<<

UNIVERSIDADE DO ESTADO DO RIO DE JANEIRO INSTITUTO DE MEDICINA SOCIAL

E SE O FOR “NEGÃO”? “Raça”, gênero e sexualidade no Rio de Janeiro - A experiência dos turistas “negros” norte-americanos

Marcelo Henrique Ferreira

Dissertação apresentada como requisito parcial para obtenção do grau de Mestre em Saúde Coletiva, Curso de Pós-graduação em Saúde Coletiva – área de concentração em Ciências Humanas e Saúde do Instituto de Medicina Social da Universidade do Estado do Rio de Janeiro

Orientadora: Laura Moutinho Rio de Janeiro 2005 2

CATALOGAÇÃO NA FONTE UERJ/REDE SIRIUS/CBC

F383 Ferreira, Marcelo Henrique. E se o gringo for “negão” ? Raça, gênero e sexualidade no Rio de Janeiro: a experiência dos turistas negros norte-americanos / Marcelo Henrique Ferreira. – 2005. 144f.

Orientadora: Laura Moutinho. Dissertação (mestrado) – Universidade do Estado do Rio de Janeiro, Instituto de Medicina Social.

1. Sexo (Psicologia) – Teses. 2. Turismo sexual – Rio de Janeiro (RJ) – Teses. 3. Negros – Estados Unidos – Teses. 4. Raça negra – Teses. I. Moutinho, Laura. II. Universidade do Estado do Rio de Janeiro. Instituto de Medicina Social. III.Título.

CDU 159.922.1

3

“Dedico este trabalho a cada um dos turistas “African-” que, durante suas viagens ao Rio de Janeiro, participaram, ajudaram e incentivaram de forma tão intensa, as reflexões que resultaram neste estudo... Muito obrigado!”

4

“Os etnógrafos precisam convencer-nos não apenas de que eles mesmos realmente ‘estiveram lá’, mas ainda de que, se houvéssemos estado lá, teríamos visto o que viram, sentido o que sentiram e concluído o que concluíram.”

Clifford Geertz

5

AGRADECIMENTOS

Gostaria de agradecer, em primeiro lugar, à exaustiva dedicação de minha orientadora, profa. Laura Moutinho, qual acreditou neste trabalho antes mesmo que eu o percebesse enquanto possível, em segundo lugar ao prof. Sérgio Carrara pela minuciosa leitura crítica imprescindível para o enquadramento “do foco” na reta final, e em terceiro lugar aos profs. Peter Fry, Jane Russo e Keneth Camargo pelo acompanhamento desta reflexão, de forma provocativa e indutiva, desde o seu início.

6

SUMÁRIO

LISTA DE ILUSTRAÇÕES ...... 7 ABSTRACT ...... 9 INTRODUÇÃO...... 10 SOBRE O AUTOR...... 18 A PESQUISA DE CAMPO...... 20 1 - IMAGENS DO BRASIL E DO RIO DE JANEIRO...... 27 1.1 O PORTAL DO MINISTÉRIO DO TURISMO...... 30 1.2 OS WEBSITES DAS AGÊNCIAS DE VIAGENS BRASILEIRAS...... 37 1.3 O “ TURISMO ÉTNICO” COMERCIALIZADO PELAS AGÊNCIAS NOS EUA ...... 46 2 - OS TURISTAS “NEGROS” NO TURISMO CARIOCA...... 56 2.1 DEMARCANDO LIMITES: “TURISMO ÉTNICO” VS. “TURISMO SEXUAL”...... 58 2.2 GRUPOS UTILIZADOS NO TRABALHO DE CAMPO...... 73 3 - O TURISMO “ÉTNICO” NO RIO DE JANEIRO...... 78 3.1 A CONFIGURAÇÃO DA TENSÃO...... 80 3.2 UM EXEMPLO DA PERCEPÇÃO DO TRADE CARIOCA...... 86 3.3 DO QUE DIZ RESPEITO À “RAÇA” - ...... 94 CONCLUSÃO...... 124 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ...... 126 BIBLIOGRAFIA COMPLEM ENTAR ...... 128

7

LISTA DE ILUSTRAÇÕES

Fig. 01 – Grupo ITC no Pão de Açúcar...... 15 Fig. 02 – Grupos do Trabalho de Campo...... 25 Fig. 03 – Agências de Turismo líderes em operações com grupos “étnicos”...... 46 Fig. 04 – Grupo ITC na Estação do Pão de Açúcar...... 56 Fig. 05 – “Turismo étnico” vs. “Turismo sexual”...... 63 Fig. 06 – Tabela de Grupos utilizados no trabalho de campo ...... 74 Fig. 07 – Composição majoritariamente feminina...... 76 Fig. 08 – Dentro de um ônibus de turismo ...... 78 Fig. 09 – No Corcovado ...... 86 Fig. 10 – Com os meninos de rua ...... 94 Fig. 11 – Em Santa Teresa ...... 96 Fig. 12 – No lobby do hotel...... 98 Fig. 13 – Uma das percepções...... 103 Fig. 14 – Outra percepção...... 105 Fig. 15 – Mais percepções...... 115

8

RESUMO

E SE O GRINGO FOR ‘NEGÃO’? “Raça”, gênero e sexualidade no Rio de Janeiro. A experiência dos turistas “negros” norte-americanos

O turismo étnico é, hoje, uma das áreas potenciais para o desenvolvimento da atividade turística nacional, quando o histórico interesse de “negros” norte-americanos pelo Brasil amplia-se via massificação do produto turístico de recorte identitário. Esta dissertação é o resultado da pesquisa realizada com turistas “negros” norte-americanos no Rio de Janeiro, que aponta para a forma com que estes turistas, enquanto consumidores, influenciam na reorganização do mercado turístico carioca por meio de demandas racializadas. Curiosamente, por trás de tais demandas desvelou-se um fundo político, marcado por papéis de gênero, que fornece instrumentos para o mapeamento inicial do “turismo sexual” envolvendo aquela população na Cidade Maravilhosa. A pesquisa aponta que este universo está basicamente dividido em dois grupos de turistas: o do “turismo étnico”, majoritariamente formado por mulheres; e o do “turismo sexual”, composto, com raras exceções, inteiramente por homens. Esta diferença sugere que a racialização imposta no “turismo étnico” seja uma exigência das mulheres americanas e indica a preocupação delas em estabelecer identidades e constatar diferenças com os “negros” em lugares onde eles tenham participado da história, preocupação que não atinge os “turistas sexuais”.

9

ABSTRACT

AND WHAT ABOUT THE “” TOURIST? “Race”, gender and sexuality in Rio de Janeiro - The experience of African-American tourists

The ethnic tourism is one of the potential areas for the development of the national tourist activity nowadays in Brazil, since the historic interest of African- Americans widens through the popularization of an “ethnic” tourist product. This dissertation is the result of a research, made with African-American tourists in Rio de Janeiro, which shows the way, as consumers and through racial demands, they manage to influence the configuration of the carioca’s tourist market. Curiously, behind those demands was a political background, oriented by gender roles, which helps to visualize the dynamic of the “sexual tourism” involving that population in the Wonderful City. It shows that the African- American tourist universe in Rio is basically divided into two groups: the “ethnic” one, which is mainly formed by women and, the “sexual” one, only formed by men. Such a difference suggests that the racial demands imposed by the “ethnic tourism” may be gender oriented, which indicates the African-American women preoccupation in establishing identities and finding out the differences about places where “” may have taken part of the local history, which has nothing to do with the concerns of the “sexual tourists”.

10

INTRODUÇÃO

Esta dissertação é sobre um campo que não existe. Não existe turismo étnico no Rio de Janeiro. Esta dissertação analisa a tensão existente entre a demanda do turista “negro” norte-americano e a oferta dos “produtos étnicos” pelo trade turístico carioca. Depois de dois anos dedicados a esta pesquisa me dou conta de que o “turismo étnico” no Rio de janeiro é mais um campo em construção que qualquer outra coisa.

Os turistas que transitam pelas ruas da Zona Sul do Rio de Janeiro, na maioria das vezes podem ser identificados em meio à população nativa. Quando não pela evidência provida pela barreira lingüística ou pela câmera fotográfica, pela forma de vestir, pela forma de andar, de gesticular, pela combinação de todos estes fatores e… por que não, dentre tantos outros, pela cor da pele? O estereótipo de “gringo” para os cariocas, e quem sabe para os brasileiros em geral, passa definitivamente pela variável “cor”. Ao perguntar, casualmente, para vários brasileiros, como eles descreveriam um gringo, as respostas, ainda que diversas, quase sempre passam, em algum momento, pela cor da pele. Algumas mais pontuais: “…são muito ‘brancos’!” ou “São loiros e de olhos azuis…”. Outras, subjetivamente focadas nas relações raciais: “…ficam loucos com as ‘mulatas’…” ou “…adoram a nossa mistura ‘racial’”. No entanto, nunca imaginam ou mencionam um turista “negro”. Para além disto está o fato de que a representação social que os brasileiros têm de turistas estrangeiros articula poder econômico e prestígio, aqui entendidos como indicadores de classe social, o que de certa forma confere a esses indivíduos o status equivalente ao das camadas superiores da estratificação social brasileira. Suponho que a associação direta que se faz no Brasil entre “ser negro” e “ser pobre”, venha impedindo que o mercado de turistas “negros” norte-americanos seja pensado enquanto um valioso potencial.

11

Para esclarecer, com relação ao mercado afro-americano utilizarei parte de um pequeno artigo intitulado “Mercado de grupos étnicos”, que foi publicado no jornal O Globo em 14/9/2004, no qual o ex-embaixador do Brasil nos EUA, Rubens Barbosa, discorre sobre a potencialidade para a exportação brasileira que o mercado “negro” norte-americano pode representar pela via do turismo. Ele diz que:

“O mercado americano é o maior, o mais dinâmico e um dos mais abertos do mundo. Com um PIB de US$11,5 trilhões e importações de mais de US$ 1,5 trilhão, os EUA oferecem muitas oportunidades para o exportador atento e interessado em descobrir e explorar nichos nesse mercado.

Dois desses nichos se enquadram nessa visão estratégica de médio e longo prazos, e se destacam imediatamente pelo potencial que podem representar para o exportador brasileiro: o latino e o negro.

[…]

Vou focalizar, contudo, apenas o negro (outro grupo de aproximadamente 36 milhões de pessoas) pelo seu potencial e pelas oportunidades que oferece para o comércio exterior e turismo no Brasil.

A minoria negra ou afro-americana representará, em termos de disponibilidade de renda, cerca de US$ 921 bilhões em 2008.

Com relação à distribuição geográfica, os dez estados que apresentaram maior poder de compra da comunidade negra dos EUA em 2003 foram: Nova York (US$ 65 bilhões), Califórnia (US$ 53 bilhões), Texas (US$ 50 bilhões), Geórgia (US$ 46 bilhões), Flórida (US$ 41 bilhões), Maryland (US$ 38 bilhões), Illinois (US$ 37 bilhões), Carolina do Norte (US$ 31 bilhões), Virgínia (US$ 29 bilhões) e Michigan (US$ 28 bilhões).

12

Se fosse uma nação, o mercado afro-americano seria a 11a economia do mundo, maior, portanto, que a do Brasil. De acordo com o estudo “Buying Power of Black America”, seu poder de compra chegou a US$ 631 bilhões em 2002, com um aumento de 4,8% em relação a 2001.

No tocante ao turismo, segundo a publicação “Black Meetings and Turism” (BM&T), a comunidade afro-americana gasta US$ 35 bilhões em viagens de lazer e de negócios.

O setor reflete o crescente poder de compra desse segmento da população americana. Segundo, a BM&T, o mercado de turistas afro-americano é o mais dinâmico do setor, tendo crescido 16% nos últimos dois anos, enquanto o setor como um todo cresceu apenas 1%. A população negra americana tem representado nos útimos anos cerca de 17% das viagens de lazer, enquanto sua participação relativa no total da população é de 13%.

A forte influência em nossa cultura por parte dos descendentes dos negros potencializam as possibilidades de exploração comercial desse diferencial mercadológico único no mundo, dadas as similitudes dos matizes das populações brasileiras e americanas…”

O primeiro intuito desta dissertação é apontar a tensão existente entre as percepções brasileira e norte-americana acerca da “concepção racial”, do “racismo” e da “classificação de cor” no turismo carioca. Mais especificamente, no que diz respeito ao segmento do “turismo étnico”, no qual turistas “negros” norte-americanos apresentam ao mercado turístico local demandas racializadas que exigem serviços de referência “afro-descendentes” (pacotes, guias, motoristas, restaurantes, etc.). Em segundo lugar, quero demonstrar como o mercado de turistas “African-Americans” ajuda a problematizar o chamado

13

“turismo sexual”, e o quanto esta diferenciação está balizada por um recorte marcado por papéis de gênero.

Minha intenção teve como eixo central a preocupação de mostrar de que lugar este turista está percebendo o Rio de Janeiro e, sobretudo, o quão central é o eixo “raça” nessa percepção. O que espero, ajude a esclarecer com relação aos pontos de contato e distanciamento das relações “raciais” entre os dois universos, tanto quando lido pelos African-Americans quanto pelos brasileiros.

Esta é uma reflexão que teve início durante meu projeto de monografia para a graduação em Ciências Sociais, no qual focalizei a mediação cultural que se dá entre o universo do turismo local do Rio de Janeiro e o universo dos turistas que o visitam. Na época, meu interesse específico recaía sobre a forma como os “guias de turismo” protagonizavam esta mediação, entendendo que existiria uma tensão a ser administrada na compreensão pelo turista do universo que lhe estaria sendo proposto na capital carioca, e isto sempre em relação ao seu universo de origem. Na exemplificação desta tensão então, utilizei dois exemplos: o “Favela Tour” e o “Turismo Étnico”. O primeiro se referia às excursões feitas em favelas do Rio de Janeiro, e o segundo, que particularmente será o responsável pelo desdobramento do qual resulta esta dissertação, sobre os programas turísticos desenvolvidos para os grupos de turistas “negros” norte- americanos.

O que gostaria de recuperar, daquela experiência, para explicar as origens desta dissertação é a idéia central de que existiria uma tensão a ser administrada no tocante aos programas de turismo “étnico” para turistas “negros” norte-americanos, organizados no Rio de Janeiro, que se dá sobretudo devido ao confronto entre diferentes percepções acerca das “relações raciais” americanas e brasileiras. E que, devido à demanda deste mercado ao turismo brasileiro, área vista como potencial para o desenvolvimento do país pelo Governo Federal, se faz necessário o desenvolvimento de estratégias e políticas públicas que propiciem o gerenciamento e a formatação de um “produto” para os turistas afro-americanos.

14

Segundo dados da Embratur1, o gasto médio do turista (per capita ao dia) em 2002 foi o equivalente a US$86,17, o que ajuda a situar o poder aquisitivo (pelo menos enquanto turista aqui no Brasil) dessa população que estamos recortando2. Isso significa dizer que gastam quase um salário-mínimo nacional atual ao dia. Visto isto, torna-se clara a manutenção do status que lhes é conferido. Os dados da Embratur também apontam que os turistas vindos dos EUA estão entre os que mais nos visitam 3 e, ainda que esses dados não possuam uma classificação “racial”, sabemos que 12,9% dos americanos se declararam “black” ou “African-American” no censo do ano de 20004 nos EUA. Estamos falando, portanto, de uma população de 36,4 milhões de possíveis visitantes. O fato é que, a cada dia que passa, o número de “negros” norte- americanos transitando pelas ruas da Zona Sul do Rio de Janeiro parece aumentar, transformando o quadro da população local. O bairro de Copacabana pode ser lido como um termômetro do turismo no Rio de Janeiro, visto ser central na dinâmica turística local5, um espelho do quadro turístico da cidade devido ao grande número de hotéis ali instalados.

O fato de os afro-americanos representarem uma camada significativa da população dos EUA, não é o suficiente para explicar a escolha do Brasil como destino turístico. Por isso, considero importante remarcar que, do início até meados do século XX, “a imagem do Brasil enquanto paraíso racial na realidade se tornou um mito importante para negros norte-americanos, dentre os quais muito poucos teriam visitado a América do Sul durante o séc. XIX ou início do próprio séc. XX”6, como mostra David J. Hellwig, em seu livro African-American

1 Ver Anuário Estatístico Embratur 2003, Anexo 3. 2 É importante estar atento ao fato de que o apresentado pela Embratur é uma media aritmética que inclui todas as nacionalidades de turistas, das que menos consomem às que mais consomem. No entanto, a nacionalidade que particularmente nos interessa neste projeto, a norte-americana, além de ser uma das primeiras em número de visitantes é também a que mais gasta em suas estadias, tendo apresentado uma media de US$125,72 em 2001 e US$106,08 em 2002. Ver tabelas no Anexo 3. 3 Ver anexo 3. 4 Ver The Black Population. In: 2000. Anexo 2. 5 Ver Ferreira, M. (2002). 6 Tradução minha. Ver Hellwig (1992).

15

reflections on Brazil’s racial paradise. Então, diante deste quadro, pergunto ao leitor: e se o gringo for “negão”?

