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39º Encontro Anual da Anpocs 26 a 30 de outubro de 2015, Caxambu, MG

GT 03 – As classes sociais no Brasil contemporâneo

Discursos sobre a “nova classe média” na mídia: classe, gênero e raça em intersecção

Autoras: Heloisa Buarque de Almeida (professora de Antropologia/ USP) Renata Mourão Macedo (doutoranda em Antropologia/ USP)

Discursos sobre a “nova classe média” na mídia: classe, gênero e raça em intersecção

Autoras: Heloisa Buarque de Almeida (professora de Antropologia/ USP) Renata Mourão Macedo (doutoranda em Antropologia/ USP)

Resumo Este paper objetiva discutir o uso da categoria “classe C” ou “nova classe média” pela indústria cultural brasileira, inserindo-a no debate mais amplo sobre a noção de “classe média” no meio publicitário e de marketing. Por meio de um panorama (1970 - 2000) sobre a constituição do mercado consumidor e da audiência televisiva nacional, pretendemos compreender o processo recente de ampliação de consumo de bens industrializados pela chamada “classe C”. Veremos como as empregadas domésticas e suas representações midiáticas foram emblemáticas dessas transformações: de mero “item de posse”, definidor dos estratos socioeconômicos pelo Critério Brasil, o grupo profissional foi alçado a protagonista midiático da “nova classe média”, tanto em matérias de jornais, como na teledramaturgia, em especial, na Cheias de Charme (Globo, 2012, 19h30). Nesse contexto, discutiremos como a percepção de que houve a incorporação ao mercado consumidor de uma camada social antes considerada “mercado marginal” pela indústria (embora fosse o público central da audiência da televisão aberta), articula de modos inusitados também outros aspectos de classificação social, como gênero e raça.

Palavras-chave: “nova classe média”, gênero, intersecções, consumo, empregadas domésticas

Introdução Todo dia acordo cedo/ moro longe do emprego/ quando chego do serviço, quero meu sofá/ Tá sempre cheia a condução/ eu passo pano, esfrego o chão/ a outra vê defeito até onde não há/ [...]/ Levo vida de empreguete, eu pego as sete/ Fim de semana é salto alto e ver no que vai dar/ Um dia compro apartamento, viro socialite/ Toda boa vou com meu ficante viajar. “Vida de Empreguete”, música da telenovela Cheias de Charme

Exibida em 2012 pela Rede Globo, em contexto socioeconômico favorável que levou a uma ativação do mercado interno e ampliação do mercado consumidor brasileiro, a telenovela Cheias de Charme (Globo, 2012, 19h30) alçava empregadas domésticas ao papel de protagonistas. Diferente de outras imagens recorrentes na teledramaturgia brasileira, essas trabalhadoras foram então representadas como consumidoras ativas, permeada por grandes expectativas de ascensão social, conforme a música tema da novela já indica. Para compreender essa produção cultural, entre outros discursos midiáticos do período entre 2010 e 2013, deve-se levar em conta o fenômeno fortemente noticiado pela mídia e pelo mercado da “expansão da nova classe média”, ou “nova classe C”. Este paper1 objetiva discutir o uso dessa categoria “classe C” ou “nova classe média” pela indústria cultural brasileira, acrescentando questões de como essa definição é atravessada por gênero e processos de racialização. Por meio de um panorama (1970 - 2000) sobre a constituição do mercado consumidor e da audiência televisiva nacional, pretendemos compreender o processo recente de ampliação de consumo de bens industrializados pela chamada “classe C”. Em especial, veremos como as empregadas domésticas e suas representações midiáticas foram emblemáticas dessas transformações: de mero “item de posse”, definidor dos estratos socioeconômicos pelo Critério Brasil, o grupo profissional foi alçado a protagonista midiático da “nova classe média”, tanto em matérias de jornais, como na teledramaturgia, em especial, na telenovela Cheias de Charme (Globo, 2012, 19h30). Nesse contexto, discutiremos como a percepção de que houve a incorporação ao mercado consumidor de uma camada social antes considerada “mercado marginal” pela indústria (embora fosse o público central da audiência da televisão aberta), articula

1 Este trabalho retoma as conclusões de uma pesquisa de pós-doutoramento de Heloisa Buarque de Almeida e do mestrado de Renata Mourão Macedo, ambos feitos com apoio da Fapesp. de modos inusitados outros aspectos de classificação social, especificamente gênero e raça.

Classificação social no mercado e na mídia (1970-2000) Nesta sessão, a partir de análise da revista Mercado Global2 entre os anos de 1970 e 2000 e de entrevistas com profissionais da televisão e do mercado, buscamos compreender o modo como a indústria cultural, em especial a televisão aberta, classificou seus espectadores – encarados enquanto consumidores – no período. A televisão comercial aberta (Williams, 1992) dá lucro na medida em que “vende” os seus espectadores sob a forma de números: índices e perfis de audiência. Ou seja, os clientes da TV são os anunciantes, que compram horários e espaços para os anúncios, a partir de critérios como a quantidade de espectadores (medidos pelos índices do Ibope3) e sua “qualidade”, ou seja, o potencial de consumo4 destes espectadores (medidos em termos de classes socioeconômicas). Nesta indústria, que trabalha na interface de bens culturais e grandes anunciantes, os espectadores são encarados como consumidores (e não como público), e são medidos em termos de categorias de classe, sexo e faixa etária. É preciso lembrar que, no período analisado, temos um país com alta audiência de TV; a forma de medir essa audiência é também uma forma de medir uma grande parcela de seus cidadãos. A indústria cultural e o mercado anunciante imaginaram o país enquanto um grande mercado, buscando construir e promover um amplo mercado consumidor (e não da audiência apenas). No período de expansão da TV em sua associação com o consumo, nos anos 1970/80 especificamente, buscou-se formar um “mercado-nação” (Almeida, 2015), que sempre foi menor do que a nação, apenas uma parte do Brasil. Nesse contexto, tratar o espectador como consumidor definiu as categorias de pesquisa e orientou metodologicamente uma série de atitudes do meio profissional. Porém, há ao longo desses anos (desde os anos 1970) uma disjunção entre

