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UNIVERSIDADE FEDERAL DA BAHIA INSTITUTO DE HUMANIDADES, ARTES E CIÊNCIAS PROGRAMA MULTIDISCIPLINAR DE PÓS-GRADUAÇÃO EM CULTURA E SOCIEDADE

“CHEIAS DE CHARME”: ABRINDO ESPAÇO PARA A NOVA CLASSE MÉDIA? ESTUDO DOS CONFLITOS DE CLASSE NA TELEDRAMATURGIA NACIONAL

por

PRISCILA RIBEIRO CHÉQUER LUZ

Orientador(a): Prof(a). Dr(a). RITA DE CÁSSIA ARAGÃO MATOS

SALVADOR 2015 UNIVERSIDADE FEDERAL DA BAHIA INSTITUTO DE HUMANIDADES, ARTES E CIÊNCIAS PROGRAMA MULTIDISCIPLINAR DE PÓS-GRADUAÇÃO EM CULTURA E SOCIEDADE

“CHEIAS DE CHARME”: ABRINDO ESPAÇO PARA A NOVA CLASSE MÉDIA? ESTUDO DOS CONFLITOS DE CLASSE NA TELEDRAMATURGIA NACIONAL

por

PRISCILA RIBEIRO CHÉQUER LUZ

Orientador(a): Prof. Dr. RITA DE CÁSSIA ARAGÃO MATOS

Dissertação apresentada ao Programa Multidisciplinar de Pós-Graduação em Cultura e Sociedade do Instituto de Humanidades, Artes e Ciências como parte dos requisitos para obtenção do grau de Mestre.

SALVADOR 2015 AGRADECIMENTOS

O trabalho acadêmico é quase sempre solitário, principalmente quando se trabalha com a análise de um produto audiovisual. Durante dois longos anos somos só nós, pesquisadores, e nosso objeto de pesquisa em uma jornada que inclui acertos, desacertos, angústias, incertezas, inseguranças, quebra-cabeças teóricos e metodológicos, muitas madrugadas de trabalho e correções intermináveis. Mas, por trás disso tudo sempre há uma equipe de apoio que nos fortalece, ajuda e orienta. Alguns participam ativamente da construção do trabalho outros apenas nos oferecem apoio emocional para continuar a jornada. De qualquer forma, sem eles esse trabalho não seria possível. Ao Deus de toda graça, pela possibilidade do pensamento, da razão, do aprendizado e da conquista. À fé que não esmorece e nos dá a certeza da realização de sonhos impensáveis. À família sempre presente. Aos pais Marcus e Márcia pelo dom da vida e pelo apoio incondicional. Aos avós, tios, primos, irmão e madrasta pela torcida sempre presente, em especial à minha vó Lourdinha com quem aprendi os caminhos da . Ao tio Baba, pela acolhida, conselhos e carinho. A Felipe pela compreensão da ausência, pela parceria e pelo companheirismo. Às amigas mais chegadas que irmãs Saima, Danielle B., Danyelle M. Tássia, Liz e Lu pela certeza da amizade mesmo à distância. À professora Rita pela orientação, compreensão e observações valiosas. Aos colegas de jornada Catiane, Marijane, Ledson, Maylla, Juli Kalid e aos demais companheiros do Pós Cultura pelas observações, compartilhamento de angústias, sonhos e desejos. À professora Malu com quem compartilhei as primeiras ideias desse projeto e que me forneceu dicas valiosas, inclusive na banca de qualificação. Aos demais professores do Programa de Pós Graduação Multidisciplinar em Cultura e Sociedade da UFBA pelas disciplinas cursadas, pelo material teórico e conhecimento compartilhado. À FAPESB pelo financiamento da pesquisa.

Perguntam-me inicialmente, quase sempre, por que se estudar a sério a telenovela. Minha resposta é sempre a mesma, e é simples: Essa história parcelada, que se conta aos poucos, com a finalidade de garantir a atenção dos ouvintes, É imemorial.

Renata Pallottini (2012, p. 172)

LUZ, Priscila Ribeiro Chéquer. “Cheias de Charme”: abrindo espaço para a nova classe média? Estudo dos conflitos de classe na teledramaturgia nacional. 138 f. il. 2015. Dissertação (Mestrado) – Instituto de Humanidades, Artes e Ciências, Universidade Federal da Bahia, Salvador, 2015.

RESUMO

O presente trabalho tem por objetivo analisar a representação das relações de poder entre as diferentes classes sociais na teledramaturgia brasileira. Para isso, foi realizado um Estudo de Caso a partir da telenovela “Cheias de Charme” – selecionada como corpus de pesquisa - que foi ao ar no ano de 2012 pela Rede Globo de Televisão no horário das 19h. A partir dessa produção audiovisual foram analisadas as relações entre as diferentes classes sociais, representadas na obra por empregadas domésticas e patroas. Dessa forma, a partir de um conjunto de cenas selecionadas, foram analisados os conflitos, embates e tensões que fortalecem e/ou rompem com as relações de poder estabelecidas entre os determinados sujeitos de diferentes grupos sociais. Para isso, a proposta teórico-metodológica trilhou um caminho analítico que prioriza a articulação entre texto e contexto, ou seja, a relação entre o objeto de pesquisa e as suas condições de produção que inclui questões sociais, políticas, econômicas e de audiência. Essa abordagem se justifica a partir do caráter multidisciplinar da Comunicação e por ser a telenovela um produto dinâmico em constante diálogo com a formação social brasileira.

Palavras-chave: Telenovela; Cheias de Charme; Televisão; Nova classe média

LUZ, Priscila Ribeiro Chéquer. “Cheias de Charme”: Making room for the new middle class? Study of class conflict in the national teledramaturgy. 138 f. il. 2015. Dissertação (Mestrado) – Instituto de Humanidades, Artes e Ciências, Universidade Federal da Bahia, Salvador, 2015.

ABSTRACT

The present paper has the objective to examine the representations of Power relations between the different social classes in brazilian teledramaturgy . For this, has been accomplished a Study of Case starting from the telenovela “Cheias de Charme” – selected as corpus research – aired in year 2012 by Rede Globo Television on time of 7p.m.. From this audiovisual production were analysed the relations between the different social classes, represented in the production by maids and ladies of the house. This way, from a set of selected scenes, were analysed conflicts, clashes and tensions which strengthen and/or break with the Power relations established between certain subjects of different social groups. For this, the theoretical and methodological proposal will follow an analytical way that prioritizes the articulation between text and context, ie, the relationship between the research object and their production conditions including social questions, political, economic and audience. That approach is justified from the multidisciplinary nature of Communication and for being the telenovela a dynamic product in constancy dialogue with brazilian social formation.

Keywords: Telenovela; Cheias de Charme; Television; New middle class

LISTA DE ILUSTRAÇÕES

Figura 01 Estratificação social e suas respectivas rendas ………………………...50 Figura 02 Comparação entre os dados do SAE e do Critério Brasil ……………...51 Figura 03 Comunidade do Borralho e Condomínio CasaGrande …………………92 Figura 04 Sequência de imagens que representa o Borralho ……………………...94 Quadro 01 Personagens representativas do bem e do mal …………………………97 Figura 05 Maria da Penha ………………………………………………………..101 Figura 06 Chayene ……………………………………………………………….102 Figura 07 Espressão facial de Chayene e Penha ………………………………...105 Figura 08 Sequência de imagens: cena 17, cap. 01 ……………………………...106 Figura 09 Chayene agride Penha ………………………………………………...107 Figura 10 Maria do Rosário ……………………………………………………...109 Figura 11 Chayene vê Fabian e Rosário abraçados ……………………………...112 Figura 12 Expressões faciais de Chayene e Rosário …………………………….114 Figura 13 Maria Aparecida ………………………………………………………116 Figura 14 Sônia Sarmento ……………………………………………………….119 Figura 15 Sônia humilha Cida …………………………………………………...122 Figura 16 Expressão facial de Cida ……………………………………………...124 Figura 17 Empregadas x Patroas no programa Mais Você ……………………...126 Figura 18 Reação das outras personagens à fala de Chayene …………………...128

LISTA DE ABREVIATURAS E SIGLAS

DIEESE Departamento Intersindical de Estatística e Estudos Socioeconômicos IBOPE Instituto Brasileiro de Pesquisa e Estatística MTE Ministério do Trabalho e Emprego PBF Programa Bolsa Família PNAD Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios PROJAC Projeto Jacarepaguá SAE/PR Secretaria de Assuntos Estratégicos da Presidência da República

SUMÁRIO

1. INTRODUÇÃO ………………………………………………………………………13

2. O BRASIL IMAGINADO NA TELA DA TV ……………………………………...18

2.1. MÍDIA E REPRESENTAÇÃO SOCIAL …………………………………………...19

2.2. O REAL E O FICCIONAL NO BRASIL MIDIATIZADO ………………………...28

2.3. A TELENOVELA COMO GÊNERO TELEVISIVO ………………………………32

2.3.1. Telenovela e transformações do Brasil …………………………………………37

2.3.2. Telenovela brasileira em terras estrangeiras …………………………………..44

3. “CHEIAS DE CHARME” NO BRASIL CONTEMPORÂNEO ………………….47

3.1. DISCUTINDO A “NOVA” CLASSE MÉDIA BRASILEIRA ……………………..48

3.2. CLASSE, TRABALHO E IDENTIDADE ………………………………………….56

3.3. TRABALHO DOMÉSTICO: PERSPECTIVA HISTÓRICA E CONTEMPORÂNEA …………………………………………………………………………………………….60

3.4. O ESPAÇO SOCIAL DE CONSTRUÇÃO DA TELENOVELA ………………….65

3.5. SITUANDO O OBJETO DE PESQUISA …………………………………………..69

4. “CHEIAS DE CHARME”: RECONSTRUINDO CONFLITOS DE CLASSE …..81

4.1. PROCEDIMENTOS METODOLÓGICOS DE ANÁLISE ………………………...81

4.1.1. Seleção do corpus da pesquisa …………………………………………………..82

4.1.2. Análise das personagens …………………………………………………………84

4.1.3. Análise das cenas …………………………………………………………………85

4.2. SINALIZANDO CONFLITOS: O PRIMEIRO CAPÍTULO ……………………….88

4.2.1. CasaGrande x Borralho …………………………………………………………91

4.2.2. Empregadas x Patroas: ou seria o Bem x o Mal? …………………………...…95

4.3. REPRESENTAÇÃO DOS CONFLITOS ENTRE PATROAS E EMPREGADAS ..99

4.3.1. Relação assimétrica, agressão física da patroa e a busca dos seus direitos pela empregada ………………………………………………………………………………99

4.3.2. A questão da sexualidade e a figura do homem no espaço doméstico ……….108 4.3.3. Dependência filial, gratidão e silenciamento ………………………………….114

4.3.4. Lavando a roupa suja: empreguetes e patroas se enfrentam ………………..125

5. CONSIDERAÇÕES FINAIS ……………………………………………….……...132

6. REFERÊNCIAS …………………………………………………………………….136

7. ANEXOS …………………………………………………………………………….143

13 1. INTRODUÇÃO

Em abril de 2012, estreava no horário das 19 h da Rede Globo de Televisão a telenovela “Cheias de Charme”. A história, que contou a saga de três empregadas domésticas que se transformaram em celebridades a partir de um clipe musical divulgado na internet, tornou-se um dos grandes sucessos de público naquele ano consagrando a produção como uma das maiores audiências da emissora. A telenovela em questão surge na programação da Rede Globo como um produto estratégico para dialogar com um novo público consumidor emergente que recentemente despontou no cenário nacional, a “nova” classe média. Ganhando cada vez mais destaque, a “nova” classe C foi o carro-chefe de um programa de governo que priorizou o discurso sobre o crescimento e a estabilidade econômica do país, melhorias no salário mínimo, distribuição maior de crédito e, consequentemente, maior poder de consumo. Ainda que sua existência e classificação coloque em embate economistas, sociólogos, políticos e outros pesquisadores, é notório que a “nova” classe média despertou o interesse de grandes empresários dos mais variados setores da economia, entre eles o setor televisivo, tornando-se o público-alvo em potencial para as empresas de publicidade, para o mercado de bens de consumo e para a mídia. Durante o ano de 2012, observamos algumas mudanças na grade de programação das redes com programas televisivos sendo produzidos e veiculados para esse público que, segundo especialistas, possuía padrões e gosto de consumo específicos. Proliferaram-se artigos, análises e reportagens sobre o modo de vida dos novos emergentes que nortearam as pesquisas de mídia, a reformulação e a criação das produções televisivas daquele ano. Como um dos maiores produtos televisivos brasileiro e responsável por grande parte das receitas das emissoras, a telenovela também precisou se adequar às novas tendências da audiência. Nesse processo, destacaram-se como experiências bem sucedidas as produções “Cheias de Charme” e “Avenida Brasil”. Não coincidentemente, essas duas foram as responsáveis por alavancar a audiência da Rede Globo. Nosso projeto de pesquisa inicial, proposto na seleção do mestrado, tinha como objetivo, em uma primeira etapa, analisar essas duas telenovelas e a partir delas estudar a representação da “nova” classe média na teledramaturgia nacional. Posteriormente, na segunda etapa, investigaríamos o processo de transformação do produto telenovela e sua adequação a esse público consumidor. O primeiro obstáculo de pesquisa seria

14 empreender a análise de dois produtos audiovisuais tão extensos e densos. Dessa forma, efetuou-se o primeiro recorte que seria a escolha de apenas um objeto de pesquisa. Optou-se então pela telenovela “Cheias de Charme” por observamos que essa produção não só dialogava mais diretamente com o público-alvo como também apresentava elementos pouco utilizados na teleficção como a ocorrência de três empregadas domésticas como protagonistas, temática musical, figurino e personagens peculiares e a utilização de recursos transmídia resultando em um alto grau de aceitação da audiência. Com o corpus de pesquisa definido iniciamos o processo de análise a partir da visualização dos capítulos da telenovela disponíveis no site da emissora. Porém, nesse processo, observamos que as questões sociais presentes na obra eram muito mais amplas e nos permitiriam ir um pouco mais além no debate anteriormente proposto que era o da representação da “nova” classe C. A história apresentada possuía como pano de fundo um embate constante entre as empregadas domésticas – protagonistas da trama – e suas respectivas patroas, despertando-nos o interesse em entender como os conflitos entre as diferentes classes sociais era representado na obra. Partindo da hipótese de que toda movimentação nacional no sentido de celebrar e legitimar essa “nova” classe média não são suficientes para apagar todo o processo histórico de desigualdades sociais que marcam o país, a problemática da relação entre patroas e empregadas se mostrou relevante suscitando novos questionamentos: Como se estabelecem as relações de poder entre os sujeitos de diferentes classes sociais? Como essas relações são representadas no objeto de pesquisa? Quais tensões e conflitos emergem na “visibilidade” dada às empregadas domésticas, alçadas a protagonistas da trama? Essa suposta “visibilidade” serviria para minimizar os conflitos entre as diferentes classes sociais na novela? Esses questionamentos norteiam os objetivos desse trabalho: 1. Objetivo Geral: A partir da telenovela “Cheias de Charme”, investigar a representação dos conflitos de classe na teledramaturgia brasileira. 2. Objetivos Específicos: - Observar as relações de poder estabelecidas entre sujeitos de diferentes classes sociais. - Analisar os conflitos e tensões no relacionamento entre patroas e empregadas representado na telenovela “Cheias de Charme”. - Analisar a telenovela “Cheias de Charme” identificando as estratégias e os elementos textuais, visuais e sonoros utilizados para reforçar o efeito desejado. - Observar como as recentes mudanças sociais do Brasil se materializaram no produto telenovela

15 Durante todo o percurso da pesquisa, pensamos a telenovela não apenas como simples entretenimento ou produto do mercado cultural, mas, principalmente, como produtora e disseminadora de ideologias. Sendo assim, se faz importante, no atual contexto social do país, entender como as relações de classe são representadas em um dos mais influentes produtos da televisão brasileira. A telenovela então, se apresenta nesse trabalho como ponto estratégico para a discussão e a análise da construção das identidades coletivas de classes e dos grupos sociais do Brasil contemporâneo (LOPES, 2004). Expressão maior da teleficção brasileira, a novela, em seu conjunto imagético, colabora com a construção das imagens que os brasileiros fazem de si mesmos e através das quais se reconhecem. Como um dos maiores observatórios da vida cotidiana nacional, a teledramaturgia tem como base para suas histórias as memórias e o imaginário coletivo, constituindo-se palco para a construção de identidades (MARTIN- BARBERO, 2004). Dessa forma, no primeiro capítulo – O BRASIL IMAGINADO NA TELA DA TV – centralizamos a discussão teórica em destacar a importância da televisão na construção do imaginário coletivo sobre o Brasil, buscando entender como a mídia televisiva atua na representação social do país e de suas questões políticas, históricas e ideológicas. Para isso, o conceito de representação social se mostrou fundamental para o entendimento do tema. A partir de teóricos como Moscovici (2007) e Chartier (1991) nos debruçamos em entender os aspectos simbólicos da representação que envolve a formação do senso comum, a construção de ideias, a produção de sentidos e a circulação de informações no tecido social que ajudam a formular o pensamento coletivo. Nesse processo, a mídia é entendida como mecanismo de produção e difusão de conceitos sobre o mundo em que vivemos, fornecendo o repertório para a interação entre os sujeitos (KELLNER, 2001; THOMPSON, 1995). Entendendo que as representações sociais atuam na produção de sentidos e que a mídia possui um importante papel nessa produção, buscamos entender a relação entre representação e poder a partir do conceito de Poder Simbólico de Pierre Bourdieu (1989) para quem as relações de comunicação são sempre relações de poder. Em seguida, nos concentramos em entender como a televisão contribuiu para a unificação do território nacional e para a criação dos sentidos que produzimos sobre o Brasil. Destacamos nesse processo o dueto entre fato e ficção – telejornal e telenovela, respectivamente – como fundamental para estimular nos brasileiros o hábito de ver TV cotidianamente. A telenovela, a partir do seu sentido de realidade (CHAUÍ, 2006), do