Fig. 01 – Grupo ITC no Pão de Açúcar

Ainda que pareça uma especulação, e sem muitos desdobramentos, não o é. Turistas “negros” norte-americanos têm se apresentado como um grande desafio para o trade turístico7 carioca, não somente por suas expectativas com relação ao Rio de Janeiro, mas, sobretudo, pelas demandas específicas de corte racializado que têm imposto ao mercado (guias negros, por exemplo). Prova deste desafio é o fato de até hoje não existir, nesta cidade, um programa que possa ser chamado de “étnico”. Daí as questões centrais desta dissertação:

7 Segundo o glossário do SINDEGTUR/RJ, encontrado no site www.sindegtur.org.br em maio de 2005, trade turístico seria o conjunto de agentes, operadores, hoteleiros e prestadores de serviços turísticos.

16

1. Por que, nas pelo menos três décadas de existência deste mercado8, o Rio de Janeiro não foi capaz de criar e estruturar um programa de “turismo étnico”?

2. O que existe de não identificado sobre este segmento, que chega a impedir o desenvolvimento de um nicho de mercado sabido como “extremamente lucrativo”?

3. Será que o turista “negro” norte-americano representa uma ameaça para o ideal de “democracia racial” brasileiro?

A estratégia que escolhi para responder a estas questões foi me concentrar no átomo deste segmento: o próprio turista “negro” norte-americano. Perguntar, vasculhar e conviver com as representações sociais que estes possuem sobre o Brasil, sobretudo no Rio de Janeiro.

Com relação à composição destes grupos, a primeira coisa que quero colocar em evidência é a diversidade que encontramos: os turistas vêm das mais diversas partes dos EUA, assim como suas profissões são as mais variadas possíveis. Nova York, Chicago, Los Angeles e Atlanta são cidades que estão, na maioria das vezes, representadas por um ou mais turistas. Em todos os grupos, encontramos, ainda, um ou mais turistas com o titulo de Doutor. Estes são fatores muito importantes quando nos damos conta da interação que acontece nesses programas. A troca que se estabelece é impressionante, visto que a experiência de vida de cada um passa a ser também um ingrediente fundamental na composição da imagem da cidade. A imagem da cidade se cria, ou melhor, se reformula, a partir desta interação.

Sabemos que os turistas “negros” norte-americanos estão olhando para o Brasil com “olhos” americanos e que com “olhos” brasileiros esta tensão talvez tivesse outras dimensões. Observado por um outro ângulo, nos damos conta que de repente temos “negros” (ainda que americanos) compartilhando dos

8 O agente de viagens e diretor de uma das empresas norte-americanas que fez parte do meu trabalho de campo, em uma entrevista comigo no Hotel Le Méridien, em 2003, afirmou que trazia grupos de “negros” norte-americanos para o Brasil desde o início da década de 70.

17

estabelecimentos e serviços até então basicamente utilizados pelos “brancos” ou “quase-brancos” das elites cariocas. “Negros” que passam a ser “o cliente que têm sempre razão” e que precisam ter suas demandas sempre atendidas, o que combinado com o “ideal de democracia ‘racial’”, na qual a sociedade brasileira se acredita constituída, não abre espaço para o racismo.

E é importante ressaltar, aqui, que os turistas “negros” norte-americanos, por mais miscigenada que seja a sua origem, jamais se vêem como “quase- brancos”. Muito pelo contrário, se afirmam enquanto “negros” e vêem o mundo organizado a partir de um recorte racial em que as origens africanas, suas supostas raízes, são extremamente valorizadas. Segundo a antropóloga Patrícia Pinho, “a ‘africanidade’ deles é tanta, e tão bem conferida é sua ‘autenticidade’, que permite a (con)fusão com a matriz, ou ao menos com o que se imagina dela”9. A autora também afirma que:

“Chamo estas pessoas de etno-turistas porque suas viagens são impulsionadas pelo desejo de encontrar elementos que possam ser utilizados para compor suas identidades étnicas negras, identidades estas que são ao mesmo tempo racializadas e centradas numa idéia específica de África como terra-mãe e centro emanador de negritude essencial.”10

Temos aqui, então, um impasse constituído: turistas “negros” norte- americanos, de alto poder aquisitivo, que estão interessados em resgatar aqui no Brasil as “reminiscências africanas” que, segundo eles, teriam se perdido nos EUA, experienciando o ethos “branco” ou “quase-branco” das elites cariocas,

9 Em um artigo intitulado “Pesquisando o turismo étnico na Bahia”, a autora confessa ter confundido turistas “negros” americanos com africanos devido ao ostensivo uso do que na Bahia são entendidos como signos de “africanidade”. Ver Pinho, P. (2002). 10 Idem. Paper apresentado no “Colóquio Internacional Atlântico Negro – A Construção Trans - Atlântica das Nações de Raça e Anti-Racismo”, no Senegal em 2002.

18

leia-se “onde se organiza” o turismo, no intuito de encontrar uma “africanidade” que estas mesmas elites posicionam no passado, ou no outro, e não reconhecem em si mesmas. Ou seja, o turismo “étnico” no Rio de Janeiro está começando a se construir devido a esta demanda do mercado “afro- americano”... está nascendo. Como ficará claro nas próximas páginas, existe também no “turismo étnico”, um forte componente de gênero. Em especial, um certo tipo de demanda calcada em um certo diferencial de gênero que coloca o “turismo étnico” em confronto com o chamado “turismo sexual”.

Sobre o autor

Em um artigo chamado “Estar lá: a antropologia e o cenário da escrita”11, o antropólogo Clifford Geertz faz uma série de ponderações com relação à produção de estudos antropológicos, no que se refere à escrita etnográfica. Começando pela “questão do que vem a ser um ‘autor’ na antropologia”12, parte do princípio de que “ainda é muito importante saber quem está falando” em nossa, segundo sua provocação, “ingênua disciplina”. Meu intuito é tentar dar o máximo possível de subsídios, para localizar o lugar de onde estou falando. Primeiramente, gostaria de situar a questão da articulação entre o turismo e a Antropologia Urbana. Desde o início, meus estudos nas ciências sociais tiveram o intuito de iluminar a atividade turística e a forma com que esta vem sendo construída na cidade do Rio de Janeiro. Penso que os estudos de Antropologia Urbana foram cruciais para este entendimento, dentre os quais posso destacar os trabalhos produzidos ou organizados pelo antropólogo Gilberto Velho 13, por estarem diretamente relacionados à produção de uma antropologia urbana, se não carioca, com certeza brasileira.

11 Ver Geertz, C. (2002:10 -39). 12 Idem (2002:18). 13 Ver os livros Mediação, Cultura e Política e Antropologia Urbana, os quais possuem artigos que gradativamente foram incorporados ao meu discurso durante a execução de excursões.

19

Ainda que graduado em Ciências Sociais, meus interesses sempre estiveram, por conseguinte, mais direcionados para o lado da Antropologia. Sempre observei com fascínio a possibilidade de pensar uma antropologia aplicada ao turismo, atividade profissional que exerço na condição de guia, no que diz respeito à execução e criação de programas turísticos para o Rio de Janeiro. De uma forma muito peculiar, desenvolvi gradativamente uma técnica de “observar o familiar”14 estranhando-o, visto ser este estranhamento uma condição fundamental para a aproximação do universo do “outro”, aqui os turistas. Este movimento resultou em entender os tours que executo, devido ao arsenal teórico antropológico que utilizo, com uma certa proximidade à minha forma particular de etnografar. E, sem dúvida, concordo com Geertz, quando o mesmo afirma que textos etnográficos são atormentados pela questão da assinatura, pela presença autoral no texto15. No entanto, ao considerar que enquanto antropólogo seja possível executar um tour, me coloco em uma posição de autor em relevo. Impossível não “estar lá”, visto que um dos interesses dos turistas é exatamente a possibilidade de ouvir a sua posição enquanto nativo, que consegue se distanciar a ponto de entender os questionamentos produzidos pela alteridade. O tour etnográfico depende da assinatura, da presença do autor! Em segundo lugar, gostaria de apontar quão particular é o fato de estar nos dois lugares ao mesmo tempo, visto que diversas vezes fui alertado, na academia, por utilizar um discurso demasiado “nativo” da atividade turística em minhas produções. Apesar de sempre ter tentado remediar esta problemática16, é importante ressaltar que a minha motivação pela produção acadêmica tem o seu motor, ou seja, se origina na atividade turística. Por conseqüência, não cabe produzir para a academia algo que não seja ao mesmo tempo rentável para o turismo. Digo rentável, porque considero uma suposta Antropologia que seja

14 Ver Velho, G. (1978). 15 Ver Geertz, C. (2002:20). 16 Durante a produção desta dissertação, me preocupei continuamente em usar o mínimo de expressões “ditas nativas da at ividade turística”.

20

aplicada ao turismo, uma efetiva fonte para o desenvolvimento desta atividade, que, por conseguinte, refletirá no desenvolvimento não somente da cidade onde é aplicada, mas, sobretudo, na “imagem” que se construirá dela, no que diz respeito às representações sociais, no imaginário coletivo internacional. Afinal, cada turista que passa pela cidade maravilhosa ajuda a reafirmar ou rejeitar certos mitos, e isso acontece como uma produção em cadeia. No entanto, este ponto intermediário entre as duas áreas se provou um grande desafio, principalmente no que diz respeito a pensar um grupo específico de turistas como o proposto nesta dissertação. Ou seja, em terceiro lugar, os turistas “negros” norte-americanos se mostraram um grande desafio, não somente pela condição peculiar em que eu me apresento, visto ser guia e antropólogo ao mesmo tempo, mas sobretudo por adicionar um terceiro ingrediente: “relações raciais”. No caso deste estudo, como já mencionei anteriormente, o eixo “raça” mostrou-se fundamental devido à centralidade do “corte racializado” em que se dão as visões de mundo daqueles turistas. Em outras palavras, significa dizer que o desafio estava não somente em mediar os dois universos em questão – os EUA e o Brasil – mas, sobretudo, mediar as configurações e dinâmicas das “relações raciais” de ambos países tal como se apresentam. Por fim, o fato de eu mesmo ser “negro” e brasileiro vem a ser o quarto e último fator, que gostaria de ressaltar sobre o que diz respeito às peculiaridades da minha relação, enquanto autor, com o meu objeto de estudos. Considero que a administração da tensão proposta pelo mercado “afro-americano” demandou uma difícil mediação entre os dois universos, visto que por um lado estes turistas esperavam de mim uma postura baseada na minha “cor” e, por outro lado, existia o meu referencial enquanto brasileiro que não fazia esta leitura.

A pesquisa de campo

Desenvolver uma pesquisa de campo com turistas “negros” norte- americanos envolveu uma primeira questão fundamental: Quem seria, afinal,

21

este “turista”? E, além disso: até que ponto dados como cidade de origem e faixa etária poderiam influenciar na homogeneidade das informações coletadas? Primeiro, houve a preocupação de refletir sobre a possibilidade de optar por uma única cidade de origem, como, por exemplo, Nova York. Trabalhar somente com turistas “negros” nova-iorquinos foi cogitado. No entanto, esta proposição apresentava três problemas: o primeiro, era o de reduzir significativamente meu universo de pesquisa ao privilegiar uma única cidade, visto depender de turistas que estivessem no Rio de Janeiro e que viessem daquela cidade somente; o segundo, era o fato de a própria constituição destes grupos, que se dá a partir de uma lógica de mercado, que não depende da cidade de origem do turista. Não importa onde o turista more nos EUA, com a Internet é possível comprar em Chicago um pacote vendido por um agente de viagens em Nova York. E para o mercado, o importante é ter um número mínimo de turistas para que o programa possa acontecer, visto que os preços praticados dependem de uma quantidade mínima de turistas; e, por último, o fato de não estar dado que haveria a colaboração daqueles turistas para a execução de uma pesquisa que tomaria parte de seu tempo e de suas férias. Além de não querer correr tantos riscos por uma única decisão, existe um outro fator que me fez ponderar sobre o recorte metodológico: a existência, de fato, de um “Black USA”. Quero dizer que optei por privilegiar o universo “afro- americano” que, segundo minha hipótese, parte de uma compreensão de mundo majoritariamente bipolarizada racialmente, que os separa do universo “branco” daquele país. Adiante este ponto será melhor desenvolvido. Em seguida, precisei decidir como me aproximaria dos turistas, visto que, outro fator ponderado durante a formulação de meu projeto de pesquisa foi o quão produtivo seria o meu trabalho de campo se feito com turistas conduzidos por mim enquanto guia. Qual seria a minha possibilidade de distanciamento? Como fazer um trabalho de campo ao mesmo tempo em que me ocuparia de todas as incumbências de guiar? Obviamente que a posição profissional, como guia, no trade turístico carioca, facilitava infinitamente a aproximação com meu objeto de estudos. Cogitei, então, de fazer o campo observando “outros” guias

22

trabalhando: foi um fiasco! A única vez que consegui ser informado, por um dos guias que conheço17, da chegada de um grupo de “African-Americans”, não consegui passar do saguão de desembarque no aeroporto! Tampouco consegui me aproximar dos turistas! O que, em princípio, parecia ser a parte mais fácil, a aproximação com os turistas, se tornou impossível. Explico: como fui avisado com antecedência, preparei meu kit entrevistas, com máquina fotográfica, gravador, caderno de campo, etc. Tinha em mente o mapa de minhas ações: primeiro, fotografaria a guia com a placa, depois o grupo chegando ao lobby de desembarque, embarcando no ônibus. Em seguida, iria até o hotel e tentaria fazer uma entrevista. Acompanharia a programação, durante toda a estadia deles na cidade. Enfim, uma rotina com a qual eu já estava absolutamente familiarizado enquanto executor. No dia da chegada do grupo, quando entrei no saguão do aeroporto, a guia já estava lá com a placa, fazendo seu trabalho como deve ser, e eu fiquei de longe observando e esperando o grupo sair da área restrita. Tirei uma foto dela segurando a placa, e de todos os outros que, por uma razão ou outra, se encontravam no lobby à espera do grupo também. Eu e a guia, no entanto, tínhamos combinado que antes de tirar fotos do grupo ou de me aproximar de um dos turistas, eu pediria permissão ao agente de viagens que os acompanhava. Afinal, apesar de nós não vermos nenhum mal no que eu precisava fazer para desenvolver a minha pesquisa, não poderia simplesmente fazê -lo sem a autorização daquele que seria o responsável pela viagem e, obviamente, dos turistas. Quando do aparecimento do agente de viagens, aproximei-me dele discretamente e expliquei o que eu fazia. Disse-lhe que era antropólogo, que estava desenvolvendo uma pesquisa sobre turistas “negros” norte-americanos e se seria possível me aproximar de seu grupo para fazer algumas perguntas. Foi desconcertante vê-lo olhar, no fundo dos meus olhos, e me dizer clara, direta e

17 É preciso dizer que conheço todos os guias que trabalham com “negros” norte-americanos no Rio de Janeiro. No entanto, parece que a idéia de eu ter acompanhando seus grupos e conversando abertamente com seus passageiros não agradou muito à maioria deles.

23

irremediavelmente: NÃO! Disse-me que não tinha porque se justificar e que não haveria negociação. E, sobretudo, que não me autorizaria a fazer aquela pesquisa com o seu grupo. Simples assim! Bom... Tive que repensar minha estratégia de pesquisa. Definitivamente, não podia correr o risco de comprometer o meu estudo por conta da negociação com os agentes de viagens. Foi o que fez com que eu reconsiderasse pesquisar os grupos de turistas nos quais eu fosse o guia. Era perfeitamente plausível, a partir daquela experiência, fazer o trabalho de campo com meus próprios grupos. Durante minhas excursões poderia, conforme as interferências dos turistas, fazer as perguntas planejadas. Em vários momentos, quando os turistas trocam experiências entre si, observar como se fora um grupo focal, colocando minhas questões e provocando a reflexão em grupo. Foi perfeito, quanto mais eu provocava meus passageiros, mais retorno eles me davam. Em primeiro lugar, porque o grupo não estava circunscrito a somente uma entrevista. Dado à continuidade que se forma de um tour ao outro durante toda a estadia dos turistas, eu tinha a possibilidade de retornar aos tópicos sempre que achasse necessário, e tendo uma média de quatro dias para fazê-lo, visto ser este o período médio de estadia na cidade. Em segundo lugar, tampouco me restringia a uma só pessoa: tal dinâmica permitia a reflexão em grupo. A única desvantagem era estar desenvolvendo dois trabalhos ao mesmo tempo, um exercício que demandou muita disciplina, mas que resultou em uma técnica bastante peculiar. É preciso não perder de vista que os turistas que compram um pacote “étnico” já chegam com expectativas sobre discussões que envolvam o tema “raça” no Brasil. Prontos para entender, por exemplo, como perguntou-me a Sra. Thompson, uma das turistas do grupo KJLH:

“Eu ouvi dizer que o problema aqui no Brasil é econômico e não racial. Pergunta: O que aconteceria se os negros que vivem na Bahia trocassem de lugar com aqueles que detêm a riqueza? Será

24

que eles (os brancos) continuariam a dizer que é um problema econômico e não racial?”

