2 Antônio Bento afir- depois da Segunda Guerra Mundial, ma que a “(...) crítica de arte deve ter em vista, antes de tudo, o esclarecimento do O concretismo já foi, efetivamente, ul- público, ao qual se dirige diretamente”, por- trapassado no Velho Mundo e nos Es- tanto, considera díspar a apreciação analítica tados Unidos onde a arte de vanguar- da arte feita para o público especializado e da de tipo geométrico não tem a me- aquela veiculada na imprensa. Além disso, nor cotação nos meios de vanguarda, aposta na superioridade da última sobre a embora ainda seja vendida em algumas primeira justamente por sua maior abran- galerias. gência e acessibilidade. Não afirma, contu- Esclarece, desse modo, que o ápice do do, que a primeira seja totalmente dispensá- concretismo já havia passado e que o movi- vel, mas defende que a crítica dedicada à mento chegara atrasado no Brasil, até mes- audiência de iniciados só deveria circular em mo depois de ter alcançado a Argentina. forma de livros e com tiragem limitada. Portanto, afirma que “hoje a vanguarda da abstração já não se encontra entre os Sob esses preceitos, Antônio Bento escreve concretistas e sim em seus contrários, os uma série de artigos em busca de esclarecer adeptos da arte informal ou anti-intelectual seu grande público quanto às particularida- e com os tachistas”. des da arte moderna e de suas mais autênti- cas e atuais manifestações. Sua íntima rela- Apesar do caráter categórico de sua obser- ção com os primeiros modernistas brasilei- vação, o crítico afirma não ter nada contra ros já foi mencionada; entretanto, o recorte os concretistas. “Quero apenas ser objeti- temporal que delimita o tema deste artigo vo”, explica, “ao mesmo tempo em que pre- refere-se a momento subseqüente, em que tendo situar o movimento em sua exata a situação controversa gerada pela inserção perspectiva histórica”. Enfatizando o fato de

46 não desejar tomar partido do concretismo, ções mais consistentes para sustentar os nem contra, nem a favor, reforça que sua motivos pelos quais a arte informal ocupava intenção é apenas “mostrar que esse não é o posto de vanguarda atual e, conseqüente- mais um movimento de vanguarda como mente, justificar sua superioridade. Nessa aqui se apregoa”. Nota-se como o conceito tarefa, a imparcialidade muitas vezes cede de objetividade crítica de Antônio Bento lugar ao ataque direto ao concretismo e seus constitui-se na dependência de uma postu- postulados. ra imparcial,4 e, por esse motivo, o crítico considera necessário esclarecer para seus lei- Já no momento da introdução e expansão tores e demais interessados que a resistên- do não-figurativismo no Brasil, ainda nos anos cia quanto à pretensa atualidade da arte con- 40, destaca-se a constituição de fortes rea- creta nada tem de partidário. Seu desígnio é ções e debates. Nesse momento, a atitude respeitar o desenvolvimento histórico da ofensiva diante da abstração estava atrelada, arte, e, nesse raciocínio, a arte informal seria principalmente, ao engajamento a questões necessariamente mais avançada do que aque- sociais, manifestado por artistas preocupa- la que a antecedeu. Apesar de seu critério dos em preservar o caráter realista da arte.5 parecer fundamentalmente cronológico, Nos anos seguintes, a segmentação da pro- Antônio Bento tem que recorrer a explica- posta artística abstrata em diferentes tendên-

Anna Bella Geiiger Sem título, 1966 Água-tinta e relevo, 34,5 x 35cm Fonte: Coleção particular, Gravura Arte Brasileira do século XX, São Paulo: Itaú Cultural, 2000, foto de Romulo Fialdini