16 intercruzamento de suas produções com temas cotidianos e do diálogo cada vez mais intenso com a audiência se constitui como um dos elementos de transformação da reprodução social e da construção discursiva da realidade. Como gênero televisivo (MACHADO, 2000; BAKHTIN, 1997), a telenovela possui características próprias que envolvem elementos de produção, narrativa, técnica e estratégias de aproximação com a audiência. Esses aspectos foram devidamente estudados considerando, não só sua importância para a legitimação do produto, mas, principalmente sua evolução histórica em consonância com as transformações do Brasil (BORELLI, 2000; CAMPEDELLI, 1985; HAMBURGER, 2011; LOPES, 2013; PALLOTTINI, 2012; SOUZA, 2004a). No segundo capítulo – “CHEIAS DE CHARME” NO BRASIL CONTEMPORÂNEO – procuramos situar historicamente o objeto de pesquisa a partir de uma perspectiva que priorize a articulação entre texto e contexto salientando as condições de produção da obra audiovisual. Nesse sentido, mostrou-se pertinente uma breve revisão dos conceitos de classe que permearam o pensamento sociológico brasileiro para, em seguida, ampliar a discussão para a “nova” classe média. A partir de dados do SAE/PR (2013) – que nos fornecem a dimensão numérica do assunto – e de conceitos como mobilidade e crescimento econômico (BAUMAN, 2000), capital cultural e habitus (BOURDIEU, 1996a) problematizamos sobre a legitimação da “nova” classe C baseada apenas em critérios econômicos e padrões de consumo (SOUZA, 2012). A discussão sobre classe social nos remeteu à importância de entender as questões relativas à identidade e trabalho no sujeito contemporâneo (BAUMAN, 2000; HALL, 2000) destacando a problemática do emprego doméstico no Brasil a partir de uma perspectiva histórica e contemporânea. Finalmente, chegamos ao nosso objeto de estudo relacionando-o com suas condições de produção. Nesse ponto, buscamos inscrever o objeto de pesquisa historicamente, tentando compreender o intercruzamento entre a produção da obra audiovisual e outros elementos que envolvem o panorama econômico, social, político e de audiência. Nesse processo, destacamos dados de audiência (IBOPE, 2012), tendências do mercado musical, novas tecnologias e estratégias transmídia destacando o que esses elementos significaram no produto final da obra e como eles contribuíram no processo de aproximação com o público-alvo, a “nova” classe média. Iniciamos o terceiro capítulo - “CHEIAS DE CHARME”: RECONSTRUINDO CONFLITOS DE CLASSE – explicitando o processo metodológico utilizado na análise do objeto de pesquisa. Destacamos a seleção do corpus, justificando a escolha das cenas

17 para análise. A extensão e densidade da obra analisada se apresentou como uma problemática de pesquisa. Com um total de 143 capítulos, “Cheias de Charme” apresenta uma diversidade de temáticas e quantidade de elementos que nos permitiriam trilhar por diversos caminhos analíticos. Nesse ponto, manter o foco nos objetivos da pesquisa foi essencial. Dessa forma, seguindo as orientações de Orlandi (2005) abdicamos de uma análise horizontal entendendo a impossibilidade de abarcar todas as nuanças representativas da obra. Focalizamos nosso olhar a partir dos objetivos de pesquisa e selecionamos as cenas para análise a partir de critérios pré-estabelecidos. A partir do conceito de ethos (MAINGUENEAU, 2002) propomos a análise das personagens. Seguindo a proposta de Maingueneau, empreendemos a divisão das personagens entre corporeidade e caráter, buscando empreender a análise da identidade dos sujeitos sociais representados. Foram analisados nesse caso, não só o discurso verbal (através das falas) mas também o discurso não-verbal através do figurino, escolha das atrizes, gestos, expressões faciais e história de vida. Nos conflitos analisados e na interação entre os sujeitos sociais buscamos observar como se estabelecem as “relações de força” (BRANDÃO, 2009; ORLANDI, 2005) entre patroas e empregadas, o lugar de fala de cada uma delas e quais os elementos discursivos que remetem ao seu posicionamento social. A partir de Fairclough (2001), empreendemos a análise tridimensional do discurso destacando a articulação entre texto, dimensão social e dimensão discursiva levando-se também em consideração as dimensões do sentido: identitária, relacional e ideacional. Por fim, nas CONSIDERAÇÕES FINAIS, trazemos os resultados obtidos durante a pesquisa relacionando-os com os objetivos inicialmente propostos e avaliando a confirmação ou não das hipóteses de trabalho. Os questionamentos e inquietações que, inicialmente, motivaram a pesquisa são confrontados com os resultados da análise e reavaliados. Com isso, esperamos contribuir para as futuras pesquisas na área da Comunicação e que têm como objeto de estudo a telenovela.

18 2. O BRASIL IMAGINADO NA TELA DA TV

“Às vezes, tenho a sensação de que, se tirássemos a TV de dentro do Brasil, o Brasil desaparecia”. Essa inquietante sensação, descrita por Eugênio Bucci em seu texto “A crítica de televisão” do livro Videologias (2004), é o nosso ponto de partida para pensarmos a importância da TV na construção e na representação do imaginário coletivo sobre o Brasil contemporâneo. Dessa forma, inquietou-nos entender como a mídia televisiva atua na representação social desse Brasil e de suas questões e tensões sociais, políticas, históricas e ideológicas. Como afirma o autor, a partir da década de 1960 a TV se torna o suporte principal para a veiculação dos discursos que identificam o Brasil, contribuindo na construção da imagem que os brasileiros fazem de si mesmo e de seu país, tornando-se um elemento importante no estudo das representações e identidades nacionais. Ainda que sua hegemonia, conquistada nas décadas de 1970 e 1980, esteja atualmente ameaçada pela internet e pelas novas mídias, a TV mantém a sua importância e presença no imaginário popular, congregando os signos e mitos que ajudam a sustentar a nossa ideia de Brasil. Nesse sentido, podemos afirmar que vivenciamos atualmente o que Kellner (2001) chama de cultura da mídia, com as sociedades contemporâneas cada vez mais submergidas nos produtos midiáticos. O rádio, o cinema, as revistas e a publicidade lançaram, inicialmente, os fundamentos dessa cultura e introduziram as sociedades capitalistas em um momento histórico onde o lazer e o entretenimento eram mediados pelos veículos de comunicação. Mas é com o surgimento da televisão que a cultura da mídia se consolida. Para Kellner, a partir do pós-guerra, a TV confirma sua hegemonia e sua soberania dominando e mediando aspectos da vida social, como a política, a economia, o lazer, os conflitos e as tensões sociais, por exemplo. Nesse mosaico de cores, imagens, sons e movimento que a televisão nos proporciona, construímos nossos pensamentos sobre o mundo, baseamos as nossas relações pessoais, formulamos nossas opiniões e obtemos informação sobre os mais variados assuntos. A sociabilidade moderna e o debate de temas públicos perpassam então pela mídia, o que nos leva a refletir sobre sua importância no entendimento das sociedades contemporâneas. Contudo, em certo sentido, a cultura da mídia é a cultura dominante hoje em dia; substituiu as formas de cultura elevada como foco da atenção e de impacto para grande número de pessoas. Além disso, suas formas visuais e verbais estão suplantando as formas de cultura livresca, exigindo novos tipos de conhecimentos para decodificá-los. Ademais, a cultura veiculada pela mídia transformou-se numa força

19 dominante de socialização: suas imagens e celebridades substituem a família, a escola e a Igreja como árbitros de gosto, valor e pensamento, produzindo novos modelos de identificação e imagens vibrantes de estilo, moda e comportamento. (KELLNER, 2001, p. 27)

Albino Rubim (2000) reforça o pensamento de Kellner ao denominar o nosso momento histórico como Idade Mídia e destacar a importância de se estudar a comunicação e sua influência na contemporaneidade. Como destaca o autor: “a compreensão da contemporaneidade como uma sociedade estruturada e ambientada pela comunicação, como uma verdadeira ‘Idade Mídia’” (p. 26). Essa sociedade ambientada e estruturada pela comunicação, como define Rubim, tem a associação entre capitalismo e mídia como uma de suas principais características, em uma parceria que rompe barreiras geográficas marcando a contemporaneidade como um espaço cada vez mais unificado pelas redes comunicacionais. A crescente expansão da comunicação nos fornece uma nova sociabilidade mediada e estruturada pela mídia e que segundo Rubim possui como características fundamentais o papel central da comunicação na mediação entre o sujeito e o mundo; a difusão de comportamentos, valores, conceitos, ideais; produção de significação intelectual e afetiva e crescimento do mercado de bens simbólicos. Atuando por trás dessas características está o complexo sistema de representações que emerge da onipresença da mídia e sua “permanente fabricação e mediação de sentidos” (RUBIM, 2000, p. 29). Dessa forma, não podemos pensar as questões entre sociedade e mídia, sem antes transpassar o conceito de representação e seu papel na formação do senso comum, buscando compreender qual o efeito de seus produtos no comportamento do indivíduo e sua influência no compartilhamento de conhecimento e práticas sociais, tendo os meios de comunicação como um elemento de mediação entre indivíduo e sociedade influenciando diretamente na percepção e interpretação da realidade.

2.1. Mídia e representação social Nas sociedades complexas contemporâneas o estudo das representações assume um papel fundamental no entendimento das formações sociais e das identidades individuais e coletivas. Como afirma Junqueira (2005), “nas últimas décadas, a noção de representação social toma fôlego a partir da necessidade de explicar a crescente importância da dimensão cultural nos fenômenos sociais de toda ordem” (p. 145). A partir de seu desnudamento é possível para o cientista social analisar como se dá a formação do senso comum, o que os indivíduos pensam sobre si mesmos e sobre os

20 outros e, principalmente, quais os mecanismos externos de construção, afirmação e transformação das identidades. “(...) torna-se imprescindível o exame daquilo que parece se constituir, cada vez mais, e em mais alto grau, a própria sociedade, ou seja, o seu sistema de representações simbólicas.” (JUNQUEIRA, 2005, p. 145) Apesar de reconhecer a importância dos estudos sobre as representações para o entendimento do sujeito e sua forma de pensar e se relacionar nas sociedades contemporâneas, as várias áreas do conhecimento que se propõem a estudá-la não encontram unanimidade em sua conceituação. Sua complexidade de definição envolve não só questões etimológicas, que engloba a evolução do termo durante a história, mas, principalmente sua discussão filosófica. Seu desenvolvimento histórico é registrado desde os estudos escolásticos do séc. XIII e XIV, onde a representação era atrelada à religião, passando pelas primeiras iniciativas de participação política idealizada pelos juristas medievais até chegar ao conceito de representação social proposto por Moscovici, onde ele reformula a ideia de representação coletiva de Durkheim aplicando-a a questões contemporâneas. O próprio Moscovici (2007) ressalta a problemática do conceito por se situar entre questões psicológicas e sociológicas sendo, portanto, uma conceituação mista exigindo do pesquisador um posicionamento teórico entre essas duas correntes do pensamento. De origem latina, o termo representare significa “tornar presente” ou “apresentar de novo”, estando intimamente ligado a objetos inanimados. Esse significado deve ser interpretado de forma literal sendo utilizado quando, por exemplo, um objeto toma o lugar de outro lhe substituindo. A origem etimológica da palavra estava longe de significar a representação política ou a representação de uma pessoa por outra que apenas a partir do sec. XIII e XIV começa a ser utilizada através da perspectiva religiosa. Nessa nova conjuntura, Jesus Cristo e seus apóstolos são representados pelo Papa e seus cardeais, respectivamente. Na esfera política medieval, começa-se também a pensar a representação da vida coletiva através da imagem do Estado e dos seus magistrados. A partir do sec. XV, o seu conceito se amplia e podemos começar a pensar a representação como uma pintura, figura ou objeto inanimado que tem o objetivo de retratar ou simbolizar uma pessoa (PITKIN, 2006). Na formação lingüística dos idiomas, a palavra “representação” também pode apresentar variações ou até mesmo a coexistência de mais de uma expressão. No português, apesar de termos a ocorrência de apenas uma palavra sua definição é variada apresentando vários eixos interpretativos como aponta Santos (2011):

21 Gustavo Blázquez (2000:170) escreve que nos dicionários de língua portuguesa o significado de representação é construído em torno de quatro eixos: 1) A representação é “o ato ou efeito de tornar presente”, “patentear”, “significar algo ou alguém ausente”; 2) A representação é “a imagem ou o desenho que representa um objeto ou um fato”; 3) A representação é “a interpretação, ou a performance, através da qual a coisa ausente se apresenta como coisa presente”; 4) A representação é “o aparato inerente a um cargo, ao status social”, “a qualidade indispensável ou recomendável que alguém deve ter para exercer esse cargo”; a representação também se torna “posição social elevada” (p. 30)

Assim, assumindo diversas possibilidades interpretativas na discussão sobre o conceito de representação, o termo torna-se amplo, complexo e por vezes abstrato. Sua aplicação nas ciências humanas e sociais é diversificada dando-nos várias possibilidades de abordagem teórica. Nessa discussão, especificamente, interessa-nos entender os aspectos simbólicos da representação, da formação do senso comum, de como um sujeito entende a si mesmo e o mundo a sua volta e principalmente o papel da mídia nesse processo. Aqui, pensamos o conceito de representação a partir de uma perspectiva que valoriza a construção de ideias, a inserção de novas informações no tecido social, a produção de conceitos e a circulação de informações que ajudam a formular o pensamento coletivo. A mídia nesse processo funciona como produtor e difusor das ideias e conceitos sobre o mundo em que vivemos, povoando o nosso cotidiano, dando- nos repertório para a interação com outros sujeitos e ajudando a construir nossas opiniões assumindo o papel de “tornar presente, mediante formas e figuras de naturezas diferentes [...] um mundo real ou possível, da experiência direta e concreta ou da fantasia.” (SOUZA, 2004a, p. 25). Nesse sentido, destacam-se as obras de Serge Moscovici e de Roger Chartier que com suas pesquisas contribuíram fundamentalmente para o entendimento do tema. Em seus estudos, Chartier tomou como premissa os fundamentos teóricos da História Cultural 1 que, em uma perspectiva mais contemporânea, colaboraram para um pensamento de mundo a partir de aspectos simbólicos, considerando a interação do indivíduo com o seu grupo social e com os bens culturais. Sendo assim, ele afirma “não haver prática ou estrutura que não seja produzida pelas representações, contraditórias e

1Oficialmente reconhecida a partir da década de 1970, a História Cultural propôs outra perspectiva de abordagem para os estudos de história que envolviam seu entrelaçamento com outras áreas do conhecimento como a antropologia e a sociologia se constituindo assim um campo de estudos interdisciplinar. Para além dos estudos cronológicos da história oficial e política dos países, a História Cultural se dedica a entender a cultura popular, a relação do homem com o seu momento histórico, etc. Um dos principais representantes dessa corrente é o historiador inglês Peter Burke.

22 em confronto, pelas quais os indivíduos e os grupos dão sentido ao mundo que é deles” (CHARTIER, 1991, p. 177). Moscovici corrobora com esse pensamento ao tentar, em seus estudos, entender a formação do senso comum e a construção da percepção por parte dos indivíduos. Para isso, ele inicia sua pesquisa tentando compreender como se dá a compreensão popular sobre a psicanálise a partir da difusão de mensagens veiculadas pelos meios de comunicação2. Na obra de Moscovici, os aspectos conceitual e epistemológico (enquanto formas de explicação) são tomados em referência à inter- relação entre os sistemas de pensamentos e as práticas sociais, para que seja possível compreender os fenômenos complexos do senso comum e a eficácia destas representações na orientação dos comportamentos e na comunicação, entendendo a representação social como sistema de recepção de novas informações sociais. (ALEXANDRE, 2001, p. 112)

A partir desses dois teóricos, podemos pensar a representação como um mecanismo social de produção de sentidos para o indivíduo e para o grupo ao qual ele pertence. Essa produção de sentidos resultaria em múltiplas e contraditórias visões sobre a realidade, construída de forma autônoma pelos diversos grupos sociais. De acordo com Souza (2004a), “os homens representam a realidade em que vivem a partir de uma complexa relação entre as suas condições de existência e os grupos e as instituições que delas fazem parte” (p. 26). Sendo assim, o complexo sistema das representações sociais precisa ser pensado não só a partir do sujeito, mas, também, do grupo social ao qual ele está inserido e que interfere diretamente na sua percepção de mundo. Um dos primeiros teóricos a se ocupar dessas questões foi Émille Durkheim ao formular sua teoria sobre as representações coletivas. Até aquele momento – final do séc. XIX e início do séc. XX - havia uma dicotomia entre indivíduo e sociedade. O indivíduo e seus aspectos subjetivos eram exclusivamente objeto de estudo da Psicologia enquanto que as questões sociais eram estudadas apenas pela Sociologia, o que impossibilitava pesquisas que articulassem as duas temáticas. Essa diferenciação, comumente aplicada na época, gerou uma série de estudos que deslocavam o sujeito de seu contexto sócio-histórico impossibilitando uma investigação mais apurada de alguns temas. Para Durkheim, no entanto, o pensamento e o conhecimento humano eram originários da sociedade e os conceitos da vida eram repartidos na coletividade. Assim, em sua teoria, as representações coletivas correspondem aos costumes, regras e

2Pesquisa publicada originalmente na obra Psychanalyse: son image et son publique na década de 1950.