Foi a partir de curiosidades como esta que consegui extrair dos meus informantes suas representações sociais sobre o Rio de Janeiro e da sociedade carioca, no que dizia respeito sobretudo a “raça”/“relações raciais”. Tive total liberdade para perguntar sobre o tema, e divagar sobre o minado campo das “relações raciais”, sem que meus informantes se colocassem previamente na defensiva. Não estavam previamente armados, na realidade estavam aqui para discutir sobre isto comigo e tentar entender um pouco melhor o Brasil. Pude deixar que eles falassem durante as excursões, nos restaurantes, nos pontos turísticos e aproveitava sempre que algum tópico interessante aparecia. Os diálogos e as perguntas não tinham nenhuma rigidez, eu deixava que os temas aparecessem a partir da curiosidade dos próprios turistas, as informações fluíam, e eu somente interferia quando me convinha encaminhar a discussão. Como por exemplo, uma vez, durante uma visita à Catedral Metropolitana do Rio de Janeiro, deparei com uma das turistas que chorava sem parar. Era um domingo pela manhã, e nós tínhamos chegado durante a celebração de uma das missas. Nada de anormal no quadro que eu percebia; no entanto, a Sra. Roberts, que tinha aproximadamente 50 anos, percebeu algo totalmente distinto e que a fez se emocionar. Quando me aproximei para perguntar se tudo estava bem, ela me disse:

“…agora entendo o que você queria dizer com ideal de ‘democracia racial’. Eu estou tão emocionada pelo fato de ver aqui, agora, em uma cerimônia do cotidiano, que não tem uma ‘cor’ predominante nos fiéis… apesar de todo mundo dizer que no Brasil existe racismo, o que eu vejo aqui e agora me confunde muito. Lá em casa, não existe isso, uma igreja onde todos pareçam iguais. Existe igreja de ‘negros’ onde só vão os negros, ou igreja de

25

‘branco’ onde só vão os brancos… mas isso aqui, isso aqui é diferente!”

Automaticamente, ao retornar com o grupo para o ônibus, aproveitei o acontecimento e pedi para que ela relatasse para todos o que tinha me dito na igreja. Assim foi possível mediar uma troca em que os próprios turistas me ajudaram a formular pontos de aproximação/distanciamento entre as duas sociedades em questão: os EUA e o Brasil. Quando me dei conta de como dava certo esta técnica, passei a me disponibilizar no trade turístico somente para grupos de americanos “negros”. Recusei dezenas de grupos de franceses e outras nacionalidades, e avisei sobre minha pesquisa e a preferência por trabalhar com este mercado. Automaticamente, os agentes de viagens cariocas começaram a me contratar para que eu operasse os grupos de “afro-americanos”. O que resultou na tabela que apresento a seguir, com os dezoito grupos que fizeram parte do meu campo: Fig. 02 – Grupos do Trabalho de Campo

PERÍODO NOME 01 19/03 a 22/03/03 Radio Station – WBLS 2003

02 18/08 a 21/08/03 Boa Morte 2003

03 12/09 a 15/09/03 The African Heritage Tour

04 16/10 a 18/10/03 Afro-Heritage

05 20/11 a 22/11/03 Zumbi 2003

06 25/02 a 01/03/04 Heritage Tour 2004

07 20/03 a 23/03/04 Radio Station – WBLS 2004

08 08/07 a 12/07/04 Brasil is Paradise/D’zert Club

09 17/08 a 20/08/04 Boa Morte 2004

10 02/10 a 05/10/04 Soul Planet

11 29/10 a 01/11/04 Celebration to Life

12 05/11 a 09/11/04 Fairview Greenburgh

26

13 12/11 a 15/11/04 Zumbi (Dumas & White) ‘04

14 24/11 a 26/11/04 Inspection/GRP Hendrickson

15 04/02 a 09/02/05 Gerena Carnival Group

16 09/02 a 13/02/05 Heritage Tour 2005

17 16/03 a 20/03/05 Ministry in Global Perspective

18 23/03 a 26/03/05 Radio Station – KJLH (L.A.)

Estes foram os grupos de turistas “afro-americanos” que fizeram parte do meu campo “em construção”. Nos capítulos que se seguem, tentarei apontar as particularidades desta tensão da qual esta dissertação trata. No capítulo 1, analiso os websites do Governo brasileiro e das agências de viagens, brasileiras e norte-americanas, tentando extrair das imagens veiculadas sobre o Brasil e a existência de referenciais ao mercado do “turismo étnico”. O capítulo 2 é um primeiro esforço em esboçar a diferença existente entre “turismo sexual” e “turismo étnico”, visto ter sido esta uma confusão que se apresentou no meu campo devido às fronteiras existentes se borrarem de vez em quando. O capítulo três trata especificamente do “turismo étnico” e da tensão que vejo configurada no turismo carioca devido às demandas racializadas dos turistas “negros” norte-americanos. Primeiramente apresento a tensão; em seguida, tento focalizá-la pelo lado do trade turístico carioca e, por último, apresento algumas das percepções dos “etnoturistas”.

27

1 - IMAGENS DO BRASIL E DO RIO DE JANEIRO

Existe uma variedade de imagens do Brasil e do Rio de Janeiro que são utilizadas para a venda do “Produto Brasil”18 enquanto destino turístico. Além da influência de referências como a música, o carnaval e as belezas naturais que povoam o imaginário internacional sobre o país, um vasto material iconográfico e informativo das cidades comercializadas está disponibilizado diretamente ao público na Internet. A comercialização enquanto produto turístico articula uma grande quantidade de agentes que vai desde o Governo Federal até a iniciativa privada, representada principalmente pelos Agentes de Viagens (nacionais e estrangeiros). Este “produto” possui traços generalistas quando apresentado pelo Governo, quando a maior preocupação parece estar centrada na integração do turismo ao plano de desenvolvimento do país. Já os agentes de viagens brasileiros, têm como prioridade adequar-se às demandas dos agentes de viagens estrangeiros, e estes últimos especificamente às de seus clientes. Como dito anteriormente, o objeto de estudos desta dissertação são as representações sociais sobre o Rio de Janeiro e “relações raciais” veiculadas pelos turistas “negros” norte-americanos. Nesse sentido, demonstrarei, neste capítulo, o distanciamento entre as demandas/expectativas deste segmento e as imagens veiculadas pelas instituições nacionais que promovem a venda deste produto na Internet. Meu propósito é, sobretudo, avaliar como está apresentado pelos diferentes agentes (governo e iniciativa privada nacional) o “turismo étnico” na capital carioca, visto ter sido este o interesse central pontuado por aqueles turistas19.

18 “Produto Brasil” é o nome dado ao produto turístico brasileiro, que dever ser compreendido como: “o bem ou serviço negociado na indústria turística; pode ser unitário (passagem aérea, serviço de guia de turismo, hospedagem, etc.) ou um conjunto destes (pacote de viagem)”. Ver glossário do site do Ministério do Turismo, www.turismo.gov.br/br/glossario . 19 Segundo os turistas “negros” norte-americanos que fizeram parte da pesquisa de campo que compõe este trabalho, a principal razão pela qual teriam escolhido o Brasil como destino seria as influências “africanas” que compõem a cultura nacional. A “herança africana” seria o principal atrativo para aquele segmento.

28

Para mapear a forma como o Brasil é apresentado, optei por percorrer os websites das instituições que são responsáveis pela divulgação e veiculação dessas imagens no Brasil e no mundo, privilegiando o que é dito e mostrado sobre a Cidade Maravilhosa. Primeiro, apresento o site oficial para o turismo nacional produzido pelo Governo Federal, o Portal Brasileiro do Turismo. Em seguida, percorro os sites das agências de viagens 20 brasileiras que fizeram parte do meu trabalho de campo, considerando serem estas as responsáveis pelos produtos vendidos por suas parceiras norte-americanas. Vale explicar que os produtos são vendidos para o consumidor final, nos Estados Unidos, por agências de viagens norte-americanas e estas, por sua vez, só fazem intermediar os produtos dos representantes que possuem nos países que promovem. Por exemplo, ao venderem um “produto étnico” a ser realizado no Rio de Janeiro, a agência norte-americana contrata os serviços de uma agência carioca, que será a responsável pela execução (operação) destes serviços no Rio de Janeiro. Existe uma parceria entre as duas agências, a de exportativo (que envia os passageiros) e a de receptivo (que recebe os passageiros), que são, na realidade, intermediadoras, o elo entre o turista e o “produto final”, no caso em foco, a cidade do Rio de Janeiro. O Portal do Ministério e os sites das agências de viagens nacionais ajudam a captar o que está sendo vendido pelos brasileiros para os estrangeiros. As cinco agências de viagens brasileiras que fizeram parte do meu trabalho de campo foram: a “BIT Incentives e Turismo Ltda.”, a “Blumar Turismo Ltda.”, a “Brasil Guide Turismo Ltda.”, a “Havas Viagens e Turismo Ltda.” e a “Walpax Viagens e Turismo Ltda.”. Esta seleção se deu devido ao fato de serem estas as agências que operam regularmente os grupos de “African-Americans” na cidade do Rio de Janeiro. Já os sites das agências norte-americanas ajudam a ver a imagem que está sendo veiculada por elas para o consumidor final, o turista “negro” norte-

20 Agências de viagens e turismo, segundo a definição disponibilizada no glossário do Ministério do Turismo, “são empresas organizadas que têm a função de serem intermediárias de todos os serviços turísticos, permitindo o encontro da demanda com a oferta de serviços, além de prestar assistência turística aos viajantes ou turistas”.

29

americano. As cinco agências de viagens norte-americanas foram as que trouxeram, através de seus pares nacionais, o maior número de passageiros “African-Americans” nos anos de 2003 e 2004. Foram elas: a “Brazil Nuts Tours”, a “Equator 3 Tours”, a “Trendsetters Tours”, a “South Star Tours Inc.” e a “Consolidated Tours Inc.”. Tendo em mente que a apropriação das imagens do Rio de Janeiro pelo mercado turístico se dá de acordo com as necessidades específicas que surgem gradativamente com as demandas, ao observarmos a especificidade do mercado “African-American” percebemos o distanciamento existente entre as expectativas daquele cliente e o produto ofertado21. É sabido pelos agentes de viagens, tanto nacionais quanto norte-americanos, que o interesse daqueles passageiros está centrado na cultura “afro-brasileira”; no entanto, o mercado brasileiro parece encontrar dificuldades para formatar este produto. Ainda que a grande maioria das agências norte-americanas apresentem, em seus sites, programas que ressaltem a herança africana no Brasil, quando comparamos com os sites de seus pares cariocas percebemos uma certa descontinuidade, haja vista não encontrarmos nenhuma menção a esse produto nos sites brasileiros. Interessante notar que o Ministério do Turismo nem menciona este segmento na sua página oficial, parecendo ignorar as potencialidades deste mercado.

21 Um distanciamento que aparecia de modo evidente na minha experiência como guia e que, como será visto adiante, fez-se presente em meu trabalho de campo.

30

1.1 O portal do Ministério do Turismo

O Portal Brasileiro do Turismo22 possui informações articuladas tanto do Ministério do Turismo, quanto da Embratur (Instituto Brasileiro de Turismo). A criação do Ministério do Turismo, em janeiro de 2003, na gestão do presidente Luís Inácio Lula da Silva, teve o propósito de atender a uma antiga reivindicação dos envolvidos nas atividades do setor turístico: a articulação entre os órgãos públicos (Federal, Estadual, Municipal), o setor privado e a sociedade organizada. Este foi um movimento sem precedentes, em que, enquanto órgão da administração direta, o Ministério passa a cumprir o papel de “aglutinador” com a função de integrar as políticas públicas e o setor privado, sendo norteado pela missão de “desenvolver o turismo como uma atividade econômica sustentável com papel relevante na geração de empregos e divisas proporcionando a inclusão social”. Dentre as modificações lançadas pelo Ministério, primeiro gostaria de citar a criação do Plano Nacional de Turismo (PNT), que se deu com o objetivo de “consolidar o Ministério como articulador do processo de integração dos mais diversos segmentos do setor turístico”, exemplificando a importância de estabelecer, através dele, “um elo entre os governos federal, estadual e municipal; as entidades não governamentais; a iniciativa privada e a sociedade no seu todo”. O Plano tem o objetivo de potencializar a capacidade do setor turístico de desconcentrar o crescimento econômico, reduzir desigualdades e criar novas oportunidades para o desenvolvimento sustentável. Os seguintes vetores de governo foram apontados como norteadores de programas, projetos e ações do Plano: redução das desigualdades regionais e sociais; geração e distribuição de renda; geração de emprego e ocupação; e equilíbrio do balanço de pagamentos. Parece central, na formulação do PNT, o reconhecimento do turismo como um elemento-chave no plano do atual governo, que o menciona enquanto

22 Acessado durante o mês de junho de 2005. Ver em www.turismo.gov.br.

31

produtor de mudanças capazes de proporcionar o desenvolvimento sustentável da própria atividade e da sociedade brasileira, visto ser este um setor que depende de uma ampla gama de fornecedores e que permite a descentralização dos lucros. Esta é uma visão que dá continuidade às disposições constitucionais, onde encontramos:

“Art. 180 – A União, os Estados, o Distrito Federal e os Municípios promoverão e incentivarão o turismo como fator de desenvolvimento social e econômico”.23

As metas apresentadas pelo Ministério do Turismo partem da pressuposição de que seja possível lançar mão do PNT enquanto: · Fonte geradora de novos empregos e ocupações; · Multiplicador de postos de trabalho no território nacional; · Agente da valorização e conservação do patrimônio ambiental (cultural e nacional); · Instrumento de organização e valorização da sociedade; · Produtor de programas de qualificação profissional capazes de elevar a qualidade da oferta turística nacional; · Mecanismo instigador de processos criativos para a geração de novos produtos turísticos apoiados na regionalidade, genuinidade e identidade cultural do povo brasileiro; · Contribuidor para a saúde física e mental do trabalhador quando articulado a novas políticas sociais; · Estruturador de uma oferta turística qualificada capaz de atender melhor o mercado internacional; · Mecanismo para alcançar as metas desejáveis no balanço de pagamentos; e · Dinamizador de uma constante troca de informações entre os destinos turísticos, a oferta e os mercados consumidores.

23 Ver Constituição da República Federativa do Brasil.

32

Em segundo lugar, é importante mencionar a transformação da Embratur em uma “autarquia que tem como área de competência a promoção, divulgação e o apoio à comercialização dos produtos, serviços e destinos turísticos do país no exterior”. De acordo com o PNT, o instituto passa a ser responsável pela execução “da elaboração e implantação do plano de marketing para o turismo brasileiro”, “da definição e execução da política de ações promocionais e apoio à comercialização dos produtos turísticos”, “da formatação e organização de novos produtos e roteiros turísticos integrados”, bem como pela “elaboração de estudos e pesquisas que orientem os processos de tomada de decisão e avaliem o impacto da atividade turística na economia nacional”. Em outras palavras, todas as atividades referentes ao turismo doméstico foram assumidas pelo Ministério (ex: cadastro de empresas prestadoras de serviços turísticos, de guias e de bacharéis; políticas públicas; fomento; regulamentação; normatização; promoção interna etc.), enquanto a Embratur passou a se concentrar exclusivamente à “promoção, marketing e apoio à comercialização dos produtos brasileiros no exterior”. Ao navegar pelo “Portal Brasileiro do Turismo”, além de encontrar informações sobre o Ministério e a Embratur, temos acesso também às imagens que são veiculadas pelo governo brasileiro sobre os destinos dos turistas, sejam esses brasileiros ou estrangeiros. Já seguindo a tentativa de padronização sugerida pelo PNT, os produtos fomentados estão subdivididos em 13 segmentos, que são apresentados no site como supostos representantes das potencialidades das cidades brasileiras. Estes segmentos são: Aventura; Cidades Patrimônio; Ecoturismo; Festas Populares; Golfe; Incentivo; Mergulho; Negócios e Eventos; Pesca Esportiva; Resorts; Sol e Mar; Turismo Rural; e, Turismo GLS24. O segmento “étnico” não é encontrado.