2 A revista Mercado Global era um órgão de divulgação da Rede Globo, distribuído gratuitamente para agências de publicidade e setores de marketing de empresas anunciantes. É evidente que este trabalho decorre de uma bibliografia que explora como a televisão foi um fator de formação e promoção do mercado consumidor para a indústria nacional, o que agregou ainda mais valor a empresas como a rede Globo diante do contexto desenvolvimentista do governo militar. Sobre essa discussão, há certa bibliografia já consolidada: Ortiz (1988), Miceli (2004), Kehl (1986), Bolaño (1985), Straubhaar (1989, 1996), Almeida (2003, 2004, 2006), Hamburger (2005). 3 O IBOPE, Instituto Brasileiro de Opinião Pública, foi fundado em 1942 e é o principal instituto de medição de audiência de televisão, atuante em outras áreas da pesquisa de mercado e da pesquisa de opinião pública. 4 Os termos em itálico são termos êmicos, dos diferentes campos pesquisados. Neste caso, trata-se de um termo do campo profissional de mídia. o tamanho geral da audiência e a proporção vista como consumidora (Hamburger, 2005; Almeida, 2003). Ao percorrer a revista Mercado Global dos anos 1970, 80 e 90, nota-se uma audiência geral da TV muito maior do que a parcela de seu público que seria considerada realmente consumidora, as chamadas classes A, B e em determinados períodos também a classe C. O critério de classe usado nessa indústria nada tem a ver com a noção de classes sociais como constituída no pensamento sociológico, e foca na aptidão para o consumo. Estar apto para o consumo implica em ter poder aquisitivo. Mas implica também em ter condições “culturais e de estilo de vida que predisponham ao consumo” (Revista Mercado Global, 1984, p. 45 itálicos nossos). Segundo os profissionais do meio, a definição de classes A, B, C, D e E advém do fato de que é preciso discriminar e fazer cortes numa distribuição de renda que é contínua. Afirmam eles que, diversamente de outros países, o critério usado foi estabelecer aleatoriamente cortes nos grupos de domicílios pela sua capacidade de consumir, ou seja, seu potencial de consumo. Potencial de consumo é, portanto, um conceito nativo que define cortes em termos das chamadas classes socioeconômicas. A unidade de consumo é o domicílio, como medido pelo IBOPE e mesmo pelo IBGE, e o consumo é considerado uma atividade feminina, o que explica a ênfase das pesquisas de mercado na figura de “dona de casa”, categoria da audiência e do mercado especificamente pesquisada nos relatórios de televisão do IBOPE e em muitas pesquisas de mercado.5 Assim, é preciso destacar que uma das estratégias comerciais bem sucedidas da Rede Globo, além de atingir camadas sociais com potencial de consumo, era atingir mais significativamente as mulheres e “donas de casa” de classe média, considerada a grande consumidora de uma série de produtos. As mulheres eram um público considerado fiel às narrativas seriadas, como telenovela, e ainda por cima eram o público-alvo majoritário de muitas empresas anunciantes.6 O domicílio era considerado como uma unidade de consumo que exige a compra de diversos produtos, e administrado imaginariamente sempre por uma “dona de casa” – categoria de grande relevância na pesquisa do Ibope e de mercado.

5 Os arquivos do Ibope de 1942 a 1996 forma doados ao AEL – Unicamp, e estão disponíveis para consulta. Algumas destas pesquisas e dados foram digitalizados pelo CESOP-UNICAMP. 6 Este processo de feminização da telenovela e de atração de anunciantes por conta de atingir o público feminino foi mais discutido em Almeida (2002), mas confira também Kehl (1986) e Bolaño (1985). Já foi explorado na bibliografia como o meio publicitário e de marketing se desenvolve enfatizando a figura feminina da “dona de casa” como a pessoa da família que faz e decide as compras para a família toda.7 O que é particular no Brasil é que essa feminização do consumo permanece como uma característica dominante no meio de marketing e publicidade até hoje, como veremos. Quanto à noção de classes nesse universo, nos anos 1970 havia uma preocupação do meio de marketing, em processo de consolidação no país, de medir e usar análises estatísticas para maior eficiência da publicidade. Para entender a estratificação social num país em que não se podia medir a capacidade de consumo pelo salário oficialmente declarado, era necessário criar uma medida de pelo menos três grandes grupos (AB, C, DE) de tamanhos semelhantes, mantendo uma ideia comum nos anos 1950 e 60 de camadas ricas, médias e pobres. Nos anos 1970, o critério do mercado dividia-se em quatro camadas e, a partir dos anos 1980, cinco – os atuais, A, B, C, D e E , que são comumente reagrupados em AB, C e DE. Contudo, as formas de classificação, como unificá-las no mercado e como atualizá-las são sempre tema de grande polêmica no meio. Em 1970, a diretoria da Associação Brasileira de Anunciantes (ABA) reunira vários institutos para que fosse implementado um critério comum, “baseado em pontos atribuídos aos respondentes pela posse de certos itens de conforto doméstico e pelo grau de escolaridade do chefe da casa” (p. 30, itálicos nossos). Nesse momento, se define uma forma de “medir” a classe a partir da posse domiciliar de bens de consumo (televisor preto e branco e colorido, geladeira, enceradeira, batedeira elétrica, aspirador de pó, máquina de lavar, automóvel), presença de empregada doméstica e escolaridade do chefe de família. Em 1975, discutia-se a revisão do critério instituído em 1970-71 pela Associação Brasileira de Anunciantes (ABA). 8 O critério instituído em 1971 teria problemas tais como sua inadequação para todos os tipos de cidade, deixando 70 a 80% da população nas camadas C e D, e necessitava atualizações periódicas. Naquele momento, o critério já teria envelhecido e os bens de conforto deveriam ser revistos. Como o critério é definido por posse de bens de consumo e o mercado de consumo é móvel, pois o acesso a bens de consumo vinha crescendo no país desde