23 pensamentos que mantêm a coesão social incidindo diretamente na consciência individual. Interessou a Durkheim a problemática de como as instituições, como a religião, por exemplo, organizavam a vida social e mantinham a unidade da comunidade contra possíveis conflitos e desintegrações. Ainda que sua teoria das representações coletivas levasse em consideração a integração entre indivíduo e sociedade na formação do conhecimento humano, Durkheim mantinha o posicionamento de que as regras que regem a vida individual são diferentes daquelas que organizam a vida coletiva, mantendo assim, em certa medida, uma diferenciação entre individual e coletivo. Nessa perspectiva, o coletivo se sobrepõe ao individual, agindo de forma absoluta sobre as consciências individuais e ditando as regras sociais. Durkheim enfatiza o caráter coercitivo e coletivo das representações sociais, acentuando a capacidade delas de garantirem a coesão social na medida em que formam as consciências individuais. Apesar de serem exteriores aos indivíduos, as representações sociais podem ser por eles interiorizadas por meio das instituições e agentes especializados, dentre eles a escola e os educadores. (SOUZA, 2004a, p. 26)

Moscovici, no entanto, ao propor a teoria das representações sociais resgata princípios da sociologia e da psicologia para entender não só o comportamento, mas a interação entre os indivíduos e seus grupos sociais. O autor, no entanto, não abandona a teoria das representações coletivas de Durkheim, ao contrário, atualiza-a enfatizando a importância e o lugar central do indivíduo na construção do conhecimento, da informação e do senso comum em um processo de mão dupla com a sociedade. A teoria das representações sociais se interessaria, dessa forma, por entender como indivíduos, inseridos em seus respectivos grupos sociais, constroem, interpretam, configuram e representam o mundo em que vivem. Assim entendidas, as representações sociais são sintetizadores das referências que os diversos grupos fazem acerca do que conseguem apreender de suas vivências sociais inseridos no tempo e no espaço. (SANTOS, 2011, p. 34)

Ao contrário de Durkheim – que defendia a unidade social – Moscovici vai se ocupar exatamente de entender o caráter dinâmico das sociedades, ressaltando a existência de fraturas sociais e, principalmente, como elas dão origem a novas representações sociais. De acordo com o autor, na composição social não há somente conformidade e submissão, como fazia supor a teoria de Durkheim, ao contrário, há também a diversidade e variação de ideias que conduzem para mudanças sociais a partir da emergência das minorias, constituindo-se, assim, a heterogeneidade social, como ele

24 mesmo explica: “À luz da história e da antropologia, podemos afirmar que essas representações são entidades sociais, com uma vida própria, comunicando-se entre elas, opondo-se mutuamente e mudando em harmonia com o curso da vida; esvaindo-se, apenas para emergir novamente sob novas aparências.” (MOSCOVICI, 2007, p. 38) De modo geral, Moscovici estabelece duas características das representações sociais, em primeiro lugar elas convencionam o mundo e seus objetos e em segundo lugar elas são prescritivas. As representações sociais convencionam o mundo a partir do momento em que direcionam o nosso entendimento sobre os fatos, sobre determinados objetos, nos fornecendo respostas prontas sobre os mais variados assuntos. A partir dos nossos referenciais categorizamos as pessoas e os objetos, organizando o mundo que conhecemos a partir de categorias que vão sendo ampliadas com inserção de novos elementos, “mesmo quando uma pessoa ou objeto não se adéquam exatamente ao modelo, nós o forçamos a assumir determinada forma, entrar em determinada categoria, na realidade, a ser idêntico aos outros, sob pena de não ser nem compreendido, nem decodificado.” (MOSCOVICI, 2007, p. 34) Ao afirmar que as representações sociais são prescritivas, Moscovici (2007) ressalta que alguns conceitos são anteriores a nós e por isso se impõem socialmente como verdades. O que pensamos sobre determinados assuntos, já estaria socialmente estabelecido antes mesmo de virmos ao mundo e é a partir desses conceitos que formulamos nossos pensamentos. Baseado nisso, temos respostas prontas para questões como racismo, sexualidade, guerras, etc. Essas representações são criadas por grupos e instituições e “quanto mais sua origem é esquecida e sua natureza convencional é ignorada, mais fossilizada ela se torna.” (p. 41) A princípio, as idéias de Moscovici expostas nas duas características anteriores podem parecer semelhantes às propostas de Durkheim, porém, ao propor o estudo das representações sociais, o autor preocupava-se em entender as sociedades atuais que, segundo ele, “nem sempre têm tempo suficiente para se sedimentar completamente, para se tornarem tradições imutáveis” (2007, p. 48). Assim, as representações sociais na dinâmica da contemporaneidade “são re-pensadas, re-citadas e re-apresentadas.” (p. 37) pelos indivíduos e seus grupos de forma conflitante e dinâmica. Chartier (1991) amplia seus pensamentos sobre o conceito de representação destacando que a produção de sentidos e a construção de mundo estão intimamente ligadas às práticas de apreensão de bens simbólicos e aos interesses dos grupos que forjam as representações, “pois, centra a atenção sobre as estratégias simbólicas que

25 determinam posições e relações e que constroem, para cada classe, grupo ou meio, um ser-percebido constitutivo de sua identidade” (p. 184). Aqui há uma associação clara entre representação e poder, à medida que o autor ressalta que as percepções do mundo social são apreendidas através de discursos que, em hipótese alguma são neutros. Ao contrário, os discursos representativos impõem uma autoridade a fim de legitimar e justificar as ações dos indivíduos. É nesse ponto que se situa a mídia, que após a transição para a modernidade, passou a povoar o imaginário coletivo com a circulação de novas ideias, dando visibilidade a grupos sociais antes excluídos e estabelecendo a mediação entre instituições – como a ciência, por exemplo – e o cotidiano dos indivíduos. Impressionisticamente, cada um de nós está obviamente cercado, tanto individualmente como coletivamente, por palavras, idéias e imagens que penetram nossos olhos, nossos ouvidos e nossa mente, quer queiramos quer não e que nos atingem, sem que o saibamos, do mesmo modo que milhares de mensagens enviadas por ondas eletromagnéticas circulam no ar sem que as vejamos e se tornam palavras em um receptor de telefone, ou se tornam imagens na tela da televisão. (MOSCOVICI, 2007, p. 33)

A inserção dos mass media na formação do pensamento moderno deve ser considerada como uma das possibilidades para se entender a formação do senso comum e o complexo sistema de recepção de novas informações sociais, à medida que a mídia estabelece a mediação para o conhecimento e o entendimento dos fatos e meios sociais, além de servir como difusor de formas simbólicas. Nesse intercruzamento entre mídia, cultura e representação social, aspectos simbólicos de dominação e resistência precisam ser apreendidos na medida em que reconhecemos que os discursos midiáticos são imbuídos de ideologias resultantes de formações sociais complexas. Também partimos do pressuposto de que os textos da cultura da mídia não são simples veículos de uma ideologia dominante nem entretenimento puro e inocente. Ao contrário, são produções complexas que incorporam discursos sociais e políticos cuja análise e interpretação exigem métodos de leitura e crítica capazes de articular sua inserção na economia política, nas relações sociais e no meio político em que são criados, veiculados e recebidos. (Kellner, 2001, p.13)

Entender a importância dos meios de comunicação de massa nas representações sociais é de fundamental relevância para a compreensão das sociedades modernas mediadas pela mídia. Nessa perspectiva, Thompson (1995) considera os meios de comunicação de massa como uma modalidade de transmissão cultural que se organiza para a produção e reprodução de bens simbólicos agindo na compreensão individual da

26 vida cotidiana. Nesse caso, os mass media colaborariam para disseminação da cultura dominante à medida que os indivíduos “agem e reagem ao exercer o poder e ao responder ao exercício de poder de outros” (THOMPSON, 1995, p. 128). A inserção dos mass media na formação do pensamento moderno deve ser considerada como uma das possibilidades para se entender a formação do senso comum e o complexo sistema de recepção de novas informações sociais, à medida que a mídia estabelece a mediação para o conhecimento e o entendimento dos fatos sociais, além de servir como difusor de formas simbólicas. Para um melhor entendimento sobre as relações de dominação e veiculação de ideologias por parte da mídia, recorremos ao conceito de poder simbólico na obra de Pierre Bourdieu (1989). Para o autor, esse é um “poder” invisível, normalmente ignorado mas, que está em toda parte e que só se estabelece com a cumplicidade dos agentes envolvidos, seja os que exercem a dominação ou aqueles que a ela estão subordinados. O poder simbólico é exercido pelos sistemas simbólicos (cultura, religião, mídia, língua etc) que funcionam como instrumentos de comunicação e conhecimento, dessa forma, o poder simbólico é também entendido como “um poder de construção da realidade” (p. 09), através do qual difunde-se um noção hegemônica e um sentido imediato de mundo. A construção da realidade se estabelece a partir de símbolos que tem como função a integração social tornando viável o conformismo lógico, ou seja, um consenso sobre o mundo e uma reprodução da ordem social. Dessa forma, o poder simbólico atua nos indivíduos com a possibilidade de alteração de suas percepções cognitivas agindo através de discursos em universos simbólicos para a legitimação de sua dominação. Essa perspectiva de construção de mundo do poder simbólico colabora, de acordo com Bourdieu, com a lógica das ideologias que, em sua maioria, corrobora para a divulgação de interesses pessoais como se fossem universais. A ideologia é parte integrante dos sujeitos e dos sentidos e, portanto essencial no estudo das representações sociais produzidas e veiculadas nos discursos midiáticos. Para Brandão (2009), “o discurso é um dos lugares em que a ideologia se manifesta” (p. 06), sendo assim, ela deve ser pensada como a base de possibilidades que dão ao indivíduo a capacidade de interpretação dos sentidos do discurso. As produções simbólicas estão carregadas de ideologia, que segundo Bourdieu, reproduzem os interesses particulares transformando- os em interesses coletivos, servindo dessa forma à lógica da dominação. Nesse aspecto, o autor ressalta a função política dos sistemas simbólicos que cumprem sua função de

27 dominação exercendo sobre outras classes ou grupos sociais o que ele chama de violência simbólica. Dessa forma, os sistemas simbólicos serviriam aos interesses das instituições dominantes que a partir da produção de bens simbólicos promovem uma disputa no campo ideológico entre os grupos e classes sociais que buscam, através da produção de bens culturais, a legitimação de seus discursos como hegemônicos para a definição e o entendimento de mundo social de acordo com os seus interesses. (...) as relações de comunicação são, de modo inseparável, sempre, relações de poder que dependem, na forma e no conteúdo, do poder material ou simbólico acumulado pelos agentes (ou pelas instituições) envolvidos nessas relações (...)” (BOURDIEU, 1991, p. 11)

Para Kellner (2001), as formações sociais estão imbuídas de relações de poder e hegemonia que podem ser percebidas nas suas esferas constitutivas como classe social, sexo, raça, etc. A inter-relação desse conjunto de elementos é formada a partir de uma disposição hierárquica onde “algumas instituições e grupos exercem violentamente o poder para conservar intactas as fronteiras sociais” (p. 48). Entre essas instituições e grupos destacamos os grandes conglomerados de comunicação que de acordo com Bucci (2004) exercem o poder dentro do modo de produção capitalista. O poder da mídia nas sociedades contemporâneas se consolida a partir do conjunto de significações que são diariamente trabalhadas nos veículos de comunicação, sendo o principal deles a televisão. Os meios de comunicação colaboram com a teoria das representações sociais ao possibilitar ao indivíduo as informações necessárias para que ele construa sua noção de mundo e sociedade. Nesse sentido, podemos elencar a comunicação como parte do que Pavarino (2003) chama de universo consensual das representações sociais. Nesse universo consensual está a produção de formas simbólicas que dará origem às representações. O primeiro é o lugar onde as representações sociais são produzidas, o conhecimento é espontâneo e “each individual is free at behave as an ‘amateur’ and a ‘curious observer’ 3 (MOSCOVICI, 1982: 186), elaborando suas opiniões e respostas sobre política, ciências, educação, ecologia, violência, racismo, doença, desigualdade social, ou seja, as noções apreendidas e compartilhadas na escola, em casa, na rua, ou pela mídia. (PAVARINO, 2003, p. 08)

3Cada indivíduo é livre para se comportar como um “amador” e um “observador curioso”.

28 Esse pensamento corrobora com o que Thompson (1995) considera como uma das características dos meios de comunicação de massa: a produção e difusão institucionalizada de bens simbólicos. Aqui, o autor destaca a produção das formas simbólicas como um processo mercantilizado e em “larga escala” possibilitando sua reprodução nos grupos sociais. Nesse caso, a própria essência dos bens simbólicos é modificada para atender a objetivos específicos que irão interferir de forma direta no complexo campo das representações sociais.

2.2. O real e o ficcional no Brasil midiatizado Em seu livro Comunidades Imaginadas, Benedict Anderson (2008), ao traçar o percurso histórico das origens do nacionalismo, destaca o advento da prensa e a difusão da língua escrita como peça ideológica e política fundamental no processo de consolidação das comunidades nacionais. O capitalismo editorial, que em 1600 já havia publicado cerca de duzentos milhões de volumes, estabeleceu uma rede internacional em busca de novos mercados de consumo que em pouco mais de um século já havia passado das elites leitoras de latim para as “massas” monoglotas, promovendo o que o autor chama de “revolucionário impulso vernaculizante” (p. 73). Esse impulso, segundo ele, foi possibilitado pela reforma do latim, pela Reforma Protestante e pela difusão de determinados vernáculos como estratégia de centralização administrativa. O que tornou possível imaginar as novas comunidades, num sentido positivo, foi uma interação, mais ou menos casual, porém explosiva, entre um modo de produção e de relações de produção (o capitalismo), uma tecnologia de comunicação (a imprensa) e a fatalidade da diversidade linguística humana. (ANDERSON, 2008, p. 78)

A imprensa então assumiu uma importante posição na formação da consciência nacional com a divulgação das línguas impressas que permitiram entre outras mudanças, a criação de um campo unificado de trocas simbólicas a partir da comunicação entre falantes de uma mesma língua (um embrião das comunidades imaginadas); a fixidez da língua numa roupagem próxima à das línguas modernas e a criação de um idioma oficial. Nesse aspecto, de acordo com o autor a nação moderna talvez não fosse possível sem a colaboração da imprensa na formação nacional, o que foi possibilitado por uma mudança nas formas de apreender o mundo que se afastava cada vez mais das comunidades religiosas e suas representações. Das dinastias europeias do sec. XVI e XVII às atuais nações contemporâneas, as tecnologias de comunicação evoluíram, porém, sem perder sua importância no

29 imaginário coletivo e na construção do nacionalismo. No Brasil, especificamente, a televisão assumiu um importante papel no projeto político de unificação do território nacional. A partir da década de 60, a televisão brasileira inicia um processo vertiginoso de crescimento de capital e de expansão de territórios. Não coincidentemente essa década é também marcada pela tomada do poder pelos militares em uma ditadura que perdurou de 1964 a 1984. O governo estabelecido nesse período promoveu uma série de mudanças políticas que levou, entre outras medidas, à instalação da Doutrina de Segurança Nacional, que determinava os interesses prioritários do Estado, entre eles a integração nacional, como explica Jambeiro (2002): Em linhas gerais, o conjunto de ideias que os militares produziram em sua Escola Superior de Guerra e chamaram de Doutrina de Segurança Nacional, afirmava que para sobreviver o Brasil teria que determinar seus interesses nacionais fundamentais, tanto os de natureza interna como externa. Estes interesses deveriam estar integrados na consciência coletiva da Nação, em suas classes dominante e dominada e constituir-se-iam em aspirações nacionais. As aspirações que fossem consideradas como de interesse vital para o País deveriam ter caráter imperativo, vez que estariam ligadas às condições de existência do Brasil. A falha em atingi-las poderia levar o país a um processo de desintegração. (p.75)

A partir desse momento a história da televisão no Brasil inicia uma transformação e passa a se confundir com os rumos políticos adotados pelos militares. Nascida na década de 50, a TV se consolidara no Sudeste e avançava a passos lentos para o Nordeste e para o Sul, uma expansão possibilitada principalmente pelo advento do videotape4. Com a intervenção militar na política do país e a nova demanda para a expansão do capitalismo, modernização e integração do território nacional, a televisão vivenciou um expoente crescimento em uma parceria com o Estado que passava também pelo Plano Nacional de Cultura. De acordo com Bucci (2004), o Plano Nacional de Cultura, instituído em 1976, estabelecia políticas culturais em consonância com as novas demandas políticas de segurança e ideologias do Estado e “foi por aí que a televisão encontrou o seu caminho” (p. 223). Para Jambeiro (2002), a intervenção do Estado na cultura estimulou a produção cultural ao mesmo tempo em que a deixou sobre os seus domínios o que possibilitou não só o crescimento territorial da TV nacional – com a instalação de uma rede de telecomunicações através da Embratel – mas principalmente o crescimento financeiro através de incentivos diretos que incluíram “o congelamento das taxas dos serviços de telecomunicações, isenção das taxas de

4Fita magnética que permite a gravação de imagem e som.