24 O único segmento que ainda não possui cidades determinadas na listagem é o Turismo GLS, que é definido como “um segmento do merc ado turístico para atender ao público GLBT (gays, lésbicas, bissexuais e trangêneros)”. As referências a este segmento mencionam a “Parada Gay de São Paulo” e o concurso “Miss Brasil Gay de Juiz de Fora”, destacando, com relação à primeira, que em 2003 1 milhão de pessoas compareceram ao evento, e, com relação à segunda, destaca-se que paralelo ao concurso, criado em 1969, acontece a “rainbow fest”. O

33

A janela inicial permite selecionar o idioma desejado entre o português, o inglês e o espanhol e logo abaixo desta seleção, no canto superior direito, aparece um mapa do Brasil que serve como link para outra janela com o mesmo mapa, no qual é possível selecionar a região do país de interesse do usuário. As cinco regiões estão representadas, e cada uma delas abre uma outra janela que permite acessar o Estado de interesse. Com relação ao Estado do Rio de Janeiro, o portal fornece informações sobre a subdivisão por regiões turísticas, listando a Costa Verde, a Costa do Sol, a Região Serrana, a Região do Parque Nacional do Itatiaia, Conservatória e a Capital homônima. Esta última é mencionada como “mundialmente famosa e o mais importante portão de entrada do Brasil” e, ao prosseguirmos através de seu link encontramos, além de duas fotos do Pão de Açúcar, uma descrição que começa mencionando o nome fantasia de “Cidade Maravilhosa”. A cidade do Rio de Janeiro encontra-se listada como potencial em cinco dos segmentos mencionados acima: aventura, festas populares, golfe, incentivo e ”sol e mar”. Este último, no entanto, ainda é o que orienta a imagem vendida da cidade que é apresentada como “uma combinação perfeita de mar, terra, clima e gente. Caldo agradável das culturas indígena, branca e negra, fermentado em grandioso cenário natural”. A descrição se desenvolve mostrando a faceta cosmopolita da cidade, mencionada como “um dos principais centros de cultura do país” devido aos seus inúmeros “cinemas, teatros, museus, salas de concertos, etc”. Em seguida, afirma que, além de moderna, a mesma permite desenvolver a associação com outros períodos históricos do Brasil através dos movimentos arquitetônicos, e aponta o barroco e o art decó como fatos que fazem “do Rio testemunha da sua própria história”. O eco do carnaval dá continuidade à descrição que, mais adiante, será adicionado ao futebol, à festa de Réveillon e à uma imagem de “permanente celebração à vida”. Por último, além de mencionar a infra-estrutura disponível através de hotéis, agentes de turismo, sistema de comunicações/instalações para eventos, potencial turístico do público GLS é explicitado em números, estimando que cerca de 10% da população brasileira seja homossexual levando à impressionante cifra de 18 milhões de pessoas.

34

aeroportos, etc., sugere, sob o título de “NÃO PERCA”, os seguintes locais e eventos: Praias, Corcovado, Pão de Açúcar, Floresta da Tijuca, Jardim Botânico/Lagoa, Museu de Arte Contemporânea, Carnaval e Réveillon. Estas são as informações às quais se resume o Rio de Janeiro no portal. O turismo étnico afro-brasileiro não existe para os órgãos oficiais de turismo brasileiros. A única menção a este segmento existente no site oficial está no glossário, que o descreve como:

“A atividade destinada a favorecer a criação de correntes turísticas específicas para conhecer, conviver e integrar-se com as diferentes etnias formadoras da raça brasileira”.

Este é, no entanto, um conceito que reforça a valorização da miscigenação e da “democracia racial” que são mencionados diversas vezes em todo o site, e que são reflexo de uma visão muito particular das relações raciais como se dão no Brasil. Aliás, no link denominado “Sobre o Brasil”, este é mencionado como “um país aberto para o novo”, no qual a base desta abertura seria justamente a “democracia racial”. Vejamos a transcrição desta parte:

“UM PAÍS ABERTO PARA O NOVO - Poucos lugares do mundo possuem o grau de abertura para o novo como o Brasil. A base dela é justamente a democracia racial que se construiu ao longo dos séculos. Oculto pelo preconceito racial de parte da elite, que vigora de maneira muito mitigada (se comparado, por exemplo, aos Estados Unidos ou à Europa), este costume permitiu a construção de uma democracia política efetiva num País que tinha tudo para não possuí- la.

Sobre a base miscigenada inicial foi montada uma sociedade escravista. Mas que, apesar de escravista, nunca conseguiu eliminar o costume já tornado tradicional - e que podia ser visto a cada dia em filhos de brancos com negros, negros com índios, mulatos com

35

brancos, brancos com índios. Esta gente, condenada como inferior, conseguiu transformar a condenação em identidade, no momento da Independência. E uma identidade tão forte que não houve divisão no território, disputas políticas internas de maior monta. Pelo contrário, a Nação foi construída com base em arranjos que muitas vezes pareciam disparatados aos olhos europeus - e mesmo a muitos brasileiros - mas que funcionam até hoje de maneira um tanto inusual.

O desejo de democracia no Brasil se traduz, desde o século passado, numa arraigada crença na necessidade de se distribuir o poder a partir de mecanismos de representação política. Desde 1823 há eleições nacionais no Brasil, e desde então com uma abertura para o registro de eleitores incomum mesmo para os padrões das democracias européias. O Congresso Nacional, diga-se o que disser dele, funciona com a regularidade de um relógio há 175 anos. Somente em três ocasiões, em toda a história do País, deputados eleitos não completaram seus mandatos. A força do Congresso é tamanha que nem mesmo a ditadura militar dos anos 60 pôde prescindir dele. Até os ditadores sabem que o Brasil é ingovernável sem representantes eleitos.

A força do Congresso existe porque está ancorada numa grande força social. A sociedade de escravos foi capaz de se transformar, absorvendo uma imensa quantidade de imigrantes e, mais que isso, fundindo-se com eles. O hábito de considerar atraente qualquer possibilidade matrimonial, independente de origem étnica, conseguiu prevalecer sobre a tendência ao fechamento, que marcava a maior parte dos grupos imigrantes. E assim como absorve pessoas de fora sem perder sua identidade, o Brasil absorve empresas. A primeira empresa de capital estrangeiro do País instalou-se em 1825, e funciona até hoje. Nunca uma empresa de propriedade de estrangeiros teve qualquer alteração em seu regime de propriedade

36

fora dos estritos termos da lei.

Essas são apenas algumas das conseqüências da estruturação fundamentalmente democrática do País. O Brasil é uma das últimas províncias da terra onde ninguém é estrangeiro, onde é possível mudar um destino sem perder a identidade. E é essa, justamente, a característica que faz com que muitos o chamem de ‘país do futuro’: desde a Colônia (1500-1822), passando pelo Império (1822-1889) e durante a República (1889 até hoje), a globalização é parte da natureza de cada brasileiro. Talvez agora o Brasil possa ser visto como semente de uma realidade cultural onde o orgulho de grupo não está acima da possibilidade de aceitar o novo.”

37

1.2 Os websites das agências de viagens brasileiras

A reivindicação que o PNT espelha pode ser bem compreendida ao analisarmos especificamente a venda do “produto Brasil” no mercado internacional. A necessidade de articulação dos diferentes atores pretende, em última instância, otimizar a prestação de serviços vendidos ao cliente final: o turista. Existe a preocupação de satisfazer as expectativas do cliente e, nesse sentido, os agentes de viagens brasileiros tentam atender às demandas levando em consideração cada caso individualmente. Este atendimento personalizado caracteriza o diferencial que cada agência é capaz de oferecer em maior ou menor grau. No entanto, é preciso lembrar que as agências de viagens fazem parte de um mercado competitivo em que a conquista do cliente depende, além da relação custo-benefício, da adaptabilidade e da capacidade de atender a demandas específicas. Esta predisposição para atender especificidades das demandas dos clientes se reflete na multiplicidade de produtos ofertados pelas agências nacionais. Percorri individualmente os sites das agências que fizeram parte do meu campo, concentrando-me nas representações sobre o Brasil e sobre o Rio de Janeiro, buscando encontrar referências ao segmento do “turismo étnico”, bem como compreender as representações sociais sobre o tema veiculadas nos sites em questão. O primeiro website ao qual me ative foi o da agência Walpax25. Em sua página inicial encontramos o link de redirecionamento para o idioma desejado, que pode ser inglês, francês ou alemão. A página seguinte (inglês) possui curiosamente a foto de uma orquestra sinfônica e, ao lado, a filosofia na qual a empresa se apresenta como capaz de prover serviços “tão bem afinados quanto em uma orquestra”26. Nessas primeiras linhas, o foco na adaptabilidade já é

25 Ver em www.walpax.com.br. 26 Como meu propósito é observar como o Rio de Janeiro está sendo apresentado para os norte- americanos, observarei todas os sites na versão em inglês e todas as menções serão feitas com traduções feitas por mim.

38

apontado ao mencionar que esta é uma empresa voltada para “atender a todas as necessidades” do cliente. Na parte superior da tela existem cinco links: Sobre Nós, Brasil, Principais Cidades, Contacte-nos e Home. No primeiro item, é apresentado o “perfil da empresa” com o subtítulo “seu escritório no Brasil”. Ali, a empresa relata ter sido fundada em 1963 e ter se transformado em uma DMC (Destination Management Company) em 1978, quando “não somente teria se transformado em uma especialista em turismo receptivo, mas também em uma líder no que diz respeito à representação de operadores estrangeiros no país”. Existe o objetivo claro de promover as habilidades de gerenciamento (management) da empresa. No link chamado Brasil, encontramos informações sobre “dados gerais” (capital, localização, área, língua, etc.), um “mapa” e as subdivisões regionais. Sendo esta última uma das duas formas de se chegar à descrição sobre a cidade do Rio de Janeiro, a outra está no link “Principais Cidades”, que apresenta uma listagem de Tours e hotéis. Faz uma síntese do que seria a cidade maravilhosa, denominando-a como “a cidade dos contrastes de cor e de estilos de vida” e afirmando ser ali “a capital da alegria, lavada pelo sol, cidade do carnaval, construída ao redor da mais bonita baía do mundo”. Na listagem das excursões disponíveis, não encontramos nenhuma menção a “programas étnicos”; no entanto a adaptabilidade pressuposta na forma em que a empresa se apresenta parece sugerir que, não importando o tipo de cliente, a Walpax seria capaz de “montar um itinerário exclusivo para atender suas necessidades” (…design a tailor-made itinerary to suit your needs). O segundo website analisado foi o da agência BGT27, que já apresenta, na página inicial, uma listagem de 29 destinos no país, divididos entre cidades e estados dispostos aleatoriamente, os quais estão posicionados nas margens direita e esquerda da tela. Estes seriam, na realidade, os links para a descrição de cada um daqueles destinos. Ao centro da página encontramos uma composição com sete imagens sob o título “Brasil”. Uma igreja em estilo barroco,

27 Ver www.bgt.com.br.

39

o Cristo Redentor, e uma típica baiana “negra” são algumas dessas imagens que se encontram ao redor de um papagaio. Além das cidades, existem links para o que eles denominam como “descritivo”, “Indústria” e “Hotéis”. É interessante observar que, na “breve história” que é relatada ao abrirmos o “descritivo”, encontramos a seguinte definição sob o título de “povo brasileiro”:

“Os habitantes do Brasil são descendentes de uma mistura de povos. Colonizadores portugueses se misturaram com índios nativos e escravos africanos (majoritariamente de origem Yorubá e Quinbundo, que correspondem atualmente à Nigéria/Benin e Angola). Colonizações holandesa e francesa também se deram no nordeste. No séc. XIX, ondas de imigrantes alemães, italianos, poloneses e japoneses adicionaram novos elementos à mistura. Os brasileiros são, talvez, um dos povos mais racialmente misturados do mundo”.28

O link para a cidade do Rio de Janeiro apresenta a cidade de forma resumida, ressaltando, sobretudo, qualidades como descontração e simpatia, tidas como características dos cariocas. Em todas as páginas com descritivos das cidades ou estados existem listagens de restaurantes, entretenimento e hotéis. É visível o direcionamento da empresa para o turismo de Incentivos, muitas referências para este segmento que, segundo o glossário do Ministério, seria “aquele constituído por viagens-prêmio concedidas com o objetivo de incentivar o desempenho profissional”. O website da BGT, no entanto, não faz

28 Tradução minha; apresento, a seguir, o original: “PEOPLE - Brazil's inhabitants are descendants of a mixture of people. Portuguese colonizers mixed with the native Indians and African slaves (mostly of Yoruba and Quimbundu origin, corresponding to modern-day Nigeria / Benin and Angola). Dutch and French colonization also took place in the Northeast. In the 19th century, waves of German, Italian, Polish and Japanese immigrants added new elements to the mixture. Brazilians are perhaps one of the most racially mixed people in the world”.

40

nenhuma menção ao segmento “turismo étnico”, ou a qualquer produto que se relacione com a herança africana na cultura do país. O terceiro website, da agência “Havas”29, é o mais sucinto de todos, no qual o que parecia ser um som unívoco sobre a mistura de raças como um delineador do “produto turístico” nacional, não encontra espaço na página amarela e vermelha em formato de cartão postal. A logomarca da empresa está disposta como se fosse um selo de postagem. Inicialmente, temos a possibilidade de escolher entre dois idiomas para prosseguir, o inglês e o português, porém, a empresa ressalta ter uma equipe “full time” e guias multilingües. A página inicial já abre em inglês. Ao prosseguirmos, encontramos links para: “Congressos e eventos”, “Pacotes terrestres”, “Pacotes terrestres e aéreos”, “Turismo de lazer”, “Perfil da companhia”, “Fale conosco” e “Incentivos”. E em seguida, sob o título de “viaje pelo Brasil” a possibilidade de escolha entre quatorze cidades brasileiras. No centro do “cartão postal” encontramos fotos das cidades brasileiras que vão se intercambiando gradativamente, uma a uma. Depois de selecionarmos a cidade do Rio de Janeiro, encontramos uma página sem links secundários, que se inicia provendo a seguinte definição:

“A capital cultural do Brasil. Sua beleza de perder o fôlego fez dela uma das mais atrativas cidades do mundo. O clima temperado do Rio é atraente. E em sua beleza natural encontramos o Morro do Corcovado, com a estátua do Cristo Redentor; a Floresta da Tijuca e sua flora silvestre; o Pão de Açúcar com sua soberba vista do Rio; e muitos outros – como as adoráveis praias de Copacabana, Ipanema, Leblon e São Conrado, são uma atração turística perpétua”.30

29 Ver em www.havasbrazil.com.br. 30 Tradução minha, segue o original: “The cultural capital of Brazil. Its breathtaking beauty has made it one of the most attractive cities in the world. Rio's temperate climate is enticing. And its natural beauty spots - the Corcovado mountain with its statue of Christ the Redeemer; the Tijuca Forest and its jungle flora; the Sugar Loaf with its superb view of Rio; and so many others - as

41

Margeando esta definição, aparece um mapa do Brasil que sinaliza a localização da cidade. Abaixo, estão listados os serviços oferecidos. Treze excursões, dentre as quais estão incluídos os óbvios Corcovado e Pão de Açúcar, e saídas às cidades vizinhas de Petrópolis, Búzios, Angra dos Reis e Paraty. Paralelo ao perfil já observado nas duas agências anteriores, a Havas também parece dar grande destaque ao “Turismo de Incentivos”, e tampouco faz menção alguma ao segmento do “turismo étnico”. A única referência à herança africana encontrada em sua página está na descrição, em português, da cidade do Rio de Janeiro, em que a noite de 31 de dezembro é relatada como o dia em “todos os cariocas se dirigem às praias para homenagear Iemanjá, uma Deusa africana considerada a rainha do mar”. A “Blumar”31, quarta agência nacional a ter seu website analisado, apresenta um conteúdo bem mais variado que as três anteriores. Sua página inicial, além de oferecer entradas para produtos, destinos, eventos e informações sobre o Brasil, possui também propostas de turismo de aventura e ecoturismo, por exemplo. Tem fotos do Cristo Redentor e do Pão de Açúcar ao lado das Cataratas do Iguaçu, e de uma chamada para uma página sobre Carnaval. Em destaque, do lado inferior esquerdo, está uma foto que se pressupõe ser de duas baianas, tipicamente vestidas (pano da Costa, torço amarrado na cabeça, e muitas guias) sob o título de: “Venha para Salvador…”. Ao clicarmos ali, encontramos uma breve descrição da cidade vista pelos “negros” americanos como fonte emanadora da verdadeira herança da cultura africana. O perfil da empresa é colocado de forma objetiva: além de informar ter sido criada há 19 anos atrás, também se apresenta como uma das agências líderes do turismo receptivo e como DMC, “capaz de apresentar ao mercado o

well as the lovely beaches of Copacabana, Ipanema, Leblon and São Conrado, are perennial tourist attractions”. 31 Ver em www.blumar.com.br.

42

melhor que o Brasil tem para oferecer”. Mais adiante, enfatiza sua “especialização em montar e operar programas feitos sob medida (custom- made) com bases em interesses espaciais”. Como descrição para o país e para o povo, encontramos o estereótipo do paraíso tropical, sugerindo que “ao pensar o Brasil como destino”:

“[…] deve-se manter em mente que um país tão vasto oferece opções para todos os gostos e interesses: selvas, rios, ilhas, cachoeiras, etc. Desde intermináveis praias brancas delimitadas por oásis com altos coqueiros e palmeiras, até pedaços escondidos de areias douradas ligando a água azul brilhante a cavernas rochosas. Esportes aquáticos, golfe, cavalgadas. Fauna e Flora ricas, com sol ao longo de todo o ano. Uma cultura esplêndida, refletida em seus museus, igrejas barrocas, arquitetura colonial, cidades históricas, pinturas e galerias de arte. Refletido também na sua excelente gastronomia, no seu misticismo e na sua música rica e sensual: samba e Bossa Nova, entre outras.”32

“Não esquecendo de mencionar que o Brasil é também o seu povo amável cujo calor e hospitalidade são famosos.”33

No que diz respeito à cidade do Rio de Janeiro, encontramos um pequeno resumo que reforça a imagem de destino de praias e belezas naturais combinadas a características como arte, moda, estilo e elegância. A agência apresenta como itinerários sugeridos pelo menos dois programas bem

32 Segue versão original: “When thinking of Brazil as a destination , one must have in mind that such a vast country offers options for all tastes and interests: jungles, rivers, islands, waterfalls etc. From endless white beaches delimited by oasis of tall coconut and palm trees to hidden pieces of golden sand linking sparkling blue water and rocky caves. Water sports, golf, horse riding. Rich fauna and flora with sun all year long. A splendid culture, reflected in its museums, baroque churches, colonial architecture, historical cities, paintings and art galleries. Reflected also in its excellent gastronomy, its mysticism and rich and sensual music: Samba, Bossa Nova, among others.” 33 Do original: “Not forgetting to mention that Brazil is also its friendly people which warmth and hospitality are famous”.