7 Cf. Campbell (2001), Ewen (1976), Wernick (1991), e no Brasil, Almeida (2002, 2003, 2006, 2007, 2015) e Hamburger (2005). 8 Cf. revista Mercado Global (1975). então, tal critério demandava revisões periódicas. As atualizações históricas utilizavam basicamente a mesma lógica de somar algum indício de condição de moradia (como número de banheiros), nível cultural (nível de instrução do chefe do domicílio) e de capacidade de consumo da família (através de posse de determinados bens de consumo e da presença de empregada doméstica mensalista). De tempos em tempos, o critério precisava ser revisto – sendo que era o próprio desenvolvimento do mercado de consumo nacional que exigia estas atualizações. Para se ter uma ideia, o Critério Brasil, tabela de definição de classes desta indústria, revisto em 2010, foi definido pela Associação Brasileira de Empresas de Pesquisa como algo que tinha a “função de estimar o poder de compra das pessoas e famílias urbanas, abandonando a pretensão de classificar a população em termos de “classes sociais”9. Tal critério dá pontos para os seguintes itens: televisão em cores, rádio, banheiros no domicílio, automóvel, empregada mensalista, máquina de lavar roupas, videocassete ou DVD, geladeira e freezer, e pontua ainda com destaque o “grau de instrução do chefe da família”. Conforme vemos nesse percurso, o fato de se encarar a população pelo viés do mercado e do consumo limitou e excluiu do campo de visão desse meio profissional amplos setores da população que pareciam não fazer parte do mercado estrito senso. Quando se olha esta questão pelo processo histórico subjacente, nota-se que a postura de tentar expandir o mercado consumidor, atingindo cada vez mais as camadas de menor poder aquisitivo – discurso relativamente frequente nos anos 1970 -, sofre uma mudança sensível nos anos 1980. Diante da crise e recessão econômicas representadas pelo início dessa nova década, os artigos na Mercado Global assinados por pesquisadores (aqueles que antes enfatizavam a possibilidade de incluir o mercado de menor poder aquisitivo) ganham um outro tom, assumindo uma noção de que há dois brasis distintos. Conforme relatado na revista, em 1983: Há dois mercados: o ativo e o marginal. Em comparação com a população total, a porcentagem de consumidores ativos é extremamente limitada. Reúne entre 25 e 28% da população brasileira que você pode chamar de classe média. É uma faixa da população que tem poder aquisitivo. O resto tem aspirações de consumo mas quase nenhum poder de consumir. Configura um mercado marginal.10

9 Conferir www.abep.org, acesso em março de 2015. 10 Mercado Global, n. 57, 1983, pp. 19 e 21, entrevista com Vera Aldrighi, vice-presidente e diretora de estratégia e planejamento da McCann-Erikson. Esse e outros discursos permitem uma reflexão sobre quem é classificado como classe média e sua importância no mercado consumidor. Nos anos 1990, uma onda de estabilidade econômica como a do Plano Real impulsionou novamente a ampliação do mercado e a faixa da população considerada consumidora e de classe média, que posteriormente sofre uma nova recessão. A ampliação do mercado consumidor acontece novamente em meados da primeira década de 2000 e mais visivelmente na imprensa a partir de 2008. Desse ponto de vista, a faixa populacional vista como “classe média” é aquela que é de fato considerada consumidora e, portanto, alvo da maior parte das campanhas publicitárias veiculadas pela TV aberta no período. Nos anos 1970 e 80, e mesmo nos anos 90, a classe média era classificada como parte das “classes AB”, e imaginada sempre como branca. Apenas uma pequena porção da classe A era vista como “classe alta”. Os publicitários e anunciantes se irritavam em pesquisas qualitativas quando, imaginando atingir um público “classes AB”, assistissem a alguma pesquisa de mercado em que os entrevistados ou recrutados para focus groups fossem negros, morenos demais, ou mesmo com aparência de “pobre”. O mercado publicitário não considerava grande parte da população como consumidora, e imaginava certamente essa classe média consumidora como exclusivamente branca, embora a categoria raça nunca tenha sido discutida nessas pesquisas de mercado, e nem se recrutasse pessoas oficialmente por critérios raciais. É preciso destacar ainda que o universo contemplado pela pesquisa de mercado é menor do que a população do país, pois se concentra nos maiores mercados de consumo, ou seja, as principais regiões metropolitanas. Note-se assim que além desses principais mercados serem apenas uma parte do país, por outro lado o foco nos setores médios, ou nas classes AB (e C às vezes) recortava ainda mais a porção relevante de consumidores, imaginando a maior parte da população da nação e certamente toda população não branca como “mercado marginal”, ou seja, um público e pouco potencial de consumo, restrito a compras de itens de necessidades básicas, como alimentícios. Mais recentemente, a partir da primeira década dos anos 2000, com políticas redistributivas11 no Governo Lula, a faixa considerada consumidora se amplia para a “nova classe C”, ou seja, uma camada que teria ascendido de estratos definidos como “classes DE”. Essa “nova classe C” torna-se ávida consumidora de bens e serviços,

11 Sobre políticas redistributivas, cf. FRASER (1996). transformando rapidamente o imaginário sobre classes e sobre mercado consumidor, não apenas na mídia especializada, como a já então extinta revista Mercado Global, mas também na imprensa geral. Em todo este período, até os dias de hoje, o consumo continua sendo feminilizado, e a unidade imaginada do consumo são “domicílios”. Se pensarmos de que forma as classes também são racializadas (McClintock, 2010), nota-se uma aversão até os anos 2000 a encarar como consumidor o público considerado negro ou “de cor” (cf. Almeida, 2003). Assim, queremos enfatizar que entre os anos 1970 e até 2000, o público considerado consumidor enfatizava as camadas AB, imaginadas como brancas e correspondente à classe média, cuja parcela feminina era vista como a mais consumidora.