A R T I G O • A N A P A U L A F R A N Ç A C A R N E I R O D A S I L V A 47 cias acirra-se consideravelmente, originando na do Rio de Janeiro (e apresentada por mais um importante foco de conflitos. Ape- Mário Pedrosa).8 O artigo é iniciado com a sar de a polêmica entre figurativos e abstra- seguinte pergunta: “Estará o ‘Grupo Frente’ tos manter-se acesa, a hegemonia de gran- na vanguarda artística brasileira?” Segundo o des nomes da arte nacional como Di crítico de arte, “Seus componentes acredi- Cavalcanti e já havia sido tam que isso de fato se verifique, mas esta é quebrada, abrindo espaço para a legitimação uma mera suposição, sem base na realida- da arte abstrata. Diante de acontecimentos de”. Para Antônio Bento, esse tipo de enga- significativos, como as exposições de artis- no, entretanto, aconteceu seguidamente, pois tas estrangeiros, e, especialmente, das edi- muitos artistas que consideravam sua pro- ções da Bienal de São Paulo, o esgotamento dução artística a mais avançada foram des- da representação da realidade mostrou-se mascarados pela história e crítica da arte. conceito genérico demais e insuficiente para Reconheceram, em seus lugares, as obras de abordar todo tipo de realização abstrata. As artistas marginalizados e esquecidos por seus diferentes terminologias não demonstravam contemporâneos. Desse modo, chama de apenas a dificuldade comum na instituição “ingenuidade” ou “pretensão provinciana” o de rótulos, mas a diferença de intenções e fato de os artistas integrantes do grupo não prerrogativas apresentadas pelos artistas que reconhecerem que a tendência concretista, se diziam não-figurativos. Desse modo, a adotada pela maioria deles, estivesse com- vontade de distinção partiu, sobretudo, dos pletamente superada na Europa, tornando- “abstracionistas mais diretamente descenden- se a face acadêmica da arte abstrata. A seu tes do cubismo”, como diria Mário Pedrosa, ver, uma evidência era o fato de que o ou, ainda de maneira mais aproximada, da- concretismo de Max Bill e Sophie Taub-Arp queles artistas motivados pela revisão em- já não estava mais sendo visto com bons preendida pela escola construtivista suíça, olhos depois da Segunda Guerra Mundial, como Waldemar Cordeiro. Em suma, en- como nos primeiros salões Realités quanto um espaço relevante era conquista- Nouvelles. Além disso, para reforçar sua ar- do, os próprios artistas abstratos e os críti- gumentação, compara o apego a valores ul- cos que se ocupavam favoravelmente de suas trapassados do concretismo à postura aca- obras encontravam-se em confronto, dispu- dêmica dos artistas brasileiros no século 19. tando, mais do que o título de arte abstrata Nas palavras do crítico, teórica e visualmente legítima, o posto de verdadeira vanguarda brasileira. Para Antô- do mesmo modo que, há poucos anos, os nio Bento, não só no Brasil, a “vanguarda acadêmicos faziam aqui naturezas mor- verdadeira” era o tachismo ou a arte infor- tas com tachos de cobre reluzente, os con- mal, que, ao contrário do concretismo, se cretos fabricam hoje suas composições relacionava simultaneamente com as pesqui- com quadrados minúsculos, confetis e sas internacionais.6 pauzinhos de fósforos.

O atraso da arte concreta já tinha sido de- Ainda aproximando a atitude dos artistas fendido pelo crítico em 1955, a propósito concretistas aos “erros acadêmicos do sécu- da publicação de O ecletismo do “Grupo Fren- lo 19”, Antônio Bento toma como ensejo o te”.7 Nessa ocasião, Antônio Bento exami- artigo publicado por Sérgio Milliet, no Jornal na a segunda exposição do grupo concretista do Commercio,9 com o objetivo de enaltecer carioca, realizada no Museu de Arte Moder- a semelhança entre as observações do

48 confrade e aquelas que ele próprio já vinha dois críticos, outro modo de encarar a pintu- explorando há tempos em sua coluna. Em ra, o tachismo, foi responsável pelo resgate Tachismo e concretismo,10 o crítico vale-se de valores suplantados pelos concretistas. da identificação com as idéias de Milliet para Apesar de ressaltar esse ponto positivo, Sér- enfatizar o caráter acadêmico do gio Milliet alerta prontamente para a brevida- concretismo e confrontá-lo com o tachismo. de da existência e o perigo da vulgaridade, Assim como ele, afirma que o crítico paulista intrínsecos à nova manifestação. Contudo, incomoda-se com a insistência dos artistas para Antônio Bento, a possível efemeridade concretos em um quadro de referências já do tachismo não era prova de sua fragilidade, antiquado. “A verdade”, conclui, mas um atestado de seu vigor vanguardista. “Isso acontece com todas as tendências de é que o Manifesto de Theo Van Doesburg, vanguarda”, afirma, “Duram apenas o espaço o teórico da escola, já tem quase trinta de uma geração”. anos de idade, sendo, portanto (...) uma peça de museu ao lado dos Manifestos do Esse argumento é retomado em Mobilidade Futurismo e Surrealismo e de outros docu- da arte de vanguarda,11 evidenciando a possí- mentos históricos ligados à (...) arte de van- vel fugacidade da arte informal como com- guarda. provação de sua distinção com relação à arte concreta e, conseqüentemente, de seu cará- Destaca, portanto, que Sérgio Milliet concor- ter de vanguarda artística. Citando Pierre dava com o fato de que as obras concretistas Francastel, o crítico afirma que as formas da da época acabavam “caindo na imitação de arte de vanguarda ‘têm triunfado de geração Mondrian ou de Vasarely”. Na opinião dos em geração’. Por conseguinte, defende que