43

particulares: o primeiro, sob o título de “Brazil like a native”, e o segundo, sob o título de “Candomblé”. O primeiro combina as cidades do Rio de Janeiro, Manaus e Salvador, oferecendo na “Cidade Maravilhosa”, além dos pontos turísticos, saídas como a Gafieira e o “Carnival behind the scenes”, qual seja, uma visita a um barracão de escola de samba. Já o itinerário “Candomblé”, que se dá em Salvador, oferece “uma exposição informal” sobre a religião no Museu Afro-Brasileiro, seguida da visita a um dos terreiros mais tradicionais da cidade, que continua com a consulta a uma mãe de santo para jogar búzios. A Blumar é a primeira das quatro agências a publicar em sua página na Internet um programa, ainda que resumido, especificamente centrado na herança da cultura africana no Brasil. Entretanto, nenhuma referência é feita ao Rio de Janeiro neste programa, somente Salvador é mencionada para a realização do “tour com foco social e religioso”. A quinta e última webpage de agência nacional que analisei foi a da “BIT”34. O nome é uma abreviação de “Brazilian Incentive & Tourism”. Esta homepage, de longe, mostra-se o mais completo dos sites visitados, visto que, além de todas as informações encontradas nos anteriores, encontramos uma variedade imensa de proposições em caráter de turismo segmentado. Na página inicial, em inglês, encontramos ao centro uma variedade de fotos de diferentes partes do país, que mudam gradativamente, mantendo em sua margem a frase: “Nós conhecemos um outro Brasil”. Em seguida, anuncia que o site contém 8.000 fotografias, 36 vídeoclipes e 3.500 páginas de informação, e afirma que “sendo uma das DMCs líderes do mercado, pode oferecer as melhores opções de viagens e os melhores preços em hotéis, on- line e em tempo real!”. Ainda na primeira página, em “special tour packages” encontramos, listado entre oito outros, o subtítulo: “African Roots”. É preciso mencionar que esta é a primeira agência que promove explicitamente a comercialização de um produto do segmento “turismo étnico”. Ao abrirmos o link, encontramos uma foto de muitos negros dançando na rua, mulheres vestidas com trajes de baianas

34 Ver em www.bitourism.com.

44

bem coloridos e os homens estão de pés descalços, com calças listradas também muito coloridas, uma faixa branca na cintura e o torso desnudo. O programa é sugerido aos interessados “em um mergulho real na cultura baiana”, no qual 11 dias são divididos entre as cidades de Salvador, Cachoeira e Praia do Forte. Reproduzo sua apresentação:

“Especialmente criado para um verdadeiro mergulho no coração da cultura baiana. Intercalado por partes (stages), conferências e visitas, esta descoberta da Bahia revela os pequenos detalhes (como) os restaurantes e os menus, as jornadas desta visita, as interferências no nível afro -brasileiro. Tudo foi preparado para que este Brasil ‘fora do convencional’ apareça como um encontro real [...]. Nesse ínterim aprende-se tudo sobre a sociedade afro-baiana com todos os seus mitos e ritmos”. 35

Mas nada que diga respeito ao Rio de Janeiro… Ao voltarmos à página inicial, encontramos na margem esquerda, dentre outros ícones, o item “Special Interests” que ao ser clicado encontra-se subdividido em seis grupos. A primeira opção do grupo “cultural” é chamada de “African culture in Brasil”, e esta nos encaminha para outra página em que encontramos propostos três pacotes: o já mencionado “African Roots”, de 11 dias, o “African Soul”, de 5 dias, e o “Boa Morte Festival”, de 6 dias. O “African Soul” propõe as cidades de Salvador, Cachoeira e Santo Amaro, enquanto o seguinte somente Salvador e Cachoeira. Enfim, encontramos nesta agência brasileira três produtos desenvolvidos sob a rubrica do “turismo cultural étnico” de bases “afro-descendentes”; no entanto, nenhum deles sequer menciona a cidade do Rio de Janeiro.

35 Original: “Especially created for a real dive into the heart of the Bahian culture. Interrupted by stages, conferences and visits, this discovery of Bahia discloses the smallest details, the restaurants and the menus, the journeys of this visit, the interference on the afro-brazilian level. All has been prepared that this Brazil “off the beaten track” imposes like a real meeting [...]. In between we learn everything about the Afro-Bahian Society with all its myths and rythms.”

45

Após visitar as páginas das agências de turismo cariocas que operam os roteiros de turismo “étnico” no Rio de Janeiro, percebemos que poucas são as referências feitas à herança cultural afro-brasileira no que tange à capital carioca. Quando mencionado, o produto se circunscreve exclusivamente à capital baiana.

46

1.3 O “ turismo étnico” comercializado pelas agências nos EUA

Observo, a seguir, como os produtos estão apresentados na web pelos pares norte-americanos das agências brasileiras analisadas. Meu primeiro passo será relacionar essas parcerias. Vejamos:

Fig. 03 – Agências de Turismo líderes em operações com grupos “étnicos”

Brasileiras Norte-Americanas Nome da Produto Nome da Produto Agência “étnico” Agência “étnico” 1 WALPAX Não menciona CONSOLIDATED Não Menciona no título 2 BGT Não menciona TRENDSETTERS “Afro-Brazilian Black History Tour” 3 HAVAS Não menciona SOUTH STAR “African Heritage in Brazil” 4 BLUMAR 1 mencionado EQUATOR 3 Não menciona (em Salvador no título somente) 5 BIT 3 mencionados BRAZIL NUTS “Celebration (em Salvador of life” somente)

A Consolidated Tours36, parceira da carioca Walpax, apesar de não mencionar explicitamente a comercialização de pacotes de “turismo étnico”, tem

36 Ver em www.ctoinc.com.

47

na sua página inicial a promoção dos “Special Tours” dentre os quais o primeiro mencionado é “Brazil: Boa Morte”. A empresa, que comercializa outros destinos como Terra Santa, África e Europa, ao descrever seu pacote para a festa de N. Sra. da Boa Morte, que acontece todos os anos no mês de agosto, e atrai centenas de turistas “negros” norte-americanos, mostra a combinação proposta entre Salvador e Rio de Janeiro. Aliás, o programa chama “Boa Morte”, mas a foto promocional é do Cristo Redentor… O programa em Salvador é descrito minuciosamente, falando de samba- de-roda, capoeira, candomblé e todos os seus Orixás. A impressão que se tem é que esses são símbolos exclusivos da Bahia, pois aqui também o Rio de Janeiro tem reforçada sua característica cosmopolita combinada à de cidade litorânea. É como se a Bahia fosse o único lugar do Brasil onde encontramos essas manifestações culturais de descendência afro-brasileira. A Consolidated opera, exclusivamente com a Walpax, há mais de dez anos, os grupos de “negros” norte-americanos e, segundo o seu diretor, traz esses clientes ao Rio de Janeiro e Salvador desde a década de 1970. A segunda agência norte-americana a observarmos é a Trendsetters37, que apresenta quatro destinos: o Brasil, a França, Barbados e a Jamaica. Esta agência tem a peculiaridade de promover seus pacotes junto com estações de rádio norte-americanas, estas últimas conhecidas pela eficácia no que tange ao alcance à população “African-American”. Esta é a razão pela qual um de seus links tem o título de “Radio Station Tours”, no qual encontramos listados todos os pacotes operados desde abril de 2003. Os títulos para os programas variam entre: “Afro-Brazilian Black History Tour”, “Brazil is Paradize”, “Where dreams come true” e os nomes das estações de rádio que os promovem. É importante mencionar que tanto a Trendsetters quanto a Consolidated trabalham exclusivamente com grupos de clientes “negros” e possuem o seu produto voltado para este mercado. Prova disto foram as excursões operadas no

37 Ver www.trendsetterstours.com.

48

Brasil nos anos de 2003 e 2004, dentre as quais uma parte significativa fez parte do meu trabalho de campo. Sua descrição do povo brasileiro merece atenção; em um longo parágrafo, a agência menciona, dentre outras coisas, que: “O Brasil é uma mistura de muitas ancestralidades diferentes, a maior parte vinda da África, da Europa e das populações indígenas. Quase metade da sua população é de africanos […] – compondo a maior população de negros no Hemisfério Ocidental […].”38

A Trendsetters é uma das agências que vendem, de forma marcada e explícita, o produto “Turismo étnico”. Este segmento está definido desde o “título” dos programas, que se restringem, na grande maioria das vezes, ao Rio de Janeiro e a Salvador. Todos os seus programas no Rio de Janeiro são operados pela BGT há pelo menos cinco anos. A terceira agência, a South Star Tours39, parceira da Havas turismo, tem um website no qual se apresenta como especialista em América Latina. Ao clicarmos em sua página inicial, encontramos um mecanismo de busca que, ao selecionar “Brasil”, nos é apresentado, dentre os “possíveis interesses”, o título: African Heritage. Ali, o resumo do programa com o título “African Heritage in Brazil” diz:

38 Transcrevo o parágrafo original na íntegra: “Brazil has the largest population in South America and is the fifth most populous country in the world. Brazil is a mixture of many different ancestries, mostly, from , Europe, and indigenous populations. Almost half of its population is African or African mixed with European, indigenous or Asian ethnicities - making it the highest population of in the Western Hemisphere. About 55 percent of the population is white (mainly Portuguese, German, Italian, Spanish, Polish descent), 6 percent African, 38 percent mixed African and white/indigenous), and 1 percent other (Japanese, Arab, Indigenous - Amerindian ethnicities). Portuguese is the official language, yet Spanish, English, and French are widely spoken. About 80 percent of the population is Roman Catholic. Most of the estimated 150,000 indigenous Amerindian people live in the rain forests of the Amazon River basin. The literacy rate among women and men is equal at more than 83 percent. There are more than 50 universities in the country.” 39 Ver www.southstartours.com.

49

“Este pacote especial sobressalta a riqueza da cultura negra no Brasil. Excursões e educação se fundem neste tour único, que leva os visitantes às cidades de Salvador/Bahia e Rio de Janeiro. A cultura africana brilha no Brasil e este tour apresenta seus pontos altos de forma muito rica, visitando locais especiais de interesse histórico tais quais museus, “Terreiro de Candomblé”, cidades coloniais e um pouco de palestra (lecture). Sem mencionar a grande oportunidade de aproveitar a saborosa comida brasileira tão influenciada pela presença africana.”40

Para além desta sinopse, a South Star apresenta o programa detalhado para os 9 dias propostos para o Brasil, em que, na cidade do Rio de Janeiro, tem planejada uma “visita ao Corcovado e lugares relacionados à cultura negra, como a Pedra do Sal, igreja da Ordem Terceira do Carmo, igreja de N. Sra. do Rosário e o Museu do Carnaval […]”. A empresa propõe um programa de “turismo étnico” para o Rio de Janeiro. A quarta agência, parceira da BLUMAR, é a Equator 3.41 Esta, apesar de não intitular seus tours como “étnicos”, possui grupos compostos somente por “negros” norte-americanos e seus programas para o Brasil são atualmente três: “Rio/Bahia Carnaval”, “Festa de N. Sra. da Boa Morte” e “Ano Novo no Rio com Paraty”. O primeiro é vendido como o maior expoente da herança africana no Brasil, o Carnaval. Durante o carnaval ficam na cidade de Salvador e no final de semana seguinte vêm para o “Desfile das Campeãs”, no Rio de Janeiro. O segundo é para a Festa de N. Sra. da Boa Morte, na Bahia, e o terceiro propõe participar da festa para Iemanjá na praia de Copacabana durante o Réveillon.

40 Transcrevo o trecho no original: “AFRICAN HERITAGE IN BRAZIL - 9Days/7Nights - Group Tour - This special package highlights the richness of the Black Culture in Brazil. Sightseeing and education merge in this unique tour, which takes visitors to the cities of Salvador, Bahia and Rio de Janeiro. African culture shines in Brazil and this tour introduces its high points on a very rich way by visiting special and historical places of interest such as museums, “Candomble Temple”, colonial towns and a bit of lecture. Not to mention the great opportunity to enjoy the taste the Brazilian cuisine much influenced by the African presence.” 41 Ver www.equator3.com.

50

Esta é uma empresa em que todos os programas possuem tours históricos afro- brasileiros, capoeira e feijoada e seus prospectos anunciam que todos os guias brasileiros são afro-descendentes. Finalmente, a quinta agência é a Brazil Nuts, que é espelho da carioca BIT, começando pelo website, que além de ter o mesmo formato da parceira brasileira, possui boa parte das informações padronizadas existentes. Existe uma sintonia articulada entre o que é proposto aqui no Brasil e o que é mostrado lá nos EUA. Obviamente que esta é uma agência que vende exclusivamente o “Produto Brasil”. No que tange ao ”turismo étnico”, esta promove um programa chamado “Celebration of Life”, o qual, segundo a descrição, “explora a rica e interessante herança africana que faz o Brasil tão especial”. Este é, na realidade, um programa de 10 dias, que combina o Rio de Janeiro e Salvador, mas que tem um formato proposto independente de datas especiais. A Brazil Nuts parece investir no mercado Afro-Americano com um programa que pode ser vendido durante todo o ano, assim como faz a South Star. Flexível, direto e “étnico”. Esta agência parece que se propôs a acreditar nas perspectivas deste mercado promissor, prova disto é o lançamento de uma outra empresa do mesmo grupo nos EUA, de nome “Destination Partners”42, que promove a herança africana de outros países além do Brasil.

A composição destes grupos, para os agentes de viagens norte-americanos que vendem os pacotes, tem como prioridade o alcance de um número mínimo de passageiros. O que significa dizer que como estratégia de vendas, os agentes possuem representantes por todo o país (EUA) empenhados na composição de um número mínimo de passageiros, o que também influi na grande diversidade desses grupos. Na realidade, um grupo pode ser formado por turistas oriundos de uma cidade, assim como pode acontecer de ter várias

42 A Destination Partners é uma agência nova, criada entre o final de 2004 e o início de 2005, parte do grupo Brazil Nuts, que promove outros destinos além do Brasil. Aqui, a herança africana é promovida para além das fronteiras nacionais, o que parece uma boa estratégia para desenvolver a fidelização de sua clientela. Esta empresa, por ser recente, não teve nenhum grupo que tenha feito parte do meu trabalho de campo. Ver www.destinationpartners.net.

51

cidades representadas. Um grupo pode se originar em uma universidade, em uma igreja, através de programas de rádio, bem como pode ser articulado no intuito de alcançar aquele número mínimo previsto de passageiros.

Outro fator importante, no que caracteriza essa composição, é a existência de dois canais de comunicação significativos para a comunidade: a rádio e a igreja. Muitos grupos são organizados através desses dois canais, ambos de longo alcance, para o repasse da troca de experiências. Esses canais, em última instância transformam-se em propaganda boca à boca, e de massa! Não é por acaso que, dos 18 grupos que foram observados durante o meu trabalho de campo, três deles foram organizados via Radio Stations (WBLS, de Nova York, e a KJLH, de Los Angeles)43.

A WBLS, por exemplo, promove um pacote que combina Salvador e Rio de Janeiro, todos os anos, no mês de março. Em uma entrevista concedida no Hotel Sheraton da Barra da Tijuca, durante o grupo de 2004, um famoso radialista que acompanhava o grupo me relatou que:

“A rádio é um canal de comunicação muito eficaz, porque faz parte do hábito cotidiano dos African-Americans de todas as idades. Atinge desde as donas-de-casa até os empresários presos em engarrafamentos, passando, obviamente, pela juventude amante do Hip-Hop...”

“A rádio tem, sobretudo, uma função social, qual seja, a de esclarecer o ‘nosso povo’ e de repassar os conhecimentos adquiridos no intuito de melhorar nossa qualidade de vida... “

Radialista de Nova York

O ponto de vista de Bob Lee é significativo para entender uma das formas através da qual a comunidade African-American se articula politicamente. Para além da menção constante de ícones de sua luta política, como Martin Luther King, por exemplo, está a prática contínua do “empoderamento” via

43 Grupos de no 01, 07 e 18.

52

conhecimento e, sobretudo, via mercado. A lógica é simples, e pode ser bem representada através das palavras dos diretores de uma das agências norte- americanas que fizeram parte do meu campo:

“Se vamos dar o nosso dinheiro para algum comerciante, vamos sempre preferir que este seja um afro-descendente, que seja um de nós. E quando digo ’nós‘, não estou falando de mim especificamente, mas dos afro-americanos como um todo...”

“...porque a primeira coisa que um African-American faz quando entra em um estabelecimento é quantificar! Contar quantas pessoas de cor (people of color) existem ali e em qual proporção ao total de funcionários...”