Ascensão da classe C e a empregada doméstica O que se vê acontecer com maior visibilidade a partir de 2008 é uma nova onda de expansão do consumo, e uma ampliação da quantidade de domicílios que passam a se encaixar, pelos critérios de consumo, na chamada classe C12. Como já mencionamos, o critério socioeconômico do mercado, que permeia essa definição de classes, busca classificar unidades (domicílios) em termos de maior ou menor posse de determinados bens. Entre os itens que definem a condição de moradia (número de banheiros), posse de bens de consumo (TV, automóvel, etc.), um dos itens discriminatórios é ter (sic) uma empregada doméstica mensalista (ou seja, uma doméstica que trabalhe 5 dias por semana). O elemento cultural é medido apenas pela escolaridade do chefe do domicílio, item em que a “nova classe C” teria pouca pontuação, pois a maioria de tais domicílios alçados recentemente à classe média é chefiado por pessoas (homens e mulheres) de pouca escolaridade (ou grau de instrução, segundo o Critério Brasil). Muitos dos quais, como gostam de tecer os exemplos empíricos das matérias dos jornais impressos, são domicílios chefiados por mulheres que são domésticas, ou outras profissões típicas de pouca escolaridade, como manicures. Um dos exemplos da classe C ascendente das matérias de imprensa escrita são exatamente as trabalhadoras domésticas (Macedo, 2013)13. Elas passam de “mercado

12 Na esteira desse crescimento de consumo, surgiram institutos como o Data Popular, especializados em pesquisar estes grupos mais populares – preocupação que não encontramos na documentação até o final dos anos 1990. 13 No período analisado, diversas reportagens inclusive relacionaram a “classe C” com uma possível escassez de empregadas domésticas. Na revista Veja São Paulo, em reportagem de maio de 2011, por marginal” e de um item cuja “posse” define a hierarquia socioeconômica, para se constituir nos últimos anos como consumidoras visadas pelo mercado. Ou seja, o lugar dessa empregada não seria mais apenas o de ser a “posse” (sic) de uma família de classe média, mas ser ela própria redefinida como a “dona de casa” ou chefe de domicílio da “nova classe média”. Ou seja, de um item de “conforto”, ela se torna sujeito do consumo, o que ficou explicitado, por exemplo no caso da novela Cheias de Charme, conforme veremos a seguir. É então evidente que os anunciantes e empresas passam a ter que considerar que mesmo pessoas não brancas e inclusive moradoras de favelas passaram a ser parte deste mercado consumidor ativo. A noção de “classe média” se expandiu neste contexto do meio de marketing. No que se refere à Rede Globo, nota-se como a partir dos anos 2000 houve um nítido interesse em ampliar sua penetração nas “classes CD”, processo possivelmente incentivado também pela migração das “classes A e B” para a televisão fechada e para outras mídias14. Quando analisamos algumas reportagens veiculadas entre 2010 e 2013 sobre essa movimentação, é visível como tal debate foi ganhando espaço na imprensa, que noticiou com frequência a guinada da Globo em busca da audiência da “nova classe C” ou “nova classe média”15. Compreender essa reorientação requer também discutir os sentidos associados à classificação “nova classe C”. Segundo alguns especialistas, em 2009 este segmento corresponderia à 50,5% da população brasileira e representaria mais de 46% de todo o “poder de compra” dos brasileiros, em oposição às classes AB (que teriam 44% do poder de compra) e das classes DE (com cerca de 10%) (Neri, 2010, p. 86). Apesar do consenso do mercado e da mídia a respeito do incremento da renda e do poder de consumo para parte da população nesse período, a análise desse processo envolveu disputas teóricas e políticas sobre a ascensão ou não a uma “nova classe