30 importação para compra de equipamento [...]” (pg. 74). Nesse processo de articulação entre mídia e Estado para um projeto de unificação ideológica do território nacional, a preferência pela Rede Globo se deu, de acordo com Bucci (2004), por questões políticas uma vez que, “a adesão da nova rede aos desígnios do autoritarismo era notória” (p. 222). A partir desse momento, os números da Rede Globo duplicaram e a empresa se tornou hegemônica na produção televisiva brasileira. A parceria entre Estado e Rede Globo consolidou as bases do que hoje reconhecemos como Brasil. Os debates sobre a nação então, tomaram a tela da TV que promoveu a expansão do espaço público, não mais aquele que era refletido na imprensa, mas um novo espaço público que tem a TV como seu fomentador. O ambiente comunicacional se transformou em um “campo de negociação permanente de sentidos” (BUCCI, 2004, p. 238) com poderes hegemônicos a serviço das classes políticas dominantes. Nesse ambiente, os brasileiros se informaram sobre as notícias do dia, consumiram entretenimento, montaram suas trilhas sonoras, aprenderam as tendências da moda, vivenciaram os escândalos políticos e principalmente viram suas tensões e conflitos sociais serem diluídos pelas imagens reforçando uma das características da cultura de massa: a minimização dos conflitos de classe, como reforça Jameson: Ela toca nas contradições e angústias sociais presentes apenas para usá-las em sua nova tarefa de resolução ideológica, convidando-nos simbolicamente a enterrar antigos populismos e a responder a uma imagem de associação política que projeta uma estratégia de legitimação totalmente nova. E ela efetivamente desloca os antagonismos de classe entre ricos e pobres, que persistem na sociedade de consumo [...] substituindo-os por uma espécie nova de espúria de fraternidade, em face da qual o espectador exulta, sem perceber que dela foi excluído. (JAMESON, 1980, p. 40)

A realidade nacional então ficou atrelada à tela da TV em uma bem sucedida mediação com seu telespectador através do “dueto entre fato e ficção” descrito por Bucci (2004): “telenovela e telejornalismo pactuam entre si uma divisão de trabalho para a consolidação discursiva da realidade” (p. 225). Ao jornalismo ficou reservada a função de informar “objetivamente” e de forma “neutra” os brasileiros, se tornando o espaço oficial para o discurso sobre a nação, narrando a realidade “sem interferências”. A seleção das notícias colabora para uma ordem apaziguadora onde o mundo real é apresentado ao telespectador em “retalhos fragmentados de uma realidade desprovida de tempo e espaço” (CHAUÍ, 2006, p. 49,50). Assim, os fatos, para serem verídicos, precisam passar pela mediação do telejornal que lhe confere credibilidade, veracidade e

31 visibilidade. Já às telenovelas, ficou imbuída a tarefa de estimular os brasileiros ao hábito de ver TV todos os dias. Com suas longas histórias fragmentadas em capítulos, as novelas inauguraram no Brasil um novo comportamento diante da televisão, a partir de 1963, quando foi ao ar “2-5499 ocupado” da TV Excelsior, a primeira novela diária. A programação noturna da Rede Globo mantém desde 1969, quando estreou o Jornal Nacional, sua grade baseada na sucessão entre telenovela e telejornalismo (regional e nacional), num processo em que ficção e realidade se confundem e se misturam. Essa estratégia, que tinha como objetivo atrair tanto o público masculino como o feminino, trouxe para a tela uma dobradinha que há décadas mantém o mesmo formato com o Jornal Nacional entre duas telenovelas. Nesse panorama, Chauí (2006) destaca a inversão de sentidos entre realidade e ficção, onde telenovela e telejornal invertem seus papéis. “Se os noticiários nos apresentam um mundo irreal, sem geografia e sem história, sem causas nem consequências, descontínuo e fragmentado, em contrapartida as telenovelas criam o sentimento de realidade” (p. 51). O sentimento de realidade da telenovela é evidenciado pela sua narrativa que se aproxima do cotidiano dos brasileiros, promovendo um relacionamento íntimo e diário com o telespectador. No intercruzamento de suas produções com temas cotidianos que refletem aspectos contemporâneos da política, economia, religião, entre outros assuntos que fazem parte dos anseios e do imaginário do povo brasileiro, podemos afirmar que a telenovela se constitui como um dos elementos de transformação da reprodução social. Partindo desse pressuposto, Lopes, Borelli e Resende (2002) afirmam que as telenovelas “se alimentam desse conhecimento socialmente produzido, divulgando-o e provocando um debate sobre determinados temas, provocando e alterando o tecido social que, dialeticamente, irá alterar as pautas e temas presentes na mídia.” (p. 314) Neste cenário, a narrativa ficcional televisiva surge como um valor estratégico na criação e consolidação de novas identidades culturais compartilhadas, configurando-se como uma narrativa popular sobre a nação. (...) Dessa hipótese deriva outra sobre o caráter nacional da teleficção, ou seja, sua constituição como gênero nacional. (LOPES, 2004, pg. 121)

Como narrativa nacional, Lopes (2004) aponta a telenovela como gênero considerado genuinamente latino e de apelo popular. Esse caráter nacional da teleficção se dá pela aproximação do produto com sua audiência uma vez que durante décadas de tradição, “a produção de telenovelas significou então uma certa apropriação do gênero por cada país: sua nacionalização” (MARTÍN-BARBERO, 2004, p. 40). Para Martín-

32 Barbero a telenovela significa um lugar de ficção onde cada nação pode fazer o intercruzamento dos mais variados campos culturais unindo o rural com o urbano, o novo e o antigo, mesclando e representando países com diversidades tão intensas. Nesse processo de nacionalização, a telenovela se tornou parte integrante da cultura brasileira compartilhando identidades, padrões de vida, religiosidade, comunicação verbal e não verbal, etc. Nesse sentido, de acordo com Straubhaar (2004), o sucesso da telenovela se deve pelo fato de ser um produto partilhado por culturas similares que compartilham os mesmos aspectos simbólicos, pois, segundo o autor, a audiência tende a ser mais receptiva a programas que estão mais próximos de sua realidade cultural. “Parece mais que a maioria das audiências está realmente procurando por proximidades culturais, a fim de ver pessoas e estilos que eles reconheçam [...]” (STRAUBHAAR, 2004, p. 85).

2.3. A telenovela como gênero televisivo Inscrita na grade de programação televisiva, a telenovela assumiu um papel importante na organização e consolidação da TV brasileira. Com categorias próprias, elementos específicos e narrativa popular, a telenovela se inscreveu definitivamente no cotidiano dos telespectadores através de uma espécie de “contrato” onde todos os dias no mesmo horário milhares de brasileiros se sentam em frente à telinha para acompanhar as histórias representadas. Para entender esse fascínio que a telenovela exerce sobre os telespectadores caminharemos para destrinchar suas principais características, suas estratégias de aproximação com o público e os principais elementos que fazem dela um dos gêneros mais bem sucedidos da televisão nacional. Arlindo Machado (2000) em suas reflexões sobre os programas televisivos busca um conceito sobre gênero que nos permita pensar as linguagens contemporâneas e audiovisuais. Em geral, as teorias que abarcam esse conceito possuem filiação com a literatura, sendo basicamente pensadas para os gêneros literários e linguísticos, possuindo rigidez e inflexibilidade para pensar os gêneros fora dessa estrutura. Soma-se a essa problemática o fato de que alguns autores vêm questionando a essência do conceito e propondo até mesmo uma implosão da noção de gênero. Machado cita nomes como Jacques Derrida, Maurice Blanchot e Roland Barthes que propõem pensar as obras além das categorias considerando a problemática ou até mesmo a impossibilidade das classificações. Nesse sentido, Machado (2000) problematiza: “Poderíamos perguntar então: acabaram-se realmente os gêneros [...] ou os nossos conceitos de

33 gênero não são mais suficientes para dar conta da complexidade dos fenômenos que agora enfrentamos?” (p. 68) Ainda ligado ao estudo do discurso oral e verbal o teórico russo Mikhail Bakhtin propõe um estudo sobre os gêneros do discurso, que, segundo Machado, se apresenta mais flexível dando-nos a possibilidade de, a partir dele, pensar os produtos audiovisuais contemporâneos. Os gêneros são, na perspectiva de Machado, “os modos mais estáveis de referência à televisão como fato cultural” (p. 29). Nesse sentido, Bakhtin é o ponto de partida para o autor pensar a estrutura dos programas televisivos e consequentemente as narrativas seriadas que se constituem o foco de nosso trabalho. O ponto de partida de Bakhtin é a premissa de que todas as atividades humanas estão relacionadas com a utilização da língua que, por sua vez, concretiza-se em enunciados. Os enunciados são definidos por Maingueneau (2002) como “uma sequência verbal que forma uma unidade de comunicação completa no âmbito de um determinado gênero do discurso” (p. 56). Assim, as mais variadas formas de utilização da língua são possibilitadas pela elaboração de enunciados específicos. Esses enunciados se repetem dentro de uma estrutura, sendo considerados por Bakhtin (1997) como relativamente estáveis. Essa estabilidade se concretiza em regularidades da língua sendo então considerados pelo autor como gêneros do discurso. A riqueza e a variedade dos gêneros do discurso são infinitas, pois a variedade virtual da atividade humana é inesgotável, e cada esfera dessa atividade comporta um repertório de gêneros do discurso que vai diferenciando-se e ampliando-se à medida que a própria esfera se desenvolve e fica mais complexa. (BAKHTIN, 1997, p. 279)

Sendo infinitas as possibilidades de organização enunciativas do ser humano podemos considerar que cada tipo de linguagem (seja oral, textual, visual ou audiovisual) produz um texto específico pertencente a um gênero do discurso. Estaria aí a flexibilidade que Machado (2000) cita na obra de Bakhtin, dando-nos a possibilidade de pensar os produtos audiovisuais como gêneros. Os gêneros organizam a linguagem, funcionando como “uma força aglutinadora e estabilizadora [...] um certo modo de organizar ideias, meios e recursos expressivos” (p. 68). Ligados à estabilidade e à regularidade dos enunciados, os gêneros permitem que um determinado produto se firme culturalmente garantindo sua comunicabilidade com as gerações futuras. Inscritos no tecido cultural e, passíveis de absorver mudanças, os gêneros não podem ser considerados como categorias estanques e imutáveis. A heterogeneidade da produção

34 humana permite que os gêneros se modifiquem, se reciclem e se entrelacem, permanecendo vivos na produção cultural. Para Machado, cada programa televisivo – com suas características – deve ser considerado como um enunciado. Na perspectiva do autor, cada imagem e som, cada sequência de blocos, breaks e vinhetas são organizados a partir de uma lógica, de uma intencionalidade formando assim sequências discursivas. Entender como funciona esses enunciados é fundamental para o estudo dos gêneros televisivos. Como afirma Bakhtin (1997): “Uma concepção clara da natureza do enunciado em geral e dos vários tipos de enunciado em particular (primário e secundário), ou seja dos diversos gêneros do discurso, é indispensável para qualquer estudo [...]” (p. 282) Dentre os mais diversos gêneros televisuais (telejornal, programas de auditório, talk shows, reality shows, etc), Machado dedica especial atenção à narrativa seriada. Caracterizada pela distribuição da narrativa em capítulos ou episódios, esse tipo de programa apresenta um enredo fragmentado onde a história é contada em pequenos pedaços que devem ser acompanhados pelo telespectador – diariamente ou semanalmente. De acordo com Pallotini (2012) é possível pensar a narrativa seriada a partir de dois eixos: a macro e a microestrutura. A primeira diz respeito ao todo da narrativa, quantidade de capítulos ou episódios, o desenrolar da trama, escolha de atores, distribuição do enredo durante toda a obra, histórias que envolvem início, meio e fim, etc. A microestrutura por sua vez se relaciona à unidade de cada capítulo ou episódio, como ele é organizado, como se desenvolve a história, como ele se inicia e finaliza, as pausas para os breaks comerciais, as tensões estratégicas, os ganchos, etc. A partir da relação entre a microestrutura dos capítulos, a macroestrutura da obra em geral e o desenrolar do enredo ou história principal podemos, segundo Machado (2000) subdividir a narrativa seriada em três tipos: 1. Uma ou várias narrativas simultâneas que se desenrolam durante o todo da obra e ao longo dos capítulos, sendo cada um deles a continuação do outro 2. Episódios com histórias independentes que possuem início, meio e fim, mantendo em comum um tema central, os personagens principais e a estrutura, mas mudando as histórias - Machado (2000) cita como exemplo o seriado “Malu Mulher” (1979 -1981) 3. Episódios independentes – intitulados de unitário - com estruturas e personagens diferentes, mantendo em comum apenas a temática principal, como na série “Eu que amo tanto” (2014). Porém, esses três tipos de narrativa seriada não são categorias estanques, com contornos bem definidos, ao contrário, elas dialogam entre si, trocando características e

35 confundindo-se dentro da grade de programação. No entanto, os elementos básicos de cada tipo de serialização se mantêm, podendo-se estabelecer a seguinte correlação: as telenovelas e minisséries estariam dentro do primeiro tipo sendo compostas por capítulos a partir dos quais a história se desenrola do início ao fim, enquanto, as séries e os seriados estariam relacionados ao segundo e terceiro tipos de produto. Interessa-nos, para efeito de pesquisa, o primeiro tipo de narrativa seriada representada pelas telenovelas. Entender suas características, elementos principais e organização da narrativa é fundamental para o estudo desse gênero. Observando sua estrutura é possível afirmar que há uma certa repetição na forma de se fazer telenovela, uma espécie de fórmula que se repete a cada nova produção com características que garantem a permanência do gênero. Para Machado (2000), “A televisão logra melhores resultados quanto mais a sua programação for do tipo recorrente, circular, reiterando ideias e sensações a cada novo plano [...]” (p. 87), a repetição mobiliza um repertório familiar no telespectador garantindo que todos os dias no mesmo horário ele esteja ligado na telinha. Mas nem só de repetição vive a narrativa seriada elementos invariantes e variáveis coexistem dentro dessa estrutura que Calabrese (apud Machado, 2000) chama de estética da repetição. Trataremos adiante de alguns desses elementos da telenovela, considerando seus aspectos invariantes, ou seja, características chaves que se mantêm nesse tipo de narrativa durante décadas, e também os seus aspectos variáveis dando destaque às mudanças significativas ocorridas no gênero de acordo com sua evolução temporal e sua relação direta com a sociedade brasileira. As telenovelas são caracterizadas por suas narrativas longas Campedelli (1985) chega a chamá-la de telenovelo em referência ao novelo de linha, pois, segundo a autora, suas longas histórias vão se “desenrolando” no decorrer de meses até o desfecho final. Pallottini (2012) cita a expressão culebrón – que significa “cobra grande” – como uma designação do produto na América Latina por conta de sua extensão. A autora, ainda define o produto telenovela da seguinte maneira: [...] escrita por capítulos; dimensão alargada com tendência a aumentar exageradamente, para manter a atenção do consumidor; estrutura aberta (peculiarmente aberta), passível de receber o influxo do consumidor – o famoso feedback, tom predominantemente melodramático, de cunho sentimental, emocional, em princípio dirigido a um público feminino [...] criação do suspense um tanto superficial [...] tom popular e sensacionalista; e, finalmente, o caráter sobretudo maniqueísta que enfatiza as soluções dadas pela emoção e que vê o ser humano como alguém que traz em si os componentes do bem e do mal que irão definir. (p. 50)

36 São citados ainda como características desse tipo de narrativa os breaks, ganchos, o multiplot e a obra aberta. Os breaks correspondem aos intervalos comerciais dentro da microestrutura dos capítulos. Apesar de possuir caráter financeiro, Machado (200) enfatiza sua importância na recepção produzindo uma expectativa para a próxima ação e permitindo ao telespectador um descanso, afinal, “Ninguém suportaria uma minissérie ou telenovela que fosse apresentada de uma só vez [...]” (p.88). Os breaks também possuem um papel na organização do capítulo a partir da qual a narrativa é pensada incluindo também pontos de tensão, chamados de gancho. Ao interromper a narrativa em momentos chave, os breaks são antecedidos e sucedidos pelos ganchos que se constituem em cenas de pequeno ou grande clímax situadas estrategicamente ao final e no início de cada bloco comercial com o intuito de gerar a expectativa no telespectador. “Há, então, quatro ganchos no decorrer da apresentação: três de menor grau, e um no fim – para o dia seguinte [...] Há ganchos especialmente pensados para os dias da semana. Por exemplo, o do sábado.” (CAMPEDELLI, 1985, p. 43) Na linguagem técnica televisiva um plot corresponde a uma história que movimenta o roteiro e a narrativa. A telenovela, no entanto possui uma diversidade de histórias que são desenroladas simultaneamente com maior ou menor destaque. Nesse sentido, Campedelli (1985) a caracteriza como multiplots que, em geral, se repetem nas produções. De acordo com a autora destacam-se: plot de amor, plot de sucesso, plot de cinderela, plot triângulo, plot da volta, plot da vingança, plot da conversão, plot sacrifício, plot família. Convencionou-se também dizer que a telenovela é uma obra aberta e isso significa que ela está sendo escrita enquanto vai ao ar e, portanto - ainda que o autor já tenha em mente o percurso a ser desenvolvido, sua história eventualmente será modificada de acordo com ocorrências externas à obra que, segundo Pallottini (2012), seriam: Sucesso e insucesso do público [...] acontecimentos marcantes ou circunstanciais da vida real [...] incidentes que afetam participantes da feitura da telenovela em suas vidas particulares [...] fatos sociais que solicitam o autor de maneira imperiosa – as desigualdades, as greves, os problemas que afetam os pobres, os negros, as crianças, as minorias em geral – e que se acentuam no decurso da criação de um trabalho [...] Ora, todos esses acontecimentos e outros mais que sempre se poderão arrolar fazem da nossa telenovela padrão um programa vivo, atual, reconhecível em sua urgência e, posteriormente, em sua historicidade. (pg. 65)

