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2-2014

The Transnational Latin American Regionalism Of Mario Vargas Llosa And Milton Hatoum

Michele C. Kettner Graduate Center, City University of New York

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THE TRANSNATIONAL LATIN AMERICAN REGIONALISM OF MARIO VARGAS LLOSA AND MILTON HATOUM

By

MICHELE C. KETTNER

A dissertation submitted to Graduate Faculty in Hispanic and Luso- Brazilian Literatures and Languages Department in partial fulfillment of the requirements for the degree of Doctor of Philosophy, The City University of New York 2014

” 2014

MICHELE C. KETTNER

All Rights Reserved

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This manuscript has been read and accepted for the Graduate Faculty of Hispanic and Luso- Brazilian Literatures and Languages in satisfaction of the dissertation requirements for the degree of Doctor of Philosophy.

Dr. Juan Carlos Mercado

______

Date Chair of the examining committee

Dr. José Del Valle

______

Date Executive officer

Dr. Elena Martínez ______

Dr. José del Valle ______

Supervisory Committee

THE CITY UNIVERSITY OF NEW YORK

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Abstract

THE TRANSNATIONAL LATIN AMERICAN REGIONALISM OF MARIO VARGAS LLOSA AND MILTON HATOUM

By

Michele C. Kettner

Adviser: Professor Juan Carlos Mercado

The present dissertation analyzes the novels The Green House (1966) and The Storyteller

(1987), by Peruvian writer Mario Vargas Llosa, and Two Brothers (2000), by Brazilian novelist

Milton Hatoum and reinterpret literary regionalism in the Amazon region. I claim that the new variety of regionalist literature represented by both authors challenges hegemonic national representations of Peru and Brazil and conceptualizes Amazonian ecology in the context of global capitalism. In the first chapter, I evaluate the critical apparatus of the older tradition of

Latin American regionalism proposing the concept of the “region” as an “invention”

(Albuquerque Jr.). My reading reveals how the institutionalized invention of the region as a homogenous community was produced through the erasure of discursive diversity in literature and fostered by the press and the state. In the second chapter, I analyze these images and literary representations of the Amazon region and how Vargas Llosa and Hatoum break from this old tradition by emphasizing hybridity in Latin American society and the relationship between the indigenous groups, past colonizers and new immigrants. In the third chapter, I examine how the choice of setting the stories in the post-rubber era of the Amazon allowed both authors to portray the urban Amazonian areas as colonial ruins destroyed by the forces of capitalism. The authors

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used the post-rubber era as a springboard to establish a discussion about the role of immigration in the global economy as well as the economics of power in the globally marginal Latin

American countries. This new variety of regionalism represented by both authors refuses the hegemonic national representation of Peru and Brazil and conceptualizes the ecological environment within a globalized capitalist world. In their works, Mario Vargas Llosa and Milton

Hatoum reveal their theories on hybridity in Latin American society and its relationship between the indigenous groups, past colonizers and new immigrants.

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Agradecimentos:

No caminho aparentemente solitário do investigador, vários são os contribuidores aos quais se deve reconhecer e agradecer. Primeiramente, agradeço a minha família por todo o apoio, desde longe, recebido durante os anos de meus estudos pós-graduados. Ao meu irmão César, ao meu pai Murilo e, especialmente, à minha mãe Ivanilda pelo amor e apoio incondicional durante toda a minha formação acadêmica. Agradeço ao meu companheiro Scott Kettner pelo amor e confiança dados durante estes anos de pesquisa. E junto à esta família imediata, sinto-me igualmente agradecida à comunidade artística luso-brasileira de Nova Iorque, aos amigos queridos do Brasil e aos adquiridos aqui em terras estado-unidenses, uma segunda família para mim.

Em terras estrangeiras várias foram as mentes que me inspiraram ao trabalho acadêmico e ao meu crescimento profissional. Agradeço a todos os companheiros de trabalho nas faculdades do sistema CUNY e da Montclair State University pelo profissionalismo exemplar e espírito de camaradagem.

Para minha formação acadêmica de investigadora, devo agradecimentos a todos os professores do “Graduate Center” que me influenciaram, diretamente e indiretamente, durante o período dos meus estudos em Nova Iorque. Dedico um agradecimento especial à professora Lía

Schwarz que me recebeu no departamento – “Hispanic and Luso-Brazilian Lit. & Lang.” – com seu apoio incondicional dedicado tanto a mim como aos meus companheiros de estudos lusófonos. Ao querido professor Isaías Lerner, por quem sempre sentirei uma melancólica saudade de um verdadeiro espírito de valor ao conhecimento. À professora Lídia Santos, pela atenta correção de parte desta tese. À professora Elena Martínez, pela sua contínua disposição

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para efetivamente ajudar no meu crescimento profissional. Ao professor Oswaldo Zavala, pela gentileza e instigante presença intelectual nos momentos finais da escrita. Ao professor José del

Valle, pelas palavras precisas e apoio incondicional, típicos de um verdadeiro espírito de mentor e mestre. E, por fim, ao professor Juan Carlos Mercado pela confiança e apoio decisivo em momentos cruciais do meu trabalho acadêmico.

Nova Iorque, 5 de novembro de 2013.

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Índice

Introdução. 1

Capítulo I

O Regionalismo – representação nacional e novos afluentes do gênero. 23

Capítulo II

Implicações literárias: Milton Hatoum e Mario Vargas Llosa e o Regionalismo Amazônico. 89

A. A construção do mito tropical sobre as bases líquidas da memória. 95

B. O personagem regional: reflexos multicoloridos do hibridismo amazônico. 119

C. O espaço verde amazônico sob a ótica do exotismo. 134

D. A confluência das vozes amazônicas. 151

Capítulo III

Regionalismo e Globalização. 167

A. A internacionalização da economia – as águas turvas do progresso e da modernidade. 169

B. Correntes migratórias: os afluentes globais na Amazônia.186

1. Direitos do imigrantes e indígenas na aldeia global. 211

C. As veredas da natureza amazônica na paisagem globalizada. 225

Conclusão. 255

Bibliografia. 271

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Introdução

Nos estudos latino-americanos, os mundos brasileiros e hispânicos têm sido

tradicionalmente segregados por barreiras lingüísticas e perspectivas nacionalistas impostas aos

paradigmas literários. Desde a segunda metade do século XX, escritores latino-americanos vêm

progressivamente deixando turvas as pretensas claras fronteiras nacionais, proporcionando assim

um processo que requer uma análise mais holística e intertextual das obras literárias. Dois

ilustres e representativos críticos destes dois mundos lingüísticos, Antônio Cândido e Ángel

Rama, enfatizaram a importância de uma leitura latino-americanista que integrasse o Brasil e os

países de língua castelhana.1

Levando a cabo esta filosofia, a presente análise tenta estabelecer as aproximações e

diferenças entre dois escritores latino-americanos: o peruano Mario Vargas Llosa (1936) e o

brasileiro Milton Hatoum (1952). Mario Vargas Llosa possui uma vasta obra e um prêmio Nobel

em seu currículo, fruto de um carreira literária que começou no final da década de 50 e continua

pertinente na atualidade. Milton Hatoum, por sua vez, começou sua jornada pelas veredas

literárias com a publicação de seu primeiro livro Retrato de um certo Oriente em 1990. Dentro

das devidas proporções, ambos escritores são literariamente relevantes e também bem

reconhecidos nos mercados nacional e internacional.

1 No texto “Literatura e Subdesenvolvimento”, Antônio Cândido faz ligações entre os países da América Latina pelo viés do subdesenvolvimento e da euforia de país novo: “Um dos pressupostos ostensivos ou latentes da literatura latino-americana foi esta contaminação, geralmente eufórica, entre a terra e pátria, considerando-se que a grandeza da segunda seria uma espécie de desdobramento natural da pujança atribuída à primeira” (140). Desta forma, o autor encontra através desta perspectiva as similaridades entre as duas literaturas. Angél Rama, por sua vez, no livro Transculturación narrativa en América Latina, faz jus ao título de sua obra em uma proposta que permite contemplar a parte lusófona da América Latina, sempre incluindo em sua análise a literatura de língua portuguesa.

1

De maneira geral, ambos escritores articulam resquícios de memórias políticas e pessoais em seus livros, porém sempre usando o privilégio da invenção literária aliado ao apuro e à experimentação estéticos. Como escritores contemporâneos, Mario Vargas Llosa e Milton

Hatoum compartilham as particularidades de uma atualidade onde as sociedades contemporâneas tornam-se cada vez mais híbridas e a mobilidade de informação e de pessoas reestruturam os espaços sociais. Talvez estas características gerais não fossem suficientes para suscitar e estabelecer uma análise comparativa entre estes dois escritores, mas um espaço literário muito específico faz-se comum em algumas de suas obras mais importantes: o espaço regional amazônico.

A região amazônica, em verdade, funciona como um elo entre estes dois escritores que trazem para as suas narrativas contemporâneas esta região naturalmente transnacional e de inegável pertinência ecológica global. Mario Vargas Llosa e Milton Hatoum lidam com o status transnacional da Amazônia dentro de um contexto global onde as regiões dialogam cada vez mais independentemente das representações hegemônicas nacionais. Esta perspectiva foi determinante para a escolha das obras destes autores que privilegiam o espaço amazônico: La

Casa Verde (1966) e El Hablador de Mario Vargas Llosa (1987) e Dois Irmãos (2000) de Milton

Hatoum. Estas três obras apresentam espaços narrativos cada vez mais híbridos e complexos e, principalmente, uma equivalente complexidade e profundida estética que as distinguem de obras pregressas sobre a região. Desta forma, estas são narrativas que literariamente sinalizam novos rumos na escrita literária do espaço amazônico.

O Dois Irmãos de Hatoum, especificamente, chama a atenção por reunir estes elementos e também remeter o leitor aos problemas da sociedade global contemporânea. Embora o espaço amazônico seja uma constante nas obras deste escritor, Dois Irmãos é considerada a sua obra

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mais completa em termos de apuro técnico e de ampla temática que permite explorar tanto as características híbridas da sociedade amazônica e as transformações ocorridas neste espaço ao longo do tempo.2

Sobre as obras de Mario Vargas Llosa, embora La Casa Verde seja um livro mais antigo, ele já começa a trabalhar as pluralidades dos personagens da região com técnica narrativa aperfeiçoada e apresentar a Amazônia como uma sociedade mais complexa. Posteriormente, em

Pantaleón e Las Visitadoras – originalmente escrito como um roteiro de cinema –, Vargas Llosa retoma o espaço narrativo amazônico, mas é só em El Hablador que o autor, de fato, trabalha com uma Amazônia mais híbrida e, principalmente, mais conectada a uma economia mundial globalizada. É esta ponte entre uma narrativa Amazônica já híbrida – como se vê em La Casa

Verde – e com a efetiva abertura econômica das décadas da contemporaneidade – prenunciadas em El Hablador – que permite perceber as mudanças no espaço narrativo amazônico e suas idiossincrasias.

Uma análise comparativa dos livros La Casa Verde e El Hablador de Mario Vargas Llosa e Dois Irmãos de Milton Hatoum tentará revelar o estabelecimento de um novo tipo de literatura regional que tem por pano de fundo e protagonista, o espaço amazônico. Uma variedade única de regionalismo propicia uma nova percepção sobre as noções de sujeito nacional não somente por ambientar as histórias na Amazônia, naturalmente transnacional, como também por descreverem networks culturais, sociais e econômicas complexas da híbrida sociedade amazônica com o mundo.

2 Leyla Perrone-Moisés, no depoimento visto no texto “A cidade flutuante: novo romance revela amadurecimento de Milton Hatoum”, afirma categoricamente que Dois Irmãos revela um notável amadurecimento do romancista manauara, que vinha como uma promessa em Relato de um Certo Oriente, mas que naquela narrativa vê-se, enfim, o domínio pleno de sua temática e de seus meios.

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Dentro do contexto do regionalismo amazônico, é importante chamar a atenção para o fato de que ambos Mario Vargas Llosa e Milton Hatoum recusam uma associação com uma tradição e concepção velha de regionalismo por sua abordagem formulaica, isolada e estereotipada. No seu discurso de aceitação do Prêmio Nobel intitulado “Elogio a la locura”,

Mario Vargas Llosa disse que a literatura não deve ser segregada, provinciana ou regional.

Milton Hatoum, por sua vez, afirmou categoricamente em entrevista pessoal concedida para esta análise que os textos regionalistas amazônicos brasileiros eram de péssima qualidade estética e a isto deve-se sua impossibilidade de alcançarem uma universalidade (27 May 2011). De modo que, a literatura para estes dois escritores deve ser universal mesmo que tenha raízes profundas em uma localidade específica. As afirmações de Vargas Llosa e a de Milton Hatoum nos levam a refletir sobre o aparente paradoxo entre a literatura universal baseada na região e as implicações desta atitude com relação à produção de um novo regionalismo – o que será discutido, mais adiante, no primeiro capítulo.

De fato, estes escritores são profundamente conscientes desta tradição e fizeram extensas pesquisas sobre o tópico, que lhes dão uma profunda consciência do contexto literário dos seus antecedentes e lhes permite elidir potenciais armadilhas em suas abordagens literárias da região.

Embora Vargas Llosa e Hatoum resistam à conexão de seus trabalhos com uma tradição antecedente de regionalismo, a influência desta tradição permanece inevitável; e, por isso, de certa maneira, suas obras são construídas sobre esta fundação. Seus escritores podem ser considerados como parte de um abrangente gênero literário que toma o espaço amazônico como inspiração para a ambientação de suas histórias, um gênero regionalista que tem uma longa e relevante contribuição na literatura latino-americana.

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Porém, é certo que este gênero sofreu mudanças com a redefinição do panorama sócio- político e literário atual. Para poder conceituar o novo regionalismo presente nas obras de Mario

Vargas Llosa e Milton Hatoum e criar uma nova abordagem crítica, será necessário avaliar: 1) o aparato crítico anterior do regionalismo latino-americano; 2) seu contraste com o legado literário desta região; 3) e as novas condições globais determinantes para entrever um novo sistema literário de perspectiva globalizada. Desta forma, esta análise será dividida em três capítulos que tentarão acercar-se, respectivamente, destes temas e lidar, em suas subseções, com alguns pontos específicos do tema.

Desse modo, o primeiro capítulo será dedicado a explorar o gênero regionalista de uma maneira mais geral, tratando do aparato teórico usado ao longo dos anos para categorizar e avaliar o gênero, assim como suas transformações e suas mudanças em processo no mundo atual.

Usando as categorizações e classificações de obras regionalistas do Brasil – através do texto

“Literatura: Espelho da América?” de Antônio Cândido – e da América de língua espanhola – através do compêndio Historia da Literatura Hispano Americana de José Miguel Oviedo –, o capítulo I usará as referências literárias para discutir temas importantes que envolvem a conceptualização do regionalismo como gênero. Primeiramente, tratar-se-á do tema desde os primórdios do regionalismo na América Latina e suas ligações com uma ideologia nacionalista.

Decerto, na era pós-independência, o regionalismo foi percebido como um movimento literário que permitia a construção de identidades nacionais por enfatizar elementos originais e autênticos de um país (Cândido, “Literatura: Espelho da América?” 18). Ademais, o regionalismo se livraria de uma imagem homogeneizada de um nação e, conseqüentemente, promoveria uma imagem mais precisa das diferentes paisagens e culturas existentes dentro das fronteiras nacionais. No caso específico dos países dos escritores em questão, esta idéia, por

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exemplo, foi desenvolvida dentre outros por Cornejo Polar no Peru (Literatura y sociedade en el

Perú: La Novela Indigenista 16-20) e, no Brasil, por Gilberto Freyre ("Unidade e Diversidade,

Nação e Região" 140-141).

Apesar de considerar estes conceitos de pluralidade cultural, pretende-se, neste primeiro capítulo, afirmar como a literatura regional, em vez de suprimir o processo de homogeneização, o transfere microcosmicamente para a avaliação da região. Reflete-se, assim, sobre o contexto histórico e teórico do regionalismo levando em consideração a região como um discurso criado e, possivelmente, manipulado pelo estado (Albuquerque Jr. A Invenção do Nordeste 24). Ou ainda, como o teórico Roberto M. Dainotto afirma, a região como uma criação mitopoética que remete à uma possibilidade utópica de um todo não divisível (“‘All the Regions Do Smilingly

Revolt’: The Literature of Place and Region”489). Esta discussão será trazida à tona para poder afirmar que a região não é um produto unido que dará diversidade à nação, é sim, de fato, diversa dentro dela mesma.

De acordo com Ana Pizarro – uma das importantes críticas da literatura Amazônica contemporânea) –, até meados do século XX, a literatura latino-americana era caracterizada por usar um retrato homogêneo, estereotípico e folclórico da selva – hedonista ou barbárica – para assim satisfazer um mito de construção nacional. A natureza transnacional da selva Amazônica adiciona uma dimensão única à complexa discussão sobre a representação regional e nacional. A floresta amazônica inclui territórios pertencentes a nove nações (60% pertencente ao Brasil e

13% pertencentes ao Peru). Esta região não se restringe a fronteiras nacionais e seu hibridismo e complexidade engloba vários grupos sociais. Em La Casa Verde e El Hablador, Vargas Llosa escolhe a floresta amazônica e as circundantes áreas urbanas como espaços centrais dessas narrativas para expor a dinâmica de vários grupos que co-existem na região. Similarmente,

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Milton Hatoum desenvolve a história de Dois Irmãos em Manaus, capital do estado do

Amazonas, expondo as diferenças lingüísticas, raciais e econômicas de um lugar que fora visto por muitos anos como um berço do Brasil primitivo e original.

Decerto, uma maior integração mundial causada pelos fenômenos de globalização também contribuíram para que as obras literárias reformulassem a maneira de lidar com o espaço amazônico. Esta mudança de perspectivas nas obras literárias requer uma equivalente mudança epistemológica nos aparatos críticos do regionalismo. A propósito desta questão, o teórico

Alberto Moreiras acredita que um “regionalismo crítico” tem o poder de desconstruir as macronarrativas da modernidade usadas pelas nações e, mesmo assim, preservar uma unidade latino-americana reconhecendo-a dentro de um sistema global de representação (The exhaustion of difference 49). Desta forma, para levar a cabo este regionalismo crítico, as análises do segundo e terceiro capítulos irão lidar com as mudanças epistemológicas do gênero regionalista realizando-as a partir, especificamente, da análise de La Casa Verde, El Hablador e Dois Irmãos.

O segundo capítulo, em específico, também baseia-se na premissa explorada no capítulo I de que o uso da representação homogênea da região tem sido uma ‘invenção’ reiterada ao longo dos anos também por livros literários, imprensa e estado através de uso de imagens e discurso para confirmar a imagem da nação homogeneizada a despeito de sua diversidade (Albuquerque

Jr.). Neste capítulo, portanto, analisa-se como as obras de Mario Vargas Llosa e Milton Hatoum relacionam-se com os anteriores discursos literários do regionalismo amazônico e como estes autores trazem elementos inovadores na construção de um novo regionalismo. No Peru, a novela de la selva foi um discurso regionalista que retratava a floresta como um símbolo nacional usando dicotomias estereotípicas ao representar o lugar como barbárico ou hedonista.

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No Brasil, o “romance amazônico ou regionalismo amazônico” – o movimento equivalente à novela de la selva – também trabalha com estas dicotomias que remetem às crônicas coloniais pseudo-documentais – como os documentos de Gaspar de Carvajal, Acuña e

Rojas – e as tentativas de escritas científicas – como as de Humboldt e Charle Marie La

Codamine. Estas obras, embora a declarada intenção fosse documental ou científica, não descreviam objetivamente as novas descobertas da Amazônia, elas a prescreviam utilizando menções literárias, referências medievais para traduzir a nova região que se revelava diante deles.

Obviamente, chamar-se-á atenção para uma distinção entre as crônicas coloniais e as obras da chamada novela de la selva e do regionalismo amazônico através da crítica de Ana

Pizarro. A crítica chilena afirma que enquanto as crônicas coloniais veiculavam a visão do colonizador, as obras literárias produzidas pela novela de la selva, por exemplo, tinham um tom de afirmação de soberania das nações latino-americanas e isso tem muito a ver, obviamente, com o seu contexto histórico.

Na América Latina de língua espanhola, a novela de la selva prospera na primeira parte do século XX explorando a situação precária dos habitantes da Amazônia como um resultado do comércio da borracha e outros recursos naturais da região. O movimento também se desenvolve como um protesto contra o pan-americanismo proposto pelos Estados Unidos, que procurava reivindicar o direito de intervir na América Latina nos casos de transgressões notórias (“flagrant wrongdoing”). Este pano de fundo histórico do movimento da novela de la selva agrega um componente nacionalista aos escritos regionais. A medida que se buscava uma redescoberta nacionalista, os escritores deste gênero, baseavam suas narrativas nos estereótipos do imperialismo em sua artificialidade e ficcionalização.

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De fato, a utilização de referências míticas, uso memorialista dos acontecimentos e a reflexão sobre a Amazônia dentro de um contexto nacional ainda serão elementos fundamentais nas obras de Milton Hatoum e de Mario Vargas Llosa. Por isso, na primeira seção deste segundo capítulo intitulada “A construção do mito tropical sobre as bases líquidas da memória”, pretende- se ver como estes autores se distinguem das obras regionalistas amazônicas fundamentalmente a partir do trabalho estético e da diversidade nas referências míticas e memorialistas utilizadas em suas obras.

Através de uma busca na diversidade de referências (que vão abarcar mitos judaicos, indígenas e cristãos) os autores rompem com certas dicotomias de representação também explorando a diversidade de suas paisagens bem como a dos grupos sociais. Em La Casa Verde e El Hablador, Mario Vargas Llosa desfaz-se destas dicotomias ao apresentar descrições que não transitam em torno de uma representação naturalista da selva e oferecem um retrato complexo das redes sociais com relação às suas dinâmicas econômicas.

Em Dois Irmãos, Milton Hatoum desfaz a homogeneidade da identidade representada nos escritos regionalistas da Amazônia ao tratar de temas de imigração na cidade de Manaus e da integração destes imigrantes dentro da sociedade brasileira. Hatoum, que é descendente de libaneses, cresceu em Manaus e extraiu a história do livro Dois Irmãos de seus anos de formação nesta cidade. Sua família foi parte de um grupo de muitos milhares de imigrantes árabes que começaram a mudar-se para a Amazônia há mais de 120 anos, atraídos pelo boom da borracha e suas promessas de oportunidade econômica.

Na seção “O personagem regional: reflexos multicoloridos do hibridismo amazônico” dedicada ao personagem amazônico, será discutido como esta perspectiva heterogênea e diversa da região propicia uma complexidade na criação dos personagens amazônicos, que

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homogeneizados ao extremo eram transformados em tipos regionais. Através das teorias de

Derrida (“Différance” 168) sobre a impossibilidade de identidade plena – e de seu conceito de diferenças e articulação das alteridades – e a correspondente “incoerência do ser”, a qual se refere Stuart Hall (“The Question of Cultural Identity” 598), os personagens de La Casa Verde,

El Hablador e Dois Irmãos serão vistos da maneira como elementos articuladores de alteridades e diferenças dentro deste espaço narrativo. É importante notar que o personagem-narrador de El

Hablador – filho de um judeu com uma criolla de Talara e socialmente um machiguenga – e o personagem-narrador de Dois Irmãos – um descendente de árabes com certos costumes brasileiros –, especificamente, já serão emblemáticos do processo de hibridização do espaço amazônico.

De acordo com a teoria de hibridismo de Homi Bhabha (“Signs Taken for Wonder:

Questions of Ambivalence and Authority under a Tree outside Delhi, May 1817” 154), o processo de hibridização é, de fato, uma negociação entre textos e culturas ou práticas nas situações de desequilíbrio de poder. O conceito de hibridismo desafia não somente o discurso normativo da mestiçagem em sua discussão fundacional sobre a identidade da América Latina

(Lund, Joshua The Impure Imagination: toward a critical hybridity in Latin American writing 4) mas também implica uma construção de identidade simultaneamente local e global. Nos textos de Mario Vargas Llosa e Milton Hatoum, o hibridismo de diferentes crenças, conhecimentos, religiões e culturas produz um espaço em que o conflito entre elementos locais, já são heterogêneos entre si.

Esta diversidade também influenciará no tratamento com o tema do exótico, ao qual parece ser um qualificativo amplamente usado quando se refere a Amazônia e, por isso, a ele será dedicada a seção “O espaço verde amazônico sob a ótica do exotismo” do segundo capítulo.

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Através da exploração da hibridização do local, Milton Hatoum e Mario Vargas Llosa conseguem incorporar diferentes alteridades à construção discursiva da Amazônia e, assim, ver com outra ótica – característica positiva do mecanismo exótico, segundo o escritor César Aira no texto “Exotismo” – as imagens desgastadas da região. Esta seção não pretende funcionar como redenção dos escritores de construto discursivo exótico, muito menos estabelecer uma visão ingênua sobre a originalidade sem máculas e altamente inovadora dos escritores. Em verdade, processos de exotização serão observados nas narrativas considerando as relações de poder que estabelecem e na formação de estereótipos como produto de um discurso exótico. Usando a perspectiva de Edward Said em Orientalismo sobre as relações de poder que implicam a construção do “outro” em um discurso hegemônico (5-6), será possível perceber que as personagens amazônicas de representação minoritária, como os indígenas, ainda são vistos através das imagens desgastadas de uma sociedade hegemônica tanto em La Casa Verde como em El Hablador.

Em Dois Irmãos, uma maior consciência a respeito deste poder hegemônico é exercida na construção das personagens indígenas, principalmente, da personagem indígena mais emblemática da obra, Domingas. Por um lado, não há generalizações sobre os povos indígenas através da utilização desta personagem e ela se constitui um personagem-chave para entender o sistema de poder na região. Por outro lado, a exploração do elemento erótico, mais usado para caracterizar os personagens árabes do romance, vai ser debatido a fim de ver até que ponto

Milton Hatoum explora o tema do incesto – temática perene em suas obras – sem exotizar os personagens árabes de seu romance.

Devido a isso, o processo de exotização – que por sinal, conta com o desejo e desdém como partes do processo de construção do “outro”(Homi Bhabha The Location of Culture 67) –

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pode ser visto em Dois Irmãos como um tema polêmico dentro de sua construção narrativa.

Vários críticos dividem opiniões diferenciadas a respeito deste tema na obra e vêem como um dos riscos corridos pelo autor manauara na apresentação destes personagens já exotizados do oriente e colaboradores da pluralidade da sociedade amazônica.

As diferentes personagens que aparecem no espaço amazônico também vão influenciar a diversidade lingüística e o novo panorama de trabalho com a oralidade na região. A última seção do segundo capítulo, intitulada “A confluência das vozes amazônicas” se dedica, portanto, a observar a dinâmica de incorporação e articulação dessas novas vozes do espaço regional amazônico. Será possível notar que há uma ênfase também nas vozes estrangeiras ao espaço amazônico e seu diálogo com os nativos da região e, através dessas associações orais inéditas, uma reformulação sobre o status destas vozes no mundo atual.

Embora as três narrativas explorem estas associações inéditas de oralidade, as obras se diferenciam no status empregado na descrição destas oralidades particulares. La Casa Verde é o livro que menos trabalha essas associações lingüísticas e mais sofre de uma ideologia estereotípica dos estrangeiros e das línguas indígenas. Será possível perceber que, em La Casa

Verde, a oralidade e inclusão dos nativos da região se revela inócua e a maioria do vocábulo da

“selva” é usada pelo narrador em terceira pessoa para descrever a natureza. Quando há uma tentativa de representação da oralidade destes personagens em suas falas, suas línguas são igualadas a grunhidos animalescos, inócuas num mundo social.

Em El Hablador e em Dois Irmãos, a associação de personagens plurais é mais evidente e oferece um panorama interessante sobre a diversidade lingüística da região, porém, como afirmado anteriormente, o status dado às estas oralidades são diferenciados. Em El Hablador, por exemplo, a oralidade é tema marcante numa narrativa aparentemente dividida em duas onde uma

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seria, teoricamente, oral e a outra, escrita. A metade oral da narrativa, a princípio, seria a representação da linguagem de um hablador machiguenga – o conhecedor das histórias e lendas da tribo. Aparentemente, esta narrativa estrutura-se de maneira similar ao conceito de oralidade pregado por Walter Ong, onde “escrita” e oralidade são entidades dicotomicamente opostas

(Orality and Literacy 144).

Ao final do livro, revela-se que o narrador-hablador era o judeu mascarita e que este, por sua vez, era uma personagem inventada pelo narrador onipresente da obra, o narrador- romancista. Esta revelação despe algumas malhas narrativas construídas através da oralidade na obra e expõe a oralidade de romances amazônicos com uma elaboração escrita sobre uma cultura alheia à maioria dos escritores latino-americanos. Usando uma boa saída para dar verossimilhança à sua narrativa, Vargas Llosa peca por perpetuar, através da sua estruturação narrativa, um pensamento de superioridade da cultura letrada européia frente às culturas indígenas americanas.

Milton Hatoum é mais feliz na manipulação das oralidades árabes e indígenas em seu livro Dois Irmãos. Os relatos do narrador híbrido Nael, filho da empregada doméstica Domingas e de um dos filhos da família árabe, representa uma associação equilibrada no seu status na obra através da construção memorialista influenciadas primordialmente pelo personagem árabe Halim e a indígena Domingas. Esta junção de culturas e vozes na narrativa também poderá ser vista ao nível do vocabulário usado e, principalmente, nas fluidez com que eles se associam na narrativa.

Se Milton Hatoum e Mario Vargas Llosa se diferenciam no status dado à importância dessas diferentes oralidades e das respectivas culturas que essas representam, os dois escritores se aproximam pela comum perspectiva pessimista sobre a inclusão social dos nativos amazônicos e dos imigrantes da região. Ambos os autores usam os ciclos econômicos

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internacionais vividos pela Amazônia para fazer conclusões sobre a falta de inclusão social dos habitantes da região e dos novos imigrantes na partilha das riquezas da região.

Ambos autores estabelecem suas histórias durante ou depois do boom da borracha quando a Amazônia recebeu um grande número de imigrantes de todas as partes do mundo e também atraiu a atenção de investidores estrangeiros. Nas palavras de Renato Ortiz, a diversidade cultural implica uma diferença desigual porque está articulada por instituições que obedecem à uma hierarquia de poder (“Diversidade cultural e cosmopolitismo” 82-84). A dinâmica entre o local e o global está longe de ser idealizada em La Casa Verde, El Hablador e Dois Irmãos. Como alternativa, os autores aproveitam a oportunidade de discutir a intensa opressão social num intercâmbio cultural e econômico desequilibrado.

A maioria dos personagens de La Casa Verde experimentam algum tipo de exploração

(emocional, física ou econômica) e, em El Hablador, o desequilibrado intercâmbio cultural e econômico pode ser visto na interação entre norte-americanos, o governo do Peru e a tribo machiguenga. No lado brasileiro da região, em Dois Irmãos, Milton Hatoum enfatizará na interação também entre norte-americanos, principalmente, no período da segunda guerra mundial, indígenas e a multidão de estrangeiros, que foram aí num movimento impulsionado por investimentos forâneos na região.

Desta forma, o terceiro capítulo, “Regionalismo e globalização, será dedicado a explorar a diversidade trazida por esses movimentos econômicos de internacionalização econômica e lançar-se-á para as reflexões sobre as novas dinâmicas da economia global na definição da identidade latino-americana. Por exemplo, durante o período da borracha, as áreas urbanas da

Amazônia floresceram, recebendo uma grande onda de imigrantes e investidores estrangeiros.

Examinar-se-á como a escolha de usar o espaço da Amazônia no período pós-boom da borracha

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da Amazônia permitiu a Mario Vargas Llosa e Milton Hatoum retratar as áreas urbanas amazônicas como ruínas coloniais destruídas pelas forças do capitalismo. La Casa Verde, El

Hablador e Dois Irmãos usam a pós-era da borracha como um trampolim para estabelecer a discussão sobre o papel dos imigrantes na economia global, assim como a dinâmica do poder da economia nos países globalmente marginais da América Latina.

García Canclini acredita que o papel da arte contemporânea é o de redefinir as identidades nacionais e explorar a possibilidade de falar sobre as pessoas que são influenciadas e

‘oprimidas’ pela diversidade cultural (“La épica de la globalización y el melodrama de la interculturalidad” 36). Como regra, poder-se-á comprovar que a análise do impacto do capitalismo global na região dá o tom às três obras em questão de Mario Vargas Llosa e Milton

Hatoum.

Contudo, a representação da região Amazônica, arruinada pelo colonialismo e a economia global, se distingue do regionalismo marxista brasileiro dos anos 30 e da abordagem sociológica hispânica da novela de la selva. Em oposição aos prévios movimentos regionalistas,

Mario Vargas Llosa e Milton Hatoum não retratam a América Latina como mera vítima do capitalismo global; em vez disso, eles exploram como os latino-americanos também fazem parte e são elementos ativos do sistema capitalista contemporâneo.

Arjun Appadurai, um dos teóricos atuais mais importantes sobre os efeitos do processo de globalização, analisa como a economia global funciona de maneira complexa onde as forças nacionais e internacionais se sobrepõe num processo de disjunção (“Disjuncture and Difference”

29). Usando esta perspectiva junto a de Saskia Sassen (“Spatialities and Temporalities of the

Global: Elements for a Theorization” 262-263) sobre a participação do estado-nacional na

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articulação do processo global, as narrativas de Milton Hatoum e Mario Vargas Llosa serão vistas como esclarescedoras deste sistema.

Nos livros La Casa Verde e El Hablador, por exemplo, Vargas Llosa mostra como o governo federal do Peru e seus representates corroboram com um sistema de exploração estabelecido na selva. Similarmente, Hatoum condena o governo federal do Brasil apoiado pela elites locais para fazer a região suscetível para investidores estrangeiros (Perrone-Moisés “A cidade flutuante: novo romance revela amadurecimento de Milton Hatoum”). Em Dois Irmãos,

Hatoum fala especificamente sobre o presidente Getúlio Vargas, que para popular a Amazônia e suprir as forças aliadas durante a Segunda Guerra Mundial, fez um acordo com os Estados

Unidos. Os Estados Unidos investiram massivamente numa extração de larga escala do látex e financiou o deslocamento de milhares de imigrantes de todas as partes do país para trabalhar na região. Logo que a guerra terminou, a produção da borracha perdeu sua importância e, conseqüentemente, os trabalhadores foram deixados à própria sorte.

As febres econômicas e, principalmente, a ênfase no ciclo econômico da borracha mostram a desigualdade social e a opressão econômica trazidas por estes ciclos econômicos. Os autores denunciam como a globalização e a idéia de progresso e modernização que se agrega a ela geram mais desigualdades. Portanto, na primeira seção do terceiro capítulo “A

Internacionalização da economia – as águas turvas do progresso e da modernidade”, que trata especificamente do processo de internacionalização da economia refletido nas narrativas de

Hatoum e Vargas Llosa, discute-se como o espaço amazônico sofreu com processos e problemas similares aos da globalização atual em diferentes instâncias de sua economia. As teorias de

Octavio Ianni em Teorias da Globalização, David Harvey em “Time-space compression and the postmodern condition” e Mabel Moraña em “Indigenismo y globalización”, por serem as mais

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congruentes com uma postura de denúncia das desigualdades ocasionadas com o processo de globalização, servirão como apoio para a proposta de análise.

Ao longo do terceiro capítulo, as obras El Hablador e Dois Irmãos, por se aproximarem cronologicamente e proporcionar vislumbres da globalização, serão priorizadas. As similaridades entre estas obras não se restringem simplesmente à visão negativa sobre as conseqüências dos processos globais mas também estão nas estratégias usadas por estes escritores para incluir o espaço amazônico como relevante dentro desta discussão global com o uso da memória. Ambas narrativas, que narram memórias de narradores em primeira pessoa, tentam alavancar as memórias locais da região para um patamar global. Neste processo, na primeira seção, “A internacionalização da economia – as águas turvas do progresso e da modernidade”, será usado o conceito de Andreas Huyssen por ser bastante oportuno para entender este processo nas obras dos escritores brasileiro e peruano. Sua teoria afirma que a memória histórica conta com arquivos que funcionam como “usable pasts” ou “disposable data” (“Present Pasts: Media,

Politics, Amnesia” 65). Ou seja, algumas histórias são consideradas válidas e entram na memória global – os “usable pasts” – enquanto outras são ignoradas desta memória global – “disposable data”.

Nessas narrativas é possível observar que acontecimentos mundiais já absorvidos como

“usable past” – como a segunda guerra mundial – são enredados nas narrativas de El Hablador e

Dois Irmãos com as memórias locais, “disposable pasts”. Ambos autores usam esta articulação entre as memórias da região e as globais para dar um status de maior importância global à região e assim considerar os problemas locais e suas histórias de desigualdades dentro de um panorama de discussão global. Além de utilizarem as conexões no nível global para enfatizar os problemas

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da localidade amazônica, os autores também estabelecem redes globais descentralizadas a partir da utilização de personagens periféricos mundialmente.

Na segunda seção do terceiro capítulo, intitulada “Correntes migratórias: os afluentes globais na Amazônia”, as personagens nativas da Amazônia com imigrantes árabes (em Dois

Irmãos) e com judeus (em El Hablador) serão articuladas numa associação onde estes compartilham similares problemas de marginalidade. Para analisar a importância da articulação destes personagens marginalizados nas narrativas Hatoum e Vargas Llosa, utilizar-se-á a idéia de criação de junção das periferias mundiais e a criação de commons exploradas por António Negri e Michael Hardt (Multitude War and Democracy in the Age of Empire 196-202).

Esta perspectiva permitirá ver as distintas estratégias destes escritores latino-americanos, também na periferia do capitalismo, para incluir seus espaços narrativos locais e dialogar com outras periferias globais. Esta perspectiva também permitirá entrever a maior fluidez de informação sobre as diferentes culturas na contemporaneidade, porém sem utilizar uma perspectiva inocente ou utopicamente otimista sobre o acesso à estas informações. Em verdade, como bem lembra Arjun Appadurai, há uma maior fluidez de informações no mundo moderno

(“Grassroots Globalization and the Research Imagination” 5). Esta fluidez vai ser vista na maneira como ela também possibilita a criação de simulacros de culturas.

Em El Hablador, o maior acesso às informações sobre as culturas indígenas ou das sociedades latino-americanas em geral pelo público europeu é mostrado com alguns testemunhos ainda equivocados sobre estas mesmas culturas. Em Dois Irmãos, o constante equívoco lingüístico do Brasil como país de língua hispânica, por exemplo, ou a visão estereotipada e antiquada dos indígenas e imigrantes da região são também tópicos trazidos à tona para ilustrar uma fissura no elo de comunicação entre as diferentes culturas mundiais e nacionais. A inclusão

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destes indígenas e dos imigrantes à região está diretamente conectada a uma visão mais atualizada sobre a realidade destes personagens no mundo atual. De fato, em Dois Irmãos e em

El Hablador vê-se que os personagens indígenas e os novos imigrantes globais são igualmente desprovidos de direitos civis que os protejam e garantam seus direitos.

Os status ambíguo destes personagens é conseqüência de um sistema de leis civis que ainda trabalha com o conceito de cidadania nacional e falha na assimilação e inclusão tanto dos indígenas como dos novos imigrantes da globalização na região. Portanto, a segunda parte da segunda seção sobre as questões de mobilidade na Amazônia, “Direitos do imigrantes e indígenas na aldeia global”, irá discutir como a denúncia das desigualdades – enfrentadas pelos indígenas e os imigrantes na região amazônica nos livros Dois Irmãos e El Hablador – permite ver os problemas locais destes personagens como algo pertinente para a discussão atual sobre globalização.

A propósito deste tema, será colocada para análise a teoria do sociólogo BoaVentura de

Souza Santos que chama a atenção exatamente para as novas possibilidades de visibilidade dos movimentos indígenas no panorama mundial atual. No seu texto “Para além do pensamento abissal”, o sociólogo português faz uma análise de como os movimentos indígenas, representantes paradigmáticos de um sistema de direitos civis excludente, são os maiores beneficiados dentro de um novo panorama de reformulação sobre as leis de direitos civis (84).

Em Dois Irmãos e El Hablador, há diferentes explorações sobre o tema no que diz respeito às soluções para a exclusão desses indivíduos nas sociedades amazônicas. Em El

Hablador, a incorporação dos indígenas machiguengas, em específico, à sociedade civil peruana

é vista como a solução mais viável mesmo que incorra numa perda de suas tradições e costumes.

Há uma diferença fundamental neste quesito quanto à postura político-ideológica dos dois

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escritores. Em Dois Irmãos, Milton Hatoum não estabelece saídas e soluções para a inclusão social deste indivíduos. Em verdade, as obras de Milton Hatoum, em geral, estão menos centradas numa perspectiva político-ideológica do que as de Mario Vargas Llosa. Talvez, por isso, as personagens do autor manauara sejam mais bem trabalhadas a explorar seus caracteres pessoais do que torná-los símbolos ou representantes das ideologias políticas do autor. Inegável e similar é o fato de que ambos escritores possuem uma clara convicção das falhas do governo nacional em assegurar os direitos dos que habitam esta região marginal em seus próprios países.

É bem verdade que Amazônia é construída nos livros de Mario Vargas Llosa e Milton

Hatoum como um retrato de uma região que está baseada em um paradoxo. Por um lado, a região

é vista como um ponto central da globalização ecológica, por outro lado, está localizada numa economia periférica onde os governos não tem planos suficientes de desenvolvimento sustentável para a área. Desta forma, na terceira seção do capítulo III, “As veredas da natureza amazônica na paisagem global”, virá a explorar justamente como as narrativas de Milton Hatoum e Mario Vargas Llosa vão trabalhar os problemas de desigualdades nas sociedades locais amazônicas em contraste com as grandes riquezas ecológicas da região amazônica, que despertaram a ambição e as exploração desordenada da região.

A análise, primeiramente, ressalta a importância dada às obras literárias nos estudos ambientalistas contemporâneos como uma maneira de entrever soluções sustentáveis. Dentre estes estudos, serão tomadas como base as idéias de Patrick Murphy em Ecocritical Explorations in Literary and cultural Studies, Arjun Appadurai em “Grassroots Globalization and the

Research Imagination” e Ursula Heise em Sense of Place and Sense of Planet: The

Environmental Imagination of the Global. Estes três críticos enfatizam a importância da obra literária para ampliar as possibilidades de alternativas para lidar com os problemas ambientais.

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Em El Hablador e em Dois Imãos, a própria reflexão metaliterária dos narradores em primeira pessoa de ambas narrativas afirma o papel do escritor com uma postura política sobre o ambiente e os indivíduos da região. O elemento natural nas obras de ambos os autores não remete ao bucólico, ele é político e através do testemunho de sua destruição ao longo dos anos é possível entrever os problemas sociais da região.

Além disso, as obras de El Hablador e Dois Irmãos poderão ser vistas como narrativas que, ao denunciar e enfatizar os problemas antropomórficos dentro de uma perspectiva ambiental, forçam os leitores a ver os problemas da região de maneira mais holística. A perspectiva de ambientalistas como Joan Martinez-Alier e Ramachandra Guha são as mais apropriadas dentro deste contexto justamente por enfatizar como no Sul global as questões ambientalistas estão intrinsecamente conectadas aos problemas sócio-econômicos. Como os próprios autores afirmam, em seu livro publicado em conjunto Varieties of

Environmentalism:Essays North and South, não há natureza sem justiça social. Estes autores, portanto, procuram estabelecer uma perspectiva em frontal oposição aos estudos ambientais do

Norte que enfatizavam a natureza em detrimento dos problemas sociais (21).

A propósito dos problemas sócio-econômicos da região relacionados aos ambientais, em

El Hablador, há o testemunho da destruição da floresta durante o processo de internacionalização econômica da região durante o período da borracha. Em Dois Irmãos, a destruição da natureza amazônica juntamente com a desocupação das áreas de populações ribeirinhas é mostrado durante o período da ditadura no Brasil e seus planos de desenvolvimento da Amazônia. As iniciativas de desenvolvimento na região afetaram não somente o ambiente natural como também tiveram um grande impacto nas populações locais, incluindo imigrantes e indígenas que viviam nesta região. Este aspecto explorado dentro das narrativas de Milton

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Hatoum e Mario Vargas Llosa não só estabelece uma discussão sobre o capitalismo global contemporâneo como também resgata as obras literárias amazônicas que enquanto usavam a natureza local como recurso estilístico, também contemplavam uma leitura crítica sobre os processos de modernização as suas conseqüências para a natureza e as populações desta região.

Portanto, os capítulos desta análise terão por finalidade entrever as novas funções do regionalismo no mundo contemporâneo usando a região amazônica como ponto de partida para as análises das mudanças epistemológicas no gênero e entrever novas visões sobre as ditas regiões dentro de um contexto global. As obras de Mario Vargas Llosa e de Milton Hatoum La

Casa Verde, El Hablador e Dois Irmãos servirão como representantes de um novo tipo de regionalismo da região amazônica e base para esta análise por exporem a diversidade e complexidade desta sociedade e sua relação com a economia nacional e global. Ao problematizarem as imagens dicotômicas construídas por algumas obras dos movimentos regionalistas anteriores. Tanto Milton Hatoum como Mario Vargas exploram o hibridismo dos grupos sociais da região e também o papel destes diferentes grupos na relação da economia regional-global dentro de um espaço literário epistemologicamente desafiante aos antigos moldes literários regionalistas.

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Capítulo I

O Regionalismo – representação nacional e novos afluentes do gênero

O gênero do regionalismo teve seus conceitos questionados e suas estruturas conceituais transformadas ao longo dos anos. Nos primórdios das literaturas consideradas regionalistas na

América Latina, o regionalismo representou o desejo de incorporação das diferentes diversidades excluídas de uma nação ao seu conjunto de símbolos. Esta incorporação da região dentro de um plano nacional pretendia dar visibilidade às suas alteridades invisíveis e apontar para diferentes possibilidades de representação nacional.

Hoje em dia, com a idéia de nação enfrentando processos de transformação dentro de um mundo globalizado e a mudança das dinâmicas das “periferias”, as estruturas conceituais das narrativas literárias do gênero são afetadas e, obviamente, também a reflexão sobre o gênero deve refletir estas mudanças conceituais. Analisando as mudanças das implicações epistemológicas na produção regionalista, primeiramente, é preciso acercar-nos do tema remetendo ao período de nascimento das chamadas literaturas nacionais latino-americanas concomitante ao processo de independência destas nações.

Desde o século XIX, a literatura na América Latina cumpriu um relevante trabalho de afirmação de soberania das, então, nascentes nações. O nacionalismo artístico surgido pós- período de independência foi uma imposição do momento e uma condição paradigmática que propiciou o surgimento das literaturas nacionais. Nos estudos reunidos no livro Beyond Imagined

Communities por John Chasteen e Sarah Castro-Klarén, critica-se o caráter abstrato e a imprecisão da teoria de Benedict Anderson para o contexto latino-americano, justamente por reconhecerem que as obras pós-independência atuaram de maneira fundamental para à

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construção da consciência nacional.3 O processo de construção epistemológica de uma nação

implicava numa escolha de uma série de elementos que, em seu conjunto, representaria esta

determinada nação. A reunião de símbolos nacionais, que resultou em exclusão e

homogeneização culturais, foi um processo crucial na constituição dessas proto-nações.

Sob esta perspectiva, o regionalismo pôde ser entendido dentro deste contexto de

construção narrativa nacional como uma reação às exclusões implicadas neste feixe de símbolos

nacionais. Por isso, pode-se perceber que, por vezes, o discurso nacionalista não está

necessariamente excluído da retórica regional. Assim, alguns escritores acreditam que, ainda no

século XIX – quando o regionalismo surge nestas literaturas nacionais e as obras literárias se

dispersam da novela da nação para falar sobre as particularidades de regiões específicas –, mais

que uma oposição, esta retórica poderia também ser vista como uma ampliação dos símbolos

nacionais.

É interessante destacar que dentro de um panorama nacional de homogeneização de

símbolos, o regionalismo adquiriu um valor epistemológico de pluralização e

deshomogeneização das generalizações no sistema das literaturas nacionais. Para o antropólogo

Gilberto Freyre, o regionalismo contribuiu significativamente para a construção nacional e para

afirmar as peculiaridades da colônia, pela sua capacidade de proporcionar uma quebra da

imagem totalmente homogênea ou polarizada de uma nação.

3 Beyond Immagined Communities foi publicado em 2000 e reavalia o conceito de comunidade imaginada de Benedict Anderson em pontos fulcrais, em especial, no que se refere a dar maior relevância à formação de “consciência nacional” latino-americanas nos anos pós-independência. Segundo Chasteen: “…Anderson’s premise that a national consciousness preceded the wars of independence and defined the boundaries of the resulting independent republics is entirely at variance with the consensus of Latin Americanist historians and critics. Latin Americanist historians and literary scholars insist that these nations remained more aspiration than fact for many decades after gaining independence between 1810 and 1825; that, contrary to the situation in Europe, “states preceded nations” in Latin America; and that, reversing the more familial model of irredentism, they long remained “states in search of nationhood”(xviii).

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No texto Novo Mundo nos Trópicos, o antropólogo pernambucano critica, assim, o posicionamento estrangeiro que polariza o Brasil em sua forma de olhar os trópicos, mostrando o país ora como selva, ora como cosmopolita. A análise das realidades sub-regionais possibilitaria uma visão mais holística da cultura dos trópicos, com maior respeito a seus diferentes aspectos e particularidades.

Nesta perspectiva, a ‘região’ poderia oferecer muito a uma nação, principalmente na construção de sua imagem. Também poderia funcionar, segundo o pensamento freyriano, como uma maneira sadia de nacionalismo, promovendo um equilíbrio entre a importância regional e a afirmação nacional. Assim, o regionalismo é de certo modo visto por Gilberto Freyre como uma forma de contra-colonização pois evita nacionalismos excessivos e internacionalismos exagerados. Para enfatizar a importância do regional na configuração de um nacionalismo equilibrado, Gilberto Freyre correlaciona a democracia de influências culturais do Brasil com o caráter similarmente democrático do regionalismo.4

Levando em conta as três influências culturais firmadas pelo antropólogo (a regional ou indígena; a nacional; e a supranacional ou cosmopolita), ele destaca o regionalismo como uma

4 Este processo democrático está ligado à crítica que Gilberto Freyre faz à política estadista adotada pelo primeiro período da política republicana no Brasil, quando, segundo ele, existia a dominação do sobre os outros estados. Este processo foi chamado por Freyre de castelanização do Brasil, numa referência à política de supremacia da Castela de Filipe II. Gilberto Freyre identifica o papel da Catalunha na Espanha com o estado de São Paulo e o do Rio de Janeiro, com o de Castela. Freyre afirma ainda que, antes do estado fortíssimo de 1937 até 1945, o Brasil possuía uma tendência mais democrática, social e etnicamente. De fato, Freyre acredita na constituição democrática das raças formadoras do Brasil, sendo este, assim, um país culturalmente e originalmente democrático. E, assim, defende categoricamente Freyre um federalismo brasileiro: “Pois de regiões é que o Brasil, sociologicamente, é feito, desde os seus primeiros dias. Regiões naturais a que se sobrepuseram regiões sociais...Regionalmente é que deve ser o Brasil ser administrado” (Manifesto Regionalista). De fato, Freyre acredita também na necessidade de uma certa homogeneização e chega a reproduzir as palavras de Roosevelt, de que é preciso uma certa homogeneização para evitar que o país vire “uma casa de pensão”. O regionalismo viria a fazer o seu trabalho ‘complementar’ de suavizar centralismos. Esse discurso de Freyre está em harmonia com essas palavras do crítico Afrânio Coutinho colocadas aqui para reiteração desta análise: “The regions do not produce isolate literatures, but rather they contribute their differences to the homogeneity of the literary landscape of the country”(175).

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forma mais representativa da expressão nacional. Numa conferência proferida em 1944 nos

Estados Unidos e sugestivamente intitulada "Unidade e Diversidade, Nação e Região", Freyre

diz:

Uma região pode ser politicamente menos do que uma nação. Mas, vital e culturalmente é quase sempre mais do que uma nação, é mais fundamental que a nação como condição de vida e como meio de expressão ou de criação humana (140-141).

Em verdade, Gilberto Freyre coloca a consciência nacional em função do regional. O

regionalismo para Gilberto Freyre constitui-se em uma forma de assumir as condições exatas,

plurais, do país, evitando imitações do modelo europeu com o intento de parecer tão ‘civilizado’

quanto às nações européias.5 O regionalismo, assim, apresenta-se como um elemento construtor,

não só de uma literatura nacional, mas também de um discurso nacional promovido para criar

uma imagem unificadora e singularizante de um país.

Afrânio Coutinho, um dos primeiros a recuperar as teorias de regionalismo de Araripe

Júnior6, citando este teórico, também faz asserções que mostram uma maneira de pensar similar

a de Freyre: “In this part of the globe, the masses developed into a peculiar civilization in a

specific historical and geographical situation. It could not help but be a different culture, even

though it was enriched by the cultural heritage of the West” (198-199). O homem que veio às

5 Em um texto também que fora publicado no México e intitulado “A experiência portuguesa no trópico americano”, Freyre fala sobre a influência lusófona no continente americano, sua afamada criação de uma teoria sobre a cultura luso-tropical e, principalmente, sobre a necessidade de divergir das suas influências. Sobre a cultura latino- americana, em geral, disserta Freyre: “...a cultura latino-americana vem se apresentando mais interessante naquelas áreas e naqueles aspectos em que mais tem divergido da típica cultura ocidental ou européia – como na parte mexicana – também parece ser exato da cultura ou civilização que se possa chamar, hoje, lusotropical, que a sua virtude parece estar cada vez mais na sua capacidade de divergir da civilização européia ou portuguêsa, sem negá-la, contraria-la ou combatê-la, mas tornando-a mais simbiótica com as diversas culturas tropicais a que se tem juntado” (24-25).

6 Crítico, jornalista e advogado cearense, Araripe Jr. criou a teoria da “obnubilação brasílica”: excesso de luz solar que cega, uma metáfora para um ambiente tropical que impõe que os indivíduos abandonem suas tradições e se adaptem ao meio. O teórico cearense analisava o fenômeno relatado desde as crônicas coloniais. Para Araripe Jr., o fenômeno da obnubilação continuava a ser presente na sua contemporaneidade e era um conceito que associava a formação da literatura brasileira e seu “caráter”, para mostrar o fenômeno de diferenciação/ ‘originalidade’ nacional.

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Américas se transformou e, assim, passa a existir nesta parte do novo mundo um desejo de

afirmação de uma nacionalidade.7

Antônio Cândido também destaca a relação entre nação e regionalismo com uma

definição elucidativa das expressões regionais:

Na literatura brasileira, “regionalismo” designa sobretudo a narrativa cujo o tema é a vida nas zonas afastadas, com usos e modos de falar próprios, em grande parte de cunho arcaico. Esta modalidade era apresentada em meados do século XIX pelo erudito Odorico Mendes como a terceira via possível e mais peculiar de uma literatura nacional (grande projeto daquele momento), sendo as duas outras o indianismo e os temas urbanos, de cunho mais próximo ao das literaturas européias. (“Literatura, Espelho da América?”19)

Antônio Cândido chega a afirmar que o regionalismo é uma transformação do nacionalismo

romântico que surgiu com o Romantismo brasileiro na primeira metade do século XIX. 8 Para

Cândido, os escritos de Franklin Távora, os textos regionalistas de José de Alencar e o posterior

surgimento da escola do Recife em 1870 são grandes expoentes da literatura patriótica desde

uma perspectiva regional. Portanto, segundo Cândido, o Brasil utilizou-se da idéia do local para

a construção da imagem nacional desde o Romantismo, período em que a maioria das nações

latino-americanas começaram a afirmar-se como nações. Trabalhando com essas premissas,

Cândido afirma:

No Brasil, o Romantismo coincidiu mais ou menos com a independência política e favoreceu a definição do nacionalismo por ser uma estética voltada para as

7 Nesta linha de pensamento, mas com uma visão ligada à Nova Crítica Americana, adiciona Coutinho: “Whatever the esthetic colorations might be by which it can be distinguished, Brazilian literature in the twentieth century is crossed by a central current — the preoccupation with Brazilianness, the search for it, its artistic interpretations”(202).

8 Referindo-se ao Nordeste brasileiro, Antônio Cândido mostra como o nacionalismo, presente na corrente romântica da época, transforma-se nesta região para se tornar um regionalismo literário: “O nacionalismo romântico, cioso da terra e dos feitos brasileiros, se transformou lá, graças a este processo, num regionalismo literário sem equivalente entre nós e bem ilustrados nos romances de Franklin Távora” (Formação da Literatura Brasileira 614).

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particularidades do país, isto é, tudo aquilo que constituía a sua característica e marcava sua singularidade.(...) Romantismo, nacionalismo, individualismo, cor local — todos se uniram numa fórmula de fundação dos países latino-americanos, e a isto se juntou o desejo de dar dimensão literária aos falares regionais e aos traços de diferenciação lingüística. (“Literatura, Espelho da América?” 18)

Ancorado em uma perspectiva sociológica, Antônio Cândido afirma que, com a mudança de

percepção e de condições históricas do sujeito produtor, mudou-se também a produção cultural,

mostrando como a literatura que usa a cor local resistiu aos processos de urbanização e persistiu

até os dias recentes. Desta forma, a literatura nacional teria evoluído desde um regionalismo

romântico pitoresco (caracterizado por movimentos separatistas, como do escritor romântico

Franklin Távora, e do romântico integralista José de Alencar) à primeira “consciência de um país

novo” (representada pela literatura de denúncia social do movimento de 30, pós-semana de arte

moderna) para enfim chegar ao “super-regionalismo”, quando finalmente a literatura brasileira

com cores locais irá alcançar o universalismo, além de trazer as marginalidades excluídas ao

cânone da literatura brasileira.

A idéia de representação de uma identidade nacional pluralizada tem seu correspondente

no Peru com teóricos como José Carlos Mariátegui e Antonio Cornejo Polar. Críticos como

Mariátegui, que tiveram suas teorias retomadas posteriormente por Cornejo Polar, irão enfatizar

o reconhecimento das heterogeneidades de seus países como o melhor viés para pensar numa

nação menos européia e mais peruana.9 Como um dos mais famosos articuladores do movimento

indigenista, Mariatégui afirmava que para os jovens da sua época o indigenismo era visto como

9 Cornejo Polar, no livro Literatura y sociedade en el Perú: La Novela Indigenista, faz uma observação sobre o romance indigenista e o regionalista, em geral, usando a obra de Arguedas como exemplo para discutir o equívoco de pensar que o regionalismo exclui inevitavelmente algum teor nacional ou universal: “El tenso y enriquecedor proceso que diseña la narrativa arguediana pone de manifiesto, además, otro de los aspectos que deben dilucidarse al estudiar la novela indigenista [...] es el problema de sus relaciones con las categorías de lo nacional y lo universal, problema que normalmente se ha planteado en términos antinómicos como si el indigenismo – y en general todo el regionalismo – fuera la antítesis del nacionalismo y universalismo”(84).

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uma das soluções para incorporar estas heterogeneidades ao corpo nacional. Assim como ele, os

jovens de sua época: “Sienten el deber de crear un orden más peruano, más autóctono” (Siete

Ensayos sobre la Realidad Peruana 170).

Também falando sobre o processo de homogeneização na formação das nações hispano-

americanas, Cornejo Polar confirma a utilização das idéias dos românticos europeus pelos

hispano-americanos para destruir as “dissidências culturais” e assim construir nações fortes, unas

em língua e cultura. Para acabar com estas pluralidades que ameaçavam a unidade da nação

foram adotados programas educativos uniformizadores e o estabelecimento de um sistema de

produção e mercado econômicos fortemente centralizados. Sobre esta centralização

homogeneizadora, Cornejo Polar disserta:

En Hispanoamérica, contrariando las evidentes fracturas que trozaban internamente cada nación [...] En el siglo XIX y en una amplia primera parte del XX, la obsesión primaria fue de la de la “integración” de cada uno de los países mediante políticas educativas definidamente aculturadoras, que se suponía terminarían por borrar las disidencias culturales[...]la idea subyacente era convertir lo heterogéneo y conflictivo, inclusive enconadamente belicoso, en un espacio homogéneo y de ser posible armónico.(“La “Invención” de las naciones hispanoamericanas. Reflexiones a partir de una relación textual entre el Inca y Palma” 142)

Em prol de um espaço possivelmente “harmônico”, paradigmaticamente construído sobre bases

européias, a literatura foi protagonista ao construir um espaço uno e homogêneo ao qual

almejavam os nacionalistas. A literatura peruana veio, por influência de escritores como

Mariátegui e Cornejo Polar, incorporar diferentes pluralidades como uma possibilidade de

enriquecimento da literatura nacional. Em busca de um nacional pluralizado foram feitos

esforços de recompilar textos das literaturas populares e vincular o processo cultural e histórico

com a literatura.10 A inclusão de diferentes oralidades e das heterogeneidades que ficaram de

10 Cornejo Polar, influenciado pelas idéias de Mariátegui, chega a uma nova concepção do corpus literário peruano que se dividiria em três sistemas: a literatura erudita em espanhol, a literatura popular em espanhol e a literatura em 29

fora do plano nacional seria a única maneira de construir uma verdadeira nacionalidade que

representasse as nações individuais hispano-americanas construídas a partir do século XIX.

Para analisar como a literatura de cunho regional provocou um debate sobre a inclusão

das diferentes alteridades e, assim, funcionar como um espaço de resistência a um nacionalismo

excludente, tentar-se-á expor aqui alguns dos mais importantes movimentos literários que

surgem no século XIX e seu desenvolvimento durante o século XX. Este panorama literário

servirá com um trampolim para a avaliação de paradigmas teóricos e, assim, poder lançar as

problematizações do gênero nas obras contemporâneas e as suas devidas mudanças

epistemológicas.

Começando, primeiramente, com a literatura de língua portuguesa na América Latina,

segue a categorização canônica do teórico Antônio Cândido apresentada no texto “Literatura:

Espelho da América?” Com esta, tem-se uma breve exposição dos movimentos considerados

como regionalistas na literatura brasileira para elaborar algumas discussões, pontuar relevantes

bases teóricas do gênero e, posteriormente, tomar algumas obras como corpus literário pertinente

ao conseqüentes debates e posturas teóricas adotadas ao longo desta narrativa.11 Para Antônio

línguas nativas (andinas e amazônicas). Cada sistema teria sua própria dinâmica porém se reuniriam no Indigenismo. Em Literatura y sociedade en el Perú: La Novela Indigenista, várias vezes Cornejo Polar acentua este caráter heterogêneo da produção indigenista, seja se referindo a sua heterogeneidade cultural (22-24) equivalente a uma heterogeneidade social (16-20), até mesmo para uma reflexão sobre a validade do movimento como um verdadeiro “indigenismo” (85-88). Em geral, critica-se esta teoria de Cornejo Polar por faltar nela um desenvolvimento de estudos de casos concretos e uma metodologia específica para lidar com o corpus literário.

11 Traçando um panorama e a importância dos movimentos regionalistas peruanos no livro Las provincias contraatacan:regionalismo y antricentralismo en la literatura peruana del siglo XX, Juan Zevallos-Aguilar faz uma ressalva sobre a sua própria listagem de obras por considerar a utilização de uma cânone regionalista como uma arriscada missão (12). Para Zevallos-Aguilar, o cânone regionalista foi construído sobre as premissas de que as regiões periféricas mostram lugares atrasados ou selvagens e a capital, como o berço do progresso e da civilização. Ou seja, o estudo e a escolha destas obras já implicam numa reprodução de uma ideologia sobre centro e periferia (12). É interessante trazer esta observação do mencionado teórico para pensar em listagens e cânones mais além de uma estrutura fixa. O exame de uma listagem deve incluir reflexão sobre as ideologias que implicam e implicações teóricas que a constroem.

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Cândido, existem basicamente quatro grandes manifestações regionalistas dentro da literatura

brasileira desde sua consagração como literatura nacionais, estas são:

1) Regionalismo romântico: Antônio Cândido denomina este como o primeiro momento do

regionalismo no Brasil que se caracteriza pelo intuito de descobrir o país através da ficção e

exploração de suas zonas remotas. Este Romantismo divide-se em duas vertentes uma quase de

caráter separatista, representada por Franklin Távora, e a outra de um projeto de integração,

representada pelos textos regionalistas de José de Alencar. Em sua Formação da Literatura

Brasileira, Cândido acrescenta que Távora, hoje deixado ao esquecimento, foi o primeiro

romancista do Nordeste (em referência a uma linhagem que culmina com o regionalismo de 30).

A sua obra mais conhecida, certamente, é O Cabeleira (1876), seguidas por O matuto (crônica,

1878); o romance Lourenço (1878); Lendas e tradições do norte (1878), O sacrifício (1879).

José de Alencar, cearense muito ativo literariamente e politicamente, que virou ícone do

movimento romântico no Brasil cultivou variados tipos de romances. Dentre estes, os seus livros

considerados regionalistas são: O gaúcho (1870); O tronco do ipê (1871); Til (1872); e O

sertanejo (1875). O interessante na observação de Antônio Cândido destes dois autores cearenses

é a discussão trazida à tona pelas cartas em que Távora criticava José de Alencar pela sua falta de

conhecimento sobre a paisagem do Sul do país para escrever O gaúcho. Em torno de uma das

discussões fundamentais para temática do regionalismo, Antônio Cândido consegue equilibrar

sua crítica entre a importância devida da observação social para a construção de uma literatura

verossímil e a independência das letras com relação a esta observação.12

12 Uma postura aparentemente paradoxal por parte de Antônio Cândido, porém que consegue equilibrar a importância do conhecimento social na construção do verossímil sem criar dependências entre a observação da paisagem e sua descrição fidedigna numa literatura dita regional: “A virtude maior de Távora foi sentir a importância de um levantamento regional (616)...Achava que Alencar falhou n’O gaúcho por não conhecer 31

2) Literatura sertaneja: Numa fase de intensa urbanização que compreende o final do século

XIX e princípios do século XX, estes escritores escolheram a contemplação lúdica da vida campestre. O único, parece, merecedor de menção foi Afonso Arinos que, segundo Cândido, peca por reificar uma segregação entre o ambiente urbano, dotado com os privilégios da civilização, e um ambiente rural atrasado. Em geral, esta pode ser considerada uma literatura de baixo valor literário que primava pelo pitoresco e o exótico e se desenvolveu paralelamente à literatura realista, a qual Cândido diz ser comumente ligada ao gênero regionalista pelo seu costumbrismo. Esta, na verdade, é a discussão mais interessante na ponte feita entre escritores como Franklin Távora e José Alencar e os escritores ‘sertanejos’ e a que, definitivamente, interessa neste contexto de discussão mais amplo sobre o regionalismo. Obras de características regionalistas não podem ser consideradas ou estabelecidas desde uma expectativa implícita com um vínculo ou uma descrição quase que didática de um local. Esta conclusão, embora já redundante em discussões sobre estética literária, ainda é válida no discurso regionalista.

Algumas obras categorizadas como regionalistas refletem simplesmente uma retórica alienada da realidade de um certo local, reconhecida como documental, porém com profundas raízes no pitoresco e nos clichés estereotípicos de um lugar. A lembrança canônica dos românticos em comparação ao quase completo esquecimento dos costumbristas do final do século XIX parece uma boa argumentação ilustrativa para negar um pretenso valor documental ou descritivo sobre uma localidade específica.

3) Regionalismo de 30: Na década de 30, surge o chamado “Romance social”, nomeado assim pelo seu viés de denúncia. Na literatura produzida nesta época, Antônio Cândido detecta uma perda do cunho pitoresco e da idealização nacionalista romântica. Além disso, uma maior objetivamente o pampa e os seus habitantes. Ora, o que lhe faltou foi justamente o poder alencariano de construir o ambiente e os personagens com mais elementos do que a fidelidade” (Formação da literatura brasileira 619).

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complexidade narrativa, até então inexistente, pode ser percebida nos escritos deste período. A preocupação com os problemas sociais também deu frutos, como os romances panfletários do jovem e do Vidas Secas do mestre Graciliano Ramos. Outros autores merecem ser mencionados, dentre eles estão: a) José Américo de Almeida, considerado o precursor desta onda regionalista e consagrado pela obra A bagaceira de 1928; b) Raquel de Queiroz, com as obras mais emblemáticas como O Quinze de 1930, João Miguel de 1932, Caminho de pedras de 1937 e As Três Marias de 1939; c) Érico Veríssimo, com a paisagem do Rio Grande do Sul nesta década mais presente no romance Olhai os Lírios do Campo de 1938 e culminando com a trilogia O Tempo e o Vento publicada nas três décadas posteriores; d) e José Lins do Rêgo, este com vários romances dedicados ao espaço do Nordeste como Menino de Engenho de 1932,

Bangüe de 1934, Moleque Ricardo de 1935 e Fogo Morto de 1943.

4) Super-regionalismo: Na década de 50, Antônio Cândido aponta o surgimento do escritor mineiro Guimarães Rosa na cena literária nacional. Guimarães Rosa já havia publicado em 1946 o livro de contos e novelas regionalistas, Sagarana. Porém, Cândido menciona Corpo de Baile e

Grande Sertão Veredas como exemplo de obras que superavam, porém ainda conservavam o

“pitoresco” do regionalismo. É a partir deste ponto que ocorre uma maior aproximação entre as literaturas brasileira e a de língua espanhola e os críticos literários são parte fundamental para o reconhecimento e construção desta aproximação. Cândido endossa as palavras de Angél Rama ao identificar um novo grupo de escritores “latino-americanos” que utilizam técnicas de vanguarda e mantém o temário regionalista. Neste grupo de escritores estão: Guimarães Rosa,

Juan Rulfo, Gabriel García Marquez e Mario Vargas Llosa. Acrescentando uma denominação à classificação de Rama, Cândido denomina este grupo de escritores como representantes do

“super-regionalismo”. A denominação super-regionalismo expressaria uma evolução do

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regionalismo romântico ao universalismo moderno. Se a avaliação sociológica de Antônio

Cândido peca pela perspectiva cronologicamente evolucionista da literatura regional, ela traz reflexões pertinentes sobre a literatura da América Latina desde uma perspectiva comparativa e em diálogo direto com outros meios literários.

Assim como no Brasil, na literatura latino-americana de língua espanhola, desde o

Romantismo da literatura gauchesca rio-platense passando pela novela de la tierra e pelo indigenismo, os ditos movimentos regionalistas constituíram-se peças fundamentais para a articulação da literatura nacional de seus países e, durante este processo, também propiciaram o surgimento de autores e obras emblemáticas. A lista toma como principal base os estudos do teórico José Miguel Oviedo no compêndio Historia de la Literatura Hispanoamericana, mas assumirá formas diferentes para enfatizar reflexões relevantes no caminho do regionalismo.

Algumas obras serão retomadas posteriormente dentro de discussões específicas relativas ao regionalismo, sendo este um mero panorama superficial dentro de um formato classificatório.

1) Criollismo: o criollismo aparece nesta listagem para estimular algumas reflexões importantes já trazidas à tona na classificação do teórico brasileiro Antônio Cândido sobre as relações entre regionalismo e realismo. Cabe destacar que, primeiramente, a imprecisão do termo criollismo criticada pelo próprio José Miguel Oviedo é, de certa forma, perpetuada em sua categorização.13 Oviedo coloca três movimentos dentro de uma mesma “órbita realista”: a) o

13 Oviedo afirma: “El problema con el membrete <> es que, siendo de uso muy extendido en las historias literarias, resulta impreciso y difuso: en vez de aclarar, confunde…Los críticos de su tiempo lo usaron para distinguir a los nuevos autores que se apartaban notoriamente del cauce modernista; esa disidencia estaba dada por el afán <> de crear una literatura a la vez nacional y universal…” (Historia de la Literatura Hispanoamericana: 3 200-201).