exemplo, a reportagem intitulada “Domésticas passam a apitar as regras do jogo” adotou um tom nitidamente classista ao publicar, nostalgicamente, o subtítulo: “Foi-se o tempo em que elas tinham de disputar vagas de trabalho. Hoje, são as patroas que encaram filas de espera” (Nogueira, 2011). Entre as explicações oferecidas pela publicação, novamente foi atribuído ao processo de maior mobilidade social no Brasil: “A classe C, que antes era empregada, agora quer contratar”, explicavam no texto. 14 Segundo dados disponibilizados no site da Associação Brasileira de Televisão por Assinatura (ABTA, c2013), em 2012 cerca de 90% da “classe A” possuía televisão paga, versus 63% na “classe B”, 33% na “classe C” e 10% nas “classes DE”. 15 Destacam-se, por exemplo, as matérias publicadas no jornal Folha de S. Paulo: “Todos querem tirar a nova classe média para dançar” (Marinheiro, 2012); “Atrás da classe C, TV fatura 12% a mais no semestre” (Jimenez, 2012); “Globo muda telejornal para tentar salvar ibope e atrair classe C” (Feltrin, 2011), entre outras. média”, envolvendo o governo federal16, economistas e cientistas sociais. Defendendo uma concepção sociológica de classe social – em oposição ao discurso economicista do mercado – Jessé de Souza (2010, p. 324) defendeu que a classificação por renda e consumo consistia em uma maneira de desmobilizar o debate político e “eufemizar” a dominação das classes altas. Para Souza (2010, p. 327), essa população em ascensão constituiria na realidade uma “nova classe trabalhadora”, já que contaria ainda com “relativamente pequena incorporação dos capitais impessoais mais importantes da sociedade moderna, capital econômico e capital cultural – o que explica seu não pertencimento a uma classe média verdadeira”. Também Celi Scalon e André Salata problematizaram essa noção de “nova classe média” ao contrapô-la com a perspectiva sociológica de classes sociais. Baseando-se em classificações sócio ocupacionais, os autores questionaram a alocação forçada de ocupações manuais (como o emprego doméstico) entre as classes médias. Isso, entretanto, não significa que não houve mudanças nos padrões de renda e consumo. Segundo os autores, ao invés de uma “nova classe média”, poder-se-ia ponderar “sobre uma parcela da classe trabalhadora que, em relação a certas características, quase exclusivamente os rendimentos, estaria se aproximando dos setores mais baixos das classes médias” (Scalon e Salata, 2012, p.404). 17 De todo modo, apesar das críticas sociologicamente pertinentes em relação à noção de “nova classe média”, o fenômeno teve grande repercussão na Rede Globo. Em entrevista concedida ao jornalista Mauricio Stycer em 2011, o então diretor-geral da emissora, Octavio Florisbal, explicitou alguns pontos do projeto Globo a esse respeito: “estes 80% das classes C, D e E têm uma vida própria, com características próprias. Nós precisamos atendê-los” (Stycer, 2011). Mantendo a tradição da emissora de não revelar seus métodos de pesquisa, Florisbal demonstrou possuir um conhecimento renovado desses segmentos, identificando dois processos típicos de ascensão social então em curso na sociedade brasileira: os que ascendem e mudam seus hábitos de consumo, espelhando-se nos padrões dos segmentos mais altos, e os que ascendem e mantêm os antigos padrões de vida, mantendo a moradia em áreas de

16 O Governo federal, especialmente por meio da Secretária de Assuntos Estratégicos (SAE), também chegou a lançar no período (2013) estudos sobre o tema, intitulados “Vozes da (Nova) Classe Média”. Conferir: http://www.sae.gov.br/documentos/publicacoes/vozes-da-nova-classe-media-%E2%80%93- 3%C2%BA-caderno/ 17 Também Pochmann (2012, 2014) questiona a categoria classe média para esta camada trabalhadora que tem mais acesso ao consumo, com foco na estrutura social e condições de trabalho. periferia ou favelas. Segundo ele, ambos os movimentos estariam mal representados até então pela emissora. Tornava-se efetivamente necessário levar em conta essa parcela da população na feitura da programação: Isso também muda os hábitos de consumo de mídia. No passado, você não tinha que se preocupar tanto - “estou fazendo uma televisão para todos, mas com foco em classe média”. Hoje, não. Atenção. [...] Aquela divisão de que 80% do público é das classes C, D e E continua, mas eles têm mais presença, mais opinião. Eles ascenderam. [...] Eles têm que estar mais bem representados e identificados na dramaturgia, no jornalismo. [...] Eles querem ter uma linguagem mais simples, para entender melhor (Stycer, 2011).

Ao longo da entrevista, Florisbal reconheceu a existência de certos “estereótipos” comuns nas novelas da Globo, que retratavam os personagens populares de maneira menos densa do que os ricos. Tal caracterização, certamente, incidia nas tantas personagens de empregadas domésticas veiculadas em diferentes , dezenas delas servindo apenas de figuração, compondo cenários para os dramas da elite. E mesmo nas vezes em que foram protagonistas, como na telenovela Sem Lenço, Sem Documento (1977)18, a desigualdade inerente às relações profissionais entre patrões e empregados quase não era problematizada. Isso, no entanto, não significa que as encenações recentes tiveram um discurso radical de enfrentamento da desigualdade social, mas que apontaram para transformações graduais, porém não menos importantes, em relação à temática. Cheias de Charme, ao conferir maior densidade às empregadas domésticas por meio de suas protagonistas, certamente inseriu-se nesse planejamento da Rede Globo. Embora possivelmente outros fatores tenham influenciado na escolha do tema, a preocupação com a melhor “representação” das classes populares foi explícita, mencionada em entrevistas de autores, produtores e atores da novela. Segundo Filipe Miguez e Isabel Oliveira, autores da trama, apesar de a profissão de empregada doméstica ser em 2011 a maior categoria profissional do país, raras vezes essas profissionais foram protagonistas (Globo, 2012). Entretanto, mais do que encenar as lutas e dificuldades dessas profissionais historicamente desvalorizadas no Brasil, a

18 Apesar de pouco lembrada, na década de 1970 a novela Sem Lenço, Sem Documento (Globo, 1977, 19h) apresentou temática e estrutura semelhantes à de Cheias de Charme. Escrita por Mário Prata, contava a história de quatro irmãs que haviam migrado de Olinda (PE) para trabalhar como domésticas no Rio de Janeiro (Memória Globo, 2010). Não é casual que isso tenha se dado num momento histórico em que o mercado anunciante ainda se empolgava com a expansão do mercado consumidor urbano, como revela a análise da revista Mercado Global (cf. Almeida, 2006 e 2015). intenção dos autores era retratá-las como integrantes da “classe C em ascensão” e assim, pelas palavras de Isabel Oliveira, “falar da autoestima dessa classe”19.