Agentes de viagens norte-americanos

A especificidade dos interesses desses turistas pela referência africana na cultura brasileira pode ser claramente observada nos dois prospectos da Equator3 encontrados no ANEXO 4. Em ambos, além de referências à Festa de Iemanjá, festa de Omolu, Capoeira e tours históricos ditos “afro-brasileiros”, encontramos a observação: “Serviços de guias ‘afro-brasileiros’”.

Para avançar em nossa reflexão, é central estar atento a dois pontos: primeiro à idéia de “comunidade” existente e difundida entre os Afro-Americanos, que atualmente toma proporções que transcendem os limites nacionais por conta do turismo e das facilidades tecnológicas44. Esse é um movimento de valorização da “diáspora africana”, que transforma em “brothers and sisters” todos os afro-descendentes, sem restrição de nacionalidade, o que automaticamente acaba por incluir os brasileiros de ascendência “negra”. O outro ponto central, já mencionado anteriormente, é a empreitada pelo “empoderamento” de afro-descendentes via conhecimento, articulações e

44 Ver no ANEXO 5 o panfleto eletrônico da LIBRADIO NETWORK que me foi enviado como convite para participar de uma entrevista on-line, no intuito de discutir, esclarecer e divulgar os programas de turismo étnico no Brasil.

53

preferências para consumo da própria comunidade45, o que, devido à expansão dos horizontes ao focalizar a diáspora africana, inclui a tarefa de esclarecer também aqueles que não nasceram nos EUA, neste caso especificamente, os cariocas.

Temos aqui, então, um ponto de distanciamento significativo: de um lado encontramos os “negros” norte-americanos que tendem a transformar em “negros” todos os que têm ascendência africana, portanto considerados “não- brancos”, privilegiando, assim, a origem africana sobre qualquer outra existente. Do outro, temos os brasileiros que transformam em “quase-brancos” os indivíduos de ascendência africana em algumas situações. Ou seja, a valorização “racial” se dá em direção oposta.

Ao ler “A brancura desconfortável das classes médias brasileiras” de Norvel46, vemos como as camadas médias se colocam como “brancas” ou “quase-brancas”, a partir de uma lógica dual. Este segmento se legitima enquanto classe dominante ao mesmo tempo em que se descompromete do domínio nacional-cultural, edificado em alicerces da herança africana 47 e indígena. Segundo o autor, ao rever os livros clássicos de Paulo Prado, Gilberto Freyre e Sérgio Buarque de Holanda no que diz respeito à miscigenação, o mito das três “raças” parece ter privilegiado a brancura da herança portuguesa no discurso das classes dominantes, em que a ascendência africana ou indígena está situada em algum lugar do passado, no que diz respeito a si mesmo para os “quase-brancos”, ou no “outro” para os “brancos”.

Curiosamente, é lugar comum: ao perguntar para “negros” americanos que transitam pelo Rio com relação à existência de racismo no Brasil, as respostas quase sempre confirmam o racismo. No entanto, as explicações sempre se resumem à ausência de “negros”, ou como eles mesmos denominam “coloured people”, nos lugares que freqüentam, e nunca com relação a si mesmos. O que

45 É esclarecedor ver as “21 things African-Americans should do” na lista retirada do website da Rádio KJLH (Qual organizou o grupo de número 19 do meu trabalho de campo). Estes princípios foram amplamente divulgados e repetidos durante a estadia no Brasil. Ver ANEXO 6. 46 Ver Norvel, J. (2001). 47 Ver Fry, P. (2001).

54

parece colocá-los, de alguma forma, em uma posição diferente daquela em que os “negros” brasileiros se encontram. O “negro” discriminado aqui é o “outro”, e nunca eles mesmos. Notemos a resposta de um de meus informantes americanos:

“Como sou turista, não sei exatamente se a sociedade brasileira é racista ou não. Preciso admitir que me sinto muito confortável… que não senti em nenhum momento uma situação de racismo com relação a mim. Mas minha experiência enquanto americano negro na minha casa, me faz suspeitar do fato de não ver pessoas de cor nos bons restaurantes, trabalhando nas recepções de hotéis, como vendedores nas lojas em Ipanema, nos cinemas em Copacabana, etc., ao mesmo tempo que percebo que os mendigos, os vendedores ambulantes, os meninos de rua e até mesmo os adolescentes que fazem malabarismos nos sinais de trânsito têm ‘cor’ e ela não é ‘branca’. Isso me faz afirmar que existe! Se não existisse, como seria possível explicar essa polaridade de ‘cores’ tão inversamente posicionada?”

A resposta de meu interlocutor me remete a um livro chamado “Town & Country in Brazil”, no qual Marvin Harris, ao desenvolver uma pesquisa nos anos de 1950 e 1951 no interior da Bahia, já teria apontado para a peculiaridade de que no Brasil “riqueza, ocupação e educação (…) têm, até certo ponto, o poder para definir a ‘raça’”48 e que “é devido a este fato que não existem grupos socialmente importantes […] que sejam determinados puramente por suas características físicas”49.

No extenso capítulo intitulado “Class and Race” o autor descreve a estratificação social de uma pequena cidade chamada Minas Velha, onde existiriam basicamente três classes: uma pequena elite majoritariamente

48 Tradução minha. Ver Harris, M. (1971:126). 49 Idem. Aqui é importante ter em mente o corte racial dito ”vertical” existente nos EUA.

55

“branca”, uma pequena classe baixa majoritariamente “negra” e uma extensa classe intermediária composta pelo que chamou de “tipos intermediários” (leia- se mestiços) onde, segundo ele, tamanha extensão serviria “como um conveniente mecanismo para negar a identificação com a classe mais baixa”50 (“negros”). Mais adiante, afirma que “uma importante característica das relações raciais em Minas Velha, assim como na maior parte do Brasil, é a ocasional habilidade de indivíduos com tipos físicos ‘inferiores’ ascenderem ao status de tipos físicos ‘superiores’”51. No que diz respeito ao locus de socialização da elite de Minas Velha, o Clube Social, destaca que a maioria que a ele pertence é “branca” e “aqueles que não o são, têm um excesso de dinheiro ou algum outro fator de prestígio em razão inversamente proporcional à sua ‘deficiência’ racial”52. Para avançar na minha reflexão, gostaria de convidar o leitor a refletir sobre os pontos de contato existentes entre a sociedade que Harris analisou então, e a sociedade carioca da atualidade, pensando a Zona Sul do Rio de Janeiro enquanto locus de socialização da elite e da classe média cariocas. Será que o leitor considera, tanto quanto eu, que tal analogia faz todo sentido? Bom, caso considere, talvez fique inquieto com a revelação que segue, ainda na análise de Harris, de que existiria uma tensão social na qual: “Não há difusão de sentimentos contra alguns negros ocupando status equivalentes ou mais altos que alguns brancos (ex. “se embranquecendo”), mas há evidentemente um valor crítico em relação ao número de tais casos que podem ser tolerados. Em outras palavras, há implícito na dada configuração do ideal de estratificação racial uma ‘cota’ na proporção de negros aos quais os brancos se admitiriam equiparados ou acima deles”.53

50 Tradução minha. Ver Harris, M. (1971:123). 51 Idem. (1971:127). O autor também aponta que na visão da população local, os “negros” são vistos como tipos inferiores e os “brancos” como superiores. 52 Idem. (1971:129). 53 Idem. (1971:135).

56

2 - OS TURISTAS “NEGROS” NO TURISMO CARIOCA

Fig. 04 – Grupo ITC na Estação do Pão de Açúcar

Para pensarmos o universo dos turistas “negros” que visitam a cidade do Rio de Janeiro, primeiramente se faz necessário visualizar uma subdivisão crucial para sua compreensão, visto que meu trabalho de campo apontou dois grupos independentes visitando a cidade. O primeiro, é o segmento do “turismo étnico”, representado por aqueles turistas que visitam a cidade com o programas de foco “afro-brasileiro”, que foi o objeto inicial deste estudo. No entanto, com o decorrer da pesquisa, pude perceber a sutileza que demarcava a existência de um outro

57

segmento, que talvez não seja prematuro chamar de “turismo sexual”54. Foi preciso, então, tentar estabelecer um caminho que pudesse possibilitar a delimitação referente a estes dois segmentos, de modo que facilitasse a compreensão de ambos e que permitisse continuar minha reflexão sobre aquele primeiro. No que diz respeito ao segmento do “turismo sexual” irei me apoiar, sobretudo, no estudo pioneiro de Adriana Piscitelli, visto que a autora compartilha uma linha de pensamento em que este “é conceitualizado como qualquer experiência de viagem na qual a prestação de serviços sexuais da população local, em troca de retribuições monetárias e não monetárias, seja um elemento crucial para a fruição da viagem”. Além dos estudos de Piscitelli, utilizarei os artigos “Nossa Senhora da Help: sexo, turismo e deslocamento transnacional na orla de Copacabana” (2004) e “A mistura clássica: o apelo do Rio de Janeiro como destino para o turismo sexual” (200?) ambos, produzidos por Thaddeus Blanchette e Ana Paula Silva, e circunscritos ao universo do “turismo sexual” em Copacabana, no Rio de Janeiro.

54 Ver Piscitelli (2001:4).

58

2.1 Demarcando limites: “turismo étnico” vs. “turismo sexual”

É preciso ter clara consciência de que os propósitos, as características e a dinâmica aos quais se circunscrevem aqueles turistas interessados no “turismo étnico”, nada, ou muito pouco, têm a ver com os do universo do mercado do sexo e dos afetos no Rio de Janeiro. É bem verdade que algumas vezes os dois universos apresentam fronteiras que se “borram” a ponto de se confundirem, visto que um “turista sexual” é, antes de qualquer coisa, um “turista”. No entanto, ao observarmos e articularmos determinado conjunto de fatores no meio em que se dão estas dinâmicas, é possível uma aproximação maior ou menor do “universo do turismo sexual”. Penso não ser correto pretender que o “etnoturista” que vem à “Cidade Maravilhosa” e que não tenha nenhum envolvimento com a prostituição praticada na “orla da Baixa Copacabana”55, em última instância, não tenha como ser diferenciado daquele que vem especificamente com propósitos sexuais56. Gostaria de deixar claro que em momento algum tive a intenção, neste estudo, de hierarquizar ou valorizar o “universo do turismo sexual” em oposição ao do “turismo étnico”. No entanto, considero oportuno pontuar que ambos os universos são perfeitamente identificáveis, não cabendo se deixar enganar pelo “discurso da invisibilidade do turismo sexual”, já criticado por Blanchette e Silva em “Nossa Senhora da Help”. Além disto, durante meu campo, apareceram suposições de que o “turismo étnico” não estaria sendo incentivado pelas vias governamentais devido à crença de que este estaria aumentando o universo do turismo sexual. De fato, como veremos mais adiante, é sabido que o número de “turistas sexuais negros” teve um aumento significativo nos últimos anos; no entanto, como demonstrarei neste capítulo, é um grave equívoco pensar que este aumento esteja relacionado com o que aqui estou chamando de turismo “étnico”, e que não incentivar o crescimento deste segundo teria qualquer influência no avanço do primeiro.

55 Para referências sobre a prostituição em Copacabana ver Gaspar (1984); Blanchette e Silva (2004). 56 Ver Blanchette e Silva (2004:2).

59

Dito isto, é preciso fazer algumas ponderações sobre o tema: (1) Nem todo turista “negro” norte-americano no Rio de Janeiro é um “etnoturista”; (2) Existem aqueles turistas “negros” 57 norte-americanos que vêm ao Rio de Janeiro exclusivamente para o “turismo sexual”, e que nada têm a ver com o “turismo étnico”. Thaddeus Blanchette e Ana Paula Silva, afirmam que “nos últimos dez anos houve uma onda crescente de turismo sexual no Rio de Janeiro protagonizado por norte-americanos negros”; (3) Alguns “etnoturistas” podem se transformar em “turistas sexuais acidentais”58, durante a estadia, devido às circunstâncias. Esta expressão é utilizada por Thaddeus Blanchette e Ana Paula Silva em referência ao turista que “explica o fato de estar à procura de garotas de programa pela conjuntura de estar no Rio de Janeiro (cidade onde o sexo livre e abundante é considerado ‘natural’ ou ‘normal’)” e que considera o acontecido como “algo excepcional, não esperado no decorrer da vida normal”.

Para além disto, está o fato de que os “turistas sexuais ‘negros” norte- americanos se mostraram como um interessante exemplo de negociação na tensão existente entre o ’modo bi-polar’ e o ideal de ‘democracia racial’”.

Para entrar em tal discussão, precisamos definir o quadro teórico pelo qual adicionaremos ao nosso repertório o eixo sexualidade. Vejamos:

Afirmando que “nossas definições, convenções, crenças, identidades e comportamentos sexuais [… ] têm sido modelados no interior de relações definidas de poder”, Jeffrey Weeks, em um texto intitulado “O corpo e a sexualidade”, mostra, dentre outras coisas, a sexualidade como uma construção social e assinala sua centralidade para o modo como o poder atua na sociedade moderna. Segundo ele, as relações de poder, em particular no que diz respeito “às suas conexões com gênero, classe e ‘raça’, tornam-se significativas para a definição do comportamento sexual”59.

57 Ver Blanchette e Silva , retirado da internet (http://www.leituracritica.net/lc041210_artigo3.php ) em 16 de maio de 2005. 58 Ver Blanchette e Silva (2004:17). 59 Ver Weeks, J (1999:38).

60

O autor desenvolve de forma instigante como “nosso conceito de sexualidade tem uma história”, argumentando que uma variedade de linguagem nos diz “o que o sexo é, o que ele deve ser e o que ele pode ser”. Assim como Carole Vance60, aponta a “História da Sexualidade” de Michel Foucault como um marco teórico da abordagem do “construtivismo social” no contexto da história e da sociologia da sexualidade. E, ao citar o referido autor, afirma que o sexo oferece “um meio de regulação tanto dos corpos individuais quanto do comportamento da população como um todo”. O poder, diria ele, “atuaria através de mecanismos complexos e superpostos”, produtores de estruturas de dominação e subordinação nas quais “três eixos interdependentes têm sido vistos, atualmente, como particularmente importantes: os da classe, do gênero e da raça”61.

Weeks acrescenta, ainda, que nossa cultura atribui extrema importância à sexualidade, a qual seria “construída como um corpo de conhecimento que modela as formas como pensamos e conhecemos o corpo” e que a mesma, por sua vez, “é modelada na junção de duas preocupações principais: com a nossa subjetividade e com a sociedade”62. Ou seja, que os debates sobre sexualidade seriam debates sobre a natureza de determinada sociedade, na qual o poder atuaria por meio de mecanismos complexos e superpostos de controle, produzindo subordinações e resistências. A sexualidade estaria entremeada por relações superpostas de poder, nas quais a questão da diferença seria central no jogo de forças que determinam os padrões sociais. As diferenças de classe, gênero e “raça” nessas relações de poder são determinantes no que diz respeito à forma como a sociedade constrói certos padrões de comportamento e demonstra a complexidade das forças que modelam as atitudes e o comportamento sexual.

Minha intenção ao utilizar aqui os “turistas sexuais ‘negros’” norte- americanos é a de materializar a complexidade desses três eixos propostos por

60 Ver Vance, C. (1995:12). 61 Ver Weeks, J. (1999:55). 62 Ver Weeks, J. (1999:51-52).

61

Weeks: (1) O fato de serem norte-americanos é significativo para o eixo classe. Ainda que em uma perspectiva de relações internacionais, se pensarmos no par de oposição EUA/Brasil no contexto que estou propondo, a diferença de classe é explícita e abre espaço para uma reflexão sobre as relações de poder Norte/Sul no que tange ao “turismo sexual”. Piscitelli toma como base o trabalho de Truong (1990) para vincular o turismo sexual “às relações entre homens de países desenvolvidos e nativas de nações pobres à prostituição”, considerando o “resultado de uma série de relações sociais desiguais, incluindo relações entre Norte e Sul, capital e trabalho, produção e reprodução, homens e mulheres”. Esta visão se articula perfeitamente com a superposição de poderes proposta por Weeks; (2) O fato de serem “negros” possibilita rever como se dá a relação de poder ao acionarmos o eixo “raça”, visto existir uma variação curiosa no clássico par de oposição Homem/Branco/Estrangeiro/Opressor e a Mulher/Mestiça/Brasileira/Oprimida63, sob os quais operam tanto a historiografia brasileira clássica64 quanto os estudos sobre “turismo sexual”; (3) Já com relação ao eixo gênero, estou partindo da afirmativa de Joan Scott de que este não pode ser considerado como um subproduto de estruturas econômicas 65, e como veremos a seguir, no caso dos “grupos de turismo étnico” no Rio de Janeiro, os papéis de gênero se mostram muito bem marcados neste mercado.