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criollismo, b) algumas “vozes femininas na poesia” e o que ele chama de c) “grande regionalismo”. Embora, encontrem-se numa mesma “órbita”, as conexões entre esses movimentos não são claramente exploradas. Dentro desta análise, as “vozes poéticas femininas” dentro da “órbita” do realismo é um exercício de categorização mais deslocado ainda do que o criollismo. Embora na última página desta mencionada seção haja uma menção sobre algumas linhas de similaridades – especificamente sobre o uso de um mundo criollo na obra de Tereza de

La Parra em comparação com a ‘regionalista’ Doña Bárbara (286) –, a relação entre vozes poéticas das escritoras mencionadas e um mundo realista do regionalismo é, de maneira geral, ignorada e a própria conexão entre estas diferentes escritoras não fica clara. Com relação ao criollismo, tópico mais pertinente à nossa reflexão, a classificação de Oviedo o coloca como um

“primeiro regionalismo” (201), de afã nacionalista e universal, e como uma variante étnica e terrígena do realismo do século anterior (202). A perspectiva evolucionista do regionalismo que apresentou Antônio Cândido em sua listagem parece ecoar na classificação do crítico peruano pois esta apresenta as obras criollas de escritores chilenos e argentinos como textos inventores/ fundacionais (no sentido poundiano) para o “grande regionalismo” que viria posteriormente. Ao lidar com esta perspectiva, a observação da análise de Oviedo estimula o debate de questões também levantadas nas observações de Antônio Cândido como: o pitoresco como característica classificatória de uma obra regional, o valor documental no gênero regionalista, e a meta- reflexão do ofício do crítico literário dentro destes parâmetros. Primeiramente, é possível fazer uma relativização sobre o que seria o ‘pitoresco’ de acordo com a perspectiva de periferia adotada. Na época do criollismo – onde há uma afirmação das distinções nacionais da América

Latina dentro de um plano global – tanto o urbano como rural poderiam ser usados com um intuito de trabalhar cores locais. Utilizando as obras criollas como base para a discussão teórica,

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é interessante constatar que os romances de escritores argentinos como Lynch, Gálvez e Arlt utilizaram a paisagem urbana como matéria-prima para seus espaços. Usando o exemplo de El inglés de Benito Lynch, Oviedo enfatiza como este escritor conseguiu mostrar o encontro de diferentes culturas e testemunhar as mudanças que vinham ocorrendo na sociedade argentina.

Este é um ponto interessante por considerar a realidade urbana como uma forma de representação local. Porém, um dos argumentos principais nesta classificação de Oviedo enfatiza o pitoresco, as falas regionais e a superficialidade no trabalho com as personagens (212). Ora, de certa forma esta afirmação implica na tomada do elemento pitoresco como característica regional e também, de certa forma, há uma repetição de um protótipo que liga regionalismo à uma obra de menor qualidade e com uma função distorcidamente didática. Por estes meandros críticos,

Oviedo acaba por citar também um outro autor relativamente desconhecido, Manuel Gálvez.

Com qualidades de documentalista, Galvez parece não ter conseguido livrar-se, dentro de seus romances mais destacados (La maestra normal; El mal metafísico e Nacha Regules), dos modelos naturalistas do século XIX. Ambos escritores de cunho provinciano, por serem de literatura menor, parecem ter a validade adequada para que o teórico peruano os chame de escritores regionalistas. Este ‘equívoco’, que parece enfrentar o mesmo problema na crítica brasileira (Machado de Assis, extremamente provinciano, com obras de reconhecido valor literário nunca seria classificado como regionalista), revela boas reflexões iniciais e gerais sobre a literatura regional. Mais interessante é quando neste mesmo grupo José Miguel Oviedo situa o escritor Roberto Arlt com grandes ressalvas pela sua experimentação estética que o equivale a autores como Céline e Bacon (216) ou ainda outros escritores hispano-americanos, como Onetti,

Cortázar e Puig, que transpassam “las fronteras del realismo llano” (214). Desta forma, o pitoresco está ligado ao valor documental que certa obra teria por testemunhar maneiras sociais

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distintas. Daí também uma correlação do gênero com as características realistas/ constumbristas pois se uma dita obra regionalista não possui valor literário, ao menos pode cumprir uma ‘função’ histórico-documental. Nesta afã de obter um valor documental a partir de uma obra literária, considerações sobre características literárias são obliteradas e certas obras imediatamente absorvidas dentro de uma irresistível e vaga classificação regionalista. Desta categorização vem uma reflexão importante: não seria, então, um superficial intepretação de textos regionalistas como planos e superficiais algo realmente válido de revisão? A fácil categorização de obras sustentadas apenas por uma dita representação pedagógica ou uma análise sociológica/ antropológica de um espaço determinado pode representar um risco de restringir as premissas teóricas de um gênero. Se a maioria das obras trabalham com um espaço específico – geralmente, integrado com a sociologia do espaço e, nesta dinâmica, de seus personagens – , a expansão das bases epistemológicas do gênero seria necessária porém com cuidado para não recair em generalizações vagas. Certamente, o pitoresco e exótico são elementos característicos de uma literatura de caráter inferior dentro de qualquer gênero em que sejam cultivados. Portanto, o estabelecimento de argumentos mais específicos e determinados sobre espaço/ periferia ajudariam no processo de reflexão epistemológica do gênero.

2) O Grande Regionalismo Americano: Característico dos princípios do século XX, utiliza- se do espaço natural das regiões distantes dos ditos centros econômicos urbanos. Oviedo afirma que o pai deste grande regionalismo é o uruguaio Horacio Quiroga. Quiroga escrevia sobre o conflito entre o ser humano e a natureza, a vida nas fronteiras das Missiones e a análise do ser humano em condições extremas. A novela regional ou novela de la tierra (designação que enfatiza sua oposição ao ambiente urbano) 14 lidava com um reconhecimento físico da geografia

14Carlos Alonso faz uma reflexão sobre o termo novela de la tierra e as suas implicações teóricas no livro The Spanish American Regional Novel. Primeiramente, Alonso chama atenção para como o termo geralmente é 37

americana e o comportamento de seus habitantes frente a ela. Segundo Oviedo, interessantemente, estas obras coincidem com a geografia da selva, podendo assim, serem chamadas de novela de la selva. Dentre os escritores que se destacaram neste gênero estão

Ricardo Güiraldes com romance Don Segundo Sombra, Rómulo Gallegos com o romance Doña

Bárbara e Eustasio Rivera, com a obra La Vorágine. São estes os escritores escolhidos por

Oviedo como as três expressões da novela regional americana, caracterizada por exibir uma modernização dos esquemas narrativos e uma superação do criollismo de mentalidade provinciana (226-227). Sobre La Vorágine, Oviedo destaca o documentalismo e a grandiloqüência, tal qual a selva que devora o protagonista Arturo Cova, também devoram o relato. Da obra de Güiraldes, o crítico chama a atenção para a falta de verossimilhança na construção do personagem gaúcho comprometida pela sua visão de filho de fazendeiros de gado

(238). Também a verossimilhança na construção dos personagens principais de Doña Bárbara é prejudicada, neste caso, pelos transbordamentos retóricos de sabor romântico (247). Observa-se que, nestas pontuais observações críticas sobre três obras emblemáticas do “grande regionalismo”, os problemas com a verossimilhaça parecem estar ligados a uma grandiloqüência essencialmente ‘romântica’. Mais uma vez, a expectativa de um certo caráter didático-geográfico para solucionar uma ignorância ou caricaturização dos espaços periféricos de uma nação parece incorrer no pressuposto de que uma linguagem menos caricata e exótica deva apresentar, quiçás, características mais ‘realistas’. A oscilação entre o reconhecimento do valor literário destas obras e o valor de redescobrimento/ reconhecimento de geografias locais (228) é grande chave paradoxal na avaliação dessas narrativas. Além dessas obras representativas do “grande percebido como englobante de várias coisas díspares, ou então uma atitude secundária a isto, que é a de uma divisão infinita de subgêneros que haviam surgido com o afã de vencer o abstracionismo do termo (39). Dentro deste contexto, o teórico propõe uma leitura paradoxal e contraditória por tentar traçar os princípios do gênero e, ao mesmo tempo, contrariar os pressupostos que o definem (44).

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regionalismo”, outros movimentos regionalistas são listados porém situados em diferentes

“órbitas” classificatórias. Outros movimentos trabalhados de maneira mais dispersa nestas

classificações foram a literatura gauchesca, o indigenismo e o novo regionalismo americano.

3) Gauchesca Rioplatense: A literatura gauchesca da região da Prata caminha de mãos

dadas com os ideais românticos, e assim como no Brasil, no final desse período literário afloram

os vieses realistas que contemplam as ditas realidades regionais. O gênero, que se inicia com

Bartolomé Hidalgo e culmina na obra Martín Fierro de José Hernández, apresenta uma

reelaboração artística da oralidade do gaucho da Pampa. Dentro de uma linha de construção

nacional de Herder, a nação em construção pós-período revolucionário deveria basear-se de uma

língua, literatura nacional e folclore únicos.15 Ao contrário do que acreditam alguns críticos, o

Facundo de Sarmiento, embora não seja uma obra gauchesca, ainda assim enfatiza o personagem

tipicamente argentino e periférico à modernização do país. Este personagem, em toda sua

complexidade, é um símbolo nacional ainda estado bruto ao lado de outros personagens como o

baqueano, o matreiro ou o rastreador. Outros expoentes da literatura gauchesca são Hilario

Ascasubi (com obras como Santos Vega o Los Mellizos de la Flor), Paulino Lucero (com Los

gauchos del Río de La Plata), Estanislao del Campo (com o poema burlesco Fausto) e o

uruguaio Antonio Lussich (com a obra Los tres gauchos orientales). Implicações de caráter

ideológico e político no uso da voz do gaucho foi tema de análise para a teórica argentina

15 Johann G. Herder foi referência para a geração pós-independência durante o século XIX na Argentina. Usando especificamente o texto “Ensayo sobre el origen del lenguaje”, é possível ver como o filósofo alemão acredita que as línguas são um construto humano que o distingue dos animais afetando desta forma a “marcha real del espíritu humano” (225). Dentro deste processo histórico cada língua é um galho de uma árvore que corresponde a um povo distinto sendo a sua história e poesia destes povos seus maiores tesouros (214). As idéias de Herder, portanto, pareciam perfeitas para uma geração que viria delinear as características e fronteiras da nação Argentina.

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Josefina Ludmer no livro El género gauchesco: un tratado sobre la patria e serão exploradas mais adiante nesta narrativa.

4) Indigenismo: Sobre o indigenismo, em específico, ele faz uma distinção entre o indigenismo clássico surgido a partir da década de 30 que teve de ser reformulado, junto com o regionalismo, para integrar as diferentes multiplicidades excluídas de sua dicotomia paradigmática inicial de criolla x indígena. Para este indigenismo clássico, um texto emblemático para sua compreensão é o livro também auto-analítico de José Carlos Mariatégui, que fez parte do movimento, chamado Siete Ensayos de Interpretación de la Realidad Peruana.

Interessantemente, em suas teorias sobre este movimento, Mariatégui faz uma comparação com o criollismo argentino e a literatura gauchesca para falar sobre o nativismo como característica crucial do movimento dizendo: “Nuestro “nativismo”, - necesario también literariamente como revolución y como emancipación- no puede ser simple “criollismo”...El indio no representa

únicamente un tipo, un tema, un motivo, un personaje. Representa un Pueblo, una raza, una tradición, un espíritu” (265)”. O aspecto nativista de grande parte destas obras regionalistas mencionado aqui toma formas interessantes nas teorias de Mariatégui pela sua consideração de ser um movimento que se apropria de símbolos nacionais para uma construção esteticamente e ideologicamente elaborada. Assim, Mariatégui faz uma ressalva importante sobre o movimento:

“La literatura indigenista no puede darnos una versión rigorosamente verista del indio. Tiene que idealizarlo y estilizarlo...Es todavía una literatura de mestizos. Por eso se llama indigenista y no indígena” (265). E chega a dar a esta geração um papel histórico fundacional dentro da construção nacional peruana: “En la historia de nuestra literatura, la Colonia termina ahora. El

Perú, hasta esta generación, no se había aún independizado de la Metrópoli” (277). Embora

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Mariatégui desenvolva uma teoria paradoxal 16, é válida ao proporcionar uma auto-reflexão ampla sobre o pensamento de sua época e grupo. Dentre os romancistas desta época estão o equatoriano Jorge Icaza e o peruano Ciro Alegría. Oviedo destaca a obra Huasipungo de Jorge

Icaza como a mais emblemática deste autor e a El mundo es ancho y ajeno de Ciro Alegría, que consegue superar em seu tempo os outros romances indigenistas esteticamente e tematicamente.

Segundo Oviedo, as obras produzidas neste período, no entanto, foram também superadas posteriormente pelas obras de Juan Rulfo, José María Arguedas e Augusto Roa Bastos, que apareceram a partir da década de 50 do século XX. As obras destes autores como Pedro Páramo,

Los ríos profundos e Yo el supremo, respectivamente, superariam o indigenismo clássico por uma influência de vanguarda e, pela conseqüente incorporação de técnicas narrativas mais sofisticadas. Se Oviedo considera Juan Rulfo, por exemplo, como expressão deste novo regionalismo, outros críticos vão desafiar a cronologia e colocar Rulfo como um escritor que tem mais em comum com a literatura desenvolvida pelos escritores do Boom latino americano. Este nome de Boom designa mais apropriadamente, uma nominação para um grupo mercadologicamente e cronologicamente conectados do que uma unidade estética. Por isso, José

Miguel Oviedo não caracteriza o Boom como uma literatura de características regionalistas por,

16 As idéias de Mariatégui sobre o índio como um símbolo do movimento indigenista sofre de ambigüidade quando tenta reconhecer esta idealização e estilização do índio e, ao mesmo tempo, reivindicar uma postura concreta e presente para lidar com este símbolo. E, ao comparar o indigenismo com o colonialismo, ele diz: “El colonialismo, reflejo del sentimiento de la casta feudal, se entretenía en la idealización nostálgica del pasado. El indigenismo en cambio tiene raíces vivas en el presente” (265). Mariatégui também comenta sobre o tópico da raça mestiça trabalhada por Vasconcelos para assegurar que sua geração lida com algo mais real e presente: “El mestizo actual, concreto, no es para Vasconcelos el tipo de una nueva raza, de una nueva cultura, sino apenas su promesa... La especulación del filósofo, del utopista, no conoce límites de tiempo ni de espacio” (269). Embora ele reivindique uma postura muito mais concreta para o seu movimento, as ambigüidades dos conceitos de Mariatégui sofrem muito mais quando analisados neste campo em que discute a heterogeneidade sob a sua seletiva perspectiva de raças, onde o negros e os chineses, por exemplo, não são vistos como colaboradores da cultura peruana.

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primariamente, não constituírem um grupo em si. 17 Contudo convém mencionar que Angél

Rama, um contemporâneo do brasileiro Antônio Cândido, compartilha com este crítico a idéia de

que escritores latino-americanos como Juan Rulfo, Mario Vargas Llosa, Gabriel García Marquez

e Guimarães Rosa estabeleceram uma nova linguagem para o regional. 18 No livro

Transculturación narrativa en América Latina, Rama afirma que estes escritores conseguiram

transcender a sua localidade em universalismo, porém ainda usando o local com seus tons

geográficos e características sociais específicas.19 A transcendência da localidade ocorre através

de uma ligação entre um local considerado periférico nacionalmente e uma maior conexão,

principalmente por conta do trabalho estético no caso destes autores, com outros lugares do

17 Oviedo coloca o grupo do Boom no quarto tomo de sua Historia de la Literatura Hispanoamericana e é categórico ao afirmar: “No se trató, pues, de un movimiento generacional, ni de una estética...ni tampoco una conspiración comercial...Hubo una explosiva riqueza creadora que fue oportunamente apoyada por grandes editoriales...” (301) O escritor Carlos Fuentes tenta, no livro La nueva novela hispano-americana, dar uma auto- definição para o movimento e alguns autores, e com isso, um bom posto de inovadores de uma nova etapa da literatura latino-americana onde finalmente as características literárias se sobreporiam às categorias geográficas e naturais. Assim, Fuentes define o “novo” escritor latinoamericano: “el nuevo escritor latino-americano emprende una revisión a partir de una evidencia: la falta de un lenguaje. La vieja obligación de la denuncia se convierte en una elaboración mucho más ardua…Inventar un lenguaje es decir todo lo que la historia ha callado” (30). Apesar da arrogância, Fuentes acredita que houve uma aliança entre o que se fazia anteriormente (dedicando partes de seu livro ao romances ainda de cunho nacional/regional) e uma nova estética que “culmine en un nuevo sentido de historicidade y de lenguaje” (24).

18 Em Transculturación narrativa en América Latina, Angél Rama considera Guimarães Rosa como representante da primeira geração no Brasil que começa a falar sobre vanguardismo e regionalismo, ao que ele equivale à literatura de Arguedas. Então, Gabriel García Márquez e Juan Rulfo já pertenceriam a uma segunda geração e poderiam ser considerados devedores de Arguedas.

19 A crítica do Boom formulou uma reprimenda ao regionalismo, e no Peru, mais especificamente, ao indigenismo. Esta literatura foi considerada como arcaica e cheia de particularismos estreitos. Porém a revalorização do indigenismo, recusando uma postura estreita, serviu para mostrar a face plural do Peru. O modernismo brasileiro também faz a mesma crítica a uma literatura de ‘cor local’ como a de José de Alencar e a representação nacional através do pitoresco. É interessante observar como tanto a literatura do Boom quanto a literatura modernista brasileira fazem críticas ferrenhas ao regionalismo, mas estão muito bem fixadas nas tradições locais. Seja através de um realismo maravilhoso ou através de um viés antropofágico, os escritores mais representativos da literatura latino-americana apresentam elementos locais baseados diretamente ou indiretamente nas tradições populares.

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mundo. Através desta conexão, a heterogeneidade inerente, porém velada destas nações, é trazida

à tona junto com seus intrínsecos planos estéticos e ideológicos.

É possível perceber neste breve panorama – mas que inclui grandes nomes da literatura

latino-americana – uma larga e importante produção literária, a qual se atribui o título de

regionalista. A amplitude do escopo das obras deixa espaço para diferentes reflexões sobre o

gênero porém, em comum a todas as ramificações do regionalismo existe uma perspectiva que

pretende pôr em cheque uma visão homogênea e centralista do país. Até, pelo menos, meados do

século XX, acreditava-se teoricamente que a homogeneidade da representação do nacional, desta

forma, tanto na visão peruana como na brasileira, seria quebrada pelas expressões regionais,

enfatizando-se assim um discurso que afirmava o nacional como uma representação da

diversidade dentro da unidade.

Contudo, é necessário problematizar que o processo de produção regional também se vale

de um sistema homogenenizador, apenas transferido microcosmicamente ao nível da região.

Parece assim adequado afirmar que a diferença entre os sentidos de identidade nacional e

regional é topológica. O historiador paraibano Albuquerque Jr. chama a atenção para este fato e

ainda argumenta que este tipo de discurso pode vir a ser uma construção manipulada pelo estado.

Albuquerque Jr. diz que: “A região é produto de uma batalha... não uma unidade que contém

diversidade mas é o produto de uma operação de homogeneização podendo ser sedimentada pelo

estado”(26).20

20 A região Nordeste do Brasil, eminentemente conhecida pela sua tradição e literatura de cunho “regionalista”, foi avaliada por Albuquerque Jr. como uma invenção discursiva que surge com a ajuda de discursos políticos e artísticos. No seu livro A Invenção do Nordeste, Albuquerque Jr. mostra como esta região virou uma unidade monilíticas composta por símbolos de tradições engessados no tempo.

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Para Albuquerque Jr., “definir a região é pensá-la como um grupo de enunciados e imagens que se repetem, com certa regularidade, em diferentes discursos, em diferentes épocas, com diferentes estilos e natureza” (24). Coloca-se em cheque aqui os valores inatos de uma região para vê-los como atribuídos e analisar como a sociedade e o momento histórico irão influenciar na sua construção. Põe-se, assim, em relevo o processo de criação discursiva de uma região onde o espaço do regional não mais se constitui meramente como uma representação de um espaço de fronteiras geográficas.

A literatura de língua espanhola, por exemplo, homogeneizou os conceitos sobre os espaços periféricos específicos até chegar a criar conceitos bipolares como o de civilização e barbárie, presentes no Facundo de Sarmiento e no Doña Bárbara de Rómulo Gallegos.

Similarmente a este processo, os motifs trabalhados nas obras do regionalismo de 30, ou ainda no sui generes Os Sertões de Euclides da Cunha, por exemplo, também construíram e reiteraram uma imagem ainda hoje associada ao espaço do Nordeste brasileiro como um espaço anacrônico, atrasado economicamente porém com uma riqueza cultural singular e ‘original’. Deste modo, a exploração e uma maior exposição da diversidade das nações latino-americanas que deveriam ser proporcionadas pelas obras regionalistas resultou, por vezes, no aprisionamento de certas regiões em determinados estereótipos.

O teórico Roberto Maria Dainotto também irá colocar em cheque a visão pluralizante do gênero regionalista e observá-lo como uma construção discursiva dinamicamente homogeneizadora. Se por um lado o regionalismo parece uma revolta contra o nacionalismo, por outro lado ele também constrói feixes limitados de símbolos para representar as regiões. Num texto sugestivamente intitulado “ ‘All the Regions Do Smilingly Revolt’: The Literature of Place

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and Region”, Dainotto argumenta como o regionalismo, que veio como uma resposta à crise da literatura nacional, também implica numa idéia de indivisibilidade e homogeneidade:

...the region suggests the utopian possibility of a community considered as an undivided whole. The problems with this response to our epochal crisis may be not only political, epistemological, and ideological, but fundamentally ontological. What, or where, in fact, is this “region” where aesthetics and literature survive unchanged, undivided by social conflicts, and free “despite political, religious, or psychological interference”? (489)

Portanto, para Dainotto, o regional, como dissidência do Romantismo nacionalista funcionou como uma operação mitopoética na mesma veia dos discursos que forjaram a entidade histórica da nação-estado. Em referência direta à crítica pós-colonialista, Dainotto acredita que o retorno ao regionalismo contemporâneo percebe a região como uma possibilidade utópica de ser pluralizante, mas ainda assim trata uma comunidade como um todo indivisível.

O teórico Edward Said fez uma análise bem similar, desde uma perspectiva discursiva, sobre a reunião geopolítica que permitiu a dizibilidade de uma região, no caso, o Oriente. Said afirma que o Oriente foi unificado e construído semioticamente como uma região homogênia em raça, geografia, política e zona cultural do mundo.

What bound an archive together was a family of ideas and an unifying set of values proven in various ways to be effective. These ideas explained the behavior of Orientals; they supplied Orientals with a mentality, a genealogy, an atmosphere; most important, the allowed Europeans to deal with and even to see Orientals as a phenomenon possessing regular characteristics. (Orientalism 42)

Através do questionamento sobre esta concepção homogênea de região, Said traz à reflexão os meandros de poder que determinam a construção e a dizibilidade de uma região. Segundo o teórico palestino, o Ocidente havia construído o Oriente como o “Outro” para assim poder lidar de maneira mais clara com seus produto de colonialismo:

…all of Orientalism stands forth and away from the Orient: that Orientalism makes sense at all depends more on the West than on the Orient, and this sense is

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directly indebted to various Western techniques of representation that make the Orient visible, clear, ‘there, in discourse about it. (Orientalism 22)

Embora o teórico seja criticado por sua maneira binária de analisar conceitos de poder e discurso,

é interessante sua análise de diferentes narrativas para mostrar como o Oriente, desde uma

perspectiva ocidental, serviu de espaço para temáticas ligadas à fantasia dentro de um feixe de

idéias essenciais sobre o lugar imaginado/ projetado.21

No todo dizível e claro que se constrói, a reunião de tradições, temas, fantasias acontece

pela impossibilidade ou consciente intenção em não reconhecer ou aceitar as diferenças. A

construção dessas tradições estão intrinsecamente ligadas à ignorância das diferenças e conflitos

internos de uma “unidade” geopolítica. Dentro de uma unidade, a idéia de tradição, autenticidade

e originalidade ainda são conceitos pertinentes para o discurso regional. Neste sistema, há uma

obliteração dos conflitos vividos dentro destas mesmas regiões entre passado, presente e futuro

deixando de ver a ‘tradição’, como algo vivo e em permanente processo de construção.

Esta perspectiva crítica implica, no horizonte do regional, em trazer à tona e destronar a

idéia de supervalorização da temática regionalista que tenta dar uma contribuição de

originalidade e autenticidade ao processo de formação de uma literatura nacional. Com os

conceitos de originalidade e autenticidade da literatura nacional vistos desde uma perspectiva de

localização desta literatura em um “entre-lugar”, torna-se possível o questionamento e a reflexão

21 Homi Bhabha foi um dos críticos deste “essencialismo” da teoria de Said. Bhabha acredita que o problema na teoria de Said, que usa os conceitos de poder e discurso de Foucault, seria o de não usar a produtividade do conceito de poder/ conhecimento de Foucault que está justamente na recusa de uma epistemologia que opõe ‘essência e aparência’ e binarismos simplistas. Bhabha considera o fato de que Said nega o Orientalismo como uma má representação de um Oriente essencial, mesmo assim o critica pois, ao falar em “representação”, Said ainda incorreria no risco do essencialismo. Este processo nas palavras de Bhabha pode ser visto neste parágrafo: “This results in Said’s inadequate attention to representation as a concept that articulates the historical and fantasy...in the production of the ‘political’ effects of discourse. He rightly rejects a notion of Orientalism as the misrepresentation of an Oriental essence. However, having introduced the concept of ‘discourse’ he does not face up the problems it creates for an instrumentalist notion of power/ knowledge that he seems to require” (The Location of Culture 72).

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sobre a construção de uma identidade nacional e regional na literatura. Homi Bhabha, no livro

The Location of Culture, fala sobre a importância em pensar mais além de narrativas que buscam uma origem/originalidade e concentrar-se na articulação das diferenças:

What is theoretically innovative, and politically crucial, is the need to think beyond narratives of originary and initial sujectivities and to focus on those moments or processes that are produced in the articulation of cultural differences. These ‘in-between’ spaces provide the terrain for elaborating strategies of selfhood – singular or communal – that initiate new signs of identity, and innovative sites of collaboration, and contestation, in the act of defining the idea of society itself. (1-2)

A reflexão de Bhabha é bastante relevante para ponderar sobre o processo das obras regionalistas que buscavam nas áreas isoladas de seus respectivos países uma fonte da origem e originalidade de suas nações. Homi Bhabha se refere a esta construção da identidade autêntica nacional desde uma perspectiva multicultural. Homi Bhabha acredita que não existe uma tradição cultural autêntica que possa ser vivenciada como tal. Cada cultura e suas comunidades devem ser vistas como um projeto – então uma visão ou uma construção – que levem em consideração o espírito de revisão e reconstrução, assim como as condições políticas do presente (The Location of

Culture 3).

Por exemplo, a homogeneização do regional, no regionalismo de 30 brasileiro, pode ser vista na repetição da temática da fome, do atraso econômico da região (outrora berço da aristocracia colonial) e da secas periódicas da região. Os livros A Bagaceira (1928) de José

Américo de Almeida, O Quinze (1930) de Raquel de Queiroz e Vidas Secas (1938), de

Graciliano Ramos são algumas das várias obras que exploram estas temáticas, variando apenas na qualidade estética. Em A Bagaceira, considerado o livro de estréia dos romances de 30, a perspectiva é do dono de engenho porém a história se baseia no êxodo ocasionado na seca de

1898 e envolve um triângulo amoroso entre Soledade, retirante, Dagoberto, dono de um

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engenho, e Lúcio, apaixonado por Soledade. A obra, nos moldes de Os Sertões também se caracteriza por ser um romance de tese onde a trama amorosa é apenas trampolim para afirmações sociológicas sobre os efeitos da seca no Nordeste e seus habitantes.

O Quinze de Raquel de Queiroz também tem por trama a história da seca, neste caso a de

1915, e mostra o tema do flagelo que entremeia o relacionamento amoroso entre Conceição e

Vicente. O protagonismo de uma personagem feminina é o grande diferencial de uma obra que reitera os problemas sociais, neste caso específico, do sertão cearense. Os temas da seca no

Nordeste, a falta de recursos econômicos para a maioria do lavradores da região e a conseqüente migração massiva para o Sudeste do país também aparecem em Vidas Secas.

Vidas Secas narra a história da família de retirantes liderados por Sinhá Vitória e Fabiano junto com os inominados 2 filhos e a cachorra baleia para fugir da fome do Nordeste. A afasia social desses migrantes é magistralmente desenvolvida por Graciliano Ramos através da linguagem do livro, dotando-o de uma singularidade estética com relações às outras obras regionais de 30. Certamente, por isso, o Vidas Secas de Graciliano Ramos adquiriu uma importância literária tão grande, pois manipula o silêncio do típico vaqueiro nordestino para mostrar aquilo que nele é intraduzível ou irrepresentável num todo coerente de significado.

Na literatura de língua espanhola, o movimento da literatura gauchesca e a novela de la selva exemplificam bem o processo de homogeneização regional. Os temas do gaucho malo, da exploração dos grandes espaços dos pampas e da relação do ser humano com esta natureza são permanentes nas obras deste gênero. Na novela de la selva, a natureza também é protagonista mas aqui há mais um conflito entre o ser regional e o mundo natural. Tanto em La Vorágine de

Eustasio Rivera, como nos Cuentos de la Selva e em Los Desterrados de Quiroga, a violência entre a natureza e o instinto de sobrevivência neste ambiente são seus leitmotifs. Em Los

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Desterrados, a divisão entre ‘ambiente’ e os ‘tipos’ da narrativa de toque euclidiano mantém perene em ambas as partes a temática do embate entre natureza e ser humano.

Nesta obra, tanto as narrativas presentes na parte do “Ambiente” – como “El Regreso de

Anaconda” –, como as que estão em “Los Tipos” – como “Los Desterrados” ou o “Los destiladores de naranja” –, há o testemunho de um embate no qual a natureza ou o ser humano acaba por sair derrotado. O crítico Leonidas Morales T. no texto “Historia de una ruptura: el tema de la naturaleza en Quiroga” chama esta natureza de “ominosa” aparecendo em outros textos de Quiroga e projetando o sentimento do horrível na esfera psicológica das personagens

(76-77). Em La Vorágine, as plantações da borracha, às quais chega o personagem Arturo Cova em sua virgiliana busca de Alicia, é o grande espaço para a apresentação da temática do embate entre o ser humano e a natureza. A natureza violada vinga-se do ser humano ao atuar como um dispositivo de equilíbrio entre as injustiças cometida pelo ser humano. Nesta trama, a morte do antagonista Barreras por peixes caribenhos é a grande prova desta justiça natural. Estas temáticas recorrentes na novela de la selva e no regionalismo de 30 demonstram bem o processo homogeneização do símbolos regionais.

Além da repetição das temáticas, também é possível constatar uma construção e recorrência de “tipos literários”. Alguns dos exemplos destes tipos criados na literatura regionalista brasileira são: o ‘gaúcho’ na obra de José de Alencar (que, obviamente, recebe alterações nas posteriores obras regionalistas do Sul), o ‘nordestino faminto’ das obras regionalista de 30 e, ainda, o ‘sertanejo misteriosamente sábio’ na obra de Guimarães Rosa.

Na literatura de língua espanhola, alguns destes estereótipos estão presentes nos tipos pitorescos de Los Desterrados de Quiroga representados por personagens como João e Tirafogo; no gaucho malo do Facundo de Sarmiento, e seus outros personagens como o rastreador, o

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baqueano, o cantor; nos personagens rurais usados desde Los Ríos Profundos de Arguedas, até mesmo nos sofridos camponeses do México de Juan Rulfo. Buscava-se nestes tipos uma expressão mais original e/ou fidedigna do país, ou quem sabe até, obter representantes da verdadeira identidade da nação.

Alguns dos tipos literários, mencionados mais acima, passam por um processo similar ao qual Bhabha se refere quando fala sobre a construção dos estereótipos no discurso colonial. Estes tipos carregam em si uma rigidez na sua construção que se revela através da estratégia discursiva do estereótipo. Bhabha, sobre esta rigidez característica na construção da outridade, esclarece:

An important feature of colonial discourse is its dependence on the concept of ‘fixity’ in the ideological construction of otherness. Fixity, as the sign of cultural/ historical/ racial difference in the discourse of colonialism, is a paradoxical mode of representation; it connotes rigidity and an unchanging order as well as disorder, degeneracy and daemonic repetition. Likewise the stereotype, which is its major discursive strategy, is a form of knowledge and identification that vacillates between what is ‘in place’, already known, and something that must be anxiously repeated… (The Location of Culture 66)

Estas reflexões sobre o discurso colonial parecem bem pertinentes para pensar sobre o similar desenvolvimento e construção dos tipos regionais em obras cuja repetição persistente na caracterização das personagens resultou em tipos literários, meros fantoches ideológicos, e pobre desenvolvimento estético. Alguns dos tipos regionais pertinentes às obras estudadas de Mario

Vargas Llosa e Milton Hatoum serão discutidos posteriormente no capítulo II, onde questões de diferença e alteridade também receberão atenção especial através do conceito de diferença

(“différance”) de Derrida.

Derrida contestou as idéias de origem, hierarquia ontológica, identidade plena, verdade e presença totais ao dissertar e estabelecer os conceitos de deslocamento e diferença. O crítico usa como base as idéias dos escritos de Platão e define seu conceito de différance da seguinte

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maneira: “Différance, the disappearance of any originary presence, is at once the condition of

possibility and the condition of impossibility of truth” (“Différance” 168).

Stuart Hall é um outro escritor influenciado pelas idéias de Derrida, como também pelas

teorias de Edward Said e Michel Foucault, que servirão como base teórica para análise dos tipos

regionais. Por meio destas, Hall ratifica como a construção da alteridade dentro de uma

identidade cultural enfrenta a impossibilidade da formação de um ser coerente, ou em suas

palavras, um “coherent-self” (“The Question of Cultural Identity” 598). O teórico jamaicano

também usa estes conceitos para identificar o processo de construção dos estereótipos na

formação deste “ser coerente” através de estratégias que envolvem os seguintes processos: 1)

idealização; 2) projeção de desejos e degradação; 3) falha no reconhecimento e respeito às

diferenças, e 4) tendência de impor categorias européias para ver as diferenças através de modos

de percepção e representação do Oeste (“The West and the Rest: Discourse and Power” 215).

Desta forma, o processo de estereotipização, segundo Hall, resulta no colapso de

complexas diferenças numa representação unilateral, onde as suas “características” servem como

evidências para definir as “essências” do sujeito. Por isso, Hall prefere evitar binarismos

simplistas para explicar as sociedades híbridas e faz-se valer da terminologia derridariana de

diferença.22 A formação de tipos literários, em uma literatura que pretende dar visibilidade às

22 Embora neste texto, Stuart Hall esteja usando idéia de diáspora, o pensamento sobre a sociedade caribenha no que ela tem de ‘impura’ e híbrida é realmente o foco da sua atenção para rejeitar qualquer construção simplista do “Outro” caribenho. Assim, o sociólogo jamaicano encontra na terminologia de Derrida a falta de resolução e complexidade apropriadas para sua análise: “It is founded on the construction of an exclusionary frontier and depends on the constructions of an Other and a fixed opposition between inside and outside. But the syncretized configurations of cultural identity require Derrida’s notion of différance – differences that do not work through binaries, veiled boundaries that do not finally separate but double up as places de passage, and meanings that are positional and relational, always on the slide along a spectrum without end or beginning” ("Thinking The Diaspora: Home-Thoughts From Abroad"7).

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alteridades não representadas, não deveria, assim, enfrentar uma construção unívoca do sujeito nacional através de uma construção similarmente unívoca do sujeito regional.

Portanto, se por um lado as obras regionalistas expõem outras alteridades para a inclusão do modelo limitado de símbolos nacionais, por outro lado, estas também fazem-se valer de construções fixas e repetidas da caracterização destas personagens regionais. A maneira, por vezes, simplista de olhar as regionalidades implica na construção de efígies de uma identidade cristalizada. Estes personagens, seja o sertanejo sofrido e valente ou o selvagem nobre, mostram qualidades intrínsecas do ser nacional ainda em estado bruto porém com suas possibilidades de expressar a originalidade de uma nação. Atribui-se, de certa forma, às regiões periféricas a capacidade de manter intocados, através de um maior isolamento das influências estrangeiras, certos valores locais e uma identidade hipoteticamente original, com seus seres “originais”,

“coerentes” porém ainda em estado bruto.

Já é mais do que uma redundância afirmar que a idéia de uma tradição cultural e identidade nacionais autênticas é algo utópico e ilusório. A idéia de identidade não pode ser vista como ‘entidade’, em lugar disso, deve-se vê-la como uma construção onde se pode perceber o processo de criação da nação e da região. Razoável também seria pensar que a procura desta identidade autêntica não poderá ser bem sucedida através de uma transposição às regiões. A volta à região parece, por vezes, dar-se como se ela pudesse magicamente ter guardado o passado de um povo com seus valores intactos. Em verdade, o isolacionismo ou a volta a um lugar intocado pelas influências estrangeiras é algo impossível. É fácil comprovar este aspecto se levarmos em conta que mesmos as literaturas regionalistas ou de caráter nativista do século XIX e princípio dos XX fizeram-se valer do transplante de técnicas e influências européias para elaborar seus projetos nacionais/ regionais.

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Contudo, esta observação não pode ser interpretada como uma reprovação à utilização de técnicas estrangeiras na formação das literaturas nacionais e regionais. Acreditamos que a autenticidade posta em relevo em relação à cultura do colonizador e ao conceito de originalidade, deveria ser notada sob a perspectiva positiva e desconstrutivista, como na proposta de Silviano

Santiago. O escritor brasileiro afirma que se deve interpretar as literaturas da América Latina não mais de forma negativa mas sim como uma “cópia afirmativa” (The space in-between: essays on

Latin American culture, 3). Segundo Silviano Santiago, a identidade das novas nações vai ser encontrada: “outside national historical time and outside native space: for that reason it is lacunal and Eurocentric. In short, its location is “absence,” determined by a movement of tropism” (The space in-between: essays on Latin American culture 151). Com o conceito de “cópia afirmativa”,

Silviano Santiago concebe a idéia de identidade cultural como algo em processo, não como um produto acabado e indivisível. Além do mais, intensifica-se a perspectiva do diálogo e da troca, historicamente sempre vistos como imposições culturais dos chamados países desenvolvidos com relação à América Latina.

Em verdade, não se pretende negar o valor do regionalismo para a formação de uma literatura nacional, pois, como ficou evidente, este constitui um viés de grande importância na formação literária latino-americana. De fato, é inegável que dentro do sistema vigente e das condições em que se situaram, a maioria das obras regionalistas serviram como um espaço de resistência não somente a nacionalismos excessivamente centralizadores, como também à uma imagem de modernidade que a América Latina gostaria de engendrar.

O modelo de nação moderna que, por vezes, as capitais econômicas caóticas da América

Latina tentavam reproduzir, faliu pela exclusão e marginalização de grande parte de seus

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cidadãos. No texto “Literatura e Subdesenvolvimento”, Antônio Cândido faz uma menção específica à relação entre a literatura regional produzida ao longo dos anos na América Latina e a sua situação político-econômica. O teórico acredita que a profusão de obras regionalistas escritas no final do século XIX e começo do século XX tem a ver com o clima de euforia e afirmação nacional que tentava compensar o então atraso econômico com a supervalorização dos valores naturais:

A idéia de pátria se vinculava estreitamente à de natureza e em parte extraía dela a sua justificativa. Ambas conduziam a uma literatura que compensava o atraso material e a debilidade das instituições por meio da supervalorização dos aspectos regionais, fazendo do exotismo razão de otimismo social. (“Literatura e Subdesenvolvimento” 140)

Este regionalismo, que num primeiro momento pós-independentização se manifestou através de uma euforia patriótica, veio a desenvolver-se numa consciência de um país subdesenvolvido clamando por empenho político e justiça social. Na década de 30 do século XX, a literatura de

Jorge Amado e dos regionalistas de 30, no Brasil, e a de Jorge Icaza, Rômulo Gallegos e Alejo

Carpentier, no mundo hispânico, por exemplo, são reflexos deste novo momento. Se antes as obras se concentravam naquilo que sobrava, passaram a concentrar-se naquilo que faltava

(Cândido, Antônio. “Literatura e Subdesenvolvimento” 140).

Destarte, várias obras regionalistas se situam neste vão existente entre o atraso econômico e social das nações latino-americanas e a modernidade que se pressupunha engendrar.

No livro Hybrid Cultures, García Canclini defende que a modernização na América Latina está caracterizada predominantemente por este abismo entre a modernização socioeconômica e o modernismo nos movimentos artísticos, afirmando: “...we have had an exuberant modernism with a deficient modernization” (41). O teórico argentino também afirma que a separação

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existente entre o modelo de modernidade e real situação econômica da América Latina foi também fundamental para sustentar a hegemonia das elites coloniais privilegiadas por seu acesso ao que vinha da Europa:

Modernization with restricted expansion of the market democratization for minorities, renewal of ideas but with low effectiveness in social processes – the disparities between modernism and modernization are useful to the dominant classes in preserving their hegemony, at time in not having to worry about justifying it, in order simply to be dominant classes. (Hybrid Cultures 42-43)

A idéia de modernização, portanto, perpetuava as hierarquias de poder existentes e estabelecia valores para os grupos sociais que efetivamente tinham acesso à cultura européia. A associação do moderno com os modelos de modernização europeus para uma transformação na sociedade local implicava subjugar elementos locais e dotá-los, portanto, de certa negatividade.

Por isso, Carlos Alonso, em suas reflexões sobre o regionalismo na América Latina, enfatiza a importância de perceber como estes discursos que iam de encontro ao atraso da colônia baseavam-se em idéias que reiteravam a condição periférica da mesma. Enquanto evocavam os valores e objetivos da modernidade, os escritores hispano-americanos corriam o risco de transformar a América de língua espanhola num modelo negativo da modernidade que almejavam:

...the tenets of the myth of futurity that the cultural foundation of the new countries rested on, and that had been especially effective in the anticolonial struggle against ‘backward’ Spain, harmonizes rather than conflicted with the narrative of modernity that sustained the legitimacy and prestige of metropolitan rule…Spanish American reality was always at risk of becoming the negative object of modern Western knowledge… (“The Burden of Modernity” 95) 23

23 Carlos J. Alonso acredita que a análise dos textos da América de língua castelhana não devem ser lidos de maneira ingênua quanto a sua autonomia, nem se deve paralisar nas dívidas culturais dos modelos e formas européias. Alonso também fala que a América de língua espanhola viveu um desejo de negar o seu presente, a sua verdadeira realidade e especificidade: “The difficulty is wrenching in Spanish American cultural discourse, since its specificity 55

Obviamente, as regiões afastadas das metrópoles, que estavam menos em contato com o modelo

de civilização européia, também se posicionavam negativamente dentro de uma hierarquia de

poder pendular que oscilava entre a negatividade relacionada ao atraso social e uma

modernização a qual se buscava. Esta negatividade se estende à geografia local e aos seus tipos

muitas vezes num antagonismo que se traduzia dentro da metáfora de civilização x barbárie.

O binarismo existente entre barbárie e civilização está intimamente ligado ao modelo de

progresso importado da Europa. O Facundo de Sarmiento talvez seja umas das obras latino-

americanas mais fundamentais para discutir a oposição entre áreas urbanas civilizadas versus

áreas interioranas ainda, segundo Sarmiento, sob o jugo do barbarismo. Evidentemente, a idéia

de barbarismo foi estendida aos habitantes dessas regiões mais remotas e aos seus tipos locais

como uma endemia. Em Facundo, um gaucho malo ainda teria o potencial de ser, se regenerado

pela educação, um genuíno representante do povo argentino. Esta mesma benevolência em

termos regenerativos não era aplicada a todas as comunidades de áreas afastadas do centros

econômicos. Quando lidando com os indígenas ou com os mestiços, o próprio Sarmiento

apresentava estes personagens como tipos de degeneração mesmo irrevogável.

Influenciados pelas teorias de degeneração das raças mistas de alguns dos teóricos do

século XIX como Arthur de Gobineu, Louis Agassiz e Vogt, vários escritores foram motivados

pelo racismo científico que dominava a América Latina de então.24 Dentro de uma perspectiva

of its location, that is, to argue that its here and now should be the metropolis’s there and tomorrow. But its avowed intention can never erase the locational incommensurability that led to the project in the first place” (“The Burden of Modernity” 102).

24 Roberto Young, no texto “Deseo colonial, hibridismo en la teoría, la cultura y la raza”, relaciona as teorias e o funcionamento de cada sociedade afirmando: “De este entramado de diferentes posturas teóricas, las razas y su interrelación circulan alrededor de un ambivalente eje de deseo y aversión: por un lado, una estructura de atracción, donde pueblos y culturas se entremezcla y fusionan, transformándose como resultado, y, por otra parte, una estructura de repulsa, donde los diferentes elementos mantienen su identidad y se oponen a los demás de manera dialogística.”(37) As teorías desenvolvidas por Gobineau, Agassiz e Vogt também justificavam a mestiçagem

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moderna sobre a avaliação da raças e seu hibridismo, o discurso degenerativo é visto como um

estratégia de dominação. 25 Segundo Homi Bhabha, a ambivalência da construção de tipos

equilibra-se entre a rígida e ordeira imutabilidade de suas características ao que se agrega a idéia

de desordem e degeneração:

The objective of colonial discourse is to construe the colonized as a population of degenerate types on the basis of racial origin, in order to justify conquest and to establish systems of administrations and instruction. (The Location of Culture 70)

O discurso de dominação pseudocientíficos utilizados por elites européias e latino-americanas

suscitou contra-discursos nos princípios do século XX na América Latina como: a teoria da raça

cósmica de Vasconcelos, a teoria do parasitismo europeu no América Latina de Manoel Bomfim,

a teoria da democracia racial de Gilberto Freyre defendida no Casa Grande e Senzala e a

representatividade do mestiço para a América Latina em Calibán de Roberto Fernández de

Retamar.

Dentro do movimento literário regionalista, o livro que se configurou como emblemático

contra-discurso, ainda que antitético, das teses degenerativas das raças foi Os Sertões de Euclides

da Cunha. Publicado no começo do século XX, o livro chama a atenção, principalmente, pela

ocorrida na Europa nórdica em oposição à mestiçagem entre ‘raças distantes’ ocorridas na América Latina. No entanto, contradizendo estas próprias teorías, os valores dados às raças ‘puras’ branca e africana divergiam valorativamente em seus status.

25 Dentro de um processo de dominação, o retórica da ‘degeneração’ foi reiterada por uma construção que funcionou como um ardil discursivo. Segundo Jeromy Branche, o conceito de raça passa pela premissa da legibilidade do corpo. Ou seja, a manipulação do discurso foi usada como uma importante estratégia de dominação. É patente a construção de um discurso para representar a mestiçagem latino-americana e, dentro deste sistema de discursivo, uma grande gama de denominações que se articulam dentro de um sistema de dominação. A partir desta idéia, Jeromy Branche explica o conceito de “sintaxe da subpessoa” e contribui para esclarecer este sistema afirmando: “(…) in Latin America, we find the colonial power of naming and its panoptical gaze producing a vocabulary of difference as a strategy of domination. This physiognomic rationale would operate on the premise that the body is legible and subject to diagnosis, constituting a textually that attests to the binary of superiority and inferiority according to various rubrics of social, moral, and ethical worth”(82).

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contradição em que incorre ao tratar o tipo humano mestiço com qualidades positivas dentro de

uma obra escrita por um escritor positivista e ainda com traços desta ideologia na obra. Embora

Euclides da Cunha acreditasse na negatividade da mestiçagem ‘extrema’, houve uma

relativização entre as suas teorias e o testemunho sociológico da realidade do sertanejo o ajudou

a rever alguns destes conceitos.26 A relativização está bem representada em aporias antitéticas

sendo a mais emblemática a denominação do sertanejo como um “Hércules Quasímodo” (Os

Sertões 118).

A relativização de Euclides da Cunha advém da observação das atrocidades cometidas

pelo governo contra os sertanejos locais que contradiziam a dicotomia civilização e barbárie, na

qual os civilizados defenderiam as leis escritas e os bárbaros usariam a violência como recurso

primário. O testemunho de Euclides da Cunha mostra as contradições desses pressupostos ao

constatar que os sertanejos bárbaros tinham bastante conhecimento (destacadamente o

geográfico) e os representantes do poder, mais interessados no enriquecimento pessoal,

preferiam recorrer à violência para excluir por dizimação esta camada da sociedade.27

26 Embora Euclides da Cunha já houvesse mostrado sugestivo a contragosto de suas próprias teorias positivistas argumentos favoráveis aos da região, na parte “Um parêntese irritante” dos Sertões, ele afirma que: “A mistura de raças mui diversas é, na maioria dos casos, prejudicial”(113). Logo em seguida, o mesmo povo misturado nordestino é referido no título da seção posterior como uma “Raça forte”. Para resolver a sua própria antítese de uma raça mestiça forte, Euclides da Cunha tentou fazer uma diferenciação entre o mestiço do litoral e o mestiço do sertão apontando o mestiço do litoral como um degenerado pela instituições sociais, enquanto o mestiço do sertão era detentor de uma originalidade que os tornava especiais. É assim que Euclides tenta, antiteticamente, conciliar o cientificismo positivista ao seu testemunho sociológico: "Ao invés da inversão extravagante que se observa nas cidades do litoral, onde funções altamente complexas se impõem a órgãos mal constituídos, comprimindo-os e atrofiando-os antes do pleno desenvolvimento – nos sertões a integridade orgânica do mestiço desponta inteiriça e robusta, imune de estranhas mesclas, destinos, porque é a sólida base física do desenvolvimento moral ulterior" (Os Sertões 117).

27 Euclides da Cunha foi até o sertão da Bahia como jornalista pelo jornal “O Estado de São Paulo” para cobrir a longa guerra de Canudos. Foi com este intuito de jornalista e positivista que Cunha escreveu uma obra que contradizia a idéia inicial que ele queria provar através da observação real do local.

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A dicotomia europeia/europeizada é ridicularizada ao contradizer na prática suas próprias premissas e ao inverterem assim o papel tradicional dos indígenas/ mestiços, que parecem mais civilizados, e os brancos, como os bárbaros. Este discurso fez parte da narrativa teleológica republicana progressista brasileira, e está simbolizado no lema “ordem e progresso” da bandeira nacional. O governo republicano do final do século XIX e princípios dos XX pretendia eliminar temporalidades anacrônicas do interior do país e suas crenças messiânicas e, neste afã de modernização, promovia atos bárbaros contra sua própria população.

Outras obras regionalistas brasileiras sinalizaram a contradição entre uma modernização fabricada e as diferentes realidades locais. No regionalismo de 30, a Academia dos Rebeldes surgida na Bahia, em paralelo ao Movimento Regionalista de Gilberto Freyre, ia de encontro à suposta importação de uma política modernista do Movimento de 22 em São Paulo. Embora, hoje em dia as influências regionais nos principais autores modernistas (vide a enorme quantidade de estudos sobre das tradições locais no Macunaíma de Mário de Andrade, por exemplo) seja mais evidente, a Academia dos Rebeldes e o Movimento Regionalista que fomentaram o regionalismo de 30 no Brasil acreditavam numa oposição ao modernismo através do resgate dos elementos regionais.

Jorge Amado, um dos fundadores desta Academia, que teve curto tempo de vida, defendia a inclusão das tradições locais nas obras e explicava o possível atraso econômico do país ligado às suas condições sociológicas, não às raciais. Isto se deu a partir de Gabriela Cravo e Canela, simultânea a entrada na sua fase tropical e quebra com o stalinismo. Nesta fase, Jorge

Amado defendia uma perspectiva literária que explorasse as diferentes misturas de raças, culturas, culinárias e religiões seria mais fidedigna a uma expressão regional/nacional.

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Como bem nota Lilia Schwarcz, Jorge Amado brinca com o fato de que apenas depois

dos anos 30 teríamos deixado de pensar que éramos gregos, latinos ou espanhóis (“O artista da

mestiçagem”).28 A mestiçagem, por vezes, carregada de sensualismo caricato e determinista de

obras como Tereza Batista cansada de Guerra e Tieta do Agreste e Gabriela, Cravo e Canela,

ao menos divergia da negatividade que trazia as teorias sobre a mestiçagem de obras anteriores.29

Posteriormente, entre outros escritores da década de 30, o mesmo leit-motif do sertanejo forte –

feito famoso por Euclides da Cunha e já presente na obra O Cabeleira de Franklin Távora –

recorre na construção das personagens Chico Bento de O Quinze de Raquel de Queiroz, ou no

Fabiano e Sinhá Vitória de Vidas Secas. A reação contra o capitalismo e a exploração evidente

das idéias marxista apontavam a contra-evolução da modernidade.

Paralelamente ao regionalismo brasileiro, nos anos 30 nos países latino-americanos de

língua espanhola, o Indigenismo talvez seja um dos mais representativos desta tentativa de

refletir sobre a apócrifa e excludente imagem moderna que se pretendia construir sobre a

América Latina e seus habitantes. Com a obra Huasipungo de Jorge Icaza, há um testemunho

muito parecido ao de Os Sertões de Euclides da Cunha ao mostrar o incêndio da casa de Andrés

Chiliquinga – líder indígena de resistência à tomada das casas dos locais para a construção de

casas modernas e de luxo – e a violência repressiva dos soldados contra os indígenas rebelados.

Uma das passagens mais emblemáticas do livro é este final onde o narrador argumenta:

28Jorge Amado deu este depoimento para o filme dirigido por João Moreira Salles sobre sua vida. Lilia Schwarcz escreveu o referido artigo sobre Jorge Amado porém também é a autora do argumento do vídeo chamado Jorge Amado, realizado pela Vídeo filmes.

29 Jorge Amado se opôs na literatura a uma tradição bastante forte e estabelecida dentro de sua própria região. No Nordeste brasileiro – destacadamente importante pela sua função para a consolidação do gênero do regionalismo –, existia uma elite intelectual que representavam idéias cientificistas do final do século XIX, como Sílvio Romero, Tobias Barreto, João Batista Lacerda e o sociólogo Nina Rodrigues. Este acabou virando um personagem caricato do livro Tenda dos Milagres de Jorge Amado.

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Desde la capital...fueron enviados doscientos hombres de infantería a sofocar la rebelión. En los círculos sociales y gubernamentales la noticia circuló entre alarde de comentarios y indignación y órdenes heroicas: – Que se les mate sin piedad a semejantes bandidos./ –Que se acabe con ellos como hicieron otros pueblos más civilizados. (Huasipungo 244)

A tentativa de exclusão dos indígenas como uma raça possivelmente representativa do país em seu anacronismo de tradições e culturas é veiculada através do barbarismo exercido pelos ditos civilizados. Posteriormente, o livro de José María Arguedas Los ríos profundos, além de ser um livro emblemático por inovar numa perspectiva mais próxima ao indígena, traz ainda uma tentativa de olhar estes indígenas não como criações degenerativas mas sim como guardadores de uma originalidade da nação privados de direitos. Para Grabner-Coronel, Arguedas define sua perspectiva pro-indígena apresentando a história através dos olhos de um jovem “criollo”,

Ernesto, que havia sido criado por serventes quechuas da madrasta. Contudo, Grabner-Coronel também observa que as obras de Arguedas, similarmente as de Vargas Llosa, veicula a idéia de fraqueza e infantilidade dos indígenas (“Localización del poder en el Perú: reflexiones en torno a la representación de la indigenidad y femineidad en tres novelas peruanas” 569).

A fórmula não é simples e não se pode dizer que haja uma redenção total da imagem barbárica do indígena ou do ser local, mas certamente, há uma mudança de perspectiva destes textos. A idéia de raça e homogeneização racial ainda prevalece em algumas dessas obras. De fato, a idéia de modernidade é absolutamente coerente com a ideologia do enbranquecimento racial – que aparece em diversas passagens de Os Sertões e teve em Sarmiento uns dos seus expoentes. O telos da modernidade implicou a homogeneização racial como algo inevitável para chegar até o status de civilização.

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Neste processo de construção de uma modernidade condizente com o discurso europeu e das elites locais de dominação, certas regiões constituíram-se como fardos do atraso e do barbarismo. Uma dessas regiões que abrigavam o anacronismo e a barbárie, em comum tanto ao mundo de língua castelhana como ao Brasil, foi a Amazônia. Em verdade, a região Amazônia foi vista, e em certo grau ainda o é, como um lugar de atraso. A região reúne os estereótipos da selvageria, dos índios ou selvagens, principalmente até a metade do século XX. Portanto, muitas das obras regionalistas que surgiram com o pano de fundo da selva amazônica no começo do século XX tinham a finalidade de usar esta região como um espaço de resistência aos discursos modernizadores nacionais. Mark Anderson explica bem como no Brasil foram criadas “ecologias abjetas” que emergiram de maneira mais contundente no final do século XIX com as idéias positivistas da nova república.30

Ao avaliar a tradição literária brasileira no texto “National Nature and Ecologies of

Abjection in Brazilian Literatures at the Turn of the Twentieth Century”, Anderson percebeu que algumas áreas, por serem marginalizadas da maneira de pensar a nação brasileira, eram tratadas como um desses lugares associados à uma abjeção, na maioria das vezes sem embasamento prático, e, por isso, representadas com idênticos tropes literários. Segundo Mark Anderson, estas regiões, consideradas não desenvolvidas, colocavam em risco a idéia de progresso bastante cultuado pela ideologia positivista que começou com a república. Anderson se refere à fissura entre o litoral povoado e as regiões do “interior”/ os sertões do Brasil.

30 Para Anderson, até o período da República, o Brasil utiliza-se do tropo do “paraíso”, feitos inicialmente pelas narrativas de colonização e perpetuadas pelos textos nacionalistas românticos. A partir do advento da república, as bases positivista ideológica do final do século XIX mudaram. Anderson afirma: “The tropes of racial social and even environmental abjection that dominated nineteenth-century European social theories on the colonial subject frequently resurfaced unquestioned in them” (211).

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Foi através deste dualismo que se conseguiu visualizar o problema da integração

nacional. Deixadas de lado desde o período colonial, estas regiões “afastadas” do litoral ganham

mais visibilidade com alguns acontecimentos históricos como: a seca de 1877-1879 no interior

do Nordeste; a guerra de Canudos em 1897 na mesma área e o boom da borracha na Amazônia.

Assim, as regiões interioranas do Brasil apareceram na literatura com este caráter de abjeção.

Símbolo do atraso e ligada ao conceito de barbarismo, a Amazônia, juntamente com as outras

áreas do interior do país, era representada como um lugar a ser civilizado pelos governos

modernos.

O próprio Antônio Cândido já havia chamado a atenção para a Amazônia como uma das

regiões que ganhou ênfase nas fases regionalistas da literatura brasileira aparecendo nas obras

dos brasileiros José Veríssimo (destacadamente A Amazônia e Cenas da Vida Amazônica) ou de

Inglês de Sousa (O Caucalista, O Coronel Sangrando, O Missionario e Contos Amazônicos) e

também, no La Vorágine de Eustasio Rivera e Canaíma de Rómulo Gallegos. No mesmo artigo

citado mais acima, Mark Anderson usa especificamente o livro postumamente publicado de

Euclides da Cunha com seus ensaios sobre a Amazônia para explorar o tema da construção desta

região como um lugar de abjeção. Anderson chama a atenção para o fato de Euclides da Cunha

intitular uma das seções do livro de “Inferno Verde” (título homônimo ao do romance de Alberto

Rangel sobre a Amazônia) para referir-se a uma natureza caótica que vivia num “quarto escuro

da história”.31

31 O escritor Euclides da Cunha escreveu ensaios que não foram publicados em vida, reunidos numa publicação de 1976 sob o título de Um Paraíso Perdido, sugerido em ensaios pelo próprio Euclides. Os ensaios foram frutos da viagem de Euclides a Amazônia durante o auge do boom da borracha. A primeira parte do livro se chamava “À Margem da História” com a primeira seção da obra titulada “Terra sem história”. O próprio Euclides considerava este o seu livro vingador. O teórico Foot Hardman no livro A Vingança de Hiléia acredita que Um Paraíso Perdido, escrito posteriormente a Os Sertões, funciona de uma certa maneira como uma redenção da visão positivista de Os 63

Esta característica pode ser observada nas obras de La novela de la selva e no

regionalismo amazônico, literaturas estas que destacadamente usaram a Amazônia como espaço

central das suas obras. Algumas vezes, retratada como um paraíso, em outras, como um inferno

verde, a região amazônica parecia expressar as mesmas características de uma terra recentemente

‘descoberta’. Não é mera coincidência que estas obras possuem várias similaridades de motifs

com as crônicas coloniais. No segundo capítulo, a análise concentrar-se-á na relação entre Mario

Vargas Llosa e Milton Hatoum com estes gêneros, suas aproximações, distinções e perspectivas

destes autores sobre estas obras. Por enquanto, é interessante comparar como os autores do

regionalismo amazônico e da novela de la selva foram importantes para reavaliar o conceito de

modernidade e desenvolvimento regional promovido pela nações latino-americanas para a

Amazônia.

Em La Vorágine, por exemplo, a fuga de Arturo Covas desde a citadina Bogotá para a

selva e o encontro com a exploração dos caucheros da localidade gera, segundo o crítico Juan

Alberto Blanco Puentes uma série de reações, sendo uma delas a mudança de valores à luz da

modernidade.32 Em Modernidad: voces en la Vorágine de Eustasio Rivera, Blanco Puentes

chama a atenção para como a humanidade desconhece os perigos da modernização e do

Sertões dedicando uma parte inteiramente a “Os Caucheros” onde ele critica estes exploradores da região e leva à exaltação dos índios e caboclos. Mark Anderson, por sua vez, acredita que Euclides não exibe mais o caráter degenerativo dos mestiços, mas ainda está ligado a uma visão darwinista, na qual os sertanejos que sobrevivem ao local são os fortes e genuínos representantes da nação. Estes sertanejos imigrantes seriam, portanto, os verdadeiros fundadores nacionais. Mark Anderson menciona ainda que houve outros livros que foram de encontro a uma visão racista e pseudo-científica da Amazônia. Ele cita dois autores: José Américo de Almeida (A Paraíba e seus problemas, 1923) e Araújo Lima (Amazônia: a terra e o homem, 1932). Este último dava enfoque aos problemas de educação e higiene da Amazônia, não a idéias de degeneração da raça. Para Anderson, estes autores ainda usaram a idéia de paraíso nacional e da marginalidade da Amazônia (“National Nature and Ecologies of Abjection in Brazilian Literatures at the Turn of the Twentieth Century” 229).

32 La Vorágine é um texto sui generis, segundo Carlos J. Alonso, por distinguir-se de Doña Bárbara e Don Segundo Sombra através de um pessimismo e fracasso e pela retrato de uma “negative autochthonous condition” (The Spanish American regional novel 136). Não há nestes romances um arquétipo regional, como o gaúcho ou o llanero, um personagem representativamente nacional.

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capitalismo nesta época. No Canaíma de Rómulo Gallegos também ocorre uma fuga do

protagonista, porém diferentemente de Arturo Covas de La Vorágine, o protagonista Marcos

Vargas não foge da justiça ou em busca de sua amada.

Para o crítico Jorge Marcone, o Canaíma faz uma “volta ao natural” através de um

discurso primitivista do narrador-omnisciente sobre civilização e progresso, apenas sugerido nas

obras de Rivera (“Jungle Fever: Primitivism in Environmentalism: Rómulo Gallegos's Canaima

and the Romance of the Jungle” 157). Em ambas as obras literárias, a idéia de modernização,

embora apresente diferentes nuances, é uma constante a qual se posiciona dentro de uma crítica

ideológica que a identifica como benéfica ou maléfica para a região Amazônica, seja em favor da

preservação do primitivo contra um negativo progresso ou pela falta ou desordenada

implementação de políticas realmente modernizadoras nas regiões periféricas de suas nações.

Embora a utopia da modernização na América Latina apareça em Canaíma, e

posteriormente seja resgatada nos livros de Vargas Llosa, a literatura regionalista com o espaço

da Amazônia retrata a região Amazônica como uma dissonância topográfica no discurso pseudo-

civilizatório e modernista das políticas nacionais. Esta dissonância não somente aponta para uma

alteração do sistema representativo no presente, como também proporciona uma relação mais

realista e clara com as conseqüências futuras dentro do sistema literário neste gênero. Porém,

também houve mudanças considerando as diversidades que se incorporaram ao espaço

amazônico ao longo dos anos.33

33 Ainda sobre o discurso que construiu a Amazônia, complementando o discurso de abjeção à mestiçagem de Mark Anderson já referido mais acima, este mesmo autor observa a evolução deste discurso ao longo do século XX. Anderson nota que, na segunda metade do século XX, entra em voga discursos de brasilidade e mestiçagem, que implicavam em conceber o Brasil como uma cultura perfeitamente homogênea porém internamente já misturada (“National Nature and Ecologies of Abjection in Brazilian Literatures at the Turn of the Twentieth Century” 229). 65

Particularmente, o discurso amazônico, antes caracterizado por mostrar um paraíso intocado onde residia as essências da nação, é explorado nas obras regionalistas como uma região em profunda mudança político-econômica e social. As obras do regionalismo amazônico e da novela de la selva já começam a vislumbrar, ainda de maneira incipiente, uma sociedade em profunda mudança. O ciclo econômico da borracha trouxe câmbios drásticos e indeléveis no

âmbito econômico e, obviamente, no social. As sociedades amazônicas ganham projeção nacional e internacional e uma significativa alteração na morfologia social promove uma dinâmica de mutabilidade. Com a migração nacional e global suscitadas por este ciclo econômico e a conseqüente heterogeneidade social, ocorre uma alteração da sociedade amazônica implicando numa alteração de um regime de representação.

O teórico Alberto Moreiras faz uma reflexão sobre a mudança epistemológica do gênero do regionalismo em geral e da região como unidade no discurso acadêmico, particularmente, nos séculos XX e XXI. Primeiramente, Moreiras credita a Cornejo Polar um pioneirismo pelos seus escritos, particularmente em “Nuevas Reflexiones sobre la crítica latino-americana”, onde

Cornejo Polar falava sobre a necessária e já atrasada mudança paradigmática na reflexão histórico-literária. 34 Para Moreiras, o câmbio paradigmático sobre as epistemologias da disciplina histórico-literária da América Latina conta com, entre outros conceitos, a idéia de

Este pensamento, que aparentemente poderia soar como um paradoxo, resolvia a exclusão dos outros e vários elementos nacionais.

34 Em The exhaustion of difference, Moreiras trabalha com os conceitos de Narrative fissure, negative globality, and critical regionalism para pensar sobre uma maneira crítica de afirmar as particularidades da América Latina preservando, ao mesmo tempo, um intuito de não cair numa falsa dialética. Assim Moreiras define estes conceitos: “Narrative fissure, negative globality, and critical regionalism are concepts within the purview of second-order Latin Americanist reflection that attempt to preserve a historical legacy, they are concepts that attempt to deconstruct a historical legacy, and they are concepts that, immodestly enough, also attempt to open up a discursive field where the possibility of new forms of reflection can be prepared”(49).

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critical regionalism para desconstruir as macronarrativas da modernidade e também preservar um legado histórico latino-americano (The exhaustion of difference 49). Desta forma, o regionalismo crítico seria importante na reavaliação das narrativas que trazem as diferenças locais desde uma perspectiva não hegemônica, porém participante de um sistema global de representação.

Desta forma, é interessante observar como as obras, que lidam com a Amazônia, vão engendrar novos espaços narrativos englobando tanto uma nova situação de heterogeneidade estimulada por este processo, como as dissonâncias reais de um novo sistema social, ideológico e conceitual. Especificamente, dentro de um contexto de globalização iniciado no final do século

XX, as obras irão cada vez mais lidar com a sociedade local em um diálogo mais amplo, como estas próprias irão estabelecer conexões de representação literária similarmente mais amplas.

Antes de adentrar-nos mais profundamente nos meandros do câmbio paradigmático do gênero regionalista sobre os quais as bases teóricas desta análise se construirá, é importante conceituar este processo de globalização.

Entende-se o processo de globalização, o fenômeno econômico de internacionalização do capital. A partir deste princípio econômico, outros fenômenos surgem neste contexto como por exemplo: os movimentos de (des)reterritorialización, a interconectividade e a compressão de espaço e tempo e, interessantemente, uma valorização dos particularismos dentro de um sistema notadamente homogêneo. O tema da globalização vai ser avaliado no capítulo III através desta perspectiva de pensar a função do regional dentro deste sistema global explorando os conceitos que mostram o novo status da região dentro de um mundo globalizado. Assim, no capítulo III,

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analisar-se-á com mais detalhes como Roland Robertson acredita que a globalização implica num processo baseado no dualismo “universalismo-particularismo”:

I suggest that along these lines we may best consider contemporary globalization in its most general sense as a form of institutionalization of the two-fold process involving the universalization of particularism and the particularization of universalism (Robertson “The Universalism - Particularism Issue” 25).

De acordo com Robertson, por uma necessidade de consumo, o mercado tenta moldar os seus produtos para as particularidades dos diferentes mercados consumidores. Mabel Moraña faz uma ressalva importante aos teóricos da globalização que entendem este sistema de global e local como algo que venha a estabelecer um equilíbrio de poder. Moraña argumenta:

...siendo ‘la sociedad global [...] el escenario más amplio del desarrollo desigual, combinado y contradictorio’ (Ianni 171) queda pendiente el problema de la construcción de hegemonía a nivel nacional e internacional...Coincido con Larsen y Amin en el llamado de atención acerca de los peligros de realizar una equivalencia sin más entre universalismo como ideologema necesariamente imperialista y hegemónico y antiuniversalismo como principio emancipatorio y reivindicativo. (“Indigenismo y globalización” 248).

Como visto na citação, as idéias do brasileiro Octavio Ianni no livro Teorias da Globalização estão em consonância com as de Mabel Moraña e também revelam a globalização desenvolvida essencialmente dentro de um mundo capitalista onde a aparência vale mais do que a experiência.

Desta forma, simulacros de cultura são engendrados e a aparência de uma interconectividade igualitária é simultaneamente construída. Octavio Ianni afirma que: “...cria-se a ilusão de que o mundo se tornou finalmente esférico, ou plano. Dissolvem-se as realidades, diversidades e desigualdades no mundo dos simulacros e virtualidades, a despeito de que se reafirmam e desenvolvem as realidades, diversidades e desigualdades”(211).

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Da mesma forma, David Harvey analisa o processo da globalização como um catalizador das particularidades porém não de uma maneira celebratória ao lembrar que a comodificação dos elementos locais e a superficialidade de uma grande quantidade de informação constroem um mundo de simulacros (“Time-space compression and the postmodern condition” 13). Mais ainda,

Harvey não acredita que as resistências regionais/ locais tenham o poder de mudar um sistema tão controlador:

‘Regional resistances’, the struggle for local autonomy, place-bound organization, may be excellent bases for political action, but they cannot bear the burden of radical historical change alone. ‘Think globally and act locally’ was the revolutionary slogan of the 1960’s. It bears repeating. The assertion of any place- bound identity has to rest at some point on the motivational power of tradition. It is difficult, however, to maintain any sense of historical continuity in the face of all the flux and ephemerality of flexible accumulation. The irony is that tradition is now often preserved by being commodified and marketed as such. (“Time- space compression and the postmodern condition”15)

Portanto, ao falar sobre resistência regional dentro de um contexto globalizado há que se ter em mente as ressalvas feitas sobre um processo em que o “global” está inserido no “regional” e, por vezes, pode se tornar um produto comodificado dentro do discurso da globalização. De qualquer maneira, vários intelectuais veem a possibilidade de aproveitar este ‘marketing’ do poder da resistência regional para fazer associações benéficas à estas regiões periféricas e marginalizadas porém incluídas no processo global.

Teóricos como Antonio Negri e Michael Hardt acreditam que as regiões periféricas podem associar-se para construir espaços de similaridades entre elas e vislumbrar a possibilidade de resistências locais mais fortes dentro de um panorama globalizado. Ao enfatizar as similaridades entre as culturas, Hardt e Negri criam a idéia da criação de um “common” e afirmam: “Singularities interact and communicate socially on the basis of the common, and their

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social communication in turn produces the common” (Multitude War and Democracy in the Age

of Empire 198).