“Empreguetes” como protagonistas da “nova classe média” Dando continuidade a uma longa lista de empregadas domésticas já exibidas por telenovelas da Globo desde a década de 1970, Cheias de Charme as fez protagonistas. A trama contava a história de três empregadas domésticas, mulheres, uma negra e duas brancas, que ascenderam socialmente através de um grupo musical chamado “Empreguetes” 20 . Embora houvesse reconhecido esforço de adensar as personagens, focalizando sua casa, trabalho e desafios cotidianos – entre eles, o assédio sexual, o preconceito e a luta por direitos trabalhistas –, alguns estereótipos se renovaram: reencenava-se a empregada doméstica sonhadora e sensual, que ascende socialmente por meio de talentos artísticos inesperados21. Visando retratar as expectativas das consumidoras da “classe C”, Cheias de Charme combinou a representação de uma determinada realidade social – a das empregadas domésticas brasileiras, muitas delas moradores de favelas, que enfrentam cotidianamente a desigualdade social –, com uma esfera lúdica e onírica, própria ao horário das 19h. Assim, a combinação entre local (as favelas do Rio de Janeiro) e universal (a busca por ascensão social), entre conjuntural (o fenômeno socioeconômico de ascensão pelo consumo dos extratos mais baixos) e atemporal (as fábulas, tal qual Cinderela) fizeram da novela, ao final, um produto capaz de agradar espectadores de diferentes classes sociais e idades, em especial o público infanto-juvenil, conseguindo boas marcas no Ibope para o horário22.

19 Nessa entrevista, os autores afirmaram ainda que, de modo geral, também havia na novela a preocupação de valorizar “a mulher guerreira” das classes médias e altas. Para tanto, mencionam a personagem Dra. Lygia, uma advogada honesta, esforçada e boa patroa. Segundo Filipe Miguez, “a novela é uma grande homenagem a essa mulher [guerreira] que existe em todas as classes” (Globo, 2012). 20 As protagonistas da trama foram interpretadas pelas atrizes Taís Araújo, e Isabelle Drumond. 21 Papel já vivido, por exemplo, pela atriz Zezé Motta em Transas e Caretas, exibida pela Globo em 1984 (Araújo, 2004, p. 234). 22 Segundo medição realizada pelo Ibope, Cheias de Charme teve média de 30 pontos em São Paulo (IG, 2012), alcançando picos de 44 pontos (Natelinha, 2012). Foi uma das melhores audiências para novelas das 19h na Globo desde , exibida em 2004 que teve 45 pontos de média. Cada ponto equivale, em média, a 60 mil domicílios na capital paulista (IG, 2012). Por meio de uma etnografia de recepção, entre nove trabalhadoras domésticas que analisaram a trama23, todas concordaram na avaliação de que Cheias de Charme “foi legal” por trazer para primeiro plano temas desvalorizados como o serviço doméstico remunerado e suas questões trabalhistas. Tal dimensão associou-se à reflexão sobre a importância da cultura musical e midiática para o universo popular feminino e urbano, bem explorada na trilha sonora e na trama do folhetim, cuja produção foi orientada pelo antropólogo Hermano Vianna. Ao incluir uma série de diálogos sobre a necessidade de assinar a carteira de trabalho, tirar férias, folgar no mínimo uma vez por semana, etc., a trama também veiculou a temática dos direitos trabalhistas (antes da PEC das Domésticas 24 ) de maneira didática, aproximando-se de um merchandising social, conteúdo em voga nas telenovelas brasileiras desde os anos de 1990 (Hamburger, 2004). Durante a pesquisa de campo, essas discussões trabalhistas foram notadas e, de maneira geral, bem avaliadas. A empregada doméstica Rosa contou que conversou com algumas amigas de mesma profissão e elas concordaram que a novela “ajudava” a explicar os direitos da empregada e a convencer os patrões que eles devem ser respeitados. Já a trabalhadora Luiza concluiu que gostou por um lado, mas se decepcionou por outro. Tomando como exemplo a cena em que a vilã Chayenne (Claudia Abreu), então patroa da empregada doméstica Penha (Taís Araújo), jogou um prato de sopa em cima dela em uma briga, Luiza disse perceber que na TV era tudo muito exagerado. “A realidade não é assim”, refletiu. Relembrando suas últimas três experiências profissionais25, Luiza sugeria que, atualmente, as tensões entre patroas e empregadas eram mais veladas, o que as torna ainda mais difíceis de serem julgadas.

23 Essa parte da pesquisa foi realizada em São Paulo, SP, no período de transmissão da telenovela, em 2012. 24 Após anos de lutas feministas e sindicais, em abril de 2013 foi aprovada a “PEC das Domésticas” (Emenda Constitucional 72/2013) que equiparou os direitos dos empregados domésticos aos demais trabalhadores urbanos e rurais, conforme previsto no artigo 7° da Constituição Federal de 1988. A PEC estendeu a todos os trabalhadores domésticos o limite de 44 horas semanais e 8 horas diárias, além da obrigatoriedade do pagamento de horas extras, adicional noturno e FGTS. 25 Das três últimas experiências profissionais como doméstica vividas por Luiza, nenhuma terminou bem. Na primeira, preparou o almoço do filho da patroa, mas ele ficou jogando videogame; quando veio comer, reclamou que estava frio. Ela então disse, na frente de sua irmã mais velha, que não iria esquentar porque o havia chamado muitas vezes e ele ignorou. À noite, a irmã contou para a mãe e no dia seguinte ela foi demitida. No segundo emprego, diante de uma enorme quantidade de roupa acumulada para lavar e secar, Luiza resolveu estender um varal na frente da casa. Quando a nova patroa chegou, ficou horrorizada e disse que aquilo ali “não era barraco”. Luiza se ofendeu; segundo ela, por mais que ela more na favela, “ela acha que tá falando com quem?”. Pediu as contas. No terceiro emprego, depois de um mês indo tudo bem, a patroa começou a lhe enviar diariamente torpedos pelo celular com mensagens como “deixar os panos de chão mais brancos”, “limpar melhor o piso dos quartos”. Luiza conta que De modo geral, ainda que por meio de uma estética exagerada, conforme a interpretação de Luiza, o debate sobre direitos trabalhistas na telenovela foi inovador para o gênero. Realizado paralelamente em Avenida Brasil (Globo, 21h, 2011), por meio das reivindicações da protagonista Nina (Débora Falabella) – então doméstica na casa de sua madrasta Carminha (Adriana Esteves) –, o tema da “vingança da empregadinha”, conforme denominou Hamburger (2012), teve uma série de repercussões na imprensa e apontou mudanças importantes na caracterização da empregada doméstica na televisão brasileira. Se por décadas a personagem tentou discutir pelas beiradas sua posição social desvalorizada, agora a reivindicação era feita abertamente. De maneira geral, a associação entre trabalhos domésticos e feminilidade tampouco escapou de estereótipos e naturalizações na trama de Cheias de Charme. Se as telenovelas brasileiras já incorporavam na heroína de classe média o ideal da “super mulher” que dá conta de uma série de tarefas – “têm sua profissão, são economicamente ativas e independentes, têm vida sexual ativa e feliz”, além de serem boas mães e esposas (Almeida, 2007, p.183) – esse ideal agora se espraiava para as demais classes sociais. A personagem Penha, única “empreguete” negra, foi ilustrativa dessa tendência: empregada doméstica competente, que cuidava de sua casa e sentia responsável pelo bem-estar de todos os familiares, além de ser vaidosa, bonita, divertida e sensual. Assim, além de cumprir com todas as atividades de sua vida particular – não sem conflitos –, ela ainda garantia o cuidado da casa e dos familiares da patroa, atividades vistas como naturalmente femininas26. *** A ascensão social é tema recorrente nas telenovelas brasileiras. Pode-se dizer, talvez, que sua maior ou menor centralidade varia de acordo com os contextos socioeconômicos nos quais as tramas são produzidas. Segundo Joel Zito Araújo (2004, p.107), a encenação recorrente da mobilidade social no final da década de 1960 e durante a década de 1970, período que ficou conhecido como o “milagre econômico”,