Assim, a telenovela está sujeita a modificações que, em geral, decorrem da audiência e dos outros elementos que interferem em sua produção. Pensando no

37 conceito de obra aberta, Pallottini (2012) compara a estrutura da telenovela com uma árvore onde as raízes seriam as concepções básicas do autor com relação ao desenvolvimento da história; o tronco corresponderia à história central a ser desenvolvida; e os galhos conformariam as histórias secundárias e conflitos menores. Continuando sua metáfora, a autora afirma que eventualmente alguns galhos podem ser podados ou se desenvolverem mais do que outros de acordo com exigências extra- ficcionais que originalmente não estavam nas concepções básicas do autor. Outros autores discutem de forma mais contundente o conceito de obra aberta chegando, inclusive, a questionar a adequação da telenovela nesse contexto, considerando que seu caráter mercadológico inviabilizaria sua inclusão nessa definição. Entre eles, Pallottini destaca Umberto Eco para quem “A obra aberta é aquela que apresenta a possibilidade de várias organizações, que não se mostra como obra concluída, numa direção estrutural dada, mas se supõe que possa ser finalizada no momento em que é fruída esteticamente.” (pg. 53). A obra aberta na concepção de Eco (1991) diz respeito às várias possibilidades e liberdade interpretativas do leitor, assim, a partir da experiência de fruição, a obra de arte revive com vários significados que lhes são atribuídos a partir de seus espectadores. Para isso, Pallottini destaca a importância de um telespectador atento, com certa “bagagem” cultural que lhe permita dialogar com a obra, que, por sua vez, deve ser concebida numa perspectiva nova de mundo. Apesar da proposição original de Eco para a definição de obra aberta, Pallottini (2012) insiste na inclusão da telenovela nesse conceito mesmo reconhecendo “seu caráter, digamos logo, comercial (a telenovela do mundo capitalista deve vender – mas será que isso só ocorre no mundo capitalista?) tiram dela o teor de obra aberta” (pg. 53). Para a autora, as alterações, advindas do público, no decorrer da narrativa e a maneira como o telespectador dialoga com as produções interferindo em seu enredo são indiscutíveis e devem sempre ser consideradas nesse tipo de produção.

2.3.1. Telenovela e transformações do Brasil É sabido que a telenovela brasileira, durante as seis décadas em que está sendo exibida, sempre manteve uma estreita relação com sua audiência. As histórias e gêneros inseridos, ou retirados de acordo com as exigências do público, se modificaram intensamente durante a história da teledramaturgia. Herdeira dos folhetins franceses do séc. XIX e das radionovelas cubanas, a telenovela vem evoluindo desde sua primeira

38 aparição na TV brasileira, em 19515, com a inserção de novas narrativas, dramas, personagens e a hibridização com outras plataformas midiáticas principalmente na atualidade com o advento das novas mídias. Para nos ajudar a entender esse movimento camaleônico de transformação da narrativa teleficcional, recorremos ao conceito de territórios de ficcionalidade – ou gêneros ficcionais – proposto por Sílvia Borelli (2000). Para a autora, os territórios de ficcionalidade “são fundamentais no processo de produção e formatação de padrões nas variadas indústrias culturais” (p. 01). Presente nos mais diversos produtos midiáticos, eles padronizam não só o produto, para um mercado globalizado, mas também atinge a recepção despertando sentimentos, provocando angústias, dores, riso, choro etc. Pertencente a essa indústria massiva e globalizada, possibilitada através de sua exportação para o mercado internacional, as novelas brasileiras passeiam confortavelmente pelos mais diversos territórios de ficcionalidade numa estratégia de aproximação com o público. Sendo assim, esse conceito nos ajuda a pensar de que forma esse produto se conecta com sua audiência através de mudanças narrativas e temáticas nos dando ainda pistas, para compreender a crescente influência do telespectador nas inevitáveis mudanças estruturais da teleficção. Tendo o melodrama, como seu gênero original, a telenovela foi agregando ao longo dos anos outros territórios de ficcionalidade como o humor, o suspense, a aventura, a trama policial, entre outros. Esses novos territórios, por onde agora a novela caminha, possuem fronteiras muito tênues que, frequentemente, se entrelaçam e se reciclam. [...] nada impede, por exemplo, que matrizes do romance policial surjam mescladas a outras, do romance de aventura; ou que personagens do mocinho, do típico cowboy, da vamp erótica, do bufão e da fada bondosa possam compor uma mesma narrativa de características também melodramáticas. (BORELLI, 2000, pg. 06)

A partir das demandas sociais, esses novos territórios de ficcionalidade surgem incorporando novas temáticas ao drama original das telenovelas. A heterogeneidade nacional é então inserida na tela da TV a partir da emergência e da visibilidade de novos grupos sociais, da modernização eminente do país, da evolução do debate sobre temas antes considerados tabu e do discurso político, porém, sempre respondendo às necessidades de consumo e produção. Partindo das características globalizadas e

5 A primeira telenovela brasileira foi “Sua Vida Me Pertence” escrita e interpretada por Walter Foster e estrelada por Vida Alves. Veiculada pela TV Tupi, o produto era veiculado duas vezes por semana, com episódios de 20 minutos e gravação ao vivo.

39 universais, os gêneros ficcionais se adaptam às necessidades locais se articulando com as demandas particulares de cada classe social, idade, sexo, região, etnia e outras variações de público. Assim, as telenovelas brasileiras trazem em suas histórias as marcas das demandas sociais e da evolução técnica do meio televisivo. Da imagem em preto e branco até as exibições coloridas, passando pela incorporação do videotape até chegar às atuais gravações em HD, observamos mudanças significativas marcadas pela mediação técnica e pelos territórios de ficcionalidade. A telenovela brasileira, tendo o melodrama como gênero ficcional principal, manteve nos primeiros anos de sua história, uma estrutura narrativa e temática que priorizava histórias fantasiosas com dramas familiares da alta aristocracia com personagens que eram duques, nobres, ou, tinham profissões privilegiadas na sociedade, como médicos e advogados. Numa clara associação com os produtos que lhe deram origem, a telenovela, por vezes, trazia para a TV a adaptação de romances da literatura universal como “Os Três Mosqueteiros” e “Corcunda de Notre Dame”. Em 1967, a TV Tupi rompe com a lógica dos personagens típicos do folhetim ao trazer na novela “O Cara Suja” (1967-1968, de Walter George Durst com direção de Geraldo Vietri) um protagonista feirante e com uma forte conexão com o popular. A novela então, se transformou em um sucesso de audiência o que despertou para a possibilidade de mudanças, como afirma Negrão (2004): “Isso levou todos nós da TV Tupi a refletirmos sobre a possibilidade de um protagonista voltar-se para o lado do povo ou ser um homem do povo [...]” (pg. 206). Com uma primeira estratégia de aproximação com a audiência bem sucedida, “O Cara Suja” logo foi seguida por outras telenovelas de sucesso que começaram a incorporar o cotidiano do brasileiro às suas tramas e a apresentar mais personagens conectados com a realidade nacional. A partir do final dos anos 60 e seguindo o modelo proposto pela Rede Tupi, as novelas da Rede Globo se contrapuseram ao estilo fantasioso que dominava a produção anterior, propondo uma alternativa realista. É a ruptura com o modelo representado pela novela Sheik de Agadir (Globo, 1966) -, com seus personagens com nomes estrangeiros, vivendo dramas pesados, diálogos formais e figurinos pomposos, ambientados em tempos e lugares remotos -, para o paradigma da novela brasileira que foi sendo construído a partir da novela Beto Rockfeller (Tupi, 1968). (LOPES, 2003, pg. 24)

As duas primeiras décadas da telenovela no Brasil são definidas por Souza (2004a) como a fase de implantação do gênero, onde não só novas narrativas se consolidaram, mas também, inovações técnicas que possibilitaram as condições para a

40 profissionalização do produto, destacando-se entre elas o videotape que permitiu a veiculação diária das obras a partir de 1963 com “2-5499 ocupado” da TV Excelsior escrita por Dulce Santucci e dirigida por Tito Di Miglio. Observa-se o debate entre os realizadores sobre o que seria uma telenovela, culminando, ao final da década, no surgimento de um formato considerado a vanguarda nas telenovelas (Beto Rockefeller, 1968). Tem-se assim um dos primeiros marcos de inflexão da história do gênero, demarcando a partir daí um determinado modo de fazer e pensar a telenovela. Pode-se dizer, então, que os principais elementos que configuraram um campo particular de práticas já estavam presentes. (SOUZA, 2004a, pg. 112)

Marcada pela novidade tecnológica, a televisão expande seus domínios levando ao ar uma programação completa atingindo maiores índices de audiência e atuando em outros estados fora do eixo Rio - São Paulo. A década de 1960, então, representou uma importante virada na ficção televisiva que se beneficia da tecnologia para se transformar no programa de maior audiência da época. Destaca-se nessa década as produções “O Direito de Nascer” (TV Tupi, 1964), “Redenção”6 (TV Excelsior, 1966-1968, de Raimundo Lopes e direção de Waldemar de Moraes) e “Beto Rockfeller” (TV Tupi, 1968-1969, criada por Cassiano Gabus Mendes e escrita por Bráulio Pedroso com direção de Lima Duarte) que se tornou um marco na história da teledramaturgia por apresentar o primeiro anti-herói brasileiro e introduzir “figuras ‘modernas’ – o conjunto de fatos ficcionais modelados na vida cotidiana” (XAVIER, 2004, p. 48). Assim, “Beto Rockfeller” rompe com a narrativa melodramática e introduz expressões e gírias populares posicionando os personagens mais próximos da realidade nacional. Coube a essa produção ainda o status de ser a primeira telenovela a utilizar a música pop em seus capítulos - como Beatles e Rolling Stones - no lugar das tradicionais trilhas orquestradas, além de trazer, para a narrativa ficcional, fatos e notícias dos jornais da época tornando a telenovela cada vez mais contextualizada. Para Lopes (2003), esse aspecto popular da telenovela é o que lhe permite o estabelecimento de fortes vínculos com a audiência, uma vez que, “[...] ela possui uma penetração intensa na sociedade brasileira, devido a uma capacidade peculiar de alimentar um repertório comum por meio do qual as pessoas de classes sociais, gerações, sexo, raça e regiões diferentes se posicionam e se reconhecem umas às outras”

6 A telenovela “Redenção” da TV Excelsior marcou a história da teledramaturgia nacional em diversos aspectos: foi a telenovela mais extensa da televisão brasileira com 596 capítulos ficando 2 anos no ar; representou pela primeira vez um transplante de coração como solução para prolongar a vida de uma personagem; e foi a primeira telenovela a ser gravada em uma cidade cenográfica.

41 (pg. 18). Nesse sentido, os aspectos fantasiosos da narrativa ficcional não inviabilizam, na perspectiva de Dumont (2004), sua articulação com a realidade e sua possibilidade de atuação como agente de transformação social, como demonstra em sua afirmação: [...] isso não invalida a telenovela como poderoso agente de transformação social. Pelo contrário, estou convencido de que receptor – no Brasil ou em qualquer outro país latino-americano, como constatei nas longas andanças dos últimos dois anos – tem plena consciência de que o que vê diariamente na tela, mesmo sendo ficção, é em boa parte uma recriação de sua realidade. E, nela, ele se reconhece, identifica, processa suas próprias reações, posiciona-se ante os anseios, angústias, conflitos e expectativas que compõem o dia-a-dia de um cidadão comum, aqui ou em qualquer lugar do mundo. (DUMONT, 2004, p. 113)

Como exemplo, podemos citar as telenovelas da década de 1970 que, de acordo com Borelli (2000), ficaram conhecidas como novelas verdade por abordarem questões políticas e sociais da época. Os anos 1970 então são caracterizados como a fase de consolidação da telenovela (SOUZA, 2004a), quando o produto se torna responsável por grande parte da receita publicitária das emissoras e quando as obras produzidas firmam o gênero como produto brasileiro distinguindo-se das soap operas7 americanas e de outras produções latino-americanas popularmente intituladas de “novelão mexicano” (HAMBURGER, 2011). Nesse período, a estrutura melodramática é enriquecida pelas narrativas de realidade com conflitos baseados no cotidiano nacional. Porém, até essa época o melodrama dos folhetins atraía, na maioria das vezes, o público feminino até que - tentando romper com essa lógica - Janete Clair lança “Irmãos Coragem” (TV Globo, 1970-1971, direção de Daniel Filho) e inaugura uma nova fase da telenovela brasileira com a adesão do público masculino. Nessa obra, a estrutura melodramática da narrativa dialoga com características do gênero de aventura com a incorporação do western, inspirado nos filmes hollywoodianos de bang-bang. Além disso, um dos personagens principais da trama era um jogador de futebol de um grande time do país. O resultado da inclusão de novos gêneros ficcionais e de novas temáticas foi um dos maiores índices de audiência da história da teledramaturgia brasileira e a primeira telenovela assistida pelo público masculino.

7 “A soap opera, ou telenovela norte-americana, é uma produção ficcional transmitida por meio de imagens em TV, história sem um fim exatamente previsto que se presta a ser permanentemente estendida e que se baseia nas peripécias de uma comunidade cambiante, de um local definido ou de uma família circunscrita. Os exemplos mais conhecidos do público brasileiro são as séries Dallas e Dinastia. Na verdade, a soap opera está mais para um longuíssimo e infindável seriado do que para a telenovela com ao conhecemos.” (PALLOTTINI, 2012, pg. 48)

42 Esses dados, além de mostrarem que os homens estavam mais interessados em telenovelas, indicavam também que esse gênero ficcional estava sofrendo modificações, em função do interesse das emissoras de conquistarem uma fatia maior do público masculino, já que as pesquisas permitiam afirmar, inclusive, que a fruição das telenovelas dependia do sexo do telespectador. (SOUZA, 2004a, pg. 149)

Em “O Bem Amado” (TV Globo, 1973, de Dias Gomes dirigida por Régis Cardoso), vemos mais uma vez a mediação técnica e a inclusão de novas temáticas serem incorporadas com sucesso. A primeira novela a cores da TV brasileira é também uma das primeiras a apresentar a temática da política como uma sátira à condição social do Brasil na época. Já sua antecessora, “Selva de Pedra” (TV Globo, 1972, escrita por Janete Clair e dirigida por Daniel Filho), se passava no Brasil do Milagre Econômico e transmitia uma mensagem de otimismo a centenas de cidadãos ligados na telinha. Esta evidente heterogeneidade responde, diretamente, às necessidades de produção, recepção e consumo televisuais. As matrizes dos territórios de ficcionalidade diversificam-se porque transformam-se, com o processo de modernização, as referências simbólicas que conformam o imaginário coletivo; mas modificam-se, ainda, em função dos apelos de um mercado de bens simbólicos, que se amplia com a consolidação das indústrias culturais no Brasil dos anos 70. (BORELLI, 2000, p.06)

A partir dos 1980, até os dias atuais, o que vemos é um mercado marcado pela consolidação da hegemonia da Rede Globo na produção de telenovelas. Ainda que as outras emissoras se esforçassem em levar ao ar excelentes produções como, por exemplo, “Dona Beija” (Rede Manchete, 1986, escrita por Wilson Aguiar Filho e dirigida por Herval Rossano), “Pantanal” (Rede Manchete, 1990, de Benedito Ruy Barbosa com direção de Jayme Monjardim) e mais recentemente “Prova de Amor” (Rede Record, 2005-2006, de Tiago Santiago e direção de Alexandre Avancini) e “Vidas Opostas” (Rede Record, 2006-2007, escrita por Marcílio Moraes e dirigida por Alexandre Avancini), as produções globais cresceram em quantidade e qualidade principalmente a partir da inauguração do PROJAC8 em 1997. Produções como “Vale Tudo” (1988, de Gilberto Braga com direção de Dennis Carvalho), “” (1996, de Benedito Ruy Barbosa e dirigida por Luís Fernando Carvalho) e mais recentemente “Avenida Brasil” (2012, de João Emanuel Carneiro e direção de Amora