Estas similaridades entrevistas pelas regiões periféricas globais, de acordo com estes dois

teóricos, permitem que as localidades façam conexões sobre as problemáticas enfrentadas e se

associem sem ter que recorrer aos centros econômicos de suas nações. Com um novo status de

valorização decorre a possibilidade de interconectividade sem uma mediação nacionalista. Isto é

o que também observa García Canclini, quando fazendo sua análise sobre os estudos culturais do

mundo contemporâneo, afirma que é importante enfatizar os estudos dos processos de

globalização justamente no melodrama dos encontros e desencontros culturais globais (“La épica

de la globalización y el melodrama de la interculturalidad” 45). Os diálogos globais

estabelecidos pelas obras de arte e o mundo cultural consegue ampliar sua escala de ressonância

proporcionando a recomposição das culturas nacionais e ir mais além delas.35

Isto não quer dizer, como bem lembra teóricos como Arjun Appadurai (“Disjuncture and

Difference” 29) e Saskia Sassen (“Spatialities and Temporalities of the Global: Elements for a

Theorization” 262-263) que o nacional está fora da dinâmica da globalização, mas sim que as

dinâmicas de interconexão entre as regiões periféricas do mundo podem dar-se de maneira mais

freqüente. As regiões, desta forma, não devem necessariamente subjugar-se ao discurso nacional

35 García Canclini baseia os seus estudos nestes encontros e desencontros globais de maneira dualista, ou seja, somente a partir da minha relação de mim com o ‘outro’ e com os ‘outros’ é possível ver tanto a mim como ao ‘outro’. Portanto, o autor, de uma certa forma, tenta manter uma visão crítica sobre a produção e consumo desta cultura como determinantes para a recepção das obras de arte. Por exemplo, García Canclini afirma que as bienais e feiras que ocorrem em São Paulo e Veneza mostram um deslocamento de focos de irradiação que não seja Nova York, porém polemiza ao dizer que esta descentralização como um todo não ocorre de maneira efetiva:“ Sin embargo, pocas veces la descentralización y el desarrollo de bloques regionales conduce a una articulación equilibrada entre lo local y lo global”(37). Portanto, trata-se de uma visão que ao mesmo tempo que celebra os novos fluxos culturais construídos na contemporaneidade, ainda é consciente da assimetria e desequilíbrio nestes encontros.

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para fazerem-se pertinentes. Este novo sistema engendrado pelo fenômeno da globalização, especificamente no espaço social amazônico, afeta a dinâmica literária no que se refere à conexão do espaço narrativo com o espaço social. Pertinente a estes temas, é importante neste primeiro capítulo, que trata do gênero regionalista lato sensu, começar a reflexão através de indagações mais genéricas sobre o sistema literário regional em si para ver como a literatura dos autores contemporâneos refletem esta interconectividade e eles entremeam em suas narrativas os espaços globalizados, onde o local e o global se encontram.

Os autores latino-americanos tem a oportunidade de representar dentro do sistema literário as conexões globais junto às problemáticas nacionais nos seus países e conectá-los às outras periferias mundiais. Desde o período pós-guerra – com escritores de língua hispânica como Gabriel García Márquez ou com escritores do século XX brasileiros como Guimarães Rosa

–, a internacionalização econômica e uma maior participação da América Latina dentro de uma economia de alcance global foram articuladas nestas obras. A denúncia das grandes multinacionais que invadem os países latino-americanos e a conivência de governos corruptos são elementos presentes em diversas obras.

A ficcionalização da matança de Aracataca propulsionada pela greve à empresa United

Fruit Company no espaço Macondo do Cem anos de Solidão é um desses exemplos. No caso brasileiro, na mesma época, Guimarães Rosa voltava-se à antítese da modernidade, seu tempo e simulacros. Em plena década de modernização brasileira, concomitante a uma sociedade enlevada pelo lema 50 anos em 5, Guimarães Rosa cria o seu “Grande Sertão” ainda dominado

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pelos jagunços e fazendeiros regionais, uma anacronia fincada na contemporânea realidade latino-americana.36

No caso da literatura produzida na Amazônia, especificamente, as transformações com a imigração iniciada durante os períodos de exploração da borracha e a posterior abertura de comércio de Manaus nos anos 70, a imigração maciça de mão-de-obra para o local e o conseqüente hibridismo cultural foram testemunhados pelas obras escritas entre o real período do boom da borracha e um maior período de interconectividade. Nas entrelinhas dos vestígios do capitalismo e os arautos de sua continuação deitam-se as observações analíticas e literárias da novela de la selva. Como bem observa a crítica María Helena Rueda, as obras de Eustasio Rivera e Rómulo Gallegos (e podemos incluir nesta periodização os brasileiros Dalcidio Jurandir e

Marcio Souza) são extemporâneas a um drama já conhecido por intelectuais e políticos de seus países (“La selva en las novelas de la selva” 32).

Ora, esta peculiar cronologia situa estes autores num momento ínterim que os coloca entre constatadores da falência da modernidade e o arauto das agruras futuras da outra e maior internacionalização econômica global. A situação temporalmente privilegiada junto à peculiaridade do espaço amazônico deram aos escritores da novela de la selva (no mundo literário hispânico) e do regionalismo amazônico (na literatura brasileira) instrumentos para uma construção em estado de transição. Mario Vargas Llosa se insere dentro desta temática no

36 Luiz Claudio Vieira de Oliveira, no texto “Diálogos entre Guimarães Rosa e a literatura latino-americana:a modernidade”, faz uma relação entre diversos escritores latino-americanos, entre eles Guimarães Rosa e Gabriel García Márquez, sobre o espaço e o tempo construídos como uma afronta ao espaço supostamente real e moderno contemporâneo. Sobre os Grande Sertão: veredas e o Cem Anos de Solidão, especificamente, Oliveira afirma: “García Márquez, em Cem anos de solidão, cria uma realidade que, como o sertão de Guimarães Rosa, só existe nas palavras que a criam. Essa é também uma forma de romper com o conceito de espaço ordenado que herdamos, e que tentamos reproduzir em nosso discurso…O espaço e o tempo de Cem anos de solidão não são o espaço e o tempo do mundo em que vivemos, passíveis de mensuração, mas um espaço e um tempo em que as coisas existem desde sempre e para sempre, tal qual em Grande sertão: veredas” (1455).

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começo de sua carreira literária com o romance La Casa Verde onde o espaço Amazônico começa a ser entrevisto de maneira a evidenciar uma interação entre local e global definidora de um câmbio representativo literário.

O espaço amazônico continua a ser usado nas obras do escritor como Pantaleón y las

Visitadoras, mas é definitivamente em El Hablador onde se inicia uma nova maneira de interpretar as cores regionalistas do espaço amazônico de maneira global. É no final do século

XX e princípios do XXI quando Mario Vargas Llosa e Milton Hatoum se encontram literariamente. Ambos usando o espaço amazônico desde uma posição privilegiada com apuro técnico e testemunhando a mudança de representação de um espaço não mais dividido em dialéticas coloniais de barbárie e civilização. O espaço local utilizado não mais se encerra em si mesmo ou se isola dentro de um reservatório intacto e intocado de cultura e tradição. O global e as influências externas já se manifestam de diferentes maneiras revelando-se em suas multicolores influências e, principalmente, num dinâmico e contínuo processo de mudanças.

Nos próximos capítulos, através das obras dos escritores contemporâneos Mario Vargas

Llosa e Milton Hatoum, tentar-se-á questionar a reapropriação da representação do regionalismo levando em conta o panorama cultural que está afetado por seu momento histórico e pela ideologia vigente. A literatura de base regional de Hatoum e Vargas Llosa se constrói no mundo globalizado e explora a fragmentação dos sujeitos na periferia do capitalismo. Neste panorama encontra-se uma linhagem nova de regionalismo, plantada em uma região caracterizada por sua transnacionalidade: a região amazônica. Num mundo globalizado, as sinapses construídas dentro de uma região – que já oferecia um claro desafio aos discursos nacionalistas – permitem a ambos escritores criarem pontes de ligação entre as obras narrativas que já trabalhavam sobre a

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fundação desta internacionalidade da Amazônia e conectá-las com um sistema representativo de particularidades num mundo contemporâneo.

Dentro desta tradição, as obras La Casa Verde e El Hablador de Vargas Llosa e Dois

Irmãos de Milton Hatoum serão analisadas de maneira a estabelecer a representação do espaço amazônico internacionalizado. Desta forma, La Casa Verde poderá ser entrevista como uma narrativa que, ao aportar o tema da corrupção e a dinâmica social da Amazônia no período da exploração da borracha, consegue estabelecer reflexões sobre as conseqüências deste processo de internacionalização da economia da região. El Hablador, mais recente e inserido num princípio de maior mobilização e interconectividade humana, trabalha com uma mirada que entrevê o que o passado e o presente econômico deixou(a) de legado à esta região. Em Dois Irmãos, a mirada que vai ao passado e faz a ponte entre os períodos de internacionalização da Amazônia também funciona como fundação na narrativa para o estabelecimento de um novo espaço plural. Portanto, o espaço local contemporâneo ainda articulado de forma mítica faz ponte com outras regiões do mundo.

Falando-se de região amazônica, a exploração do mítico ou a sua recuperação através de uma construção memorialista sempre foram elementos cruciais para construção do espaço literário. Desde as crônicas literárias que ‘descreviam’ a Amazônia para os colonizadores europeus até as obras da novela de la selva ou do regionalismo amazônico, ocorre uma construção poética deste espaço regional. Giambattista Vico em New Science mencionou o conceito de geografia poética para descrever o processo ao qual se recorre para descrever algo novo através de conceitos já familiares:

It remains for us now to cleanse the other eye of poetic history, namely poetic geography. By the property of human nature that “in describing unknown or distant things, in respect of which they either have not had the true idea themselves or wish to explain it to others who do not have it, men make use of the

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semblances of things known or near at hand” [122], poetic geography, in all its parts and as a whole, began with restricted ideas within the confines of Greece. (285)

Por sua vez, Neide Gondim no livro A invenção da Amazônia analisou a construção mítica da

Amazônia através da concepção medieval de mundo dos cronistas coloniais. Levando em consideração estas teorias e a partir da análise de seu funcionamento na literatura amazônica

(levada a cabo no capítulo II), pode-se notar que os escritores contemporâneos não se desfazem do caráter mítico característico desta localidade. Porém, embora os escritores mantenham o mito como recurso literário, eles agora conseguirão associar o espaço local a outros espaços globais.

Ver-se-á que a Amazônia de Mario Vargas Llosa equivale-se, por vezes, ao espaço europeu e a de Milton Hatoum, ao espaço do Oriente Médio através do problemas vividos nas duas localidades ou na interfluxo dos sujeitos de ambas localidades. Esta transformação epistemológica do espaço narrativo da Amazônia propulsionou um maior estudo sobre espaço narrativo amazônico. De fato, a transformação do espaço amazônico está relacionada a um novo status adquirido pela região. Segundo a teórica Ana Pizarro, no texto “Imaginario y discurso: la

Amazonía”, uma maior incorporação da região amazônica aos estudos sobre América Latina vem crescendo nas últimas décadas.

Para Pizarro, isto ocorre devido especificamente a três fatores: 1º) O desenvolvimento dos sujeitos culturais assim como a ênfase na região diversa geograficamente e culturalmente, que não só tem indígenas.; 2º) Os impactos ambientais e sociais dos processos de exploração de seus recursos naturais (relação do meio ambiente, com o homem amazônico e sua modernização); 3º) A construção de uma comunidade imaginada amazônica estabelecendo

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ligações, chamadas por Pizarro de “vínculos identitarios panamazónicos” (60), tanto no plano

econômico quanto no plano simbólico.37

A construção de uma comunidade imaginada amazônica pelo seu caráter totalizador e

prescritivo não é a perspectiva mais adequada para encarar as obras narrativas dos escritores

contemporâneos, porém as sinapses estabelecidas entre escritores, dantes distanciados por

categorias lingüísticas, é o elemento fulcral para fundamentar uma perspectiva teórica de

avaliação comparativa. Além disso, a diversidade geográfica e de seus sujeitos culturais deve ser

analisada como um efeito de expansão e exploração de novos modelos para a construção dos

personagens no espaço amazônico. Por exemplo, no espaço amazônico das obras de Milton

Hatoum e Mario Vargas Llosa, há uma expansão dos personagens/ tipos amazônicos

costumeiramente explorados em obras de cores regionais. A incorporação de diferentes

alteridades à região amazônica passa por um processo duplo de forças centrípetas e centrífugas.

Ao observar o espaço social na narrativa, há um movimento centrípeto de análise da

diversidade existente pois os personagens locais são considerados em suas diferenciações. A

observação de uma diversidade interna já existente dentro de uma região revela-se através de um

maior apuro técnico e, conseqüentemente, um cuidado ao lidar com categorias pré-fixadas e

tipologias de personagens. Graças a uma construção mais sofisticada do personagem amazônico,

principalmente na obra de Milton Hatoum, os escritores conseguem recuperar personagens

típicos da região, como os indígenas e os caboclos, sem tipificá-los.

A análise da diversidade dos sujeitos locais também engloba um movimento centrífugo

ao inserir personagens com ligações internacionais. Os judeus e os norte-americanos em El

37 No texto “Imaginario y discurso:La Amazonía”, Ana Pizarro afirma que os estudos sobre a literatura latino- americana a partir da segunda metade do século XX começaram a acoplar o Brasil no conjunto latino-americano e, segundo Ana Pizarro, os estudos sobre a região amazônica, especificamente, estariam aumentando nas últimas décadas (59-60).

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Hablador e os árabes em Dois Irmãos mostram como a dinâmica local está estruturada em bases híbridas construindo um novo sinônimo de nacionalidade. De fato, nos livros La Casa Verde e, especialmente, em El Hablador e Dois Irmãos percebe-se que a identidade nacional é construída de acordo com o discurso prescritivo geográfico (com o aproveitamento de marcadores locais) e ao mesmo tempo, desafiada numa estrutura mais complexa onde sujeitos e espaços encontram-se por vezes fragmentados, seja pela sua estruturação narratológica, seja na inserção de elementos outros não ainda englobados no imaginário local.

Estes personagens não usados costumeiramente nas obras regionalistas também têm a função de unir os diferentes “outros”. Considerando o conceito de poder de Edward Said para análise do ‘outro’ supracitado neste texto, a relevância de reunir os seres periféricos mundiais reafirma uma exploração inusitada das marginalidades. As diferentes alteridades incluídas nestas obras e o encontro do “outro” amazônico com o “outro” oriental reavaliam o estilo narrativo neste espaço amazônico.

O encontro desses dois “outros” implicaria em que tipo de mudanças na dinâmica dessas narrativas que exploram o espaço amazônico? Para acercar-nos do texto de ambos autores e buscar um entendimento sobre as dinâmicas narrativas dessas obras, a visão do escritor argentino

César Aira sobre o “exótico” parece ser a mais adequada. No artigo “Exotismo”, César Aira argumenta que o ponto de vista “exótico” é um dispositivo ficcional intrínseco à produção literária e vê a reinvenção de uma mirada “outra” do narrador como elemento positivo do ponto de vista narrativo.

Desde esta perspectiva, o exotismo é visto como uma ferramenta importante para dar uma roupagem mais original àquilo que já é familiar aos nossos olhos. O ponto de vista exótico permite construir a imagem de si mesmo e de seu país sem usar símbolos/imagens já

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desgastados. A pobreza do exotismo estaria na repetição do que já foi observado/dito

implicando, por vezes, numa comercialização de nacionalidades.38 Desta forma, o que deve ser

interrogado quando analisando uma obra literária contemporânea e o seu “conteúdo exótico” é se

a narrativa apresenta construções cristalizadas/ estereotipadas ou conseguem inovar em sua

linguagem. A partir das narrativas de Milton Hatoum e Mario Vargas Llosa procurar-se-á nos

textos ver até que ponto a incorporação dos “outros” e diferentes elementos conhecidos como

exóticos – tanto o árabe e o judeu como os indígenas amazônicos – podem trazer essa mirada

nova à narração de espaço amazônico. Simultaneamente, analisar-se-á como uma similar

utilização do ponto de vista de narradores híbridos, mais especificamente em El Hablador e Dois

Irmãos, não somente mostra uma maior complexidade no tratamento das representativas

identidades nacionais com estes “novos” híbridos, como também aponta os efeitos destes

encontros aparentemente inusitados no espaço literário amazônico.

A equivalência entre os indígenas com os judeus, em El Hablador, e com os árabes em

Dois Irmãos também eleva as questões e agruras locais a um patamar global. A equivalência

destes personagens com os migrantes e os imigrantes globais impulsionam um tratamento um

problema extremamente local a discussões globais e uma reinterpretação da voz indígena dentro

da narrativa de espaço amazônico.

38 No artigo “Exotismo”, César Aira faz um recorrido da história do exotismo, dividindo-a em três estágios. O primeiro ocorre no século clássico francês XVII quando a idéia de humanismo ocupa lugar central. Neste período, com a figura de Montesquieu inventa o gênero literário do “romance exótico” a partir de seu livro Cartas Persas. Os protagonistas desta obras podem ver a Europa de uma maneira que os europeus não podem vê-la. Quando esses romances se multiplicam decrescem em mérito e aparece o gênero exótico como moda e frivolidade. Este é o segundo estágio do exotismo. Nesta passagem do primeiro ao segundo é quando morre a invenção. O livro se transforma em mercadoria e o leitor, em consumidor. É partir daí que se desenvolve o segundo estágio, o próprio “persa” vende aos leitores uma Pérsia caricata e exótica, o que Aira chama de “persa profissional”. Este é o estranhamento ready-made usado pelo escritor, ou seja, aquilo que é repetido, degastado e comumente hoje em dia associado à idéia de exótico.

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Primeiramente, a discussão do resgate da voz indígena nessas obras irá tomar por bases mais gerais as teorias de “oralidade” de Martin Lienhard, da “voz regionalista” de Josefina

Ludmer e o conceito de “ilusão da oralidade” por Jorge Marcone. De Lienhard, usar-se-á seu conceito referente à crença de que a recuperação da voz oral não pode ser vista de maneira neutra, como um mera representação da fala. Ao contrário, a apropriação desta voz oral, particularmente a indígena, muitas vezes, foi usada para valorizar ou desvalorizar estes elementos dentro de uma narração.

Em verdade, de maneira complementar é interessante ver como no livro La Oralidad

Escrita Jorge Marcone não só acredita que “escrita da oralidade” é um produto manipulado pelo autor mas, principalmente, que o dualismo construído entre oralidade e escrita não se constitui válido. Este tipo de dicotomia entre escrita e oralidade faz parte de uma tendência teórica de segregar o oral do letrado, considerando-os como sistemas cognitivos puros. A maioria dos estudos clássicos como os de Harvelock e Goody, por exemplo, explica a superposição da fala pela escrita dentro de um processo evolutivo. Em consonância com estes estudos, o francês

Jacques Derrida irá mostrar uma outra idéia que prova que o “oral” já tem muito do escrito. Ele rejeita a dicotomia entre oralidade e escrita confrontando a idéia de oralidade e escrita como entidades estáticas e separadas:

the concept of writing…no longer indicating a particular, derivative, auxiliary form of language in general...the signifier of the signifier -- is beginning to go beyond the extension of language. In all senses of the word, writing thus comprehends language. (Of Grammatology 6-7) Embora haja uma polêmica sobre a ênfase que o filosófo francês coloca na escrita, desde suas afirmações, acentua-se a dicotomia antes pregada entre oralidade e escrita merece problematizações. De modo similar, para Jorge Marcone, “oralidade” é uma estratégia medida,

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um objeto de desejo ou utopia discursiva para satisfazer os objetivos pessoais do autor. Portanto, a oralidade é concebida pelo crítico como uma categoria que funciona dentro da escrita. Assim,

Marcone explica o que ele pensa sobre a pretensa “incorporação” da oralidade dentro da escrita:

El caso de la inscripción ilustra también otra conocida tesis: la de que el lenguaje no es simplemente un “reflejo” o “expresión” de un “mundo” que se encuentra como condición preexistente sino una actividad a través de la cual ocurre la aprehensión de la “realidad” y se constituye como tal. (La Oralidad Escrita 77) A ilusão da oralidade é uma maneira de representar-se num ato de comunicação, do qual não se participa, convertendo-se num objeto de estudo de seu conhecimento em lugar do espaço de interação com um sujeito (La Oralidad Escrita 198-199). Em um contínuo teórico a estas idéias, adicionar-se-ão algumas postulações da Josefina Ludmer para suplementar esta idéia desde uma perspectiva mais geral para o gênero regionalista. Ludmer analisa particularmente a voz do gaucho na literatura gauchesca o que permite traçar algumas diretrizes sobre as obras de cunho regionalista. A escritora argentina faz questão de chamar a atenção para o fato de que dentro de um discurso pretensamente representativo de uma voz oral na escrita, há uma intenção ideológica e política do autor:

Estas textualidades específicamente latino-americanas hacen pensar que la literatura, cuando trabaja a dos voces, con las dos culturas, las politiza de un modo inmediato. Funde lo político y lo cultural porque funde los lenguajes con relaciones sociales de poder…[el libro] es una reflexión sobre cierta literatura latinoamericana fundada en los uso diferenciales de las voces y palabras de gauchos, indios y negros, que definen los sentidos de los usos de los cuerpos. (El género gauchesco : un tratado sobre la patria 11-12)

Dentro da análise particularmente voltada ao gênero, Ludmer sinaliza que esta pode ser generalizada para o entendimento de outros tipos de literatura e de como o caráter ideológico e

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político deve ser levado em conta ao analisar a oralidade nas obras de cunho regional.39 Desta

forma, a análise da obras de Milton Hatoum e Mario Vargas Llosa serão exploradas com o

objetivo de pôr em evidência como e por que os escritores manipulam a mistura das vozes locais

indígenas com as dos migrantes/imigrantes da Amazônia.

De fato, há uma bifurcação nas bases ideológicas das narrativas desses dois escritores,

principalmente na valorização e desvalorização às quais se refere Lienhard. Enquanto Milton

Hatoum acredita que a linguagem indígena e, de certa forma, sua cultura como um todo pode

corresponder-se de maneira efetiva com outras culturas, Mario Vargas Llosa lida com a oralidade

indígena ainda de maneira a mostrá-la como intraduzível. Certo é o fato de que ambos os

escritores conseguem colocar sua ideologias e posturas políticas através da construção de suas

personagens e do tom oral manipulado para representá-las. E, embora haja uma discrepância no

tratamento valorativo destas culturas, ambos escritores utilizam um novo panorama híbrido e as

equivalências dos “outros” globais para colocar em debate um tema particularmente latino-

americano e amazônico dentro de um horizonte de discussões globais.

É notório que as questões de inclusão social dos indígenas, a segurança de seus direitos

são colocados em pauta paralelamente às problemáticas dos imigrantes globais do mundo

contemporâneo. Desta forma, um tema geralmente tratado como anacrônico e relegado a círculos

específicos de debates tornam-se relevantes mundialmente. Interessantes são as implicações

39 Ludmer fala nesse livro sobra a utilização do gênero gauchesco a partir de duas categorias: uso e emergência. O uso letrado da cultura popular por ser entendido como uma forma de tirar a ilegalidade da cultura popular. Sobre esta inserção do uso da voz gauchesca, Ludmer acredita que o direito de voz ao gaúcho se assenta nas armas e na guerra. Em Facundo, por exemplo, Ludmer fala como este gaucho foi usado, portanto como uma forma de inculcar a ideologia específica de Sarmiento. Sobre o gaucho e sua voz, afirma Ludmer: Abreviámos así el uso de la voz del gaucho para definir la palavra “gaucho”” la voz (del) “gaucho”. El problema de la voz (del) “gaucho” no es lexicológico ni etimológico sino político y literário. (El problema lingüístico es político, las políticas de la lengua son políticas, y las lenguas de la política son la política. El género es políticoliterario de un modo indiferencial.) El uso de la voz “gaucho” en la voz del gaucho implica un modo determinando de construcción de esa voz” (53).

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deste comportamento similar dentro das narrativas de dois escritores latino-americanos bem sucedidos comercialmente no mercado editorial global. Conceitos como o de cidadania global para uma maior integração dos imigrantes globais – os quais postulam teóricos como Derrida no texto “Hostipitality” – irão marcar as narrativas de Milton Hatoum e Mario Vargas Llosa e embasar as discussões sobre as questões latino-americanas e sua contribuição dentro de uma dinâmica ampla.

Um teórico latino-americano que explorou a possibilidade incluir a América Latina relevantemente dentro das discussões sobre globalização – e, por isso, impossível de não ser mencionado – foi o semiótico e professor argentino Walter Mignolo. Mignolo usa um conceito mais amplo de globalização onde este processo pode ser entendido na dualidade de dois conceitos: local histories e global designs. Em Local Histories/Global Designs: Coloniality,

Subaltern Knowledges, and Border Thinking, Walter Mignolo afirma que desde o período colonial, processos de internacionalização vem ocorrendo e são refletidos em diferentes lugares e momentos (279).

Embora, talvez seja uma tentativa louvável de analisar e incluir a América Latina dentro das discussões de globalização com um certo pioneirismo, ainda assim, o conceito de globalização finda numa imensa generalização espaço-temporal e as particularidades perdem-se num infinito conceito geral. Por isso, mais apropriada para esta análise será a teoria do sociólogo português BoaVentura de Sousa Santos, onde estão colocadas as problemáticas da América

Latina desde a implementação de direitos de cidadania (ou falta desta) com o panorama da economia global de hoje e como estas populações ainda sofrem as conseqüências dos fundamentos da colonização.

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No texto “Para Além do Pensamento Abissal”, Boaventura de Sousa Santos afirma que o pensamento moderno ocidental é um pensamento abissal. Segundo o sociólogo, o pensamento abissal é uma característica da modernidade ocidental, que consiste num sistema de distinções visíveis e invisíveis que dividem a realidade social em dois universos ontologicamente diferentes: o deste “lado de cá da linha” correspondendo ao Norte imperial, colonial e neo- colonial, e o “outro lado da linha”, correspondente ao Sul colonizado, silenciado e oprimido.

Essa linha é tão abissal que torna invisível tudo que acontece do lado de lá da linha. Este lado colonizado não tem realidade ou, se a tem, é em função dos interesses do Norte operacionalizados por apropriação e violência (“Para além do pensamento abissal” 71-72).

Boaventura de Souza Santos explica em detalhes o tema dos movimentos indígenas dentro do conceito de pensamento abissal:

... os movimentos indígenas são, do meu ponto de vista, aqueles cujas concepções e práticas representam a mais convincente emergência do pensamento pós-abissal, o que é muito auspicioso para a possibilidade de um tal pensamento, já que os povos indígenas são os habitantes paradigmáticos do outro lado da linha, o campo histórico do paradigma apropriação/ violência (84).

Dentro do contexto de apropriação e violência, os indígenas, portanto são aqueles que ficaram fora da linha divisória da cidadania. Eles seriam beneficiados por um pensamento pós abissal, ou seja, que pense numa forma de borrar esta linha divisória abissal que divide as duas realidades sociais. Desta forma, BoaVentura de Souza Santos leva a situação dos indígenas ao mesmo patamar dos problemas do imigrantes ilegais e outros seres desterritorializados do mundo contemporâneo. Esta posição está congruente com as posturas de Milton Hatoum e Mario Vargas

Llosa em suas narrativas ao trabalhar com os problemas dos imigrantes da Amazônia concomitantemente ao de seus nativos, ambos não totalmente incorporados à sociedade civil.

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Os problemas locais amazônicos também serão explorados, na análise dos capítulos posteriores, através do viés ambientalista, primeiramente, enfatizando as teorias de Arjun

Appadurai (“Grassroots Globalization and the Research Imagination” 6), Patrick Murphy

(Ecocritical Explorations in Literary and Cultural Studies: Fences, Boundaries, and Fields 39), e Ursula Heise (Sense of Place and Sense of Planet: The Environmental Imagination of the

Global 6), sobre o poder imaginativo como uma forma de resistência aos problemas ocasionados pela globalização. Estes conceitos serão colocados como base para explorar como Milton

Hatoum e Mario Vargas Llosa pensam no labor literário como uma maneira de denunciar as conseqüências negativas para o espaço amazônico resultante dos processos econômicos internacionais.

Dentro deste processo de denúncia ocorre também um resgate memorialista da história de exploração ambiental da região através de sua paisagem. A isso agrega-se as idéias do escritor martiniquense Édouard Glissant para quem, dentro do contexto do Caribe, a paisagem é um arquivo vivo das agruras da colonização e da história de sofrimento daquele espaço (Caribbean

Discourse 11). Esta é uma maneira que se usa para desmistificar o poder totalizador da História oficial e afirmar a impossibilidade de uma História total e geral. É, através desta maneira que ele analisa o espaço caribenho marginalizado da História oficial e coloca a paisagem como uma forma de testemunhar a História distópica da colonização impugnada àquela região.

Um processo similar ocorre em La Casa Verde, El Hablador e Dois Irmãos pois, nestas obras, há uma grande ênfase em denunciar os mitos totalizantes de paraíso e inferno verde da região amazônica que levam as suas agruras a uma abstração quase irreal. Por isso, nestas obras a inserção das comunidades locais e uma paisagem de denúncia não deve ser meramente percebida como modelos antinacionais pela construção de ecologias abjetas, como percebeu Mark

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Anderson na construção literária da Amazônia. Ao invés disso, deve-se priorizar uma descrição realista sobre as conseqüências negativas da região sem deixar de lado o aspecto humano desse meio-ambiente.

Em verdade, o caráter humano e a integração deste com a natureza é a tônica das obras. É por esta razão que a escolha das correntes teóricas para a análise do aspecto ambiental da

Amazônia priorizará os conceitos de Ramachandra Guha e Juan Martinez-Alier e seu livro emblemático chamado Varieties of Environmentalism:Essays North and South. Neste livro, se conceitua o chamado “environmentalism of the poor” e onde os autores fazem uma distinção entre os movimentos ecológicos do Norte global e do Sul global e terminam este primeiro capítulo com um slogan que representa o livro como um todo. Assim, Guha e Martinez-Alier introduzem este slogan:

It is impossible to say, with regard to India, what Jurgen Habermas has claimed of the European green movement: namely, that it is sparked not ‘by problems of distribution, but by concern for the grammar of forms of life’. ‘No humanity without Nature!’, the epitaph of the Northern environmentalist, is here answered by the equally compelling slogan ‘No Nature without Social Justice!’(21)

Os problemas dos imigrantes e indígenas da Amazônia protagonizam as narrativas de Milton

Hatoum e Mario Vargas Llosa que conseguem equilibrar bem o reconhecimento da riqueza ecológica da região e ressaltar a importância da riqueza cultural e humana. Não se pode dizer que ambos os autores tenham visões valorativas similares com respeito a estas culturas e às soluções para seus problemas.

Em verdade, Vargas Llosa é um autor verdadeiramente polêmico quanto à sua pessimista descrença de que haja possibilidade de sobrevivência da cultura indígena no mundo moderno.

Porém, pode-se afirmar que ambos autores tratam dos grandes problemas vividos pelas comunidades locais acarretados pelas ondas de exploração na região. De fato, a região

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amazônica, em conseqüências da riqueza de seu ecossistema, funcionou como imã para empresas de exploração e indivíduos procurando oportunidades de ascensão econômica.

Para tratar sobre este tema, a teoria da “maldição da abundância” de Boaventura de Souza

Santos explorado no texto “Moçambique: a maldição da abundância” será usada para expor a opressão econômica imposta aos locais de grandes riquezas naturais por uma economia global

(onde o nacional também está incluído). Este é um importante viés dessas obras contemporâneas que mostram um destino compartilhado global a partir do espaço específico da Amazônia. Desta forma, a região amazônica – paradoxalmente nas margens econômicas de uma economia globalizada e no centro dos debates ambientais pelo seu valor para o ecossistema mundial – se destaca nas obras literárias como um local pertinente nas discussões atuais sobre globalização.

Estas estratégias usadas tanto por Milton Hatoum como Mario Vargas Llosa para a análise do espaço amazônico como um lugar já com elementos de internacionalização trazem à literatura que se faz sobre o local uma configuração que bem reflete o novo panorama mundial onde as nacionalidades fragmentadas se reconfiguram (sem desaparecer) para engendrar novas conexões e estruturar novos espaços literários. Estes espaços literários, portanto, que antes tinham uma importância de trazer diversidade ao conceito de nação, consegue dialogar de maneira mais ampla dentro de um âmbito global e relacionar-se com outros espaços dantes não imaginados.

Ora, é óbvio que haverá conseqüentes mudanças paradigmáticas de como pensar o gênero do regionalismo neste contexto de conexões internacionais estabelecidas por um mundo cada vez mais móvel. Como já visto aqui, com as transformações no espaço social e nos sujeitos culturais amazônicos, as obras contemporâneas começam a refletir a complexidade desta nova dinâmica nas suas narrativas. Primeiramente, para a construção do espaço narrativo, o redimensionamento

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das fronteiras geográficas é fato primordial a ser levado em consideração. Se antes as fronteiras geográficas serviam para delimitar as nações, a maleabilidade na conexão entre distintas regiões no globo permite entrever similaridades antes obfuscadas pela tentativa de afirmação nacional de uma singularidade/ originalidade. É possível, portanto, mudar um pouco de perspectiva e explorar o que se tem de similar entres os diferentes locais e não somente singular e diferente.

Em se tratando do espaço amazônico, há que se adicionar o grau de complexidade nesta reflexão pela transnacionalidade inerente à região. Considerando esta singularidade da região amazônica, é possível perceber que o regionalismo amazônico (assim como, os regionalismos das fronteiras) já possibilitava uma visão mais ampla que as postuladas nas teorias de Gilberto

Freyre, por exemplo. Desta forma, ao mesmo tempo que as narrativas contemporâneas nos forçam a reestruturar a reflexão sobre a narrativa regionalista, elas também nos empurram de volta no tempo para reavaliar como as diferentes literaturas regionais nacionalistas exploravam ou ocultavam o caráter transnacional dessa região, deixando mais claro as implicações político- ideológicas, às quais se refere Josefina Ludmer, subjacentes ao gênero.

Não é à toa que os estudos atuais sobre a literatura regionalista amazônica (como, por exemplo, os do crítico peruano Jorge Marcone e do brasileiro Francisco Foot Hardman) fazem menções constantes à necessária reavaliação das obras regionalistas amazônicas sobre a construção narrativa da região nos seus espaços nacionais. Por certo, as conexões mais remotas

(em oposição às de fronteiras), como as estabelecidades nos livros de Mario Vargas Llosa e

Milton Hatoum, parecem deixar mais explícitas as relações internacionais estabelecidades entre os respectivos espaços internacionais. E estas mesmas conexões mundiais, obviamente, afrouxam as amarras nacionais e dão uma maior liberdade do jugo nacionalista (porém não se livrando dele de todo) permitindo novas correspondências culturais.

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Também, é importante mencionar que as atuais correspondências construídas neste processo devem-se, em parte, à mobilidade física e à compressão espaço-temporal do mundo contemporâneo. Esta mobilidade física permite encontros culturais distintos e um maior hibridismo cultural que serão refletidos na composição de personagens variadas. Obviamente, é preciso evitar critérios simplistas e entender que um maior hibridismo cultural não determinará necessariamente a construção de personagens mais complexos em sua composição.

A composição das personagens, embora possa refletir hibridismos, ainda pode fazer-se de uma maneira simplista e rasa como vamos ver na construção de alguns personagens das obras posteriormente analisadas. Em verdade, talvez a compressão de espaço-tempo do mundo global seja até mais determinante para não se enfatizar tanto o caráter documental/ testemunhal como categoria classificatória ou valorativa no gênero regionalista. Com um maior acesso às informações sobre a região amazônica, a construção verossímil do espaço amazônico e de suas personagens nas narrativas dos escritores contemporâneos vão precisar lidar melhor com os novos paradigmas culturais e, com isso, as novas demandas literário-narrativo de um público mais abrangente.

Para enfatizar um distanciamento no conceito epistemológico de região desde as obras mais emblemáticas sobre o espaço amazônico, no próximo capítulo, a literatura da região amazônica com suas características representativas será analisada no diálogo estabelecido entre

Mario Vargas Llosa e Milton Hatoum com esta tradição regionalista. Este diálogo será estabelecido no que tange à exploração dessas obras com: 1) o trabalho mítico/ memorialista do espaço; 2) os personagens e a paralela construção de ‘tipos’; 3) o desenvolvimento do exótico como ferramenta narrativa e, por fim,4) as oralidades da região tipicamente trabalhada em obras locais. A partir dos próximos capítulos, a análise específica e centrada nas obras destes autores

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contemporâneos permitirá entrever as manifestações destas novas dinâmicas de maneira efetiva e, verdadeiramente, abrir discussões para os novos paradigmas do gênero regional.

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Capítulo II

Implicações literárias: Milton Hatoum e Mario Vargas Llosa e o Regionalismo Amazônico

A ilha ninguém achou porque todos a sabíamos. Mesmo nos olhos havia uma clara geografia. Mesmo nesse fim de mar qualquer ilha se encontrava, mesmo sem mar e sem fim mesmo sem terra e sem mim Mesmo sem naus e sem rumos, mesmo sem vagas e areias, há sempre um copo de mar para um homem navegar...... Invenção de Orfeu,

Uma clara geografia traçada em cores vívidas mas em fronteiras elusivas, assim se desenha o mapa da Amazônia no espaço literário. A região amazônica é uma gigante que, ao imponentemente frustrar representações totalizadoras, acabou por inspirar a produção de mitos e lendas que compõem fotografias fictícias de um local nunca completamente conquistado no espaço geográfico ou nas letras.

Albuquerque Jr., trabalhando com a análise de discursos para a desconstrução do processo constitutivo da região, revela como o espaço regional é um conjunto discursivo. A realidade do local ou da comunidade se desenvolve performaticamente dentro de uma rede complexa onde história escrita e oral, textos acadêmicos ou pseudo-factuais, e narrativas declaradamente fictícias se entrecruzam e vão adquirindo diferentes status diacronicamente.

Dentro da tradição escrita de documentos sobre a Amazônia com os quais as obras de

Mario Vargas Llosa e Milton Hatoum dialogam e se superpõem, aparecem três principais ciclos narrativos: o ciclo mítico-documental (composto pelas variadas crônicas e descrições do “novo mundo” pelos europeus); as descrições científicas dos exploradores naturalistas europeus; e, por

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fim, a literatura desenvolvida como conseqüência do auge econômico da borracha, também

período de internacionalização da Amazônia.

O primeiro ciclo da narrativa amazônica ocorre com a chegada dos colonizadores às

Américas. Dentro da literatura dos cronistas no incipiente ciclo ‘documental’ da região, citemos

três importantes documentos: as crônicas do frei dominicano Gaspar de Carvajal, a do padre

Alonso Rojas e as do frei Cristóbal de Acuña. Todos estes textos estão inseridos num contexto

de expedições exploratórias interessadas no potencial econômico da região. O segundo ciclo diz

respeito à plêiade de estudos produzidos por autores-viajantes, exploradores e naturalistas que,

entre os Setecentos e os Oitocentos, estudaram a natureza amazônica. Dentre os autores viajantes

estão: Wallace e Bates, Spix e Martius, Ave-Lallemant, Agassiz, Coudreau, Chandless,

Castlenau, La Condamine e Alexander von Humboldt.40 Por fim, o terceiro ciclo refere-se à

literatura produzida por conta da exploração da borracha nos fins do século XIX e começo do

século XX.

A literatura da borracha desenvolve-se de maneira particular em duas linhagens de

literatura. Na América hispânica, ela recebe a nomenclatura de “novela de la selva” e no Brasil,

de “romance amazônico”. 41 Dentro da linhagem hispânica, podem citar-se autores

representativos como José Eustasio Rivera e Rómulo Gallegos. Na linhagem literária brasileira

entre os autores mais conhecidos estão: Euclides da Cunha, Ferreira de Castro e Alberto

40 De todos eles, Alexander von Humboldt foi o que mais exerceu influência no pensamento ocidental da época. Interessante notar que os autores que mais se utilizaram o imaginário da selva no Brasil o fizeram através de experiências indiretas. Humboldt foi proibido de atravessar a bacia do Orenoco pelo governo colonial português e Darwin nunca esteve na Amazônia. Darwin recebeu informações de Wallace, também conhecido como o “evolucionista esquecido”, que passou os anos de 1848 até 1852 na região. Além disso, deve-se ao naturalista Martius um dos primeiros romances de espaço amazônico: Frei Apolônio. 41 Segundo Pedro Maligo, muitos dos paradigmas da La Novela de la Selva nos anos vinte do século passado, já haviam sido trabalhados em obras no Brasil no final do século XIX, afirmando assim a conexão entre estas duas linhagens. Entre estes escritores que escreveram sobre a Amazônia no Brasil estão: Inglês de Souza com as obras O Cacaulista (1876), História de um Pescador (1876), O Coronel Sangrado (1877), O Missionario (1891); e José Veríssimo, com as obras Cenas da Vida Amazônica (1886) e A Pesca na Amazônia (1895). Além disso, o livro de Eustasio Rivera foi rapidamente traduzido ao português (por volta de 1935). 91

Rangel.42 Tanto la novela de la selva como o romance regional amazônico utilizam elementos

similares: remetem aos estereótipos fundados desde a primeira visão dos trópicos pelo europeu.

Francisco Foot Hardman, no livro A Vingança de Hiléa: Euclides da Cunha, a Amazônia

e a Literatura Moderna, não hesita em vincular Hatoum e Vargas Llosa à produção literária

denominada pelo teórico como ‘realismo naturalista’:

De Euclides da Cunha a Ferreira de Castro e a Márcio Souza, de Alberto Rangel a Dalcídio Jurandir e a Milton Hatoum, parece que o realismo naturalista predomina como chave estética da representação literária brasileira. E na literatura hispano- americana, o espectro de La Vorágine ganha foros de matriz figuradora de várias novelas amazônicas ulteriores, como Los pasos perdidos (1953) do cubano Alejo Carpentier, La Casa Verde (1966)...do peruano Mário Vargas Llosa.(28)

O termo ‘realismo naturalista’ é impreciso no agrupamento de escritores tão distintos

esteticamente, mas sinaliza uma ligação entre eles através do espaço amazônico. Mario Vargas

Llosa e Milton Hatoum resistem à relação de seus livros com a literatura regionalista amazônica.

Eles rejeitam vínculos com a novela de selva e o romance regional amazônico por estas usarem

uma abordagem maniqueísta constituída de fórmulas fechadas privilegiando o caráter ideológico

sobre a experimentação estética. Mario Vargas Llosa e Milton Hatoum priorizam a

universalidade de suas obras e o trabalho estético, portanto, distinguem-se fundamentalmente de

outros escritores ‘locais’.

A intenção de escrever uma literatura universal é algo em comum entre Vargas Llosa e

Hatoum. Em “Elogio de la lectura y la ficción”, texto lido na cerimônia de aceitação do Prêmio

Nobel, Mario Vargas Llosa disse que a literatura não deve ser isolada, provinciana ou regional.

Milton Hatoum também afirma categoricamente que a maioria dos textos regionalistas

42 O português Ferreira de Castro escreveu A Selva em 1930; e o pernambucano Alberto Rangel escreveu o livro de contos Inferno Verde em 1908. Euclides da Cunha escreveu o texto publicado postumamente: À Margem da História (1909). Posteriormente, os autores Dalcídio Jurandir e Marcio Souza surgem neste espaço. Jurandir iniciou seus romances amazônicos com a publicação de Chove nos Campos de Cachoeira em 1941 e Marcio Souza, com Galvez, o imperador do Acre em 1976. Outros autores de menor expressão são: o potiguar Peregrino Júnior, o carioca Gastão Cruls, o paraense Abguar Bastos. Alguns críticos consideram as obras Cobra Norato e Macunaíma, de Raul Bopp e Mário de Andrade, respectivamente, como representantes da literatura com espaço amazônico.

92

amazônicos tem uma qualidade estética inferior e, por isso, não conseguem ser universais (27

May 2011).

Mas será que o local não poderia co-existir com o universal? Já nos anos 80, Angél Rama

e o teórico Antônio Cândido atestaram a dissolução da dicotomia “universal x local” através do

conceito de transculturação e super-regionalismo, respectivamente. Rama e Cândido afirmavam

que um novo grupo de escritores latino-americanos logravam a ficção do espaço regional com

alcance universal. Usando a definição de Cândido, o super-regionalismo: “abrange escritores

latino-americanos como Juan Rulfo, Gabriel García Marquez e Mário Vargas Llosa...[e] é uma

espécie de superação do nacionalismo romântico, mediante o uso do tema regional como veículo

de expressão de cunho universalista” (“Literatura, Espelho da América?” 21).43 Escrever sobre

uma região específica afastada de um centro econômico não condena uma literatura ao

localismo.

É inevitável negar que os textos La Casa Verde, El Hablador e Dois Irmãos exploram o

espaço amazônico e vários de seus ícones de representação. A leitura dialógica das obras de

Mario Vargas Llosa e Milton Hatoum com a literatura já produzida sobre o local não restringe

estas obras às fronteiras literárias da floresta. Ao contrário, este tipo de leitura permite ver como

as inovações estéticas dos livros de Milton Hatoum e Mario Vargas Llosa potencializam a

universalidade da região.

43 Como sinalizado anteriormente, o tema da transculturação narrativa é discutido em detalhes no livro Transculturación narrativa en América Latina onde se começa a vislumbrar a possibilidade de existir um regionalismo vanguardista (20-31). Antônio Cândido, por sua vez, resolve a dicotomia ‘local x universal’ porém ainda mantém a dicotomia de ‘centro x periferia’ nacional. O literatura urbana de Machado de Assis, fortemente baseada no restrito espaço carioca, não foi considerada como regional ou superregional pelo teórico. Quando consideradas relevantes, as obras regionais (as que não são produzidas no eixo econômico urbano nacional) recebem, geralmente, o título de regionalismo-universal, nunca conquistando uma neutralidade plena nacional. 93

Além disso, em entrevista pessoal, Milton Hatoum nos confessou que sua rejeição aos

“romances amazônicos” vem de uma leitura extensa destas obras (27 maio 2011).44 Por sua vez,

Mario Vargas Llosa também leu e analisou as obras da novela de la selva. O peruano já escreveu

textos críticos dedicados especificamente a este gênero. No livro Novela primitiva y Novela de

creación en América Latina, Mario Vargas Llosa analisa os romances de Rivera e Gallegos

categorizando-os como novela primitiva. 45 Portanto, as grandes fronteiras de separação

construídas por Hatoum e Vargas Llosa partem de um conhecimento profundo destas obras.

Para iluminar esta discussão, é interessante analisar a ressalva de Angél Rama sobre a

valorização da produção do Boom em detrimento das obras anteriores. No texto “El Boom en

Perspectiva”, Rama argumenta:

Pero ese enfrentamiento, que se puede seguir en los escritos de Carlos Fuentes o Mario Vargas Llosa, altera la verdad histórica y tiende a presentar como exclusiva invención de los años sesenta lo que venía desarrollándose en las letras latinoamericanas desde la generación vanguardista de los veinte y nos dotó de una serie de narraciones que muestran búsquedas en cuyo cauce se asienta la producción reciente. (180)

O pensamento de Rama – em contraste com o fato de que tanto Milton Hatoum como Mario

Vargas Llosa são profundos conhecedores do romance amazônico e da novela de la selva,

respectivamente – mostra a importância de ler estes escritores de uma forma histórica. Além

disso, Mario Vargas Llosa e Milton Hatoum mostram claramente como estudaram, leram e

criticaram as obras dessa geração anterior. Estes escritores se distinguem da literatura anterior,

porém não deixam de ser seus devedores.

44 Nesta entrevista, Milton Hatoum cita obras fundacionais do regionalismo amazônico desconhecidas da maioria dos estudiosos de literatura. Hatoum afirma de forma irônica que estas obras o ensinaram o que não fazer na sua obra.

45 Varga Llosa destaca que as principais características deste tipo de obra são a predominância da paisagem sobre a personagem e do conteúdo sobre a forma, portanto, apresentam uma caracterização superficial das personagens e a utilização de técnicas rudimentares.

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Herdeiros desta tradição, tanto Vargas Llosa como Milton Hatoum recuperam temas, rejeitam fórmulas simplistas, desconstroem o discurso local e adicionam suas próprias invenções ao conjunto discursivo da região. Nas estruturas narrativas dos livros La Casa Verde, El

Hablador de Vargas Llosa e Dois Irmãos de Hatoum, nota-se a construção de uma estética focalizada no trabalho entre mito e memória e o caráter híbrido do sujeito amazônico e de sua linguagem. Neste capítulo, haverá quatro seções onde se analisará como Mario Vargas Llosa e

Milton Hatoum navegam por temas e espaços perenes da literatura amazônica sob uma nova perspectiva ideológica e estética.

Na primeira seção, analisa-se o uso do “mito e da memória” e a conseqüente função deste binômio dentro das obras de Milton Hatoum e Mario Vargas Llosa. A utilização do mito é uma característica marcante dos escritos que tem a Amazônia como espaço literário. Pretende-se, portanto, analisar como Hatoum e Vargas Llosa resgatam esta temática e como a elaboram esteticamente em suas obras usando a memória para articular o mito em suas narrativas.

Na segunda seção, o foco volta-se para os personagens destas narrativas. Historicamente, os escritos regionalistas em geral trabalhavam com personagens representativos de seu local.

Geralmente estes personagens traduziam, através de seus caracteres, as peculiaridades de um local. Os personagens regionalistas eram considerados símbolos “autênticos” da região e, por vezes, da nação, por estar alheios às influências exteriores. Aqui, pretende-se analisar como o escritor peruano e o escritor brasileiro reconstroem estes típicos personagens regionalistas e redefinem a região Amazônica como um local de pluralidade.

O novo panorama social, que permite esta pluralidade, oferece a Milton Hatoum e Mario

Vargas Llosa a oportunidade de revisar a região sem considerá-la como exótica e isolada. Por isso, na terceira seção, discute-se como Mario Vargas Llosa e Milton Hatoum manipulam a visão

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exótica atribuída à Amazônia e usam novas alteridades para reavaliar o exótico e estabelecer uma

linguagem regionalista diferenciada. Nesta seção, particularmente, as análises estarão

concentradas nas obras Dois Irmãos e El Hablador pela proximidade estética relativa à função

dos seus narradores homodiegéticos no discurso exótico e por apresentarem-se como alteridades

insólitas nos escritos regionalistas.

A diversidade cultural exposta pelos personagens e narradores das obras La Casa Verde,

El Hablador e Dois Irmãos também será determinante para a reavaliação da utilização da

linguagem oral amazônica nos textos literários. Portanto, a última seção será dedicada ao

trabalho com a oralidade amazônica reavaliando o trabalho com a voz do indígena e com as

outras vozes que surgem em um novo panorama sócio-cultural da região.

A. A construção do mito tropical sobre as bases líquidas da memória

“Mas , memória, condizes/ Com o que nunca existiu” (Maravilha-te Memória, Fernando Pessoa 162)

Em particular no caso amazônico, a chilena Ana Pizarro credita à inacessibilidade da

região a criação de uma muralha fecunda de milhares de histórias e um imaginário mítico que

liga vários países. 46 Numa hidrografia que conecta diversas regiões, os relatos da Amazônia

possuem, segundo Pizarro, cores da imaginação numa pintura onde a realidade e o imaginado se

confundem.

Percebe-se que, desde as crônicas coloniais, a região amazônica é natureza fértil para a

construção de mitos. Embora os cronistas, a priori, cumprissem a função de descrição do novo

46 No texto “Imaginario y discurso: La Amazonía”, Pizarro explica como a natureza transnacional da selva amazônica torna complexa a discussão sobre a sua representação regional e nacional. A floresta amazônica inclui territórios mantidos por nove nações (Brasil, Venezuela, Colômbia, Equador, Peru, Bolívia, Suriname, Guiana Inglesa e Guiana francesa) sendo 60% pertencentes ao Brasil e 13%, ao Peru.

96

território conquistado, suas narrações resultaram em invenções prescritivas do novo mundo.

Giambattista Vico em The New Science já filosofava sobre o conceito de ‘geografia poética’ e

seus processos de construção como uma maneira de descrever o desconhecido (285).

O documento de Gaspar de Carvajal, por exemplo, obteve status de documento factual,

porém não há como negar o caráter fantástico da obra. Gaspar de Carvajal pintou uma Amazônia

monstruosa dentro de um feixe de mitos gregos e menções literárias.47 A representação do novo

mundo pelas crônicas espanholas, de acordo com Neide Gondim, inventa a Amazônia a partir de

uma concepção medieval. No livro A invenção da Amazônia, Gondim analisa como a temática da

monstruosidade no enfrentamento com o mundo novo pôde ser vista na representação de uma

Amazônia aterrorizante em sua diversidade e, principalmente, no que tinha de desconhecido.

A apresentação da Amazônia como voragem reverberou até mesmo em textos ditos

científicos. Por exemplo, Charles Marie La Condamine, paralelamente a seu trabalho geográfico,

se ocupou com especulações de caráter fabular, dissertando sobre a lenda das amazonas e o mito

do Eldorado em seus escritos (Gondim 127). Por sua vez, ao cientista Humboldt deve-se a

reiteração de um dos maiores arquétipos amazônicos (o do gigantismo e da Amazônia como

fluxo hidrográfico) através da representação mitológica da floresta como a Hiléia grega.48

47 O frei dominicano Gaspar de Carvajal escreveu o relato Descubrimiento quando foi cronista da expedição do capitão Francisco Orellana. Esta expedição resultou no descobrimento do estuário do rio Amazonas (chamado na época de ‘rio Grande’ e batizado por G. Carvajal de “rio Orellana”). Depois da expedição fracassada de Gonçalves Pizarro em busca do “País de la Canela”, o governador de Quito incumbe Orellana de uma expedição para buscar mantimentos para seus homens. A narrativa de Gaspar de Carvajal servirá como testemunho e prova que Orellana não havia deserdado a sua missão. A narrativa, na época, foi considerada de cunho testemunhal. Escrita em terceira pessoa, o texto descrevia povos e lugares pelos quais passava. Porém, na crônica de Gaspar de Carvajal encontram- se expressões de Marco Polo relativas a Gengis Khan. Também aparece o mito grego das Amazonas de forma palpável e fantástica. É neste documento onde o cronista afirma que a expedição fora atacada por mulheres “muy blancas y altas…muy membrudas que andan desnudas en cueros tapadas sus vergüenzas, con sus arcos y flechas en las manos, haciendo tanta guerra como diez indios”. 48 La Condamine, enviado à linha do Equador para resolver o dilema do achatamento das terras em seus pólos, tentou dar um caráter mais verossímil à história das Amazonas através da negação de fatos aparentemente fantásticos como o peito decepado das guerreiras. Por isso, Neide Gondim acredita o trabalho de La Condamine “é uma fusão das realia e das mirabilia...”(128) As pesquisas de Charles Marie de La Condamine sobre a região resultaram no livro Relatión Abrégée d’unvoyage. Humboldt, por sua vez, define a Amazônia pelo nome de Hiléia 97

A grandiosidade com a qual a natureza amazônica era descrita por esses autores remetia

ao sentimento de admiração em tudo no que nele há de horror e desejo.49 Este sentimento de

admiração da grandiosidade da natureza é pertinente à idéia de ‘sublime’. O conceito de sublime,

existente desde o século III, foi revisado por vários estudiosos, dentre eles, o filósofo alemão

Kant. De acordo com Kant, o sublime é o sentimento proveniente da observação, desde um ponto

de vista seguro, do poder e magnitude da natureza como desafio à racionalidade. É na

observação do poder da natureza que as nossas faculdades entram em conflito e a razão se

recolhe e busca em si mesma conceber idéias (como a lei moral) que ultrapassam o mundo

sensível.50

Ainda que se reconheça a sua magnitude, o sublime é a base da explicação da natureza

como hostil e misteriosa. A influência deste conceito implica geralmente numa representação

antitética das forças naturais. A Amazônia, portanto, encontrou-se dividida entre as imagens de

paraíso e inferno. Assim, na literatura da região usam-se metáforas sublimes, oscilantes entre a

representação de um “Inferno/ Deserto verde” e o “Éden/ Eldorado”.

(em referência às águas da mitológica Grécia Antiga ao leste do mar Adriático) que aparece no poema Argonáuticas de Apolônio de Rodes. 49 A grandiosidade da selva, onde o homem se perde e sai perdedor no embate com ela, encontra-se já presente no relato de Gaspar de Carvajal: “Salimos de la boca de este río por entre dos islas … y fue la salida tan dificultosa que tardamos en ella siete días...Caminamos tres días sin poblado ninguno…se puso en plática entre el Capitán y los compañeros la dificultad, y la vuelta, y la falta de comida”. A natureza, portanto, é inóspita e esmagadora. 50A categoria do sublime (do latim sublimis, que se eleva no ar) estabelecida por Longino no século III foi especialmente analisada por Kant no século XVII. Kant divide o sublime em duas categorias: o matematicamente sublime e o dinamicamente sublime. Ambas categorias se referem ao poder de superioridade da razão, como uma faculdade hipersensível, em relação à natureza. Kant define a relação entre a natureza através da categoria do sublime dinâmico e afirma: “Nature, considered in an aesthetic judgement as might that has no dominion over us, is dynamically sublime... But, provided our own position is secure, their [objects of nature] aspect is all the more attractive for its fearfulness; and we readily call these objects sublime, because they raise the forces of the soul above the height of vulgar commonplace, and discover within us a power of resistance of quite another kind, which gives us courage to be able to measure ourselves against the seeming omnipotence of nature. …Sublimity, therefore, does not reside in any of the things of nature but only in our own mind, in so far as we may become conscious of our superiority over nature within, and this also over nature without us (as exerting influence upon us)” (62-64).

98

Posteriormente, a novela de la selva e o romance amazônico utilizaram as mesmas chaves

dicotômicas de representação da floresta usadas nas crônicas coloniais e também nos escritos

naturalistas. A Amazônia Misteriosa de Gastão Cruls, o Inferno Verde de Alberto Rangel ou La

Vorágine de Eustasio Rivera reiteram a visão misteriosa e maniqueísta da floresta. Para o

pesquisador da literatura amazônica, Pedro Maligo, a mítica imagética dos textos do ciclo da

borracha apresentam: “imagery slides from representing a concrete reality to creating an

ideological frame” (Land of metaphorical desires: the representation of Amazonia in Brazilian

literature 66). 51

Pedro Maligo acredita que os temas e mitos já trabalhados na literatura da região são

usados ideologicamente pelos romances amazônicos da época da borracha, hispânicos e

brasileiros, para criticar as estruturas econômicas vigentes. Se a ideologia, como conceitua Terry

Eagleton, “... is a function of the relation of an utterance to its social context”(9), era natural que

as obras da novela de la selva e do romance amazônico trabalhassem intensamente com os temas

nacional e econômico da época.

De acordo com Ana Pizarro, é no ciclo da literatura da Amazônia que coincidem o

momento de auge da exploração da borracha na região e a construção/afirmação das nações

latino-americanas. Se nas crônicas coloniais as ideologias articuladas pelos mitos representavam

a visão do colonizador, na literatura da borracha o teor nacional ganha papel protagonista. A

51 Pedro Maligo afirma que a literatura da Amazônia é cíclica. Similarmente, no livro In Search of the Rain Forest também afirma que a novela de la selva reaproveita os temas das crônicas coloniais, diferenciando- se destas por serem escritas para um público latino-americano (98). Maligo é mais sistemático e classifica as obras regionalistas de acordo com o maniqueísmo temático ao qual obedecem e as conecta às crônicas coloniais. Para Maligo, os autores que representam a Amazônia como paraíso e refúgio são: Rodolfo Teófilo, Alberto Rangel, Carlos de Vasconcelos, Aurélio Pinheiro. Há também os que apresentam oscilações entre as dicotomias paraíso e inferno dentro das próprias obras. Alguns destes são: Alfredo Ladislau, Gastão Cruls e Raimundo Morais. Também, Pedro Maligo cita Euclides da Cunha, que escreveu sobre a Amazônia repetindo as representações antitéticas da Amazônia no seu livro À Margem da História ( livro publicado postumamente). 99

novela de la selva e o romance amazônico retratam as conseqüências da exploração

desorganizada e destrutiva da natureza e do ser amazônico com profundo cunho nacionalista.52

Portanto, o uso do mito na literatura amazônica provoca a reflexão sobre como construir

uma região na interseção entre espaço mítico, literário, nacional e ideológico. Mario Vargas

Llosa e Milton Hatoum estabelecem suas obras na desconstrução destes espaços, imprimindo

novas reflexões na estrutura do texto mítico amazônico. A linguagem panfletária dos romances

amazônicos cede lugar à experimentação literária e à tradução das metáforas míticas amazônicas

em recursos estéticos.

Tanto em La Casa Verde e El Hablador de Vargas Llosa como em Dois Irmãos de

Milton Hatoum, os diferentes conceitos sobre nação estão traduzidos nas construções narrativas

onde aparecem momentos pontuais da história de seus países. Em La Casa Verde há uma

evidente denúncia da condição de abuso do povo indígena pelos oficiais de Lima e dos senhores

da borracha. Em El Hablador, além da denúncia de exclusão nacional dos indígenas no plano

nacional, a narrativa envolve reflexões sobre as ditaduras de Manuel A. Odría e de Velasco de

Alvarado, a restauração do regime democrático e internacionalização da economia no Peru.

Em Dois Irmãos aparece o contexto político-econômico da Manaus do século XX com

episódios relativos à segunda guerra mundial; à presença norte-americana no estado e de

52 A literatura da borracha se desenvolveu como um protesto contra as intenções pan-americanistas propostas pelos Estados Unidos, e a intervenção de outras potências econômicas, que interferia cada vez mais na economia e, conseqüentemente, no espaço humano e ecológico da região. Um exemplo prático dentre tantos da intervenção norte-americana foi o arrendamento das regiões do Vales do Purus e Juruí (na época pertencentes ao Peru e Bolívia, respectivamente) para uma empresa de comércio de capital norte-americano e inglês chamada Bolivian Syndicate. Estas regiões eram as mais ricas em termos de qualidade e quantidade da produção das seringueiras. A Bolívia chegou a arrendar as terras bolivianas ao Bolivian Syndicate. Esta atitude do governo boliviano acabou resultando na revolução do Acre, tema do livro do regionalista Márcio Souza. Outro fato interessante foi a construção da Fordlândia, cidade construída por Henry Ford para exploração da borracha como matéria-prima para seus manufaturados que mobilizou uma massa enorme de imigrantes. Estes viraram uma massa abandonada e sem recursos após o rápido fracasso da empreitada. O testemunho do cauchero Clemente Silva, no livro La Vorágine, exemplifica bem a intenção do livro em denunciar os grandes seringais que escravizavam as pessoas locais. Á Margem da História de Euclides da Cunha também revela as condições de trabalho dos seringueiros em prol do ‘progresso’ do território.

100

investidores internacionais durante e pós-ditadura militar. Ambos Mario Vargas Llosa e Milton

Hatoum não prescindem nem do caráter histórico nem do mitológico para escrever sobre o espaço amazônico. O mito ainda carrega ideologias porém, diferentemente da narrativa da novela de la selva, ele está incorporado à estrutura textual. 53 Em La Casa Verde e El Hablador, Vargas

Llosa também consegue trabalhar o mito fundacional da nação. De fato, Stephen Henighan acredita na premissa de que o discurso amazônico de Vargas Llosa é uma construção identitária nacional para o Peru. Stephen Henighan afirma:

Where Cornejo Polar works to articulate an Andean heterogeneity persisting in spite of a putative modernity, Vargas Llosa is attempting to massage a succession of obstinate regional cultures into a coherent modern identity. His perception of existing Peruvian heterogeneity fuels La Casa Verde’s integrating imperative. (255)

Porém, diferentemente dos textos regionalistas, há uma profunda experimentação estética e, principalmente, em El Hablador, uma expansão das fronteiras nacionais. A fragmentação nacional é representada esteticamente na narrativa. De forma similar à teoria de Heninghan, mais especificamente analisando as técnicas narrativas de La Casa Verde, Castro-Klarén afirma que o romance é caracterizado por uma grande fragmentação narrativa. Primeiro, uma fragmentação de personagens; segundo, de tempo (pois se passa em 50 anos) e, finalmente, de espaço (desde a costa desértica do Peru até sua selva). Porém, esta fragmentação leva à uma unificação final.

Castro-Klarén teoriza: “The multiple fragmentation of time, space, focus, and point of view (to

53 No livro Amazônia: Mito e literatura, o manauara Marcos Frederico Krüger Aleixo percebe como o uso do mito não apaga o ideológico. O autor também estuda como os mitos amazônicos são representados nas obras literárias da literatura universal e nacional. O autor concentra suas análises a partir da obra Antes o mundo não existe de autoria de índios dessanas e faz correlações com literaturas contemporâneas como o Macunaíma de Mário de Andrade.

101

name only the most important elements) leads to alienation, for it saturates and, by doing so,

unifies the novel”(“Fragmentation and Alienation in La Casa Verde” 286).54

O espaço dentro deste sistema de fragmentação unifica a narrativa e pode ser visto como

uma metáfora para a constituição nacional fragmentária porém unificada. Portanto, através de

uma tentativa de unificar a nação, Vargas Llosa traduz a heterogeneidade(s) de culturas e

ideologias que compõem o Peru na estrutura fragmentária de La Casa Verde.

Em El Hablador, a(s) heterogeneidade(s) nacional(is) também está(ão) presente(s) na

estrutura narrativa da obra. Vargas Llosa divide a narração entre duas vozes que se interpõem e

dialogam. O primeiro narrador, identificado como o alter-ego do autor, representa o pensamento

ocidental e o segundo narrador, a princípio identificado como um indígena machiguenga,

representa o componente autóctone. Em clara referência ao mito fundacional da nação, a

estrutura binária da obra intercala referências ocidentais e a reelaboração de mitos indígenas da

tribo machiguenga.

Por sua vez, a tradução do mito nacional na estrutura narrativa desenvolve-se no Dois

Irmãos de Milton Hatoum através da construção dos personagens protagonistas, Yakub e Omar.

Os irmãos gêmeos Yakub e Omar, Rômulo e Remo tropicais, representam a dicotomia

ideológica nacional de centro e margem das regiões. O relacionamento conflitivo entre os irmãos

Omar, identificado como o Norte do país, e Yakub, identificado com o Sudeste articula o

54 Para Castro-Klarén o livro é uma cadeia de acontecimentos e assim o define: “(...) casual agglomeration of facts, or experiences vivencias) which by chance have come together to form a life” (“Fragmentation and Alienation in La Casa Verde” 290). Não acredito que a palavra ‘casual’ seja a mais apropriada para descrever a fragmentação do livro, porém é válida a idéia da fragmentação de espaço (pela utilização de diferentes lugares do Peru) e das relações pessoais (por vezes, sem aparente ligação) como uma tentativa de unir todos estes elementos. Uma das técnicas que ajuda nesta empreitada seria o que Castro-Klarén chama de “mirror-conversation-event”. Isto acontece, por exemplo, quando Aquilino e Fushía estão conversando e a narrativa é interrompida. Remete-se aí a um momento em que Aquilino pensa na primeira imagem de Fushía com lepra e depois volta ao diálogo sem transições. Castro-Klarén compara estas técnicas às técnicas post-joycianas e à narrativa cinematográfica. O teórico José Miguel Oviedo, no livro Mario Vargas Llosa: La invención de una realidad, tenta encontrar las reglas del caos da narrativa de La Casa Verde e percebe: “La regularidad estructural es casi maniática”(143). Ou seja, a estrutura funciona como um sistema sob uma ordem única.

102

conceito regionalista freyriano de pensar a região como articuladora da nacionalidade.55 Além

disso, Hatoum situa a obra num período de ditadura militar quando o governo explorava bastante

o conceito de região como dispositivo(s) de nacionalidade.56 A relação entre as regiões do país e

seus espaços sócio-históricos são explorados através do caráter simbólico das personagens no

microcosmo do seio familiar. Os fatos históricos, porém, são perfilados fragmentadamente sem

seguir uma ordem cronológica. A estrutura narrativa traduz esteticamente a nação através da

fragmentação da memória.

Sobre a relação entre memória e História, Foucault exigia: “Hay que separar la historia de

la imagen en la que durante mucho tiempo se complació y por medio de la cual encontraba su

justificación antropológica: la de una memoria milenaria y coletiva que se ayudaba con

documentos materiales para recordar la lozanía de recuerdos” (La Arqueología del Saber 10).57

Nas obras de Vargas Llosa e Milton Hatoum, a visão dúbia entre criação e fato, catalisadora do

mito, está representada no processo criativo pertinente a ambos autores: o da memória. À

memória milenar e coletiva da História oficial, Vargas Llosa e Hatoum oferecem suas

observações e experiências pessoais. 58

55 Como visto anteriormente, para Gilberto Freyre, o regionalismo atuou de maneira positiva e fundamental para a construção da ‘identidade nacional brasileira’. Para Freyre, o regionalismo contribuiu significativamente para a construção nacional e para afirmar a peculiaridade da colônia, pela sua capacidade de proporcionar uma quebra da imagem totalmente homogênea ou polarizada de uma nação (Novo Mundo nos Trópicos 174).

56 Durante o período de ditadura militar, o governo tomou medidas para valorizar o folclore das regiões consideradas à margem do centro econômico e criar uma imagem unificada do país. Pensar nesta articulação como um dispositivo de nacionalidade remete à teoria de Pierre Bourdieu sobre construção de valores simbólicos de poder coercitivo, neste caso, o valor nacional (Meditaciones Pascalinas 227-236).

57 Em La Arqueología del Saber, Michel Foucault propunha uma análise arqueológica dos discursos. Arqueologia, uma palavra mal afortunada pois remete a arque (origem), pretende procurar um enunciado e não a verdade. Um documento para Foucault não pode reconstituir todo um momento histórico. Desta forma, a narração memorialista pessoal assume o caráter restrito que um documento tem em relação ao relato histórico.

58 Em entrevista com Milton Hatoum, ele comenta sobre o caráter histórico da obra de Vargas Llosa e a relaciona com a sua:“[Vargas Llosa] é muito faulkneriano, tem uma percepção da realidade e do sentido histórico que é 103

Em Historia secreta de una novela, ao falar sobre o processo de escrita de La Casa

Verde, Vargas Llosa explica a essência de seu intento no romance: “escribir una sola novela que

aprovechara toda esa masa de recuerdos”(15). Vargas Llosa está se referindo às experiências

vividas em sua viagem à selva amazônica que foram reaproveitadas na escrita de seu romance.59

A narrativa de Milton Hatoum também resolver-se-ia, segundo Jerusa Pires Ferreira no

texto “Das águas da memória aos romances de Milton Hatoum – evocação e transferência de

culturas”, numa máquina memorial que contempla a narrativa com: a experiência pessoal de ser

imigrante, os aprendizados e a expressão da infância. Hatoum, que é descendente de libaneses,

cresceu em Manaus e desenhou a história do livro Dois Irmãos a partir de sua própria vivência.

Sua família faz parte de um grupo de milhares de árabes que migraram para a selva amazônica

há mais de 120 anos atrás, atraídos pelo boom da borracha e as promessas de oportunidades

econômicas.

Desta forma, percebe-se (que) o espaço tropical em Hatoum e Vargas Llosa funciona, não

somente como espaço local distinto, mas também como um agente de memória. Simon Schama

em Landscape and Memory reflete sobre a relação entre paisagem, mito e memória da seguinte

maneira: “For although we are accustomed to separate nature and human perception into two

realms, they are, in fact, indivisible. Before it can ever be a repose for the senses, landscape is

importante pra qualquer romance. [Tem] a compreensão da leitura da história com suas contradições. E isso ele domina muito. Isso é importante para o romancista... Eu tento, enfim, talvez dar forma mais memorialista, não sei se mais subjetiva, talvez mais pelo viés da memória. Isso está presente no Cinzas do Norte [que tem a] História como pano de fundo” (Personal Interview 27 May 2011).