achou aquilo “muito chato”. Diante de uma oportunidade como auxiliar de limpeza em uma firma, ela pediu demissão. Ganhava menos, mas acreditava que estava valendo a pena por ter as regras mais claras. 26 Talvez o próprio termo “empreguete” – derivado de “piriguete”, termo ambíguo que remete a um tipo mulher insinuante e supostamente “empoderada” – tenha sido apropriado visando esse ideal de empoderamento. não é casual27. Nesse contexto, o arrivista Beto Rockfeller, da trama que levou seu nome em 1968, seria bastante expressivo do período (Araújo, 2004; Costa, 2000). Inserida num contexto marcado por alterações socioeconômicas que incidiram no padrão de vida das classes populares desde meados dos anos 2000, Cheias de Charme também retratou o “sonho” da mobilidade social, recolocando-o como um dos principais objetivos de vida. Assim, quando no primeiro capítulo as três protagonistas se conhecem em uma delegacia, o pacto ali selado e repetido diversas vezes ao longo da trama já revelava o desejo eminente por ascensão social: “dia de empreguete, véspera de madame!”. A música tema da novela, cujo trecho inicia este paper, também é ilustrativa dessa aspiração. Para entender a implicação de tais ideais é necessário, em primeiro lugar, localizar esse discurso na mídia que o veicula. Conforme discutido acima, a televisão comercial sempre promoveu o consumo e o desejo por bens, investindo especialmente nos espectadores com potencial de consumo. Assim, ao transformar espectadores em consumidores, tal mídia também cria novas disposições para o consumo (Almeida, 2007). Indo além dos anúncios publicitários e do merchandising, o próprio texto da novela ensina como usar e combinar uma série de bens, mostrando a importância que apresentam na criação de estilos pessoais (Almeida, 2007, p.185). Sem ser diferente, Cheias de Charme realizou merchandising de uma série de itens como produtos de limpeza, sapatos e maquiagens28. Também a própria trama realçou a todo momento a importância para a mulher de classe popular (agora vista como “nova classe média”) de se arrumar e cuidar de seu corpo, de sua casa e de sua família. Talvez seja essa a chave para compreendermos a mensagem central de Cheias de Charme para suas espectadoras/consumidoras potenciais. Ao representar empregadas domésticas bonitas, bem vestidas, otimistas, possuidoras de itens de consumo de última geração e de casas bem decoradas (ainda que na favela), as diferenças entre a “empreguete” e a “madame” pareceriam menos pronunciadas e, a qualquer momento, poderiam ser superadas. Assim, mudando os padrões de

27 De acordo com Araújo, “com exceção das novelas adaptadas de romances clássicos da literatura brasileira, quase todos os sucessos daquele período, quando se referiam a histórias desenroladas no contexto urbano, tinham direta ou indiretamente como temática os efeitos da mobilidade social no destino dos seus personagens” (2004, p.107). 28 O merchandising da Avon, em especial, foi bastante repetido. Lutando, provavelmente, contra a pecha de marca utilizada no Brasil sobretudo por integrantes das classes populares, na trama quem utilizava o creme contra envelhecimento era a distinta advogada Dra. Ligia. Também as Empreguetes quando famosas passaram a usar essa marca de maquiagem. representação, ao invés da antiga desigualdade naturalizada e intransponível enfrentada pela empregada doméstica, encenava-se uma desigualdade conjuntural e passageira, expressiva do período analisado. Desse modo, se essa trabalhadora a qualquer momento tiver a oportunidade de mudar de vida (por meio do estudo, do trabalho ou graças a um golpe de sorte), ela será igual às “madames” e, ao menos no plano da aparência (que é o que mais importa, ao lado do bom caráter), já estaria praticamente pronta para a nova posição. Para embasar tal mensagem, Cheias de Charme conseguiu engenhosamente unir o contexto socioeconômico propício, de maior mobilidade social da “nova classe C”, com um plano universal, típico das fábulas, tal qual Cinderela. Assim, entender a renovação das representações das empregadas domésticas nessa telenovela requer compreender também os interesses de mercado aí embutidos. Ou seja: as “empreguetes” de Cheias de Charme puderam reivindicar direitos trabalhistas, respeito e cidadania no “mundo ficcional” por terem se constituído no “mundo real” como consumidoras a serem levadas a sério. Entretanto, se em Cheias de Charme foi possível identificar mudanças no que se refere à representação de classe, em relação à cor/raça não ocorreram transformações significativas, tampouco um debate efetivo sobre preconceito racial no Brasil. Se, por um lado, a telenovela visibilizou algumas atrizes negras em papeis secundários, por outro, o triplo protagonismo teve apenas uma atriz negra (Tais Araújo), atriz que (ao lado de Camila Pitanga) acaba assumindo a grande maioria dos papeis de destaque para as personagens negras em produções recentes da Rede Globo. No entanto, é preciso destacar que a categoria das empregadas domésticas permanece racializada no país, mesmo quando se trata de pessoas brancas.