8 Projeto Jacarepaguá – ou Central Globo de Produção, complexo de produção de programas de entretenimento que possui 1.300.000 m² de área total e 120.000 m² de área construída. Se constitui o maior complexo de produção de telenovelas da América Latina contendo cidades cenográficas, fábrica de figurinos e os estúdios de gravação. (LOPES, BORELLI, RESENDE, 2002)

43 Mautner) e “Cheias de Charme” (2012, escrita por Felipe Miguez e Izabel de Oliveira e dirigida por Denise Saraceni), se tornaram picos de audiência confirmando a supremacia da Rede Globo nesse tipo de produção. Com novos territórios de ficcionalidade - como o humor, o suspense e a trama policial - já consolidados, o grande diferencial das produções das últimas décadas está na mediação técnica entre produção e recepção o que possibilita inovações estilísticas, narrativas e grandes fatias no faturamento da emissora. Nos anos 80 e início dos anos 90 – a fase de ampliação e reestruturação – novos cenários alteram o campo: o fim do regime militar, um mercado cultural concentrado e poderoso, a democratização da sociedade brasileira, uma crise econômica que fragiliza o mercado publicitário, mudanças na configuração do telespectador (maior segmentação, extensão geográfica e ampliação das camadas sociais atingidas) e as constantes inovações tecnológicas no meio audiovisual e das telecomunicações. (SOUZA, 2004a, pg. 114)

Para Lopes, Borelli e Resende (2002), a dominação técnica é o que vem garantindo a hegemonia no mercado televisivo brasileiro. Com as novas tecnologias de produção, circulação e recepção, a experiência audiovisual foi modificada em diversas instâncias, o que exige do produtor um domínio dessas novas técnicas e linguagens. Esse novo modo de fazer novela, com foco na mediação técnica, pode ser associado ao que Hamburger (2011) considera um momento em que “há poucas referências e temas polêmicos atuais” (p. 82). Notadamente a autora faz referência à incorporação de debates ricos à formação brasileira, principalmente no campo político, com novelas que tinham a sátira política como principal finalidade. Em uma crítica às produções atuais, Hamburger (2011) afirma que as atuais “novelas abusam de mensagens de conteúdo social, enquanto perdem seu diferencial estético e sua força polêmica [...] A opção é pelo desenvolvimento de campanhas politicamente corretas, muitas vezes em detrimento da dramaturgia.” (p. 82). Nota-se aí uma crítica velada ao que ficou conhecido como merchandising social, muito comum nas telenovelas da década de 1990 que possuíam uma forma peculiar de abordar questões sociais. Entre elas destaca- se as novelas de Glória Perez que abordaram temas polêmicos como o das crianças desaparecidas em “Explode Coração” (1995-1996, direção geral de Dennis Carvalho). Apesar de considerar pertinentes as críticas realizadas pela autora, não podemos, no entanto, desmerecer a importância da tecnologia no processo de mediação com o receptor. As técnicas de filmagem utilizadas, a composição da imagem, a trilha sonora,

44 a elaboração de narrativas transmídia e a edição do produto final são elementos constituintes do percurso da telenovela até o seu receptor e nos fornecem pistas importantes para o entendimento da produção social de sentidos (LOPES, BORELLI, RESENDE, 2002). Nesse caso, o produto telenovela deve ser compreendido como um sistema complexo de produção onde devem ser levados em consideração seus aspectos técnicos, mercadológicos e sociais, tendo essas três esferas o mesmo peso e valor em sua avaliação e análise.

2.3.2. Telenovela brasileira em terras estrangeiras O sucesso das telenovelas brasileiras conquistou ainda outros territórios geográficos a partir da década de 1970 quando começou a ser exportada primeiramente para Portugal e depois para os vizinhos da América Latina até atingir os países socialistas europeus (HAMBURGER, 2011). Nas décadas seguintes (1980 e 1990) esse mercado foi altamente ampliado através da parceria com os Estados Unidos, França, Holanda e outros países europeus. O sucesso das novelas brasileiras no mercado estrangeiro se deve não só pela qualidade do produto, mas, principalmente, pelo seu caráter global e transnacional. Nesse cenário, a produção de telenovelas se ocupa primeiramente em narrar histórias do cotidiano brasileiro para em seguida, no processo de exportação, contextualizar essa trama nos países em que serão exibidas. Assim, as produções brasileiras precisam ser reorganizadas para atingir o público internacional levando-se em consideração a forma peculiar com que cada audiência recebe o produto audiovisual em sua experiência de fruição. Nesse ponto, se faz necessária uma pequena discussão sobre o caráter transnacional da teleficção brasileira e suas estratégias de aproximação com o público internacional. Ao pensar na apropriação das telenovelas brasileiras para o mercado internacional, percebemos que os traços marcantes da cultura globalizada são articulados com a necessidade de atender à diversidade cultural de cada país. Esse processo então, não pode ser pensado de forma homogênea, ou como um simples dado que é posto em decorrência das exigências de mercado, mas como uma das características da telenovela que é a sua mestiçagem cultural. Ao analisar as aproximações das telenovelas com o seu público, Joseph Straubhaar (2004) destaca a importância de se entender o caráter transnacional do produto como um sistema complexo “cujos efeitos integrativos não resultam simplesmente na eliminação da diferença e da diversidade cultural, mas fornecem o contexto para a produção de novas formas culturais marcada pela

45 especificidade local” (p. 75). O imperialismo cultural então, segundo o autor, não seria a discussão central para entender o processo de globalização da telenovela que aponta para outras questões mais pertinentes como a hibridização dos gêneros televisivos e a domesticação de bens culturais. É válido ressaltar também que a telenovela, como conhecemos hoje, pode ser considerada como um produto globalizado desde o seu nascimento uma vez que, é fruto da hibridização de gêneros como o folhetim francês do século XIX e as radionovelas cubanas que foram domesticadas para o “jeitinho” brasileiro. Agora, a novela faz o seu caminho de volta, cruzando o Atlântico em uma viagem que tem o Brasil como ponto de partida. Recapitulando seu trabalho na Rede Globo, Geraldo Casé afirmou que um dos grandes desafios de sua carreira foi assumir a direção artística da área internacional da emissora e entender como se dava a recepção de suas produções em cada país onde eram exibidas. “Constatei que um produto tinha uma resposta muito forte para um público, uma certa paixão, e outros não tinham receptividade. [...] ficou claro que muitos de nosso produtos enfocam assuntos absolutamente alheios à compreensão da audiência de cada país.” (CASÉ, 2004, p. 322) Questões como o tempo de exibição, por exemplo, podem ser problemáticas no mercado internacional se não houver uma adaptação à grade de programação local. Para evitar esses problemas, a Rede Globo reedita todas as novelas que serão vendidas, separando a faixa de áudio para dublagem, reorganizando os capítulos para um tempo de exibição mais adequado, modificando os finais e até mesmo inserindo informações para contextualizar o público estrangeiro sobre a trama. Um dos maiores mercados de exportação das produções ficcionais brasileiras é a América Latina e para entender esse processo recorremos a Straubhaar (2004) e sua noção de mercados linguístico-culturais, ou geoculturais. A tendência, segundo o autor, é que países com culturas similares, proximidade geográfica e com expressões idiomáticas compartilhadas façam parte de um mesmo mercado onde os bens culturais circulam. Erroneamente identificados como mercados apenas regionais, os mercados geoculturais não podem ser definidos apenas pela aproximação de territórios. Comunidades hispânicas, por exemplo, nos EUA e na Europa são unificadas pela língua e fazem parte do mesmo mercado linguístico-cultural da América Latina. No entanto, a definição de mercados linguístico-culturais perpassa a linguagem e inclui história, religião, etnicidade (em alguns casos) e cultura, em muitos sentidos: identidade compartilhada, gestos e comunicação não-verbal, o que é considerado engraçado ou sério ou

46 até mesmo sagrado, estilos de roupa, padrões de vida, influências climáticas e outras relações com o meio ambiente. (STRAUBHAAR, 2004, p. 84-85)

A ideia de mercados linguístico-culturais proposta por Straubhaar (2004) ajuda- nos a entender, por exemplo, a parceria da Rede Globo com a Telemundo para a produção do remake de “Vale Tudo” (1988-1989, de Gilberto Braga e direção geral de Dennis Carvalho). Intitulada “Vale Todo”, a novela produzida para o público hispânico, nos EUA, foi gravada, no Brasil, em espanhol e foi ar em 17 de junho de 2002. Pensada exclusivamente para o mercado latino, a novela misturava atores brasileiros com mexicanos e a trilha sonora incluía desde Zezé de Camargo e Luciano até Lara Fabian numa tentativa de reunir “[...] o padrão de qualidade e o conteúdo mais sofisticado das nossas histórias e a incrível força dramática e folhetinesca dos melodramas latinos” (DUMONT, 2004, p. 115). Para Dumont (2004), responsável pela adaptação, o projeto significou meses de trabalho para apreender as principais características da teledramaturgia latina e realizar uma adaptação radical à cultura hispânica. A produção teve inúmeros pontos de conflito, entre eles: a introdução de temas e personagens que retratassem o cotidiano do público latino; os limites da sensualidade tão comuns nas histórias brasileiras; a diversidade de sotaques dos atores oriundos de diversos locais da América Latina; a estrutura narrativa e sua articulação com a trilha sonora, entre outros. Dentro desse cenário, é possível afirmar que o campo da telenovela continuará se modificando e as produções brasileiras continuarão ganhando novos territórios, não só de ficcionalidades – ou gêneros, mas novos espaços geográficos, num processo de intercâmbio que envolva cada vez mais países ao redor do mundo. No que diz respeito ao mercado linguístico-cultural latino-americano, a tendência é que novas trocas simbólicas sejam realizadas considerando a proximidade geográfica, linguística, artística e cultural desses países. Nesse mercado de trocas simbólicas, as telenovelas continuarão a ser um dos principais produtos de exportação da Tv brasileira por possibilitar, ainda que de forma superficial, a hibridização cultural latina.

47 3. “CHEIAS DE CHARME” NO BRASIL CONTEMPORÂNEO

Antes de iniciar a discussão sobre o nosso objeto de estudo, a telenovela “Cheias de Charme”, se faz necessária a realização de um esboço sobre o contexto em que essa determinada obra audiovisual foi concebida. Para entender sua temática, escolhas discursivas e sucesso de público se faz necessária uma contextualização sobre as suas condições de produção que envolvem o panorama político, econômico e social pelo qual passava o Brasil no momento de sua produção e veiculação. O seu ano de exibição foi o de 2012, período de euforia nacional e da proliferação de discursos sobre o crescimento da economia do país. Nos anos anteriores, o fortalecimento do cenário econômico brasileiro, frente à crise em outros países, como por exemplos os Estados Unidos, vinha ditando os rumos políticos nacionais a partir da consagração da mobilidade social, do crescimento financeiro de diversos setores produtivos e de algumas classes sociais. Em meio a essa onda de otimismo, destacamos a ocorrência da “nova” classe média, que ganhava cada vez mais destaque despertando o interesse de grandes empresários dos mais variados setores da economia. Pesquisas indicavam que mais da metade da população brasileira (IBOPE, 2010) já pertencia à classe média, o que significava a ascensão e mobilidade dos estratos sociais conhecidos como as classes D e E. Os “novos” emergentes, como foram denominados, saíram de suas respectivas classes sociais para comporem a “nova” classe média, se tornando assim, um símbolo da auto confiança nacional. Os discursos veiculados pelo Governo Federal estavam concentrados em celebrar essa “nova” classe média como a força econômica que alavancava o crescimento do país ressaltando, em grande medida, sua inserção no mercado de consumo e a aquisição de novos bens possibilitado pelo acesso às linhas de crédito. Modificaram-se assim, as relações de consumo de produtos e serviços no Brasil, que passou a ter a “nova” classe média como público alvo. As empresas e o mercado publicitário identificaram nesse estrato social um novo filão mercadológico no qual concentraram seus discursos. O mercado televisivo também se manteve atento a essas mudanças e começou a reformular sua grade de programação para atrair esse novo público consumidor. O nosso objeto de estudo é fruto de um esforço da Rede Globo de Televisão em produzir programas com o objetivo de atrair essa “nova” classe média com uma nova proposta de teleficção que inclui mudanças na temática, trilha sonora e estética.

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3.1. Discutindo a “nova” classe média brasileira Iniciamos a nossa discussão a partir de uma revisão sobre os conceitos de classe social que formaram o pensamento sociológico brasileiro e se tornaram importantes no entendimento da formação e estrutura social do Brasil. As classes sociais podem ser denominadas como grupos de pessoas com o mesmo status social, dessa forma, uma determinada classe pode ser entendida como um conjunto de agentes/sujeitos sociais que ocupam posições semelhantes dentro do tecido social. O conceito de classe é utilizado na classificação das sociedades e tem por objetivo estratificar, organizar e categorizar a população. O status social é definido a partir de categorias pré- estabelecidas que, em sociedades capitalistas, geralmente envolve aspectos econômicos como renda e poder de consumo. No que diz respeito às teorias que fundamentaram o pensamento sobre classe e a estratificação social brasileira, Antônio Guimarães (2002) ressalta a importância do pensamento marxista que pulverizou universalmente o conceito de classe social a partir de uma lógica que envolve o processo de produção e a aquisição do capital. Dessa forma, Marx acaba subtraindo de sua teoria aspectos não econômicos como gênero, etnia, raça, religião, nacionalidade entre outros, “Sua intenção era encontrar e analisar a relação de exploração entre capital e trabalho que fosse tipicamente capitalista” (p. 09). Centralizando sua teoria nas relações trabalhistas, para Marx as classes sociais estariam ligadas aos meios de produção e à divisão social do trabalho a partir da qual as sociedades estariam divididas entre os que detém os meios de produção e, consequentemente, são os donos do capital – classe dominante – e os trabalhadores, vendedores de sua força de trabalho e pertencentes à classe dominada. Dessa forma, a dicotomia senhores/trabalhadores permearia a luta de classes sobre a qual está fundamentada as sociedades capitalistas. Essas lutas de classe, consequência de uma eventual consciência de classe por parte dos trabalhadores, promoveria uma transformação social. A oposição entre a sociologia – influenciada pelo pensamento marxista – e a antropologia, pautou as discussões sobre as questões de classe no Brasil na década de 40 ressaltando a polarização entre os que acreditavam que “o conceito de ‘classe social’ era aplicado a qualquer sociedade humana, sendo um simples sinônimo para ‘camada social’” (GUIMARÃES, 2002, p.14), nesse caso os marxistas, e os que defendiam que esse conceito de classe reduzia as sociedades em aspectos modernos e capitalistas,

49 apagando, ou desconsiderando, outras formas de divisão social como as castas, por exemplo. Discussões como essa tomaram conta do universo acadêmico brasileiro até a década de 1960 quando o pensamento sociológico fortemente influenciado pelas ideias marxistas despontaram e fundamentaram os conceitos de classe que temos até hoje, como explica Guimarães (2002): Os anos 1960 assistiram ao avanço das teorias das classes e à consolidação da influência do marxismo, e de todas as formas de explicação estrutural, na Sociologia brasileira. A vontade de desenvolvimento econômico e social passou, cada vez mais, a vincular-se a uma expectativa de que as classes sociais (fosse o empresariado industrial, fosse o operariado nascente, fossem as classes médias) adquirissem a consciência necessária para assumir o que se pensava ser o seu papel histórico: quer a superação das oligarquias agrárias no poder, quer a implantação do socialismo. (p. 15-16)

Assim, o pensamento sociológico brasileiro se firmou na associação entre classe e renda, valorizando os indicadores sociais relativos à economia para nortear a estratificação e medir a mobilidade social. Refletindo sobre a gênese das classes sociais, Bourdieu (1989) propõe uma ruptura com o modelo economicista que pautou a estratificação social no mundo ocidental capitalista, ressaltando que o mundo social pode ser vivenciado e construído a partir de diferentes possibilidades. Outros princípios como etnia e nacionalidade, por exemplo, poderiam ser categorias de agrupamento social. No que diz respeito à classe média, seu conceito foi introduzido no ambiente acadêmico a partir dos estudos do sociólogo americano Wright Mills, que, na década de 1950, associou a classe média à expansão de empregos do “colarinho branco”9. Assim, a estrutura ocupacional determinaria a inclusão dos indivíduos em determinadas classes sociais. Nesse sentido, ter uma sociedade onde a maioria da população estaria situada na classe média, significaria um país mais desenvolvido, com melhores condições de emprego e bem estar social. De acordo com Quadros, Gimenez e Antunes (2013) a classe média brasileira se consolidou durante o Milagre Econômico ocorrido no período da Ditadura Militar (1964-1985) que teria sido marcado pelo excepcional crescimento econômico, dilatação dos empregos urbanos e simultânea ampliação do salário. Diferente da classe média americana e europeia – que contava com o Estado de bem- estar social, alto padrão de consumo e elevada renda per capita - “a brasileira foi

9 O termo “colarinho branco” está associado a trabalhadores assalariados que atuam em áreas administrativas, de gerenciamento ou burocráticas.