Ainda que não tenha se referido a “negros” estrangeiros, Laura Moutinho já apontou esta variação no par de oposição clássico existente na historiografia brasileira. Em seu livro Razão, ”cor” e “desejo”, a autora apresenta um par de oposição que inclui o homem “negro” brasileiro na relação afetivo-sexual “inter- racial”, ampliando a compreensão das relações sociais e raciais no Brasil e tomando por via a sexualidade, o erotismo e o desejo circunscritos a essa combinação66. Ao pensar sobre relacionamentos afetivo-sexuais “inter-raciais”, a autora mostra como alguns autores “perceberam as idéias de ‘raça’, mestiçagem e erotismo como temas centrais da constituição da nacionalidade brasileira” em

63 Ver Moutinho, L. (2004:cap. 4). 64 Ver Moutinho, L. ( 2004:cap. 2). 65 Ver Scott, J. (1995:80). 66 Ver Moutinho (2004:cap. 4).

62

determinados momentos de suas reflexões. Tendo como foco de sua atenção o “casal miscigenador”, analisa os escritos desde o chamado “pai do racismo” científico, Conde de Gobineau, até às Raízes do Brasil de Sérgio Buarque de Holanda, passando por Nina Rodrigues, Oliveira Vianna, Paulo Prado e Gilberto Freyre. A autora mostra como, nesses clássicos, a categoria mestiçagem emerge enquanto a “linguagem que orquestra as diferenças e hierarquias entre os sexos” e como “foram fundamentais na constituição de nossa idéia de nação”.67

Dei-me conta da importância de se tratarem de dois subgrupos de turistas “negros” distintos ao ser interpelado por um amigo com relação ao tipo de turista que estava estudando. Vejamos:

“É verdade, tem muitos turistas ’negros‘ norte-americanos em Copacabana! É incrível que eu não tivesse percebido antes. Depois que soube do que se tratava sua pesquisa, comecei a me dar conta de como podem ser claramente identificados pelas ruas.”

“[…]o engraçado é que estão sempre em grupos de dois ou três homens. Pode observar, são sempre grupinhos pequenos! Mas, me explique uma coisa: só vêm homens?”

É verdade que ao andarmos por Copacabana, como já mencionado anteriormente, deparamos com uma quantidade singular de turistas, visto estar ali o termômetro do turismo nacional. Também é verdade que, dentre os turistas que por ali transitam, encontraremos uma quantidade significativa de “African- Americans”. No entanto, o grupo ao qual tinha me dedicado em princípio neste trabalho, não eram os pares ou trios só de homens que são vistos durante todo o dia em Copacabana, mas sim um outro subgrupo que, na maioria das vezes,

67 Ver Moutinho (2004:cap. 2).

63

tem uma programação tão intensa que muito pouco tempo livre lhes resta para circular pelas ruas do bairro .

Fig. 05 – “Turismo étnico” vs. “Turismo sexual”

Outro fator importante que me fez incluir esta reflexão inicial sobre o “turismo sexual”, no que tange turistas “negros” norte-americanos, foi o fato de que os grupos que fizeram parte do meu campo terem sido incluídos aleatoriamente 68. São as agências que escolhem os guias e, devido a esta dinâmica, acabei sendo agendado para o carnaval de 2005 para trabalhar com um grupo de “negros” atípico para este mercado, visto que a maioria dos participantes eram homens, contrariando uma das características principais dos grupos de “negros” norte-americanos, que é ser majoritariamente formado por mulheres sozinhas e mulheres que vêm acompanhadas por membros da família (marido ou filha ou

68 Os Guias de turismo no Brasil são profissionais autônomos. Ou seja, organizam suas agendas de trabalho conforme a ordem em que os mesmos lhes são ofertados ; assim, sempre dependem de serem chamados por uma ou outra agência. Trabalham para várias agências, o que faz com que a primeira a ligar e reservar certo período, seja a escolhida.

64

irmã). Este grupo do carnaval de 2005 tinha, entre seus componentes, 80% de pessoas do sexo masculino. Uma inversão, se comparado a todos os outros grupos do meu campo.

A fala da agente de viagens que me contratara pode, por outro lado, nos ajudar a visualizar a desconfiança que tais grupos geralmente despertam no trade turístico carioca:

“[…] preciso te dizer uma coisa Marcelo: seu grupo é quase só de homens! Eu juro que não sabia, vim saber ontem quando a agência de Nova York me enviou a listagem de passageiros. Bem, quase dez homens sozinhos no Rio de Janeiro pro carnaval… sabemos que eles vêm para sexo, só não sabemos para que lado! Se forem gays, sabemos que comprarão excursões, mas se forem heteros… enfim, se forem heteros você vai pelo menos ter os dias livres para brincar o carnaval!”

De fato, meu grupo do carnaval tinha oito homens e duas mulheres e, a profecia se cumpriria: como se anunciaram enquanto heteros, mais da metade do grupo desapareceu durante a estadia, visto que 60% deles eu só viria a ver novamente durante o traslado de volta para o aeroporto, no dia da saída. Aliás, esta metade nem mesmo aparecera para a excursão que já havia sido paga como parte do pacote. Porém, quatro passageiros apareceram para o tour ao Corcovado e ali, tive a possibilidade de começar a pensar em uma possível demarcação dos limites entre o universo dos “etnoturistas” e o dos “turistas sexuais”.

Como se eu não desconfiasse do provável motivo pelo qual os outros seis homens não tinham comparecido ao tour do Corcovado, perguntei a uma das mulheres o que acontecera. Esta, visivelmente desapontada, me dissera que os outros estariam provavelmente dormindo, “visto que eram nove horas da manhã

65

e eles teriam passado suas trêsúltimas noites muito ocupados com suas conhecidas na ‘Help’”69. Logo em seguida, a mesma turista me diria:

“Você sabe do que eu estou falando, não sabe? …pode dizer! Eu estive lá ontem. E foi muito ESCLARECEDOR (eye-openning) ter estado lá!… porque ficou muito claro para mim (it made clear to me) que os nossos homens, “African-Americans”, não necessariamente preferem mulheres de cor ( women)! Definitivamente não, a partir do que vi com os meus próprios olhos ontem… VERY EYE-OPENNING!”

Esta fala denunciou, em princípio, duas coisas: a primeira seria relativa à reprovação feminina com relação ao envolvimento de “negros” americanos no circuito do “turismo sexual”; a segunda seria o desconforto com que esta turista“negra” estava interpretando a não-racialização, por parte de seus pares masculinos, na escolha de suas parceiras na dinâmica do “turismo sexual” carioca.

Foi a partir daí que resolvi dar mais atenção ao “turismo sexual”, por parecer que ali, como ela mesma teria insinuado, algo de “esclarecedor” (eye-openning) poderia ser encontrado no que diz respeito às “relações raciais” no Brasil, envolvendo homens “negros” norte-americanos. Afinal, a preferência pela bipolarização começava a se mostrar menos unânime do que parecia. Além do mais, os trabalhos sobre “turismo sexual” no Brasil que conhecia até então, se restringiam àqueles produzidos pioneiramente por Adriana Piscitelli, qual se circunscreve ao mesmo par de oposição utilizado pela historiografia clássica.

Os outros dois trabalhos que utilizo, de Blanchette e Silva, são relativamente novos, e posteriores ao início desta pesquisa. Segundo estes autores, seguindo

69 Blanchette e Silva já teriam mencionado que “a gerência da Help faz questão de que a boate seja internacionalmente reconhecida como o maior e mais famoso local de encontro entre ‘meninas’ brasileiras e turistas estrangeiros”. Ver Blanchette e Silva (2004:6-7).

66

os passos de Maria Dulce Gaspar no conhecido Garotas de Programa, Copacabana seria “uma área entendida no universo carioca como uma região moral tipificada pela presença de prostitutas e estrangeiros”70, em outras palavras, o locus do turismo sexual na Cidade Maravilhosa. No entanto, nestes trabalhos tampouco encontramos foco no turista “negro” norte-americano, apesar de encontrá-los mencionados um par de vezes.

Levando em consideração que este locus do “Turismo Sexual” se confunde com o do “turismo étnico”, apontarei algumas características que nos ajudem a delimitar os dois universos. É preciso mencionar que, em momento algum esta delimitação tem a pretensão de esgotar o tema; ela é, sobretudo, um mapeamento inicial das especificidades de cada um destes universos.

Apresentarei, separadamente, os treze itens 71 que vejo como relevantes, inicialmente, nesta diferenciação. Discutirei cada um deles, apontando as particularidades referentes a ambos os universos. Vejamos:

“Etnoturistas” “Turistas Sexuais”

1 Grupos Individuais

Primeiramente, observei que, na grande maioria das vezes em que os agentes de viagens brasileiros se referem a “programas étnicos”, se referem também a grupos de turistas com 15 ou mais passageiros. No caso do “turista sexual”, este geralmente viaja sozinho, em duplas ou trios, mas nunca em grupos.

“Etnoturistas” “Turistas Sexuais”

70 Idem (2004:2). 71 Os treze itens estão apresentados sob a forma de uma única tabela no ANEXO 9 desta dissertação, sob o título de “Quadro comparativo: “Turismo étnico” vs. “Turismo sexual”.

67

2 Maior parte composto por Composto somente por homens mulheres sozinhas ou acompanhadas por membros da família (marido ou filha ou irmã)

Em segundo lugar, foi bem marcante, no caso do turismo étnico, o fato de que a grande maioria dos turistas eram mulheres: dentre os grupos que observei, 74,8% dos turistas eram de sexo feminino. Segundo a literatura produzida no Brasil até então, o turismo sexual tem se circunscrito ao universo masculino, não se tem notícia de mulheres praticantes de turismo sexual no Rio de Janeiro. Este fato é revelador, porque mostra que o universo dos turistas “negros” norte-americanos no Rio de Janeiro está subdividido a partir de um recorte de gênero, em que o “étnico” é basicamente composto pelo feminino, enquanto o “sexual” é exclusivamente composto pelo masculino.

“Etnoturistas” “Turistas Sexuais”

3 Têm programas turísticos Visitam o Corcovado e/ou Pão de intensos. Açúcar, quando muito.

Outro fator importante a ser considerado é a intensidade dos programas de turismo “étnico”, nos quais os turistas têm programações diárias que ocupam a maior parte de seus dias. Já o “sexual” se circunscreve à área da “baixa Copacabana” e, na grande parte das vezes, não está vinculado a nenhum programa turístico diário. Eles passam a noite nas danceterias de prostituição, principalmente na “Help”, e geralmente passam as manhãs dormindo.

“Etnoturistas” “Turistas Sexuais”

68

4 Demonstram interesse de Retornam várias vezes ao Rio de retornar, no futuro. Janeiro, com intervalos médios de 6 a 12 meses, entre uma estadia e outra.

Os “etno” demonstram o interesse de retornar no futuro, não necessariamente pontuando quando. Já os “sexuais” retornam com certa assiduidade, pelo menos uma vez ao ano. No dia da saída para o aeroporto, do grupo com o qual trabalhei no carnaval 2005, fui informado a razão pela qual a maioria dos homens não terem comparecido à excursão ao Corcovado: “já conheciam o Rio muito bem visto ser aquela a quarta ou quinta vez que cada um deles vinha à cidade nos últimos três anos”.

“Etnoturistas” “Turistas Sexuais”

5 Dificilmente têm envolvimento O interesse sexual é o objetivo afetivo-sexual com os brasileiros. central da viagem, que algumas vezes resulta em envolvimento afetivo.

Devido ao pouco tempo livre disponível pelos turistas de roteiros “étnicos”, existe pouca possibilidade de envolvimento afetivo-sexual com os brasileiros. Ao passo que, no “sexual” este é o principal motivo da viagem, ainda que na maioria dos casos se restrinja à prostituição

“Etnoturistas” “Turistas Sexuais”

6 Ficam hospedados em hotéis 4 Alugam apartamentos por ou 5 estrelas, na grande maioria temporada, principalmente nas

69

das vezes. proximidades da discoteca “Help”.

Todos os grupos que observei durante meu trabalho de campo ficaram hospedados em hotéis de quatro ou cinco estrelas, que já faziam parte de seus pacotes. No entanto, estes estabelecimentos têm, freqüentemente, impedido a entrada de acompanhantes (leia-se garotas de programa) nos quartos, o que tem feito com que os turistas sexuais cada vez mais aluguem apartamentos por temporada, nas proximidades da “Help”. Assim, podem levar quem e quantos acompanhantes quiserem.

“Etnoturistas” “Turistas Sexuais”

7 Têm interesse pela herança Têm interesse pelo sexo com africana contida na sociedade mulheres brasileiras, brasileira. aparentemente não se importando com a “cor” das parceiras.

O discurso dos “etnoturistas”, durante todo o meu campo, foi norteado pelo interesse em conhecer as raízes africanas na cultura brasileira. Existe uma sobrevalorização do que é “negro” na reconhecida miscigenação da população do Brasil. Já no que diz respeito aos “turistas sexuais” não parece existir restrições ou imposições no que diz respeito à cor.

“Etnoturistas” “Turistas Sexuais”

8 Reconhecem a mistura mas Acham que a mistura racial é a criticam as “relações raciais” no característica central da Brasil, no que tange à não- sociedade brasileira, parecendo racialização. não se importar com esta questão.

70

Os turistas do turismo “étnico” criticam o “ideal de democracia racial” pelo fato de, segundo eles, não refletir uma democracia econômica. Consideram que o fato de não existir uma “sociedade afro-brasileira” impede que os “negros” se ajudem entre si para melhorar sua condição econômica. Já os turistas “sexuais” afirmam entender que a sociedade brasileira seja assim, miscigenada.

“Etnoturistas” “Turistas Sexuais”

9 O período médio de estadia é de Estadia média de uma a duas 7 a 10 dias, dentre os quais semanas. aproximadamente 4 dias dedicados ao Rio de Janeiro.

Como pude observar, os pacotes turísticos ditos “étnicos”, geralmente designam aproximadamente de 7 a 10 dias para os programas. Já os “turistas sexuais” permanecem um mínimo de uma semana, na maioria das vezes, podendo chegar a duas semanas.

“Etnoturistas” “Turistas Sexuais”

10 Visitam o Rio de Janeiro e Visitam especificamente o Rio de Salvador, na maioria dos Janeiro. programas.

A diferença quanto ao tempo de estadia fica significativa ao observarmos que os etnoturistas, na grande maioria das vezes, visitam as cidades de Salvador e Rio de Janeiro, o que resulta em uma média de 4 dias de estadia na Cidade Maravilhosa, ao passo que os turistas “sexuais” passam seu tempo integralmente no Rio, na grande maioria das vezes.

71

“Etnoturistas” “Turistas Sexuais”

11 Exigem serviços prestados por Não se importam com a brasileiros “afro -descendentes”. variedade étnica das prestadoras de serviços.

Uma das exiências mais comuns feitas pelos “etnoturistas” é que os prestadores de serviços utilizados sejam “afro-brasileiros”, o que, segundo eles, é uma forma de dar oportunidade econômica para essa parcela da população brasileira. Os turistas sexuais, no entanto, dizem não ter preferência por uma “cor” específica, afinal o Brasil é o país da miscigenação.

“Etnoturistas” “Turistas Sexuais”

12 Criticam o que chamam de Apreciam a “invisibilidade” com “daltonismo racial” no Brasil, que transitam pelo Rio de Janeiro. pondo em xeque a invisibilidade com que as “relações raciais” são tratadas.

Os “etnoturistas” reclamam do fato de que sua própria raça não é reconhecida no Brasil. Segundo eles, parece que sua “cor” não é reconhecida, e consideram isso como uma deficiência no Brasil de reconhecer a existência de “negros”, como se existisse um “daltonismo racial” que impedisse ver a sua “cor”. Os turistas sexuais parecem transitar livremente no mercado do afetivo- sexual do Rio de Janeiro. Ambos apontama inexistência de foco, por parte dos brasileiros, no que diz respeito à “raça”, uma certa invisibilidade. Porém,

72

interpretam de formas opostas: para os “etnoturistas” é negativo, porque parece negligenciar sua “negritude”; para os turistas “sexuais”, é positivo porque permite a mesma mobilidade que os outros turistas

“Etnoturistas” “Turistas Sexuais”

13 A faixa etária média está entre A faixa etária média está entre 30 40 e 65 anos. e 45 anos.

A faixa etária média do turista que vem para o Rio de Janeiro para conhecer a herança africana está entre 40 e 65 anos; já os turistas que vêm em busca de sexo, aparentam, geralmente, entre 30 e 45 anos.

Esses foram alguns itens que, apesar de não fazerem muita diferença isoladamente, quando combinados permitem ver com maior clareza os dois universos separadamente. Obviamente que estas não são classificações estáticas, e podem variar de acordo com casos específicos; no entanto, a incidência de características de um ou outro grupo nos ajuda a visualisar o propósito da viagem do turista. Em síntese, se um homem “negro” norte- americano estiver visitando o Rio de Janeiro com outros propósitos que não os do “turismo sexual”, sua viagem muito provavelmente estará mais próxima das características do “etnoturista”.

Minha intenção, neste sub -item, foi tentar estabelecer a diferença crucial existente entre dois grupos distintos de turistas “negros” que visitam o Rio de Janeiro: os do segmento do “turismo étnico” e os do segmento do “turismo sexual”, por acreditar que esta seja uma diferença crucial para podermos visualizar os “etnoturistas” aos quais esta dissertação se refere. No próximo sub- item explicarei, a partir de uma tabela, os grupos que fizeram parte do meu trabalho de campo, em que apontarei os detalhes relevantes da pesquisa e do trabalho de campo.