Manabu Mabe, Sem título, 1966 óleo sobre tela 150 x 150cm Fonte: Livro História de uma coleção - JPMorgan 2003: 61 http://www.jornaljovem.com.br/ edicao5/arte_brasil03.php

A R T I G O • A N A P A U L A F R A N Ç A C A R N E I R O D A S I L V A 49 A História da criação artística, nos últi- cal oposição entre a abstração de cunho mos cem anos, foi feita quase por com- construtivo e a abstração informal. Manter pleto pelos movimentos vanguardistas, essa relação antagônica acesa garante a coe- cuja mutabilidade, cujo dinamismo per- rência da arte informal dentro do quadro manente, vem constituindo a sua carac- geral da história da arte moderna, ou seja, terística principal. sua relevância como vanguarda. Desse modo, segundo o crítico, para um movimento ser Além desse fator central, o crítico não deixa considerado vanguarda era fundamental o de afirmar “o repúdio aos princípios e cumprimento de uma “tarefa estética”, e o cânones tão respeitados pelos antigos” como tachismo estaria cumprindo a contento sua o combustível dessa movimentação inces- missão de “liquidar o concretismo e sante e imprescindível para o desenvolvimen- desacademizar a abstração”, assinalando to da arte. O aumento gradual no ritmo des- “uma volta fecunda à pintura-pintura em se dinamismo e, portanto, da sobreposição oposição à pintura-arquitetura dos geomé- de movimentos artísticos é justificado pelas tricos, adoradores sedentários do Mondrian novas necessidades impostas pelo mercado neoplasticista, pintor hoje tão velho quanto capitalista. “Apesar de seu desígnio primor- o realista Courbet”.12 dial de projeção no futuro”, afirma, “a arte de vanguarda está igualmente sujeita à lei da Estabelecer “um retorno à pintura-pintura”13 saciedade, do que resulta a sua vida efêmera”. significava que, inversamente ao que acon- Segundo Antônio Bento, a característica de tecia na pintura-arquitetura dos constru- maior relevância desse mercado seria a com- tivistas, o pintor tachista desprendia-se das petição, pois proporcionava “como conse- “construções”, das “formas fechadas” e das qüência uma liberdade maior para o artista”. “grandes chapadas”. Diante das formas e Não se restringia, desse modo, aos adeptos superfícies coloridas, ele optava, predomi- de tendências distintas, mas motivava tam- nantemente, pela mancha. Enquanto os bém artistas que compartilhavam a mesma construtivistas privilegiavam a forma, os vertente. “O pintor ou escultor moderno”, tachistas primavam pela “matéria” e suas defende, “está sempre empenhado em pro- “qualidades substanciais” em busca de “no- duzir uma obra, senão original, pelo menos vas texturas antigeométricas”. Segundo An- diferente da que é feita pelos seus compa- tônio Bento, “tendo em vista que a pintura nheiros”. À mercê desse sistema, os artistas empobrecera enormemente nas mãos de de vanguarda tornam-se “inimigos na luta Mondrian e seus seguidores”, por meio des- sa escolha os tachistas desejavam “conferir- comercial que entre todos se estabelece”. lhe nova riqueza e nova dignidade”. Estariam, por conseguinte, sujeitos à “lei da saciedade”, já citada, imposta pelas regras do Em 1959, um novo dado é inserido no qua- capitalismo, e, devido a sua irredutibilidade, dro artístico brasileiro com o Manifesto os movimentos artísticos encontrar-se-iam Neoconcreto. A instituição de um novo “dentro de um processo de caráter rigoro- movimento que pretende manter-se nos samente dialético”. Isso quer dizer que cada meandros da abstração, contestando, entre- “escola ou tendência é submetida por outra tanto, tanto a arte informal quanto a arte inteiramente contrária. À tese, opõe-se sem- concreta,14 coloca em xeque algumas ob- pre, em curto prazo, a antítese”. A partir servações defendidas até então. Para Mário desse raciocínio, compreende-se o empe- Pedrosa, o advento do neoconcretismo pro- nho de Antônio Bento em alimentar a radi- porcionará uma revisão do discurso sobre a