50 montada sobre o dinamismo econômico e a profunda desigualdade social que nos marcava àquele momento” (QUADROS, GIMENEZ, ANTUNES, 2013, p. 38). Já a “nova” classe média surgiu na formação da sociedade brasileira, oficialmente, em 2012, quando o Governo Federal utilizou um novo critério de classificação social no país. Baseado no grau de vulnerabilidade desenvolvido pelo Banco Mundial – que mede os riscos de um cidadão retornar à linha de pobreza em um período de cinco anos – e em indicadores da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (PNAD) do IBGE, a Secretaria de Assuntos Estratégicos da Presidência da República (SAE/PR) propôs um critério único de medição e definição da classe média brasileira.10Assim, chegou-se ao padrão de estratificação social com oito faixas de renda – Extremamente Pobre, Pobre, Vulnerável, Baixa Classe Média, Média Classe Média, Alta Classe Média, Baixa Classe Alta e Alta Classe Alta - sendo considerado classe média os brasileiros que possuem renda familiar per capita11 ente R$ 291 e R$ 1.019.

Figura 01 - Estratificação social e suas respectivas rendas

Fonte: Relatório SAE/PR

10De acordo com a cartilha “Perguntas e Respostas sobre a classe média”, publicada pelo SAE/PR, a grande quantidade de critérios para se medir a estratificação social brasileira através de outros métodos como o OCDE, Banco Mundial, Goldman Sachs, FGV, CNI, Critério Brasil, entre outros, foi o grande motivador para se criar uma comissão – composta por membros do Ministério da Fazenda, IBGE, Datapopular, FGV, USP, entre outros – que estabelecesse uma definição única de classe média e fosse utilizada como critério para medir as mudanças sociais que envolvem ascensão e queda da população no que diz respeito a renda. 11Renda per capita é um indicador que ajuda a entender o crescimento econômico de um país. Para saber a renda per capita de uma família, por exemplo, soma-se toda renda recebida e depois divide-se pelo número de membros, obtendo-se assim, a renda média por pessoa.

51 Os resultados obtidos a partir desse novo critério são resultados da consolidação de políticas públicas e de um plano de governo voltado para a assistência dos mais necessitados, combate à pobreza, valorização das classes populares e estabilidade econômica. Assim, em 10 anos a classe média brasileira cresceu vertiginosamente atingindo a marca de 53% da população – antes representava apenas 38% - totalizando 104 milhões de pessoas. Esse crescimento foi largamente comemorado pelo Governo Federal que atribuiu esse “fenômeno” ao movimento de mobilidade social que permitiu a ascensão de 29 milhões de brasileiros, o correspondente a uma taxa de 21% (SAE/PR, 2012). Porém, se para o Governo Federal os resultados do relatório do SAE são otimistas, os números parecem destoantes se comparados com os critérios de estratificação social do Critério Brasil. 12 Na figura abaixo, podemos perceber a diferença na linha de corte nas faixas salariais apresentadas pelos dois critérios.

Figura 02 - Comparação entre os dados do SAE e do Critério Brasil

Fonte: Relatório SAE/PR Assim, as questões de classe voltaram a fomentar os discursos em torno da formação social brasileira e se tornaram pauta nas mais importantes discussões envolvendo economistas, sociólogos, políticos e mídia. As opiniões divergem com relação à existência e legitimação da “nova” classe média presente agora no cenário

12O Critério Brasil é usualmente utilizado pelas empresas de pesquisa como fonte no que diz respeito à divisão social da população brasileira. A partir dele convencionou-se, durante anos, a distribuição da população brasileira entre as classes A, B, C, D e E.

52 nacional. Para o Governo Federal, ela é o reflexo da estabilidade econômica do país e consolidação das pautas ideológicas e governamentais do PT que, durante os dois mandatos do ex-presidente Luís Inácio Lula da Silva (2003-2010) e tendo continuidade no mandato de Dilma Rousseff (2011-atualmente), impulsionou a retomada do crescimento econômico nacional o que gerou a reativação do trabalho formal, novas oportunidades de emprego, aumento do salário mínimo, programas de benefícios assistenciais e expansão do crédito possibilitando um aumento do consumo das classes populares (QUADROS, GIMENEZ, ANTUNES, 2013). Esse discurso é fomentado pela mídia e pela publicidade que encontrou nos “emergentes” um novo filão de mercado e um potencial público consumidor. Na direita de oposição, porém, ressalta-se que Lula recebeu o país com as reformas neoliberais que foram implementadas na década de 90 pelos ex-presidentes Fernando Collor de Mello (1990-1992) e Fernando Henrique Cardoso - FHC (1995-2002), o que permitiu a continuidade da política macroeconômica que já estava sendo realizada no país em especial à do segundo mandato de FHC, como afirma Filgueiras (2010): A orientação neoliberal e a política macroeconômica teriam tornado o capitalismo brasileiro mais competitivo, estabelecendo novas condições para o crescimento econômico. (...) Em resumo: segundo essa visão, apesar de algumas escorregadelas do governo Lula – em especial o aumento dos gastos correntes e o uso exagerado e político das empresas estatais e dos bancos públicos -, a manutenção das reformas neoliberais e da mesma política macroeconômica, associadas a um novo ciclo da economia mundial, teria permitido um desempenho melhor da economia brasileira. (p. 36)

Se há discordâncias quanto ao real impacto do crescimento econômico do Brasil no Governo Lula, Magalhães (2010) afirma ser consenso o destaque dado aos programas sociais que possibilitaram a mobilidade econômica e o aumento no número de consumidores em especial com o Programa Bolsa Família (PBF). Criado em 2003 durante o primeiro mandato do ex-presidente Lula, o PBF é um programa de transferência de renda condicionada que unificou os programas Bolsa Escola (2001), Vale-Gás (2001) e Bolsa Alimentação (2003) criados originalmente no governo de Fernando Henrique Cardoso. Sob a organização do Ministério do Desenvolvimento Social e Combate à Fome, o benefício que o Programa Bolsa Família paga para famílias de baixa renda e extrema pobreza pode variar entre R$ 35,00 e R$ 175,00. Para receber esses valores, as famílias devem possuir renda per capita de no máximo R$154,00 e ter entre seus membros crianças e adolescentes de até 17 anos ou gestantes. Porém, os

53 brasileiros que estão abaixo da linha da pobreza extrema com renda de até R$ 77,00 por pessoa, podem receber o benefício independente da existência de crianças, adolescentes e gestantes.13 Como contrapartida as crianças devem estar assiduamente frequentando a escola, com o cartão de vacina preenchido e, no caso de gestantes, os exames de pré- natal devem ser realizados periodicamente. Em 2013 no Brasil havia cerca de 13,8 milhões de domicílios sendo beneficiados pelo programa,14 o que torna o Bolsa Família um dos maiores responsáveis pela mobilidade social, pelo resgate monetário de pessoas da extrema pobreza e, juntamente com outras medidas mencionadas anteriormente, pelo crescimento do consumo no país. Em boa medida, o ideal de mobilidade social e de crescimento da classe média brasileira foi construído a partir do discurso do consumo, das possibilidades de escolha e da capacidade econômica de possuir. Para Bauman (2000), não é possível falar na história humana em uma comunidade que não tenha sido de consumo. Em menor ou maior escala todas as sociedades são de consumo porque é impossível ao ser humano viver sem consumir algo, ainda que esta relação esteja pautada na simples troca de mercadorias. A diferença, para o autor, é que as sociedades pós-modernas estão reguladas pela obrigatoriedade do consumo em detrimento de sua necessidade, ou como ele mesmo aponta: “(...) a regra que lhes exige é a de ter capacidade e vontade de consumir”15 (p. 44, tradução nossa). Consumir significa em primeira instância satisfazer as necessidades e os desejos através dos objetos, se apropriar deles para em seguida descartá-lo dando lugar a novos desejos e bens de consumo que são em certa medida temporários e transitórios. Os índices de consumo são dessa forma, nas sociedades pós- modernas, os principais indicadores de crescimento econômico, como aponta Bauman (2000): Se acredita que o ‘crescimento econômico’ é a medida moderna de que as coisas estão em ordem e seguem o seu curso, o maior índice de que uma sociedade funciona como deveria, depende, na sociedade de consumidores, nem tanto da ‘força produtiva do país’ (uma força de trabalho saudável e abundante, com cofres cheios e empreendimentos

13Informações retiradas do site da Caixa Econômica Federal, órgão pagador e operador do benefício do Bolsa Família. Disponível em Acessado em: 25/09/2014. 14MACEDO, Danilo. Bolsa família completa dez anos beneficiando 50 milhões de pessoas. Agência Brasil. Disponível em http://memoria.ebc.com.br/agenciabrasil/noticia/2013-10-20/bolsa-familia- completa-dez-anos-beneficiando-50-milhoes-de-pessoas Acessado em: 25/09/2014. 15“(...) la norma que les impone, la de tener capacidad y voluntad de consumir”

54 audazes por parte dos possuidores e administradores do capital) como do fervor o do vigor de seus consumidores16. (pg. 48, tradução nossa)

Entre os estudiosos e críticos brasileiros, as opiniões apontam para a necessidade de uma melhor reflexão sobre os critérios utilizados para a definição das classes sociais, que estariam, nesse caso, privilegiando apenas os aspectos econômicos em detrimento dos valores imateriais que também colaborariam na reprodução das classes sociais. Somam-se a isso, críticas referentes à linha de corte que dimensionou a classe média em salários muito baixos o que geraria uma dilatação nesse grupo social, como explicam Quadros, Gimenez e Antunes (2013): “Um exemplo disso é o fato de 64% das empregadas domésticas, piso do mercado de trabalho urbano, serem incluídas na classe média; outro é 54% dos chefes de família sem escolaridade ou com fundamental incompleto serem de classe média” (pg. 36). Entre os críticos da “nova” classe média brasileira está o sociólogo Jessé Souza para quem esse novo grupo social estaria no meio de polarizações críticas envolvendo o que ele chama de marxismo enrijecido e liberalismo economicista. Para o autor, as distorções da realidade nacional são tanto da direita quanto da esquerda e que tanto o “liberalismo dominante” quanto o “marxismo dominado” estão cegos quanto a verdadeira “novidade” do Brasil. Souza J. (2012), parte do princípio que as antigas classificações teóricas envolvendo a definição marxista de classe social – que vincula classe ao meio de produção e a uma “consciência de classe” que seria o produto do lugar econômico – e o pensamento neoliberal – que define as classes sociais a partir da renda diferencial dos indivíduos – não estariam em consonância com as novas necessidades do mundo contemporâneo e que, por isso, precisariam ser atualizadas e repensadas a partir do intercruzamento com outros conceitos que ampliem o seu entendimento para outros aspectos além dos estritamente econômicos. Nesse sentido, a tentativa de “encaixar” a sociedade brasileira em teorias e conceitos que, não são mais suficientes para explicá-la, geraria para o autor divergências no modo de pensar a atual situação do Brasil, professando os “emergentes” como o símbolo da nova autoconfiança no futuro.

16“Se piensa que el ‘crecimiento económico’, la medida moderna de que las cosas están en ordem y siguen su curso, el mayor índice de que una sociedad funciona como es debido, depende, en uma sociedad de consumidores, no tanto de la ‘fuerza productiva del país’ (una fuerza de trabajo saludable y abundante, com cofres repletos y emprendimientos audaces por parte de los poseedores y administradores del capital) como del fervor y el vigor de sus consumidores.”

55 Nossa pesquisa empírica e teórica demonstrou que isso é mentira. Mas as ‘mentiras’ da ideologia e da violência simbólica dominante não são simples mentiras, e sim ‘meias-verdades’. Elas são também verdade porque de algum modo se referem a mudanças reais. São mentira, por outro lado, porque essas mudanças reais são todas interpretadas de modo distorcido, sem conflitos e sem contradições. Sua função não é esclarecer o que acontece, mas reforçar o domínio do novo tipo de capitalismo que tomou o Brasil e o corpo e a alma de toda a sua população [...] Com isso naturaliza-se a sociedade tal como ela se apresenta e se constrói a violência simbólica necessária para sua reprodução. (SOUZA J., 2012, pg. 21)

Nesse sentido, na contemporaneidade, falar em “nova” classe média brasileira seria, para Souza (2012), escamotear desigualdades e problemas sociais que são históricos e ocultar o processo de dominação e opressão às quais foram submetidas as classes populares durante anos. A entrada de milhares de “emergentes” na classe média não lhes garante os direitos básicos como educação, saúde, transporte e segurança que foram gradativamente conquistados pela classe média tradicional. A violência simbólica estaria justamente em reproduzir um discurso otimista que esconde e/ou distorce a realidade vivida. Para o autor, a realidade estaria em pensar as classes sociais muito além dos seus indicadores econômicos, ressaltando também seus aspectos imateriais que envolvem a transferência de capital cultural, como ele afirma: “O ‘segredo’ mais bem guardado de toda sociedade é que os indivíduos são produzidos ‘diferencialmente’ por uma ‘cultura de classe’ específica” (p. 22). Essa “cultura de classe”, apontada por Souza (2012), pode ser pensada a partir dos conceitos de capital cultural e habitus elaborados por Bourdieu. O capital cultural para o autor seria, junto com o capital econômico, um dos princípios de diferenciação entre as classes e um dos critérios definidores da distribuição de posições sociais. O capital cultural seria formado pelo conhecimento técnico e escolar adquirido e herdado. Já o habitus, pode ser entendido como princípio gerador e organizador de práticas e de representações, é o que permite, no campo simbólico, a existência de determinados grupos sociais. O habitus, segundo Bourdieu (1996a), é o que garante a tomada de decisões que irá posicionar o agente socialmente, proporcionando-lhe práticas sociais distintas. Estando ligado ao gosto, o habitus está relacionado a um estilo de vida próprio de determinada classe ou grupo social, como afirma o autor: “Segue-se que os agentes têm tanto mais em comum quanto mais próximos estejam nessas duas dimensões, e tanto menos quanto mais distantes estejam nelas.” (BOURDIEU, 1996a, p.19)

56 Esses conceitos então se apresentam como mecanismos de diferenciação de classe que vão além do quesito renda. Para Souza (2012), é a partir dessa perspectiva que falar em “nova” classe média se torna problemático. Para o autor, esses mecanismos de diferenciação é que irão garantir não só a gênese, mas principalmente a reprodução das classes sociais. Assim, o capital cultural e o habitus devem também ser considerados nos estudos sobre classe social, sendo para Souza J. (2012) um dos principais critérios de diferenciação entre a “nova” classe média e a classe média tradicional. [...] a realidade cotidiana dessa classe, ou seja, sua visão de mundo “prática” - que se materializa em ações, reações, disposições de comportamento e, de resto, em todo tipo de atitude cotidiana concreta consciente ou inconsciente – não tem a ver com o que se entende por “classe média”, na tradição sociológica, em nenhum sentido importante. Ainda que “classe média” seja um conceito vago (e, exatamente por conta disso, excelente para todo tipo de ilusão e de violência simbólica que se passa por “ciência”), ela implica, em todos os casos, um componente “expressivo” importante, e, consequentemente, uma preocupação com a “distinção social”, ou seja, com um estilo de vida em todas as dimensões que permita afastá- la dos setores populares e aproximá-las das classes dominantes. Aqui não se trata de “renda”, já que efetivamente pode-se ter uma renda relativamente alta e uma condução de vida típica das classes populares. Associar classe à renda é “falar” de classes, esquecendo-se de todo o processo de transmissão afetiva e emocional de valores, processo invisível, visto que se dá na socialização familiar, que constrói indivíduos com capacidades muito distintas [...] O fato é que acreditamos estar diante de um fenômeno social e político novo e muito pouco compreendido [...] o da constituição não de uma “nova classe média”, mas sim de uma “nova classe trabalhadora” no nosso país, nas últimas décadas. (SOUZA J., 2012, pg. 46-47)

Assim, para o autor, esses novos “emergentes” estariam muito mais próximos de uma “nova classe trabalhadora” do que de uma “nova” classe média. Os valores, gostos e opções de vida desse grupo são destacados por Souza J. (2012) como características típicas que os diferem da classe média tradicional, como por exemplo: sem acesso ao capital cultural e/ou econômico, possui dupla jornada de emprego e estudos, confiança em si mesmo, emergência do “capital familiar” que valoriza exemplos de trabalho duro e ética, comunitária e não individualista, uma extraordinária capacidade de poupança e de empreendedorismo.

3.2. Classe, trabalho e identidade A discussão anteriormente realizada sobre a “nova” classe média nos leva a uma reflexão que obrigatoriamente perpassa pelo conceito de identidade. Refletindo sobre as características e critérios que incluem ou excluem um cidadão de uma determinada

57 classe social um questionamento nos ocorre: Quais os elementos que podem nos levar a uma distinção de classe? Em uma tentativa de responder ou ao menos amenizar essa problemática, recorremos a um referencial teórico que nos ajude a dar conta de questões que envolvem as diversas perspectivas teóricas sobre identidade e a emergência de novos atores sociais nas sociedades pós-modernas. As discussões contemporâneas tem colocado a questão da identidade como central para a compreensão do sujeito pós-moderno, no entendimento de como ele enxerga a si mesmo e ao outro, no sentimento de pertencimento a determinado grupo social e na sua representação através dos meios de comunicação de massa. No que diz respeito às questões identitárias o indivíduo da pós-modernidade se diferencia, de acordo com Hall (2000), do sujeito do Iluminismo e do sujeito sociológico. A centralização do ser a partir de uma perspectiva do indivíduo unificado, com razão e consciência, no centro da ação, com uma visão individualista do sujeito e de sua identidade está ligada à perspectiva do Iluminismo que antecedeu a emergência do sujeito sociológico, que se apresenta com uma visão mais comunitária entendendo a importância da relação com os outros para o enfrentamento da complexidade do mundo moderno. A identidade nesse caso era composta pela interação do “eu” particular com a sociedade, como aponta Hall: “era formado na relação com ‘outras pessoas importantes para ele’, que mediavam para os sujeitos os valores, sentidos e símbolos – a cultura – dos mundos que ele/ela habitavam” (HALL, 2000, p. 11). O sujeito contemporâneo, identificado por Hall como pós-moderno, se apresenta como um indivíduo fragmentado, descentralizado, com múltiplas identidades e fruto de mudanças estruturais significativas de um novo mundo em colapso. Na contemporaneidade “a identidade plenamente unificada, completa, segura e coerente é uma fantasia.” (HALL, 2000, p. 13). De acordo com Woodward (2009) a estabilidade social que produzia identidades fixas e centralizadas foi substituída pelo momento histórico em que vivemos, marcado por mudanças sociais, pela instabilidade pós- moderna, “pelo colapso das velhas certezas e pela produção de novas formas de posicionamento” (p. 25). Essas mudanças rápidas, constantes e permanentes são apontadas por Hall (2000) como consequência, em boa medida, da globalização que a partir da compressão espaço-tempo criou uma aldeia global integrando e conectando comunidades, colocando em cheque as identidades nacionais e consequentemente as individuais.