73

2.2 Grupos utilizados no trabalho de campo

O trabalho de campo foi desenvolvido entre março de 2003 e março de 2005, como demonstrado na tabela abaixo, com grupos originários das cinco agências de viagens nacionais e seus pares norte-americanos que tiveram seus websites analisados no capítulo anterior. É importante remarcar que apesar da quase inexistência de menções sobre o segmento do “turismo étnico”, tanto pelo Ministério do Turismo quanto pelas agências de turismo brasileiras, as agências de turismo norte-americanas de fato vendem este produto. Os turistas destes grupos que relaciono abaixo se percebiam, quase na sua totalidade, como “turistas étnicos”. Vejamos:

PERÍODO NOME AGÊNCIA USA/BRASIL H % M % TOTAL 01 19/03 a 22/03/03 Radio Station – WBLS 2003 Trendsetters/BGT 69 31,2 152 68,8 221

02 18/08 a 21/08/03 Boa Morte 2003 Consolidated/Walpax 03 15,0 17 85,0 20

03 12/09 a 15/09/03 The African Heritage Tour South Star/Havas 05 22.7 17 77,3 22

04 16/10 a 18/10/03 Afro-Heritage South Star/Havas 06 24,0 19 76,0 25

05 20/11 a 22/11/03 Zumbi 2003 Consolidated/Walpax 13 22,0 46 78,0 59

06 25/02 a 01/03/04 Heritage Tour 2004 Equator3 tours/Blumar 05 26,3 14 73,7 19

07 20/03 a 23/03/04 Radio Station – WBLS 2004 Trendsetters/BGT 15 27,8 39 72,2 54

08 08/07 a 12/07/04 Brasil is Paradise/D’zert Trendsetters/BGT 09 19,6 37 80,4 46 Club 09 17/08 a 20/08/04 Boa Morte 2004 Consolidated/Walpax 04 33,3 08 66,7 12

10 02/10 a 05/10/04 Soul Planet Brazil Nuts/BIT 02 10,6 17 89,4 19

11 29/10 a 01/11/04 Celebration to Life Brazil Nuts/BIT 04 06,6 57 93,4 61

12 05/11 a 09/11/04 Fairview Greenburgh Brazil Nuts/BIT 07 16,7 35 83,3 42

13 12/11 a 15/11/04 Zumbi (Dumas & White) ‘04 Consolidated/Walpax 06 28,6 15 71,4 21

14 24/11 a 26/11/04 Inspection/GRP KJLH South Star/Havas 01 50,0 01 50,0 02

15 04/02 a 09/02/05 Gerena Carnival Group Brazil Nuts/BIT 08 80,0 02 20,0 10

16 09/02 a 13/02/05 Heritage Tour 2005 Equator3/Blumar 08 36.4 14 63.6 22

74

17 16/03 a 20/03/05 Ministry in Global Consolidated/Walpax 02 20.0 08 80.0 10 Perspective 18 23/03 a 26/03/05 Radio Station – KJLH (L.A.) South Star/Havas 16 30.8 36 69.2 52

TOTAL 165 25.2 490 74.8 655

Fig. 06 – Tabela de Grupos utilizados no trabalho de campo

A primeira coluna diz respeito ao período do ano em que estiveram no Rio de Janeiro e a duração de seus pacotes. Podemos observar que 50% dos grupos permaneceram na cidade durante 4 dias e que esta média varia de 3 a 6 dias. Este é o tempo utilizado pelas agências para apresentar desenvolver os pacotes turísticos que foram propostos. Na segunda coluna, temos os nomes sob os quais estes grupos chegam à cidade e são identificados pelas agências. Não existe uma regra rígida que determine estes nomes, eles podem ser: o mesmo utilizado pelas agências nos seus pacotes padrão - como o “Celebration of life” das agências “Brazil Nuts” e “BIT” utilizado no grupo de número 11 na tabela por exemplo; homônimos das instituições que os organiza como as estações de rádio como a WBLS e a KJLH ou Associações particulares como o D’zert Club no grupo de número 08. Aliás, três dos grupos foram organizados por estações de rádio, na tabela os de número 01, 07 e 18, por isso levam seus nomes. A lógica é bem simples: uma estação de rádio promove um evento em um determinado destino, procura um agente de viagens norte-americano que organizará a viagem com um agente de viagens brasileiro. A rádio nada tem a ver com a organização e a logística do produto turístico, se concentram em agrupar seus ouvintes que viajarão juntos. Elas, no entanto, têm a opção de decidir o nome do Grupo. A WBLS de Nova Iorque por exemplo, promove uma viagem ao Brasil todos os anos no mês de março; seja por conta de eventos específicos como referentes à cultura negra no Brasil - como a festa de N. Sra. da Boa Morte na Bahia, o feriado de Zumbi dos Palmares no Rio de Janeiro e o Carnaval. “African Heritage” Exaltando a herança africana - é um nome bastante utilizado sob infinitas variações e muitas vezes é usado como sub-título das programações. Há outras opções possíveis

75

como nomes próprios – “Ministry in Global Perspective”, grupo de número 17, é o título de uma cadeira de pós-graduação. Por ora, gostaria de colocar em relevo que os nomes mais comuns dados aos grupos de turistas“negros” norte-americanos são aqueles que explicitam a herança africana no Brasil72, que resultam em infinitas variações como “African Heritage”, “Afro-Heritage” e “Heritage”. Outros dois nomes frequentemente encontrados são “Zumbi” devido ao feriado de Zumbi dos Palmares no Rio de Janeiro (Dia Nacional da Consciência Negra) e “Boa Morte” devido à festa de Nossa Senhora da Boa Morte na Bahia. Para além destes, estão aqueles que celebram o Brasil como o “Brazil is Paradise” e o “Celebration of Life”. Uma outra forma recorrente de nomear os grupos é a partir da instituição que os organiza, como por exemplo os programas das “Radio Stations” . O mais importante é atentarmos para o fato de que estes nomes são dados aos programas pelas próprias agências de viagens norte-americanas. A terceira coluna é referente às agências de viagens organizadoras daqueles grupos especificamente. Apresento, lado a lado, a agência brasileira e a norte-americana. Nesta pesquisa trabalhei, como dito, basicamente com grupos provenientes de cinco agências no Rio de Janeiro: a Walpax, a BGT, a BIT, a Havas e a Blumar. Estas representam respectivamente, as agências norte-americanas: Consolidated, Trendsetters, Brazil Nuts, South Star Tours e Equator 3.É importante mencionar que estes não foram os únicos grupos de “negros” americanos que estas agências trouxeram ao Rio de Janeiro, são somente os que ficaram sob minha responsabilidade. Em nenhuma das agências mencionadas existe uma contagem do número total de turistas “negros” atendidos por elas neste período. Da quarta à oitava coluna encontraremos dados numéricos sobre estes grupos dispostos da seguinte maneira: a quarta e a quinta colunas são, respectivamente, o número de homens e o percentual ao qual correspondem na composição de cada grupo; a sexta e a sétima colunas são o correspondente ao número de mulheres e o percentual que representam; e a nona coluna o número

72 Ver nomes dos grupos sob os números: 03, 04, 05, 07 e 17.

76

total correspondente de cada um dos grupos. As mulheres se provaram predominantes nestes grupos, nos quais podemos constatar que dos 655 turistas, 490 eram do sexo feminino, o equivalente a 74,8%. Este é um dado revelador, no sentido de indicar a probabilidade de existir, na demanda racializada dos “grupos étnicos”, uma orientação norteada pelo gênero feminino.

Fig. 07 – Composição majoritariamente feminina

No entanto, dentre os 18 grupos que foram acompanhados para este trabalho, todos tiveram as mesmas características, com exceção de um deles, que se mostrou diferente na sua composição, visto ter sido majoritariamente formado por homens. O “Gerena Carnival Group” de 2005, de número quinze na tabela, possuía 80% de seus participantes do sexo masculino, fator inversamente proporcional a todos os outros grupos do campo. Também foi o único que não possuía uma programação contínua; na realidade, teve somente

77

uma excursão, e foi onde os indícios de “turismo sexual” foram delatados por uma das passageiras do sexo feminino. Para melhor entendermos esta diferença, mais adiante vou me dedicar a destrinçar um dos programas referentes aos grupos de turismo “étnico”, qual seja, o último grupo da tabela, por considerar que este seria um exemplo do padrão deste tipo de programa. Esta é uma estratégia que nos possibilitará visualizar melhor quais as representações articuladas pelos turistas que vêm ao Rio de Janeiro buscar suas referencias “étnicas” na herança africana contida na cultura brasileira. Ainda que o objetivo desta dissertação, no seu início, tivesse sido estritamente focalizar o universo dos grupos de “turismo étnico”, o trabalho de campo apontou a importância de delimitar também o universo do “turismo sexual”, pelo fato de parecer que este segundo estivesse sendo confundido com o primeiro. O intuito deste capítulo foi tentar esboçar os limites existentes entre estes dois universos distintos, a fim de propiciar uma melhor demarcação daquele ao qual este trabalho se refere em primeiro plano: o “turismo étnico”.

78

3 - O TURISMO “ÉTNICO” NO RIO DE JANEIRO

Fig. 08 – Dentro de um ônibus de turismo

Parece estranho para um brasileiro pensar a dinâmica de um mundo racialmente polarizado, quando esta é a percepção de mundo que o “etnoturista” traz consigo. Este é, na realidade, o desafio que enfrenta o trade turístico carioca no que diz respeito à confecção de roteiros ditos “afro-brasileiros” para os “negros” norte-americanos. Nunca tinha me passado pela cabeça um ônibus somente com turistas “negros”, tal qual a foto apresentada acima! Tampouco passa pela cabeça dos brasileiros em geral que tal configuração seja possível, pelo menos não no Brasil. Isto resulta em uma tensão: de um lado está o mercado “afro-americano” com sua visão racial bipolar do mundo e interessado na herança africana (significa dizer “negra”) do Brasil; e do outro lado, o trade

79

turístico carioca que, balizado pelo “ideal de democracia racial” no qual acreditam os brasileiros, enfrenta o desafio de acomodar as demandas do mercado “afro-americano”, entendidas algumas vezes como racistas e indesejáveis, e defendendo princípios culturais nacionais. Apesar do estranhamento dos brasileiros ao modo de relações raciais bipolar norte-americano, não menos estranho é para um “etnoturista” norte-americano entender o ideal de democracia racial brasileiro. Segundo eles, mais difícil ainda é ver um país como o Brasil, onde é suposta a existência de uma igualdade racial, e que, no entanto, revela enormes desigualdades econômicas que podem ser explicadas através de uma leitura racializada. Neste capítulo, procuro dimensionar esta tensão proposta, utilizando dois exemplos: de um lado uma possível percepção desta tensão pelo trade carioca e, do outro, a dos “etnoturistas” norte-americanos.

80

3.1 A configuração da tensão

Todos os grupos que fizeram parte do meu campo, deixaram claro o descrédito e a desconfiança com os quais a maioria dos “etnoturistas” norte- americanos vêem a idéia de “democracia racial brasileira”. Como diria o antropólogo Peter Fry: “As representações não são menos reais que as relações sociais”73. Ao partirmos deste pressuposto, o ideal de “democracia racial” brasileiro passa a ser tão real quanto a visão de mundo bipolar norte-americana, no que se refere às “relações raciais”. É intrigante e instigante ao mesmo tempo, portanto, pensar que a força que atrai estes turistas ao Brasil (a herança africana na cultura nacional), por eles entendida como “cultura afro-brasileira”, aqui seja entendida exclusivamente enquanto “cultura brasileira”. Talvez, seja entendida como “afro-descendente” ou “afro-brasileira” por uma minoria de brasileiros, mas isto definitivamente não vem a ser regra nacional. Um exemplo disso será o fato de uma agente viagens, o qual mencionarei no próximo sub-item, ter deduzido que eu, por ser “negro”, teria mais conhecimento da “cultura afro-brasileira” e que isto me habilitaria a trabalhar com “etnoturistas”. Conteúdo que ela própria, apesar de brasileira, parecia desconhecer. Um outro ponto crucial que está em jogo, é o fato de “localizar” o racismo na sociedade brasileira, visto que em uma sociedade bipolarizada, o racismo só pode estar em dois lugares, ao passo que em uma “democracia racial” o racismo pode estar em qualquer lugar. Mais que isso, numa sociedade que condena o racismo como o Brasil, ele pode estar camuflado. O que significa dizer que pode estar em algum lugar qualquer... e não localizável. Dito isto, uma das etapas mais difíceis das minhas excursões com os “afro- americanos” é explicar a não existência de uma sociedade exclusivamente “afro- brasileira”. No grupo da estação de rádio KJLH do meu trabalho de campo, sobre o qual me debruçarei no sub-item 3.3, ficou claro que a pergunta-chave para eles era:

73 Ver Fry, P. (1996:126).

81

“Por que os ‘negros’ brasileiros parecem estar tão defensivos à idéia de existência de uma cultura afro-brasileira?” Grupo KJLH

Para que o leitor possa acompanhar meu raciocínio, no que diz respeito à relevância da demarcação racial para os “negros” norte-americanos, mostro, no “Anexo 1”, cópias de algumas fichas preenchidas para registro nos hotéis, nas quais, ao declararem suas nacionalidades, os hóspedes escreveram: “African- American”, “Black” e “Black USA”.74 E para complementar a compreensão deste “Black USA”, coloco, no Anexo 2, o mapa dos EUA, retirado do website do governo norte-americano, sobre o censo de 2000, em que é possível visualizar a demografia da América “negra”. Ou seja, estes são turistas para os quais existe um universo “afro-americano”. E é a partir deste referencial de compreensão de mundo que esperam encontrar no Brasil não somente uma população “afro- brasileira”, mas um Brasil “negro”. Afinal, não seria este o país que, fora da África, possuiria a maior população “afro -descendente” do planeta? Na realidade, não somente é esperado encontrar um Brasil “negro”, mas, sobretudo, um país consciente de sua participação em uma diáspora africana da qual os EUA também fariam parte. A idéia da existência de um “Black USA”, poder ser bem representada na fala de uma das turistas:

“[...] você já nasce aprendendo a ficar com o seu próprio povo! Você deve ser o que você é... ser ’negro‘. Independentemente da sua origem (background), mesmo que seja misturada (mixed), para eles (os ’brancos‘) você é ’negro‘. Portanto, eu escolhi ser ‘negra’! Eu também tenho origem miscigenada! Mas eu escolhi ser ’negra’!” Turista do Grupo KJLH

74 FNRH – Ficha Nacional de Registro de Hóspedes, preenchida quando da entrada do hóspede no hotel. Para exemplificar, ver cópias das fichas preenchidas por alguns turistas pertencentes aos grupos 16 e 18 (da tabela de trabalho de campo) no anexo 1.

82

Ao refletir sobre a declaração relatada acima, temos um exemplo da tensão existente nas “relações raciais” nos EUA, a qual produziu uma “cultura afro- americana” em que os “negros” daquele país teriam como referência identitária sua afro-descendência e na qual, segundo Fry, seria o ócus classicus do modo bipolar75. Essa construção enquanto grupo identitário, no que diz respeito à projeção no mercado econômico, resultou no aparecimento de uma série de produtos e serviços criados especificamente para aquela parcela da população. Como não poderia ser diferente, o turismo também criou produtos para atender a este tipo de demanda. Os chamados roteiros étnicos seriam produtos que teriam seus interesses centrados nas raízes e referências africanas, tanto nas Américas quanto na própria África. O Brasil entra no mapa de destinos étnicos afro-descendentes principalmente através de duas cidades: Salvador e Rio de Janeiro. O Rio de Janeiro, curiosamente, a princípio não seria pensado como um destino do turismo étnico, dito “afro-brasileiro”. Salvador seria a cidade possuidora do estereótipo em que uma “verdadeira cultura afro-brasileira”, latente e explícita, seria encontrada 76. Obviamente que o fato da visibilidade em Salvador, das tradições compreendidas pelos “negros” norte-americanos como “afro-brasileiras”, fazem com que sua cultura local seja mais facilmente transformada em produto turístico. No entanto, o fato de ser um portão de entrada para o turismo nacional, combinado com a fama enquanto destino turístico tradicional, faz com que o Rio seja combinado com Salvador na maior parte dos pacotes que trazem “negros” norte-americanos ao Brasil. Afinal, segundo Celso Castro, o “Zé Carioca” teria sido um dos personagens-símbolo “do impacto que o investimento político e cultural americano trouxe para a imagem do Brasil no exterior” durante a Segunda Guerra Mundial77. Ou seja, como roteiro étnico ou não, a cidade do Rio de Janeiro e os cariocas fazem

75 Ver Fry, P. (1996:133). 76 Pinho, P. (2002) afirma que: “O desejo de encontrar a ‘cultura negra original’ tem desviado os etno-turistas do trajeto predominante no Brasil, que normalmente concentra os turistas internacionais nos cartões postais do Rio de Janeiro”. Já vimos que em lugar de serem “desviados” para a Bahia, esses turistas combinam em seus roteiros as duas cidades. 77 Ver Castro, C. (2001:122).