59 Em Historia Secreta de Una Novela, Vargas Llosa define o processo de escrever como um “strip-tease” (3) onde o escritor revela os seus segredos mais íntimos. Este texto serve como um fichário de memórias que inspiraram os diversos episódios e personagens de La Casa Verde. O autor toma por origem do romance a sua primeira experiência em Piura, um dos principais espaços do livro, aos 6 anos de idade: “El origen de esta novela en mi vida ocurrió hace veintitrés años (yo ni lo sospechaba, desde luego), en 1945, cuando mi familia llegó a Piura por primera vez”(4).

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the work of the mind. Its scenery is built up as much from strata of memory as from layers of rock” (6-7).

A natureza tropical nos livros funciona como catalisadora do mito pela memória.

Especialmente nos livros El Hablador e Dois Irmãos, o viés memorialista predomina pela adoção de narradores em primeira pessoa. A narrativa em primeira pessoa parece uma tentativa de estabelecer em escrita a tradição do contador de histórias, que Walter Benjamin pensava estar chegando ao fim com a arte do romance. Benjamin afirma sobre este narrador: “The storyteller takes what he tells from experience – his own or that reported by others. And he in turn makes it the experience of those who are listening to his tale”(“The Storyteller” 79-80).

Em Dois Irmãos, o personagem narrador Nael, filho bastardo de um dos gêmeos, constrói seu relato a partir das histórias contadas por seu avô de descendência libanesa Halim; por sua mãe, a empregada indígena Domingas; e os diferentes relatos ouvidos na comunidade árabe- amazônica onde cresceu.60 Segundo Allison Leão, embora Domingas e Halim tenham posição de destaque, há outros subnarradores na narrativa que se desenvolve na negociação de escrita e arquivos de memória (30-34). Desta forma, o contador de histórias Nael estabelece sua narração com várias camadas de memórias num jogo entre recordação e o esquecimento. Vejamos o trecho em que o Nael relata seu processo de escrita:

Naquela época, tentei em vão, escrever outras linhas. Mas as palavras parecem esperar a morte e o esquecimento; permanecem soterradas, petrificadas, em estado latente, para depois, em lenta combustão, acenderem em nós o desejo de contar passagens que o tempo dissipou. E o tempo, que nos faz esquecer, também é cúmplice delas. Só o tempo transforma nossos sentimentos em palavras mais verdadeiras, disse Halim durante uma conversa, quando usou muito o lenço para

60 Para Juliane Wertel, o grande protagonista da história é Nael, um narrador culturalmente à margem mas com o poder da escrita e, por conseguinte, da (re)construção de sua realidade. Sobre o tema, Wertel faz um estudo interpretativo do narrador na obra Dois Irmãos chamado A Terceira margem (ou A Vingança de Nael):Aspectos do Narrador na Obra Dois irmãos, de Milton Hatoum.

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enxugar o suor do calor e da raiva ao ver a esposa enredada ao filho caçula.(Dois Irmãos 244)

Ou ainda, nesta passagem:

Eu tinha começado a reunir, pela primeira vez, os escritores de Antenor Lava, e a anotar minhas conversas com Halim. Passei parte da tarde com as palavras do poeta inédito e a voz do amante de Zana. Ia de um para o outro, e essa alternância — o jogo de lembranças e esquecimentos — me dava prazer. (Dois Irmãos 265)

O narrador, portanto, recorre à reunião de influências de leituras, relatos orais e lembranças

pessoais para escrever seu texto. Como o narrador do conto Memória de Shakespeare de Borges,

a memória de um se confunde com a de outros e as fronteiras de tempo e individualidades são,

por conseqüência, manchadas.61 As estruturas das cenas são organizadas dentro de um grande

entremeado de reminiscências e imaginação à guisa cinematográfica. Como recortes de

memórias, os flashbacks vão montando a história do narrador através de memórias alheias e de

sua reelaboração sobre estas. O próprio Nael confessa: “...mas a memória inventa, mesmo

quando quer ser fiel ao passado”(90).62

O narrador de El Hablador também constrói seu espaço baseado na memória e na

invenção e afirma: “La memoria es una pura trampa: corrige, sutilmente acomoda el pasado en

61Sobre a relação entre memória, esquecimento e imaginação, o próprio Milton Hatoum citou os versos de Borges no poema Un lector sobre a memória para refletir sobre o seu processo criativo: “el olvido es una de las formas de la memoria, su vago sótano”( Personal Interview 27 May 2011).

62 Segundo Perrone-Moisés, no texto “A cidade flutuante novo romance revela amadurecimento de Milton Hatoum”, em Dois Irmãos o processo de fabulação de veia aristotélica (no uso do ‘reconhecimento e da peripécia’) está presente na busca da resposta sobre a paternidade do narrador. A história está construída no ‘segredo e no anúncio’ de um triplo segredo: 1) a identidade do narrador; 2) a origem paterna; e 3) os anúncios de um desenlace. Para Perrone-Moisés, a fabulação aristotélica de reconhecimento e peripécia sobrevive até os anos 20 do século passado, morrendo no cinema porém persistindo em telenovelas. Interessante notar que tanto Hatoum como Vargas Llosa se utilizam de elementos melodramáticos, típico de telenovelas, em seus textos. Em La Casa Verde, a presença de Antónia (personagem que não podia falar, ver ou ouvir) foi designada pelo escritor como uma vertente melodramática e novelesca. A presença de uma surda-muda com toques melodramáticos também aparece no primeiro romance de Hatoum, Relato de Um Certo Oriente. A fabulação, porém, ocorre de maneira bastante diferente nos dois escritores: em Hatoum, a conto oral vem influenciado pela cultura árabe onde a intertextualidade com a narrativa das Mil e Uma Noites é inegável, principalmente, na leitura do Relato, onde Emilie funciona como a Sherazad no Amazonas. Em Vargas Llosa, a fragmentação narrativa cumpre a função de revelar e encobrir segredos. Dick Gerdes and Támara Holzapfel fizeram um estudo sobre o elemento melodramático na obra de Vargas Llosa, chamado “Melodrama and Reality in the Plays of Mario Vargas Llosa”, bastante iluminador para este tópico.

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función del presente” (El Hablador 93). Retomando a forma usada em La Tía Julia y el

Escribidor, El Hablador tem dois narradores: um que se identificaria com o próprio autor, que é

o narrador-romancista, e o outro é o narrador-machiguenga ou o “hablador”, figura responsável

pela transmissão de histórias orais da tribo amazônica dos machiguengas. As intervenções estão

meticulosamente separadas e se alternam ao longo do livro.

A narrativa do narrador-romancista está no primeiro, no último e nos capítulos pares (I,

II, IV, VI, VIII) e o “hablador” nos restantes (III, V, VII). Ao final do livro o autor assinala os

dois lugares de redação do livro: Florença, em 1985 e Londres, em 1987. É em Florença onde o

narrador-romancista inicia a redação depois de ir à uma exposição de fotos sobre os índios

machiguengas amazônicos. As fotos lhe trazem à lembrança os índios machiguengas, as

conversas com seu amigo de faculdade, Saúl Zuratas, judeu e defensor da preservação desta tribo

e da figura do hablador.

A memória é, portanto, articuladora da narrações e da construção do espaço narrativo

num entre-lugar perpassando por Lima, selva amazônica e Europa.63 Abaixo, está a confissão do

narrador-romancista sobre como as fotos em Florença o fizeram percorrer a selva amazônica

pelos caminhos da memória:

...Fueron tres o cuatro fotografías las que me devolvieron, de golpe, el sabor de la selva peruana. Los anchos ríos, los corpulentos árboles, las frágiles canoas, las endebles cabañas sobre pilotes y los almácigos de hombres y mujeres, semidesnudos y pintarrajeados, contemplándome fijamente desde sus cartulinas brillantes. (7)

Assim como o espaço, o narrador-romancista ao final do livro revela que o narrador-hablador

era o seu amigo etnólogo Saúl Zuratas, el mascarita. E como numa borgiana espiral fabular ad

63 A expressão “entre-lugar” é usada aqui com o significado teórico que Silviano Santiago dá ao termo. No livro The Space In-Between: Essays on Latin American Culture, Silviano Santiago se refere ao espaço cultural latino- americano como um “entre-lugar”, por amalgamar os diferentes elementos que o influenciaram.

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infinitum, o próprio Saúl Zuratas é uma personagem inventada pelo narrador-romancista desde

suas memórias. Sobre Saúl Zuratas, o narrador-romancista diz: “Tal vez siguiera siendo el

mismo Mascarita risueño y parlachín al que conocí y al que – puesto que he cedido a la maldita

tentación de escribir sobre él – debo inventar”(37). O narrador-romancista estabelece na relação

entre memória e invenção a construção da personagem Saúl Zuratas, ações e principais

características:

He tratado tantas veces de reconstruir aquella conversación de agosto de 1958 con mi amigo Saúl Zuratas...que ahora ya no estoy seguro de nada, salvo, quizás, de su gran lunar color vino vinagre...Pero mi memoria no puede haber fabricado totalmente la feroz catilinaria de Mascarita contra el Instituto Lingüístico de Verano, que me parece estar oyendo, veintisiete años después... (El Hablador 93)

Levando em conta a etimologia de “hablar”, do latim fabulari, o livro já anuncia seu intento no

título. Vargas Llosa já disse que seu verdadeiro interesse como escritor é “fabular, contar

historias, entretener y al mismo tiempo comunicar algo que viene de otras partes” (Setti 73).

Como se pode ver no manejo do foco narrativo em primeira pessoa do El Hablador, a fabulação

ocorre com reflexões metaliterárias e experimentações de caráter textual.

Em La Casa Verde, embora haja o chamado “diálogo telescópico” (Mario Vargas Llosa:

La Invención de una Realidad Oviedo 152) onde as vozes dos personagens são as responsáveis

pela narração, o texto se distingue pelo uso do diálogo convencional e pelas descrições objetivas

com um narrador em terceira pessoa.64 Ou seja, embora La Casa Verde seja anterior ao pós-

modernismo, o narrador em La Casa Verde tem mais semelhanças com o narrador pós-moderno

a que se refere Silviano Santiago, pois “Ele não narra enquanto atuante”(“O narrador pós-

64 Em Mario Vargas Llosa: La Invención de una Realidad, José Miguel Oviedo define as narrações telescópicas como “montaje de dos diálogos – uno presente, otro evocado y actualizado por el primero í que ocurren en dos momentos distintos del tiempo e del espacio (150). Para Oviedo, estas narrações ocorrem durante o diálogo dos personagens Fushía e Aquilino e também, como um “uso especial”, nas sequências que dentro dos quatro capítulos do livro Três, contam a história do duelo da roleta russa entre Lituma e Seminario (152).

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moderno” 39). 65 Entretanto, no Livro IV Vargas Llosa emprega o tú como técnica narrativa,

amplia e personaliza o narrador em diálogo direto com o leitor. Em seu livro Carta de Batalla

por Tyrant lo Blanc, Vargas Llosa descreve esta técnica denominada de “caja china”:

Entre el lector y la materia narrativa ha surgido un intermediario: el plano objetivo desaparece, se cruza un plano subjetivo a través del cual pasa la materia antes de llegar al lector. En ese tránsito, la materia se carga de elementos emocionales que no le son propios y pertenecen al intermediario (59)…La caja china es uno de los procedimientos más usuales de la novela moderna, en la que el intermediario, el testigo, es personaje esencial: él establece la ambigüedad y la complejidad de lo narrado, multiplica los puntos de vista, matiza, profundiza y eleva a una dimensión subjetiva los actos que refiere una ficción. (62)

No período de construção de La Casa Verde, Vargas Llosa acreditava que o romance deveria

estabelecer-se e expandir-se em múltiplas visões. O escritor afirma: “las grandes novelas no

mutilan la realidad, sino que lo ensanchan; no sólo son novedosas, sino que dan un testimonio

nuevo, son totalizadoras” (Standish La Ciudad y los Perros 16).66 Porém, o narrador pode vir a

elevar-se à uma dimensão subjetiva (usando a segunda pessoa) para filtrar estas visões e também,

mesmo em terceira pessoa, projetar a construção de mitos no texto. Vargas Llosa afirma: “Toda

la historia de la Casa Verde y de Anselmo – esa serie de episodios que conforman el nivel mítico

de la novela – están vistos a una cierta distancia y siempre a través de un intermediario, de una

conciencia colectiva, que filtra, diluye, mitificándolos, irrealizándolos” (Calderón Velasco,

Rolando Piura en la obra de Vargas Llosa de Calderón).

65 Falando sobre “narrador pós-moderno”, há que se fazer uma ressalva sobre o caráter do narrador também em Dois Irmãos. Segundo Allison Leão, o narrador de Dois Irmãos Nael teria características do narrador benjaminiano e o narrador pós-moderno de Santiago, já que Nael “narra o outro, o alheio”( “Memória e Arquivo na Narrativa Poética de Dois Irmãos” 33).

66 De acordo com José Miguel Oviedo em Mario Vargas Llosa: La Invención de una Realidad: “Teóricamente, toda la obra de Vargas Llosa ha sido publicada para detener, de un modo convencional, un proceso que no cesa. La ambición de la novela total deviene así en la nueva quimera de la novela infinita” (69).

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Embora La Casa Verde, El Hablador e Dois Irmãos se distingam no processo

memorialista da construção mítica, todos as obras têm em comum a primazia pela construção

verossímil do mito como elemento textual. Para Milton Hatoum “o mito em si não é narrativa

ficcional”, e é no processo narrativo onde “o mito perde a crença e vira literatura” (Personal

Interview 27 Maio 2011).67 O caráter mítico nas obras, portanto, é uma construção narrativa

primordialmente de caráter imaginativo. A reelaboração do mito nas obras do autor peruano e

brasileiro acontece por um processo de criação de personagens e do espaço tropical e também da

revisão de mitos compartilhados por uma memória coletiva.

Bachelard estabelece a correlação entre memória-imaginação e mito dentro do processo

criativo e afirma que: “(...) the further one goes toward the past, the more indissoluble the

psychological memory-imagination mixture appears...Memory-imagination makes us live non-

event situations...in our reverie which imagines while remembering, our past takes on substance

again”(The Poetics of Reverie 119). A contemplação do passado implica na imaginação deste

num contexto onde os mitologemas aparecem na reconstrução das memórias.

O crítico peruano José Miguel Oviedo afirma que, em La Casa Verde, episódios como a

construção e, posterior, destruição do prostíbulo por um incêndio, ou ainda a existência de

personagens enigmáticos como Anselmo e Antonia (de origem desconhecida) são emblemáticos

elementos do aspecto mítico no livro. Sobre o Anselmo, o narrador de La Casa Verde sinaliza

sobre a construção quase mítica do personagem pelos habitantes do local: “…nuevos mitos

surgieron en Piura sobre don Anselmo...En la fantasía popular, el pasado de don Anselmo se

67 O livro Órfãos do El Dorado de Milton Hatoum foi escrito por encomenda para a coleção Myths/Canongate. Enfatizando os mitos amazônicos, o autor fez questão de esclarecer sua intenção mais inventiva sobre estes mitos. Em nossa entrevista, ele explica sua negociação com a editora para a escrita deste livro: “...Quando esta editora escocesa me pediu [para escrever o livro], eu disse: ‘eu vou escrever uma história a partir de um mito, não descrever um mito’. O desafio foi transformar o mito em literatura realista porque ele em si não é uma narrativa ficcional” (27 May 2011).

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enriquecía...” (La Casa Verde 129) O autor já havia poeticamente sinalizado desde o início, a

título de advertência, o caráter mítico do espaço narrativo advertindo: “La noche piurana está

llena de historias” ( La Casa Verde 42).

Sobre o incêndio do prostíbulo é válido lembrar que embora tenha sido um

acontecimento na cidade, os seus habitantes só lembram da fumaça e do seu cheiro. Quando os

mangaches estavam tentando recordar o episódio do incêndio, Josefino fala: “ – Me acuerdo sólo

del olor a quemado...Y que se veía humo (La Casa Verde 281). O próprio Don Anselmo nega ter

havido um incêndio: “Cosas de los piuranos...Nunca les creas cuando te hablen de eso. Puros

inventos...No hubo ningún incendio, ninguna Casa Verde...Invenciones de la gente...Pura fábula”

(281-282). Este é um dos episódios que leva o crítico José Miguel Oviedo afirmar:

La perspectiva mítica es el resultado de un esfuerzo por apropiarse de una realidad múltiple sin sacrificarla en su paso a la literatura. Captarla de un modo intuitivo e irracional, tal como entró en la experiencia del autor. La Casa Verde no nos propone creer, nos propone dudar. (Mario Vargas Llosa: La Invención de una Realidad 134)

A dúvida se estende aos nomes, histórias e à própria credibilidade das fontes estabelecendo um

diálogo entre mito e construção literária. O processo de construção dos personagens Fushía

(originalmente Tushía) e Jum (indígena a quem Vargas Llosa conheceu em viagem à selva)

exemplifica bem a relação entre personagem mítico, memória e a sua reelaboração no romance.68

Em Historia Secreta de una Novela o autor fala sobre a constituição destas personagens e outros

elementos da obra. Varga Llosa diz:

La rojiza Misión de Santa María de Nieva, el castigo de Jum, la leyenda de Tushía son las tres imágenes en que cuajó para mí ese recorrido por la selva… (13)

68 Em El Hablador, estes dois personagens voltam a aparecer e o narrador explica como surgem. O narrador diz: “Y otra más: las habladurías y fantasías que nos persiguieron en todo el viaje en torno a un aventurero, pullo y señor que habitaba en una isla del río Pastaza con un harén de niñas robadas a lo largo y ancho de la Amazonía” (77). Sobre Jum, diz o narrador em El Hablador “...en Urakusa...nos esperaba un espectáculo que nunca olvidé: el de un hombre recientemente torturador. Se trataba del cacique del lugar, llamado Jum...” (72-73)

111

Bueno, así fue como en 1962… esos recuerdos de Piura — «la casa verde», la Mangachería — y de la selva — la Misión de Santa María de Nieva, Jum, Tushía — tornaron a mi memoria. (14)

A instauração de um espaço mítico simbolizado pela “casa verde” depende intrinsecamente de sua construção textual. Assim, o autor começa a descrição de sua arquitetura com o verbo no passado, para sugerir a arquitetura do prostíbulo erigindo-se a partir do texto: “Fue así como nació la Casa Verde” (119). A Casa Verde se construiu desde um desejo imaginativo e erótico dos piuranos: “Tanto deseaban mujer y diversión nocturna esos ingratos, que al fin el cielo <>, dice el padre García...acabó por darles gusto. Y así fue que apareció, bulliciosa y frívola, nocturna, la Casa Verde” (La Casa Verde 45).

A origem da Casa Verde é incerta e ninguém podia precisar sua localização: “...la originaria Casa Verde no existe...y ahora no hay piurano capaz de precisar en qué sector del arenal amarillento se irguió...” (La Casa Verde 122). O prostíbulo caracteriza-se por ser um espaço mítico suspenso na imaginação dos piuranos porém quase tangível. O narrador o define como “...un organismo vivo, [que] fue creciendo, madurando...El color elegido por don Anselmo acabó por imprimir al paisaje una nota refrescante, vegetal, casi líquida” (La Casa Verde 127).

Assim, a Casa Verde representa o espaço mítico da selva amazônica no espaço da obra com as insinuações sobre o caráter mitológico da realidade das personagens da obra. Em El

Hablador e em Dois Irmãos, os autores também vão lidar com símbolos e mitos já estabelecidos de maneira mais óbvia reestruturando os mitos judaicos-cristãos e, no caso de El Hablador, dos

índios machiguengas. Para Carl Jung, a mitologia baseia-se exatamente no movimento do material mitológico:

A particular kind of material determines the art of mythology, an immemorial and traditional body of material contained in tales about gods and god-like beings, heroic battles and journeys to the Underworld – “mythologems” is the best Greek

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word for them – tales already well known but not un-amenable to further reshaping. Mythology is the movement of this material: it is something solid and yet mobile, substantial and yet not static. (Essays on a science of mythology; the myth of the divine child and the mysteries of Eleusis 2) 69

A reelaboração do mito em El Hablador consiste na reelaboração tanto da mitologia indígena,

cristã, judaica como de referências literárias. Outro exemplo é o episódio do livro sobre a luta

cósmica de Tasurinchi, representante do bem, e Kientibakori, representante do mal (El Hablador

225) bem similar ao episódio dos gêmeos e senhores de Xibalbá do Popol Vuh (Gnutzmann, Rita

424).

El Hablador se desenvolve numa articulação entre a mitologia indígena (especificamente,

da tribo machiguenga) e a respectiva visão contemporânea do autor. O narrador-hablador

apresenta a mitologia machiguenga com várias assimilações dos mitos judaicos e cristãos. Nos

capítulos III, V e VII há uma exposição com um tom quase didático dos mitos cosmogônicos dos

machiguengas.

Similar ao mito do Éden, o mundo machiguenga é criado pelo sopro de um Deus, que

também se representa por uma Trindade: “Soy el soplido de Tasurinchi, soy el hijo de

Tasurinchi, soy Tasurinchi” (128). Outra similaridade à mitologia cristã é a luta maniqueísta

entre dois deuses: um do bem (Tasurinchi) e outro do mal (Kientibakori) no Gran Pongo, onde

“se juntan todos los ríos de este mundo y de los otros” (194) e se inicia e termina a vida.70

69 Jung dividia o inconsciente em duas partes: o pessoal e o coletivo. O pessoal se refere aquilo já foi experimentado mas já foi esquecido ou reprimido. O coletivo se refere à acumulação de estruturas psíquicas herdadas e arquétipos. Embora a teoria de Jung tenha feito uma digressão para um plano esotérico, ela tem valor pela análise de padrões comuns mitológicos e pelo conceito de movimento que Jung atribui à esta memória mítica.

70 Segundo a cosmogonia dos machiguengas apresentada em El Hablador, existem cinco mundos do universo (119) e por cada um flui um rio. De acordo com a descrição em El Hablador, os cinco mundos machiguengas tem por estrutura a terra como centro do cosmos e dois mundos acima dela e dois abaixo. O mundo superior é o Inkite onde vive Tasurinchi e corre o rio Meshiareni (via láctea onde percorrem os espíritos puros). O mundo das nuvens Menkoripatsa é onde mora o espírito de Morenanchiite e passa o rio Manaironchaari, rio das águas e algodão (117). Os mortos podem chegar ao Inkite através desse rio. Debaixo do Menkoripatsa está a terra, Kipatsa, que é habitada 113

De acordo com Peter Standish no texto “Vargas Llosa’s Parrot”, além dos temas

supracitados, os mitos cristãos e judaicos do livro estão assimilados também no paralelismo entre

a história do personagem Saúl Zuratas e a do personagem bíblico Saul de Tarsus. Saul de Tarsus,

através da aparição do espírito divino, veio a ser conhecido como apóstolo Paulo. Tanto Paulo,

Saul de Tarsus, como Saúl Zuratas, o hablador, tem como sina exercer o papel de

‘pregador/profeta’ de um povo. Vale também lembrar que o apóstolo Paulo ficou conhecido

também por sua tolerância religiosa e por tentar reconciliar as doutrinas judaicas e cristãs. 71

Zuratas, nascido de uma marca vermelha no rosto direito, é um judeu citadino marcado para

tornar-se um hablador e conciliar a sua origem judaica com a identidade machiguenga.

Contudo, este diálogo não obedece às suas fontes judaico-cristãs ou machiguengas. De

maneira bem borgiana, Vargas Llosa brinca com suas referências e as manipula de acordo com

sua função de ‘romancista-hablador’. 72 O próprio Saúl Zuratas ainda que completamente

fascinado pela cosmogonia machiguenga não consegue se desfazer de leituras e influências

pelos Machiguengas. Embaixo dela existia a região dos mortos, onde corre o rio Kamabiría, que conecta a terra ao inferno (39). E, finalmente, o mundo inferior ao da terra é o Gamaironi onde vive Kientibakori e se assemelha ao inferno cristão. O rio não tem nome específico e é denominado, por vezes, como rio de águas negras (103). 71 A aparição do espírito divino para Saul de Tarsus (Zuratas é um anagrama deste sobrenome) parece ser paralela à aparição para Zuratas dos ‘papagaios-habladores’, seus guardiões em El Hablador. É neste momento que Zuratas descobre que ter escolhido um papagaio de estimação, a quem apelidou de Gregor em alusão à Metamorfose de Kafka, mostra a sua predestinação a transformar-se em um hablador. Também, à esta tolerância, alguns atribuem sua morte, o que se relacionaria à morte de Zuratas com a do apóstolo Paulo.

72 Rita Gnutzmann analisa, no texto “Mitología y Realidad socio-histórica en El Hablador de Vargas Llosa”, o processo de estruturação lógica feito por Vargas Llosa na incorporação das fontes indígenas em El Hablador. A autora usa como exemplo o episódio sobre o castigo do indígenas machiguengas por caçarem veados, onde o narrador de El Hablador recriou os relatos de suas fontes transformando-os em diálogos e cenas. Outro fato emblemático da falta de compromisso com a fidelidade às fontes míticas é o uso dos estudos do pesquisador dos machiguenga Padre Joaquín Barriales. O narrador agradece ao Padre Barriales, na parte de Reconocimiento ao final do seu livro, pela sua contribuição. Porém, a gratidão não o impede de transformar os quatro mundos dos machiguengas da descrição de Barriales, em cinco, adicionando seus próprios detalhes às histórias de sua fonte.

114

ocidentais, nomeando seu próprio papagaio (também símbolo de hablador) de ‘Gregor Samsa’

inspirado pela obra Metamorfose de Kafka.73 Segundo Eduardo González:

Saúl’s mission among the Machiguengas opens the way for an exchange of iconographic and mythic motifs between savage beliefs and Judeo-Christian religious lore... Saúl’s appropriation of Kafka’s Metamorphosis turns the story into scripture, but only in the sense in which scripture may be performed as if made up of clusters of stories otherwise known as myths. This implies a reversal of orthodox hierarchies between religious and literary stories. (The Monstered Self 80-81)

Em outras palavras, o caráter fabular e intertextual é prioridade na narrativa e o dogma mais

respeitado é o da “invenção literária” pregado por Borges. Em Dois Irmãos, a reelaboração do

mito permite a intertextualidade com Machado de Assis e com a história bíblica no que diz

respeito, não somente ao complexo de Édipo como também às suas implicações ideológicas à

respeito da região.

Milton Hatoum foi considerado pelo crítico brasileiro como um dos

representantes do ressurgimento do mito na literatura contemporânea brasileira. 74 Segundo

Benedito Nunes, o mito em Dois irmãos caracteriza-se por uma corrente memorialista, mas que

tem por diferenciador a tríplice progênie etnográfica, bíblica e literária de sua moldagem mítica

(216). Esta progênie remontaria, ao mesmo tempo, a uma das mais primitivas representações

grupais de Esaú e Jacó e ao romance machadiano de título homônimo.

73 A função primariamente simbólica do papagaio na narrativa se estabelece não só sua representatividade de animal hablador como também de prenunciador do destino de seu dono. Gregor Samsa desde o começo da narrativa só podia reproduzir o nome “mascarita”, símbolo da deformidade de seu dono, e da posterior predestinação deste a ser um hablador. Além disso, Peter Standish acredita na intertextualidade entre o romance Flaubert’s Parrot de Julian Barnes com a função do papagaio hablador de Vargas Llosa.

74 Benedito Nunes, um dos grandes críticos da literatura brasileira, afirma que na literatura brasileira houve surtos de mitos. O primeiro se deu com José de Alencar e, depois, com Machado de Assis. O segundo, com Guimarães Rosa e . E entre estes dois surtos houve a matéria do mito indígena trazida por Mário de Andrade. De acordo com Benedito Nunes, na literatura contemporânea, o surto do mito encontra-se representado pelos livros: A Pedra do Reino de ; Lavoura Arcaica de Raduan Nassar; e Dois Irmãos, de Hatoum. 115

Na história bíblica, o irmão mais jovem, Jacó, era o preferido da mãe Rebecca. Esaú, o

mais velho, era o preferido do pai Isaac. Quando ainda estavam no seu ventre, Rebecca ouviu as

seguintes palavras do Senhor: "Duas nações há no teu ventre, e dois povos se dividirão das tuas

entranhas, e um povo será mais forte do que o outro povo, e o maior servirá ao menor" (Bíblia

Sagrada, Gênesis. 25.23). Através de artimanhas da mãe, Jacó conseguiu receber as bênçãos de

seu pai Isaac, que seriam por direito do primogênito Esaú, e ficou sendo o herdeiro da tradição

hebraica. Esaú, por sua vez, deu início à tradição árabe. Na reelaboração do mito bíblico em Dois

Irmãos, Yakub (clara referência a Jacó), o mais velho e preterido pela mãe, representa o mundo

capitalista dominador que desde o centro econômico controla e destrói a região.75

A releitura bíblica de Dois Irmãos relativiza os conceitos de valores de “povo maior” e

“menor” tanto com relação ao reino árabe da leitura bíblica, como na relação regional entre

Norte (Amazônia, margem econômica) e Sudeste (São Paulo, centro econômico). O tema da

divisão nacional estabelece uma ligação direta com o Esaú e Jacó de Machado de Assis, onde os

gêmeos Pedro e Paulo representam um país dividido entre republicanos e monarquistas.76 Em

75 Yakub mudou-se para São Paulo e, ao final, foi o responsável pela venda da casa da família para investidores. Dois Irmãos mostra como a região, à margem das decisões políticas e econômicas do país, sofre com a transformação econômica da Amazônia e a abertura de mercado para estrangeiros.

76 Em relação à obra de Machado de Assis, os gêmeos Pedro e Paulo se apaixonam pela mesma mulher e grande parte da persistência na desavença entre os dois, vem do episódio em que a mãe deles os leva a um passeio de reconciliação depois de uma briga. Pedro e Paulo começam a perceber o amor da mãe relacionado à disputa fraternal. Também Omar, que vive um complexo de Édipo com a mãe, e Yakub se relacionam com a mesma mulher acarretando num confronto que deixou cicatrizes físicas e emocionais. Yakub, com uma cicatriz no rosto feita pelo irmão, teve que passar um tempo no Oriente Médio. Este conflito marca para Yakub o princípio de seu processo de afastamento emocional da família. Maria da Luz Pinheiro de Cristo, em Arquitetura da Memória, chama a atenção para a inserção do texto de Machado no livro Dois Irmãos através da caracterização de Rânia pelo narrador Nael: “Gostava dela, era atraído pelo contraste de uma mulher assim, tão humana e tão fora do mundo, tão etérea e tão ambiciosa ao mesmo tempo” (Dois Irmãos 262). Maria da Luz Pinheiro de Cristo compara com esta caracterização de Flora no texto Esaú e Jacó :“[...] acho-lhe um sabor particular naquele contraste de uma pessoa assim, tão humana e tão fora do mundo, tão etérea e tão ambiciosa, ao mesmo tempo, de uma ambição recôndita…[...]” (136)

116

Dois Irmãos, a nação é concebida em regiões com a idéia de centro e margem econômicos.

Yakub, representando São Paulo, e Omar, representando o Amazonas.

O narrador Nael sempre faz referência a Yakub como o distante, aquele que virou um

outro em São Paulo: “Um outro Yakub, usando a máscara do que havia de mais moderno no

outro lado do Brasil” (Dois Irmãos 61). Na aliança com a região Sudeste: “Yaqub e o país inteiro

pareciam ter um futuro promissor” (Dois Irmãos 41). Por sua vez, Omar representa o estereótipo

do primitivo ligado à floresta. Como o herói sem nenhum caráter Macunaíma, a ‘preguiça’ e

vocação para a vida boêmia de Omar não se consertaram com a viagem ao centro da

modernidade do país: “Nem São Paulo corrigiu o Omar! Aliás nenhum santo nem cidade vai dar

jeito nele” (Dois Irmãos 122).

O antagonismo entre as regiões também se reflete na própria cidade de Manaus. Ana

Amélia Guerra observa que, em Dois Irmãos, Manaus abarca tanto o moderno da terra firme e o

primitivo/ mítico das águas. Há uma continuidade entre Manaus, cidade moderna, e Manaus,

cidade mítica e flutuante. As águas que permeiam Manaus deixam fluir num mesmo espaço as

contradições de cidade pólo comercial e cidade encravada floresta. 77

No artigo “Morrer em Manaus: os avatares da memória em Milton Hatoum”, Francisco

Foot Hardman também faz um correlação entre Milton Hatoum e a poética das águas de Gastón

Bachelard. Bachelard afirma que certas imagens arquetípicas- conectadas aos quatros elementos

da natureza: fogo, ar, terra e água- tem uma forte influência nas pessoas. Ao analisar as imagens

arquetípicas na literatura que usa o elemento da água, o autor francês afirma: “a imaginação

77 Manaus é o maior pólo financeiro da região Norte do país, fato que se deve em grande parte à implantação da Zona Franca de Manaus na década de 1960. Conhecida como a “capital ambiental do Brasil”, Manaus é rodeada por rios e a flora e fauna da floresta está presente principalmente nas áreas rurais do município. Manaus, também conhecida como “a cidade flutuante”, localiza-se na confluência do Rio Negro e Solimões. No imaginário brasileiro, a cidade têm ambos status de metrópoles e portal de acesso à floresta. Hatoum intitulou o seu livro de contos de A cidade ilhada com referência a Manaus e sua relação com os rios e a natureza da floresta Amazônica.

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material da água é um tipo particular de imaginação...a água é também um tipo de destino…o

vão destino essencial que metamorfoseia incessantemente a substância do ser” ( A Água e os

Sonhos:Ensaio sobre a Imaginação da Matéria 6).

Considerando esta reflexão, pode-se dizer que o espaço poético da obra de Hatoum se

constrói sobre a antítese da relação entre seres (os opostos gêmeos míticos) e da cidade (Manaus

como cidade e floresta).78 Filtrada pela memória de Nael, a cidade de Manaus flutua na base

líquida entre memórias do oriente árabe de Halim, da floresta da indígena Domingas e as suas

(re)-invenções em escrita. David Jackson define a Manaus de Hatoum através dessa memória

líquida dizendo: “Hatoum’s Manaus is seined through memory and loss…” Para Bridget Arce, a

floresta em Dois Irmãos, por ser uma catalisadora da memória das águas, torna-se um estímulo

necessário ao devaneio e à construção de mitos.

Tanto Mario Vargas Llosa como Milton Hatoum constroem a geografia poética da

Amazônia articulando memória e mito dentro da estrutura narrativa. Os autores incitam reflexões

sobre ideologias do espaço regional e nacional e conseguem, através do tratamento estético do

uso do mito, transplantar a região Amazônica à um patamar universal. Nas obras de Milton

Hatoum e Mario Vargas Llosa, a representação mítica da região, tão comum desde os escritos

coloniais, compromete-se com a verossimilhança e a elaboração estética.

Em La Casa Verde, a memória do autor e das personagens reconstroem o mito da casa

verde nos fragmentos de episódios em tempo e espaço. Em El Hablador e Dois Irmãos, agrega-

se à estrutura narrativa a memória de um unreliable narrator (Booth 158). Este narrador não

78 Bachelard diz que: “We remember while dreaming. Our memory brings back to a simple river which reflects a sky learning upon hills”(The Poetics of Reverie 102). Em seu álbum poético fotográfico, publicado em 1979, quando ainda estava na faculdade de arquitetura, Hatoum já mostra o rio como um dos seus principais leit-motifs, intitulando seu álbum de Amazonas, palavras e imagens de um rio entre ruínas. Além disso, Hatoum tem um livro não publicado chamado O Rio entre Dois Mundos. Na literatura do Boom, o binômio água-memória faz-se também presente como um elemento natural ligado à imaginação. Como exemplo disto, pode-se citar as enchentes que sofrem a cidade de Macondo no livro Cem anos de solidão do colombiano Gabriel García Márquez.

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confiável manipula as memórias pessoais e alheias, impondo à imaginação reflexões metaliterárias. O espaço mítico das obras são invenções literárias de uma geografia construída por lembranças. Similar à “fantasiação” (Grande Sertão Veredas 25) de Guimarães Rosa sobre o sertão mineiro, Vargas Llosa e Hatoum fazem do espaço amazônico um lugar geográfico, mítico e metafísico.

Ao mesmo tempo, estes autores mostram como à memória e à sua mitificação não pode ser atribuída qualquer conotação socialmente alienada. A literatura produzida pelos autores peruano e brasileiro é consciente do papel da memória e sua (re)construção para as idéias sobre história e nação/região. O espaço lembrado é um espaço construído a partir de uma memória que reavalia a história desde o espaço Amazônico. Os autores lidam com a memória dentro de um contexto social mais amplo onde a intersubjectividade de sua natureza reflete: o passado, o presente (através do mito) e suscita especulações sobre o futuro.

Reelaborar o discurso mítico do espaço Amazônico significa para ambos autores, primordialmente, uma invenção literária que requer a experimentação estética, porém ainda assim pode ser socialmente relevante. Portanto, embora continuem trabalhando com o teor mítico sempre presente dentro da literatura regionalista amazônica, Milton Hatoum e Mario Vargas

Llosa conseguem reconstruir literariamente a manipulação dos mitos da região. Parte da reelaboração do topi usados nos romances regionalistas com seus mitos deve abarcar o caracterização do personagem local dentro deste nova estrutura literária. Por isso, a próxima seção tratará da reavaliação e a desconstrução/ reconstrução dos personagens regionalistas nos romances de Milton Hatoum e Mario Vargas Llosa.

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B. O personagem regional: reflexos multicoloridos do hibridismo amazônico

O personagem regionalista encontrava-se, por vezes, amarrado em modelos e estereótipos repetidos dentro de uma linguagem formulaica e simples. Mario Vargas Llosa e Milton Hatoum vão no sentido contrário destas obras, a linguagem não serve como fórmula mas sim como instrumento para tecer as teias da caracterização das personagens. A complexidade na caracterização é também ratificada pela tradução de um novo panorama social contemporâneo pluralizante. La Casa Verde, El Hablador e Dois Irmãos vão esboçar em seus escritos a produção de novas identidades amazônicas, conseqüência de um novo panorama social.

Nas obras La Casa Verde, El Hablador e Dois Irmãos, há uma grande diversidade de personagens no que diz respeito a suas origens. Os personagens nesta nova literatura de cunho regional é um produto de confluências de diferentes culturas, como figuras de um caleidoscópio inventado pela ilusão do olhar do narrador. O regionalismo já havia estabelecido o personagem regional como um exímio conhecedor da natureza de sua região e representante de sua nação.

Mario Vargas Llosa e Milton Hatoum também usam o personagem típico regional, conhecedor da sua geografia. Porém, nestas obras de Mario Vargas Llosa e Milton Hatoum, há uma incorporação de tipos inusitados no espaço amazônico. Judeus, árabes, selváticos, personagens míticos formam um conjunto de identidades complexas e cambiantes. Mario Vargas Llosa e

Milton Hatoum trabalham com o uso de personagens bastante distintas, suscitando discussões sobre a reelaboração dos estereótipos e do exotismo no espaço literário amazônico.

No diálogo com as obras regionalistas, Mario Vargas Llosa e Milton Hatoum recuperam o caráter ambivalente do personagem regional. Tradicionalmente, nas obras regionalistas o personagem regional era concebido como uma figura antitética. Se por um lado, este era

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caracterizado como um bárbaro isolado dos centros econômicos nacionais, por outro lado era considerado como representante da ‘essência/originalidade’ da nação. Euclides da Cunha, talvez, tenha sido o que melhor traduziu a ambigüidade do sertanejo com a expressão “Hércules quasímodo” (Os Sertões 118).79

Esta herança euclidiana da ambígua representação da personagem regional está presente tanto nas obras de Vargas Llosa como nas de Hatoum. 80 Na releitura do regionalismo, a intertextualidade entre Vargas Llosa e Hatoum expõe o personagem regional com suas particularidades e de maneira antitética, como um herói bárbaro superando a difícil tarefa de sobreviver à região. Os personagens Adamor de Dois Irmãos, Adrián Nieves de La Casa Verde e o povo Machiguenga em El Hablador ilustram bem esta temática.

Em La Casa Verde, algumas frases do narrador sobre o práctico Adrián Nieves parece um eco do ‘sertanejo forte’ de Os Sertões. Durante a viagem de resgate às índias que fugiram do convento, a voz do narrador interrompe a descrição e, em referência a Nieves, afirma: “Estos selváticos no eran normales, ¿por qué no sudaban como los demás cristianos?” (La Casa Verde

79 Angél Rama observou como, inicialmente, o escritor brasileiro tinha a mesma premissa de civilização do ser regional bárbaro de Sarmiento. Porém, Cunha “comenzó a dudar de esas premisas civilizadoras cuando presenció la carnicería de la guerra en el sertón de Canudos” (Rama La ciudad letrada 27). A partir dessas experiências, Cunha vê o sertanejo como, sobretudo, um forte.

80 No texto “Mario Vargas Llosa, Euclides da Cunha, and the Strategy of Intertextuality”, Renata R. Mautner Wasserman sublinha a importância da intertextualidade de Vargas Llosa e Euclides da Cunha por unir dois mundos isolados literariamente, o brasileiro e o hispânico, e, desta forma, estabelecer as ligações literárias entre dois mundos. Além disso, ressalta como a reelaboração passa por técnicas literárias pós-modernas: “…Vargas Llosa's act produces a text immediately recognizable as characteristic of twentieth-century high culture, in being both creation and pastiche ("La guerra" 619), and by implication also assigns to Os sertões the high-culture value Joyce's and Picasso's borrowings automatically assigned to Homer and Velazquez”(461). Hatoum também se ocupou do texto euclidiano e sua incompleta tese de doutorado seria um estudo comparativo entre Joseph Conrad e Euclides da Cunha. Em entrevista ao jornal O Globo, Hatoum fala como Euclides escreveu de forma diferente sobre a Amazônia de como havia escrito sobre Canudos. Euclides viveu na Amazônia por mais de um ano e começou a prestar atenção aos problemas sociais e de migração. Hatoum percebe que, no entanto, a ambigüidade na maneira como Euclides falou da floresta ainda é antitética: “Ele é muito contraditório quando fala da natureza amazônica. É um movimento pendular. Ora ele é deslumbrado pela natureza...ora ela é uma natureza degradante...uma espécie de inferno”.

121

13) Posteriormente, Adrián Nieves, que “sabría llevar una lancha a cualquier parte y en cualquier

época” (La Casa Verde 132), usa seus conhecimentos para fugir do exército. Na fuga, Nieves consegue sobreviver à selva e deixar para trás os seus perseguidores. Em El Hablador, a resistência ao poder colonizador é representada pela sobrevivência de uma coletividade. O povo machiguenga em El Hablador também consegue sobreviver ao poder colonial através da intimidade com a floresta. Ao nomadismo do povo machiguenga e à ignorância sobre a floresta do colonizador é creditada a sobrevivência desta tribo.

O conhecimento minucioso da região e da cultura local são atributos do personagem regional também em Dois Irmãos. Similar ao rastreador de Sarmiento, Hatoum escreve sobre o

‘mateiro’ Adamor, como “o rastreador da cidade”(175).81 Contratado por Zana para encontrar seu filho Omar, Adamor: “Em pouco tempo, fez o que Halim e Tannus não conseguiram fazer em meses”(Dois Irmãos 167). O espaço regional não se revelava para os árabes Halim e Tannus, como se revelava para Adamor. O rastreador tinha uma relação instintiva com o local, retratada quase de forma animalesca: “O Adamor, um senhor farejador. Zana ofereceu a ele um monte de fotos do nosso filho, mas ele não quis. Folheou o álbum, disse que o rosto do Omar já estava na cabeça dele” (Dois Irmãos 167).

81 Em Facundo, Sarmiento divide os personagens regionais em baqueanos, rastreadores, gaúcho malo e cantor. Embora Sarmiento tenha uma visão dicotômica entre barbárie (margem) e civilização (cidade), o autor argentino também explorou caracteres regionais de forma positiva. Este ponto, muitas vezes, é ignorado pela crítica porém é na descrição positiva destas figuras regionais onde se encontra a ambivalência do pensamento de civilização e barbárie do escritor argentino. A visão de Sarmiento e a de Vargas Llosa estão em maior congruência pois os dois oscilam entre atração e repulsa pelo mundo barbárico nos lugares remotos de seus países. Em Historia Secreta de una Novela, Vargas Llosa diz: “De un lado, toda esa barbarie me enfurecía: hacía patente el atraso, la injusticia y la incultura de mi país. De otro, me fascinaba: qué formidable material para contar. Por ese tiempo empecé a descubrir esta áspera verdad: la materia prima de la literatura no es la felicidad sino la infelicidad humana, y los escritores, como los buitres, se alimentan preferentemente de carroña”(13).

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Assim como Adrián Nieves, Adamor também é um sobrevivente da floresta e também

estabelece com a natureza a cumplicidade da resistência à exploração capitalista – tema corrente

nos romances do ciclo da borracha. Ao fazer uma descrição da história de Adamor, ‘Perna-de-

Sapo’, o narrador interrelaciona a descrição do mateiro com as idéias sobre a exploração do

personagem regional:

Mateiro na época da Guerra, quando navios e aviões norte-americanos navegavam por águas e céus do Amazonas. Tempo de poderosos cargueiros e hidroaviões. Traziam tudo, levavam borracha para a América. Então, num dia de 1943, um Catalina desviou-se da rota do Purus. Desapareceu…Em setembro, antes do dia da independência, o mateiro, o farejador Adamor apareceu em Lábrea carregando um corpo…Tenente-aviador A. P. Binford, um molambo de homem, nu, com estrias no corpo todo…um curupira. O militar parecia assombração da floresta…Adamor por pouco não perdeu a perna esquerda. Infeccionada, depois paralisada. Em Manaus, ele teve sua noite de herói: a medalhinha de bons serviços prestados ao aliados…[Adamor]Não podia mais ser abridor de varadouros e picadas. Nunca mais um caminhante, livre para buscar atalhos na floresta…A glória maior: salvar um verdadeiro herói! De longe, via-se o brilho da medalhinha presa na camisa esfarrapada…Sobreviveu. Mais um sobrevivente. Adamor: o Perna-de-sapo. Nenhum passado é anônimo. O apelido, o nome, o mateiro. (Dois Irmãos 166-167)

Simbolicamente, a salvação do tenente-aviador americano, referido ironicamente como

‘verdadeiro herói’, inflige a paralização da perna do rastreador. É na simbólica aliança com o

estrangeiro que Adamor é penalizado. O acidente e o ato heróico do mateiro têm, por

conseqüência, a aniquilação de sua própria identidade passando a ser identificado pela sua nova

alcunha de “Perna-de-sapo” (em referência à sua perna paralisada). O Perna-de-sapo deixou de

ser um sábio popular, mateiro, virou peixeiro (período em que é contratado por Zana para buscar

Omar) e, ao final, coveiro (245).82 É importante observar que Adamor se define na sua relação

com o outro, tanto num plano subjetivo, como num plano nacional.

82 Se por um lado a transformação do mateiro em coveiro sinaliza a degradação do sujeito regional, por outro, através de uma intertextualidade shakespeariana, não aniquila o reconhecimento da sabedoria popular. Os dois coveiros aparecem no Hamlet de Shakespeare brevemente na primeira cena do ato V. A sabedoria dos coveiros 123

De uma certa forma, Adamor de Dois Irmãos, Adrián Nieves e os selváticos

sobreviventes na Casa Verde e El Hablador estabelecem um elo com as obras da novela de la

selva e do romance amazônico. A novela de la selva e o “romance amazônico” tratavam das

subjetividades regionais dentro da dicotomia do herói bárbaro regional como subjetividade

originária da nação. Portanto, a descoberta e integração do marginal autóctone (‘puro’

representante das tradições nacionais) era imprescindível na tarefa de construção regional e,

conseqüentemente, de um país.

Porém, o processo de constituição da personagem, paralelo ao da construção da região,

implica um essencialismo. Assim, o personagem regional foi homogeneizado para representar

um personagem nacional plural. Os personagens plenos regionais eram o resultado de um

processo de homogeneização onde índios, criollos, exploradores, etc. apareciam como arquétipos

regionais com função de representatividade nacional. O teor nacionalista da literatura amazônica

da época da borracha fez com que o elemento humano em sua complexidade psicológica se

tornasse simulacro de identidades plenas nacionais ou, na terminologia de Candice Slater,

“sombras icônicas”( In Search of the Rain Forest 8).83

Os escritores Milton Hatoum e Mario Vargas Llosa recuperam as personagens típicas do

regionalismo mas expandem o repertório de personagens regionais. A homogeneização na

construção da região e de seus personagens é reavaliada por Milton Hatoum e Mario Vargas

Llosa através da caracterização heterogênea do personagem regional num jogo de alteridades

híbridas e na conseqüente negação do mito das identidades originárias. Nas obras de ambos

contrasta com a ignorância do príncipe Hamlet sobre fatos correntes (como a morte de Ofélia) e sobre questões históricas e metafísicas. O coveiro, assim como os narradores, é o responsável por resgatar a memória coletiva e o passado nas obras.

83 Candice Slater acredita que a representação da selva amazônica obedece à dinâmica de floresta como “espetáculos” (como se representa a floresta) e “ícones” (signos de identidade da floresta). Esta dinâmica implica o conceito de iconic shadows (sombras icônicas), aquilo que se esconde e passa despercebido nestas representações ‘espetaculares’.

124

autores, o uso de alteridades inusitadas no espaço amazônico já sinaliza o processo de mudança

no tratamento das personagens.84 Dentre as mais representativas para as narrativas, encontram-se

a alteridade árabe, a nipônico-brasileira e a judia.

Em Dois Irmãos, a alteridade árabe desequilibra a perfeita tríade de representação

cultural construída por Gilberto Freyre, até hoje tão preeminente na concepção de formação

cultural brasileira.85 Em La Casa Verde, o nipônico-brasileiro Fushía também aparece como um

elemento inusitado na narrativa. E em El Hablador, a narrativa exibe a presença de judeus na

cidade do Peru e lingüístas norte-americanos na selva.

A inclusão de diferentes alteridades por si só não dão relevância ou diferenciam estes

autores dos regionalistas amazônicos. É no jogo narrativo que as diferenças culturais vão negar

subjetividades essenciais e vão redefinir o conceito de culturas nacionais homogêneas e de

grupos étnicos orgânicos. Segundo o jamaicano Stuart Hall, o processo de incorporação de

elementos de uma nova cultura – não somente dentro da subjetividade individual, mas também

dentro da identidade nacional – é inevitável em obras pós-modernas. Hall afirma que: “Modern

nations are all cultural hybrids” (The Question of Cultural Identity 617).

Nas obras Dois Irmãos e El Hablador, a construção narrativa de personagens híbridas já

começa pelo ponto de vista narrativo. Os narradores híbridos articulam suas narrativas na

frustração da busca de origem nacional pelo fracasso em definir suas próprias identidades. Em

84 Aqui, a idéia de alteridade está relacionada à maneira como é usada atualmente. De acordo com Olga Sodré: “o sentido da palavra alteridade… [e] sua atual relevância tomou forma no contexto da mundialização e dos novos modos de intercâmbio e convivência entre diferentes culturas, religiões e etnias. Este amplo processo foi acompanhado de mudanças no enfoque da racionalidade e da relação ao outro, e se realizou em estreita relação com a passagem para o paradigma hermenêutico”(“Percurso filosófico para a concepção de alteridade”159).

85 Em Casa Grande e Senzala, Gilberto Freyre analisa como as culturas africana, portuguesa e indígena influenciaram na constituição cultural do Brasil. Embora seja um livro polêmico, Casa Grande e Senzala logra por ser pioneiro em incluir influências outras na formação cultural do país, principalmente a africana.

125

Dois Irmãos, o narrador Nael, filho da indígena Domingas e de um dos irmãos gêmeos árabes,

constrói a narrativa na busca de sua origem paterna. O narrador reflete:

Eu não sabia nada de mim, como vim ao mundo de onde tinha vindo. A origem: as origens. Meu passado, de alguma forma palpitando na vida dos meus antepassados nada disso eu sabia. Minha infância, sem nenhum sinal da origem. É como esquecer uma criança dentro de um barco num rio deserto, até que uma das margens a acolhe. Anos depois, desconfiei: um dos gêmeos era meu pai. Domingas disfarçava quando eu tocava no assunto; deixava-me cheio de dúvida, talvez pensando que um dia eu pudesse descobrir a verdade.(73)

Nael nunca descobriu a “verdade”, pois ninguém a sabia. Nem sua mãe Domingas, indígena

empregada na casa da família libanesa, pôde afirmar-lhe quem dos dois irmãos, Yakub ou Omar,

era seu pai. Tomando em conta que os gêmeos, Yaqub (o irmão cosmopolita) e Omar (o irmão

ligado à região), funcionam como feixes de ‘identidades’ brasileiras contraditórias, a identidade

nacional também vira um mistério narrativo.86

Bem similar a Dois Irmãos, El Hablador também apresenta um narrador híbrido. Saúl

Zuratas, filho de uma criolla de Talara e um judeu, transforma-se na voz indígena da figura do

narrador-hablador. Zuratas, fazendo jus a seu apelido de “mascarita”, veste a máscara de

hablador para contar as histórias e mitos do povo machiguenga. Porém, só no final da narrativa

Zuratas é considerado como possível narrador-hablador. Portanto, a narração se estabelece na

construção de uma identidade autóctone para ao fim vê-la dissolver-se na identidade do híbrido

mascarita.

A visão de um personagem regional híbrido e não homogêneo acentua a perspectiva de

nação fragmentada onde as diferenças culturais fomentam a violência, desigualdade de poder e

86 No texto “Milton Hatoum e a representação do exótico”, Estela Vieira afirma que Omar e Yaqub representam nas suas formas contraditórias os problemas de definição da identidade brasileira. Yaqub, engenheiro, moderno, viaja para São Paulo e tem uma postura modernizante. Omar, por sua vez, vincula-se à idéia da cor local, bem representada na sua única relação amorosa comprometida com Pau-mulato, personagem nomeado estereotipicamente como uma matéria-prima local. Hatoum estaria interrogando esses discursos de identidade e pondo-os dentro de uma tradição literária e intelectual.

126

marginalização. Nas obras de Mario Vargas Llosa e Milton Hatoum, a idéia positiva de

hibridismo de Bhabha, como um dispositivo usado para reverter o processo de dominação do

discurso hegemônico, não se aplica (Bhabha “Signs Taken for Wonder: Questions of

Ambivalence and Authority under a Tree outside Delhi, May 1817” 154). O hibridismo não é

visto de forma vertical, de um estamento inferior (subalterno) insurgindo num estamento

superior (dominante).

A identidade híbrida de Nael se estabelece ao mesmo tempo no fracasso da busca de sua

origem, na violência sofrida pela mãe e no seu próprio status de rejeitado da família. Nael, como

o filho bastardo, vivia num ‘quartinho’ isolado no quintal da casa.87 A marginalização de Nael é

contígüa à marginalização de sua mãe indígena. Domingas havia sido seqüestrada de sua tribo e

aculturada pelas freiras das missões da Amazônia. Posteriormente, Domingas fora entregue

como empregada à família árabe, foi vítima de violência sexual por um membro da família e lá

permaneceu como ‘empregada-escrava’ durante toda a sua vida. O núcleo narrativo da casa da

família árabe funciona como um microcosmo da dinâmica de diferenças culturais e de poder na

região.

Também em La Casa Verde a relação entre as personagens se estabelecem através da

perspectiva da marginalização social e da violência. Gustavo Faverón Patriau observa o

pessimismo do ser híbrido em La Casa Verde:

Em La Casa Verde, los asuntos de la fragmentación, la tensión pertinência/enajenación y la temporalidade colapsada son centrales, y todos ellos están subsumidos en el inquientante fresco de una hibridez que al contrario de la que postula García Canclini, es pessimista. La hibridez de La Casa Verde no se reduce a la amalgama de elementos culturales, sino que incide en la violência de

87 Daniela Birnam no texto “Entre-narrar: relatos da fronteira em Milton Hatoum” afirma que os narradores de Hatoum são caracterizados por serem “fronteiriços”. Estes personagens se localizam nos entre-mundos narrativos em que a questão da orfandade e da sobrevivência está sempre presente. Nael, um híbrido entre indígena e árabe, consegue olhar a história familiar desde um lugar estrangeiro.

127

la hibridización cultural como un subproducto de la hibridización político- económica.(126)

Para Faverón Patriau, todos os personagens sofrem o efeito negativo de encontros culturais fracassados, porém Bonifácia e Jum são as representativas vítimas do violento processo de hibridismo. Bonifácia, uma aguaruna que chega às mãos de Jum (cuja história também é mencionada em El Hablador) de forma desconhecida, é posteriormente seqüestrada pelas freiras que a aculturam segundo o ideal cristão das missões. Posteriormente, Bonifácia é violada por

Lituma e levada a uma terra distinta onde, por fim, vira uma prostituta e ganha o nome de

“Selvática”. Jum, o cacique aguaruna, é violentamente punido ao tentar estabelecer condições de igualdade no sistema de produção da borracha local.

A tentativa de aculturação para sair de uma posição marginal é brutalmente reprimida.

Similarmente ao crítico peruano Faverón Patriau, Mark Millington considera Jum e Bonifácia como personagens ‘deslocados’ (displaced). Eles permitem ver as relações entre personagens

“outsiders” e “insiders”no romance. Para Millington, a narrativa está repleta de personagens com personalidades indefinidas, parcialmente assimilados e em constante estado de marginalidade.

A marginalização dos indígenas em El Hablador também aparece com um fracasso da aculturação. Qualquer indígena que tenta aculturar-se, como Jum, parece estar fadado ao isolamento. Um indígena Tasurinchi, depois de ser rejeitado pela tribo, foi viver com os brancos

(viracochas). Ele confessa sua experiência ao hablador: “Allá entre ellos [viracochas], me sentía un huérfano...Soñava con volver a Shivankoreni. Y ahora que estoy aquí mis parientes me hacen sentir así sin familia? Lo único que quisiera es una mujer que ase las yucas y tenga hijos”(67).

Este é um episódio isolado de um livro que se dedica inteiramente a pensar sobre o processo de assimilação dos indígenas ao corpo nacional. Porém, os índios, embora se apresentem como uma coletividade, também apresentam suas heterogeneidades. Na tribo dos

128

machiguengas, por exemplo, todos são chamados de Tasurinchi, como se fora uma grande família dispersa pela floresta. Dentre os machiguengas havia: os das montanhas (mais relacionados aos brancos); os das planícies (mais isolados) e os que habitavam em comunidades dominicanas. A alteridade na subjetividade indígena machiguenga se resolve na antítese do ser um e todos ao mesmo tempo.

O livro desenvolve-se na dicotomia entre assimilação por aculturação ou preservação da identidade indígena. A reflexão sobre os sujeitos culturais em diálogo pode ser vista através da articulação das alteridades judia, indígena, peruana-citadina. Saúl Zuratas, o segundo narrador, tem a marca da diferença no corpo, um sinal (lunar) vermelho. No diálogo com seu amigo romancista, Zuratas fala da cumplicidade entre ele, como judeu, e os indígenas através do caráter socialmente periférico de ambas as partes:

Que yo identifico a los indígenas de la Amazonía con el pueblo judío, siempre minoritario y siempre perseguido por su religión y usos distintos a los del resto de la sociedad...de repente, ser medio judío y medio monstruo me ha hecho más sensible que un hombre tan espantosamente normal como tú a la suerte de los selváticos. (El Hablador 30)

E posteriormente no livro, Zuratas reitera esta afirmação: “...un judío está mejor preparado que otros para defender el derecho de las culturas minoritarias a existir...” (97) Ainda que seja um tópico polêmico o da apropriação de uma outra identidade minoritária, a relação entre judeu e indígena serve para negar identidades essencialistas. Milton Hatoum lida melhor com a relação entre as alteridades do imigrante árabe e indígena. Não há uma apropriação de uma alteridade pela outra, elas se misturam de forma complexa e conflitante. Domingas e o patriarca Halim se ligam pela nostalgia de suas terras, o sentimento de isolamento e a parcial assimilação à sociedade manauara.

129

O jogo narrativo de alteridades aponta para o fato de que a definição de identidade fixa é um conceito inviável. A reflexão sobre identidade só pode se estabelecer na relação com o outro, como bem define o filósofo francês Jaccques Derrida no conceito de diferença:

Already we have had to delineate that différance is not, does not exist, is not a present-being (on) in any form; and we will be led to delineate also everything that it is not, that is, everything; and consequently that it has neither existence nor essence. It derives from no category of being, whether present or absent. And yet those aspects of difference…are not theological, not even […] concerned with disengaging a superessentiality beyond the finite categories of essence and existence, that is, of presence… (“Differánce” 6)

A différance é uma palavra inventada por Derrida desde um jogo com os significados do verbo

‘diferir’ (como ‘diferença’ e ‘adiamento’). Assim, o signo carrega nele mesmo aquilo que ele é e o que ele não é, e não pode ser meramente reduzido à uma identidade. Transportando as reflexões de Derrida para a análise da diferenças culturais, pode-se dizer que a identidade porta sempre os traços da outridade (ou da diferença). Este conceito de diferença leva Stuart Hall a afirmar, no texto “The Question of Cultural Identity”, que o sujeito pós-moderno assume:“different identities at different times, identities which are not unified around a coherent

‘self’”(598).

Sobre a complexidade na caracterização das personagens, Milton Hatoum e Mario Vargas

Llosa recebem diferentes críticas na construção de suas personagens. Não há dúvida sobre a caracterização complexa das personagens em Dois Irmãos na relação do “eu” com o

“outro”. O resgate do tema dos gêmeos idênticos, em aparência, e opostos, em caráter, já simboliza esta complexidade. Além disso, estas personagens não são desenvolvidas como simples opostos homogêneos, elas são contraditórias. Yakub e Omar, assim como os gêmeos de

Machado de Assis, são opostos que se revelam ao final bastante parecidos. Yakub é o engenheiro calculista que se alia à ditadura militar. Ele representa a modernização, a razão. Omar representa

130

a emoção, o primitivo e foi completamente oposto à ditadura por ter matado seu amigo e

professor Antenor Laval. Porém, tanto Yakub como Omar foram capazes de cometer atos cruéis.

Omar estuprou a empregada da casa, possivelmente a engravidando e Yakub vendeu a casa da

família para investidores estrangeiros.

A crítica sobre a caracterização das personagens em Vargas Llosa não é tão uniforme,

principalmente, às concernentes ao livro La Casa Verde. Castro-Klarén (Understanding Mario

Vargas Llosa 58) afirma que os personagens não são trabalhados com profundidade e são

secundários à estrutura do livro. Já o crítico Wesley Weiver afirma justamente o contrário.

Weiver argumenta que os conflitos do romance La Casa Verde, em um primeiro plano, parecem

mostrar uma dialética entre espaço da selva e da cidade. Porém, a caracterização das personagens

é complexa por apresentar sempre o “outro” nas relações mais homogêneas ou heterogêneas.

Wesley diz: “...Vargas Llosa, acaba enfocado en términos de lo psicológico; cualquiera es socio

de la casa verde: el dilema del Perú no es sólo de razas, sino de individuos”(292-293). A crítica

de Dick Gerdes do livro Mario Vargas Llosa é bastante perspicaz por ver que as personagens

estão construídas em relação com o outro através de recursos narrativos (68).88

Este é o grande ponto de confluência entre Dois Irmãos, La Casa Verde e El Hablador e

os difere da tradição regionalista: a construção das personagens na obra e sua relação com o

“outro” é algo indissociável ao processo de construção narrativa. É na experimentação com a

88 Além destas perspectivas, a crítica clássica de José Miguel Oviedo sobre La Casa Verde acredita na tipificação dos personagens como recurso de caracterizacão. Ele classifica os personagens em quatro grandes vertentes: o mítico (a história de Anselmo, Antonia e a fundação do bordel); o popular (los inconquistables e a mangacheria); o romântico exótico (o sargento e Bonifacia); e o heróico (Jum, pelo lado positivo, e Fushía, pelo lado negativo) (Mario Vargas Llosa: La Invención de una Realidad 42). A crítica é válida por perceber as similaridades entre os personagens, mas perigosa na sua generalidade. Os grupos não podem ser vistos como fixos. Por exemplo, Jum e Fushía têm características míticas e, quem sabe até, exóticas.

131

estrutura narrativa que os personagens de La Casa Verde se conectam e se duplicam. À guisa de colagem, as díspares características das personagens se constroem ao longo de um texto fragmentado em tempo e espaço. Bonifácia se transforma em La Selvática; Lituma, em sargento e Anselmo, fundador do prostíbulo, em um arpista. Enquanto a transformação de Anselmo é mais cronológica, a transformação de Lituma e de Bonifácia é simultânea. Os diferentes tempos e espaços, onde estão Bonifácia e Lituma, são justapostos numa aparente simultaneidade. À medida que se transformam em duplos na narrativa, as personagens também vão ganhando diferentes alcunhas e apelidos. Sobre o uso dos apelidos nas obras de Vargas Llosa, Roy A. Kerr reflete:

Vargas Llosa’s characters frequently demonstrate the significance of apodos in the establishment of their own self-image, and in the determination of their status within social groups.... Contrastively, names and titles can also create deliberate characterological ambiguity. Nicknames thus become verbal masks that temporarily conceal a character’s complex personality from the reader or from other protagonists. (Mario Vargas Llosa: Critical Essays on Characterization 147)

Em La Casa Verde, a selvática, grávida e sem dinheiro, é obrigada a aceitar seu apelido, imposto pela sua nova profissão de prostituta. O apelido dado pelo seu gigolô, Josefino, retrata a sua nova função social dentro de um sistema opressor de sua identidade. A transformação/duplicação da identidade de Bonifácia é influenciada pela presença de um ‘outro’ opressor e metaforicamente representada pela fragmentária estrutura verbal da obra.

Em Dois Irmãos, a construção da identidade através do(s) outro(s) também ocorre através da narrativa. Com a ajuda de fragmentadas memórias alheias (de sua mãe Domingas e seu avô

Halim), Nael vai construindo a si mesmo neste processo. É só depois de descrever o lugar onde

Domingas viveu que ele se permite chamá-la de “mamãe” (79). E também é só no capítulo IX da obra com a descrição de sua mãe sobre o seu nascimento onde se revela o nome do narrador:

132

“Quando tu nascestes”, ela disse, “seu Halim me ajudou, não quis me tirar da casa...Tu eras neto dele, não ia te deixar na rua. Ele foi ao teu batismo, só ele me acompanhou. E ainda me pediu para escolher teu nome. Nael, ele me disse, o nome do pai dele” (240). O nome Nael, originário da palavra árabe intisaar, significa ‘triunfo’. Simbolicamente, a construção narrativa de si mesmo através de memórias é o grande triunfo do narrador.

Em El Hablador a reflexão sobre a construção das personagens adquire também uma camada de reflexão metaliterária sobre a relação entre personagem, narrador e autor. O narrador- romancista, tendenciosamente construído com elementos autobiográficos do autor Vargas Llosa, sugere que o segundo narrador-hablador era o seu amigo, Saúl Zuratas. No capítulo VIII, a sugestão vai mais além ao sinalizar também a possibilidade da invenção do próprio Saúl: “Anda entre ellos [los machiguengas]...mi ex amigo, el ex judío, ex blanco y ex occidental Saúl Zuratas.

He decidido que el hablador de la fotografia de Malfatti sea él” (230). A personagem cambiante

Zuratas se estabelece na possibilidade de ser criador e criatura, ao mesmo tempo.

Esta confissão do narrador-romancista também revela sua ambivalência em se identificar com o hablador machiguenga ou um autor moderno, ou seja, entre seu anonimato e sua identidade de autor (Kerr, Lucille Reclaiming the Author 158). Por um lado, o autor moderno é visto como um hablador, que repete as tradições e as vozes de outros autores originando outras histórias. Ao igualar-se com um hablador através da figura de seu narrador e personagem Saúl, o narrador-romancista adquire o mesmo poder de unificar uma comunidade dispersa através da palavra. Por outro lado, o narrador-romancista não consegue abdicar de sua autoridade em relação ao texto quando sugere, como sua, a criação dos machiguengas por Saúl e deste como sua personagem. Numa espiral de autorias, o texto reflete sobre o jogo de máscaras e as

133

construção das identidades dos narradores, autor, e personagens em um sistema narrativo de

espelhos.89

Em conclusão, a construção especular das personagens e as relações entre alteridades de

tipos inusitados nas obras Dois Irmãos, La Casa Verde e El Hablador trazem novos elementos

para a construção dos personagens da literatura do espaço amazônico. As obras de Milton

Hatoum e Mario Vargas Llosa proporcionam uma nova visão sobre as noções do organismo

nacional e o tema nacional, ao retratar as transnacionais e complexas redes cultural, social e

econômica na híbrida sociedade da região. Porém, o hibridismo cultural não estabelece,

necessariamente, uma visão positiva do intercâmbio de culturas no espaço amazônico.

Nestas obras os personagens são em sua maioria vistos como outsiders e estão à margem

da sociedade. Pode-se traçar um continuum através marginalização do híbrido Nael, do híbrido

Saúl, da índia Domingas, da índia Bonifácia, dos imigrantes árabes e do indígenas

machiguengas. A noção de insider e outsider – que na novela de la selva e no romance

amazônico representava um deslocamento de poder e hierarquia social –, nas obras de Mario

Vargas Llosa e Milton Hatoum, e o deslocamento de poder social também se estendem à

‘relativização dos conceitos de identidade, origem e verdade’ (Derrida Dissemination 168).

Todos estes personagens, usando a metáfora do romancista paraense Dalcídio Jurandir,

são verdadeiros ‘equilibristas na linha do Equador’ (Nunes, Paulo. “Limiares entre o nacional e o

universal, um caso de outridade na Amazônia de Dalcídio Jurandir e Mário de Andrade” 169 ).

Socialmente deslocados e culturalmente indefinidos, os personagens são vistos como construções

discursivas e nunca como identidades plenas fixas. Milton Hatoum e Mario Vargas Llosa estão

89 O livro se constrói na ausência-presença constante da voz do narrador-romancista. Derrida, em “Plato’s Pharmacy” do livro Dissemination, não acredita na hierarquização platônica entre eidos (pai) e logos (filho). Também em El Hablador não existe o narrador-romancista sem Saúl, sem o hablador, sem o autor. O sistema narratológico afirma a impossibilidade de afirmar o conceito de origem e identidade plena.

134

revendo alguns estereótipos, por conseguinte, reavaliando o discurso exótico ready-made comercial amazônico. Mas será que estes escritores conseguem livrar-se dos elementos exóticos na produção de seus textos? Para responder a esta pergunta, na próxima seção, analisaremos como Milton Hatoum e Mario Vargas Llosa enfrentam o desafio de reavaliar o espaço “exótico” amazônico através dos pontos de vista de personagens distintas, plurais e deslocadas.

C. O espaço verde amazônico sob a ótica do exotismo

O uso do adjetivo “exótico” talvez seja um dos melhores exemplos para falar sobre a região amazônica como uma invenção discursiva. Cronistas coloniais, viajantes, escritores de romances e contos fizeram inúmeros relatos sobre a região. O ponto de vista forâneo destas narrativas implicou a construção da Amazônia exótica de descrições caricatas onde os escritores projetavam as sociedades que conheciam (Gondim A invenção da Amazônia 85). O uso do adjetivo “exótico” desloca-se, ao longo do tempo, e passa a ser usado para caracterizar a própria região, sua geografia e seus habitantes.

Na literatura, os próprios escritores da região amazônica adotaram uma maneira exótica de escrever a região amazônica, às vezes, movidos pelo desejo de obter uma maior comercialização de seus livros sobre a selva. O título de exótico para o espaço Amazônico parece ser omnipresente na literatura e na sociedade. Portanto, para Milton Hatoum e Mario Vargas

Llosa, escrever as obras La Casa Verde, El Hablador e Dois Irmãos usando o espaço amazônico implica vencer um desafio: criar pontos de vista capazes de lidar com os elementos do exótico tão arraigados na construção discursiva da Amazônia e (de)exotizar este espaço literário em suas obras.

135

Primeiramente, deve-se fazer uma contextualização dos três livros citados para a análise dos critérios adotados nestas narrativas. La Casa Verde de Mario Vargas Llosa foi escrito nos anos 60 e recebeu várias críticas concernentes à sua visão de novela total, ilustradora de povos e culturas. Braulio Muñoz é um dos que criticam a novela total de Vargas Llosa e afirma: “Within a given tradition, through their accumulating particular truths, writers offer glimpses of a larger

Truth. For this reason, the writer of the Total Novel strives to replace God” (16).