Categorias articuladas: classe, gênero e raça em debate Conforme vimos acima, nota-se no período entre 2010 e 2013, época de transmissão de Cheias de Charme, um grande debate na indústria cultural brasileira sobre a categoria ‘classe’, em função das mudanças socioeconômicas do período e dos interesses renovados do mercado na “classe C”. Nesse contexto, em diferentes discursos midiáticos, a empregada doméstica foi alçada à posição de protagonista, especialmente em função de seu novo potencial para o consumo de bens e serviços. Cumpre destacar, entretanto, que a personagem empregada doméstica também traz consigo uma série de representações de gênero e raça que não podem ser negligenciadas. Assim, neste paper, propomos trazer para o debate a perspectiva teórico- metodológica das interseccionalidades ou articulação de categorias. Conforme reconstitui Adriana Piscitelli (2008), em meados da década de 1990 emergem nos debates feministas análises que enfatizam a multiplicidade de diferenciações que, articulando-se à gênero, permeiam o social. Surgem assim as noções de interseccionalidades e/ou articulação, que ganham destaque especialmente por meio das obras de Kimberlé Crenshaw (2002), Avtar Brah (2006) e Anne McClintock (2010). Nos anos 2000, tais noções já estavam bastante difundidas, espraiando-se para além dos debates feministas, ainda que com matizes teóricos diferenciados. Segundo Piscitelli, a principal aposta desta perspectiva é “oferecer ferramentas analíticas para apreender a articulação de múltiplas diferenças e desigualdades” (2008, p. 266)29. Entre as autoras que investem na ideia de articulação de categorias da diferença, destaca-se a obra de Anne Mcclintock (2010 [1995]). Ao analisar a constituição do imperialismo britânico e o embate colonial no século XIX, McClintock propõe uma perspectiva teórico-metodológica que aposta na articulação de categorias analíticas como gênero, classe e raça, de modo que se constituem em “relações íntimas, recíprocas e contraditórias” (p. 20). O esforço é mostrar o modo contextual e articulado como tais categorias são constituídas historicamente e operam em cada contexto de poder. Nesse sentido, a autora demonstra como naquele contexto de constituição mútua da identidade das classes médias e trabalhadoras, não era possível falar de gênero de modo unificado. Ao contrário, era uma “dupla imagem contraditória da mulher vitoriana” que surgia – (mulher frágil e ociosa das classes médias em oposição à mulher forte e resistente das classes trabalhadoras), cindida pelas diferenças de classe e por processos de racialização (McClintock, 2010, p. 129). Ao trazer essa análise para o contexto debatido neste paper, nota-se que o emprego doméstico no Brasil, sendo uma profissão historicamente feminina, racializada e que recruta profissionais de classes trabalhadoras, constitui-se também como um lugar estratégico para se pensar na articulação de diferentes marcadores sociais da diferença. Conforme sintetiza Jurema Brites, ainda se trata de “atividade altamente feminilizada e fruto do entrecruzamento de desigualdades” (2013, p. 428). Assim, mesmo quando exercido por mulheres brancas ou por homens, o emprego

29 O debate acerca da constituição dos estudos sobre interseccionalidades e articulação de categorias da diferença, com reflexões sobre as distintas incorporações de tais perspectivas nas ciências sociais brasileiras, também podem ser conferidos em Moutinho (2014) e Hirata (2014), entre outros trabalhos. doméstico permanece como uma categoria feminina e racializada, ainda como apontara a análise de McClintock. Nessa perspectiva, no que se refere à articulação entre gênero e classe, nota-se que se, por um lado, essas novas representações da empregada doméstica no período não questionam a naturalização entre trabalho doméstico e feminilidade, por outro lado, dá-se uma movimentação nas representações da mulher de classes populares, aproximando a “empreguete” da “madame”, para utilizar a oposição de classes mobilizada pela telenovela. Mas isso apenas na perspectiva do consumo, ou seja, ela ganha acesso a bens que antes eram exclusivos de camadas médias mais estabelecidas. Neste texto, discutimos como, por meio de alterações recentes nos padrões de consumo, empregadas domésticas passam de “mercado marginal” e “item de posse” definidora do critério Brasil para consumidoras valorizadas e, assim, protagonistas. No entanto, a categoria permanece feminilizada e racializada. Assim, procuramos indicar a importância de, ao olhar para os usos e discursos da categoria classe pela indústria cultural brasileira, pensar simultaneamente em gênero e raça. A relativa mudança aqui analisada refletiu um período específico da história recente do país e apontou para os modos como a indústria cultural imagina seus espectadores como consumidores e, particularmente, mantém uma associação importante na estruturação do mercado anunciante entre consumo e atividades consideradas femininas. Com a crise atual pelo qual país está passando, compreender essa relação, do ponto de vista da mídia hegemônica, entre espectadoras, consumidoras e a “classe C”, já merecerá novas pesquisas e interpretações.

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