50 arte informal, reforçando o caráter reacio- cas contidas no documento. Dias depois, narista diante de sua tese da crise na arte.15 dando continuidade a esse artigo, refere-se18 O modo como os artistas cariocas estavam a um grupo de artistas que “Tendo se con- propondo uma revisão do construtivismo vencido do anacronismo irremediável da arte revelou perspectiva mais larga e a possibili- concreta (...) abandonou-a, abjurou-lha as dade de condição mais otimista “depois do doutrinas e formulou novos princípios para tachismo”.16 Em contrapartida, Antônio a sua produção artística”. Não obstante, a Bento esforça-se para mostrar que, assim partir de seu ponto de vista, a atitude limita- como a arte concreta, a pretensamente se a isso, ou seja, “a constatar o impasse ou nova tentativa dos neoconcretos não a falência do concretismo”. “A ambição es- carrega, em si, o espírito da vanguarda. O tética” de tornar-se uma “arte de expres- neoconcretismo não ameaçava a posição da são” não é cumprida, porque os artistas, de arte informal na função de combater os um modo ou de outro, “continuam devotos valores extremamente racionalistas, pro- (...) das idéias espacialistas oriundas do venientes do construtivismo, pois não es- plasticismo de Mondrian”. A essa prerroga- taria demonstrando expressividade efeti- tiva uniram “apenas umas tinturas do va, mantendo-se ainda profundamente suprematismo de Malevitch”.19 O que, em atrelada aos preceitos dos concretos. sua opinião, em vez de contribuir para o Em O neo-concretismo,17 Antônio Bento cumprimento das propostas, acaba por in- vale-se da exposição realizada no Museu de serir atonalismo racionalista, “ascese seme- Arte Moderna para reforçar sua idéia de que lhante à fase inicial” da abstração do artista “O desenvolvimento posterior da arte abs- russo. Antônio Bento, contudo, mostra-se trata marchou em sentido contrário àquele otimista em relação ao neoconcretismo. preconizado por Mondrian”. A proposta dos Destaca, entretanto, o fato de que as no- artistas dessa exposição é, assim como a dos vas idéias teriam que “evoluir” se preten- artistas informais, uma prova de que dessem alcançar as qualidades expressivas recuperadas e desenvolvidas pela arte in- Voltou-se a revalorizar a pintura que se formal, assim como alcançar a verdadeira defendeu com vigor da tentativa reacio- condição de vanguarda. nária que pretendia pô-la, como antiga- mente, a serviço da arquitetura. Ou a Nota-se que a despeito de enfatizar a dissolvê-la na própria arquitetura, que seria obsolência das outras propostas de abstra- a nova rainha das artes, senão a arte ção, concreta e neoconcreta, o discurso de única. Antônio Bento acaba por constituir um pa- radoxo, pois a novidade da arte informal Mas a seu ver, ao contrário da arte informal, estaria calcada na retomada de valores. A o neoconcretismo, apesar de postar-se à seu ver, essa manifestação era a mais avan- margem do “debilitado e ultrapassado” çada da época porque trazia a história da concretismo no Brasil, não demonstrava “ne- pintura de volta aos trilhos. Nos textos em nhuma perspectiva de desenvolvimento, nem que o crítico se dedica a tratar de algumas aqui nem no estrangeiro.” Elogia o Manifes- produções de pintura informal, de modo to Neoconcreto, afirmando sua simpatia pelo específico, pode-se perceber como esse “re- novo movimento, mas chama a atenção para torno” era um importante critério de qualifi- o fato de as obras que compõem a exposi- cação. Tanto que diante de obras igualmen- ção serem incoerentes com as idéias teóri- te opostas ao racionalismo da arte concreta,