O romance totalizado dá a impressão de que tudo estaria incluído dentro dele. O narrador em terceira pessoa de La Casa Verde tem esse status de Deus omnisciente, ‘ilustrador’ das relações entre indivíduos no espaço latino-americano. O próprio Vargas Llosa, na introdução ao

Tirant Lo Blanc, afirma sobre o narrador omnisciente da novela total: “El novelista total es, como Dios, neutral” (27). Mais adiante no texto, Vargas Llosa classifica este novelista como:

“Todopoderoso porque se vale de todo para su empresa, omnisciente porque su mirada abarca desde lo más infinitamente pequeño hasta lo más infinitamente grande” (36). Apesar de quebrar a convencional temporalidade linear e usar formas complexas de construção narrativa, o narrador heterodiegético de La Casa Verde não permite a reflexão sobre a subjetividade do olhar que perscruta e testemunha a Amazônia.

El Hablador, livro do mesmo autor publicado no final dos anos 80, apresenta uma nova estrutura narrativa. Esta nova estrutura narrativa se aproxima da técnica narrativa de Dois Irmãos de Milton Hatoum. Tanto Dois Irmãos (2000) como El Hablador (1987) apresentam narradores em primeira pessoa. Existe nestas obras uma problematização do exótico a partir de narrações com experiências internas e de memórias pessoais. Desta forma, nesta seção parece mais viável a comparação entre estas duas obras, mais próximas em técnica e em cronologia.

136

É importante observar que ambos autores, particularmente nestas obras, misturam a

experiência vivida do autor com a memória do narrador. O narrador-romancista de El Hablador

é apresentado no livro como tendo vivido experiências similares as do autor Vargas Llosa. As

viagens à Europa e à selva amazônica, a escrita de textos sobre o Peru e até mesmo as

convicções políticas do narrador-romancista são similares às de Vargas Llosa. O livro Dois

Irmãos também trabalha com a condição de híbrido do próprio Milton Hatoum (filho de um

libanês com uma brasileira), refletida no narrador Nael. O jogo entre narrador e autor reivindica

uma ótica interna na tentativa de aumentar a verossimilhança da narrativa. Usando estratégias

muito parecidas as da ‘narrativa testemunho’, os textos procuram construir, através da memória,

uma versão própria do espaço Amazônico.90

A técnica do ponto de vista interno, porém, não é suficiente para eliminar o caráter

exótico de uma narrativa já que o próprio exotismo pressupõe um testemunho. Nos meandros da

relação entre ficção e realidade, o espaço existente entre aquilo que se vê e aquilo que se inventa

é preenchido pelas visões de mundo, conceitos e os próprios paradigmas dos autores. Portanto,

para analisar o exótico em El Hablador e em Dois Irmãos é preciso ver como a técnica narrativa

do narrador homodiegético engendra temas, recupera imagens e estabelece a relação entre

narrador e o narrado.

90 A teórica Mabel Moraña, no texto “Documentalismo y ficción: Testimonio y narrativa testimonial hispanoamericana en el siglo XX”, explica a narrativa-testemunho, ficção documental, novela-testemunho etc., como termos que referem ao entrecruzamento da narrativa e história, protagonizados em geral por atores sociais pertencentes ao setores subalternos, cuja peripécia passa a literatura como um testemunho direto ou através da mediação de um escritor (5). Este processo envolve a memória do subalterno e, por isso, impõe uma outra versão à história oficial. Bárbara Caldas, no artigo “A voz do outro em evidência a literatura testemunho na América Latina”, afirma que as narrativas-testemunho no Brasil se intensificam a partir dos anos 80, com a desmilitarização do país. Ambas autoras concordam na relação problemática entre a novela documental e o testemunho no que diz respeito, entre outras coisas, à relação ficção/realidade; à credibilidade da obra baseada no status do narrador e do narrado; e aos testemunhos que se desenvolvem como trabalhos de campo ‘ilustrativos’ de uma realidade alheia ao sujeito do narrador.

137

Primeiramente, é importante contextualizar a linguagem do exótico como técnica narrativa e como parâmetro de avaliação das obras em questão. No artigo “Exotismo”, o escritor argentino César Aira argumenta que o ponto de vista “exótico” é um dispositivo ficcional intrínseco à produção literária. Para César Aira é na descoberta e reinvenção do próprio narrador onde está o positivo do ponto de vista exótico. Desde esta perspectiva, o exotismo é visto como uma ferramenta importante pois vê com originalidade aquilo que já é familiar aos nossos olhos.

O ponto de vista exótico permite construir a imagem de si mesmo e de seu país sem usar símbolos/imagens já desgastados.

A pobreza do exotismo estaria na repetição do que já foi observado/dito implicando, por vezes, numa comercialização de nacionalidades. Pensando no exótico desde a perspectiva de

César Aira, a pergunta que resumiria a avaliação do exótico na obra de Milton Hatoum e Mario

Vargas Llosa seria: 1) os narradores tentam adotar um ponto de vista exótico e, por conseqüência, 2) logram desfazer-se dos símbolos desgastados da representação de seus personagens e países analisados nas obras?

Em El Hablador, é explícita a adoção de um ponto de vista distante para analisar o espaço peruano. Desde as primeiras linhas do romance, o narrador insinua que a sua frustrada tentativa de esquecer o Peru em terras estrangeiras o leva a encontrar a tribo machiguenga: “Vine a Firenze para olvidarme por un del Perú y de los peruanos y he que el malhadado país me salió al encuentro esta mañana de la manera más inesperada” (El Hablador 7). O encontro é ocasionado por uma exposição de fotos de Gabriele Malfatti.

As fotos tiradas pelo italiano incitam o narrador-romancista a contemplar os machiguengas e a escrever sobre eles: “Los anchos ríos, los corpulentos árboles, las frágiles canoas, las endebles cabañas sobre pilotes y los almácigos de hombres y mujeres, semidesnudos

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y pintarrajeados, contemplándome fijamente desde sus cartulinas brillantes” (El Hablador 7). O narrador afirma o seu texto como uma análise distanciada do seu próprio país no começo e também no final da narrativa. Ao término do livro, o narrador confirma esta visão distante e assina: “Firenze, julio de 1985/ Londres, 13 de mayo de 1987” (El Hablador 235).

O narrador de Dois Irmãos também estabelece sua narrativa desde um ponto de vista distanciado. Nael, como filho bastardo de um dos gêmeos, é obrigado a viver num “quartinho” construído nos fundos da casa. A arquitetura do espaço já evidencia a condição marginal do narrador Nael, um agregado da família, bastardo e filho mestiço. O próprio narrador assume esta postura dizendo:

Mas muita coisa do que aconteceu eu mesmo vi, porque enxerguei de fora aquele pequeno mundo. Sim, de fora e às vezes distante. Mas fui o observador desse jogo e presenciei muitas cartadas, até o lance final...eu dormia num quartinho construído no quintal, fora dos limites da casa. (Dois Irmãos 29)

A crítica Vera Cecarello, no artigo “O Anagrama de Nael: Paradoxos e Memória Presentes no

Narrador do Romance ‘Dois Irmãos’ de Milton Hatoum”, considera Nael um “narrador ausente”

(85) tendo seu nome mencionado somente duas vezes na narrativa. A narração como testemunho também aparece na condição de sobrevivente de Nael, que narra a história quando a maioria dos seus protagonistas estão mortos. Vera Cecarello afirma neste artigo: “Através da narrativa de

Nael, pode-se melhor compreender a estruturação do romance, e a presença ausente do narrador em relação à dinâmica familiar da qual fazia parte, ao mesmo tempo em que era excluído socialmente”(85).

Portanto, tanto Nael de Dois Irmãos como o narrador-romancista de El Hablador, ainda que participantes das ações das narrativas, têm o intuito de analisar distanciadamente os seus espaços narrativos. Daqui em diante, é preciso refletir sobre a segunda parte da pergunta sobre o

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exotismo partindo da perspectiva de César Aira: os autores logram desfazer-se dos símbolos

desgastados daquilo que pretendem narrar? Quais elementos vão aproximá-los das narrativas

exóticas amazônicas e quais são os elementos que vão distanciá-los destas narrativas?

Em El Hablador e em Dois Irmãos, definitivamente existem elementos inovadores na

construção de um espaço com personagens insólitos nas narrativas sobre a selva. Como visto na

seção anterior, judeus, árabes e seus híbridos são protagonistas destas narrativas. Esta técnica

quebra a visão dicotômica das narrativas que apresentavam somente os indígenas versus

colonizadores e seus representantes locais.

Porém, a relação entre a construção destas personagens e as implicações de poder são as

verdadeiras determinantes da reestruturação do discurso exótico amazônico. Um dos grandes

nomes na avaliação do exótico, Edward Said, afirma que o teor exótico de um discurso está

intrinsecamente ligado ao conceito de poder. Na obra canônica Orientalismo, Edward Said

analisou as relações de poder na construção do Oriente pelo Ocidente. Analisar como se constrói

uma concepção sobre uma região para Said, neste caso a do Oriente, deve ser vista através das

relações de poder que engendram:

The relationship between Occident and Orient is a relationship of power, of domination, of varying degrees of a complex hegemony …what we must respect and try to grasp is the sheer knitted-together strength of Orientalist discourse, its very close ties to the enabling socio-economic and political institutions, and its redoubtable durability. (Said 5-6)91

Complementando esta idéia de Edward Said, Homi Bhabha analisa como a descrição do ‘outro’

na linguagem exótica vira objeto de desejo e chacota e constrói hierarquias de poder:

91 Um clássico dos estudos culturais, o livro Orientalismo foi publicado em 1978. Edward Said argumenta que o “Oriente” não é um nome geográfico, mas sim corpo de teorias e práticas, um sistema de conhecimento sobre o Oriente construído pelo Ocidente. Para Said, este sistema parte de um aparato institucional que não buscava uma curiosidade desinteressada. Trata-se de um conjunto imenso e sistematizado de disciplinas que constroem a imagem de um “Oriente” exotizado predisposto a sofrer intervenções ocidentais.

140

Only then does it become possible to understand the productive ambivalence of the object of colonial discourse – the ‘otherness’ which is at once an object of desire and derision, an articulation of difference contained within the fantasy of origin and identity... inscribed in both the economy of pleasure and desire and the economy of discourse, domination and power. (Bhabha The Location of Culture 67)

Portanto, o discurso do exótico pode ser visto como uma narrativa que explora elementos do

erotismo e engendra uma hierarquia entre o narrador e o narrado. A inovação no discurso do

exótico seria, então, valer-se de narrativas que neutralizem estes elementos. Mario Vargas Llosa

e Milton Hatoum lidam com a questão do poder e do erótico nas suas narrativas de maneira

distinta.

Em El Hablador, Mario Vargas Llosa estabelece o elemento exótico em sua narrativa

desde um aspecto predominante literário. O exótico se fundamenta no verossímil e o erótico está

mais neutralizado (em comparação com as outras obras suas).92 Porém as hierarquias de poder

dos grupos sociais ainda estão refletidas nas relações entre os narradores homodiegéticos de El

Hablador. Por sua vez, em Dois Irmãos, Milton Hatoum usa o elemento erótico e lida com o

92 O sexo na narrativa é para Vargas Llosa um instrumento estético que também pode ser usado para causar comicidade. O erotismo em Vargas Llosa é entendido desde a perspectiva de George Bataille, ou seja, como experiência de violação. O próprio autor fala em seu texto “El sexo frío”: “Para que esta sublimación ocurra es imprescindible, como lo explicó George Bataille, que se preserven ciertos tabúes y reglas que encausen y frenen el sexo, de modo que el amor físico pueda ser vivido – gozado – como una transgresión”. Vários críticos, dentre eles José de Santaemilia Ruiz no artigo “Amor y Erotismo en Vargas Llosa y su traducción al inglés”, percebem a concepção de sexualidade como “sexista y tradicional” (133). A presença do erotismo, mais contundente em La Casa Verde do que em El Hablador, pode ser visto nos momentos em que o autor peruano erotiza estupros de mulheres e a prostituição feminina (La Casa Verde 217). É importante mencionar também que é no livro Pantaleón y las visitadoras onde a relação entre erotismo e espaço regional amazônico foi explorado de maneira extensa. Um prostíbulo construído em plena selva amazônica para saciar os desejos dos militares peruanos é o grande tema da obra. O espaço selvático amazônico recebe um tratamento estereotípico e naturalista que pode ser comprovado facilmente na transformação da personagem Pantaleón em um ser mais erótico na sua mudança para o interior da selva amazônica. Em carta enviada a sua irmã, a esposa de Pantaleón comenta esta transformação do seu marido: “Pues ya no te podrás burlar nunca más de tu cuñadito en ese aspecto, malhablada, porque desde que pisó en Iquitos se volvió una fiera...le provocaba hacer cositas una vez cada diez o quince días...y ahora el bandido le provoca cada dos, cada tres días y tengo que estarle frenando los ímpetos...Panta dice que es culpa del clima, un general lo previno allá en Lima que la selva vuelve a los hombres unos fosforitos” (79).

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elemento exótico de forma consciente para assim enfrentar um discurso de poder sobre a

Amazônia.

Analisando o discurso de poder, primeiramente, em El Hablador, é preciso ressaltar a tentativa de estabelecer o discurso do exótico fundamentalmente num domínio literário deslocado. O narrador-romancista, alter-ego de Vargas Llosa, deixa claro na obra que a construção do exótico diz respeito, primordialmente, à verossimilhança. O narrador confessa sua frustração ao tentar escrever de forma convincente sobre os machiguengas:

Había borroneado cuadernos y pasado muchas horas en la Plaza del Trocadero, en la biblioteca y las vitrinas del Museo del Hombre, tratando de entenderlos y adivinarlos, en vano. Inventadas por mí, las voces de los habladores desafinaban. Así que me resigné a escribir otras historias. (El Hablador 104)

Também esta é a razão pela qual, em determinado momento, o próprio narrador-romancista deixa de lado a sua narrativa. A experiência vivida pode ajudar mas não é algo decisivo para a construção de um texto verossímil, segundo este narrador. Assim, ele critica os escritos do missionário Fray Vicente de Cenitagoya pelo caráter exótico da visão dos indígenas: “[los indígenas] aparecían vistos desde afuera y de bastante lejos, pese a que el misionero había vivido entre ellos más de veinte años” (El Hablador 101).

A análise sobre o olhar exótico e suas relações entre as hierarquias de poder está estabelecida em El Hablador numa reflexão metaliterária sobre a relação ‘autor-narrador- personagem’. Na relação entre os dois narradores homodiegéticos do livro, sendo um deles identificado com o autor, uma suspeita insurge ao final da obra: a de uma dupla invenção na narração do ‘narrador-machiguenga’. A primeira invenção consistiria em afirmar que o narrador- machiguenga, fosse, verdadeiramente Saúl Zuratas. E a segunda invenção seria a de que Zuratas,

142

por sua vez, fosse uma criação do próprio narrador-romancista. Assim, o narrador-romancista

incita o leitor a pensar sobre a linguagem de toda a narrativa como uma invenção literária. Nestes

jogos de invenção literária é que a análise sobre o discurso de poder se estabelece. Ou seja, em

que implica a apropriação da voz do indígena-machiguenga para sua final aniquilação dentro de

um discurso de poder?

Para Debra Castillo este jogo literário veicula um exotismo baseado na barbarização e na

afirmação do caráter periférico dos nativos da Amazônia. O argumento de Castillo fundamenta-

se na simbologia do indígena através de sua identificação com o personagem ‘monstro’ Saúl

Zuratas. Marcado por um sinal vermelho no rosto, Zuratas representava a deformação e a

monstruosidade. No capítulo II, a aparência da personagem mereceu o seguinte comentário de

um bêbado: “...qué monstruo! ¿De qué zoológico te escapaste, oye?...Con esa cara, no debías

salir a la calle, assustas a la gente”(16). Para Debra Castillo, ao sugerir que o segundo narrador

seja Saúl Zuratas, o autor estaria identificando os índios machiguengas a Zuratas através do

símbolo da monstruosidade. Debra Castillo afirma que este subtexto reflete a perversa face do

exótico na relação de poder entre margem e centro:

... a repressed subtext hinting at the impotence of the Machiguenga people, who need a converted Westerner to come in and revive their dying civilization, and also implying that physical and spiritual monstrosity that is the most they can hope to achieve for themselves in the best of cases. (“Postmodern Indigenism: "Quetzalcoatl and All That" 64)93

93 Debra Castillo analisa como esta monstruosidade, inevitável em comparação com os ocidentais, é vista no texto e procede em afirmar que o texto de Vargas Llosa implica que os indígenas assimilados são mostruosos, os semi- assimilados seriam patéticos e, em oposição, os antropólogos e lingüístas tenderiam mais a uma personalidade heróica. Se seguirmos a interpretação de Debra Castillo, a representação do indígena na região amazônica das obras de Vargas Llosa estaria muito mais em harmonia com a terceira fase do exotismo de Aira: a da comercialização de uma América Latina bárbara para ser consumida pelo mercado anglo-saxão.

143

A análise da identificação dos narrador machiguenga com o Zuratas é interpretado de maneira

diferente por Susan Antebi. Antebi afirma que esta identificação evidencia a arbitrariedade na

construção dos estereótipos dos judeus e indígenas através da inferioridade :

In both societies, Saúl, the half-Jew with a marked face, embodies the outcast. But because this ambiguous figure plays his role so effectively, he will never be literally cast out, but instead will have to remain present, so as to reiterate, through his visible, monstrous presence, the element that could have been destroyed. Thanks to this oscillating position, Saul's figure appears to regenerate negative stereotypes of both Jewish and indigenous peoples, each linked to bodily monstrosity, and at once to undermine these stereotypes, by illustrating that they are as arbitrary and devoid of significance as a birthmark – yet perhaps just as difficult to erase. (274-275)

Porém, mesmo que Susan Antebi considere a narrativa do machiguenga-judeu indispensável na

obra, isto não apaga o fato de que há uma hierarquia de poder entre as narrativas do narrador-

romancista e o narrador-machiguenga. A supremacia da voz do narrador-romancista implica a

supremacia da ótica/ideologia do primeiro sobre o segundo. Num duelo maniqueísta de idéias, a

FRQYLFFomR GH 6D~O =XUDWDV í que prega o isolamento dos indígenas amazônicos para a

preservação de sua cultura – enfrenta a ideologia do narrador-romancista. Este acredita na

inevitável inclusão por modernização dos indígenas e conseqüente saída de um mundo atrasado e

primitivo. O narrador-romancista afirma: “¿De qué les serviría a las tribus seguir viviendo como

lo hacían y como los antropólogos puristas tipo Saúl querían que siguieran viviendo? Su

primitivismo las hacía víctimas, más bien, de los peores despojos y crueldades” (72).94

A quebra da inicial visão bifocal do livro, portanto, destrói um diálogo onde diferentes

opiniões sobre os machiguengas se encontrariam. Em seu lugar a visão modernizante do primeiro

94 Mario Vargas Llosa estabelece uma dicotomia entre modernização (sociedade ocidental) e arcaísmo (culturas indígenas ‘primitivas’). O crítico Ignacio Lopéz-Calvo, no artigo “El anti-indigenismo en El Hablador y Lituma en Los Andes, de Mario Vargas Llosa”, analisa como esta posição política maniqueísta de Vargas Llosa fica aquém da possibilidade já trabalhada por José María Arguedas que propôs uma cultura indígena moderna mas não aculturada nem ocidentalizada.

144

narrador se impõe. É por esta razão que William Rowe no artigo “Liberalism and Authority: The

Case of Mario Vargas Llosa” afirma: "Those parts of the text that present the voice of Zuratas as

a Machiguenga 'storyteller' read like a bad indigenista novel…[they] have virtually no

intellectual content" (60-61). A crítica mordaz de William Rowe remete à construção estético-

ideológica do indígena.

Para Rowe, assim como os textos indigenistas criavam um indígena visto desde uma

pespectiva ex-ótica, em El Hablador exotiza-se o indígena para acentuar sua inadequação à

socidade moderna.95 Constata-se através das diferentes leituras que o elemento exótico no texto

de Mario Vargas Llosa além de ser metaliterário, também implica uma leitura política e

ideológica. Sobre este tema em El Hablador, Doris Sommer explica:

The narrative delays its exploration of exotic folklore, and it stays the flights of political reflection. It invites, or commands, readers to withstand, for a bit longer, the Amazonian gaze that accosts and commands the narrator and his readers, perhaps to his perils and to ours. (“The Talker Turns” 106)

Refletindo sobre as palavras de Doris Sommer, é possível entender porque a maioria das críticas

de El Hablador de Mario Vargas Llosa enfatiza o aspecto político e ideológico do texto. O texto

é visto como uma tentativa de leitura etnográfica do povo machiguenga (“The Talker Turns”

99).96 Esta conotação de leitura etnográfica do romance rendeu a crítica do antropólogo Enrique

Mayer no texto “Peru in Deep Trouble: Mario Vargas Llosa’s: “Inquest in the Andes

95 Oviedo afirma que : “...la literatura indigenista no está – como bien observaría Mariátegui – escrita por indígenas sino por mestizos pertenecientes a las capas medias urbanas...la idea indigenista no es, pues, indígena: es proindígena...el indigenismo <> a un indígena sobre la base del real, que fue una construcción ideológica- estética de la cultura criolla (Historia de la literatura hispano americana 3. Postmodernismo,Vanguardia y Regionalismo 450-451).

96 Doris Sommer fala sobre o desejo de Mario Vargas Llosa de ser romancista e etnólogo. Doris Sommer refere-se à figura de José María Arguedas como fonte de grande inspiração para Vargas Llosa pelo seu trabalho paralelo de contribuição à etnologia e à literatura: “It was the novelist, with this flair for ethnology, who surely inspired Vargas Llosa as he doubled himself, irreconcilably, in the homonymic narrator of personal histories and in the nameless hablador” (“The Talker Turns” 99).

145

Reexamined”. Mayer compara a voz autoritária do narrador-romancista em El Hablador com a do próprio Vargas Llosa no uso do discurso antropológico com funções políticas e literárias

(475).

Ora, o texto poderia ser uma sagaz leitura e produção baseada no modelo etnográfico.

Considerando que El Hablador trabalha desde a premissa de ser uma leitura etnográfica, como se poderia estruturar a narrativa evitando uma linguagem exótica? Pensando desde a perspectiva do trabalho etnográfico para ajudar-nos com a análise literária, vejamos a opinião do renomado antropólogo brasileiro Roberto da Matta. Segundo Roberto da Matta, a ‘regra de ouro’ do trabalho etnográfico para evitar uma visão exotizante consiste na seguinte fórmula:

...a) transformar o exótico no familiar e/ou b) transformar o familiar em exótico. E, em ambos os casos, é necessária a presença de dois termos (que representam dois universos de significação) e, mais basicamente, uma vivência dos dois domínios por um mesmo sujeito disposto a situá-los e apanhá-los. (“O Ofício de Etnólogo, ou Como Ter 'Anthropological Blues'”28)

Observando El Hablador desde uma perspectiva etnográfica, percebe-se que o texto tenta

“transformar o exótico em familiar”, mas não tenta transformar “o familiar em exótico”. O autor transforma o “exótico em familiar” ao ver o exótico internamente com a perspectiva do narrador em primeira pessoa e a transformação de seu personagem Zuratas em um hablador: “Porque hablar como habla un hablador es haber llegado a sentir y vivir lo mas íntimo de esa cultura, haber calado en sus entresijos, llegado al tuétano de su historia y su mitología, somatizado sus tabúes, reflejos, apetitos y terrores ancestrales”(El Hablador 234). Porém, o narrador-romancista

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não mostra suas idéias/conceitos como ‘exóticos’. Ou seja, não se reavalia para encontrar em si

mesmo algo diferente que venha a defini-lo. 97

Portanto, através da análise das hierarquias de poder estabelecidas entres os personagens

de El Hablador, comprova-se dois aspectos na reavaliação do exótico, segundo a proposta de

César Aira. Por um lado, nas partes do narrador-machiguenga (do judeu Zuratas), a utilização da

personagem judia e sua relação tão íntima com os índios, baseada na marginalidade social de

ambos, surge como um elemento dissonante na narrativa do espaço amazônico. Por outro lado,

perpetua uma maneira dicotômica de tratar o assunto indígena e mantém uma visão desgastada

do índio como bárbaro. A parte do narrador-romancista fala-se claramente: “...esos seres que

vivían, allá lejos, semidesnudos, comiéndose los piojos y hablando dialectos incomprensibles”

(El Hablador 30).

Este trecho parece ecoar a representação dos indígenas que já ocorria em La Casa Verde.

Também neste livro, o autor se refere negativamente às índias comendo seus piolhos (La Casa

Verde 113), e à conversa entre um intérprete e o índio Jum por “grunhidos” (La Casa Verde 74).

Estes exemplos são emblemáticos de uma visão superficial e, no mínimo exótica, dos nativos da

Amazônia. Braulio Muñoz percebe que a visão maniqueísta que retrata o índio como um bárbaro

é usada também para caracterizar os peruanos como um todo. Muñoz afirma:

97 Este exercício de leitura etnográfica é válido para esclarecer alguns aspectos da obra, porém é preciso cautela para não deixá-lo dominar a análise literária. Até mesmo, o antropólogo Enrique Mayer, já citado neste texto, considera que as polêmicas de Vargas Llosa adquirem uma problematização nos seus livros de ficção (475). A confissão do narrador-romancista expõe ao leitor os meandros literários do texto e alerta que se evite qualquer possível leitura autobiográfica da obra. Devido à forte presença da figura política do autor Mario Vargas Llosa, existe uma dificuldade da crítica em não deixar que a leitura antropológica/ ideológica do romance supere à literária. A sugestão da apropriação do autor-machiguenga deixa em suspenso qualquer afirmação decisiva sobre uma possível leitura autobiográfica da obra. Além disso, a “quase” confissão do narrador-romancista revela uma tentativa de descobrir a si mesmo através da temporária adoção de um ponto de vista exótico.

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Vargas Llosa seems to be caught in the same manicheistic thinking prevalent among the Indigenista and socialist writers whom he often criticizes... there is hardly a “civilized” Peruvian portrayed in his literary worlds. Civilization, as Vargas Llosa conceives it, could only be represented by a mythical and ever more enlightened Europe. (45).

Portanto, nem mesmo, o uso do narrador híbrido judeu Zuratas consegue superar o determinismo pessimista na relação entre margem (Peru) e centro (Europa) que implica a noção hierárquica do exótico em El Hablador. Milton Hatoum em Dois Irmãos vai usar o narrador homodiegético na obra de forma diferente.

O narrador híbrido Nael também serve como uma ponte entre culturas porém seu teor híbrido já desfaz as hierarquias de poder do ponto de vista narrativo da obra. Nael reúne as minorias indígena e a árabe em um só ser. Este híbrido entre indígena e árabe é o narrador absoluto da obra. Portanto, o ponto de vista da narração se estabelece desde uma perspectiva das

“margens” (oriental e indígena). Desta forma, a obra Dois Irmãos é similar às obras que apresentam um “novo exotismo”, termo dado por Idalia Morejón Arnaiz a uma característica de lidar com o exótico pelos escritores latino-americanos contemporâneos. Analisando a produção literária recente, Morejón Arnaiz percebeu que:

La ruptura del nuevo exotismo con lo nacional y con el énfasis de la literatura latinoamericana por ocupar un lugar central en el canon occidental, se postula como un juego no europeo en su conexión con otras civilizaciones...Las fuentes del exotismo europeo y del nuevo exotismo latinoamericano son diferentes...Para la América Latina que transita entre el final del siglo XX y estos primero años del XXI, el éxodo hacia el Norte, y el acceso directo a zonas geográficas excéntricas sin la mediación de la mirada europea, son los elementos fundamentales que dan soporte a esta tendencia...En el nuevo exotismo no existe...una mirada etnográfica, por tanto, la impenetrabilidad en el nuevo exotismo es apenas una constatación de la diferencia. (“Nuevo exotismo: escritores latinoamericanos en tránsito” 1-2)

Duas características principais vão separar o posicionamento dos narradores homodiegéticos de

El Hablador e de Dois Irmãos: ausência de leitura etnográfica e a conexão entre diferentes

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civilizações sem a mediação européia. Primeiramente, Dois Irmãos não tenta estabelecer uma

leitura etnográfica dos povos indígenas amazônicos. O narrador Nael constrói sua narrativa pela

memória de sua mãe indígena Domingas. Porém, falar sobre Domingas não desemboca em

generalizações sobre tribos e povos indígenas. Em segundo lugar, se em El Hablador o narrador-

romancista usa o espaço europeu como ponto de partida e chegada de sua construção narrativa,

em Dois Irmãos, o Oriente Médio e a Amazônia se encontram sem a mediação do espaço

europeu.

Em Dois Irmãos, dois espaços extremamente exotizados são reunidos numa aliança

contra-hegemônica. O encontro do Oriente com o Amazonas também é inusitado na literatura da

região. Hatoum, com sua história familiar ligada à imigração libanesa na Amazônia, traz com

muita propriedade novos elementos para esta literatura. O autor manaura é bastante consciente de

que está lidando com espaços que adquiriram a dizibilidade pelos europeus. Milton Hatoum,

admirador e tradutor de Edward Said, consegue fazer com que o leitor veja mais do que

estereótipos ou ícones visuais de espaço.98

Além disso, as conexões Oriente e Amazônia não estão estabelecidas de maneira

essencialista. Daniela Birnam, no texto “Canibalismo literário: exotismo e orientalismo sob a

ótica de Milton Hatoum”, mostra que a mistura inseparável de vocábulos, ritos e religião

brasileiros e árabes faz com que Dois Irmãos escape de um essencialismo, do qual padeceu a

98 Daniela Birnam, neste texto, mostra como Milton Hatoum não é um mero admirador de Edward Said, ele é um dos grandes responsáveis pela divulgação da obra de Said no Brasil. Ele assina as “orelhas” da segunda edição de Orientalismo, também selecionou os textos de Said a serem reunidos no livro Reflexões sobre o exílio e outros ensaios e traduziu o livro Representações do intelectual sobre o qual escreveu um artigo publicado em uma obra em homenagem a Said por ocasião de sua morte. Logo após os ataques às Torres Gêmeas do 11 de setembro de 2001, Hatoum recomendou publicamente a leitura de Said para entender o momento em que se vivia.

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própria teoria de Said. Além disso, a hibridez do ponto de vista narrativo na exploração destes

símbolos destrói uma possível valorização de uma hierarquia de poder entre estas duas culturas.

Na contra-mão da negação de qualquer discurso exótico na obra hatoumiana, Estela

Vieira, no texto “Milton Hatoum e a representação do exótico” acredita que em Dois Irmãos o

elemento do imigrante é importante para pensar sobre uma redefinição do exótico através do

erótico.99 De fato, em Dois Irmãos, o erótico pode ser visto na ênfase das relações carnais e/ou

incestuosas dentro das famílias de imigrantes. Em Dois Irmãos, o erotismo encontra-se

visivelmente presente nas relações entre esposos (Halim e Zana), entre mãe e filho (Omar e

Zana), entre tia e sobrinho (Rânia e Nael), entre pai e filhas (Talib e as filhas) e entre irmãos

(Omar e Rânia).

Porém, este tipo de crítica pode ser perigosa por ainda veicular a idéia do ‘outro’ como

unidade total e legível e não perceber a correlação com as outras personagens da obra. O jogo do

exótico realiza-se não somente na figura do imigrante (como tenta afirmar Estela Vieira), mas

justamente no testemunho destas diferentes alteridades: na presença do árabe, no silêncio da

empregada indígena Domingas, na superficialidade da personagem negra erótica Pau-mulato.

Leonardo Tonus afirma que, embora Hatoum tente neutralizar o exótico com o uso de sujeito

enunciadores geralmente híbridos, o exótico ainda pode ser encontrado em suas obras (“O efeito

exótico em Milton Hatoum”). 100 Leonardo Tonus apresenta uma crítica mais abrangente ao

perceber o imigrante erótico/exótico dentro deste jogo de alteridades e afirma:

99 Se o exotismo implica numa ignorância e a pretensa exposição mimética, a leitura do imigrante como um ser exótico pode se constituir ela mesma num espetáculo exótico.

100 Para Leonardo Tonus, Hatoum veicula o exótico através: da utilização da linguagem estrangeira com mero fim plástico; da apresentação de uma Amazônia misteriosa; e, principalmente, da erotização do oriental. É sobre este último elemento que Tonus irá basear sua análise por considerá-lo como a vertente mais forte do exótico na obra de Hatoum.

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Ao associar o exótico à questão da alteridade, Milton Hatoum confere a esta noção uma nova dimensão, transformando-a num elemento fulcral dos processos de negociação identitária elaborados a partir do lugar-comum dos estereótipos culturais...o elemento exótico hatoumiano pode também contribuir com o processo de comunicação, estabelecendo...zonas temporárias de tradução cultural que...conduzem o “Mesmo” a um diálogo com o “Outro”. (147)

Portanto, para Leonardo Tonus a utilização de um elemento erótico representando pela alteridades no livro não tem por conseqüência uma visão meramente exótica na narrativa. Tonus afirma que Hatoum combate o exótico com os próprios elementos que o definem, chamando este processo de “efeito exótico às avessas” (Tonus “O efeito exótico em Milton Hatoum” 143).101

É importante ver que o uso de alteridades como um ponto de vista exótico para a análise da Amazônia é algo comum tanto em El Hablador como em Dois Irmãos, porém os efeitos conquistados por ambas foram completamente diferentes. Embora ambos os livros El Hablador e

Dois Irmãos tenham um certo grau de pessimismo sobre encontros culturais na América Latina, em Dois Irmãos ainda se vislumbra uma possibilidade de constituição harmoniosa entre culturas.

O livro termina com a desintegração da família árabe mas mesmo assim é notório os momentos de harmonia de Halim com a sociedade manauara. A ênfase da diferença é algo visto como humano, simbolicamente representada pelos gêmeos “idênticos” e tão “diferentes”. Portanto, em

Dois Irmãos o pessimismo é estabelecido deste uma perspectiva emocional, humanista e afetiva, sem uma pretensa intenção antropológica-social.

Pelo o que foi já visto, também se pode perceber que a inserção das alteridades em El

Hablador e Dois Irmãos estabelecem diferentes dinâmicas de leitura. Os autores desconstroem

101 Tânia Pellegrini no texto “Milton Hatoum e o Regionalismo revisitado” e Leila Perrone-Moisés no texto “A cidade flutuante: novo romance revela amadurecimento de Milton Hatoum” acreditam que o exotismo na literatura de Hatoum está ligado ao exotismo do ‘outro’ que vê a Amazônia desde fora. Porém este argumento não pode ser tomado como absoluto, já que implica num discurso completamente exterior ao âmbito literário. Não se pode deixar de considerar que os escritores da própria região também podem adotar uma linguagem exótica nas suas obras.

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dicotomias de poder que apresentavam o indígena bárbaro e erotizado em situação inferior ao europeu civilizado e racional. Porém a alteridade judia se nulifica em El Hablador. Através da experimentação literária, Vargas Llosa, ao mesmo tempo, que tenta adotar uma perspectiva exótica periférica, parece afirmar que o autor e suas ideologias neo-liberais são as prevalentes às outras.

A posição deste ainda aponta para uma visão exótica onde o conhecimento racional ocidental se impõe. Portanto, o exotismo não se desintegra nas obras de Vargas Llosa porém tem a capacidade de incorporar outras alteridades. Em Dois Irmãos, a alteridade árabe na obra e os temas que a acompanham (incesto e a violação de padrões morais ocidentais) também não se desfaz do caráter do exótico, porém estabelece uma outra perspectiva sobre a região.

As obras de Milton Hatoum e Mario Vargas Llosa incorporam o panorama do hibridismo cultural no espaço da Amazônia latino-americana como fomentador de uma nova sociedade amazônica plural e diversa. Esta diversidade pode reproduzir um discurso ideológico exótico ou não. Um dos pontos mais importantes para refletir esta diversidade cultural é através de seu hibridismo lingüístico. A próxima seção terá como objetivo refletir sobre os efeitos da diversidade lingüística do espaço amazônico dentro das obras La Casa Verde, El Hablador e

Dois Irmãos.

D. A confluência das vozes amazônicas

Para produzir uma “cor local”, várias obras regionalistas tentaram incorporar à escrita vocábulos ou ‘estruturas orais’ específicas de uma região. Conscientes de uma forte e longínqua tradição literária que explora as características da diversidade lingüística da Amazônia – com

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grande ênfase na oralidade indígena – Mario Vargas Llosa e Milton Hatoum revisitam o trabalho com esta oralidade agregando novos elementos e considerações.

Como visto nas seções anteriores, tanto nas obras de Milton Hatoum como nas obras de

Mario Vargas Llosa há uma reflexão sobre a diversidade cultural da América Latina e seu reconhecimento para um novo retrato das suas regiões na literatura. Ambos os autores irão tentar explorar esta diversidade cultural a partir da exposição de uma correlata diversidade lingüística, já vista nos dialetos indígenas, assim como no aparecimento de novas vozes na sociedade amazônica.

A representação da voz indígena, em particular, implica uma larga tradição na literatura da América Latina. Esta oralidade incitou reflexões sobre oposição entre cultura oral e escrita em correspondência com o próprio conflito da sociedade colonial. A mediação de escritores entre cultura letrada e cultura oral, por vezes, implicava na tentativa de tradução da oralidade em escrita. Martin Lienhard chama estas narrativas de ‘etnoficción’ ou ‘escritas alternativas’ por fabricarem discursos fictícios, várias vezes, com a função de desvalorizar ou valorizar as cosmovisões indígenas (Lienhard La Voz y su Huella 31).

Porém estas vozes da oralidade ‘realizadas’ no espaço escrito, em sua maioria, construíram simulacros de um discurso original, autêntico e oral. Portanto, ao revisitarem o trabalho com esta oralidade Mario Vargas Llosa e Milton Hatoum tinham como grande desafio evitar uma visão exotizada e utópica na voz dos personagens da região.

Nas obras La Casa Verde e El Hablador de Mario Vargas Llosa e Dois Irmãos de Milton

Hatoum existe um intento em trabalhar esteticamente com a oralidade da região amazônica.

Contudo, a função estética da oralidade irá desenvolver-se em ambos escritores de maneira mais

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similar nos livros El Hablador e Dois Irmãos. Em La Casa Verde, o trabalho com a oralidade ainda acontece de maneira superficial e estereotípica ao apresentar a oralidade indígena.

Desde uma perspectiva descritiva, é possível constatar que em La Casa Verde há uma massiva inclusão de vocábulos locais, indigenismos, neologismos, anglicismos e registros lingüísticos de classe, gênero, etc. No artigo “Lengua y Sociedad en La Casa Verde”, José María

Enguita Utrilla mostra como os indoamericanismos são abundantes nos dois maiores espaços explorados na obra: Piura (no deserto do Noroeste do Peru) e a região amazônica (no Nordeste do Peru).

Em La Casa Verde no espaço de Piura, a maior parte vem do quechua com palavras como cachaco (63,108,35), chinita (168,169,428), calato (322), churre (61,62), cholo

(188,326,344), lúcuma (56,62,106,345,413), pisco (64,97,323,396), pucho (375). Porém não faltam outros vocábulos já incorporados ao espanhol de origem antilhana – como chicha (96) e seus derivados chichera (32, 96) e chichería (32,39,56,61,425) – ou do aruaque – como, papaya

(323), macanudo (407), tutuma (36,350). Na Amazônia selvática de La Casa Verde, Enguita

Utrilla percebe que os vocábulos de origem indígena enfocam nas descrições da flora e da fauna da selva amazônica, porém o crítico não examina como a ênfase na natureza é diretamente proporcional à distância que o autor impõe ao elemento humano indígena da selva.102

Mario Vargas Llosa se restringe a pensar sobre a oralidade do indígena de uma forma completamente intraduzível. A visão negativa e simplista é inevitável e várias são as ocasiões em que o distanciamento da cultura oral indígena é negativamente traduzida por “grunhidos”.

102 Manuel Álvarez García faz um estudo específico sobre a abundância de nomes de animais (como bagre, charapa, cuy, etc.) em La Casa Verde em seu artigo “Indoamericanismos léxicos que designan animales en La Casa Verde de Mario Vargas”. Infelizmente, embora sirva como um bom glossário, o crítico não analisa a implicações do enfoque do uso deste tipo de vocabulário.

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Exemplifica bem esta passagem já mencionada na seção anterior onde um intérprete conversa com o personagem Jum na língua indígena: “El intérprete gruñe, ruge, lanza escupitajos y Jum gruñe, ruge, lanza escupitajos y el viejo se golpea el pecho...y el intérprete diciendo, cambiando con jebe” (La Casa Verde 74).

Ou ainda, no episódio em que a personagem Bonifácia começa a falar em ‘pagão’ com as freiras e o narrador explicitamente compara a indígena Bonifácia a um animal:

Pero la interrupieron unos gruñidos que habían brotado como si en la despensa hubiera oculto un animal que, subitamente enfurecido, se delataba aullando, roncando, ronroneando, chisporroteando ruídos altos y crujientes desde la obscuridade, en una especie de salvaje desafío. (La Casa Verde 60)

Portanto, La Casa Verde oscila entre simplísticas representações de grunhidos ou o silêncio dos indígenas. Em El Hablador, a dinâmica é diferente: o autor tenta aproximar-se da oralidade indígena a ponto de dedicar a metade de seu livro a uma narrativa “oral dos machiguengas”.

De fato, El Hablador e Dois Irmãos parecem livros mais similares em suas técnicas para trabalhar com a oralidade indígena da Amazônia por haver uma tentativa real de representação da voz do autóctone dentro da narração. Em Dois Irmãos e em El Hablador os autores adotam duas estratégias bem similares. A primeira diz respeito à: 1) união da oralidade das vozes minoritárias e, 2) o uso de recursos da escrita para reproduzir estas vozes no texto. Analisemos, inicialmente, a união destas vozes minoritárias dentro das respectivas obras.

Em El Hablador, o texto encontra-se dividido entre a voz do narrador-romancista – representante da cultura ocidental letrada e socialmente considerado superior e a voz do narrador-hablador, personagem representante da oralidade, crenças e costumes da tribo machiguenga. Nesta segunda parte é onde as vozes minoritárias judaica e indígena juntam-se para a formação do “texto oral”. A experimentação com a representação da oralidade acontece

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através da voz do judeu Saúl Zuratas convertido em hablador da tribo dos machiguengas. Zuratas

afirma: “Que yo identifico a los indios de la Amazonía con el pueblo judío, siempre minoritario”

(El Hablador 91).

Já no livro Dois Irmãos, as memórias do árabe Halim e da indígena Domingas agregam-

se à narração do híbrido Nael. Aqui, estas duas culturas de grande riqueza oral, a indígena e a

árabe, se reúnem para formar em português a narração dos Dois Irmãos.103 Em Dois Irmãos, a

narrativa passa por um longo fio de lembranças do narrador Nael onde se misturam a herança

oral árabe (vista nos relatos sobre os gazais em árabe que recitava Halim para sua esposa Zana) e

no espaço poético traduzido nas palavras de herança do tupi íFRPRSRUH[HPSORQDVFDQo}HV

em nheengatu que lhe cantarolava sua mãe nas noites de sua infância (239-240). A memória de

Nael confecciona una tessitura de memórias alheias, principalmente as de Halim e Domingas,

intercalando estas memórias de maneira similar à técnica de narração de As Mil e Uma Noites.104

Em Dois Irmãos, há uma presença recorrente de vocábulos que se referem à cultura

autóctone daquela região, como “curumins”(17), associados aos vocábulos árabes como

103 A união da oralidade de minorias foi notada também pelo crítico Raymond L. Williams porém com ênfase na importância de agregar estas vozes à história oficial. No artigo “A ficção de Milton Hatoum e a nova narrativa das minorias na América Latina”, Williams aproxima Hatoum e Vargas Llosa pela formação de uma história híbrida, oral e, portanto, não oficial. Raymond L. Williams aproxima Hatoum de Vargas Llosa, primeiramente, pela similaridades que estes têm com Flaubert, principalmente, no que diz respeito: ao controle do narrador, à consciência dos diversos pontos de vistas; à linguagem minimalista; à presença de outros idiomas e à supracitada formação de uma minoria híbrida. É interessante notar como Williams já começa a apontar as conexões entre estes autores, porém o crítico não analisa como estas vozes minoritárias são articuladas nos textos e outras implicações dentro das narrativas.

104 Para Frederico Krüger Aleixo no texto “O Mito de Origem em Dois Irmãos”, Halim e Domingas são narradores afluentes em Dois Irmãos. Através deles o narrador Nael estabelece a conexão com a narrativa oral já que Halim e Domingas são os principais fontes para os relatos do narrador. Um bom exemplo desta técnica está na parte 4 de Dois Irmãos onde se dá o relato do roubo de Domingas pelas freiras. A narração começa com a viagem de Domingas à sua tribo com Nael. Imediatamente, as memórias de Domingas interrompem a narração e ela se recorda da sua vida no povoado e de como foi roubada pelas freiras das missões de Santa Isabel do rio Negro. A partir daí, Nael vai construindo o passado de sua família tendo por consciência ser Domingas, sua mãe e um dos gêmeos, o seu pai (Dois Irmãos 77).

156

“narguilé” (12) ou frases inteiras como “Ya haram ash-shum”(23) sem quebras narrativas. A

mistura destas línguas aparecem metamorfoseadas em construções híbridas no texto. O encontro

entre diferentes línguas dá-se muitas vezes no livro nas partes relacionadas à culinária,

metonímia lingüística da mistura cultural amazonense:

O homem que deixara a clientela do restaurante manauara com água na boca já era um exímio cozinheiro na sua Biblos natal. Cozinhava com o que havia nas casas de pedra de Jabal al Qaraqif, Jabal Haous e Jabal Laqlouq, montanhas onde a neve brilhava sob a intensidade do azul. [...] E quando visitava uma casa à beira mar, Galib levava seu peixe preferido, o sultan ibrahim, que temperava com uma mistura de ervas cujo segredo nunca revelou. No restaurante manauara ele preparava temperos fortes com a pimenta-de-caiena e a murupi, misturava-as com tucupi e jambu e regava o peixe com esse molho. Havia outros condimentos, hortelã e zatar, talvez. (63)

Milton Hatoum manipula as situações onde as influências das diferentes línguas são necessárias

e insubstituíveis pelo português. A oralidade inesperada se baseia na mistura de diferentes vozes

(tupi, português, árabe) e não na imposição de uma pela outra.105 Não há uma interrupção no

fluxo do encontro destas minorias para construir a oralidade no livro. Considerando a estrutura

narrativa da obra, é possível dizer que a idéia sobre a relação entre escrita e oralidade é baseada

num hibridismo lingüístico.

Por sua vez, em El Hablador, as ferramentas estéticas para a representação da oralidade

machiguenga interpõem escrita e oralidade dicotomicamente na estrutura narrativa. Esta técnica

está de acordo com as teorias do lingüística Walter Ong sobre a “primary orality” ou mentalidade

oral. De acordo com o livro icônico de Walter Ong, Orality and Literacy, há uma separação clara

105 No texto “Escrever à margem da história”, Hatoum fala sobre sua experiência pessoal no contato com as diferentes culturas da sua infância e como elas se relacionavam: “Nos primeiros anos da minha infância, eu escutava os mais velhos conversarem em árabe, a história, as paisagens e os costumes de um país longínquo tornaram-se familiares para mim...Outros parentes próximos eram católicos ou cristãos maronitas, mas nenhuma religião me foi imposta: era mais importante tomar conhecimento do texto bíblico ou corânico do que optar por uma religião. Afinal, diziam os mais velhos, somos todos descendentes de Abraão”.

157

entre a oralidade e a escrita. Ao estudar as sociedades indígenas, Walter Ong chegou à conclusão

de que há uma mentalidade diferente entre culturas orais e culturas escritas, onde o pensamento

oral está ligado mais intrinsecamente à memória e à fixação.

A cultura oral favoreceria a repetição, o sentido de comunidade ao invés da individualidade,

e seria mais rítmica e poética. A linguagem oral é repleta de rimas, onomatopéias, repetições,

seqüências não lineares, canções interpoladas e ditos coloquiais. Analisando a tentativa e

incorporação da narrativa oral indígena em El Hablador, vejamos como o seguinte trecho, que

descreve o começo da caminhada dos machiguengas no capítulo III, usa o conceito de Ong para

representar a oralidade indígena:

Después, los hombres de la tierra echaron a andar... Antes, permanecían quietos ellos también. El sol, su ojo del cielo, estaba fijo. Desvelado, siempre abierto, mirándonos, entibiaba el mundo. Su luz, aunque fuertísima, Tasurinchi la podía resistir. No había daño, no había viento, no había lluvia. Las mujeres parían niños puros...Nunca faltaba qué comer. No había guerra. (El Hablador 38)

Para representar a oralidade, como diria o personagem lingüísta Edwin Schneil que convivia com

a tribo no romance, a narrativa do hablador machiguenga não apresenta hierarquias de assuntos e

mistura mitologia, sem diferença entre passado (mítico) e presente (real). O narrador começa a

narrativa em media res (sinalizado pelo advérbio de tempo Después) e utiliza esta técnica sem

pretensões de encaminhamento para um ponto de clímax narrativo, deixando fluir nos seus

capítulos as histórias, mitos e lendas machiguengas.106

Há uma perfilação episódica dos fatos com grande manipulação de flashbacks, como no

exemplo acima onde se descreve o princípio dos tempos machiguenga já depois de sua criação.

Ademais, como no exemplo citado, onde há a repetição com função agregativa das expressões

106 Para Walter Ong, a técnica de media res deve ser vista como algo original e natural de lidar com uma narrativa longa. Característica das narrativas épicas orais, para este escritor, a media res representa uma sofisticada maneira de representação do discurso oral onde há a manipulação de uma grande quantidade de episódios (144).

158

“No había..., no había...”, outras construções de frases simples com caráter descritivo, sem

intenções analíticas, e de frases curtas bastante rítmicas se estendem por toda a obra. O discurso

do hablador está repleto de estratégias e construções próprias como uso de apelação ao seu

público e estratégias conscientemente postas para parecer um texto oral.

No livro La Oralidad Escrita Jorge Marcone afirma que estas estratégias de reproduzir a

oralidade em El Hablador não correspondem à realidade machiguenga. Vocábulos específicos

indígenas usados pelo narrador-hablador como (viracochas, rabiar, daño no sentido de doença,

etc.) foram retirados do falar dos índios localizados nas serras peruanas e não das tribos

machiguengas da selva amazônica. 107 Vargas Llosa parece não estar preocupado com o

verdadeiro, mas sim com o verossímil.

O texto resolve-se no reality effect, ou a “estética da verossimilhança”, da qual falava

Roland Barthes (The Rustle of Language 148). Prova disto, é que ao final da narração o próprio

narrador-romancista sugere ser o responsável pela invenção da personagem Saúl Zuratas e,

conseqüentemente, do discurso do hablador-machiguenga. O narrador supremo de El Hablador

frusta o leitor que esperava uma representação ‘autêntica’ do discurso oral machiguenga.108

É por isso que Jorge Marcone classifica esta técnica de tentativa e representação da

oralidade em El Hablador de “re-oralización” ou “ilusión de oralidad” (La Oralidad Escrita

186). Estes termos polêmicos, porém incômodos, evitam uma posição ingênua ou pretensamente

realista sobre a possibilidade de representação oral em escrita. Desta forma, Jorge Marcone

107 Várias outras técnicas são usadas para simular o discurso oral em El Hablador como: abundante utilização do gerúndio, leísmo, loísmo, certas formas de hipérbato, indigenismos (como “pues” enfático, etc.), etc.

108 No texto “La verdad de las mentiras”, Vargas Llosa comenta sobre o compromisso da literatura com a verossimilhança de maneira mais direta: “…en los engaños de la literatura no hay ningún engaño. No debería haberlo, por lo menos, salvo para los ingenuos que creen que la literatura debe ser objetivamente fiel a la vida y tan dependiente de la realidad como la historia”(26).

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rejeita uma relação dicotômica entre escrita e fala e reformula a oralidade como uma categoria

que funciona dentro da escrita. 109

O crítico deixa claro a impossibilidade da apropriação da oralidade ou do Outro em

escrita e considera mais relevante analisar as implicações ideológicas do texto e seus conceitos

de oralidade, agente e narração. Sendo assim, é justo afirmar que o discurso de Saúl Zuratas

como hablador é construído a partir da noção de primitivo que tem o narrador e, por fim, o autor.

No artigo “El hablador de Mario Vargas Llosa y la imagen de la Amazonía en el Perú

contemporáneo”, Marcone afirma claramente que a noção de primitivo de Vargas Llosa dá uma

idéia generalizada, essencial e “natural” (137) dos indígenas, apresentando-os como “estatuas

realistas de los museos antropológicos” (140).

De forma mais específica ao gênero regionalista, a crítica argentina Josefina Ludmer

também expõe idéias similares aos conceitos de Marcone no livro El género gauchesco: Un

tratado sobre la patria. Ludmer argumenta que os autores do estilo gauchesco usam a voz do

gaucho para reproduzir a sua própria voz e agenda política (11). Portanto, é importante entender

que tanto para Milton Hatoum como para Vargas Llosa, inscrever o discurso oral em suas obras

tem uma conotação tanto estética como ideológica. Contudo, as minorias assimiladas e a

109 Este tipo de dicotomia entre escrita e oralidade faz parte de uma tendência teórica de segregar o oral do letrado, considerando-os como sistemas cognitivos puros. A maioria dos estudos clássicos como os de Harvelock e Goody, por exemplo, explica a superposição da fala pela escrita dentro de um processo evolutivo. O francês Jacques Derrida irá mostrar uma outra idéia que prova que oral já tem muito do escrito. Ele rejeita a dicotomia entre oralidade e escrita confrontando a idéia de oralidade e escrita como entidades estáticas. De modo similar, para Jorge Marcone, “Oralidade” é uma estratégia medida, um objeto de desejo ou utopia discursiva para satisfazer os objetivos pessoais do autor, portanto, a oralidade é uma categoria que funciona dentro da escrita. A ilusão da oralidade é uma maneira de representar-se num ato de comunicação, do qual não se participa, convertendo-se num objeto de estudo de seu conhecimento em lugar do espaço de interação com um sujeito (La Oralidad Escrita 198-199). Em El Hablador, a construção da narrativa é feita por um ‘não-indígena’ tentando construir um discurso oral. Para Marcone, em El Hablador o texto “machiguenga” é uma ilusão oral complementada pela outra narração, a do narrador-romancista, onde esta funcionaria como uma meta-etnografia (La Oralidad Escrita 190).

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manipulação da oralidade em Dois Irmãos e El Hablador estabelecem dinâmicas de inclusão variadas.

Em Dois Irmãos, faz-se o uso da memória e canções dentre outras técnicas para representar as oralidades árabes e indígenas. Como vimos, estas estão hibridamente apresentadas numa mesma unidade discursiva. Em El Hablador, ocorre uma segregação entre o discurso indígena e do letrado, até que ao final há uma sugestão de que os dois discursos são produzidos por um mesmo narrador, o letrado. Ora, fica claro que a visão de Hatoum sobre língua e o Outro

é de certa forma mais inclusiva do que a de Vargas Llosa, pois em El Hablador o letrado honestamente confessa sua supremacia diante os seus inventados personagens, judeu e machiguenga.

Contudo, embora os autores se diferenciem na postura inclusiva das minorias sociais na narração, ambos expõem visões similarmente pessimistas sobre as relações de poder e de assimilação destas minorias nos encontros lingüísticos na América Latina. Tanto em La Casa

Verde, El Hablador como em Dois Irmãos, há uma explícita reflexão sobre as conflituosas interações lingüísticas da região desde o período colonial e das implicações dos mais recentes processos de modernização.

As personagens Bonifácia e Jum de La Casa Verde e Domingas de Dois Irmãos são representativos da falta de inclusão no processo de interação lingüística entre a população indígena e a sociedade ocidentalizada. Dentro desta relação de poder, a afasia social das minorias indígenas condena as personagens Domingas e Bonifácia ao mutismo e, conseqüentemente, à marginalização social. Estas duas personagens tiveram trajetórias bem similares. Arrancadas de suas tribos por madres da igreja católica, elas testemunharam a violência contra suas famílias,

161

tiveram seus nomes mudados para nomes cristãos e foram vítimas de um brutal processo de

aculturação.

O desfecho de ambas personagens é uma prova do fracasso de sua inclusão à sociedade

ocidentalizada. Bonifácia, depois de aculturada no internato das freiras, termina como uma

prostituta e lhe dão o nome “Selvática”. Domingas, por sua vez, virou uma ‘empregada-escrava’

na sociedade manauara. O ensino do espanhol e do português para Bonifácia e Domingas,

respectivamente, não implicou na inclusão social mas sim em mutismo, abnegação e

subserviência social.110

Tanto Milton Hatoum como Mario Vargas Llosa parecem afirmar a impossibilidade de

inclusão das minorias indígenas nas nossas sociedades ocidentalizadas, senão for por uma

inclusão perversa. Este determinismo pessimista é pungentemente representado pelo personagem

Jum de La Casa Verde em sua tentativa frustrada de inclusão social. Ao perceber as injustiças na

venda da borracha, Jum decide criar uma cooperativa para negociar diretamente com os

compradores. Na desigual luta contra os poderosos da borracha, Jum é vencido, preso e

torturado. Em El Hablador, este mesmo personagem aparece e há uma explicação mais

abrangente sobre as razões da tortura do cacique Jum:

La causa inmediata de este salvajismo era un incidente menor ocurrido en Urakusa entre los aguarunas y un grupo de soldados...Pero la razón profunda era

110 Bonifácia e Domingas mostram a influência flaubertiana de Milton Hatoum e Mario Vargas Llosa. Muito parecidas à Félicité de Un Cour Simple de Flaubert, elas se unem pelo signo da abnegação e do mutismo social. Milton Hatoum falou claramente sobre a influência da personagem do escritor francês na construção da empregada Domingas. No texto “Por que traduzi Flaubert?”, Milton Hatoum afirma: “Alguma coisa da personagem Domingas foi inspirada em Félicité. Na hora da morte, alucinada pela visão do paracleto, ela vê no papagaio Loulou – um perroquet Amazone – a figura do Espírito Santo. Essa foi apenas uma de tantas influências conscientes...” Vargas Llosa, por sua vez, fala da leitura de textos de Flaubert durante a feitura de La Casa Verde em Historia secreta de una novela, com a palavra o autor peruano: “Fue por esta época, sumergido en pleno trabajo de La Casa Verde, que leí L'éducation sentimentale, de Flaubert”(16). No mesmo texto, Vargas Llosa fala como Flaubert também influenciou na concepção da personagem Fushía: “Elegí que fuera leproso porque esa enfermedad todavía era posible en la Amazonía y por unas espeluznantes páginas del diario de Flaubert de su viaje al Oriente…”(18)

162

que Jum había tratado de organizar una cooperativa entre los pueblos aguarunas del Alton Marañón. El cacique era un hombre empeñoso, de mente ágil, y el lingüista del Instituto que trabajaba entre los aguarunas lo animó para que fuera a seguir un cursillo a Yarinacocha, a fin convertirse en maestro bilingüe...El programa no alcanzó el objetivo que se había propuesto – la alfabetización de los indígenas de la Amazonía –, pero, en lo que concierne Jum, tuvo consecuencias imprevisibles...su contacto con la <>, hizo descubrir al cacique de Urakusa...que él y los suyos eran inicuamente explotados por los patronos con los que comerciaban. (El Hablador 73-74)

Em El Hablador, o problema da tentativa de inclusão lingüística na feitura de um país moderno e mais homogêneo é um dos temas principais da narração. O livro aborda, em específico, as atividades do Instituto Lingüístico de Verano e o trabalho dos missionários lingüístas americanos, que usavam o ensino da língua como ferramenta para propagar sua fé.

Em El Hablador, o narrador indaga a contribuição da aculturação evangelizadora dos machiguengas do Instituto de verão, que permaneceu no Peru por mais de 40 anos: “¿Había sido todo eso para bien?... ¿O más bien, de <> libres y soberanos habían empezado a convertirse en <> caricaturas de occidentales, según la expresión de Mascarita?” (El

Hablador 157) Há definitivamente uma posição ambígüa por parte de Vargas Llosa. Se por um lado, a aculturação lingüística parece uma maneira de inserir os indígenas na sociedade peruana, por outro lado, ele desconfia que isto esteja sendo feito de maneira correta.

Em Dois Irmãos, além de trabalhar a assimilação lingüística dos indígenas através da figura de Domingas, o autor adiciona o elemento imigrante para retratar o conflito lingüístico da região. O processo de assimilação do estrangeiro é retratado de forma tão conflituosa como o do indígena da região. O personagem Yakub, nascido no Brasil mas mandado pelos pais a viver no

Líbano, passa por um processo de reassimilação lingüística bastante duro. Yakub é visto como bruto, estranho, principalmente, pela sua falta de habilidade com o idioma português. Sua própria mãe o descreve como “um rude, um pastor, um ra’í” (Dois Irmãos 29).

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Assim, descreve-se a reação de Yakub ao seu duro processo de reassimilação à sociedade

amazonense: “Tinha vergonha de falar: trocava o pê pelo bê (Não bosso, babai! Buxa vida!), e

era alvo de chacota dos colegas e de certos mestres que o tinham como um rapaz rude, esquisito:

vaso mal moldado” (Dois Irmãos 30). O processo de moldar Yakub para o novo espaço passa

pela aquisição da língua híbrida amazônica, a reaquisição do português e o tupi: “Ali, trancado

no quarto, ele varava noites estudando a gramática portuguesa (...) ele foi aprendendo,

soletrando, cantando as palavras, até que os sons dos nossos peixes, plantas e frutas, todo esse

tupi esquecido não embolava mais na sua boca” (31).

Outra correlação entre o processo de assimilação dos indígenas e imigrantes ocorre com a

apresentação da aculturação dos nomes próprios. Assim como as indígenas Bonifácia e

Domingas, a imigrante Zaina também teve seu nome mudado. Ao final de Dois Irmãos o

narrador revela que o nome de Zaina, fora um ‘abrasileiramento’ do nome Zeina: “Aos poucos,

Zana me contou coisas que talvez poucos soubessem: o nome dela de batismo em Biblos era

Zeina. No Brasil, ainda criança, ela aprendeu o português e mudou o nome” (250).111 Sobre a

mudança dos nomes próprios, Derrida afirma:

... a proper name cannot be translated like another word in the language (“Peter” is not the translation of “Pierre”), what consequences can we draw from this about hospitality? This assumes both the calling on and recalling of the proper name in its pure possibility (it’s to you, yourself that I say “come”, “enter”, “whoever you are and whatever your name, your language, your sex, your species may be…. (Of Hospitality 137)

111 Em entrevista com Milton Hatoum, ele comentou que a oralidade árabe está bem representada literariamente na escolha simbólica dos nomes na obra ( Entrevista pessoal 27/05/2011). Para o autor, Halim, por exemplo, quer dizer ‘generoso’. Também, encontramos o significado de calmo e paciente para este personagem. Zeina significa “bonita”. Omar, conhecido anagrama de ‘amor’, é também o ‘poeta’, aquele que fala, ou seja, aquele que representa a poesia, a tradição oral. Vem da palavra árabe Omar, que significa “vida”. Yakub, seu irmão gêmeo, é um variante do nome Jacó, de origem hebraica. Os significados dos nomes de Yakub refletem a complexidade da personagem. Um profeta, tanto na tradição bíblica como no Alcorão, é visto como “aquele que suplanta”. Porém a história de como engana seu pai para ser abençoado na bíblia não acontece no livro sagrado dos árabes. E o narrador, Nael “o triunfante” ( do árabe intisaar), foi o único vitorioso no processo de degradação da família árabe e da própria cidade.

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A inclusão implica, de certa forma, em uma violação cultural. Há um certo determinismo da impossibilidade de assimilação completa do estrangeiro, simbolicamente representado pela língua. A isto também argumenta Derrida: “...exiles, the deported, the expelled, the rootless, the stateless, lawless nomads, absolute foreigners, often continue to recognize the language, what is called the mother tongue, as their ultimate homeland, and even their last resting place”(Of

Hospitality 87-89).

Em Dois Irmãos, há uma cena singular desta consideração sobre a língua materna como a

última morada. Zana é uma das personagens árabes mais aculturadas na trama. Ela foi convertida ao catolicismo e teve seu nome mudado, porém, a ponto de morrer, retorna à cultura árabe através da linguagem. Assim Nael descreve a sua visita a Zana no hospital: “Ela me reconheceu...Então soprou nomes e palavras em árabe que eu conhecia: a vida, Halim, meus filhos, Omar. Notei no seu rosto o esforço, a força para murmurar uma frase em português, como se a partir daquele momento apenas a língua materna fosse sobreviver” (254).

Ambos Milton Hatoum e Mario Vargas Llosa parecem defender a impossibilidade de assimilação total das minorias. Porém, há algo que os diferencia: Milton Hatoum traz a narrativa para o foro íntimo e explora as relações interpessoais. É neste momento em que há um certo humanismo aplicado no encontro lingüístico e cultural na região amazônica. Dentro do seio familiar da família árabe de Zana e Halim, desde uma perspectiva mais existencialista, Hatoum mostra como Zana e Domingas, a matriarca e a empregada, se igualam. Sobre Zana e Domingas, o avô do narrador recorda: “‘As duas rezavam juntas as orações que uma aprendeu em Biblos e a outra no orfanato, aqui em Manaus.’ Halim sorriu ao comentar a aproximação da esposa com a

índia...Pode aproximar os opostos, o céu e a terra, a empregada e patroa” (Dois Irmãos 64-65).

165

De certa forma, o tratamento com o hibridismo lingüístico por Hatoum é mais humanista do que em Vargas Llosa. Como disse Luiz Alberto Brandão sobre o texto de Hatoum, a polifonia lingüística se expressa em Dois Irmãos como: “Uma música: simultaneamente babélica por não operar com um sentido traduzível íHDQWibabélica íSRUID]HUGDLQWUDGX]LELOLGDGHFRPXQKmR compartilhamento” (281). Portanto, o compartilhamento e a profundidade psicológica na análise das relações humanas é sem dúvida o ponto forte do autor manauara.

Contudo, não há como negar que Milton Hatoum e Mario Vargas Llosa convergem na apresentação da região como um espaço polifônico sujeito a mudanças e a novos intercâmbios culturais. Em La Casa Verde, El Hablador e Dois Irmãos, as relações de poder e língua estão indissoluvelmente ligadas às condições de comunicação e, conseqüentemente, às estruturas sociais. No livro, Marxismo e Filosofia da Linguagem, Bakhtin defende a ‘palavra’ como a indicadora das mudanças sociais:

…a palavra penetra literalmente em todas as relações entre indivíduos, nas relações de colaboração, nas de base ideológica…As palavras são tecidas a partir de uma multidão de fios ideológicos e servem de trama a todas as relações sociais em todos os domínios. É, portanto, claro que a palavra será sempre o indicador mais sensível de todas as transformações sociais, mesmo daquelas que apenas despontam, que ainda não tomaram forma. (40)

Mario Vargas Llosa e Milton Hatoum irão explorar as mudanças na sociedade amazônica através dos câmbios lingüísticos. A pluralidade lingüística da região decorrente dos processos migratórios durante o período da borracha é algo tratado em La Casa Verde, El Hablador e Dois

Irmãos. A perspectiva sobre as diferentes e novas influências na sociedade amazônica parece estar mais ligada a uma visão babélica sobre pluralidade lingüística. Portanto, ao invés de inclusão, esta pluralidade sugere idéias de confusão, inacabamento, etc.

166

No panorama multicultural da Amazônia, Milton Hatoum e Mario Vargas Llosa começam a pensar sobre a região como um espaço transnacional e como os processos migratórios e as relações econômicas dentro de uma perspectiva global vão atuar nesta dinâmica. Como funcionam a formação de redes globais e a, conseqüente, recomposição das particularidades nacionais fazem parte de uma reflexão imprescindível para entender as bases das obras de Mario

Vargas Llosa e Milton Hatoum. Assim, o próximo capítulo deste trabalho será dedicado às características deste novo regionalismo estabelecido dentro de um panorama de globalização e cosmopolitismo onde a heterogeneidade triunfa sobre a homogeneidade em conflitos internos e na hierarquização de poder.

167

Capítulo III

Regionalismo e globalização

“Abrir en la monotonía de la homogeneización espacios para las incertidumbres de quienes viven en las fronteras desgarrados por fuerzas discrepantes, quienes las atraviesan para ir a otra parte, y también las preguntas de quienes conocen esas experiencias lejos de donde suceden a través de los medios de comunicación./ Quizá el arte tiene hoy posibilidad de hablarles a todos ellos. Para ampliar su elocuencia y su escala de resonancia, necesita ocuparse de la recomposición de las culturas nacionales y de lo que se construye más allá de ellas”(García Canclini “La épica de la globalización y el melodrama de la interculturalidad” 41).

Assim Néstor García Canclini teoriza sobre a obra de arte no mundo colocando em

evidência a maneira como as fronteiras nacionais estão sendo destruídas através da comunicação

globalizada num sistema capitalista mundial. A literatura, pela sua complexa relação com os

“estímulos da realidade” 112, possibilita tematizar sobre os câmbios sociais destas regiões e

redefini-los dentro de seu próprio sistema textual.

Analisando especificamente o papel das obras literárias dentro de um novo panorama

globalizante é possível notar como a recomposição dos espaços literários regionais favorece os

diálogos não mediados pelo nacional dentro de redes globais. Assim, é possível analisar no

contínuo das obras La Casa Verde, El Hablador e Dois Irmãos como a região amazônica é

redefinida nas redes estabelecidas, não só com outras regiões do Estado-nação, mas também com

os circuitos da globalização.

Na análise das obras La Casa Verde, El Hablador e Dois Irmãos, é necessário fazer

algumas distinções de periodização que irão influenciar diretamente na maneira como as

112 Antônio Cândido, conhecido por sua perspectiva de social na análise literária, escreve em seu livro Literatura e Sociedade que a criação literária obedece a estímulos da realidade. Esta é a maneira como Cândido encontra para expressar a independência do sistema textual literário de um contexto do “real”, mesmo que influenciado por ele (Antônio Cândido Literatura e Sociedade 57).

168

temáticas da globalização se articulam nas tramas. La Casa Verde é um livro escrito ainda em

um período em que os Estados-nação conheciam ainda sua autonomia já que a interdependência

econômica trazida pela globalização vem a ser proeminente no final do século XX.

Segundo Mabel Moraña, a globalização marca o início de uma integração de grande

escala – política, econômica, cultural – propiciada pelos movimentos de (des) reterritorialización,

o desenvolvimento da comunicação eletrônica e o redimencionamento de “espaço e tempo” que

fomentam as fragmentações nacionais, o ressurgimento de regionalismos e da função do

intelectual neste processo (“Indigenismo y globalización” 243).

Os livros El Hablador e Dois Irmãos se ocupam da temática da globalização devido às

circunstâncias sócio-temporais de suas produções. Isto influencia diretamente as tramas destes

livros onde, diferentemente de La Casa Verde, as similaridades são exploradas para além de uma

perspectiva nacional ou latino-americana. É possível afirmar que El Hablador e Dois Irmãos

compartilham o interesse da busca do ‘global similar’ não somente pela sua periodização mas

também por situarem-se num período de redefinição da região como um interesse global, tal qual

na observação de Mabel Moraña sobre o ressurgimento de regionalismos. Todavia, a obra La

Casa Verde será incluída nesta análise por já trabalhar com temáticas relevantes sobre

interligação global da região amazônica, como a boom econômico da borracha.

O espaço literário Amazônico é, portanto, articulado em uma escala intra e inter-nacional

pela associação de temáticas globais a outras fortemente locais. Estas associações funcionam

como ganchos para chamar a atenção para a região amazônica e sustentá-la em discussões

globais.113 Desde uma perspectiva regional, Hatoum e Vargas Llosa exploram temas relativos

113 Rogério Haesbaert faz um estudo bem interessante sobre a reconfiguração das regiões dentro do contexto de globalização no artigo “A Região, Diversidade Territorial e Globalização”. O geógrafo afirma que, com a globalização, o processo de regionalização – pressuposto metodológico de análise da região – torna-se cada vez mais complexo. Haesbaert dá três razões: 1) a maior diversidade dos agentes que atuam em múltiplas escalas; 2) 169

aos diferentes períodos de internacionalização da economia amazônica – suas conseqüentes

ondas migratórias e interconexões culturais – e o status universalizante das crescentes discussões

ambientais da região.

Redefine-se, a partir destas discussões, não só o espaço literário amazônico com seus

personagens plurais e cosmopolitas, como também se estabelecem reflexões sobre a função da

região na literatura que tem como material a contemporaneidade. As seguintes seções deste

capítulo pretendem analisar como a perspectiva regional na apresentação destes temas é

articulada nas obras La Casa Verde, El Hablador e Dois Irmãos a fim de situar o espaço literário

amazônico em uma complexa teia de relações entre o local, o nacional e global.

Na primeira seção deste capítulo, destaca-se a importância da economia globalizada na

redefinição do nacional e do global. Analisa-se como ocorre no texto literário de La Casa Verde,

El Hablador e Dois Irmãos, a articulação da região amazônica como um espaço globalizado e

como Mario Vargas Llosa e Milton Hatoum irão explorar a opressão econômica e a desigualdade

social dentro destas obras.

A. A Internacionalização da economia – as águas turvas do progresso e da modernidade

O espaço literário amazônico guarda dentro de si a ambigüidade entre o isolamento e as

conexões intra e internacionais da região. Segundo Andreas Huyssen, é importante não esquecer

que o movimento de interconectividade mundial é essencialmente econômico (“Present Pasts:

Media, Politics, Amnesia” 73-75).

mutabilidade intensa, que desafia a coesão regional; e 3) a inserção da região em processos concomitantes de fragmentação e globalização (“A Região, Diversidade Territorial e Globalização” 32).

170

Sendo assim, refletir sobre processos de internacionalização da economia na região é fundamental para análise da globalização nos livros La Casa Verde, El Hablador e Dois Irmãos.

Portanto, analisar-se-á como Milton Hatoum e Vargas Llosa situam a região num mapa hidrográfico, com nervos líquidos conectando globalmente os diferentes períodos econômicos da

Amazônia ao longo do tempo.

La Casa Verde, El Hablador e Dois Irmãos tratam dos ciclos econômicos da Amazônia como “febres”, usando a conotação de efêmeras e enfermas. Em El Hablador, Mario Vargas

Llosa é literal ao referir-se às febres econômicas da região e os seus malefícios para a selva e seus habitantes, os indígenas. O narrador-romancista explica:

...en los períodos de las <>: la del caucho, la del oro, la del palo de rosa, la de la colonización agrícola – hacia regiones cada vez más insalubres y estériles, donde era imposible la supervivencia para grupos numerosos... fragmentación, no había un solo poblado machiguenga. (El Hablador 81)

Em Dois Irmãos também há um testemunho do desenvolvimento caótico da região durante o período da borracha. Usando como exemplo o crescimento de um dos bairros mais populosos de

Manaus, o narrador Nael diz:

Educando, um dos bairros mais populosos de Manaus, que crescera muito com a chegada dos soldados da borracha, vindos dos rios mais distantes da Amazônia. Com o fim da guerra, migraram para Manaus onde ergueram palafitas à beira dos igarapés, nos barrancos e nos clarões da cidade. Manaus cresceu assim: no tumulto de quem chega primeiro. (Dois Irmãos 41)

Nas obras de ambos autores, não há articulação equilibrada entre o global e o regional e este desequilíbrio no intercâmbio cultural é visto através de uma intensa opressão econômica nos livros La Casa Verde, El Hablador e Dois Irmãos.

Enquanto há teóricos que acreditam na natural particularização do capitalismo globalizado (Robertson, Roland “The Universalism - Particularism Issue” 25) e celebram de maneira vitoriosa as conseqüências deste fenômeno global pela diversidade (García Canclini

171

Hybrid Cultures 7; Bhabha, Homi “Signs Taken for Wonder: Questions of Ambivalence and

Authority under a Tree outside Delhi, May 1817” 154); há os que acreditam que este fenômeno

gera mais desigualdades do que uma inclusão harmônica das heterogeneidades (Ianni, Octavio

211; Harvey, David 13; Moraña, Mabel, “Indigenismo y globalización” 248). Jaccques Derrida

expressa bem esta segunda opinião através de suas ressalvas sobre o processo de

“mundialização”114:

And I think that those who forget this gap should be severely criticized. Because they are then trying to hide or hide from themselves the zones of the world, the populations, nations, groups classes, individuals who in their massive majority are the excluded victims of this movement of the said ‘end of work’ and ‘globalization’. (“Globalization, peace, and cosmopolitanism” 127)115

Especificamente, sobre a América Latina, Néstor García Caclini usa o período de modernização

para chamar a atenção para este processo de exclusão decorrente da globalização do capitalismo.

Embora García Canclini tenha uma visão positiva sobre a diversidade trazida pelo movimentos

migratórios e as novas redes cosmopolitas estabelecidas neste fenômeno, ele não deixa de

reconhecer que a América Latina não teve um processo de modernização similar a outros países.

Para García Canclini, não se pode falar de um período moderno na América Latina, pois a

modernização resultou inconclusa em várias partes de seu território (Hybrid Cultures 7).

114 Em francês, o termo equivalente para globalização é mondialisation. Para Derrida, este é seu termo preferido. Derrida acredita que a palavra globalization suprime o valor histórico e social que a palavra monde implica. Enquanto o termo globalization, que vem do latim globus, sugeriria uma inclusão e completude; o termo monde vem do latim mundus, uma palavra densa em significados sociais e religiosos e sem a idéia de completude que tem a palavra “globo”.

115 O historiador francês Fernand Braudel começou sua carreira na Argélia, terra de nascimento de Derrida. Braudel, ainda baseado no modelo ‘centro e periferia’, já chamava a atenção para os pontos distantes. No livro que escreveu junto com Calatayud, há a afirmação: “Los que se hallan en el centro, o muy cerca del centro, poseen todos los derechos sobre los demás. Y eso nos lleva a la segunda cuestión anunciada: la partición de toda economía-mundo en zonas concéntricas, cada vez más desfavorecidas a medida que nos alejamos de su polo triunfante”(La dinámica del capitalismo 36).

172

Embora Vargas Llosa declare em seus discursos que a globalização seja uma forma do

indivíduo estar mais livre da opressão nacional (“The Culture of Liberty”); as suas obras

literárias vão mais além deste pensamento simplista. Se nos seus discursos políticos, ele afirma

que: “Globalization extends radically to all citizens of this planet the possibility to construct their

individual cultural identities” (“The Culture of Liberty”); nos seus romances, a perspectiva é

outra. A postura ingênua da quebra do nacionalismo como libertadora da minorias regionais

transforma-se nas suas obras de ficção em um discurso complexo onde a abertura das fronteiras

nacionais não redime um estado caótico.

No discurso de Milton Hatoum, existe uma maior congruência entre sua ficção e a sua

postura política. Em entrevista pessoal, Milton Hatoum foi literal ao afirmar que:

A globalização não acabou com a desigualdade. Nem com a presença política ou gerência dos impérios. A globalização mascara também essas desigualdades e esses conflitos. Em nome da globalização, o capitalismo virou um sistema humanista, humanitário, solidário. Isso não existe. (Personal Interview 27 05 2011) 116

Carmen Perille considera Mario Vargas Llosa pertencente a uma geração pessimista do Peru da

década de 50. Perille afirma que a literatura de Vargas Llosa possui uma visão materialista e

moderna, ainda que evoquem tradições românticas idealistas.117 Similarmente, a obra de Hatoum

recebe a crítica de Leila Perrone-Moisés, que aproxima sua literatura à dos autores pós-coloniais

116 Hatoum crê que a globalização e o processo de internacionalização da Amazônia tem a ver diretamente com a desigualdade: “O tema da globalização é o tema da dependência e isso existe ainda. Em graus diferentes mas existe”( Hatoum, Milton Interview 27 05 2011). Vargas Llosa, por sua vez, no texto “The Culture of Liberty” advoga a favor da globalização, porém no texto “La civilización del espectáculo” o autor critica a banalização da cultura atual, os efeitos da internet e dos meios da globalização (19). A visão contraditória do autor reflete-se em El Hablador, onde o narrador-romancista crê em soluções neo-liberais para a inclusão dos índios na sociedade nacional, porém há uma constatação da falência de outros períodos de “progresso” e inclusão no país.

117 Carmen Perille estabelece uma relação entre Vargas Llosa e os escritores do século XIX – sendo um deles Sarmiento – no que diz respeito ao afã modernizador que acaba incorrendo numa representação da América Latina como um continente doentio.

173

indianos, sobretudo com O Deus das Pequenas Coisas de Arundathi Roy, e seus mundos

arruinados pela colonização e desfigurados pela globalização (“A cidade flutuante: novo

romance revela amadurecimento de Milton Hatoum”).

Portanto, nas obras de ficção, às quais nos deteremos nesta análise, tanto Mario Vargas

Llosa como Milton Hatoum mostram um sistema complexo e caótico nos processos de

internacionalização econômica da região Amazônica.118 Eles situam suas histórias em longos

períodos de tempo que abarcam o momento pós-borracha (fenômeno mais distinto da iminente

internacionalização econômica da região) e representam as áreas urbanas amazônicas como

ruínas coloniais destruídas pelas forças do capitalismo. Ambos autores compartilham essa visão

acirradamente crítica da inserção da região amazônica dentro de uma economia global e

nacional.

Como já apontado na introdução do capítulo, El Hablador e Dois Irmãos se comportam

de maneira um pouco distinta de La Casa Verde. Em La Casa Verde há um enfoque no comércio

da borracha para falar sobre esses períodos de exploração destrutiva do ser humano e da selva. Já

em El Hablador e Dois Irmãos, há pontes construídas entre a representação do ciclo da borracha

e dos outros ciclos mais recentes de exploração igualmente destrutivos. Interliga-se, então, estes

períodos econômicos na região através da memória de seus narradores.

Em El Hablador, esta conexão de diferentes períodos está bem ilustrada pelas impressões

do narrador-romancista ao voltar à cidade de Pucallpa, cidade que está no caminho para visitar os

machiguengas, 23 anos após ter conhecido a tribo pela primeira vez:

118 O período da borracha, ocorrido na primeira metade do século XX, não pode ser considerado pertencente ao fenômeno da globalização. Porém, há similaridades que o conectam às características da economia global contemporânea. Segundo García Canclini, a primeira metade do século XX constituiu-se num período de transnacionalização quando houve o surgimento de relações econômicas internacionais e um maior fluxo migratório. Este processo, segundo García Canclini, culminou na globalização do final do século XX (“Globalización e interculturalidad” 131). O processo cosmopolita já iniciado nesta época continua com o desenvolvimento das economias globais e uma maior consciência dos investidores estrangeiros sobre o potencial econômico da região.

174

En los veintitrés años intermedios, aquella localidad pequeñita y polvorienta, que yo recordaba llena de casas funerarias e iglesias evangelistas, había experimentado un <> industrial y comercial, luego una crisis, y, en aquel mediodía de septiembre de 1981..., comenzaba a vivir un nuevo <>, pero esta vez por las malas razones: el tráfico de cocaína. (153)

Em Dois Irmãos, o narrador estabelece sua obra desde o período de prosperidade econômica da

Amazônia com o ressurgimento da borracha, passando pelo seu declínio até chegar na

industrialização de Manaus nos anos 70 impulsionada pelo surgimento da zona franca em 1967.

A transformação final é testemunhada pelo personagem Rochiram, um indiano atraído pela

prosperidade manauara com a instalação da zona franca de Manaus:

[Rochiram] Ouvira dizer que Manaus crescia muito, com suas indústrias e seu comércio. Viu a cidade agitada, os painéis luminosos com letreiros em inglês, chinês e japonês. Percebeu que sua intuição não falhara. (Dois Irmãos 226)119

Desta forma, percebe-se que estes diferentes ciclos econômicos (o da borracha no começo do

século XX e o período da industrialização na segunda metade do século XX) estão sobrepostos

nas narrativas de El Hablador e de Dois Irmãos. Nestes enredos não lineares, a memória tem a

função de reunir os ciclos de econômicos internacionais dentro de um todo onde se apagam as

fronteiras entre presente e passado.

A reunião entre ciclos passados e mais recentes através da memória tem uma correlação

com o equivalente apagamento das restrições a um panorama regional ou nacional. A região

amazônica vai ser vista desde uma perspectiva da memória mundial e, por conseqüência, alcança

importância num circuito global. A estratégia da memória é usada por Mario Vargas Llosa e

119 Hatoum afirma: “A globalização é um fenômeno da zona franca de Manaus, que foi de fato a primeira cidade globalizada no Brasil, nos anos 60 ainda. Então tudo isso tá presente...no livro” (Personal Interview 27 05 2011).

175

Milton Hatoum em El Hablador e Dois Irmãos para apagar as fronteiras entre tempo e espaço

formando, assim, um cronotopo amazônico em suas obras.120

Andreas Huyssen observou que dentro de um período de globalização onde a compressão

de tempo e espaço é algo notório, a obsessão com a memória vira uma preocupação emergente

nos finais do século XX (57). Além disso, sagazmente, também chama a atenção ao correlato

“processo de esquecimento” dentro da formação de uma memória global e afirma:

Perhaps one day there will even emerge something like a global memory as the different parts of the world are drawn tighter together. But any such global memory will always be prismatic and heterogeneous rather than holistic or universal. (73)

Huyssen indaga: se, por exemplo, a memória do holocausto ganha preponderância, o que

aconteceu com as memórias das ditaduras do Chile e da Argentina, por exemplo? Para Huyssen,

a resposta tem a ver com a dinâmica que envolve este processo de construção da memória global

onde existem o que ele chama de “usable pasts and disposable datas”(65). E, por que este

conceito seria importante para análise do processo de globalização dentro das narrativas de

Milton Hatoum e Mario Vargas Llosa?

Como bons escritores na periferia do capitalismo, Vargas Llosa e Hatoum alavancam o

espaço literário amazônico a um nível global através da associação das memórias locais,

“disposable datas”, com “usable pasts”. Certamente, as histórias da Amazônia não estão entre o

que se poderia classificar como usable pasts, porém fatos históricos como a Segunda Guerra

Mundial e a dizimação do povo judeu são fatos globalmente reconhecidos.

120 Bakhtin define cronotopo como a: “(...) interligação fundamental das relações temporais e espaciais, artisticamente assimiladas em literatura... [uma] categoria conteudístico-formal [que] determina (em medida significativa) também a imagem do indivíduo na literatura (Questões de Literatura e de Estética. A Teoria do Romance 211-212). A transnacionalidade da Amazônia já proporciona o encontro espaço-tempo destas obras, porém a visão contemporânea das obras permite a construção de um espaço cronotópico global.

176

Em uma pesquisa realizada por James H. Liu e Denis J. Hilton sobre memória e narrativa

global, estudantes universitários ocidentais e orientais foram indagados sobre os movimentos

mundiais mais importantes de todos os tempos. Segundo uma extensiva coleta de dados entre

estes estudantes, Liu e Hilton notaram que o evento considerado mais importante na história

mundial foi a Segunda Guerra Mundial. James Liu e Denis J. Hilton procedem às suas

conclusões: “...more generally, we argue that world war is the closest thing the human species

has to a hegemonic representation of global history” (“How the Past Weighs on the Present:

Social Representation the Role of History and their Identity Politics” 8). A história da Segunda

Guerra Mundial definiu as identidades sociais participantes deste período portanto, os alemães e

os judeus, particularmente, também estão incluídos nessa memória global. 121

A similaridade estabelecida entre o povo judeu e os machiguengas em El Hablador assim

como o desenvolvimento do tema da participação da Amazônia dentro da segunda guerra

mundial e a presença de americanos no espaço amazônico em Dois Irmãos são fatos bastante

importantes para entender a ligação entre usable pasts e disposable data nos dois livros. Usando

as tretas del débil, nas palavras de Josefina Ludmer122, Milton Hatoum e Mario Vargas Llosa

agregam a memória local e periférica à universal.

121 Numa recente conferência em Braga, Portugal intitulada “Narratives and Social Memory: Theoretical and Methodological Approaches”, James H. Liu reiterou suas pesquisas sobre a construção da história global e seu impacto no século XX falando um pouco do caso da Nova Zelândia na sua apresentação, “Towards a Psychology of Global Consciousness: Mixing Market and Organic Metaphors”. Nesta nova pesquisa, ele notou que a história nacional da luta entre colonizadores e nativos da Nova Zelândia, pelo respeito adquirido dentro da sociedade, adquiriu um status global e foi citada como um dos momentos mais importantes da história. A partir de um caso específico, James H. Liu mostrou como os eventos nacionais, por vezes, podem ser agenciados dentro da construção de uma história global.

122 Esta expressão – cunhada por Josefina Ludmer para falar sobre a literatura feminista de Sor Juana Inés de La Cruz (“Las Tretas del Débil”) – é usada aqui na significação daquilo que está “à margem”, “periférico”.

177

Além disso, ao incluir os testemunhos de regiões remotas associados às memórias globais

da Segunda Guerra ou da migração judaica, os escritores atestam como as regiões chamadas

“periféricas” também participaram dos acontecimentos do mundo. A exclusão dessas regiões de

uma memória global é correlata à exclusão econômica que funciona como uma parte obscura do

capitalismo da qual não se quer lembrar. Portanto, a memória, desde uma perspectiva periférica,

parece ratificar a indubitável desigualdade dos passados econômicos com o presente globalizado,

unidos pela marca da exclusão.

A memória do passado também tem uma função didática. Tanto em El Hablador como

em Dois Irmãos a memória funciona como algo que aponta para o futuro. Enquanto Milton

Hatoum diz em forma de alerta através das palavras do narrador: “O futuro, esta falácia que

persiste” (Dois Irmãos 263); Mario Vargas Llosa mostra como a memória dos machiguengas fez

com que eles adotassem uma outra maneira de viver. Foi por causa dos assentamentos da

borracha que esta tribo decidiu ser nômade. A memória virou mito e um indígena machiguenga

diz: “Las cosas que han sucedido pueden volver a suceder? El hierbero dice que sí. <

en alguno de los mundos, y, como las almas, pueden regresar. Será nuestra culpa si sucede, tal

vez.>> Mejor ser prudentes y tener la memoria despierta” (El Hablador 136).123

Os vestígios da modernização na estética da região funcionam como fotografias que

ajudam a memória a lembrar as transformações ocorridas pela modernização. Em La Casa Verde

o espaço é mais abrangente, então, o autor também vai mostrar como o crescimento vertical das

cidades ao redor da floresta com bastante pessimismo:

123 James H. Liu e Denis J. Hilton falam sobre esta faceta da memória/história: “Lessons from the past are often presented through drawing analysis from experience. In this way, a group can use its collective wisdom to manage present crisis through its memory of past ones, often with the aim of preventing history from repeating itself” (“How the Past Weighs on the Present: Social Representation the Role of History and their Identity Politics” 13).

178

Las aceras son anchas y bajas, los postes grises de la luz están recién pintados, ese altísimo esqueleto de cemento armado será, quizás, un rascacielo más grande que el Hotel Cristina. – El barrio más moderno se codeará con el más viejo y pobre – dice el doctor Zevallos. (La Casa Verde 501)

A cidade é um retrato das conseqüências negativas dos períodos de florescimento econômico.

Em Dois Irmãos também há o testemunho fotográfico através dos espaços das famosas palafitas

nos igarapés à margem da cidade.124 As palafitas, para onde os trabalhadores da borracha tiveram

que ir e se estabelecer, é o grande contraponto do ufanismo que nomeou Manaus como a “Paris

dos Trópicos”. No texto “The View of Manaus”, Hatoum refere-se diretamente aos que tentam

esquecer o passado não tão glorioso da cidade:

The common view that it was an exact equatorial copy of Paris is rather exaggerated…Manaus wanted to see its reflection in Paris or Liverpool, but the image in the mirror only showed the disjunction between the advanced capitalism of France and England and the backwardness of a non-industrialized economy of a peripheral region. (519)

Em Dois Irmãos, Milton Hatoum também faz um comentário sobre a degradação da paisagem

com a vinda da modernidade a Manaus no período da Zona Franca. O narrador descreve como a

casa da família árabe, microcosmo de Manaus, transforma-se num horror visual:

Os azulejos portugueses com a imagem da santa padroeira foram arrancados. E o desenho sóbrio da fachada, harmonia de retas e curvas, foi tapado por um ecletismo delirante. A fachada, que era razoável, tornou-se uma máscara de horror, e a idéia que se faz de uma casa desfez-se em pouco tempo. Na noite de inauguração da Casa Rochiram, um carnaval de quinquilharias importadas de Miami e do Panamá encheu as vitrines. (Dois Irmãos 255)

A invasão do global destrói a estética das cidades amazônicas trazendo as quinquilharias

modernas. Os produtos da loja de Rochiram mostra como os artigos supérfluos e o consumismo

dentro de um mercado de capital são trazidos pela Zona Franca de Manaus. O teórico Arjun

124 A obra de Hatoum, desde seu livro de estréia, mostra esta característica de apresentação do espaço como fotografias. A professora de literatura Moama Lorena de Lacerda Marques elaborou um estudo sobre a função do personagem Doner para a construção da cidade fotografada na obra Relato de Um Certo Oriente.

179

Appadurai chama a atenção para o fato de que os “free trade zones” são permissíveis a esta dinâmica consumista global que transforma o produto em um fetiche e enfraquece as relações de produção.

…production has itself become a fetish, obscuring not social relations as such but the relations of production, which are increasingly transnational. The locality (both in the sense of the local factory or site of production and in the extended sense of the nation-state) becomes a fetish that disguises the globally dispersed forces that actually drive the production process. (“Disjunture and Difference” 35)

Embora Appadurai fale claramente das relações transnacionais nos free trade zones, ele chama atenção para o fato de que o estado-nação é também uma força central no processo de globalização. Appadurai trabalha com o conceito de “disjunctures” para entender esta nova dinâmica complexa que acaba com a dicotomia centro e margem no processo de globalização e afirma:

The new global cultural economy has to be seen as a complex, overlapping, disjunctive order that cannot any longer be understood in terms of existing center- periphery models (even those that might account for multiple centers and peripheries). (“Disjuncture and Difference” 29)

De fato, La Casa Verde, El Hablador e Dois Irmãos mostram que analisar o período de internacionalização econômica da região amazônica durante este período da borracha deve ser feito de forma a contemplar suas relações inter e intra nacionais. O discurso equivocado da globalização como uma força meramente exterior que ajuda a florescer as culturas locais, está derrubado pela denúncia de uma desigualdade do desenvolvimento da região amazônica frente a outros países assim como às outras regiões no globo. A opressão econômica não é vista de maneira simplista, pois o nacional não pode ser considerado somente como vítima de uma processo econômico capitalista, mas também é opressor ao permitir que estas forças atuem internamente. Portanto, a pressão central sobre as regiões economicamente periféricas não ocorre somente através do global, mas também do nacional.

180

O processo de globalização não pode ser entendido como algo meramente forâneo que se origina dos centros globalizados do planeta. Segundo Saskia Sassen no texto “Spatialities and

Temporalities of the Global: Elements for a Theorization”, globalização e nacionalismo não são excludentes, pois dentro de um sistema móvil de capital existem regras fixas estabelecidas por governos locais para a realização de acordos comerciais. 125 Portanto, de certa forma, os processos globalizantes ainda estão no reino do nacional:

...global-economic features like hypermobility and timespace compression are not self-generative. They need to be produced, and such a feat of production requires capital fixity (Harvey 1982), vast concentrations of very material and not so mobile facilities and infrastructures. As such, the spatiotemporality of economic globalization itself can already be seen to contain dynamics of both mobility and fixity. (“Spatialities and Temporalities of the Global: Elements for a Theorization” 262-263)

A opressão e a desigualdade são advindas de um processo de capital duplamente nacional e internacional. Desta forma, se o Brasil e o Peru podem ser considerados como periferias da globalização, num nível interno certas regiões assumem posições centrais de poder. E é justamente através da denúncia da opressão econômica na região amazônica que os textos de

Milton Hatoum e Mario Vargas Llosa conseguem retratar a articulação do local com o nacional e o global. Nos textos de Hatoum e Vargas Llosa, a Amazônia, ferida pela lâmina da modernização, sente os dois lados do corte: um feito pelo global e o outro pelo nacional.

A exclusão dentro do país serve para maximizar a região como uma periferia da margem.

Os governos nacionais corruptos, débeis e sem infra-estrutura sucumbem a uma economia de mercado opressora, estabelecendo um sistema de desigualdade dentro do seu próprio território.

125 Saskia Sassen afirma que para haver globalização em uma área é preciso que haja regulações nacionais. Contudo, ela faz a ressalva de que, nesta dinâmica, a globalização é mais forte, o que resultaria num processo de desnacionalização. Portanto, no processo de globalização, o nacional é: “a deteriorating spatiotemporality [and] ...the global is a spatiotemporal (dis)order in the making” (276).

181

Ainda usando o tema da exploração da borracha, Milton Hatoum e Mario Vargas Llosa mostram em suas narrativas como a nação desenvolve uma infra-estrutura de instituições corruptas.

Em La Casa Verde, vê-se claramente como no período da borracha as instituições governamentais e religiosas eram participantes ativas do processo de exploração da borracha e da mão-de-obra indígena. Parte da história se passa nos princípios da década de 40, quando há uma nova demanda de borracha em um período em que o Peru podia somente negociar com o eixo dos países aliados da Segunda Guerra Mundial. O contrabando da borracha encontra neste panorama um próspero mercado.

Julio Reátegui é uma figura emblemática da aliança do governo com a exploração local.

Reátegui, governador de Santa María de Nieva, fazia parte do contrabando ilegal da borracha.

Várias vezes, Reátegui usa o governo para garantir a continuação do seu negócio ilegal. Isto está explícito no episódio em que don Fabio e Doctor Portillo, a mando de Reátegui, foram averiguar a venda da borracha pelos índios a Fushía: “...él y don Fabio se metieron por todas partes, averiguaron...y claro que fue útil ir de brazo con la autoridad, el gobernador de Santa María de

Nieva inspiraba respeto por allá” (161). Mais adiante, o mesmo doctor Portillo chega a cogitar que Julio Reátegui deva buscar o apoio do exército para assegurar seu monopólio e diz-lhe:

“Toma el avión a Lima y que intervenga el Ejército, Julio. Eso les dará un susto” (166).

O governo também é aliado da igreja na exploração da mão-de-obra das garotas indígenas. Sob a desculpa de cristianização, as freiras da missão de Nievas raptam as indígenas que acabam por virar empregadas domésticas na cidade. Quando Reátegui usa de extrema franqueza para falar sobre esta situação, ele é repreendido pelas freiras que sustentam a hipocrisia da situação: “...y en la misión recogían a essas criaturas y las educaban para ganhar unas almas a Dios, no para proporcionar criadas a las famílias, don Julio, que le disculpara la

182

franqueza” (146). Imediatamente depois desta cena, Reátegui e as madres já negociavam qual seria a indígena que ele levaria como empregada (La Casa Verde 151).

Em Dois Irmãos o autor também fala do rapto de indígenas para servir de mão-de-obra escrava na cidade. Domingas, raptada de sua tribo pelas missões cristãs, vira empregada na cidade. A debilidade do governo em tomar medidas punitivas contra as ilegalidades, como raptos e contrabandos, é correlata à debilidade do estado-nação de enfrentar uma invasão com uma infra-estrutura capenga. Milton Hatoum mostra como até mesmo num período de prosperidade, como foi o da Zona Franca, a contradição entre desenvolvimento e falta de estrutura de um estado forte faz florescer o contrabando na região. O contrabando que conecta a Amazônia ao mundo consumista também causa a ruína da família e de Omar, que se envolveu diretamente com este tipo de negócios:

A muamba era transportada nos navios da Booth Line, Omar conferia tudo no armazém número nove...Chocolate suíço, roupas e caramelos ingleses, máquinas fotográficas japonesas, canetas, tênis americanos. Tudo o que naquele época não se via em nenhuma cidade brasileira: a forma, a cor, a etiqueta, a embalagem e o cheiro estrangeiros. (Dois Irmãos 139)

A fome de consumo das pessoas faz com que o contrabando floresça nas regiões afetadas pela globalização e com governos débeis e sem estrutura de fiscalização e controle de suas riquezas.

Em El Hablador, o narrador mostra como esta debilidade é uma das grandes responsáveis pela abertura à cultura global e pela perda da identidade nacional. Falando sobre o historiador Porras

Barrenechea e sua visão contra a invasão da globalização cultural, o narrador-romancista destaca a participação do governo do Peru, que por falta de recursos chegou a recorrer a seus serviços:

Para él [Porras Barrenechea] era intolerable que, por culpa del Instituto, los indígenas selváticos aprenderían probablemente a hablar inglés antes español... La labor de los lingüistas...por lo menos en teoría, estaba cautelada pelo Ministerio de Educación, que debía dar el visto bueno a sus proyectos...De otro lado, la infraestructura montada por el Instituto en la Amazonía, con su flotilla de

183

hidroaviones y su sistema de comunicaciones...también era aprovechada por el país, ya que los maestros, funcionarios y militares de remotas localidades selváticas solían, y no sólo en casos de emergencia, recurrir a ella. (El Hablador 70-71)

Desta forma, o argumento de Vargas Llosa está numa linha contínua ao que Milton Hatoum

argumenta em Dois Irmãos. O estado-nação, sem forças para lutar contra um processo

economicamente global, não tem nenhum poder de resistência e as ligações globais aumentam.

Interessante notar como o personagem Omar não conseguiu estabelecer nenhuma conexão com

São Paulo durante sua estada nesta metrópole brasileira. Porém, quando vai aos Estados Unidos,

o amazonense–libanês faz uma direta correlação hidrográfica entre os dois territórios: “Queridos

mano e cunhada, Louisiana é a América em estado bruto e mesmo brutal, e o Mississipi é o

Amazonas desta paragem...Mesmo selvagem é mais civilizada que vocês dois juntos” (Dois

Irmãos 122). A economia globalizada domina o espaço local e prova que quem tem o controle

neste novo espaço é o financeiro.

A fragmentação nacional é evidente nas três obras e mostra o tema do isolacionismo e da

visão barbárica da Amazônia dentro dos estados-nação, Brasil e Peru. A região amazônica,

especificamente, neste processo de globalização evidencia um outro fato muitas vezes escondido,

mas que nas obras de Mario Vargas Llosa e Milton Hatoum são bastante enfatizados: o

isolacionismo da Amazônia frente às outras regiões e a sua frágil assimilação ao nacional.126 A

126 A Amazônia nega geograficamente qualquer teoria superficial de nação limitada por fronteiras (Anderson, Benedict Imagined Communities). A fragilidade da assimilação da Amazônia dentro da comunidade imaginada de suas nações suscita incertezas sobre a manutenção da nacionalidade da região. A internacionalização da Amazônia ou o mito de sua perda, tema ainda em voga hoje, expõe não somente o medo do poder imperialista dos países localizados no centro da globalização, como também enfatiza a falta de completa assimilação desta região ao território nacional.

184

região parece não estar inteiramente incorporada pelo estado-nação, por vezes, revelado por um

constante medo da perda de seu território.127

Com esta fragmentação, em La Casa Verde, El Hablador e Dois Irmãos, há uma

constatação de desequilíbrio entre as regiões que implica as conseqüências da globalização na

sua dupla face: a de marginalização nacional e global. Mario Vargas Llosa também retrata em La

Casa Verde e El Hablador a relação desequilibrada do progresso entre a capital Lima e as

regiões periféricas. Em La Casa Verde, Mario Vargas Llosa usa os espaços periféricos de

Iquitos, Santa Maria de Nievas e Piura para simbolizar o desequilíbrio desta relação.

A chegada da modernização em Piura, por exemplo, é representada pelo estabelecimento

do prostíbulo, que causa a degradação moral da cidade, apoiado pelas leis do centro de poder. “...

La Casa Verde era una afrenta a Piura, pero ¿qué hacer? Las leyes dictadas en esa podrida capital

que es Lima amparaban a don Anselmo, la existencia de la Casa Verde no contradecía la

Constitución ni era penada por el Código”(124). A capital, que teria a suposta função de civilizar

as regiões periféricas do país, funciona como agente da modernização no que ela tem de mais

cruel e, ironicamente, não civilizada.

No livro El Hablador a fragmentação entre centro e periferia, vista numa correlata

separação de narrativas, divide o Peru em dois mundos, dois tempos: o moderno/civilizado e o

atrasado/primitivo. Assim o narrador-romancista de El Hablador relata a sua chegada à região

amazônica: “Cuando llegábamos a las tribus, en cambio, tocábamos la prehistoria. También eso

era el Perú y sólo entonces tomaba yo cabal consciencia de ello: un mundo todavía sin domar, la

Edad de Piedra...”(71) A visão entre civilização e barbárie de Sarmiento parece estar

127 A pesquisa realizada pelo Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea) e divulgada pelo website G1 revela que 50% dos entrevistados acreditam "totalmente" ou "muito" que nos próximos 20 anos o Brasil será alvo de agressão militar estrangeira em função de interesses sobre a Amazônia (Leão, Naiara).

185

completamente transposta à dinâmica do livro. Se em La Casa Verde, há somente uma constatação de uma modernização caótica e inconclusa, em El Hablador o afã de civilizador do narrador parece ter crescido. O crescimento da visão neoliberal de Vargas Llosa, neste romance escrito nos anos 80, revela-se através de um narrador ávido por um processo “civilizador completo”.

A fragmentação nacional e seu processo de modernização em Dois Irmãos é apresentado de maneira complexa pois aos antagonismos regionais, adiciona-se o elemento estrangeiro. O narrador Nael mostra claramente a discrepância do progresso nas regiões do país durante o período de florescimento da economia brasileira nos anos 50 em Dois Irmãos. Isto está bem claro na cena em que ele descreve a euforia pelo progresso durante a inauguração de Brasília em contraposição com a situação da Amazônia no mesmo período:

Noites de Blecaute no norte, enquanto a nova capital do país estava sendo inaugurada. A euforia, que vinha de um Brasil tão distante, chegava a Manaus como um sopro amornado. E o futuro, ou a idéia de um futuro promissor, dissolvia-se no mormaço amazônico. Estávamos longe da era industrial e mais longe ainda do nosso passado grandioso. (Dois Irmãos 128)

Em Dois Irmãos, há uma colisão frontal entre centro e margem e seus níveis de desenvolvimento. Este confronto é simbolizado pelo antagonismo dos irmãos descendentes de

árabes, Omar e Yaqub. Omar representa o Amazonas e Yaqub representa São Paulo, centro econômico e “civilizador” do país. Yaqub chega a ser chamado pela sua mãe de “Meu filho paulista” (Dois Irmãos 60). Este é o irmão responsável pela venda da casa dos pais para investidores estrangeiros, fato que representa simbolicamente a caída da cidade de Manaus, derrotada pela modernização. Yaqub assume uma identidade que nega a região e se interpõe como inimigo do local e representante do centro de poder econômico. Yaqub “usando a máscara do que havia de mais moderno no outro lado do Brasil...se sofisticava, preparando-se para dar o

186

bote” (Dois Irmãos 61). Milton Hatoum, além de mostrar a dinâmica entre as diferentes regiões

também fala como o elemento do imigrante irá se comportar dentro deste novo panorama

cultural e econômico. 128

Assim, a diversidade e heterogeneidade trazidas pelo novo fluxo de imigrantes

reconfigura os espaços e a identidades regionais. Nas águas turvas de uma região que viveu

também tantos períodos de internacionalização econômica, o crescimento da interdependência

entre diversos lugares no globo não assegura um processo harmônico de desenvolvimento. Por

isso, a próxima seção irá analisar como a hipermobilidade trazida pelo fenômeno da globalização

fomenta os processos de (re) territorialização dentro de um espaço regional literário.

B. Correntes migratórias: os afluentes globais na Amazônia

Tal como durante os equinócios climáticos, a distribuição ampla e global do capital

também provocou ondas gigantes de mobilidade no espaço amazônico. A mistura líqüida das

águas salgadas e doces do periódico fenômeno natural da Amazônia simboliza bem o encontro

dos milhares de (i)migrantes que passaram por seu território. Em um contexto de

hipermobilidade mundial, as ondas migratórias dentro de um contexto de um mundo globalizado

ajudam na observação de como o espaço local pode ser incorporado na literatura dentro de um

espaço global.

128 Ana Maria Amélia Guerra compara a relação entre os dois gêmeos como a luta entre o dionisíaco (Omar) e o apolíneo (Yaqub). Yaqub representa, então, o apolíneo civilizador que domina a cidade. Neste contexto, Guerra afirma: “O dionisíaco transforma-se em cinza, mas o apolíneo é instaurado: a cidade torna-se vertical; índios e migrantes do interior esmolam nas escadarias das igrejas; no porto, os cargueiros achatam barcos e canoas; e na praça, o aviário silencia. A loucura de Omar não foi maior nem menor que a ambição de Yaqub ... A razão apolínea em Yaqub coloca a capital em sintonia com outras metrópoles do país, iniciando os alicerces da Manaus contemporânea”(“O mito e o lugar em Dois Irmãos” 203).

187

Sobre este tema, o teórico John Tomlinson menciona a transformação das localidades:

...globalization promotes much more physical mobility than before, but the key to its cultural impact is in the transformation of localities themselves...This is undoubtedly an uneven and often contradictory business, felt more forcibly in some places than others, and sometimes met by countervailing tendencies to re- establish the power of locality. Nevertheless deterritorialization is, I believe, the major cultural impact of global connectivity. (29-30)

A região amazônica emerge nas obras de Milton Hatoum e Mario Vargas Llosa como espaço local no cenário globalizado justamente neste processo de desterritorialização ao qual se refere

Tomlinson. O ciclo da borracha (indiscutivelmente um dos ciclos econômicos mais relevantes para a região) e a posterior inserção da Amazônia dentro da economia globalizada propiciaram aos romances La Casa Verde, El Hablador e Dois Irmãos férteis eixos espaço-temporais para analisar os movimentos migratórios na região.

É necessário esclarecer que El Hablador (1987) e Dois Irmãos (2000), por razões cronológicas, suscitam reflexões sobre a mobilidade cosmopolita de uma economia global cada vez mais interdependente. Enquanto El Hablador e Dois Irmãos lançam ganchos para o mundo contemporâneo, La Casa Verde mostra um processo incipiente de mobilidade baseado mais especificamente no período de decadência da exploração da borracha. Por isso, a análise nesta seção se deterá aos dois primeiros livros citados incluindo alguns exemplos de La Casa Verde, quando pertinente.

A princípio, é importante destacar como o tema da mobilidade é algo crucial para as tramas e a construção dos seus personagens nos dois romances em questão, Dois Irmãos e El

Hablador. Em El Hablador, por exemplo, os principais personagens da obra – o narrador – romancista, o judeu mascarita e a tribo machiguenga – são respectivamente correspondentes aos símbolos do observador cosmopolita, ao do judeu errante e à tribo nômade. Estes símbolos de mobilidade, que estão em primeiro plano na obra, são as bases de sustentação da narrativa.

188

A migração em Dois Irmãos também é um tema bastante relevante na trama por

entrelaçar os diferentes movimentos migratórios ocorridos na região amazônica. O livro centra-

se na história de uma família libanesa que chegou ao Brasil durante a imigração dos árabes no

começo do século XX. Esta família é o ponto de partida da história mas não o fim da

representação dos fluxos migratórios da região. Hatoum começa o romance com a família árabe

integrada e vai até os mais recentes imigrantes da Amazônia que foram à região por conta da

abertura econômica da zona franca de Manaus.129

O impacto desses imigrantes no espaço amazônico é evidente nas obras de Milton Hatoum

e Mario Vargas Llosa e o poder da localidade reside justamente na perspectiva periférica destes

escritores sobre estes mesmos processos de mobilidade. A crítica do brasileiro Luiz Costa Lima

faz-se relevante sobre este argumento pois ele classifica Hatoum e Vargas Llosa como escritores

de narrativas que tematizam a marginalidade das terras que a contêm. Luiz Costa Lima foi um

dos primeiros a incluir Milton Hatoum dentro de um mesmo grupo de escritores, no qual está

Mario Vargas Llosa, pela comum utilização desta perspectiva periférica sobre o espaço sócio-

cultural. Assim explica Luiz Costa Lima a similaridade entre Hatoum e estes escritores:

Pois o Amazonas e, dentro dele, Manaus, não é simples cenário para uma ficção: Hatoum consegue o que se configura em escritores do Sul norte-americano e do chamado Terceiro Mundo: a narrativa desse espaço sociocultural, sem ser causalmente determinada, não se confunde com as narrativas européia e norte- americana. (347)

129 Lourival Holanda fez algumas observações sobre a personagem imigrante na obra de Milton Hatoum. Holanda afirma que o escritor manauara inclui a figura do imigrante em sua literatura explorando temas de isolamento, nostalgia e recuperação das raízes culturais. Embora estes temas sejam relevantes nas obras de Hatoum, segundo Holanda, estas obras se diferenciam da ‘literatura de imigrantes’ pois falam de “culturas em trânsito” (341). Para Holanda, Hatoum não tenta ser um ‘tradutor’ nem da cultura árabe nem da manauara. Portanto, o rótulo de literatura de imigração é algo que não cabe na análise da obra de Hatoum. Em entrevista, o próprio Milton Hatoum falou sobre este rótulo recebido no começo de sua carreira. Para Hatoum, a idéia de literatura de imigração para sua obra foi resultado de “uma leitura apressada de Walnice Nogueira Galvão”, uma das primeiras acadêmicas a fazer um estudo relevante sobre a sua obra (Hatoum Personal Interview 27 05 11).

18 9

É interessante notar que a visão periférica destes autores sobre os (i)migrantes propiciam a formação de novas relações, também periféricas, num nível global. Em uma nova dinâmica, as obras de Milton Hatoum e Mario Vargas Llosa vão exaltar a importância da localidade como formadora de redes globais descentralizadas. A presença de judeus, árabes e indianos em El

Hablador e Dois Irmãos (as personagens inusitadas mencionadas no capítulo II) são os fios condutores destas redes globais descentralizadas. Estas conexões deixam o discurso do imperialismo cultural norte-americano e europeu mais irrelevante e as heterogeneidades regionais comunicam-se sem intermediários.

Em ambos livros El Hablador e Dois Irmãos, há o encontro entre o Oriente Médio e o

Amazonas através de personagens periféricas dentro da hierarquia econômica do planeta. Em El

Hablador, o “outro” do oriente médio e o “outro” amazônico são aqueles que estão à margem da sociedade. Em Dois Irmãos, a relação entre os imigrantes do Oriente e os habitantes do

Amazonas também é marcada por uma equivalência no seu status de “outro”. Os personagens imigrantes árabes e os locais da Amazônia, comumente exotizados, encontram-se e equivalem-se no espaço amazônico.

Em El Hablador, o ‘outro’ judeu e o ‘outro’ machiguenga são colocados em equivalência pelo narrador-romancista, o grande narrador de toda a obra. Neste encontro descentralizado é onde metade da narração se estrutura e as articulações entre os personagens amazônicos e os estrangeiros se engendram. Os ganchos para outros territórios não são somente feitos por esta associação do “judeu Mascarita” com o hablador machiguenga, há também inúmeras oportunidades em que outras conexões são feitas entre outros personagens e espaços.

Por exemplo, o próprio narrador-romancista entrelaça diversos lugares através de suas viagens por diferentes espaços na narrativa. Estes territórios adquirem independência nas

190

conexões com relação às suas nacionalidades – sendo esta uma outra estratégia de descentralização das conexões globais. Um dos episódios que mostra bem esta tentativa de networking é a descrição do tempo em que o narrador-romancista conduziu a série de programas para a televisão estatal peruana.

Durante o período de produção do programa, sugestivamente intitulado La Torre de Babel, o narrador-romancista visita vários lugares tais como Rio de Janeiro, Buenos Aires, Berkeley na

Califórnia e até as mais remotas regiões do Peru. O programa vai interligando diversas regiões como num mosaico cultural. As regiões mundiais se comunicam formando conexões de outras ordens, mais além de uma conexão entre nações, com uma ênfase na busca das culturas periféricas dentro das diferentes fronteiras nacionais.

Um dos fatos mais emblemáticos desta busca de relações descentralizadas com outras regiões das periferias do mundo é a “descoberta” de habladores em diferentes culturas. O narrador-romancista estabelece as conexões entre diferentes povos ao fazer a equivalência entre os habladores machiguengas com o trovador do Nordeste brasileiro e também o seanchaí irlandês. O narrador-romancista comenta que foi a partir do hablador machiguenga que as conexões com outros lugares do mundo se estabeleceram para ele. Ou seja, deixa-se claro, assim, que a Amazônia pode conectar-se com outras particularidades mundiais:

Por culpa de ellos, todos los personajes o instituciones que pudieran parecerse o de alguna manera asociarse en el mundo con el hablador machiguenga habían ejercido una instantánea fascinación sobre mí. Como los troveros ambulantes de los sertones bahianos...Pero todavía más que el trovero del sertón, fue el seanchaí irlandés quien me había evocado, y con qué fuerza, a los habladores machiguengas. (El Hablador 158-159)

Assim como os nordestinos brasileiros são párias da economia capitalista do Brasil, os irlandeses também carregam um fardo similar no Reino Unido. Estas regiões, periféricas em termos

191

econômicos, se comunicam pelo símbolo positivo da riqueza cultural de suas culturas orais, mas também por ter em comum a marginalidade socioeconômica.

Os árabes de Dois Irmãos também dividem com a índia Domingas, personagem representante do nativo amazônico, o sentimento de serem outcasts na região amazônica. Ao sentir-se distante do local, Yaqub identifica o seu status de pária social com a indígena

Domingas, estreitando assim os laços com esta personagem. É através da formação deste elo que o narrador Nael justificou o fato de ter herdado sua casa no quintal dos fundos de Yaqub:

Ele[Yaqub] havia escrito uma carta para Zana, revelando que sentira muito a morte de Domingas, a única pessoa a quem confiara certos segredos, a única que não se separara dele durante a infância. Na vida dos dois havia coisas em comum que Zana teimou em ignorar. (Dois Irmãos 256)

Yaqub sentia-se tão à margem dentro do âmbito familiar quanto Domingas. Simbolicamente, a relação de dois personagens marginais, Domingas e Yaqub, consolidou-se nos passeios que eles faziam pelas periferias de Manaus durante a infância de Yaqub. Ou seja, o encontro entre o

‘outro’ do Oriente Médio com o ‘outro’ nativo amazônico é sugestivamente colocado no espaço periférico de Manaus, para onde outros outcasts ou esquecidos sociais foram empurrados. É no episódio em que Yaqub vai à periferia de Manaus com o narrador Nael que se revela a íntima relação existente no passado entre Yaqub e Domingas. Assim Nael descreve o passeio com

Yaqub:

Yaqub começou a remar, às vezes erguia o remo e acenava aos moradores das palafitas, ria ao ver os meninos correndo nos becos do bairro, nos campos de futebol improvisados, ou escalando o toldo de barcos abandonados. "Eu brincava muito por aqui", ele disse. "Vinha com a tua mãe, nós dois passávamos o domingo nessas margens…escondidos nos aningais." Parecia estar contente, não se irritava com o cheiro de lodo que empestava as praias do igarapé. Apontou uma palafita na margem esquerda, um pouco antes da ponte metálica. Encostamos a canoa, Yaqub observou a casinha suspensa, subiu uma escada e me chamou. Era um barraco que fora pintado de azul, mas agora a fachada estava coberta de manchas cinzentas; no seu interior havia duas mesinhas e tamboretes; uma mulher que arrumava as mesas perguntou se íamos comer. Yaqub respondeu com uma

192

pergunta: ela se lembrava dele? Não, não fazia idéia: quem era? "Eu e a mãe deste rapaz vínhamos comer jaraqui frito na sua casa. Depois a gente nadava no igarapé...eu jogava futebol e empinava papagaio..." Ela recuou, observou-o dos pés à cabeça…Ela trouxe uma fotografia em preto-e-branco: Yaqub e minha mãe juntos, numa canoa, em frente da palafita, o Bar da Margem. Ele olhou a imagem, quieto e pensativo, e procurou com os olhos o lugar da margem em que algum dia fora feliz. (Dois Irmãos 114-115)

Nesta parte da narrativa além de mostrar a ligação forte entre Yaqub e Domingas, até então

desconhecida dentro na narrativa, Hatoum também dá uma vívida descrição das áreas

marginalizadas da cidade de Manaus. No texto “The View of Manaus”, Milton Hatoum mostra

um grande conhecimento sobre o processo de formação da cidade de Manaus, sobre a

contribuição dos migrantes e imigrantes na formação da cidade e, principalmente, sobre o

processo de marginalização destes indivíduos refletido no seu próprio mapa geográfico.130

Hatoum discute como a formação das periferias de Manaus está relacionada à idéia de

colocar esta massa pobre, tanto a nativa como a imigrante, fora do centro pretensamente

cosmopolita da cidade: “In the city planned according to a bourgeois idea badly acclimatized to

the equator, it was necessary to think about ways of isolating the outcasts...” (519) No próprio

Dois Irmãos, Hatoum dá o testemunho sobre a formação desta periferia e como os árabes, que já

estavam na região, identificavam-se e relacionavam-se com os novos imigrantes, os futuros

párias sociais:

Halim havia melhorado de vida nos anos do pós-guerra. Vendia de tudo um pouco aos moradores dos Educandos, um dos bairros mais populosos de Manaus, que crescera muito com a chegada dos soldados da borracha, vindos dos rios mais

130 Neste mesmo texto, Milton Hatoum argumenta sobre a importância dos migrantes/imigrantes para a cidade de Manaus dizendo: “Apart from the native population (Indians and mestizos), a large number of people from the northeastern region came to the city escaping from the drought of the sertão and settled in the rubber-tapping areas and the cities of the Amazon region. Many foreigners (Portuguese, Spaniards, Italians, Germans, British, Moroccans, Syrians and Lebanese) landed in Manaus well into the 1880s. Ten years later, these immigrants were responsible for the dynamism of trade, urban services and tertiary activities in the city where 50,000 people then lived” (519).

193

distantes da Amazônia. Com o fim da guerra, migraram para Manaus, onde ergueram palafitas à beira dos igarapés, nos barrancos e nos clarões da cidade. (Dois Irmãos 41)

Os marginais da sociedade, empurrados para as periferias de Manaus, e os imigrantes árabes têm em comum a invisibilidade social. Como Lídia Santos percebe em Relato de um Certo Oriente, obra de estréia de Milton Hatoum, o autor manauara “dá status de personagem literário à presença “invisível” dos cosmopolitas que foram até Manaus, especialmente dos árabes, na

Amazônia e no Brasil” (“Milton Hatoum e os Seringueiros: o Contemporâneo Cosmopolitismo

Amazônico” 182). Mais do que isso, Milton Hatoum interliga todos esses invisíveis sociais no espaço amazônico, de maneira similar à associação dos machiguengas e com judeus em El

Hablador.

De fato, a Amazônia dos árabes, assim como a dos pobres migrantes nordestinos que foram viver nas periferias de Manaus, é tão invisível como a dos imigrantes judeus e dos nômades machiguengas no Peru. Dar visibilidade aos personagens indígenas, aos árabes e aos pobres no espaço literário amazônico não só implica uma visão mais holística sobre as conseqüências negativas das conexões globais mas também aponta para possibilidades de relações entre as periferias mundiais no enfrentamento com esta invisibilidade social.

A teoria de Antonio Negri e Michael Hardt é bastante pertinente para pensar em como enfrentar esta invisibilidade social das periferias econômicas pois eles acreditam que a multidão formada pelos imigrantes da globalização adquire poder de transformação ao incitar o processo democrático através da construção de similaridades. Assim Negri e Hardt descrevem assim a importância do papel dos imigrantes:

Migrants recognize the geographical hierarchies of the system and yet treat the globe as one common space, serving as living testimony to the irreversible fact of globalization. Migrants demonstrate (and help construct) the general commonality

194

of the multitude by crossing and thus partially undermining every geographical barrier. (Multitude War and Democracy in the Age of Empire 134)

Para Antonio Negri e Michael Hardt, portanto, a multidão de imigrantes é uma prova inegável

dos efeitos da globalização pois não permite que as fronteiras nacionais ofusquem as

multiplicidades de pessoas e os diferentes níveis globais de desenvolvimento. Os imigrantes são

os grandes responsáveis pela fluidez cultural que engendra conexões globais e impede de tratar o

território como um leito onde a cultura se espraia estaticamente.

Gilles Deleuze e Félix Guattari argumentaram no livro A Thousand Plateaus sobre o

processo de formação e conexão entre as diferentes multiplicidades mundiais. Segundo Gilles

Deleuze e Félix Guattari: “All multiplicities are defined by the outside: by the abstract line, the

line of flight or deterritorialization according to which they change in nature and connect with

other multiplicities” (A Thousand Plateaus 9).

A desterritorialização rompe uma configuração estabelecida através de "linhas de

fuga" que interrelacionam objetos para assim construir um novo agenciamento.131 Os imigrantes

que viajam para outros lugares levam consigo elementos que vão-se conectar aos do território de

destino formando um novo e peculiar panorama. Negri e Hardt, que muito devem à teoria de

Guattari e Deleuze, utilizam este pensamento sobre as multiplicidades para desenvolver a teoria

sobre a criação dos “commons”(196-202)132.

131 Deleuze e Guattari falam de maneira geral sobre (de)territorialização e mostra como, nestes processos, novas configurações de poder e resistência são formadas. Eles falam como este processo é uma alternativa para pensar sobre um território (geográfico, político, conceitual) como uma configuração em constante mudança de vários e inter-relacionados agenciamentos de objetos e enunciações de um determinado período histórico (A Thousand Plateaus 9).

132 O que Hardt e Negri chamam de “commons”, que é extremamente produtivo nesta visão, também pode ser produzido e mobilizado através dos “sofrimentos” globais. Isto é bem pertinente para analisar as obras de Milton Hatoum e Mario Vargas Llosa, pois estas enfatizam as similaridades dos problemas globais, que é uma maneira de criar uma mobilização diante destes problemas. Isto se assemelha ao “international cycle of struggles”(Multitude 195

Os imigrantes, portanto, também são responsáveis pela criação de uma base comum entre

as diferentes multidões num nível global.133 A equivalência deste pensamento sob um aspecto

cultural é algo que pode ser discutido na obras Dois Irmãos e El Hablador em seus respectivos

espaços regionais/ globais.

Nestas obras, as conexões com as multiplicidades de culturas feitas através dos

imigrantes são vistas como elos entre a região amazônica e o mundo. Em Dois Irmãos, os

diferentes imigrantes se reúnem e ajudam na construção de uma base comum de similaridades.

Nesta narrativa, a construção de bases de similaridades entre os imigrantes da época da borracha

acontece exemplarmente no espaço do “Biblos”, restaurante do pai de Zana. Este era o ponto de

encontro para os imigrantes da Amazônia do período do auge da exploração da borracha:

Desde a inauguração, o Biblos foi um ponto de encontro de imigrantes libaneses, sírios e judeus marroquinos que moravam na praça Nossa Senhora dos Remédios e nos quarteirões que a rodeavam. Falavam português misturado com árabe, francês e espanhol, e dessa algaravia surgiam histórias que se cruzavam, vidas em trânsito, um vaivém de vozes que contavam um pouco de tudo…(Dois Irmãos 47- 48)

Esta mesma algaravia de gente, que aparece no restaurante de sugestivo nome, também se

perpetua no armazém do árabe Halim no final do período áureo da borracha.134 O armazém de

War and Democracy in the Age of Empire 213), sobre o qual também falam Hardt e Negri. É importante observar, todavia, que os autores acreditam que a multidão e o povo não são conceitos excludentes e que se complementam dentro de um mundo globalizado. Portanto, a criação de commons não é algo que não se encerra em si mesmo e nem exclui o conceito de povo.

133 Os estudos de Antonio Negri, Michael Hardt em Multitude War and Democracy in the Age of Empire e Paolo Virno em A Grammar of the Multitud tendem a mostrar a multidão de uma forma positiva, ao incluir a multiplicidade sem necessariamente ir de encontro ao uno. Além disso, contrariamente ao pensamento de Hobbes sobre a classe burguesa, para Antonio Negri e Michael Hardt não é o surgimento de uma nova classe que exige uma nova forma de governo, a multidão ascende a partir de uma nova forma de soberania engendrada pela globalização (Multitude War and Democracy in the Age of Empire 11).

134 Biblos é uma cidade Fenícia de grande movimentação humana. A mais velha a ser continuamente habitada segundo a UNESCO, Biblos atraiu vários arqueólogos em busca de traços dos diferentes povos que passaram por aí. Não é por coincidência que Milton Hatoum usa o nome da cidade árabe para nomear o ponto de encontro de diferentes multiplicidades na Amazônia. Em mais um exercício de criação de correspondências, este paralelo

196

Halim, situado num lugar onde “o movimento era de multidão: um vaivém noite e dia” (Dois

Irmãos 64), continua reunindo os viajantes e imigrantes que dividem suas vidas e constroem um novo agenciamento através das estórias, dos contos e lendas indígenas.

Como Arjun Appadurai afirma, é inegável dizer que o mundo atual está em constante movimento, e isto inclui idéias, ideologias, pessoas, bens, imagens, mensagens, tecnologias e técnicas (Appadurai “Grassroots Globalization and the Research Imagination” 5). A fluidez destas informações, dentro de um espaço que reúne a multiplicidade, permite que a região

Amazônica seja um lugar que reúna estas similaridades. Esta troca de informação e constante movimento também permitem que as particularidades da Amazônia possam encontrar correspondências em outros espaços globais.

Em El Hablador, por exemplo, o narrador-romancista mostra como a cultura indígena penetra como flechas a paisagem européia durante sua estada em Florença:

Vine a Firenze para olvidarme por un tiempo del Perú y de los peruanos y he aquí que el malhadado país me salió al encuentro...Había visitado la reconstruida casa de Dante, la iglesita de San Martino del Vescovo y la callejuda donde la leyenda dice que aquél vio por primera vez a Beatrice, cuando, en el pasaje de Santa Margherita, una vitrina me paró en seco: arcos, flechas, un remo labrado, un cántaro…Pero fueron tres o cuatro fotografías las que me devolvieron, de golpe, el sabor de la selva peruana. (El Hablador 7)

As fotos do fotógrafo italiano, Gabriele Malfatti, que trabalhava para a franqueada revista americana Vogue, trouxeram para o narrador-romancista o Peru, que ele declarara querer esquecer com sua ida a Florença. Desde as primeiras linhas de sua narrativa, o narrador- romancista confronta-se com um mundo em inevitável correspondência (El Hablador 7).

É através deste encontro que o narrador-romancista estabelece conexões entre a tribo nômade amazônica com a multidão de imigrantes que invade a Europa de seu tempo. Depois de também vale para mostrar as similaridades entre a Biblos – outrora centro de atração dos fluxos migratórios e hoje à margem do desenvolvimento mundial – e a Amazônia.

197

sair da galeria onde as fotos da tribo dos machiguengas estavam sendo exibidas, o narrador- romancista se depara com uma similar “tribo nômade” na cidade européia de Florença. Assim, o narrador-romancista começa coser as linhas que unirão em similaridades a região amazônica e a

Europa: “Antes de salir a enfrentarme una vez más con las maravillas y las hordas de turistas de

Firenze, todavía alcancé a echar una última ojeada a la fotografía. Sí. Sin la menor duda. Un hablador” (El Hablador 10).

As hordas de turistas vão ser usadas pelo narrador-romancista para representar a multidão nômade do mundo atual. Em El Hablador, as hordas que invadem a cidade de Florença encontram uma paisagem que mais se parece a de uma floresta tropical e sua natureza a protege do elemento estrangeiro. A comparação do espaço de Florença com o Amazônico é reiterada no

último capítulo da obra onde o narrador-romancista traz os elementos da floresta para descrever o espaço europeu:

Los florentinos tienen fama, en Italia, de ser arrogantes y de odiar a los turistas que los inundan, cada verano, como un río amazónico. En este momento es difícil comprobar si ello es cierto porque casi no quedan nativos en Firenze. Han ido partiendo, poco a poco, a medida que aumentaba el calor, cesaba la brisa de las tardes, se escurrían las aguas del Arno y los zancudos tomaban posesión de la ciudad. Éstos son verdaderas miríadas volantes que resisten victoriosamente a repelentes e insecticidas y se encarnizan contra sus víctimas…sobre todo en los museos. ¿Son las zanzare de Firenze los animales totémicos, ángeles protectores de Leonardos, Cellines, Botticellis, Filippos Lippis, Fray Angélicos? Parecería. Porque es al pie de estas estatuas, frescos y cuadros donde he recibido la mayor parte de las picaduras que me han averiado brazos y piernas ni más ni menos que cada vez que viajo a la selva peruana. (El Hablador 225)

Os zancudos, insetos locais que se encontram perto das estátuas e museus, parecem estar protegendo a cultura clássica da invasão estrangeira quando seus nativos não estão presentes para defendê-la. O calor tropical e os insetos do lugar parecem pintar os elementos da floresta dentro da Europa e (con)fundir ambos espaços. Assim, o espaço amazônico e o europeu se encontram nos problemas similares que suas multidões têm em comum.

198

O fluxo de informação, que dá forma a estes encontros e correspondências culturais, não

são vistos de forma idealizada ou utópica por Milton Hatoum e Mario Vargas Llosa. 135 Se por

um lado, os autores tiram proveito de um dinâmico fluxo de informação para criar as

correspondências entre a região amazônica e outros espaços, em Dois Irmãos e em El Hablador

há também o testemunho de como este fluxo pode criar uma falsa impressão da coexistência das

multiplicidades. As diferentes culturas globais podem, por vezes, relacionar-se de forma caótica

e assumirem formas de efígies, simulacros de culturas.

Segundo David Harvey, há uma impressão geral de que a globalização e, obviamente, os

fluxos migratórios, proporcionam um maior conhecimento sobre as diferentes culturas do

planeta. De acordo com Harvey, ter acesso a outras culturas não implica necessariamente no

“conhecimento” sobre o outro. Em verdade, Harvey acredita que a multiplicidade e a grande

variedade de informações que chegam com estas migrações podem fazer parte de um processo

extremamente superficial. Assim, Harvey reflete sobre este efeito do fluxo de pessoas e

informações dentro do processo econômico da globalização:

The general implication is that through the experience of everything from food, to culinary habits, music, television, entertainment, and cinema, it is now possible to experience the world’s geography vicariously, as a simulacrum. The interweaving of simulacra in daily life brings together different worlds (of commodities) in the same space and time. But it does so in such a way as to conceal almost perfectly any trace of origin, of the labour processes that produced them, or of the social relations implicated in their production…A strong sense of ‘the Other’ is replaced, he [Chambers 1987] suggests, by a weak sense of ‘the others’. (“Time-

135 Para enriquecer o debate atual sobre a contribuição das multidões no processo de transformação das relações globais é interessante ver a perspectiva de Negri e Hardt em cotejo com a de Paolo Virno, com quem dividem grandes similaridades. Virno, contudo, pensa na multidão de uma maneira mais realista do que Negri e Hardt. Negri e Hardt estariam buscando através de seu discurso produzir e influenciar esta massa transformadora. Ou seja, enquanto Negri e Hardt falam de uma luta que busca uma classe, Virno fala de uma classe que procura uma luta. No prefácio do livro de Virno A Grammar of the Multitud, Sylvère Lontriger comenta sobre a multidão revolucionária da perspectiva de Negri e Hardt da seguinte forma: “the problem is that a multitud capable of doing such a feat doesn’t exist – or doesn’t exist yet. At best, it remains a taunting hypothesis, and a promising field of investigation” (A Grammar of the Multidud 15).

199

space compression and the postmodern condition” 13)

Em El Hablador, a (re)constituição de culturas em simulacros no espaço global contemporâneo é sugerida em um dos episódios da narrativa. Depois de uma de suas inúmeras visitas à exposição dos machiguengas na galeria de arte, o narrador-romancista recebe a recomendação da funcionária da galeria de arte para ir assistir a um concerto de um grupo de indígenas peruanos nas ruas de Florença. Assim o narrador-romancista descreve a sugestão da funcionária:

...frente a la Chiesa de San Lorenzo, cada noche, un <> tocaba música peruana con instrumentos típicos: por qué no iba a verlo, me traería también recuerdos de la Patria. (Le obedecí, fui y descubrí que los Incas eran dos bolivianos y dos portugueses de Roma que ensayaban una incompatible mescolanza de fados y carnavalitos cruceños.) (El Hablador 227-228)

A confusão no reconhecimento de um grupo de portugueses e bolivianos como se fossem um conjunto de Incas sugere a criação de visões superficiais, ou até mesmo equivocadas, sobre as culturas de diferentes povos. Ao mesmo tempo que os encontros são criativos e propiciam novas expressões culturais dentro do espaço europeu, em El Hablador há uma afirmação evidente que a ignorância sobre estes povos marginais, que invadem as grandes cidades européias em multidões, faz com que eles sejam ainda vistos como uma grande massa amorfa e indiferenciada.

O testemunho desta cultura do simulacro está presente também em Dois Irmãos e bem exemplificada pelo representante do capitalismo globalizado atual na obra: o indiano Rochiram.

Rochiram, emblemático investidor da economia global, se conforma com um conhecimento superficial do território onde faz seus negócios. Quando foi ao armazém para falar com Rânia e, finalmente, cobrar a casa de sua família para a construção do hotel, Rochiram usa o espanhol, e não o português, para comunicar a sua proposta:

Poucos dias depois da briga, Rochiram foi à loja conversar com Rânia…Foi breve, seco, sequer mencionou o nome dos gêmeos. Disse em espanhol: "Trouxe

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uma proposta para encerrar o assunto". Entregou um envelope lacrado e se despediu. (Dois Irmãos 236)

O uso bastante comum de uma imagem genérica para os americanos abaixo da linha do Equador

é manifestada aqui desde uma perspectiva lingüística. 136 Neste caso, o aspecto lingüístico

simboliza como, dentro do panorama comercial contemporâneo, reconhecer a diversidade é algo

secundário. Há uma afirmação velada, portanto, de que a globalização expõe diferentes culturas

umas às outras, porém o que prevalece é o financeiro, não o conhecimento das diversas culturas

globais.137

Ainda enfatizando as conseqüências negativas da desterritorialização na globalização, em

Dois Irmãos fala-se sobre a própria mudança dos valores e relações locais decorrentes da maior

intercomunicação das localidades. Ainda, em Dois Irmãos, Hatoum mostra esta mudança através

do “crescimento” financeiro proporcionado durante a Zona Franca de Manaus. O armazém de

Halim – antes um ponto de encontro de pessoas da floresta, caixeiros viajantes, visitantes de

diversos lugares – muda quando os produtos do estrangeiro e de São Paulo substituíram seus

antigos artigos de venda. Com o crescimento, Halim deixa de sua filha Rânia tomar conta da loja.

Rânia pára de vender ‘fiado’ e um novo sistema de relações prospera: “Assim, ele se distanciava

136 A ignorância sobre as diferenças entre os países da América do Sul revela a superficialidade de conhecimento em geral sobre os países periféricos e, neste caso específico, os países latino-americanos. Este é um dos temas mais importantes para a literatura de imigrantes brasileiros produzida nos Estados Unidos, conhecida por “brazuca”. O texto de Andrade Tosta “Latino, eu? The Paradoxical Interplay of Identity in Brazuca Literature” é uma boa referência para estudar como estes escritores representam a estratégia de “entrar e sair”,“in and out” (581), do estereótipo do latino como uma maneira de manipular a discriminação em seu favor.

137 Sobre a criação de simulacros culturais, em entrevista pessoal, Milton Hatoum relembra o último conto de seu livro A Cidade Ilhada, “Dançarinos na última noite”, que fala sobre o uso do estereótipo dos indígenas pelo comércio da cidade para vender a imagem procurada pelos turistas: “Tá no último conto de A Cidade Ilhada, já é empregado da zona franca que prá conseguir o emprego, ele se transforma em índio fake e vai dançar uma dança indígena, que não é dança indígena...num hotel de selva, que é famoso [aonde] já foi o Bill Clinton [ e é] totalmente antiecológico”(27 May 2011).

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das pessoas do interior, que antes vinham à sua porta, entravam na loja, compravam, trocavam ou simplesmente proseavam...”(Dois Irmãos 132)

O passado, junto com as antigas mercadorias da loja, é melancolicamente guardado na sobreloja de onde Halim também se refugiava para observar os “quiosques, camelôs, mendigos e bêbados em meio aos urubus, atento para o burburinho da rua que era uma extensão do Mercado e do atracadouro do pequeno porto” (Dois Irmãos 132). O “burburinho” de uma sociedade globalizada traz, portanto, uma maneira de relacionar-se menos humanitária, mais excludente, onde as diversidades não são vistas e/ou incluídas de maneira equilibrada.

Em Dois Irmãos, de fato, predomina o testemunho mais enfático da marginalização das multidões do processo da economia global. Esta camada da população assiste ao rápido desenvolvimento como um edifício que se erige diante deles e só os permite, na inferioridade de seu olhar, uma contemplação do inatingível. Na cena emblemática da inauguração do hotel de

Rochiram, a metáfora parece funcionar muito bem para explicar a cena:

Na noite da inauguração da Casa Rochiram… Diz que veio gente importante de Brasília e de outras cidades, íntimos de Rochiram. Só não vi gente da nossa rua, nem os Reinoso. Do lado de fora, a multidão boquiaberta admirava as silhuetas brindando nas salas fosforescentes. Muitos permaneceram no sereno, esperaram o amanhecer e abocanharam as sobras da festança. Manaus crescia muito e aquela noite foi um dos marcos do fausto que se anunciava. (Dois Irmãos 255- 256)

Hatoum usa de ironia para criticar a celebração de uma pseudo prosperidade marginalizadora e mostra bem como a maior parte da população local não compartilhou a “boa fase” econômica de

Manaus. À maioria da população local só foram reservadas as migalhas dos avanços econômicos. A prosperidade econômica é, portanto, excludente e a assimilação da multidão globalizada é falha.

Ainda sobre as conseqüências negativas da globalização e mais especificamente sobre as

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massas que migram em decorrência deste fenômeno econômico, é importante trazer as palavras de Cornejo Polar do texto “Una heterogeneidad no dialectica: sujeto y discurso migrantes en el

Peru moderno” onde ele criticava: “[la]celebración casi apoteósica de la desterritorialización

(García Canclini, 1990)”(841). Para Cornejo Polar, a migração e a diversidade causadas por uma maior integração econômica não são determinantes para a formação de um espaço harmônico.

Analisando a territorialização dos imigrantes nos livros de Mario Vargas Llosa e Milton Hatoum, pode-se notar que os autores retratam a relação migrante com o local de maneira bem diferente de uma possível utopia.

Em sua maioria, os imigrantes das periferias são incorporados a um sistema caótico, algo bastante coerente com a visão pessimista sobre modernização vista na seção anterior. Em La

Casa Verde, El Hablador e Dois Irmãos, o contrabando passa a ser o sistema econômico de maior assimilação dos que (i)migram para a região. Usando o período da borracha para constituir o tempo histórico da narrativa, La Casa Verde apresenta o imigrante Fushía integrado ao Peru, desde as margens e de maneira ilegal, como um contrabandista. Fushía, que fugira da lei no

Brasil, encontrou no contrabando da borracha e na exploração da mão-de-obra indígena uma maneira de enriquecer rapidamente em terras alheias.