A R T I G O • A N A P A U L A F R A N Ç A C A R N E I R O D A S I L V A 51 como as do italiano Alberto Burri, tratado lacuna, como incitar outro exame do con- como tachista na época, Antônio Bento pre- texto que antecede imediatamente a déca- fere destacar como aspecto mais relevante da de 1960, favorecendo, em conseqüência, a exploração de inadequada materialidade.20 o alargamento do entendimento do concei- A incorporação de sacos de estopa, presen- to de vanguarda construído nesse período. te na obra de Burri, por exemplo, é inter- pretada como subversão aos meios particu- Ana Paula França Carneiro da Silva é mestre em Artes Visuais pela Escola de Belas Artes da Universidade Fe- lares da pintura tão perigosa quanto a em- deral do Rio de Janeiro. No presente momento, atua preendida pelos artistas concretistas. A par- como professora nas áreas de História da Arte e Teoria tir desse posicionamento, pode-se observar do Design junto ao Departamento de Desenho Indus- que, nesse momento, o crítico demonstra trial da Universidade Tecnológica Federal do Paraná. dificuldades em ser tão objetivo quanto gos- taria e que mesmo assumindo a condição Notas efêmera característica de toda vanguarda, não se inclinava a aceitar que a arte informal e, 1 Assinada por Antônio Bento, no período focalizado por conseqüentemente, a pintura estava sendo esta pesquisa, possuía freqüência quase diária. O crítico publicou também inúmeros artigos no Suplemento Li- dialeticamente enfrentada. Desse modo, o terário, que circulava aos sábados. paradoxo constitui-se também na medida em 2 Bento, Antônio. A pintura moderna e sua crítica. Diário que Antônio Bento parece buscar reter um Carioca. Rio de Janeiro, 09 jun. 1957. pouco mais a sucessão histórica, noção tão 3 Bento, Antônio. Concretismo e Arte de Vanguarda. Diário importante para o arcabouço teórico que Carioca. Rio de Janeiro, 17 fev. 1957. As citações feitas a legitimou a arte informal como autêntica partir deste ponto referem-se a esse artigo. vanguarda brasileira. O anseio de defesa aca- 4 Assunto abordado no primeiro capítulo de A arte informal bou suplantando o desígnio da imparcialida- e os limites do discurso crítico moderno em Antônio Bento de, princípio tão valioso na configuração de e Mário Pedrosa, dissertação de mestrado apresentada seus preceitos críticos. por Ana Paula França Carneiro da Silva ao Programa de Pós-Graduação em Artes Visuais da Escola de Belas Ar- Mesmo apontando alguns limites do discur- tes, Universidade Federal do Rio de Janeiro. Rio de Ja- neiro, 2007. so crítico de Antônio Bento, este artigo pre- tende destacar sua significativa presença. 5 O livro Arte para quê? de Aracy Amaral, publicado pela Com freqüência tomam-se como destaque primeira vez em 1984, traz abrangente abordagem das discussões e debates travados entre os artistas e críticos do final da década de 1950, os textos críti- defensores e detratores da arte abstrata. Amaral, Aracy. cos que tratam da transição entre a arte con- Arte para quê?: a preocupação social na arte brasileira, creta e a neoconcreta, ou seja, representan- 1930-1970. São Paulo: Nobel, 1984. tes da articulação crítica sobre os conceitos 6 A análise da posição de Mário Pedrosa encontra-se em 21 construtivistas. Aqueles que buscam dar Silva, Ana Paula França Carneiro da, op. cit. conta da falência ou ameaça desses mesmos 7 Bento, Antônio. O ecletismo do ‘Grupo Frente’. Diário conceitos, atribuída à arte informal, geralmen- Carioca. Rio de Janeiro, 11 ago. 1955. O Grupo Frente, te são desprezados. Contudo, ignorar essa formado ao redor da personalidade do artista e profes- presença ou mantê-la como acontecimento sor Ivan Serpa, correspondia ao braço carioca do complementar através de comentários rápi- concretismo. Apesar da ligação com tendências cons- dos e superficiais é deixar de examinar um trutivas de abstração, os artistas do Rio de Janeiro apre- importante episódio da história da crítica de sentavam diferenças relevantes com relação à produ- ção paulista. Esses desacordos geraram uma das discus- arte brasileira. Analisar os textos que Antô- sões mais presentes no final dos anos 50, agravada nos nio Bento dedicou à compreensão da arte últimos anos da década, com a publicação do Manifesto informal pretende não só preencher essa Neoconcreto.