Em Dois Irmãos, também há o testemunho da incorporação de imigrantes através do contrabando. O falso inglês Wyckham, em verdade Francisco Keller, era um contrabandista que junto com Omar cuidava das mercadorias importadas ilegalmente na Amazônia. Francisco Alves

Keller, apelidado pelos locais como Chico Quelé, era:

Neto de alemães pobres, gente que enriqueceu e perdeu tudo...Quelé tinha outras coisas: o melhor uísque, caramelo inglês nos bolsos. Blusas de seda. Frascos de perfume francês. E mais, o máximo: um Oldsmobile...Quelé adaptou o motor, as rodas, os vidros e o pára-choque de outro carro. Fez da carcaça um carro conversível, meio troncho: monstro que impressiona. (Dois Irmãos 158)

203

A transformação do carro de Quelé é uma metáfora parecida ao seu processo de assimilação mal engendrado e caótico. Enquanto Fushía, em La Casa Verde, recorre à exploração dos indígenas, em Dois Irmãos, Chico Quelé juntamente com Omar arruínam o comércio dos vendedores locais com seu contrabando. Em ambos os livros, o processo econômico global refletido nas ações destes imigrantes desencadeia-se em conseqüências negativas para as pessoas da região.

No caso extremo de Fushía, de La Casa Verde, mais do que possuir um intuito explorador, o nipônico-brasileiro considerava os indígenas, principalmente as mulheres, como seres inferiores. Ao trazer suas amantes indígenas para a casa, Fushía não viu o menor problema em deixá-las com sua esposa Lalita pois as indígenas não estavam no patamar de humanidade de

Lalita. Assim o personagem Fushía explica por quê não entendia os ciúmes de sua esposa para o

VHX DPLJR $TXLOLQR ³í 3HUR HUDQ FKXQFKDV í GLMR )XVKtDí FKXQFKDs, Aquilino, aguarunas, achuales, shapras, pura basura, hombre” (La Casa Verde 193).

Embora estas personagens exploradoras do local consigam o enriquecimento rápido, algo tão desejado por estes imigrantes, no final da trama não lhes resta nada a não ser o fracasso.

Fushía acometido de lepra é levado para a ilha de São Paulo onde deverá passar o resto de seus dias. Em Dois Irmãos, Omar, ao começar seu envolvimento com o contrabando, também entra num processo de decadência que o levará à prisão.

A progressiva alienação deste personagem da região amazônica, através de seu envolvimento com o contrabando, o distanciou das pessoas do local e de sua própria personalidade. Omar, que no princípio da trama era o irmão mais conectado com a região, ao final é repudiado por todos os membros da família e da comunidade. Omar torna-se o símbolo de uma localidade que se distancia de si mesmo, do que era antes da “modernização” chegar.

Portanto, através da observação das personagens imigrantes nos livros de Milton Hatoum e

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Mario Vargas Llosa é possível afirmar que as conseqüências negativas da globalização estão diretamente relacionadas à maneira como o imigrante (representante da influência econômica e cultural estrangeira) interage com o local e seus habitantes.

Em Dois Irmãos e El Hablador, isso está bem nítido na maneira como os autores tratam os diferentes personagens (i)migrantes no livro. Basicamente, os imigrantes que procuram a territorialização através de uma maior conexão com o local são os que tem maior probabilidade de serem bem-sucedidos. Esse é um aspecto importante para entender o papel da região na dinâmica dos espaços globalizados de migração. Para tanto, Milton Hatoum e Mario Vargas

Llosa fazem em Dois Irmãos e em El Hablador, respectivamente, uma distinção importante entre a territorialização de alguns imigrantes – remanescentes da onda migratória da borracha – e os novos imigrantes da globalização – ainda não conectados ao local. Os personagens Halim e Don

Salomón Zuratas são exemplos de imigrantes que conseguiram ser bem sucedidos pelo desejo inicial de integrarem-se a regiões periféricas do Brasil e do Peru, respectivamente.

Halim é visto como conhecedor exímio do espaço amazônico embora ainda esteja bem vinculado à sua cultura árabe. O narrador Nael chegou a dizer sobre Halim: “...conhecia o bairro melhor do que eu; conhecia e era conhecido” (Dois Irmãos 120). Halim assimilou também as crenças do local e os caboclos da região eram também seus companheiros. Assim, o seu neto

Nael continua a descrevê-lo:

...era dado a apreciar presságios: as tantas antevisões que escutara dos caboclos companheiros dele, filhos da mata e da solidão. Tinha tendência a crer piamente nessas histórias, e se deixava embalar pela trama, pela magia das palavras. (Dois Irmãos 148)

Em Dois Irmãos, os árabes da família de Halim já estão completamente adaptados ao local e representam já o hibridismo cultural da região, que tem Halim como o maior representante. Ele é o personagem emblemático da fusão entre o Oriente e o Amazonas. Obviamente, deve-se

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considerar a parcialidade de Milton Hatoum, um descendente de libanês, e a maneira bem particular como ele fala do vínculo dos árabes com o local amazônico.

Em textos críticos, Hatoum sempre insiste em afirmar como a imigração árabe dentro do espaço amazônico não implicou numa segregação cultural. No artigo “Brazilian Arabesques”, por exemplo, Hatoum critica qualquer visão de confronto entre os imigrantes árabes no Brasil e mostra como a literatura brasileira está repleta destes personagens:

In Brazil, these characters also appear in several of the novels of Jorge Amado, and in the last book published before his death, The Discovery of America by the Turks. Still in Brazilian literature, the extraordinary novel by Raduan Nassar, Lavoura Arcaica, or Amrik, by Ana Miranda, among many other books, evoke the presence of the Arab immigrants. Alberto Mussa published O Enigma de Qaf, a novel whose historical perspective, set in the time before Islam, recalls a skillfully woven Borgesian storyline…Unfortunately, some "intellectuals" prefer to construct tenuous and fantastic theories about the "clash of civilizations," about the "evil" rooted in Islamic or Asian societies, and more recently, about the social and cultural dysfunction that Mexican and Hispanic immigrants can occasion in white, puritanical New England society.

É importante notar que, embora haja uma grande parcialidade pois se trata de um escritor de descendência libanesa, ainda assim deve-se reconhecer que Hatoum proporciona uma importante reflexão sobre os preconceitos sofridos pelos imigrantes globais baseado em argumentos de conflito cultural. O autor chega a citar os hispânicos que vão a Nova Inglaterra como um exemplo claro de como o discurso de choque cultural pode ser usado para criar uma visão deturpada dos imigrantes no país.

Através deste argumento, Hatoum ratifica não somente uma maior harmonia dos imigrantes árabes com o espaço brasileiro, como também enfatiza a participação e contribuição

árabe para a cultura e, especificamente, para a literatura brasileira. Assim como Jorge Amado e

Raduan Nassar, citados pelo autor no trecho acima, Milton Hatoum também dá o seu testemunho de como os filhos de imigrantes árabes durante a primeira metade do século XX foram aos

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lugares mais recônditos do Brasil. Desta forma, Hatoum percebe como a integração dos personagens árabes no espaço literário brasileiro ocorreu massivamente através das regiões periféricas do país.

Em El Hablador, os judeus são os representantes de uma migração anterior ao período de globalização e Don Salomón, pai de Saúl Zuratas, é seu personagem representativo. Ele refugiou-se no Peru onde se estabeleceu e se casou com uma criolla de Talara. Don Salomón, similarmente a Halim de Dois Irmãos, montou o seu próprio negócio no interior do Peru e ali prosperou. Foi só com o seu deslocamento de Talara à capital peruana que passa a haver um conflito cultural entre ele, o pai judeu de mascarita, e a mãe peruana – conflito aparentemente inexistente quando eles moravam no interior do Peru.

Ao irem a Lima, a mãe de Saúl Zuratas passa a ser discriminada pela comunidade judaica, sua saúde deteriora e ela, finalmente, falece. O preconceito quanto ao casamento não vem do fato de ser uma criolla mas, sim, de uma pessoa do mundo rural. Ao descrever os judeus de Lima, por exemplo, Mascarita afirma como estes haviam-se transformado em burgueses e não aceitavam a sua mãe pela sua origem humilde. Em conversa com o narrador-romancista,

Mascarita narra a história de sua mãe:

– Mi mamá era una criollita de Talara... – la comunidad [judía] no la aceptaba no tanto por ser una goie como por ser una criolita de Talara, una mujer sencilla, sin educación, que apenas sabía leer. Porque los judíos de Lima se habían vuelto unos burgueses compadre. (El Hablador 14)

Mascarita chega a afirmar categoricamente que esta mudança para a capital peruana fora o princípio e razão da tragédia familiar. O narrador-romancista relata esta confissão que o fez Saúl

Zuratas sobre a sua família:

Su problema, decía, era que su padre había ganado demasiado con el almacén allá en el pueblo, tanta que un buen día decidió trasladarse a Lima. Y desde que se habían venido a la capital el viejo le había dado por el judaísmo. No era muy

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religioso allá en el puerto piurano, que Saúl recordara....nunca se preocupó de inculcarle a Mascarita que pertenecía a otra raza y a otra religión que la de los muchachos de pueblo. (El Hablador 11-12)

Nesta passagem, está clara a oposição entre a prosperidade da família na região de Talara versus a decadência familiar na capital peruana, onde a idéia de segregação cultural e de “diferença” começa a ser inculcada. Ao ligar-se a um centro de poder nacional, os imigrantes parecem negar o seu status de “outro” periférico partindo para uma visão essencialista de cultura. Os judeus que viviam no centro do poder econômico nacional procuravam articular suas diferenças em conformidade com o jogo de identidades articuladas desde o centro do Peru.

É importante notar que Saúl acaba por seguir a trajetória contrária à de seu pai. Saúl, o

Mascarita, recusa-se a viver em Lima e, até mesmo, a ir até a Europa após ganhar uma bolsa de estudos preferindo viver entre os nativos amazônicos da tribo machiguenga. A trajetória do

Mascarita vem desde interior do Peru, passa pela capital da nação e vai até à localidade mais isolada da selva amazônica. É ao final desta jornada que Saúl se encontra, finalmente, em harmonia na sociedade machiguenga onde escolheu viver. No último capítulo, narrador- romancista analisa esta trajetória de Mascarita em forma de conclusão:

…una paria entre las sociedades del mundo en las que, como los machiguengas en el Perú, vivió insertada pero no mezclada ni nunca aceptada de todo. Y seguramente también en aquella solidaridad influyó, como solía bromearle yo, ese enorme lunar que hacía de él un marginal entre los marginales…Puedo llegar a aceptar que entre los adoradores del espíritu del árbol…Mascarita se sintiera más aceptado – GLVXHOWRHQXQVHUFROHFWLYRíTXHHQWUHORVMXGtRVRORVFULVWLDQRVGHVX país. De una manera muy personal y sutil, yéndose al Alto Urabamba a nacer de Nuevo, Saúl hizo su aliá. (El Hablador 233)

A aceitação social de Mascarita está vinculada à conexão com o local amazônico e seus habitantes, ou seja, à sua escolha do elemento amazônico em detrimento do poder central nacional – representado por Lima – e do poder global – representado pela Europa. Em Dois

Irmãos, a crítica ao imigrante Yaqub está justamente no fato de sua dupla negação da outridade,

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da Amazônia e do Líbano, através de sua ligação com o centro do poder econômico nacional:

São Paulo.

Se durante a sua infância, como visto anteriormente, Yaqub vinculava-se ao local através da sua amizade com a indígena Domingas e seus longos passeios pelas periferias de Manaus, com o passar do tempo, este vínculo se enfraquece. O narrador Nael dá seu testemunho desse distanciamento simultâneo de Yaqub da Amazônia e do Oriente. Durante o jantar com outros descendentes de libaneses, Nael percebe este distanciamento nas atitudes de Yaqub: “...ele nada falou da engenharia e suas façanhas. Nem era preciso: tudo dava tão certo na vida dele que os atropelos e o purgatório do dia-a-dia só pertenciam aos outros. E nós éramos os outros” (Dois

Irmãos 118). Aqui fica bem claro o afastamento, ocorrido na vida adulta de Yaqub, dos “outros”

– neste caso, os imigrantes árabes e os descendentes indígenas.

A separação configura-se através do duplo rechaço de Yaqub às localidades periféricas como uma forma de enfrentar sua condição marginal na sociedade. Na mesma ocasião do jantar,

Yaqub é interpelado pelo árabe Talib se não sentia saudades do Líbano, ao que Yaqub responde:

“Não morei no Líbano, Talib...Me mandaram para uma aldeia no sul, e o tempo que passei lá, esqueci. É isso mesmo, já esqueci quase tudo: a aldeia, as pessoas, o nome da aldeia e o nome dos parentes. Só não esqueci a língua...” (Dois Irmãos 119) Primeiramente, é importante perceber que, desde sua visão conservadora e centralista, Yaqub não considera as “margens” do

Líbano como pertencentes ao país. A equivalência seria a mesma, então, no que diz respeito à relação do Amazonas com o resto do Brasil.

Yaqub é a favor de um governo centralista que, desde São Paulo, controla, moderniza e tenta homogeneizar a nação. Esta postura de Yaqub é reiterada na narrativa através de sua aliança com os militares do governo ditatorial do Brasil de então. A dupla negação das regiões

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marginais é colocada em Dois Irmãos como uma forma de afirmar que a recusa da multiplicidade em favor de um essencialismo nacional é o grande problema do qual o imigrante deve-se esquivar.

Portanto, tanto nas obras de Milton Hatoum como nas de Mario Vargas Llosa, o processo de reterritorialização dos imigrantes implica em evitar corroborar com um centralismo de poder, que em Dois Irmãos é representado pela capital econômica do país, São Paulo, e em La Casa

Verde e em El Hablador pela capital peruana, Lima. Tanto o personagem Salomón Zuratas como

Halim, por sua maior conexão com as regiões periféricas do Peru e do Brasil, respectivamente, mostram a importância da conexão com as regiões descentralizadas de seus países.

Na obra Dois Irmãos, mais especificamente, Milton Hatoum aproveita a análise da conexão entre os imigrantes com as regiões remotas do Brasil para distinguir e, assim, criticar a dinâmica da globalização e a nova onda de imigração ocasionadas pela abertura da zona franca de Manaus no final da década de 60. Em Dois Irmãos, os personagens imigrantes mais recentes, que foram para a Amazônia atraídos pelo incentivo da zona franca, não estabelecem conexões nem com a regiões periféricas do país nem mesmo com os centros nacionais de poder. Ao analisar a diferença de comportamento entre os imigrantes árabes e os novos imigrantes da zona franca, a narrativa parece questionar a possibilidade de reterritorialização destes imigrantes que são representantes de uma economia contemporânea sem centros e em constante movimento.

Em Dois Irmãos, o indiano Rochiram, como já visto, é o personagem emblemático desta nova imigração global ocasionada na Amazônia pela zona franca de Manaus. Rochiram viajava constantemente por diferentes países e o único elo que o ligava a estas localidades era o financeiro. Ele vivia em trânsito, construindo hotéis em vários continentes e fora atraído pelo desejo de investir na região Amazônica, porém seus investimentos não implicariam em sua

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reterritorialização na região. Abaixo, o narrador Nael descreve as relações estabelecidas pelo

personagem Rochiram com os lugares onde tinha negócios:

Era como se morasse em pátrias provisórias. O que se enraizava em cada lugar eram os negócios. Ouvira que Manaus crescia muito, com suas indústrias e seu comércio. Viu a cidade agitada, os painéis luminosos com letreiros em inglês, chinês e japonês. (Dois Irmãos 226)

O narrador caracteriza Rochiram como um homem que não se reterritorializa em nenhum lugar.

O imigrante que não se reterritorializa é o imigrante da globalização, que tem como pátria a

bandeira econômica e, por isso, está fadado a permanecer sob o status de estrangeiro. Este tipo

de imigrante não se equaliza aos imigrantes marginais da economia nem aos nativos amazônicos

em Dois Irmãos. Zana, por exemplo, foi categórica na distinção entre o investidor Rochiram e as

pessoas da família árabe. Em ocasião de um jantar em que Rochiram foi à casa dos personagens

árabes, Zana mostra dificuldade em compreender o indiano. Assim o narrador descreve a cena:

“Quando Zana não compreendia a algaravia de Rochiram, ela perguntava ao filho: ‘O que esse

estrangeiro está querendo dizer?’”(Dois Irmãos 226)

Há uma clara distinção entre Zana e sua família e o “estrangeiro” Rochiram. Enquanto os

imigrantes árabes são vistos como já pertencentes ao local, o imigrante da zona Franca é visto

como um estranho ao local. O status de estrangeiro de Rochiram é (re)confirmado pelas

impressões da representante da região amazônica na obra: a índia Domingas. Como o próprio

narrador Nael relatou: “Domingas não se sentia à vontade com aquele estrangeiro, mais estranho

do que todos nós juntos” (227).138

138 Interessantemente, também em La Casa Verde já se falava sobre uma distinção entre a figura do forasteiro, o que permanece distante da região, e o imigrante, aquele que realmente se reterritorializa. O narrador afirma a personagem forasteira como inerte à vida do local: “Los forasteros ignoran la vida interior de la ciudad” (La Casa Verde 44). Falando sobre a modernização de Piura, Vargas Llosa mostra como a cidade era aberta ao imigrante, mas só quando abriu as portas para a “modernização” caótica, a cidade sucumbe a uma falência moral. O narrador explica que: “[Piura] Recibe a los forasteros en triunfo, se los disputa cuando el hotel está lleno. A esos tratantes de ganado, a los corredores de algodón, a cada autoridad que llega, los principales los divierten lo mejor que puede...” 211

Portanto, a importância da região está relacionada não só, e simplesmente, à associação

das diferentes periferias mundiais da globalização mas também a como elas se comportam em

frente ao local para onde imigram. Destarte, embora o indiano Rochiram venha de uma periferia

global, sua condição de periférico não o redime de agir negativamente em outra região periférica.

Assim, a localidade é um elemento chave para a exposição das conseqüências do movimento da

globalização pois a relação que o imigrante estabelece com a região para onde migra é

determinante na maneira como os negócios e as relações humanas vão ser implementados.

Portanto, a crescente desconexão de Yaqub e de Omar com Manaus e a posterior

afiliação destes ao estrangeiro Rochiram determinaram o declínio da família árabe em Dois

Irmãos. Paralelamente, a desconexão de D. Salomón com a zona periférica de Talara também

representou a ruína de sua família. Em contrapartida a estes casos, a inicial intimidade de Don

Salomón com o espaço de Talara e a perene sintonia de Halim com os nativos amazônicos são

vislumbres de harmonia entre o local e o imigrante globalizado. Desta forma, a região adquire

uma grande importância por apresentar uma possibilidade de enfrentar o impasse vivido pelos

personagens entre as turvas conseqüências da globalização e a positiva conjuração das

multiplicidades de culturas.

1. Direitos do imigrantes e indígenas na aldeia global

Se por um lado, a conexão com o local projeta-se como uma chave de solução para o

imigrante desterritorializado no espaço global, por outro lado, os problemas especificamente

pertinentes ao local também podem-se beneficiar com os debates sobre direitos do indivíduo

global, trazidos à tona de maneira mais intensa pela imigração do mundo globalizado. Em La

(La Casa Verde 45) Este tipo de hospitalidade não foi suficiente e a modernização trouxe o prostíbulo da casa verde e com ele os forasteiros, que não estabeleciam nenhuma conexão com a cidade.

212

Casa Verde, El Hablador e Dois Irmãos o tema dos direitos dos nativos amazônicos, que estão à

margem de um conceito de cidadania nacional, é fundamental na construção da trama.

Mais especificamente em El Hablador e Dois Irmãos, a ausência dos direitos indígenas

na realidade social de sua região é algo discutido no mesmo patamar em que são debatidos os

direitos dos imigrantes do mundo globalizado. Um tema específico e importante para região

amazônica é elevado a um nível de compreensão e empatia mundial e relido como pertinente e

presente na sociedade global de hoje. Isso é importante porque além de situar o problema do

indígena como algo presente e não de um passado colonial, este tipo de articulação deixa claro

que as leis vigentes, ineficazes/ incompletas para a situação do imigrante, também são ineficazes

para os indígenas no mundo contemporâneo.

Jacques Derrida constata a impossibilidade de aplicar o sistema de direitos estabelecido

no século XVIII aos problemas contemporâneos, pertinentes à regulação dos direitos dos

imigrantes em nações ocidentais. Segundo Derrida, o maior obstáculo para existência de leis que

assegurem estes direitos está ligado ao princípio da “hospitalidade”. Derrida acredita que este

princípio é uma aporia, ou seja, não há uma hospitalidade absoluta. Utilizando as acepções e

etimologias lingüísticas da própria palavra “hospitalidade”, Derrida explica o impasse que o

princípio da hospitalidade traz consigo:

…the host, he who offers hospitality, must be the master in his house, he…must be assured of his sovereignty over the space and goods he offers or opens to the other as stranger…There is almost an axiom of self-limitation or self- contradiction in the law of hospitality…it governs the threshold – and hence it forbids in some way even what it seems to allow to cross the threshold to pass across it. It becomes the threshold. (“Hostipitality” 14)139

139 Derrida também usa como argumento as etimologias da palavra “hóspede” no sânscrito e no grego – que significam ‘aquele que coloca em risco o marido ou amante’ (“Hostipitality” 13) – para mostrar como a palavra já carrega uma contrariedade negativa à lei da hospitalidade. Também no português e no espanhol, as palavras anfitrião e anfitrión se referem ao mito grego de Anfitrião que fora traído por sua mulher e Zeus. Este deus havia assumido a forma do Anfitrião para ludibriar a sua esposa ao passar-se por seu marido. Portanto, aqui há a idéia do hóspede como um simulacro, o que toma a forma do outro e rouba o seu lugar na casa. Embora, todas as pesquisas 213

O direito contemporâneo baseado no princípio da hospitalidade, portanto, fica aquém de fazer

valer os direitos de um imigrante – um hóspede em terra alheia – como indivíduo. No mesmo

texto, Derrida afirma: “In general, it is the birth place which will always have underpinned the

definition of the stranger (the stranger as non-autochthonous, non–indigenous…the stranger is,

first of all, he who is born elsewhere”(“Hostipitality” 14). Até mesmo em outras teorias recentes

sobre os direitos humanos, como a de Giorgio Agamben (“Beyond Human Rights” 13-14) há

uma ênfase no lugar de nascimento como determinante para o estabelecimento destes direitos.140

Ao trazerem o personagem indígena à mesma luz destas reflexões sobre imigração,

Milton Hatoum e Mario Vargas Llosa problematizam a discussão dos direitos humanos no

mundo globalizado. Esta problematização que põe em cotejo a condição marginal do autóctone

indígena com a do imigrante, maximiza a empatia sobre sua situação do indígena, tratado como

estrangeiro em sua própria terra. Ao estabelecerem uma relação de congruência entre os

personagens imigrantes e os indígenas amazônicos como párias da sociedade, Milton Hatoum e

Mario Vargas Llosa forçam o leitor a fazer uma crítica reflexiva sobre as próprias teorias dos

direitos do indivíduo global que usam uma dicotomia de autóctone e estrangeiro, como as de

Derrida ou de Agamben.

Mais apropriadas são as teorias que possam lidar com as desigualdades surgidas pelas

etmológicas da palavra levem Jacques Derrida a afirmar o conceito de hospitalidade como uma aporia, Derrida ainda vê a necessidade de um estabelecer um “new world contract” (“Globalization, Peace, and Cosmopolitanism”130) para garantir os direitos dos imigrantes do mundo globalizado.

140 Giorgio Agamben concentra-se na figura do refugiado como aquele que, nos dias atuais, promove uma ruptura do pensamento que estabelecia ligações indissociáveis entre o ser humano como ‘ser nativo’ e o ‘cidadão’ como ‘ser nacional’. Agamben admite haver exceções para tal princípio dizendo: “Single exceptions to such a principle, of course, have always existed” (“Beyond Human Rights”162.3). Isto demonstra bem como o caso do indígena é visto como uma exceção, um problema da colonização, um passado engessado no presente e isolado em reservas intelectuais.

214

circunstâncias do mundo atual sem esquecer as desigualdades surgidas em um outro contexto

social. Ou seja, é necessário ter em conta que os problemas dos imigrantes de um mundo

globalizado não se sobrepõem sobre os outros mas se interligam formando dinâmicas mais

complexas.

Por esta razão, é conveniente trazer à discussão as teorias de Boaventura de Sousa Santos

pois ele articula os problemas do passado colonial e do presente globalizado. O sociólogo

português analisa epistemologicamente a categoria de direitos na sociedade civil contemporânea

de maneira a ver como estes foram construídos sobre bases e pressupostos culturais excludentes

e com conceitos falsamente universais. Boaventura de Sousa Santos chega a fazer um paralelo

entre as leis de imigração atuais com o sistema de direitos concebidos desde o período colonial

afirmando: “A nova onda de leis de imigração e de legislação antiterrorismo, por exemplo, segue

a lógica reguladora do paradigma “apropriação/ violência [do período colonial]” (“Para Além do

Pensamento Pós-Abissal” 78). Em “Para além do pensamento pós abissal”, Boaventura Santos

fala como as linhas que dividiam abissalmente o Velho e o Novo mundo deixaram os indígenas

excluídos e, portanto, invisíveis no sistema de direitos do pensamento moderno ocidental e

também analisa como este grupo de indivíduos poderia enfrentar sua invisibilidade no mundo

globalizado atual.141

Milton Hatoum e Mario Vargas Llosa fazem o que Boaventura Santos considera sine qua

141 Walter Mignolo, ao tentar colocar os problemas da América Latina dentro da discussão sobre globalização, relativiza os conceitos globais impostos nas colônias. Em “The Many Faces of Cosmo-polis: Border Thinking and Critical Cosmopolitanism”, com o intuito de provar a relevância da América Latina no discurso cosmopolita, Walter Mignolo expõe uma visão radical sobre o período colonial como a primeira onda de globalização e debate temas relevantes como as: tecnologias cartográficas e a formação de canais de ligação com outros continentes. Walter Mignolo aponta a existência de debates que aconteceram no século XVI na Escola de Salamanca, onde se enfocava o universalismo do ser humano determinando a natureza humana dos habitantes da América e, por consegüinte, influenciando na determinação dos direitos destes como parte do mundo. A questão chamada por Mignolo de “Indian doubt” (728), ecoava, desta forma, em questões do cosmopolitismo pois discutia o posicionamento a ser tomado dentro de uma nova estrutura global, com novos participantes e novos conceitos, além de “direitos” a serem avaliados. O estudo é bem-intencionado, principalmente pela tentativa de colocar a questão dos direitos indígenas como algo universal, porém é anacrônico, não considerando os problemas e soluções atuais do indígenas. 215

non para lutar contra a invisibilidade indígena que é mostrar a incompletude e manipulação dos seus governos nacionais no que diz respeito aos direitos dos indígenas fazendo uma articulação entre o local e o global (“Para além do pensamento abissal” 89).142 Como Roland Robertson também observou: “By and large, so-called indigenous movements seek not, these days, to reject

"the world", but rather, to be recognized as part of it” (“The Conceptual Promise of

Glocalization: Commonality and Diversity”).

Os indígenas locais, assim como o imigrante global, na obras de Mario Vargas Llosa e

Milton Hatoum são tratados como seres desterritorializados e fazem o leitor refletir como a etnia

“minoritária” indígena é tratada de maneira similar às minorias imigrantes. Não é de se estranhar que Hatoum use a palavra “tribo” para referir-se à colônia árabe com uma das “tribos” da

Amazônia: “Uma dessas pequenas tribos dispersas é a dos orientais” (“À Margem da história”).

O mesmo significado lato senso de “tribo” é também usado por Mario Vargas Llosa em El

Hablador: “Saúl encontró un sustento espiritual...que no encontraba en las otras tribus de peruanos – judíos, cristianos, marxistas, etc. – entre las que había vivido” (231). O paralelo feito entre ambos os autores sobre as diferentes “tribos” globais, obviamente, concentra-se nos desafios em comum destes grupos.

Em La Casa Verde, El Hablador e Dois Irmãos, é possível ver como estes migrantes indígenas possuem uma posição indefinida diante dos estados-nacionais. A posição ambivalente do indígena como um estrangeiro autóctone possibilita uma atitude também ambivalente em seu status e sua inclusão nos estados-nação. Para os indígenas das obras de Mario Vargas Llosa e

Milton Hatoum, não há escolha, o estado-nação lhes impõe uma identidade flutuante que oscila

142 Como visto anteriormente, Boaventura de Sousa Santos acredita que os movimentos indígenas são os mais beneficiados por este pensamento de inclusão dos conhecimentos do pensamento pós-abissal, deixados de lado na formação dos direitos ocidentais.

216

naturalmente entre duas margens identitárias, a incluída e a excluída.

Em La Casa Verde, uma das partes mais emblemáticas para pensar sobre a posição ambivalente do estrangeiro autóctone é o princípio da parte Tres da narrativa. É neste momento onde se percebe claramente a ambigüidade das leis limenhas no tratamento com os indígenas. Ao lidar com um representante da capital peruana que estava acompanhado por representantes militares locais, o aguaruna Jum menciona o “silabariolima” (La Casa Verde 243). Este neologismo foi definido por um dos soldados da missão como: “Unos libros con figuras…para enseñar el patriotismo a los salvajes; en la Gobernación quedaban algunos todavía, muy apolillados...” (La Casa Verde 247)

O livro, que deveria ensinar e incluir o indígena à nação, por um sentimento de pertencimento à pátria, é ironicamente referido como um livrinho de figuras, numa descrição bem similar a um conto de fadas sobre um mundo irreal e inexistente. Neste mesmo episódio, ao final da negociação com o representante do governo, Jum acaba recebendo um “papelito firmado...una firmita de a mentiras” (La Casa Verde 253) que simboliza a ambivalência com que o estado trata os indígenas e seus direitos.

Portanto, este episódio – onde o aguaruna Jum reivindicava a punição para o roubo de sua borracha, de suas mulheres e para a tortura a qual foi submetido – é prova cabal da ausência de direitos, ao menos em realidade, e da invisibilidade dos indígenas perante à lei. Denuncia-se, assim, que a aparente tentativa do governo nacional de integrar os indígenas e assegurar-lhes direitos de cidadãos nacionais; na prática, é uma manipulação do status de cidadão que funciona de acordo com a conveniência do estado.

217

Milton Hatoum também expõe, de uma forma bem pessimista, a marginalidade nas

questões de direitos dos indígenas no estado nacional brasileiro. Hatoum afirmou em nossa

entrevista:

Ninguém está preocupado com os índios. Não estão nem aí. Não querem nem saber...O indígena no Brasil, só ponteia os grupos indígenas articulados mas, de um modo geral, é um insulto você dizer que o indígena faz parte do Brasil. Você dizer isso prá um brasileiro de classe média, ele não vai entender, [mas] a maioria dos brasileiros tem sangue indígena.... (27 May 2011)

Embora Hatoum inclua os indígenas na constituição antropológica do Brasil, ele enfatiza a

exclusão social deste mesmo grupo. Por isso, como o próprio comenta posteriormente nesta

mesma entrevista, ele decidiu colocar a personagem Domingas numa condição de escrava,

comprada das madres da igreja que a haviam roubado de seu pai. O próprio narrador Nael refere-

se a Domingas como a “escrava fiel...” (35) de Zana.

Milton Hatoum evita expor possíveis soluções para a falta de direitos de Domingas no

estado social. O autor permanece com uma perspectiva pessimista, mais similar a de La Casa

Verde. Talvez esta seja uma das diferenças fundamentais entre Dois Irmãos e El Hablador, pois

neste livro Vargas Llosa além de reiterar a ausência de direitos do indígena no espaço

amazônico, também tenta apresentar possíveis soluções para o problema.

Para apresentar uma solução de inclusão dos indígenas em El Hablador, Mario Vargas

Llosa usa os personagens da tribo machiguenga que, diferentemente dos aguarunas de La Casa

Verde, eram mais isolados em razão de seu nomadismo. Trabalhar com a tribo machiguenga, que

por tanto tempo permaneceu isolada143, deu uma maior possibilidade de provar a idéia de que a

143 Usando a classificação de , os machiguengas eram considerados como isolados, os grupos que vivem em zonas não alcançadas pela sociedade nacional, porém teriam se tornado índios de contato intermitente, já alcançados pela sociedade nacional (467-489).

218

aquisição de direitos poderia ocorrer através de sua completa transformação em sujeito nacional acabando, assim, com a fragilidade de uma cidadania “indecisa”.

O narrador-romancista de El Hablador critica a postura de que a cidadania de um indígena poderia ser dada pelo governo sem que isso significasse a completa integração à cultura ocidental:

¿Había, acaso, la más remota probabilidad de que algún gobierno peruano, del signo que fuera, concediese a las tribus un derecho de extraterritorialidad en la selva? Era obvio que no...En el nuevo Perú, inspirado en la ciencia de Marx y de Mariátegui, las tribus amazónicas podrían, simultáneamente, modernizarse y conservar lo esencial de su tradición y sus costumbres... ¿No había ya bastantes pruebas de que el desarrollo industrial, fuera capitalista o comunista, significaba fatídicamente el aniquilamiento de aquéllas? (El Hablador 76-77)

Para o narrador-romancista, portanto, os direitos de um indivíduo, ainda está ligado à sua condição de cidadania nacional.144 Embora o autor divida o discurso do romance entre o do judeu mascarita (que pregava a não integração dos machiguengas pela consideração de uma extraterritorialidade de suas terras e cultura) e do narrador-romancista (que pregava a “aceitação” da aterritorialidade dos indígenas, para haver uma integração total e sem meios-termos), ambos discursos parecem estabelecer a questão de direitos vinculadas ao “pertencimento legal” ao estado nacional.145

Para defender esta integração completa dos indígenas ao estado nacional, o narrador- romancista de El Hablador também usa o argumento de que a migração ao mundo moderno é um

145 Ao final, o discurso do mascarita é englobado pelo do narrador-romancista fazendo predominar, então, o discurso de cunho neo-liberal. É notável a diferença de postura ideológica exposta em La Casa Verde e em El Hablador. Esta diferença corresponde a um período de 25 anos na produção artística de Mario Vargas Llosa. Balmiro Omaña expõe em seu artigo “Ideología y Texto en Mario Vargas Llosa” as diferentes etapas dos trabalhos do escritor peruano. De acordo com esta divisão, La Casa Verde faz parte da primeira etapa dos trabalhos do autor, onde este ainda tinha uma postura ideológica marxista, seus livros tinham um cunho de experimentação literária forte e de neutralidade do narrador. Segundo Omaña, os últimos livros, sendo um deles El Hablador, já mostra a quebra com o marxismo e a postura neo-liberal do autor. 219

processo inevitável. Para tanto, este narrador começa a interligar metáforas que usam elementos naturais para falar sobre a imigração no mundo contemporâneo. O narrador-romancista fala sobre os “invasores” da Europa utilizando a simbologia dos insetos de Florença e sua atitude

“protetora” do local, que ele avalia como inútil pois a invasão desta multidão é algo irreversível:

¿O son los zancudos los instrumentos de que se valen los florentinos ausentes para tratar de ahuyentar sus detestados invasores? En todo caso, es inútil. Ni los bichos ni el calor ni nada en el mundo serviría de dique a la multitudinaria invasión. (El Hablador 225)

Esta solução de render-se à multiplicidade, trazidas por estas multidões, é endossada, portanto, pelo argumento da irreversibilidade histórica. O pensamento foi reiterado num artigo sobre imigrantes publicado no livro The Language of Passion, onde o autor se refere à visão sobre a imigração dos trabalhadores da América Latina para a Europa e para os Estados Unidos como algo positivo e inevitável. Mario Vargas Llosa diz: “...better accept immigration, even if reluctantly, because, welcome or unwelcome...there’s no way to stop it” (“The Immigrants”

120). Contudo, a comparação das similaridades entre os habitantes do espaço europeu e do espaço amazônico, neste caso de El Hablador, revela-se complexa, pois, se por um lado chama atenção para os habitantes indígenas que dividem o mesmo problema de um mundo globalizado, insinua-se também que exista uma solução em comum para os dois problemas.

Na análise da imigração de pessoas que vão dos países pobres para os países ricos, usar o argumento da irreversibilidade no processo de globalização e, assim, reivindicar direitos para estes imigrantes têm, sem dúvida, um viés humanitário. Contudo, a correlação de argumento usada por Vargas Llosa em El Hablador para solucionar os problemas de direitos dos indígena é uma idéia que causa constrangimento a vários críticos. Jorge Marcone é um desses críticos que acredita que El Hablador é um romance que prega uma inevitável modernização dos indígenas como algo imprescindível para aquisição de direitos e, até mesmo, para a sua própria

220

sobrevivência:

A través de esta novela, un Perú que se concibe a sí mismo como “moderno” u “occidental” expande sus símbolos sobre la Amazonía en una versión que ha sabido incorporar o asimilar textos de las culturas amazónicas en su propia lógica…De hecho, en El hablador, Vargas Llosa considera explícitamente la desaparición de las culturas amazónicas como el precio a pagar por la supervivencia física de sus miembros. ("El hablador de Mario Vargas Llosa y la imagen de la Amazonía en el Perú contemporáneo"139)

Para justificar ou reiterar uma positividade na integração total dos indígenas ao estado-nacional, o narrador-romancista de El Hablador também usa o argumento de que tradições fortes não podem ser destruídas. Ao final do romance, o narrador-romancista retorna à tribo machinguenga e se depara com um espaço modernizado onde os reminiscentes da tribo agora formam novas comunidades nomeadas simbolicamente de “Nova Luz” e “Novo Mundo”. É nesta segunda visita quando ele elogia a cultura machiguenga e afirma que modernização não poderia conseguir aniquilar uma cultura tão rica.

Assim, o narrador-romancista constrói este argumento: “El paso violento de la vida nómada a la sedentaria. La occidentalización y cristianización aceleradas. La supuesta modernización. Me he dado cuenta que es pura apariencia...el peso de su propia tradición es mucho mas fuerte” (El Hablador 167). Até mesmo o personagem Edwin Schneil, grande interessado na cristianização e ocidentalização da tribo, concorda com o narrador-romancista e reitera as palavras deste narrador: “Ciento de años de unas creencias, de unas costumbres, no desaparecen de la noche a la mañana. Tomará tiempo” (El Hablador 167).

É evidente que há uma manipulação de diferentes discursos para justificar a imprescindível incorporação dos indígenas ao “mundo moderno” como uma solução para estes adquiram os mesmo direitos de um cidadão nacional. Outro pilar de sustentação deste pensamento em El Hablador é a utilização do personagem judeu Saúl Zuratas como equivalente

221

simbólico da tribo machiguenga. Sem dúvida, Zuratas simboliza o errante oriundo de um povo

que viveu constantes exílios e diásporas, mas nunca perdeu a ligação com a sua cultura, mesmo

quando se fixaram em outros lugares.146

Os machiguengas, portanto, não perderiam suas tradições uma vez que migrassem sem

meio-termo para uma condição de cidadania nacional peruana. A visão simplista sobre as bases

de sustentação das tradições de uma minoria étnica do narrador-romancista de El Hablador

difere bastante da maneira como o autor de Dois Irmãos lida com a sociedade plural amazônica.

Enquanto Vargas Llosa em El Hablador acredita que a cidadania indígena possa ser conquistada

por uma assimilação a um estado forte, Milton Hatoum em Dois Irmãos, sem apresentar

sugestões de soluções, constrói um espaço social fundamentalmente desigual, baseado na

diferença que se aplica tanto aos imigrantes como aos indígenas.

Milton Hatoum também parece estar consciente de que para denunciar esta desigualdade

social numa sociedade multicultural, é preciso considerar outros fatores além da etnicidade. Nos

seus estudos sobre imigração, Ralph Grillo e Steven Vertovec mostram como as culturas

imigrantes não podem ser avaliadas, somente e simplesmente, através de uma perspectiva étnica,

principalmente, quando se está lidando com uma esfera pública e social.147 Da mesma forma,

146 No texto “Utopías y dístopias postmodernas: El hablador de Mario Vargas Llosa”, Emil Volek afirma que o tema do judeu errante em El Hablador serve para refletir sobre as novas formações de identidade na América Latina. Desta forma, o judeu móvel que carrega consigo sua cultura serve também para pensar sobre o sincretismo cultural latino-americano (40). A propósito deste personagem na literatura amazônica, é interessante ver como Francisco Foot Hardman fala do homem que é errante como o do mito judaico-cristão pertencente a um movimento mais universal ou planetário na melhor matriz romântica do mito faustiano. Hardman acredita que estes personagens recusam o mapa das nacionalizações e se transformam em seres globais: “Diria que a aterrissagem forçada de nossas figurações sem lugar exato tende a domesticar o indomável, a historiar o não cronológico, a localizar o ponto extremo que já não se deixa bem se deseja representar por meio do mapa. Aqui, a impossibilidade de sua “nacionalização” é justamente o que garante a sua existência como espectros melhor do que como personagens” (A Vingança da Hileia: Euclides da Cunha, a Amazônia e a literatura moderna 296-297).

147 Steven Vertovec no texto “Super-diversity and its implications” e Ralph Grillo no texto “An excess of alterity? Debating difference in a multicultural society” possuem idéias similares sobre como os imigrantes, em sua

222

esta perspectiva de enxergar uma minoria étnica/ imigrante dentro de sua “superdiversidade”

(Vertovec “Super-diversity and its implications” 66), pode ser usada para evitar uma conceituação dos indígenas como um bloco cultural étnico homogêneo.

Ao contrário de El Hablador – que trata o machiguenga como um grupo isolado e puro de mais susceptibilidade à uma assimilação –, Milton Hatoum mostra em Dois Irmãos, e também em outras narrativas suas, uma maior consciência da pluralidade dentro do conceito de grupo indígena. Por isso, o autor denuncia em suas narrativas como existe uma retórica imaginada sobre os indígenas como um autóctone puro vivendo em lugares remotos da floresta. Assim como no conto “Dançarinos na última noite”, os índios falsos saciam a sede do estereótipo exótico dos turistas no navio New Horizon, também em seu outro romance Órfãos do Eldorado, o narrador em primeira pessoa denuncia a busca dos índios como imagens vazias de fotografias semelhante aos machiguengas da galeria de El Hablador. O narrador do romance Órfãos do

Eldorado recorda:

Lembro de um grupo de turistas que queria ver os índios. Eu disse: É só observar os moradores da cidade. Um dos turistas insistiu: Índios puros, nus. E então os acompanhei até a aldeia da minha infância e mostrei a eles os últimos sobreviventes de uma tribo. Se vocês quiserem conversar com eles, conheço uma tradutora, eu disse, pensando em Florita. Não queriam conversar, e sim fotografar.(88)

Em Dois Irmãos, por sua vez, a migração de Domingas para a cidade e a sua assimilação em condição de subemprego não a torna menos índia e não a faz cortar seus laços sentimentais e diversidade, são analisados como um bloco monolítico sem considerar as diferenças que há entre eles socialmente. Steven Vertovec fala mais claramente sobre como as diferentes variáveis a serem consideradas quando se lida com minorias étnicas: “In the last decade the proliferation and mutually conditioning effects of additional variables shows that it is not enough to see diversity only in terms of ethnicity, as is regularly the case both in social science and the wider public sphere. Such additional variables include differential immigration statuses and their concomitant entitlements and restrictions of rights, divergent labour market experience, discrete gender and age profiles, patterns of spatial distribution, and mixed local area responses by service providers and residents. Rarely are these factors described side by side. The interplay of these factors is what is meant, here, in summary fashion, but the notion of ‘super-diversity’”(66).

223

identitários com sua tribo. No capítulo 4, na sua visita ao povoado onde nascera, Domingas mostra como a memória do lugar e dos seus ancestrais ainda estavam presentes dentro dela (Dois

Irmãos 78).

Portanto, em Dois Irmãos, ao contrário de El Hablador, não há uma tentativa de negar a cultura indígena ou simplificá-la para conseguir uma maior assimilação – como o há em El

Hablador – mas sim de haver um maior reconhecimento de sua pluralidade e contribuição para a cultura nacional. Além disso, Milton Hatoum não pressupõe que a aquisição dos direitos indígenas poderia alcançar seu cumprimento através de uma cidadania nacional, visão esta que nem mesmo o romance La Casa Verde do próprio Vargas Llosa veicula.

Em Dois Irmãos, parece haver uma consciência de que o conceito de cidadania implica em pressupostos culturais os quais não satisfazem aos grupos indígenas e nem mesmo os cidadãos nacionais. Além disso, o conceito de indígena para inclusão a um estado-nação deve ser ampliado e não deixar de fora os “semi-assimilados” ao local. Mario Vargas Llosa, por exemplo, em La Casa Verde dá atenção aos grupo dos aguarunas e huambisas, que já se encontravam de alguma forma incorporados ao Peru. Em El Hablador, o escritor resolveu usar o grupo machiguenga, ainda numa situação de mais isolamento para provar sua teoria de inclusão através de uma total assimilação dos indígenas. Ironicamente, a proposta de obter uma maior igualdade de direitos entre os habitantes de sua nação requer do autor ignorar os grupos que já sofreram as conseqüências de uma incorporação mal fadada. Desta forma, ignorar os problemas da desigualdade dos indígenas já, de alguma forma, incorporados à sociedade moderna é também uma maneira essencialista de se posicionar sobre os status do indígena.

Em conclusão, o tema da mobilidade no espaço amazônico, especificamente em Dois

Irmãos e El Hablador, é um instrumento de articulação entre o local e global que posiciona a

224

região num papel fundamental no processo de inclusão dos imigrantes e que também faz com que os problemas de direitos dos indígenas possam dialogar com os outros problemas dos direitos do indivíduo global.

Embora os livros de Milton Hatoum e Mario Vargas se diferenciem nas soluções encontradas para enfrentar a marginalização social do personagem local nas suas obras, ambos põe ênfase na construção do espaço baseado na exclusão social e como um produtor de uma estrutura de poder desigual. O sentimento de incompletude quantos aos direitos dos indivíduos é importante para repensar os direitos dos indígenas, juntamente com os do imigrantes, não meramente como uma questão de territorialidade.

A injustiça social global deve ser percebida em sua intrínseca relação com uma estrutura de direitos sociais aparentemente universal e igualitária, porém, em realidade, epistemologicamente exclusiva para uma minoria. Além disso, estas obras ressaltam a paradoxal representação de como a Amazônia, com uma economia urbana marginal, pode-se posicionar de forma relevante nos debates da atualidade, considerando também seu papel protagonista nos assuntos em voga suscitados pela globalização como: igualdade social, direitos civis do imigrantes e consciência ecológica dentro de um mundo conectado. Desta forma, a próxima e

última seção destes capítulo será dedicada especificamente a analisar como as obras de Mario

Vargas Llosa e Milton Hatoum renovam as representações do elemento natural à luz dos novos debates vigentes do mundo globalizado.

225

C. As veredas da natureza amazônica na paisagem globalizada

A Amazônia, considerada por muitos como marginal dentro de uma economia planetária,

sempre foi um centro ecológico e, por isso, viveu vários processos similares ao da globalização

atual. A particularidade da Amazônia, de ser paradoxalmente uma economia periférica porém

central no fornecimento de recursos naturais, funciona como trampolim para que tanto Mario

Vargas Llosa como Milton Hatoum possam lançar, desde suas narrativas, importantes questões

sobre as conseqüências de processos econômicos globais para as sociedades e ecossistemas desta

região e do mundo.

Desta maneira, os autores proporcionam não só uma reflexão sobre a importância da

região amazônica no debate global em suas próprias obras literárias mas também acabam por

reforçar a importância do papel da literatura dos escritores latino-americanos dentro desta

discussão. É importante ressaltar, inicialmente, que tanto as teorias gerais sobre a globalização

como a corrente ambientalista recente destes estudos ressaltam a relevância do papel da

imaginação para pensar sobre os problemas gerados num processo global, sejam eles ambientais

ou não. Arjun Appadurai, por exemplo, concentra-se no poder de resistência desta imaginação

(“Grassroots Globalization and the Research Imagination” 6) 148 , enquanto teóricos do

ambientalismo recente – como Patrick Murphy (Ecocritical Explorations in Literary and cultural

148 Neste texto escrito em 1999, “Grassroots Globalization and the Research Imagination”, Arjun Appadurai coloca uma grande ênfase no papel do mundo acadêmico e das ONG’s dentro deste processo imaginativo de resistência aos problemas advindos da globalização. Se por um lado, o poder de resistência atribuído ao mundo acadêmico parece estar ligado a uma idealização sobre o seu próprio trabalho, por outro lado também é impreciso quanto ao poder de resistência exacerbado atribuído às ONG’s. Para Appadurai, neste texto, as ONG’s são os principais instrumentos de resistência do que ele chama de “grassroots movements”. Considerando os problemas e os grandes debates atuais sobre as ONG’s, é possível afirmar que seu texto, escrito no final do século XX, talvez estivesse expressando mais uma esperança do que uma avaliação conceitual genérica. Arjun Appadurai ignora que as ONG’s, embora trabalhem para combater uma globalização dominadora, são, por vezes, um reflexo dela e também a representam.

226

Studies 39) e Ursula Heise (Sense of Place and Sense of Planet: The Environmental Imagination

of the Global 6) – falam especificamente do papel da imaginação na literatura para entrever

alternativas e soluções para problemas gerados por uma economia global destruidora dos

recursos naturais do planeta.

Ambos Milton Hatoum e Mario Vargas Llosa encaram a literatura como uma arte com

esta função de entrever as possibilidades da imaginação para analisar o real, buscar e reinventar o

passado. Mario Vargas Llosa chega a denominar este processo como a “história secreta”, algo

exclusivo da literatura. No texto “La verdad de las mentiras”, assim o autor descreve o processo

desta história secreta e sua relação com a literatura: “Pero lo que somos como individuos y lo

que quisimos ser y no pudimos serlo de verdad y debimos por lo tanto serlo fantaseando e

inventando – nuestra hitoria secreta–, sólo la literatura lo sabe contar.” (32)

Em El Hablador, a reflexão sobre o papel da literatura dentro de um contexto histórico-

social é um dos temas de maior visibilidade nesta obra. O interesse pela figura do hablador e a

exposição de arte fotográfica “I nativi dela foresta amazónica” são dois motivos de confluência

para pensar em questões estéticas na representação da Amazônia e seus habitantes. Milton

Hatoum, por sua vez, também reflete profundamente sobre o papel da arte na representação da

natureza de maneira pontual no livro Cinzas do Norte, onde o autor usa uma personagem

emblemática do artista fake que vende em suas obras uma Amazônia exótica construída para os

olhos estrangeiros. Arana é o nome da personagem em Cinzas do Norte e foi inspirado na figura

do explorador da borracha Julio Cesar Arana. Esta mesma personagem é também resgatada no

livro mais recente de Mario Vargas Llosa, El Sueño del Celta.149

149 Em entrevista pessoal com Milton Hatoum, o autor manauara fez uma menção direta ao personagem Arana em El Sueño del Celta de Vargas Llosa: “O personagem do Vargas Llosa: o Arana… Eu tô rindo porque eu usei o Arana no Cinzas, o pintor. Vem daí. Ninguém sabe porque ninguém conhece o Arana. Eu conhecia a história do Arana. Foi prá marcar esta figura diabólica, não como assassino de índios, mas como pintor arrivista, oportunista, a arte do 227

O personagem Arana é apenas um dos resgates feito pela memória social e pessoal de

Hatoum e Vargas Llosa. A construção imaginativa da região, com seus elementos naturais tanto nas obras de Mario Vargas Llosa como nas obras de Milton Hatoum, tem como grande propulsor a memória, peça integral na construção do espaço narrativo e das personagens. A memória, portanto, serve para ver como processos econômicos globais trataram a natureza da região, repensar a sua importância no presente mas também para recuperar a estética ‘natural’ em suas obras.

Milton Hatoum, especificamente, vê a memória como fundamental na visão ecológica da região, pois funciona como um binóculo mirando um passado natural perdido no tempo. No texto

“The View of Manaus”, Hatoum acredita que todos processos de devastação que a natureza de

Manaus sofreu durante os anos parece tê-la condenado a ser somente rememorada. Por isso, o escritor afirma: “...the samples of Amazonian fauna and flora belonged to the city, just as nowadays they only belong to our memory” (521). Recorrendo à uma memória estudada de livros em La Casa Verde, ou à memória recriada em El Hablador, Vargas Llosa também lança mão do artifício da memória para as descrições da natureza amazônica e, conseqüente, construção do espaço destas obras. Se por um lado, a memória reconstrói a natureza, por outro lado, esta também serve como uma fonte de arquivos daquilo que não se deve esquecer. Portanto, a utilização estética da natureza carrega a idéia de que a natureza em si guarda a memória e as histórias da região. O crítico Édouard Glissant, falando sobre paisagem e se referindo mais

clichê, a arte futurista…”(Personal Interview. 27 May 2011). No texto de Enrique Planas para o jornal El Comercio do Peru, Planas coloca as palavras de sua entrevista com Mario Vargas Llosa quando este comenta que, em El Sueño del Celta, esta personagem serviu para dar um testemunho daquilo que está escondido na história do Peru: “No se enseña esta historia en el Perú, ni en Colombia, ni en el Brasil, porque es una historia que nos acusa a nosotros, los peruanos, los colombianos, los brasileños…hasta hoy día hay defensores de Arana, quienes dicen que defendió la nacionalidad, que gracias a Arana el Perú mantuvo esos territorios”. Embora os dois autores usem de uma forma diferente este mesmo personagem, ambos recuperam através da memória a história oculta, ou secreta, dessa região.

228

especificamente à paisagem caribenha, afirmou: “So history is spread out beneath this surface, from the mountains to the sea, from north to south, from the forest to the beaches...(Our landscape is its own monument: its meaning can only be traced on the underside. It is all history)” (Caribbean Discourse 11). A Amazônia e sua paisagem parecem ser dotadas desta mesma memória histórica nas obras de Mario Vargas Llosa e Milton Hatoum. Em El Hablador, toma-se em conta as superfícies de memórias guardadas na floresta como algo que se deseja recuperar mais intensamente durante a narrativa do narrador-hablador:

Como el venado, cada animal del bosque tendrá su historia. El pequeño, el mediano y el grande. El que vuela, como el picaflor. El que nada, como el boquichico. El que corre siempre en manada, como la huangana. Todos fueron antes algo distinto de lo que ahora son. A todos les sucedería algo que puede contarse. ¿Les gustaría saber sus historias? A mí también. (189)

As histórias desta natureza podem contar uma história oculta de desigualdades. Elas podem contar a história periférica onde os sofrimentos passados vem à superfície. Assim como Glissant fala da resistência dos Maroon, guardada na natureza do Caribe (Caribbean Discourse 11), a resistência do povo indígena também está na natureza amazônica. Em El Hablador, o narrador- romancista ao sobrevoar a selva amazônica a caminho de Nuevo Mundo, antiga colônia machiguenga, passa pelo rio Mipaya. O rio Mipaya simboliza e guarda em si as histórias de resistência do povo machiguenga, por vezes, esquecidas da memória coletiva. Assim o narrador- romancista descreve este rio:

El nombre del Mipaya tenía resonancias históricas. Bajo esta maraña vegetal proliferaron, hacía un siglo, campamentos caucheros. Después de la terrible mortandad que la tribu sufrió, pasivamente, en los años del caucho, los ex caucheros arruinados intentaron en la década del veinte abrir haciendas en esta zona, proveyéndose de brazos mediante el viejo sistema de las cacerías de indígenas. Fue entonces que, aquí, a orillas del Mipaya, se produjo el único caso conocido en la historia de resistencia machiguenga. (...) mataron y hirieron a varios viracochas, antes de ser exterminados. La selva había cubierto el escenario

229

con su espesa maleza de troncos, ramas, hojarasca, y no quedaba ya rastro de aquellas ignominias. (El Hablador 160-161)

Constata-se que existe aqui uma consciência das histórias silenciadas da região. Nesta caso, a natureza sofre junto com o ser humano local mas também apaga as “ignominias” ocorridas na região. Por um lado, colocar a natureza como uma testemunha impávida do esfacelamento dos povos indígenas é uma maneira de testemunhar a importância do elemento natural na formação da história de uma região. Por outro lado, a personificação da natureza, neste episódio, atribui ao elemento natural a culpa por apagar um momento sofrido da história machiguenga. Embora este seja um momento pontual do livro, que em geral é explícito sobre a exploração sofrida pelos movimentos extrativistas na região, é importante criticar estes desvios naturalistas proporcionados em certos momentos pretensamente “memorialistas”.

Esta tendência de associar uma estética de descrição natural à construção da memória também é algo explorado na narrativa hamtoumiana. Sem usar uma abordagem tão polêmica e abrangente como a de El Hablador, Hatoum volta-se ao núcleo familiar para revelar a natureza contida da casa como testemunha de memórias da deterioração dos costumes, valores e da vida local. É através do símbolo da seringueira e do pomar do quintal da família árabe de Dois Irmãos que os personagens se revelam transitórios, tendo suas histórias apenas testemunhada por uma natureza silenciosa. O quintal da casa da família árabe, comprada no final pelo negociante indiano Rochiram, é descrito desde o primeiro parágrafo do livro como o guardador das histórias familiares. Este é o primeiro espaço apresentado na narrativa onde a personagem Zana, matriarca da família árabe, tenta reencontrar a história de sua família destruída:

Zana teve de deixar tudo...o lugar que para ela era tão vital quanto a Biblos de sua infância....vagando pelos aposentos empoeirados até se perder no quintal onde a copa da velha seringueira sombreava as palmeiras e o pomar cultivados por mais de meio século...Perto do alpendre, o cheiro das açucenas-brancas se misturava com o do filho caçula. (Dois Irmãos 11)

230

A lembrança olfativa do filho e a antigüidade de meio século de testemunho da seringueira é a

grande associação entre a natureza local e aquilo que se quer recordar e/ou esquecer. É, portanto,

através deste jogo de memória que a natureza se constrói como espaço da narrativa de Nael.

Este mesmo quintal também serve como espaço final para o último episódio de Dois

Irmãos, entre Omar e o narrador Nael. Nesta ação, percebe-se a existência de uma associação

simbólica entre o espaço natural do quintal familiar e o começo da escrita do narrador. Assim,

Nael narra a última cena do livro com um tom de conclusão de uma história vivida e do início de

sua escrita:

Eu tinha começado a reunir, pela primeira vez, os escritos de Antenor Laval, e a anotar minhas conversas com Halim...e essa alternância – o jogo de lembranças e esquecimentos – me dava prazer. O toró que cobria Manaus...Frutas e folhas boiavam nas poças que cercavam a porta do meu quarto...Ainda chovia, com trovoadas, quando Omar invadiu o meu refúgio. Aproximou-se do meu quarto devagar, um vulto. Avançou mais um pouco e estacou bem perto da velha seringueira, diminuído pela grandeza da árvore...Ele ergueu a cabeça para a copa que cobria o quintal. Depois virou o corpo, olhou para trás: não havia mais alpendre, a rede vermelha não o esperava. (Dois Irmãos 265)

Ao final, Omar, diminuído diante da natureza, representa os vestígios da destruição de toda a

família. A destruição, testemunhada pelo quintal da família, proporciona um campo fértil para a

construção da narrativa de Nael. O sentido de derrota, de um lugar que Nael havia parado de

cultivar e não mais habitável no final da narrativa, reforça o pessimismo que aparece desde as

primeiras linhas da narrativa. Por isso, Foot Hardman, ao comentar sobre a literatura de Milton

Hatoum, afirma que ela está regida pelo símbolo da derrota e da melancolia (A Vingança da

Hileia: Euclides da Cunha, a Amazônia e a Literatura Moderna 32-33).150

150 Foot Hardman faz uma aproximação das obras de Márcio Souza e de Milton Hatoum através do viés melancólico que imprimem ambos autores nos seus livros afirmando: “...nenhum dos dois autores manauaras reivindica qualquer modalidade de ufanismo ingênuo ou interessado, bem ao revés, o que resta em sua prosa nesta virada de século é o travo melancólico, seja das derrotas históricas da região amazônica em Márcio Souza, seja das “cinzas do Norte” de 231

A destruição simbólica da família, esteticamente refletida na descrição do espaço natural

do terreno da casa, é também algo pertinente para avaliar a destruição da cidade de Manaus, sua

arquitetura e seus valores. Em Dois Irmãos, o espaço familiar funciona como um microcosmo

desta cidade. Manaus é projetada no espaço da família árabe onde se explora a íntima relação

entre a memória de um passado e o testemunho da natureza. Não é por acaso que o autor escolhe

uma seringueira, a árvore símbolo do maior período extrativista de Manaus, para ser a

testemunha dos acontecimentos do principal núcleo da história. A seringueira permaneceu altiva

no quintal da família e sobreviveu não só à destruição da família árabe mas também à destruição

sofrida pela cidade de Manaus.

Portanto, é possível afirmar que tanto Mario Vargas Llosa como Milton Hatoum

recorrem à memória e à sua relação com a natureza como uma forma de testemunhar a destruição

do ambiente físico e afetivo da região amazônica. É através da memória que Milton Hatoum e

Mario Vargas Llosa, como já visto anteriormente, se opõem à qualquer estética literária que pinta

em cores vivas uma Amazônia exótica e dilui em superficialidade os tons mais dramáticos de sua

história. É a história distópica desta região que interessa a estes autores, ou como diria Robert

Nixon, são as “unimmagined communities” (Slow Violence and the Environmentalism of the

Poor 150) que conseguem propiciar para as narrativas de La Casa Verde, El Hablador e Dois

Irmãos os temas de suas tramas. Estas “unimmagined communities”, como define Nixon, são

internas ao espaço do estado nacional e, em suas condições não imaginadas, indispensáveis para

um discurso nacional unitário.151

toda uma geração, em Milton Hatoum” (A Vingança da Hileia: Euclides da Cunha, a Amazônia e a Literatura Moderna 32-33).

151A Amazônia e as comunidades não imaginadas locais, por vezes, ficaram visíveis para apoiar um discurso de progresso e unidade nacional. Mark Anderson, usando o seu conceito de veio chamar de “ecology of abjection” (mencionado anteriormente), afirma que o ciclo da borracha foi um dos acontecimentos do século XVIII que

232

De fato, a função da literatura destes dois escritores se baseia na imaginação e

recuperação distópica de uma Amazônia que se revela através da memória daquilo que foi

destruído e, principalmente, do que foi perdido também em termos ecológicos. Tanto em La

Casa Verde e El Hablador como em Dois Irmãos, esta distopia desenvolve-se sob um aspecto de

denúncia do que se fez e faz ao meio ambiente local e como uma pretensa modernização trouxe

malefícios à região.152

Em La Casa Verde, primeiramente, o principal ciclo econômico de impacto global

explorado na narrativa é o da borracha. A política extrativista da borracha, que impulsionou a

região economicamente e trouxe vários imigrantes, afetou o meio-ambiente pela falta de um

poder local forte para proteger os seus bens naturais. Em La Casa Verde, um dos personagens

que traz à tona esta exploração desregulada durante este período é o nipônico brasileiro Fushía.

Fushía, como imigrante fugido do Brasil, participou do tráfico ilícito da borracha em Iquitos.

Para tanto, Fushía havia feito um mapeamento da selva para saquear a madeira local:

– ¿Y qué llevabas en esa maleta, Fushía? – dijo Aquilino. – Mapas de la Amazonía, señor Reátegui – dijo don Fabio–. Enormes, como los que hay en el cuartel. Los clavó en su cuarto y decía es para saber por dónde sacaremos la madera. Había hecho rayas y anotaciones en brasileño, vea qué raro. (La Casa Verde 63)

colocou estas áreas dos sertões inland como problemáticas ou perigosas para a noção de unidade nacional. Assim se expressa Anderson sobre o período da exploração da borracha na Amazônia: “Everything changes at the end of the nineteenth century, however, when three events thrust the sertões into the national imagination as zones that were problematic or even dangerous...the rubber boom in the Amazon basin, which led to the rapid, but chaotic settlement of the area as well as border conflicts with the neighboring nations of Bolivia and Peru” (215).

152 A propósito desta reflexão, é interessante lembrar a observação de Ursula Heise sobre como as obras ambientalistas da segunda metade do século XIX usam uma perspectiva pessimista para falar sobre meio-ambiente. Heise analisa: “As I have suggested…between the 1960’s and the turn of the millennium: … [environmentalist has created] allegorical visions of the global that over the course of time have shifted from a utopian to a more dystopian emphasis” (“Deterritorialization and eco-cosmopolitanism” 50).

233

Interessantemente, fazem parte desta conversa o então governador de Santa María de Nieva,

Reatégui, e seu sucessor don Fabio. O governo, que deveria ser responsável pela fiscalização dos recursos naturais da região, é o maior envolvido na comercialização ilegal da borracha. Em outro episódio de La Casa Verde, é nítido o desrespeito de Fushía às leis ambientais e a falta de qualquer fiscalização para o efetivo cumprimento destas leis. No capítulo II da parte Tres, a narrativa descreve Fushía fazendo armadilhas para comer as tartarugas que estavam na época de desova, período em que sua caça é proibida. O narrador descreve a aventura de Fushía e seu grupo:

Allí durmieron y al día siguiente viajaron de nuevo y en la noche otra playita, cinco charapas, otro collar, y durmieron, viajaron y Fushía menos mal que es época de desove y Pantacha ¿lo que hacemos está prohibido, patrón? y Fushía se pasaba la vida haciendo cosas prohibidas, cholo. (La Casa Verde 298)

Fushía e suas ações são emblemáticas de todo um sistema permissivo da exploração que ocorre neste local, como já visto na primeira seção deste capítulo. Desta maneira, a construção de uma distopia em La Casa Verde está ligada à visão de um ecossistema atacado graças à um sistema caótico politicamente, economicamente e socialmente.

Em El Hablador, a discussão sobre o meio-ambiente se bifurca em duas retóricas: uma direta, em forma de ensaio, e outra mítica. As duas retóricas são equivalentes às duas vozes narrativas do livro: a do narrador-romancista e a do narrador-hablador. Em ambas, a visão distópica é prevalente e a reflexão sobre os problemas enfrentados na região não é interrompida mesmo com a alternância de vozes. Na parte do narrador-hablador, as descrições sobre a destruição natural se revelam na retórica mítica, principalmente, através dos relatos das mudanças negativas sofridas no mundo mítico mahiguenga.

Portanto, na introdução de seu discurso a partir do capítulo III, o narrador-hablador descreve a natureza em seus primórdios dotada de uma perfeição edênica: “No había daño, no

234

había viento, no había lluvia...Nunca faltaba qué comer. No había guerra. Los ríos desbordaban de peces y los bosques de animales...Los hombres de la tierra vivían juntos” (El Hablador 38). A partir daí, o narrador-hablador descreve como a natureza entra em caos, o sol começa a cair, as chuvas provocavam inundações, o rios mudavam de curso (El Hablador 39). Para manter o equilíbrio na terra, os machiguengas começaram a andar: “Así empezó. El movimento, la marcha”(El Hablador 40). Mas esta descrição da ruína do local dos machiguengas é reescrita com detalhes no capítulo 7, o último do narrador-hablador no livro. Neste capítulo, o discurso sobre a transformação do Éden machiguenga a um inferno terrestre aparece mais explícito e contundente:

Allí ocurrió, en el Gran Pongo. Allí el principio principió. Tasurinchi bajó desde el Inkite por el río Meshiareni con una idea en la cabeza. Hinchando su pecho, empezaría a soplar. Las buenas tierras, los ríos cargados de peces, los bosques repletos, tantos animales para comer, irían apareciendo. El sol estaba fijo en el cielo, calentando el mundo. Contento, mirando lo que aparecía. A Kientibakori le dio su rabieta terrible. Vomitaría culebras y sapos viendo lo que ocurría allá arriba. Tasurinchi soplaba y habían comenzado a aparecer también los machiguengas. Entonces, Kientibakori abandonó el mundo de aguas y nubes negras del Gamaironi y subió por un río de orines y caca. Rabiando, humeando de cólera, <>, diciendo. Apenas llegó al Gran Pongo, se puso a soplar. Pero de sus soplidos no salían machiguengas. Tierras podridas donde no crecía nada, más bien; cochas cenagosas donde sólo los vampiros podían resistir el aire tan hediondo. Culebras salían. Víboras, lagartos, ratones, zancudos y murciélagos. Hormigas, gallinazos. Todas las plantas que producen ardor salían, las que queman la piel, las que no se puede comer. Ésas nomás. Kientibakori seguía soplando y, en lugar de machiguengas, aparecían los kamagarinis, los diablillos de pies curvos y filudos, con espolones…Así comenzó después, parece. Así empezamos a andar. (El Hablador 205-206)

O início da nova história dos machiguengas como nômade é visto na mudança de uma natureza inicialmente idílica para uma natureza inóspita. É neste capítulo onde também se revela a identidade do narrador-hablador e é carregado, de maneira geral, de um maior realismo em comparação à retórica usada até então. A descrição vívida do que se tornou o mundo dos

235

machiguengas pelo narrador-hablador está em concordância com a descrição não-mítica do narrador-romancista.

Embora o narrador-romancista e o narrador-hablador aparentemente acreditem em ideologias opostas, existe uma similaridade no que tange ao tema da violência sofrida pelo meio- ambiente local. No discurso do narrador-hablador, Saúl Zuratas, há um explícito reconhecimento sobre a riqueza da diversidade do meio-ambiente da região e da destruição desta riqueza. Assim o narrador-romancista descreve uma de suas conversas com o seu amigo Saúl Zuratas sobre esta exploração:

Me habló largamente de la práctica de los viracochas y serranos bajados de los Andes a conquistar la selva, de desbrozar el bosque mediante incendios que carbonizaban inmensas extensiones de tierras, que, luego de una o dos cosechas, por la falta de humus vegetal y la erosión causada por las aguas, se volvían estériles. Y nada se diga, compadre, del exterminio de animales, la codicia frenética de cueros que, por ejemplo, había hecho de jaguares, lagartos, pumas, serpientes y decenas de animales, rarezas biológicas en vías de extinción. Fue un largo discurso…De los árboles y los peces volvía siempre en su perorata al motivo central de sus alarmas: las tribus. También ellas, a este paso, se extinguirían. (El Hablador 26)

O discurso de Saúl Zuratas descreve a preocupação com o meio-ambiente e também com os habitantes locais. A ecologia da região não pode ser vista, ao ver do Mascarita, como restrita a sua fauna e flora. As comunidades locais fazem parte do meio-ambiente a ser protegido nesta região. Embora em Dois Irmãos e em La Casa Verde não ocorram diálogos tão explícitos onde o narrador fale sobre suas convicções sócio-políticas sobre o meio ambiente, nestas obras a relação entre o ser humano e a natureza é uma questão fundamental. Em La Casa Verde, a exploração dos indígenas da terra que produziam o caucho e não recebiam seus lucros é um dos principais feixos temáticos na narrativa.

Por sua vez, em Dois Irmãos, a descrição memorialista do narrador em primeira pessoa é um testemunho dos sofrimentos da família e do povo de Manaus: dos indígenas escravizados

236

(representados por Domingas); dos imigrantes deixados à margem com a ascensão de um novo

ciclo econômico (como a família árabe); e dos pobres mestiços da cidade que vivem em

palafitas, etc. A transformação da cidade e destruição da natureza, em prol do “necessário” e

alardeado progresso da cidade, estão relacionadas à degradação do ser humano local e de seus

valores.

Portanto, o cunho ambientalista nas obras de Hatoum, assim como das de Vargas Llosa,

não incorre numa distinção entre o biológico e o antropomórfico. Ao contrário, as obras

problematizam como o ser humano pode ser vítima e/ou algoz dentro de uma hierarquia social

nacional ou global exploradora do ecossistema de sua região. De fato, as preocupações com o

meio-ambiente é uma questão social e política que deve contemplar os projetos de

desenvolvimento humano como algo indissociável à preservação do meio-ambiente.

Embora os estudos ambientalistas pareçam estar relacionados à uma elite norte-americana

e européia, atualmente, há um crescente número de estudiosos que insistem em criticar a falta de

diálogo na análise literária entre os estudos pós-coloniais e os estudos ecológicos. Este é um

argumento que Rob Nixon usa e complementa com a sagaz observação de que a maioria dos

autores colocados no cânone do ecocriticismo – que se fortaleceu como teoria nos anos 90 – são

de uma elite branca. Nixon afirma que autores de outras localidades, mesmo com obras

extremamente transnacionais, não são considerados dentro deste cânone ambientalista do Norte

global (Slow Violence and the Environmentalism of the Poor 235).153

153 Outro crítico importante no campo do ambientalismo, Graham Huggan, chega a fazer um comentário sobre as leituras pós-colonialistas ecológicas criticando o privilégio que se deu, até recentemente, à cultura do colonizador: Huggan argumenta: “Similarly, ecologically related contributions to postcolonial criticism have tended until fairly recently to focus on the former (also predominantly white) ‘settler cultures’, taking in such issues as the use of territorial metaphor to reflect changing patterns of land use and spatial perception, the geopolitics of colonial occupation and expansion, the rival claims of Western property rights and Native/Indigenous title, destructive encounters between conflicting ecosystems, and the mutual entanglement of biological and cultural factor in providing the ideological basis for imperial rule” (“‘Greening’ postcolonialism: ecocritical Perspectives” 172).

237

Além disso, o ecocriticismo como teoria ignorou textos seminais, como o de

Ramachandra Guha publicado em 1989 e intitulado “Radical American Environmentalism and

Wilderness Preservation: A Third World Critique”. Já nesta época, Guha se opunha a um

ambientalismo elitista e deixava explícito que, principalmente nos países do Sul global, questões

ambientalistas estão intrinsecamente conectadas aos problemas sócio-econômicos. Ramachandra

Guha fez a seguinte afirmação no artigo supracitado:

The two fundamental ecological problems facing the globe are (i) overconsumption by the industrialized world and by urban elites in the Third World and (ii) growing militarization…Neither of these problems has a tangible connection to the anthropocentric-biocentric distinction …[therefore] invoking the body of anthropocentrism is at best irrelevant and at worst a dangerous obfuscation. (74)

Em outras palavras, a relação entre o meio-ambiente e o ser humano não pode ser vista de

maneira dicotômica. Há uma conexão direta entre estes dois elementos que, nos países do

chamado “terceiro mundo”, se torna bastante evidente. Esta idéia é desenvolvida posteriormente

pelo próprio Guha juntamente com Joan Martinez-Alier no livro Varieties of

Environmentalism:Essays North and South. Neste livro se conceitua o chamado

“environmentalism of the poor”, que consiste em analisar como a preservação da natureza não

pode ser dissociada da justiça social (21).154

Martinez-Alier, por sua vez, já havia escrito um texto sobre este mesmo tópico com o

enfoque voltado para a América Latina. O texto de Martinez-Alier “Ecology and the Poor: a

154 O capítulo de introdução deste livro recebe o título de “The Environmentalism of the Poor”. Neste capítulo, os autores fazem uma distinção entre os movimentos ecológicos do Norte global e do Sul global e terminam este primeiro capítulo com um slogan que representa o livro como um todo. Assim, Guha e Martinez-Alier introduzem este slogan: “It is impossible to say, with regard to India, what Jurgen Habermas has claimed of the European green movement: namely, that it is sparked not ‘by problems of distribution, but by convern for the grammar of forms of life’. ‘No humanity without Nature!’, the epitaph of the Northern environmentalist, is here answered by the equally compelling slogan ‘No Nature without Social Justice!’”(21).

238

Negleted Dimension of Latin American History” discutia mais especificamente a questão ecológica, em particular, as concernentes às regiões costeiras e montanhosas do Peru, com aplicação válida também para região amazônica. Desde uma perspectiva comparativa das regiões da América Latina com a Índia, Martinez-Alier já afirmava o seguinte neste texto publicado em

1991:

In the South the ‘social question’ and the ‘ecological question’ get meshed together…Furthermore, the ecological perspective again opens the discussion about the relations of international dependency: the North-South conflit can now be seen also as an ecological conflit. (623)

Indo de encontro à tendência elitista da crítica ecológica tradicional, o ambientalismo do pobre analisa de maneira mais inclusiva as perspectivas que não pertencem ao Norte global. Ao tratar destes temas em suas obras, Milton Hatoum e Mario Vargas Llosa reiteram este posicionamento de uma postura que considera a interdependência entre as questões socioeconômicas e as questões ecológicas. Além disso, ao analisar a falta de cumprimento dos direitos das comunidades locais paralelamente à situação dos imigrantes (como visto na seção anterior),

Milton Hatoum e Mario Vargas Llosa estão estabelecendo um espaço narrativo compartilhado por uma comunidade global. Esta comunidade global possui um destino compartilhado, conseqüentemente, as questões ambientais regionais serão consideradas de uma forma global e a falta de direitos das comunidades locais deixam de ser problemas locais para serem “glocais”

(Robertson, Roland “The Conceptual Promise of Glocalization: Commonality and Diversity”).155

De fato, a Amazônia, como um dos ecossistemas mais diversos do mundo, funciona como um grande imã dentro da narrativas de Mario Vargas Llosa e Milton Hatoum para atrair a

155 Roland Robertson foi quem popularizou este termo. Ele acredita que a globalização implica na co-presença de tendências universalizantes e particulares. Assim, as discussões sobre globalização devem ser feitas a interligar diversas particularidades. Sobre isso o sociólogo afirma: “…to speak of glocalization is meant to ensure that the general discussion of globalization encompasses the cross-cutting dimension of locality along spatial lines” (“The Conceptual Promise of Glocalization: Commonality and Diversity”).

239

atenção dos leitores para os problemas dessas comunidades regionais periféricas e invisíveis. Em

verdade, os problemas relativos aos direitos das comunidades locais e às questões ecológicas

estão entrelaçados nas próprias bases epistemológicas do conceito de cidadania, segundo

Boaventura de Sousa Santos. Sousa Santos afirma que a exclusão dos direitos das gerações

futuras, da natureza e dos saberes das comunidades periféricas dentro do conceito de cidadania

ocidental afeta o meio-ambiente de maneira direta (“Boaventura de Sousa Santos- A cidadania a

partir dos que não são cidadãos”).156

Ao relacionar os problemas ambientais com a concepção de direitos e saberes das

comunidades locais, pode-se reconhecer um conhecimento excluído que poderia ajudar a

enfrentar uma globalização hegemônica. De fato, Boaventura acredita que o reconhecimento dos

diversos saberes pode obter duas felizes conseqüências: 1) um surgimento político das

comunidades periféricas como parceiros em frente a uma globalização hegemônica e 2) uma

proliferação de alternativas sem precedentes para dar uma riqueza de alternativas à globalização

156 O conceito de cidadania para Boaventura de Sousa Santos assenta na sociologia das ausências, ou seja, na inexistência de certos cidadãos e seus saberes. Numa palestra para alunos em Coimbra, intitulada “A cidadania a partir dos que não são cidadãos”, Boaventura de Sousa Santos explica como a teoria da cidadania contemporânea exclui, por um critério de existência, as gerações futuras e os antepassados – entidades importantes para várias culturas periféricas à cultura ocidental. Sendo assim, a consideração das gerações futuras dentro destas culturas – que não tem uma concepção linear de tempo como a ocidental – incorre numa maior consciência sobre a questão ecológica. Boaventura de Sousa Santos alerta em um lamento: “Liguem isto [sociologia das ausências], por exemplo, à questão ecológica. Se as gerações futuras tivessem direitos, talvez nós não estivéssemos na mesma situação (“Boaventura de Sousa Santos- A cidadania a partir dos que não são cidadãos”). Segundo Sousa Santos, as questões ambientais também estão excluídas do conceito de cidadania por um critério de incomensurabilidade. Dentro do conceito de cidadania, há entidades que são incomensuráveis para os seres humanos e, por isso, não podem ter direitos. Há os incomensuravelmente superiores, que é o caso de Deus, e incomensuravelmente inferiores, que é o caso da natureza. Estas incomensurabilidades fazem com que estas entidades estejam à nossa disposição, portanto a natureza não tem direitos e pode-se fazer o que se quer com ela. Conclui-se que as questões ambientais devem ser percebidas através do reconhecimento de sua ausência dentro do conceito de direito ocidental.

240

contra-hegemônica que se quer engendrar (“Para além do Pensamento Abissal: Das linhas

globais a uma ecologia de saberes” 24-25).157

Uma das contribuições de Mario Vargas Llosa e Milton Hatoum, como escritores latino-

americanos, é de incluir em um discurso ambientalista e de direitos humanos uma perspectiva

diferente às teorias pensadas desde um Norte global. Além disso, as obras com espaço

amazônico de Vargas Llosa e Hatoum também resgatam, através de seu testemunho das

“ausências de direitos”, outras vozes literárias na América Latina que denunciaram a exclusão

social em paralelo aos problemas ambientais. A novela de la selva, o regionalismo amazônico ou

até os escritos de Horacio Quiroga – embora talvez esquecidos pelos modismos teóricos do Norte

global – já falavam desde o final do século XIX sobre os problemas enfrentados na selva desde

uma perspectiva social e ambiental.

O crítico Jorge Marcone também é um dos que afirmam que estas obras literárias

colocavam em evidência que os problemas ambientais não podem ser vistos ignorando nem as

hierarquias de poder nem as relações econômicas, políticas e sociais. Para Marcone, a novela de

la selva já propunha um retorno à natureza como uma proposta alternativa à modernização da

Amazônia e também fazia uma avaliação eco-política da região (“De retorno a lo natural: La

serpiente de oro, la "novela de la selva" y la crítica ecológica” 299). Embora a novela de la selva

e o “regionalismo amazônico” fizessem uso de perspectivas maniqueístas para lidar com a

natureza, ainda assim, as questões sociopolíticas eram bastante pertinentes.

157 Também no texto seminal “Para além do Pensamento Abissal: Das linhas globais a uma ecologia de saberes”, Sousa Santos usa o termo “ecologia” para denominar o seu próprio pensamento alternativo de uma globalização contra-hegemônica. A denominação deste conceito como “ecologia dos saberes” é justificada pelo sociólogo da seguinte forma: “É uma ecologia, porque se baseia no reconhecimento da pluralidade de conhecimentos heterogêneos”(“Para além do Pensamento Abissal: Das linhas globais a uma ecologia de saberes” 22).

241

De fato, em Dois Irmãos, há uma relação intrínseca entre a crítica política contra o

governo ditatorial brasileiro e fardo sofrido pelo ecossistema e habitantes locais durante este

período. Uma das cenas mais explícitas desta relação entre poder, natureza, política e opressão

acontece quando o narrador fala da destruição do bairro dos ribeirinhos em Dois Irmãos pelos

militares e seu afã pelo progresso. 158 O narrador descreve a brutalidade com os moradores

através da destruição das madeiras de suas casas e finaliza a cena com a imagem de troncos

flutuando, como se a morte do bairro fosse simbolizada por corpos naturais deixados à deriva:

Os moradores xingavam os demolidores, não queriam morar longe do pequeno porto, longe do rio...[os militares] arrancavam os tabiques, cortavam as amarras dos troncos flutuantes, golpeavam brutalmente os finos pilares de madeira...Tudo se desfez num só dia, o bairro todo desapareceu. Os troncos ficaram flutuando, até serem engolidos pela noite. (Dois Irmãos 211)

Outros episódios da narrativa de Dois Irmãos também são construídos como crítica ao governo

militar e à sua intenção de progresso na região sem considerar os danos aos elementos naturais

ou humanos. As notórias obras “faraônicas” promovidas pelo governo militar do Brasil causaram

degradação ecológica e são lembradas na história brasileira como grandes erros do governo

158 Em outro livro de Milton Hatoum, Cinzas do Norte, o bairro periférico chamado de “Novo Eldorado” aparece como um dos projetos do governo militar. O projeto consistia em afastar as populações pobres do centro da cidade e do rio. Para isso, o bairro Novo Eldorado foi construído e as pessoas deslocadas a este lugar. O personagem principal, Mundo, assim descreve o processo de deslocamento destas comunidades: “Foram jogadas no outro lado da cidade. A área foi toda desmatada, construíram umas casas... Sobrou uma seringueira. Quer dizer, o tronco e uns galhos...a carcaça”(Cinzas do Norte 144). Mais adiante, o narrador Lavo descreve as impressões de Mundo depois de uma visita ao local: “Mundo contou que no internato tinha pesadelos com a paisagem calcinada: a floresta devastada ao norte de Manaus...Casinhas sem fossa, um fedor medonho” (Cinzas do Norte 148). As condições insalubres do bairro e a floresta devastada são um retrato vívido das conseqüências do projetos levados a cabo pelo governo militar em prol do progresso. Para um estudo sobre Cinzas do Norte e a exploração do tema da ditadura militar, é interessante ver o artigo de Gínia Maria Gomes “A Manaus de Milton Hatoum em Cinzas do Norte” . Neste artigo, Gínia Gomes mostra a violência perpetrada por um Estado opressor que atinge as comunidades locais em forma de pobreza, desigualdade social, prostituição de meninas indígenas, a repressão através das instituições educacionais, etc.

242

militar. 159 Porém, muitas outras ações do governo militar da época, principalmente as que

envolveram a desapropriação de terra dos habitantes pobres na região, ainda permanecem

desconhecidas da maioria dos brasileiros. Além de falar sobre o cenário político do período em

geral, em Dois Irmãos, Hatoum faz uma denúncia do que aconteceu como os pobres da região

numa intrínseca relação com os efeitos à natureza local.

A mesma relação íntima desenvolvida entre história e natureza política e social é vista

nos livros de Mario Vargas Llosa. Em La Casa Verde, a amplitude temática associada à uma

abordagem estética natural é anunciada já no primeiro capítulo do livro. Aí, os personagens que

representam o governo e a igreja, símbolos do poder colonial e ainda bastantes poderosos na

região, se reúnem para o resgate das índias que haviam fugido do cativeiro imposto pelas madres

da igreja católica. Assim, principia a narrativa: “El sargento echa una ojeada a la madre

Patrocinio y el moscardón sigue allí. La lancha cabecea sobre las aguas turbias, entre dos

murallas de árboles...”(La Casa Verde 13). O olhar do sargento para a madre Patrocinio junto à

descrição do espaço natural na abertura do livro simboliza bem a conexão estabelecida entre o

poder político e religioso e seus efeitos na natureza da região. Com uma narrativa que explora

bastante a plasticidade das descrições naturais, Mario Vargas Llosa anuncia assim o caráter

político de sua narração aliada a metáforas e descrições detalhadas da natureza da selva

amazônica.

159 Maurício Aguiar Serra e Ramón García Fernández, no artigo “Perspectivas de desenvolvimento da Amazônia: motivos para o otimismo e para o pessimismo”, analisam os projetos de desenvolvimento da Amazônica que incluíam, no governo militar, o desenvolvimento da agroindústria, agropecuária, rodovias, projetos de colonização privada, extração de minérios, etc. (6). Alguns dos projetos citados ao longo deste artigo são: 1)a rodovia federal BR-210, uma das obras do Plano de Integração Nacional do Governo Militar para desenvolvimento e ocupação da Amazônia Brasileira, cortava uma grande extensão do território Yanomâmi; 2)o projeto carajás, lançado em 1966 com o objetivo de produzir minérios em escala industrial para o abastecimento do mercado internacional; 3) o projeto JARI, instalado no Estado do Pará em 1967, com o principal objetivo de substituição da floresta tropical heterogênea por plantio homogêneo de Gmelina arbórea. O norte-americano Daniel K. Ludwig, único dono das terras do JARI , investiu mais de 750 milhões de dólares e declarou-se proprietário de 1.200.000 hectares de terras ,compradas ao preço de 2,50 dólares por hectare. Todos estes projetos entre outros tiveram conseqüências catastróficas para a natureza e os habitantes desta região. 243

Em El Hablador, o aspecto político das temáticas debatidas já começam a envolver mais

uma reflexão sobre o capitalismo globalizado. Nesta obra, o contraste entre a selva, as aldeias

indígenas e as grandes corporações serão os elementos mais trabalhados para refletir sobre a

degradação ambiental. Fazendo uma análise sobre as conseqüências sofridas pelos indígenas da

área em decorrência de uma economia globalizada, o narrador-romancista avalia:

Esas aldeas, claro está, se habrán visto expuestas al irresistible mecanismo perturbador de esa civilización contradictoria, representada por los buenos salarios de la Shell y de Petro Perú, las arcas llenas de dólares del tráfico de la y los riesgos de verse atrapados en las carnicerías de la guerra de traficantes, guerrilleros, policías y soldados...(El Hablador, 229)

Esta declaração feita no final de El Hablador, à guisa de considerações finais, deixa clara a

contradição entre uma riqueza natural que traz grandes companhias e rendimentos mas que

também atrai exploradores do seu ambiente e das comunidades locais. A exploração dos países

pobres pelas grandes multinacionais estrangeiras é um problema atual e de constante discussão

no mundo globalizado. Num texto “Moçambique: a maldição da abundância” publicado em 2012

na sua coluna online de um jornal português, BoaventuraSouza Santos usa a expressão “maldição

da abundância” para caracterizar os riscos que correm os países pobres onde se descobrem

recursos naturais, objetos de cobiça internacional. Boaventura Sousa Santos chama a atenção

para o fato de que as descobertas de riquezas naturais para países “subdesenvolvidos” parecem

agir sobre estes como uma verdadeira maldição.

A maldição da abundância ocorre quando as empresas multinacionais estrangeiras

juntamente com os governos locais corruptos causam imensos prejuízos para o ecossistema local

e, inevitavelmente, para as suas comunidades. 160 As comunidades indígenas da Amazônia já

160 Para exemplificar o conceito de “maldição da abundância”, Boaventura Sousa Santos discute, especificamente, a exploração dos recursos naturais de Moçambique pela multinacional brasileira Vale do Rio Doce. A companhia Vale do Rio Doce também está envolvida atualmente com o grande debate sobre a construção de uma represa na Amazônia na região de Belo Monte. Votada como a pior empresa do mundo por uma enquete promovida pelas

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haviam sofrido da maldição da abundância durante o período de exploração da borracha e os textos literários de Mario Vargas Llosa são um bom testemunho do sofrimento imposto à natureza e às comunidades locais. Em El Hablador, por exemplo, o narrador-hablador faz questão de observar que durante o período de exploração da borracha, o sofrimento foi sentido não somente pela natureza como também pelos indígenas da região capturados pelo sistema de resgate para trabalhar nos seringais: “Igual que los árboles, las familias comenzaron a sangrar.

Todos cazaban todos” (El Hablador 135).

Este trecho faz parte da narrativa do narrador-hablador, o judeu Saúl Zuratas. O discurso de Saúl é imbuído de uma predileção em favor das tribos locais e isto fica explícito também na parte ensaística da obra. No capítulo II de El Hablador, o narrador-romancista conta sua conversa com seu amigo de faculdade, Saúl Zuratas onde este faz um discurso de forte cunho ambiental em defesa da florestas e das tribos indígenas locais. Aqui, Saúl relata para o narrador- romancista a destruição causada pelos exploradores da floresta em oposição a maneira como os indígenas lidavam com o seu meio ambiente. Saúl denuncia esta destruição:

– La pesca con explosivos, por ejemplo. Se supone que está prohibida. Pero, anda y mira, compadre. No hay río o quebrada en toda la selva donde los serranos y los viracochas – así nos llaman a los blancos – no ahorren tiempo pescando al por mayor, con dinamita. ¡Ahorren tiempo! ¿Te imaginas lo que eso significa? Cartuchos de dinamita pulverizando día y noche los bancos de peces. Las especies están desapareciendo, viejito. (El Hablador 24-25)

ONG’s The Berne Declaration e Greenpeace, a Vale do Rio Doce vem sendo criticada pelo seu descaso com direitos humanos, condições subumanas de emprego e destruição do ecossistema. Neste artigo, Boaventura Sousa Santos é enfático sobre os problemas desta multinacional e faz uma análise sobre as conseqüências negativas da Vale do Rio Doce e outras multinacionais em geral: “As grandes multinacionais, como a Rio Tinto e a brasileira Vale do Rio Doce[…]contaminam as águas, violam impunemente os direitos humanos das populações onde existem recursos, procedendo ao seu reassentamento em condições indignas, com o desrespeito dos lugares sagrados e dos ecossistemas que têm organizado a sua vida desde há centenas de anos. A Vale do Rio Doce é hoje um alvo central das organizações ecológicas e de direitos humanos, pela sua arrogância neocolonial e pelas cumplicidades que estabeleceu com o governo…”

245

Logo em seguida, o narrador-romancista reflete sobre este posicionamento de Saúl Zuratas como

algo relativo a um pensamento em voga num determinado período da história latino-americana.

O narrador-romancista se refere aos anos 60, quando as teorias de dependência econômica aliada

à uma ideologia marxista tomava conta dos meios acadêmicos. Entretanto, o narrador-romancista

caracteriza seu amigo Saúl Zuratas como alguém que viveu de forma intensa a ideologia que

pregava. Assim, o narrador-romancista descreve seu amigo Saúl neste contexto:

La idea del equilibrio entre el hombre y la tierra, la consciencia del estupro del medio ambiente por la cultura industrial y la tecnología moderna, la revaluación de la sabiduría del primitivo, obligado a respetar su hábitat so pena de extinción, es algo que en aquellos años, si todavía no era una moda intelectual, ya comenzaba a echar raíces por todas partes incluido el Perú. Mascarita debió vivir todo esto con una intensidad particular, al ver con sus propios ojos las grandes devastaciones que los civilizados perpetraban en la selva y la manera como, en cambio, los machiguengas convivían armoniosamente con el mundo natural. (El Hablador 231-232)

Para o narrador-romancista, embora o Mascarita tenha vivido estas questões de maneira

verdadeira, a visão de seu amigo Saúl era restrita e ignorava a exploração que os próprios

indígenas faziam no seu meio-ambiente. Para tanto, o narrador-romancista expôs um contra-

discurso de culpabilidade dos locais na destruição da natureza para justificar um possível

progresso ou uma incorporação da região à uma economia global. O narrador-romancista

retrucou o argumento de Saúl da seguinte maneira: “¿- Y la pesca con venenos, Mascarita? ¿No

la inventaron acaso los indios de las tribus. También ellos son unos depredadores de la

Amazonía, pues” (El Hablador 25). Este argumento, obviamente, é um pensamento perverso ao

desconsiderar a diferença entre a prática de sustentabilidade dos indígenas e as práticas de

exploração econômica extrativista que a Amazônia sofreu durante tantos anos.161

161 Martinez-Alier fala sobre a relação entre as comunidades locais e as grandes corporações que exploram o território com uma economia extrativista. Mais importante do que isso, Martinez-Alier também faz uma análise extremamente lúcida sobre a dinâmica das econômicas extrativistas e suas conseqüências para estas regiões. O economista afirma: “In an extractive economy, the flows of materials and energy are not incorporated in

246

Mario Vargas Llosa apresenta em El Hablador, diferentemente de La Casa Verde,

através da dicotomia de dois narradores, uma visão mais restrita dos problemas ambientais e

econômicos da região. Obviamente, do ponto de vista narrativo, a utilização de um personagem

em primeira pessoa como narrador poderia isentar o livro de uma carga superficial não fosse este

mesmo narrador revelado, ao final, como o único narrador da obra.

A questão política, seja ela ligada a um tema ecológico ou não, é um dos pontos mais

polêmicos da obra de Vargas Llosa. No livro Vargas Llosa's Fiction and the Demons of Politics,

Sabine Köllmann fala sobre a trajetória do pensamento político na obra de Vargas Llosa. Neste

livro, a autora fala do início do envolvimento do escritor em questões políticas exatamente no

ano de publicação de El Hablador. A partir de então, Köllmann percebe uma maior tendência da

crítica em ressaltar o pensamento neo-liberal das obras e, com isso, a modificação do status de

neutralidade que antes Vargas Llosa dava ao escritor. 162 Jean Franco, no livro The Decline and

Fall of the Lettered City: Latin America in the Cold War faz uma brilhante análise sobre a figura

política de Mario Vargas Llosa, principalmente, no que diz respeito à sua perspectiva sobre o

“escritor” e a “literatura”, entidade neutras para Vargas Llosa. Franco diz que, sem perceber,

infrastructure which facilitates continuous development. An extractive economy also destroys the local civil society …the extractive economy produces a lack of local political power, and at the same time local poverty, and therefore incapacity to stop the extraction or to raise prices of extracted resources. Similarly this happens if a region is converted to a place where hazardous industries or residues are inserted” (“Ecology and the Poor: A Neglected Dimension of Latin American History” 626-627).

162 Köllman afirma que Vargas Llosa tomou os passos decisivos para entrar na política no verão de 1987 quando se tornou líder do movimento liberal contra a nacionalização dos bancos, que os partidos sociais democráticos do Peru haviam planejado. Em 1988, ele se afilia efetivamente a um partido político e Köllman avalia as conseqüências desta atitude com as seguintes palavras: “By becoming a politician in 1988 he indeed lost his independence, the intellectual’s real strength, and had to put away his literary vocation, which he had always regarded as his only way of being. Fortunately enough for his readers, Vargas Llosa’s activity as a politician did not last very long, and has borne fruit in his memoirs El pez en el agua, in which he leaves no doubts about his disillusionment concerning politics” (Vargas Llosa's fiction and the demons of politics 74). Köllmann sugere um caminho cíclico do pensamento político do escritor, que, como no início de sua carreira, estaria atribuindo à literatura a mesma característica de rebeldia e insurreição hoje em dia.

247

Vargas Llosa ignora que o neo-liberalismo também faz parte da estrutura política do estado,

portanto, a sua escritura perde a neutralidade e rebeldia tão desejadas.163 Não cabe aqui uma

extensa análise política da obra de Mario Vargas Llosa, porém é importante ver este aspecto na

obra do peruano para analisar a associação de uma consciência ambiental a um pensamento

político.

Além do aspecto político, as obras de Milton Hatoum e Mario Vargas Llosa também

compartilham com a novela de la selva um outro aspecto bastante importante na análise de uma

leitura ambiental das obras: a utilização do elemento natural como um recurso plástico na

caracterização do espaço regional amazônico. Em La Casa Verde, a grande exploração da

personificação da natureza e outros recursos plásticos levou alguns críticos a considerarem que a

obra resgatara os tropes literários da novela de la selva. Segundo Castro-Kláren, a diferença está

essencialmente na não gratuidade das descrições naturais da obra de Vargas Llosa. Castro-Kláren

argumenta da seguinte forma:

To some, however, it still objectionably deals with the old Latin American topics of man versus nature, exoticism and quaintness of local costume, and the dominating presence of great telluric forces. All that is indubitably present in La casa verde, and yet it is fundamentally different from the Doña Bárbaras, and Las Vorágines. This difference is based on the disappearance of the formerly gratuitous exuberance of nature and action, together with the emergence of a finely elaborated body of human relationships as the nucleus of the novel. (“Fragmentation and alienation in La Casa Verde” 289)

163 Jean Franco afirma que ao colocar a literatura como um lugar de rebeldia, Vargas Llosa está, em verdade, tentando colocar-se em um lugar neutro e privilegiado. Jean Franco esclarece que Vargas Llosa vai de encontro ao estado através do conceito de neoliberalismo, sem ver que este faz parte das malhas do estado. Assim Jean Franco explica este assunto: “...[he] overlook[ed] the fact that neoliberalism also functions within the framework of the state and has its own systems of control. The logics of “freedom” as defined in the trenches of the Cold War became indistinguishable from the market place” (The Decline and Fall of the Lettered City: Latin America in the Cold War 56).

248

Em La Casa Verde, os capítulos sempre principiam com uma descrição pormenorizada do

espaço natural. É impossível ignorar as extensas descrições do espaço natural da região e a

relação dos personagens com esses espaços. O capítulo II da parte III, por exemplo, apresenta no

início a personalização da natureza numa cena com Bonifácia: “Entonces, siguió avanzando,

pero muy inclinada y ya no por la orilla sino internada en la maleza, arañándose los brazos, la

cara y las piernas con los filos de las hojas, las espinas y las lianas ásperas, entre zumbidos,

sintiendo viscosas caricias en los pies” (La Casa Verde 285).164

Há uma simbologia sobre as dificuldades de viver no ambiente local que poderia resultar

em uma satanização do ambiente da selva, afinal, “la vida era dura para los hombres de la

Amazonía” (La Casa Verde 204). Todavia, as descrições da natureza adquirem um tom eco-

político e maior complexidade através de outras técnicas narrativas usadas nestas passagens. Em

La Casa Verde, um exemplo emblemático da complexidade do uso do elemento natural como

recurso está no episódio onde há o embate entre Jum e Julio Reátegui:

...Julio Reátegui libera la linterna que cuelga de su cinturón, la sujeta con todo el puño...Reátegui golpea: gritos, carreras, polvo, que lo cubre todo, la estentórea voz del capitán. Entre los aullidos y los nubarrones, cuerpos verdes y ocres circulan, caen, se levantan y, como un pájaro plateado, la linterna golpea una vez, dos, tres…Los soldados están desplegados en círculo, sus fusiles apuntan a un ciempiés de urakusas adheridos, aferrados, trenzados unos a otros. (172)

A descrição dos corpos dos urakusas feridos como verdes e ocres aproximam o ser humano local

ao seu ambiente. Além de ter um cunho social e político, a passagem tem uma forte

complexidade textual, onde câmbios de vozes narrativas e diálogos indiretos imprimem uma

164 Também no capítulo I começa com uma descrição plástica e delhada do espaço natural, como já visto anteriormente. O capítulo II da parte Dos também começa com descrições da natureza local: “La luna, muy alta, iluminaba la terraza y en el cielo y el río había muchas estrellas; tras el bosque, suave valla de sombras, los contrafuertes de la cordillera eran unas moles violáceas”(La Casa Verde 179). Ou ainda, no começo do capítulo III da parte Tres: “Entre los árboles y el agua, los uniformes tenían una apariencia vegetal...Los envolvía una claridad verdosa que se filtraba por el laberíntico ramaje y, entre las hojas, ramas y lianas, muchos rostros lucían picaduras, Arañazos violetas” (La Casa Verde 313).

249

rapidez coerente com a cena de luta entre indígenas e governo. Portanto, a personificação e

simbiose entre natureza e os seres locais dá dramaticidade sem se perder numa retórica vazia.

Contudo, as metaforizações ou personificações do elemento natural, em La Casa Verde,

por vezes também se utilizam da atribuição de forças dialéticas da natureza, como na história da

salvação de Antonia.165 Além disso, a este rasgo naturalista agrega-se a utilização do elemento

natural como recurso para sinalizar momentos de conflito na trama. Em La Casa Verde, antes do

rapto de Toñita por D. Anselmo, uma tempestade de areia preparou o espaço para esta ação.

Juana Baura, que cuidou de Toñita depois da morte de seus familiares, enfrentou uma tempestade

de areia no dia do desaparecimento de Toñita para depois saber que esta havia sido raptada por

Anselmo: “Encendió una vela, Antonia no había llegado...La arena bajaba ahora densa, visible y

Juana se cubrió la boca y la nariz. Recorrió muchas calles, tocó muchas puertas...dónde está

Antonia” (La Casa Verde 199). Em outro episódio, também uma tempestade de areia já havia

anunciado a chegada do misterioso forasteiro Anselmo, o futuro fundador da Casa Verde:

“Cuando, acabada la lluvia de arena, los primeros vecinos asomaron a la plaza enteramente

iluminada por el sol, el extraño dormía” (67).

Em Dois Irmãos, a construção do espaço narrativo também conta com o elemento natural

para sinalizar ações de conflito na obra. Por exemplo, especificamente na parte 7 da narrativa, a

165 No texto “Fragmentation and alienation in La Casa Verde”, Sara Castro-Kláren fala como há um tratamento dialético marxista na relação entre a natureza e o ser humano em La Casa Verde. Castro-Klarén afirma: “...the relationships of man to nature in La Casa Verde are definitely tinged with a Marxian dialectic. Nature in the jungle is a being or a force that opposes itself not man” (“Fragmentation and alienation in La Casa Verde” 293). O caso mais emblemático em La Casa Verde que Castro-Kláren irá citar é o episódio que envolve a personagem Toñita. Sugere-se que esta personagem, que havia sido atacada por um bando de ladrões juntamente com sua família no deserto de Piura, teve sua vida preservada pelo ar seco deste deserto. Quando perguntam por que Antonia não havia morrido despois de ter seus olhos e língua devorados por urubus, esta foi uma das respostas: – ¿Por qué no murió? …. – Difícil saberlo…Tal vez el sol y la arena cicatrizaron las heridas y evitaron la hemorragia … – La lamería una iguana…Porque su baba verde no sólo aguanta el aborto, también seca las llagas” (La Casa Verde 169). O sol que castigou e quase a matou de sede foi também aquele que curou as suas feridas.

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“inundação” pela chuva da cidade de Manaus ocorre com a invasão do governo militar que veio

ocasionar a morte do poeta e professor Laval. A utilização estética do elemento natural faz parte

de uma organizada construção para a denúncia do governo militar, especificamente, do golpe de

1964 que derrubou o então presidente João Goulart.166 Assim o narrador descreve o episódio da

morte de Laval:

Laval foi arrastado por um veículo do Exército, e logo depois as portas foram fechadas...depois soubemos que Antenor Laval estava morto. Tudo isso em abril, nos primeiros dias de abril. Choveu muito, um toró dos diabos, no dia de sua morte. Mesmo assim, alunos e ex-alunos de Laval se reuniram no coreto...Estava emocionado e triste, o Caçula. A chuva acentuava a tristeza, mas acendia a revolta...A cidade estava meio deserta porque era um tempo de medo em dia de aguaceiro. (Dois Irmãos 190-191)

A construção de um espaço dramático para a histórica Revolução de Abril com o elemento

natural da chuva condiz com o esmagador sentimento de poder dos representantes do governo

militar durante a tomada da cidade de Manaus. Obviamente, o trabalho literário com o elemento

natural contribui também pôr ênfase na construção estética e nas emoções e não num discurso

político.167

Esta invasão dos militares, decisiva para uma mudança de rumos na narrativa, culmina

com a morte de um dos personagens mais importantes da trama, Halim. Esta morte também é

166 A parte 7 da narrativa, onde ocorre a morte de Laval, começa da seguinte forma: “Na primeira semana de janeiro de 1964 Antenor Laval passou em casa para conversar com Omar” (Dois Irmãos 185). Daí, o narrador vai relatando os meses que culminaram com a revolução de abril pelos militares e, conseqüentemente, a morte de Laval. A descrição dos fatos políticos não é feita de maneira panfletária e requer do leitor atenção para as associações dos eventos narrativos com os fatos históricos. 167 Hatoum parece estar mais interessado em fazer uma narrativa emocionalmente relevante. Isso fica bastante evidente na opinião do narrador Nael diante das especulações da vida de Laval: “Só um zunzum corria nos corredores do liceu, dois dedos de mexerico da vida alheia, dele, Laval. Um: que fora militante vermelho, dos mais afoitos, chefe dos chefes, com passagem por Moscou...O outro rumor, bem mais triste. Diz que havia muito tempo o jovem advogado Laval vivia com uma moça do interior. Líder e orador nato, ele fora convocado para uma reunião secreta, no Rio. Levou a amante e voltou a Manaus sozinho. Falou-se de traição e abandono. Versões desiguais, palavras desencontradas e afins” (Dois Irmãos 192). Este parece ser um bom exemplo para a narrativa de Dois Irmãos, como um todo, pois o livro não só traz uma versão politicamente pertinente, mas também emocionalmente pertinente.

251

anunciada ao narrador pelos elementos da natureza. Nael assim descreve os momentos antes da morte de seu avô Halim:

Deram duas horas e nada do Halim chegar....Um nambuaçu piou por ali; olhei para o chão do quintal, nem sombra da ave. Depois reconheci o canto de um anum, me senti melancólico, mareado. As copas escuras cobriam os fundos da casa. Um barulhinho esquisito riscava a noite, podia ser mucura faminta no faro de um poleiro ou morcegos mordendo jambo doce. (Dois Irmãos 212)

Milton Hatoum, portanto, usa o elemento natural misturando descrições que oscilam entre uma perspectiva sentimental e sociopolítica sem cair na opacidade de uma narrativa meramente plástica. Aliás, o “retorno ao natural” não significa apatia ou busca de um lugar bucólico em

Dois Irmãos. Portanto, a continuidade do episódio da invasão dos militares também é usado para afirmar uma perspectiva ecológica engajada e ativa. A reclusão do personagem Omar ao espaço natural da casa, por conseqüência da morte de Antenor Laval, é usada astutamente pelo autor para criticar a utilização da natureza como refúgio ou espaço bucólico.

Após a morte do poeta e militante Laval pelos militares, Omar entra em um processo de isolamento e torna-se o “jardineiro” do quintal da família árabe (Dois Irmãos 203-208). Sobre esta transformação de Omar, o narrador relata: “Não esqueceu Laval e continuou confinado mesmo depois da partida do irmão...Então ele deu de catar frutas podres no quintal, frutas e folhas que depois varria, amontoava e ensacava” (Dois Irmãos 203). Diante desta situação, Nael questionava: “Quanto tempo ele ia brincar de jardineiro, de faxineiro? Até quando ia durar o autoflagelo daquele fraco?” (Dois Irmãos 215) A reclusão de Omar diante de uma situação política adversa é ridiculariza pelo narrador que, simbolicamente, projeta no espaço natural a sociedade da qual fugira Omar. Enquanto Omar cuida do jardim em sua fuga melancólica de uma realidade política adversa, Nael é ainda o que faz as tarefas funcionais de manutenção do quintal da casa. Assim, descreve Nael a atitude de Omar:

252

Diz que trepou na seringueira para descansar e meditar, ou, quem sabe, contemplar o mundo lá do alto, como fazem as divindades, as aves e os símios. Aqui no chão, o mundo era menos ameno, infestado de formigueiros, pragas e vassouras-de-bruxa; os cupinzeiros cresciam do dia para a noite, esculpindo murundus escuros na cerca de madeira e no tronco das árvores. Omar sempre se esquecia de destruir os cupinzeiros, e eu sabia que essa tarefa ia sobrar para mim....E que prazer era presenciar toda uma hierarquia de insetos virar cinza. (Dois Irmãos 216)

O ‘jardineiro’ Omar se isentava das tarefas funcionais do jardim e Nael era o encarregado de destruir a “hierarquia de insetos” que invadiam o quintal. Esta destruição de uma hierarquia de insetos pode também ser entendida como uma alusão às tropas de soldados que tomaram a cidade de Manaus do “dia para a noite”. Novamente, há uma referência indireta da função de denúncia do escritor, neste caso, o narrador Nael dos problemas enfrentados na região.

Neste sentido, tanto em Dois Irmãos como El Hablador é avaliada a função do escritor com relação às questões sociais e ecológicas. Em El Hablador, a consciência sobre o papel do escritor é o grande mote da narrativa e o narrador-romancista coloca-se como aquele que retorna ao natural para falar sobre os problemas sociais que enfrentam as comunidades locais da

Amazônia. No capítulo IV, especificamente, o narrador-romancista descreve este seu encontro com a natureza e as comunidades amazônicas:

Viajábamos en un pequeño hidroavión y, en ciertos lugares, en canoas indígenas, a través de delgados caños de aguas sumergidas bajo una vegetación tan intricada que, en pleno día, parecía de noche. La fuerza y la soledad de la Naturaleza – los altísimos árboles, las tersas lagunas, los ríos inmutables – sugerían un mundo recién creado, virgen de hombres, un paraíso vegetal y animal...El viaje me permitió entender mejor el deslumbramiento de Mascarita con esas tierras y esas gentes. (El Hablador 71)

Adquirir um maior entendimento sobre a Amazônia e os problemas que enfrentam sua natureza e suas comunidades locais é o objetivo do narrador-romancista para a escritura de seu livro. Ou seja, a experiência do narrador-romancista com a floresta ocorre por meio da escritura de um

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romance, de uma vivencia estética. Assim, a experiência de escrever as comunidades amazônicas e a natureza em El Hablador é metaliterária e extremamente consciente da função do próprio escritor, um verdadeiro hablador contemporâneo. Na narrativa do narrador-romancista, alter ego de Vargas Llosa, as descrições da natureza e o testemunho do processo aniquilador de modernização pelo qual passaram os machiguengas são feitas dentro de uma retórica memorialista e ensaísta.

A parte do narrador-hablador, dicotomicamente interposta ao do narrador-romancista, está concebida como uma retórica “outra”, emprestada e mimética de uma voz que leva a personificação dos elementos naturais à construção mítica. Portanto, o texto do narrador- romancista, com suas reflexões sobre o processo da escrita, serve como base crítica para a análise do texto mítico, dicotomicamente intercalado. A consciência do processo de escritura e a complexidade dos recursos estéticos de El Hablador são, definitivamente, elementos de diferenciação desse “retorno ao natural” e do tratamento estético diante da novela de la selva.

Portanto, embora as questões ambientais associadas às questões sociopolíticas da

Amazônia aparecessem nos romances da novela de la selva, há uma diferenciação estética fundamental em comparação com as narrativas de Milton Hatoum e Mario Vargas Llosa. O aperfeiçoamento estético na narrativa do “natural” é um grande aliado para fazer com que as obras de Milton Hatoum e Mario Vargas Llosa possam catapultar os problemas ambientais e sociais da região para um mercado globalizado. Pois, há que se lembrar que as obras desses dois escritores – especialmente em El Hablador e Dois Irmãos – não só usam temáticas globalizadas como também fazem parte de um mercado literário globalizado. Tanto Milton Hatoum como

Mario Vargas Llosa, em suas devidas proporções, têm obtido bastante sucesso no mercado estrangeiro. As obras de Hatoum, por exemplo, já foram traduzidas em doze línguas e publicadas

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em catorze países obtendo alguns prêmios internacionais e a publicação de contos, ensaios e

artigos em revistas internacionais.168 Mario Vargas, por sua vez, teve suas obras traduzidas para

mais de quarenta línguas e ganhou vários prêmios internacionais, sendo o maior, o prêmio Nobel

de literatura de 2010.

Falar de assuntos globais tendo suas obras circulando dentro de um mercado globalizado

é muito mais eficaz, pois o poder de alcance da produção literária é obviamente maximizado.

Desta forma, as técnicas de correlação entre o espaço regional com o global dentro das narrativas

aliadas ao sucesso destes escritores no mercado de livros atraem os olhares estrangeiros para os

problemas sociais amazônicos de maneira mais efetiva. O efeito bumerangue causado por estas

obras consegue chamar atenção para questões ambientais e sociais e formar redes entre

diferentes localidades globais. De fato, as obras de Milton Hatoum e Mario Vargas, mais do que

perceber qualquer cidadania ecológica global, chama atenção para a relação entre as

necessidades presentes do pobre de uma específica região do planeta e as das gerações futuras

pelas vozes de escritores de regiões periféricas dentro de um mercado globalizado.

168 O escritor também tem uma página web onde se pode encontrar informações sobre as suas obras, fortuna crítica e informações em diferentes línguas. No website miltonhatoum.com.br, há informações sobre os principais prêmios internacionais, residências internacionais e publicações do/sobre o autor no mundo. Em nossa entrevista, Hatoum mostrou que participa, senão ativamente, mas indiretamente do melhoramento da página (27 May 2011).

255

Conclusão

A título de reflexão final sobre o processo de reavaliação do regionalismo amazônico diante da análise das obras La Casa Verde e El Hablador de Mario Vargas Llosa e Dois Irmãos de Milton Hatoum, é preciso sintetizar alguns aspectos centrais para enfatizar a singularidade e mudança de uma nova perspectiva de escrita contemporânea da região como espaço narrativo e, especificamente, da região amazônica dentro deste novo sistema literário.

A análise teve por finalidade afirmar que uma nova variedade de regionalismo literário, representada aqui por estas obras, desafia representações nacionais hegemônicas do Peru e do

Brasil e conceitua Amazônia como espaço dentro de um sistema capitalista global. Desta forma, no primeiro capítulo, avaliou-se o aparato crítico usado para as diferentes vertentes anteriores do regionalismo latino-americano propondo um conceito de “região” como invenção (Albuquerque

Jr. A Invenção do Nordeste 24) ou “criação mitopoética” (Dainotto, Roberto Maria “‘All the

Regions Do Smilingly Revolt’: The Literature of Place and Region” 489).

Desta forma, intentou-se instigar neste primeiro capítulo – deixando a análise específica das obras de Mario Vargas Llosa e Milton Hatoum aos capítulos seguintes –, uma reflexão crítica sobre os pressupostos teóricos que lidavam com as premissas de que a “região” equalizava-se com “pluralização” e “diversidade” – como pregava o antropólogo brasileiro e ferrenho regionalista, Gilberto Freyre. Assim, pretendeu-se mostrar que a invenção institucionalizada da região como uma comunidade homogênea foi produzida por um processo de apagamento das diversidades discursivas do espaço literário e fomentada pelos aparatos do estado-nacional, ao qual só aparentemente se opunha.

256

A partir do final do século XX e princípios do século XXI, principalmente, quando a

América Latina adquire um caráter cada vez mais transnacional e o fenômeno da globalização se

torna mais presente, é possível notar um afastamento progressivo das obras literárias de uma

linguagem nacional. Dentro deste novo panorama, o regionalismo, que já funcionava como um

espaço de resistência contra a idéia falsa de uma América Latina moderna, começa a adquirir

contornos ainda mais complexos. Como o espaço regional que, mesmo à revelia de suas

realidades internas, era visto como espaço de resistência a um nacionalismo homogêneo e

hegemônico será afetado dentro deste novo sistema? Esta foi uma das perguntas que guiaram as

pesquisas para avaliar a reelaboração do gênero.

Valer-se da perspectiva de Alberto Moreiras sobre um novo conceito de regionalismo

crítico pareceu bem pertinente por este teórico também reivindicar uma mudança epistemológica

do regionalismo onde se possa desconstruir as macronarrativas da modernidade, preservar a

unidade latino-americana e, ao mesmo tempo, participar de um sistema global de representação

(The exhaustion of difference 49). Esta perspectiva permite começar a conceituar o regionalismo

no mundo contemporâneo com a verdadeira complexidade que merece – ao pensar o espaço

regional sem considerar um discurso apologético de seu status no mundo contemporâneo – e, ao

mesmo tempo, sem negar as novas possibilidades de conexão e exposição no sistema literário

global.169

169 Em verdade, o movimento da globalização já usa e manipula o elemento regional no discurso apologético ,porém superficial e falso da região, como simples espaços de liberação de uma hegemônica e opressora visão nacional. Roland Robertson, por exemplo, é um dos teóricos que alegam que o processo de universalismo proporcionado pelo fenômeno global daria um novo status de relevância e maior autonomia para a região (“The Universalism - Particularism Issue” 25). Esta postura revela-se perigosa ao descartar os problemas maiores advindos do fenômeno global capitalistas para as regiões marginais em relação aos epicentros econômicos.

257

Portanto, num esforço por analisar criticamente as características e conseqüências reais da transnacionalidade no espaço narrativo regional, uma perspectiva mais realista de críticos como Octavio Ianni (Teorias da Globalização 211), Mabel Moraña (“Indigenismo y globalización” 248) e David Harvey (“Time-space compression and the postmodern condition”

13) sobre a globalização e os efeitos desta, principalmente, nos países marginais aos epicentros econômicos mundiais foi essencial para nortear estes estudos. Através desta perspectiva foi possível entrever a importância e função renovada do regionalismo como denúncia sobre a falácia que foi a modernidade e os diferentes processos de internacionalização econômicos. A

Amazônia, em específico, foi uma região apresentada como uma antagonista à modernização latino-americana em várias obras literárias. Concebida como um berço do primitivo e fonte da originalidade primária americana, a Amazônia também passou por processos modernizadores com intento de assimilá-la completamente ao corpo nacional. As falidas tentativas não só serviram como uma forma de denúncia dos simulacros engendrados pela modernização mas também deixou efeitos indeléveis em suas sociedades.

Porém, igualmente importante foi perceber como esta região deixa complexa uma discussão sobre transnacionalidade e obriga-nos à reflexão sobre as diferentes implicações que incorrem a análise de distintas regiões, com suas características específicas, na dinâmica de reestruturação do gênero regional. A Amazônia se mostrou uma região peculiar e especial para o pensamento sobre o transnacionalismo contemporâneo por sempre ter desafiado, em sua geografia natural, qualquer tentativa de construção de limites fronteiriços e ideológicos nacionais.

Interessantemente, foi possível perceber que, dentro desta estrutura, o espaço narrativo amazônico dentro das obras de Mario Vargas Llosa e Milton Hatoum, ao invés de expurgarem o

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passado regional – como uma tendência futurista sobre a temporalidade contemporânea –, incitam um processo de reavaliação das obras da tradição regionalista amazônica. Embora ambos os autores resistam à afiliação com quaisquer gêneros regionalistas amazônicos, a reavaliação do espaço narrativo transnacional amazônico estimula a reflexão de como esta característica, em outros períodos de internacionalização econômica da região, fora utilizada por obras literárias antecedentes.

Para tanto, no segundo capítulo, faz-se uma reflexão dos pontos similares porém renovados que estes autores tem com a tradição regional local. O status da região através de um viés memorialista e mítico, a desconstrução de personagens arquetípicos regionais, a prescrição de exótica e o desafio constante em retratar a importância da oralidade no local foram os tópicos escolhidos para rever o status do espaço narrativo regional amazônico. A estruturação memorialista de La Casa Verde, El Hablador e Dois Irmãos coincidentemente exploram o período do boom e pós-boom da borracha em similaridade com algumas outras obras regionalistas da região. Este memorialismo associado ao trabalho com o mito dentro dos textos remete à construção simbólica dos escritos coloniais e da literatura produzida ao redor das imagens dicotômicas da região, como paraíso ou inferno verde.

Porém, o aspecto mais importante desta reelaboração a ser destacado nesta síntese é a maneira híbrida e global como estes mitos são entrelaçados e, principalmente, se revelam nas narrativas explicitamente como trabalhos fictícios. Em La Casa Verde, a construção obscura do mito da casa verde ou do surgimento de personagens como Anselmo ou Jum é claramente exposta pelo narrador e a criação vaga e fictícia em torno de fatos e personagens é sempre desafiada por uma ambigüidade permanente. Este trabalho metalingüístico cresce na obra El

Hablador, tornando-se mais similar ao processo de Dois Irmãos de Milton Hatoum que usa de

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narrador homodiegético seletivo na escolha da elaboração de suas memórias no texto. É nestas obras que a construção mítica literária como reelaboração fictícia que engloba distintas referências globais torna-se mais nítida aos olhos do leitor. As referências cristãs, hebraicas e indígenas em El Hablador, assim como os mitos cristãos, lendas indígenas e cultura literária em

Dois Irmãos são de extrema importância nesta dinâmica híbrida das narrativas.

O reconhecimento do hibridismo cultural nas obras também passa pela análise do personagem amazônico ao reconhecer as diferentes alteridades existentes dentro deste espaço regional. As teorias de Derrida (“Différance” 168), Stuart Hall (“The Question of Cultural

Identity” 598) e Homi Bhabha (The Location of Culture 70) sobre a questão da construção de identidade cultural e de hibridismo foram relevantes para esclarecer a construção e desconstrução de personagens arquetípicos regionais e a sua reelaboração nas obras de Milton Hatoum e Mario

Vargas Llosa.

Foi possível constatar que, nas referidas obras deste escritores, havia uma ênfase na utilização de alteridades inusitadas no espaço literário amazônico (judaica, nipônico-brasileira e

árabe), assim como, ao menos por parte do escritor brasileiro, uma desmistificação das personagens indígenas locais. Este trabalho de reelaboração das personagens regionais chama a atenção por criar relações internacionais com outras alteridade – por vezes, também consideradas exóticas e estereotipadas – e realçar a tipificação do personagem regional através do exagero nas camadas do exótico apresentado nestas associações.

A inserção de diferentes alteridades a este espaço literário – e a simultânea desconstrução da personagem regional – também serviu como uma estratégia eficaz usada pelos autores para reelaborar a perspectiva exótica da região. Levando em consideração o texto “Exotismo” do

260

argentino César Aira e a sua afirmação positiva sobre a ótica exótica, foi possível ver como o jogo utilizado entre narrador e autor, principalmente nos livros El Hablador e Dois Irmãos, foram imprescindíveis para evitarem as imagens desgastadas da região e tornar original algo que era familiar aos nossos olhos.

A diversidade da linguagem oral dessas novas alteridades incorporadas ao espaço amazônico também foi algo explorado pelos autores diante da tradição do gênero. A análise desta exploração das alteridades vai de encontro a um suposto ideal apologético de hibridização, como defenderia Homi Bhabha (“Signs Taken for Wonder: Questions of Ambivalence and

Authority under a Tree outside Delhi, May 1817” 154). O trabalho com esta diversidade e estas associações não implica necessariamente numa visão menos estereotípica destas alteridades.

El Hablador e Dois Irmãos, por exemplo, mostram a construção da oralidade machiguenga por um judeu e das lendas e histórias árabes e indígenas, respectivamente. O tratamento com o status destas distintas culturas difere muito em ambos os livros. El Hablador segue relegando o indígena ao silêncio como já o fazia na narrativa de La Casa Verde. Em verdade, a sentença ao silêncio para os personagens indígenas e o judeu na obra é dada ao final de El Hablador, como um mero blefe metalingüístico pregado pelo seu primeiro narrador homodiegético, alter-ego do autor. A revelação derradeira – de que este narrador era o real transcritor cultural das alteridades machiguenga e judia – ajudou, por um lado, na verossimilhança literária mas, por outro lado, emudeceu grupos minoritários já condenados ao silêncio.

Em Dois Irmãos, a verossimilhança é mantida através de uma memória vaga de um narrador homodiegético, Nael, também perdido nas diferentes referências que formam seu

261

mundo. Nael constrói sua narrativa como um quebra-cabeças ainda não resolvido de si mesmo

com peças providas por Domingas e Halim – representantes destas oralidades e narradores

afluentes da narrativa, segundo Frederico Krüger Aleixo no texto “O Mito de Origem em Dois

Irmãos”.

Estas associações entre os personagens com distintas bagagens culturais serviram, de

maneira mais similar, nas obras de Milton Hatoum e Mario Vargas Llosa para sinalizar um

panorama de cosmopolitismo e globalização correspondente às suas circunstâncias sócio-

temporais. Portanto, o capítulo III analisou as características das obras de Mario Vargas Llosa e

Milton Hatoum com a finalidade de entrever como a realidade estimularia a criação literária e

redefine o sistema textual das obras regionais.170 Reviu-se, assim, o status da região amazônica

através das obras de Milton Hatoum e Mario Vargas Llosa porém a reflexão se fez através da

relação entre os textos e as discussões atuais sobre globalização econômica e cultural.

Obviamente, por questões temporais, as obras El Hablador e Dois Irmãos foram

privilegiadas por haver uma ênfase nos diálogos globais, na procura do ‘global-similar’ e das

complexas relações intra e internacionais estabelecidas no mundo contemporâneo. Contudo, a

utilização da obra La Casa Verde fez-se bastante necessária, principalmente, por refletir a

maneira como os autores ligam os fenômenos globais e culturais do mundo contemporâneo ao

passado amazônico. Para Mario Vargas Llosa e Milton Hatoum, a memória deste passado é um

grande espelho que reflete um futuro e, simultaneamente, a realidade distópica do presente. O

ciclo econômico da borracha, que já havia sido resgatado em La Casa Verde, também é

170 Antônio Cândido, no livro Literatura e Sociedade, fala sobre a realidade como um dos elementos de estímulo para a criação literária (51-57). Embora a perspectiva sociológica do crítico literário possa parecer parcial, serve como uma reflexão fundamental para a crítica literária.

262

trabalhado dentro de El Hablador e Dois Irmãos funcionando, nestes livros mais explicitamente, como elementos de conexão entre passado e presente da região.

Dentro deste processo foi possível notar como Hatoum e Vargas Llosa criaram estratégias que implicam numa nova função, mais relevante, da região amazônica dentro de um contexto global contemporâneo. As memórias desta região – usando a terminologia de Andreas Huyssen, vistas como “disposable data” (“Present Pasts: Media, Politics, Amnesia” 65) – são incorporadas aos grandes acontecimentos históricos mundiais, revistos desde uma perspectiva periférica. Não

é à toa que o crítico Luiz Costa Lima sinaliza a similaridade entre Milton Hatoum e Mario

Vargas Llosa como escritores que expressam a marginalização latino-americana (“A ilha flutuante” 347). Neste processo, pôde-se constatar como a literatura, ainda que dentro de um mercado restrito ao público letrado, exerce uma efetiva função de sinalizar aspectos convenientemente ignorados dentro de um arquivo de memória globalizado.

Esta reflexão não ocorre pura e simplesmente dentro de um sistema abstrato de memórias que analisa superficialmente os fenômenos econômicos ocorridos no espaço amazônico à revelia de uma dominação nacional. Em todas as obras, as relações entre processo econômico global e implicações nacionais estão expostas exemplarmente nas narrativas. La Casa Verde foi a primeira dentre estas a denunciar as relações entre o governo corrupto peruano e os problemas locais advindos desta dinâmica. El Hablador e Dois Irmãos, além de reverem o nacional como agente da exploração da região em épocas passadas, também apontam para o fato de que nada parece ter mudado desde a exploração da borracha e da criação da zona franca de Manaus.

O espaço regional narrativo amazônico, portanto, foi visto como um lugar ferido tanto pelas ideologias político-econômicas globais como nacionais. Desta forma, as idéias mais

263

acertadas sobre a sistemática da globalização concebidas por Arjun Appadurai (“Disjuncture and

Difference” 29) e Saskia Sassen (“Spatialities and Temporalities of the Global: Elements for a

Theorization” 262-263) foram esclarecedoras para analisar esta dinâmica temática das narrativas que vê a mobilidade de capital obedecendo a regras fixas estipuladas pelos estados-nacionais. A dinâmica estabelecida entre Lima – a capital cosmopolita do Peru – e as regiões periféricas desta nação por Mario Vargas Llosa foi vista de maneira paralela à dinâmica ocorrida entre a capital financeira brasileira – São Paulo – e o Amazonas de Dois Irmãos. Enquanto, as regiões ditas interioranas do Peru eram vítimas dos mandos e desmandos da leis implementadas por Lima,

Manaus também se transformava e ‘se modernizava’ às ordens do governo central do Brasil.

Portanto, como uma área à margem do poder político, a região amazônica adquire uma posição duplamente periférica, pois é marginal tanto no nível global como nacional. Porém, é interessante destacar que esta marginalidade permitiu, por um lado, uma visão de isolamento – em sua fraca assimilação a um estado nacional – mas, por outro lado, uma natural independência e autonomia às construções de redes globalizantes. Ambos os narradores de El Hablador e Dois

Irmãos dão o testemunho das ligações diretas estabelecidas entre os personagens da região com os elementos estrangeiros, sem a medição do nacional.

É certo que um dos personagens protagonistas de Dois Irmãos, Omar, consegue estabelecer mais facilmente similaridades entre a Amazônia com o Sul dos Estados Unidos do que com o Sudeste brasileiro. Por sua vez, o narrador-romancista de El Hablador, em sua estada na Europa, também consegue estabelecer paralelos entre a selva amazônica e uma cidade cosmopolita européia sem mencionar a capital de seu país. Logo, para esta análise foram extremamente relevantes o estabelecimento de uma relação entre os diferentes testemunhos da fragmentação nacional nas narrativas para chamar a atenção sobre a importância da Amazônia no

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espaço globalizado porém sem recorrer a ufanias sobre o utópico poder de liberação dos processos econômicos globais.

Mais bem, enfatizaram-se nessas narrativas o poder de revelação das conseqüências negativas da globalização através da memória dos sistemas econômicos na Amazônia e, principalmente, pela utilização de personagens representantes daqueles que viveram, participaram e, ainda, participam desta dinâmica. Dentro de um contexto de hipermobilidade proporcionados pelas ondas migratórias que os processos econômicos globais implicam, La Casa

Verde, El Hablador e Dois Irmãos fazem usos de personagens que simbolizam uma mobilidade transnacional. No caso de La Casa Verde, obviamente, a demonstração ainda é pontual – concentrada no brasileiro-nipônico, Fushía –, porém em El Hablador, todos os personagens principais são símbolos de mobilidade, seja o viajante cosmopolita narrador-romancista, o judeu errante Saúl Zuratas ou a tribo nômade dos machiguengas. Em Dois Irmãos, o testemunho da imigração para a região amazônica foi vista simbolicamente através dos dramas familiares da família libanesa de Halim e Zana e a posterior adaptação às transformações da região com a chegada de novos imigrantes atraídos pela abertura da zona franca de Manaus.

O que a análise quis destacar foi a importância na escolha destas personagens específicas e a sua comum invisibilidade compartilhada. As narrativas desenvolvem estes personagens como verdadeiros outcasts nacionais e globais. A conexão entre o ‘outro’ imigrante e os nativos marginalizados pareceu apresentar uma estratégia de reflexão sobre as possibilidades de associação através das similaridades das desigualdades para, assim, proporcionar uma maior visibilidade por uma conjunta exposição. Com efeito, as idéias dos teóricos Antonio Negri e

Michael Hardt foram de suma importância para esclarecer a formação de redes de similaridades com o seu conceito de commons (Multitude War and Democracy in the Age of Empire 196-202).

265

Além disso, ressalta-se a função das multidões globais de dar visibilidade a uma outra realidade antitética às prósperas conquistas econômicas do fenômeno global.

Porém, esta visibilidade adquirida com as associações periféricas globais não foram concebidas idealisticamente. Tanto Mario Vargas Llosa como Milton Hatoum deram o seu testemunho de que o conhecimento do ‘outro’ – principalmente, dentro de um processo de imigração imediato como é o da globalização mais recente – não ocorre sem o risco de cair em simulacros e representações superficiais das alteridades envolvidas. É dentro deste contexto também que pôde-se comprovar que o elemento regional exerce uma função crucial, segundo a

ótica dos escritores peruano e brasileiro.

Dentro das narrativas de Milton Hatoum e Mario Vargas Llosa, a relação entre o imigrante e o espaço regional é determinante para o estabelecimento de uma maior conexão/ assimilação destes imigrantes. O fracasso pessoal dos personagens Fushía, em La Casa Verde,

Salomón Zuratas, em El Hablador, e Yakub, em Dois Irmãos, está relacionado diretamente à falta de conexão destes personagens com as regiões periféricas e/ou o rechaço de suas alteridades. Desta forma, a ligação estabelecida com a região por estes imigrantes revelou- extremamente relevante para viabilizar conexões mais definitivas e efetivas com o local dentro de um fenômeno globalizante.

O diálogo entre local e global também encontra benefícios no caminho inverso dos debates. Tanto em El Hablador como em Dois Irmãos, é possível perceber que os autores colocam problemas especificamente locais à luz de debates sobre direito e cidadania globais. A ausência dos direitos dos indígenas na região – representados pelos personagens Jum e Bonifácia

(de La Casa Verde), os machiguengas (de El Hablador) e Domingas (do Dois Irmãos) – é um

266

problema colocado no mesmo patamar e equivalente à ausência de direitos do imigrantes do mundo contemporâneo.

A princípio, discutiu-se sobre a ineficácia das leis contemporâneas em garantir os direitos dos cidadãos globais, com os conceitos de “hospitalidade” de Derrida. A hospitalidade caracterizada por Derrida como aporia foi a base das leis contemporâneas e, portanto, mostram- se falhas para garantir os direitos do indivíduo migrante. Porém, o caso dos indígenas estabelece uma maior complexidade dentro deste diálogo, pois estes foram depostos de suas condição de pertencimento à região da qual eram autóctones. Desta forma, as teorias de Boaventura de Souza

Santos (“Para Além do Pensamento Abissal”) e de Roland Robertson (“The Conceptual Promise of Glocalization: Commonality and Diversity”) foram mais apropriadas por reconhecer os movimentos indígenas como parte importante deste diálogo sobre direitos globais.

As associações feitas nas obras de Milton Hatoum e Mario Vargas Llosa entre os direitos dos indígenas e dos imigrantes da região puderam ser vistas como elemento-chave para maximizar a empatia pela situação do indígena, tratado como estrangeiro em sua própria terra.

Não há porém qualquer sobreposição de valor sobre estas diferentes desigualdades e, sim, uma conexão que forma dinâmicas complexas. O testemunho do rapto de Domingas e sua assimilação

à sociedade amazônica como a empregada da família árabe em Dois Irmãos; o similar rapto de

Bonifácia e sua transformação final em prostituta em La Casa Verde; e a destruição lenta do povo machiguenga e sua cristianização por norte-americanos em El Hablador são alguns dos momentos em que as narrativas testemunham a assimilação caótica destes ‘estrangeiros locais’.

As similaridades entre os testemunhos das desigualdades nas obras de Milton Hatoum e

Mario Vargas Llosa encaram empasses nas distintas posturas ideológicas dos escritores com

267

relação às soluções vislumbradas para a situação destes indígenas. Enquanto Milton Hatoum se abstém de sugerir fórmulas para solucionar o problema do indígena na sua narrativa, Mario

Vargas Llosa usa a equalização entre imigrantes para argumentar de maneira sub-reptícia a irreversibilidade histórica e, assim, advogar pela assimilação destes ao corpo nacional. Desta forma, em El Hablador, especificamente, os machiguengas parecem que só teriam condições de sobreviver no mundo contemporâneo se completamente assimilados à nação peruana, mesmo que isto custasse a perda de suas tradições. Ainda que Dois Irmãos e El Hablador promovam posturas ideológicas diferenciadas, ambos os livros apresentam a região amazônica como um local relevante para as discussões de tônica global e articulam esta posição paradoxal entre margem e centro.

É bem verdade, que no âmbito ecológico, a região amazônica já tinha esta posição central. Assim, na última seção do terceiro capítulo as reflexões se resolveram diante da renovação das discussões ecológicas das narrativas de espaço amazônico em questão. Tanto em

La Casa Verde e EL Hablador como em Dois Irmãos, há um trabalho estético com o elemento natural, porém este trabalho estético está relacionado a uma memória política e humana da região. Os rios Mipaya em El Hablador ou a nova paisagem dos igarapés com as populações ribeirinhas de Dois Irmãos funcionam como ganchos para as memórias de uma destruição ecológica e também de uma destruição do ser humano na região. Os estudos ambientais que priorizam o elemento humano, portanto, foi mais apropriado para a análise dessas narrativas.

As teorias sobre o chamado “Environmentalism of the Poor”, desenvolvido por

Ramachandra Guha e Juan Martinez-Alier, estão em consonância com a ênfase posta no elemento humano dentro do ecossistema ecológico amazônico (Varieties of

Environmentalism:Essays North and South 21). A natureza, desta forma, adquire um caráter

268

político e remete o leitor a resgatar as obras anteriores do regionalismo amazônico que também

privilegiavam a estética natural à luz das questões de hierarquia de poder e as suas relações

políticas e socioeconômicas. No texto “De retorno a lo natural: La serpiente de oro, la "novela de

la selva" y la crítica ecológica”, o crítico Jorge Marcone argumentou sobre esta avaliação eco-

política da região (299) pelas obras da novela de la selva. Porém, as obras de Milton Hatoum e

Mario Vargas Llosa se distinguem das narrativas de La novela de la selva, fundamentalmente

por razões de cunho narratológico e sócio-temporal.

Certamente, a superioridade estética das obras em questão com relação às suas

respectivas tradições literárias regionais deu potencialidade de exposição às obras de Hatoum e

Vargas Llosa. Esta potencialidade literária juntamente com as condições sócio-temporais atuais

possibilitou a estes autores dar uma maior visibilidade à região amazônica dentro de suas

narrativas. O crescente interesse global por questões ambientais e a abertura de um mercado cada

vez mais internacional são fatores extemporâneos à literatura que interferem na recepção das

obras.

De fato, as conexões internacionais feitas por estes mesmos escritores, dentro de um

mercado literário cada vez mais globalizado, demonstram uma tendência contemporânea dos

escritores de fazerem estas pontes internacionais. Segundo a teórica Idália Morejón Arnaiz existe

hoje uma nova literatura latino-americana com um caráter transnacional que imprime uma nova

relação com o nacional a partir reorganização global das relações políticas e culturais dos últimos

vinte anos (“Nuevo exotismo: escritores latinoamericanos en tránsito”).171

171 Neste texto, Idália Morejón Arnaiz argumenta que os escritores contemporâneos latino-americanos estão produzindo obras com um caráter transnacional e estabelecendo um olhar exótico, agora desde a América Latina diante de outros países, sem passar pela mediação da Europa ou dos países anglo-saxões. Idália Morejón Arnaiz explica: “La globalización sobrepasa ese marco tercermundista y Europa se viene transformando en exótica a los 269

Características similares às encontradas nas obras de Milton Hatoum e Mario Vargas

Llosa podem ser vistas nas obras destes autores latino-americanos principalmente no que

concerne a um novo modo de pensar o universalismo literário. A conexão estabelecida com

outros lugares do mundo através de narradores cosmopolitas ou imigrantes também dão a estes

escritores novas ferramentas, além das estético-narrativas, para pensar em alcançar um novo

universalismo literário.172 Embora possa parecer tentador resolver a literatura de Mario Vargas

Llosa e Milton Hatoum dentro de uma categorização já pronta e inclusiva de outros autores

dentro de um movimento geracional, o espaço amazônico dá características peculiares a estas

obras.

Usar este espaço narrativo, já trabalhado por outros escritores que haviam-se

ojos de América Latina. Esto, desde luego, a nivel de la literatura que piensa su lugar en un mundo sin barreras y con poco acceso al mercado. Así, la ruptura del nuevo exotismo con lo nacional y con el énfasis de la literatura latinoamericana por ocupar un lugar central en el canon occidental, se postula como un juego no euro- peo en su conexión con otras civilizaciones”. Diferente do olhar exótico dos europeus dos tempos coloniais, que se centrava em natureza e costumes, para os escritores latino-americanos contemporâneos este exotismo é impulsionado pelo êxodo de latino-americanos ao norte no fim do século XX e começo do XXI que deu acesso a estas terras estrangeiras. As obras deste exotismo teriam por características o uso de procedimentos da narrativa documental (uso de fotos, mapas, diários, etc.), ausência de nostalgia e leitura etnográfica. Ela cita as seguintes obras representativas deste novo exotismo: Teoría del alma china, de Carlos Aguilera (Cuba); a trilogia de José Manuel Prieto (Cuba): Enciclopedia de una vida en Rusia, Livadia. Mariposas nocturnas del imperio ruso, y Rex; El jardín de la señora Murakami, La escuela del dolor humano de Sechuán; Shiki Nagaoka, una nariz de ficción, de Mario Bellatin (México); Mongólia y O sol se põe em São Paulo, de Bernardo Carvalho (Brasil). Outros autores de tendência exótica: Una novela china, de César Aira (Argentina); Los impostores, de Santiago Gamboa (Colombia); Cuaderno de Feldafing, de Rolando Sánchez Mejías (Cuba); Siberiana y Las cuatro fugas de Manuel, de Jesús Díaz (Cuba).

172 O narrador-romancista de El Hablador já mostra a perspectiva deste narrador viajante. Os imigrantes de Hatoum são congruentes com esta mobilidade e, em entrevista pessoal, o escritor manauara anunciou que a sua próxima produção textual também usará o espaço cosmopolita de Paris, lugar onde o escritor viveu. Sobre este romance, Milton Hatoum também revela a diversidade de espaços explorados e interconexão entre personagens de diferentes localidades: “É um romance ambientado na Paris dos anos 80. Eu morei lá nessa época e convivi com muitos expatriados, exilados. Mas é um romance-tradução, uma narradora que é tradutora franco-brasileira e conta sua história para um amigo brasileiro que ela não via há uns dez anos. Nesse reencontro ela passa a limpo a vida dela. Aí tem Cuba no meio, amor cubano e toda a ditadura, as ditaduras. Porque ela é tradutora de romances hispano- americanos” (Personal Interview 27 Maio 2011).

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enveredado por seus meandros verdes, incorre numa reelaboração das camadas de transnacionalismos desta região e na reelaboração do status da mesma como contra-discurso nacionalista homogêneo. Além disso, a reapropriação indireta do uso do regionalismo implicou no reconhecimento das diversidades internas e externas, possibilitou vislumbrar conexões inéditas e atualizar problemáticas tidas como anacrônicas, porém ainda presentes no mundo atual. A partir de uma concepção reelaborada do espaço regional, foi possível analisar as obras de Milton Hatoum e Mario Vargas Llosa dentro de suas possibilidades de entrever as estratégias e características estéticas que possibilitaram não só a renovação de um espaço narrativo em vista de um novo contexto contemporâneo como também a reafirmação sobre a importância da visão periférica dos escritores latino-americanos dentro de um âmbito global.

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