52 8 No texto intitulado Grupo Frente, Mário Pedrosa tinha Nota sobre o tachismo. Diário Carioca. Rio de Janeiro, como objetivo apresentar a exposição dos artistas cari- 15 set. 1957. ocas, destacando o fato de que: “mais promissor ainda é o fato de o grupo não ser uma panelinha fechada, nem 14 Em várias ocasiões, , o teórico por exce- muito menos uma academia onde se ensinam e se apren- lência do movimento neoconcreto, enaltece a relação dem regrinhas e receitas para fazer Abstracionismo, dialética estabelecida entre a arte concreta e a arte in- Concretismo, Expressionismo, Futurismo, Cubismo, re- formal com a intenção paradoxal de aproximá-las pela alismo e neo-realismo e outros ismos. Estão admirados similar incapacidade poética dos artistas relacionados. dessa afirmação? Pois olhem, é só olhar: aí está Elisa ao Ver Gullar, Ferreira. Arte neoconcreta uma contribui- lado de Serpa; Val junto a ; aí estão Franz ção brasileira. In Amaral, Aracy (org.). Projeto construtivo Weissmann e Lygia Pape; Vicente, romântico, encosta- brasileiro na arte: 1950-1962. Rio de Janeiro: Museu de do a João José, concretista; e Décio Vieira e Aluísio Car- Arte Moderna; São Paulo: Pinacoteca do Estado, 1977: vão, irmãos mas tão diferentes! E não falemos nesse ter- 120 e Gullar, Ferreira. Duas estéticas de demissão. Jornal rível Abraham Palatnik, inventor, construtor, novelista, do Brasil. Rio de Janeiro, 13 jun. 1959. artista de inteligência que não poupa as meias medidas 15 Ver item 2.5. Crise na arte e volta à matéria, in Silva, Ana nem as concessões aos entre lá e cá. Não se riam, po- Paula França Carneiro da, op. cit.: 113. rém, os céticos e amorfos. Não se juntam esses artistas em grupo por mundanismo, pura camaradagem ou por 16 Questão explorada no item 2.6. Arte informal e história acaso. A virtude maior deles continua a ser a que sem- da arte, id., ibid.: 122. pre foi: horror ao ecletismo.” Nota-se como no título 17 Bento, Antônio. O neo-concretismo. Diário Carioca. Rio do seu artigo, Antônio Bento faz questão de ressaltar o de Janeiro, 05 abr. 1959. ecletismo negado por Mário Pedrosa, ironizando, certa- mente o partidarismo tão caro ao confrade, como foi 18 Bento, Antônio. A Exposição dos Neoconcretistas. Diá- mencionado no primeiro capítulo de Silva, Ana Paula rio Carioca. Rio de Janeiro, 12 abr. 1959. França Carneiro da, op. cit. Pedrosa, Mário. Grupo Frente. 19 Refere-se especialmente a Lygia Clark: “Ao contrário, In: Cocchiarale, Fernando et al. Abstracionismo geométri- parece-nos que Ligia Clark, a expositora mais importan- co e informal: a vanguarda brasileira nos anos cinqüenta. te do grupo está cada vez mais fiel aos princípios do Rio de Janeiro: Funarte, Instituto Nacional de Artes Plás- concretismo. Chega mesmo a despojar a sua arte de ticas, 1987: 231-234. cor, tornando-a de um ‘exacerbado’ ascetismo 9 Segundo Antônio Bento, “publicado no último domingo”, racionalista.” portanto, em 05 jan. 1958. 20 Ver item 3.3. Dos limites do informal para além da pintu- 10 Bento, Antônio. Tachismo e concretismo. Diário Carioca. ra, in Silva, Ana Paula França Carneiro da, op. cit.: 161. Rio de Janeiro, 07 jan. 1958. 21Na recente publicação Crítica de Arte no Brasil: temáticas 11 Bento, Antônio. Mobilidade da arte de vanguarda. Diário contemporâneas (Ferreira, Glória (org.). Rio de Janeiro: Carioca. Rio de Janeiro, 12 jul. 1959. Funarte, 2006), há um capítulo que reúne importantes textos sobre a “tradição construtiva” e é a partir desse 12 Todos os argumentos utilizados por Antônio Bento para tema que a crítica desenvolvida na década de 1950 é desbancar a arte concreta de seu falso posto de van- representada. guarda aborreceram especialmente Ferreira Gullar, a quem Bento passa a se referir como o “crítico oficial” da obsoleta vertente abstrata. Em Crítica à autoridade, Ferreira Gullar responde diretamente ao confrade, con- testando a “história da arte concreta” apresentada por Antônio Bento em seus artigos, para mostrar como “caem por terra os argumentos com que o crítico pre- tendia demonstrar a academização da arte concreta”. Aponta os equívocos quanto às referências a Theo Van Doesburg, ao salão Realités Nouvelles, destacando a confusa análise da poesia e música concreta empreendi- da por seu confrade em Arte clássica e as experiências concretistas. Gullar, Ferreira. Crítica à autoridade. Jornal do Brasil. Rio de Janeiro, 03 mar. 1957. 13 Os conceitos que permeiam a expressão “pintura-pin- tura” encontram-se inicialmente em Bento, Antônio.

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