58 A transição histórica para a modernidade promoveu ainda mudanças significativas na relação do homem com a sua forma de trabalho. Para Bauman (2000), os conceitos de identidade e trabalho sempre estiveram intrinsecamente relacionados, chegando a, em um determinado momento histórico, serem confundidos. Nas sociedades pré- industriais a identidade social do sujeito era construída a partir da sua colocação no processo de produção, ou seja, do seu trabalho que iria também indicar o seu posicionamento social. O ofício do indivíduo confundia-se com sua identidade, sendo ele, conhecido pelo trabalho que desempenhava como ferreiro, artesão ou ourives, por exemplo. Essa identidade social era extensiva também ao seu grupo familiar, uma vez que as atribuições trabalhistas eram passadas de pai para filho permanecendo como um ofício de família, como afirma o autor: “Uma vez escolhida, a identidade social podia construir-se de uma vez e para sempre, para toda a vida, e, ao menos em princípio, também deviam definir-se a vocação, o posto de trabalho, as tarefas para toda uma vida” (p. 49, tradução nossa)17 A Revolução Industrial insere nas sociedades modernas, não apenas novas formas de trabalho, mas uma nova ética trabalhista que começa a tensionar a relação entre trabalho e identidade. O indivíduo agora é estimulado a uma autoconstrução que implica no ideal de mobilidade social a partir do rompimento com as categorias sociais nas quais havia nascido. O ofício de família passou a ser substituído pelo trabalho operário e passando a ser descolado de sua identidade. Havendo deixado para trás a “pré-modernidade” – os mecanismos tradicionais de posição social por mecanismos de ascensão, que condenavam a homens e mulheres a “apegar-se a sua classe”, a viver segundo os modelos (mas não acima deles) fixados para a ‘categoria social” em que haviam nascido -, a modernidade atribuiu ao indivíduo a tarefa de sua “autoconstrução”: elaborar a própria identidade social, se não do zero, ao menos desde os seus fundamentos. A responsabilidade do indivíduo – antes limitada a respeitar as fronteiras entre ser um nobre, um comerciante, um soldado mercenário, um artesão, um camponês arrendatário ou um peão rural – se ampliava até chegar à própria escolha de uma posição social, e o direito de essa posição será reconhecida e aprovada pela sociedade. (BAUMAN, 2000, p. 49, tradução nossa)18

17“Una vez elegida, la idendidad social podia construirse de una vez y para siempre, para toda la vida, y, al menos en principio, también debían definirse la vocación, el puesto de trabajo, las tareas para toda una vida” (p. 49) 18Habiendo dejado atrás la “premodernidad” – los mecanismos tradicionales de ubicación social por mecanismos de adscripción, que condenaban a hombres y mujeres a “apegarse a su clase”, a vivir según los estándares (pero no por encima de ellos) fijados para la “categoría social” em que habían nacido -, la modernidad cargo sobre el individuo la tarea de su “autoconstrucción”: elaborar la própria identidad social, si no desde cero, al menos desde sus cimientos. La reponsabilidad del individuo – antes limitada a respetar las fronteras entre ser un noble, un comerciante, un soldado mercenário, un artesano, um

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As identidades fixas, centralizadas, organizadas e orientadas pelo trabalho, e pelo posicionamento social e familiar sofrem um abalo com as novas configurações do mundo moderno e se intensificam com as demandas da pós-modernidade. Bauman (2000) destaca não só o rompimento com os ofícios familiares, mas principalmente a instabilidade do mercado de trabalho. O trabalho familiar, hereditário, permanente e “para toda vida” foi substituído pela instabilidade, flexibilidade e concorrência que impedem a construção da identidade a partir do pilar laboral. As velhas profissões não mais dão conta das exigências das sociedades e precisam ser revistas, assim como também é revisto o conceito de identidade a partir de uma nova perspectiva. Sob a lógica da pós-modernidade, ou modernidade tardia como nomeia Hall (2000), as sociedades sofrem mudanças mais intensas e profundas do que em outros períodos, com práticas de vida altamente reflexivas em sintonia com o mundo globalizado e a existência de um único centro – tido como organizador social – foi deslocado e cedeu lugar para a emergência de vários eixos centrais. Pode-se argumentar que um dos centros que foi deslocado é o da classe social, não a classe como uma simples função da organização econômica e dos processos de produção, mas a classe como um determinante de todas as outras relações sociais: a classe como a categoria ‘mestra’, que é como ela é descrita nas análises marxistas da estrutura social (WOODWARD, 2009, pg. 29)

Porém, ao invés de apontar para um possível caos, o estudo das identidades na pós-modernidade nos direciona para novas possibilidades que indicam a emergência de novos atores sociais a partir da reconfiguração das estruturas sociais. Essas novas identidades que emergiram a partir das novas configurações econômicas, políticas e sociais desestabilizaram as velhas identidades colocando no cenário mundial novas demandas e novas discussões como a da “nova” classe média brasileira, por exemplo. Woodward (2009) nos apresenta duas perspectivas teóricas a partir das quais o conceito de identidade pode ser debatido, são elas: a visão essencialista e a não essencialista. Na primeira perspectiva é defendida a ideia de que cada grupo possui características próprias que formam a sua identidade, ou seja, um conjunto autêntico que lhe legitima e garante sua existência. A reivindicação de uma identidade verdadeira é baseada no resgate de caracteres biológicos e no retorno histórico a um passado que lhe afirme como tal, como no caso das identidades nacionais, por exemplo. Também podem campesino arrendatario o un peón rural – se ampliaba hasta llegar a la elección misma de una posición social, y el derecho de que esa posición fuera reconocida y aprobada por la sociedad. (p. 49)

60 ser colocadas em pauta questões que envolvem raça e etnia. Assim, a abordagem essencialista sobre identidade envolve a discussão “sobre quem pertence e quem não pertence a um determinado grupo identitátio, nas quais a identidade é vista como fixa e imutável.” (p. 13) A segunda concepção de identidade cultural é aquela que a vê como “uma questão tanto de ‘tornar-se’ quanto de ‘ser’”. Isso não significa negar que a identidade tenha um passado, mas de reconhecer que, ao reivindicá-la, nós a reconstruímos e que, além disso, o passado sofre uma constante transformação (WOODWARD, 2009, pg. 28)

Nessa perspectiva não-essencialista, ou construcionista, a identidade é entendida como fluida e mutável, passível de mudanças através dos tempos. No entanto, isso não significa descartar sua construção histórica ou apagar seus traços biológicos, mas assumir a complexidade do sujeito pós-moderno. Essa complexidade indica também que as identidades não são únicas, ao contrário, um mesmo sujeito pode compartilhar várias identidades diferentes que coexistem muitas vezes de forma contraditória. Assumimos identidades diferentes nas mais diversas ocasiões, e essas diversas identidades exigem muitas vezes posicionamentos diferentes em diversos lugares. Considera-se também a identidade como uma construção que pode ser repensada, reconfigurada e reconstruída ao longo da história.

3.3. Trabalho doméstico: perspectiva histórica e contemporânea No Brasil, o trabalho doméstico é uma das principais portas de entrada das mulheres no mercado de trabalho, principalmente para um grupo específico composto por mulheres negras, com baixa escolaridade ou em situação de vulnerabilidade. De acordo com relatório19 da DIEESE (2013) - Departamento Intersindical de Estatística e Estudos Socioeconômicos - o Brasil possuía em 2011 cerca de 6,6 milhões de trabalhadores domésticos, sendo desse montante 92,6% do sexo feminino, cerca de 6,1 milhões. Esses dados apontam, não só para o imenso volume de trabalhadores domésticos no Brasil (principalmente do sexo feminino), como também para a importância desse tipo de serviço para a economia nacional. Presente na sociedade brasileira desde o período colonial, o serviço doméstico traz as marcas da escravidão, de uma população pouco escolarizada e com dificuldades de

19Relatório elaborado a partir de fontes de dados do PNAD (IBGE) – comparativo de 2004 a 2011; Pesquisa de Emprego e Desemprego (PED) realizada pelo DIEESE, Fundação Seade, MTE (Ministério do Trabalho e Emprego), e convênios em Salvador, Belo Horizonte, São Paulo, Porto Alegre, Recife e Fortaleza em 2012.

61 inserção no mercado de trabalho. Durante séculos, foram lentos os avanços no que diz respeito à valorização e regulamentação da profissão. No entanto, nos últimos anos, esforços tem sido empreendidos para estabelecer critérios de definição, além de direitos e deveres do empregado e do empregador. O primeiro passo empreendido pelo Ministério do Trabalho e Emprego (MTE) é definir e caracterizar o trabalhador doméstico e sua atividade, assim definidos: Considera-se empregado(a) doméstico(a) aquele(a) maior de 16 anos que presta serviços de natureza contínua (freqüente, constante) e de finalidade não lucrativa à pessoa ou à família, no âmbito residencial destas. Assim, o traço diferenciador do emprego doméstico é o caráter não-econômico da atividade exercida no âmbito residencial do(a) empregador(a). Nesses termos, integram a categoria os(as) seguintes trabalhadores(as): cozinheiro(a), governanta, babá, lavadeira, faxineiro(a), vigia, motorista particular, jardineiro(a), acompanhante de idosos(as), entre outras. O(a) caseiro(a) também é considerado(a) empregado(a) doméstico(a), quando o sítio ou local onde exerce sua atividade não possui finalidade lucrativa. (MTE, 2012, p. 04)

Historicamente, o serviço doméstico está relacionado à divisão sexual do trabalho tendo, no Brasil, origem nos tempos da escravidão, onde as escravas negras eram separadas para o serviço do lar. Inseridas no ambiente doméstico, elas modificaram a forma de organização das casas, a economia produtiva da indústria caseira, o modo de viver dos colonos e consequentemente sua intimidade. Separadas para o serviço manual, as escravas do lar se ocupavam do asseio e limpeza das residências, cuidado com as vestimentas, alimentação e fabricação de produtos e utensílios para cozinha. Desse trabalho resultou o que Algranti (1997) considera “um preconceito próprio das sociedades escravistas, em relação ao trabalho manual, que se impôs lentamente conforme aumentou o número de escravos africanos” (p. 143). Apesar de desprezado, o trabalho manual do escravo doméstico foi fundamental para o desenvolvimento e subsistência das famílias no Brasil Colonial, principalmente na produção da indústria caseira, uma vez que a escassez de produtos foi marcante nesse período. Algranti (1997) ressalta essa importância ao observar que, não apenas os grandes latifúndios rurais possuíam escravos, mas também as propriedades urbanas inclusive as de pequenas posses. A separação das escravas negras para o serviço doméstico estava baseada na segregação trabalhista baseada no gênero, onde o trabalho da escala reprodutiva (cuidados com a casa e os filhos) era realizado por mulheres e os da escala produtiva por homens. Dessa forma, as escravas serviam como mucamas, amas de leite,

62 costureiras, aias, cozinheiras e faxineiras. O trabalho braçal doméstico era considerado um atributo “natural” das mulheres, sendo portanto, desnecessário treinamento, escolarização ou qualificação formal. Como ofício naturalmente feminino – principalmente de negras escravas - e sem geração de renda econômica para os lares, o trabalho doméstico foi historicamente subvalorizado e invisibilizado. Dessa forma, a divisão racial e de gênero se tornou um dos principais elementos de desigualdade na América Latina, principalmente no que diz respeito ao trabalho braçal não remunerado – destinado a negros escravos – em contraposição ao trabalho não braçal e assalariado destinado aos brancos (MORI, BERNARDO-COSTA e FLEISCHER, 2011). Em Casa Grande e Senzala, Gilberto Freyre (2003) destaca não só a importância da escrava doméstica para o serviço do lar como também para a constituição das famílias no início do Brasil colonial. A colonização significou um grande contingente de homens brancos em terras brasileiras, porém, poucas moças brancas e de “família” para casarem-se. Nessa conjuntura, a escrava negra se apresentou como excelente “companheira” para os colonos, como afirma o autor: “Vieram-lhe da África ‘donas de casa’ para seus colonos sem mulher branca.” (p. 391). Freyre destaca ainda que algumas cidades foram povoadas por famílias de mulatos, nascidos da união entre senhores brancos e negras escravas. Ao citar o capitão inglês Richard Burton, Freyre ressalta que o viajante observou que no litoral os colonos ainda encontravam mulheres brancas para se casar, porém no interior, com as dificuldades, o “mulatismo tornara-se um ‘mal necessário’” (p. 390), a exemplo de Minas Gerais: Foram essas Minas e as Fulas – africanas não só de pele mais clara, como mais próximas, em cultura e “domesticação” dos brancos – as mulheres preferidas, em zonas como Minas Gerais, de colonização escoteira, para “amigas”, “mancebas” e “caseiras” dos brancos. Ilustres famílias daquele Estado, que ainda hoje guardam traços negroides, terão tido o seu começo nessa união de brancos com negras Minas, vindas da África como escravas, mas aqui elevadas à condição, segundo o testemunho de Vaía Monteiro, “de donas de casa”. Outras terão permanecido escravas, ao mesmo tempo que amantes de senhores brancos: referidas como “mucamas” e “cozinheiras”. (FREYRE, 2003, p. 389)

Os relatos apresentados por Freyre ressaltam a importância da escrava doméstica para a constituição da família brasileira. Como escravas, as negras da casa eram obrigadas a servir o seu senhor não só na cozinha mas também na cama, sendo esse fator um dos responsáveis no critério de compra das mulheres, como afirma Freyre a partir de recortes do Diário de Pernambuco, os senhores preferiam negras “ ‘bonitas de

63 cara e de corpo’ (...) O que demonstra ter havido seleção eugênica e estética de pagens, mucamas e molecas para o serviço doméstico – as negras mais em contato com os brancos das casas-grandes” (p. 396 – 397). A constante relação de homens brancos com suas escravas negras ampliou a opressão e a situação de vulnerabilidade dessas mulheres que, além de escravizadas por sua condição racial, sofriam também a opressão sexual do gênero. Dessa relação, perpetuou-se na cultura brasileira o mito da erotização das escravas, e consequentemente das trabalhadoras domésticas que teriam dado continuidade à prática de manter relações sexuais com seus patrões e iniciar sexualmente os filhos da família. Freyre (2003) é enfático ao afirmar que “Não há escravidão sem depravação sexual. É da essência mesma do regime.” (p. 399), assim a erotização do escravo servia aos interesses dos colonos da mesma forma que as negras domésticas serviam à ociosidade de seus donos. A abolição da escravatura em 1888 longe de significar de fato uma liberdade, trouxe para a população negra uma enorme situação de vulnerabilidade. Rios e Mattos (2004) destacam que o sentido da abolição foi apreendido de forma diferenciada pelos escravos dependendo da situação em que se encontravam, como afirmam as autoras: “Em termos concretos, a liberdade alcançada com o fim legal da escravidão teve significados diferentes para ex-escravos urbanos e rurais, com habilitações profissionais ou de ‘roça’, homens ou mulheres”. (p. 173) Para uma parcela significativa de escravos – principalmente os domésticos – a abolição significou a ausência de um lar para onde ir e a falta de qualificação para trabalhar em outro ofício que não fosse o serviço nas casas de seus senhores. Assim, a permanência nos lares onde foram escravas, trabalhando em troca de abrigo e comida ou por uma remuneração bem abaixo do que valiam os seus serviços, era a única opção viável para milhares de ex-escravas. Dessa forma, mantem- se durante séculos no Brasil o tripé a dominação que envolve a opressão de gênero, raça e classe vivenciado, antes pelas escravas, e hoje pelas trabalhadoras domésticas. Atualmente, o serviço doméstico no Brasil continua sendo realizado predominantemente por mulheres negras, dados apontam que entre 2004 e 2011 o número de afrodescendentes nesse tipo de serviço aumentou de 56,9% para 61%, enquanto que, entre mulheres não negras diminuiu 4,1% (DIEESE, 2013). O alto número de mulheres negras está associado à origem escravocrata do trabalho doméstico e às suas dificuldades históricas que envolvem falta de escolarização, pobreza e dificuldade de inserção no mercado de trabalho. A escolaridade é um dos fatores mais

64 importantes nesse perfil ao apontar que a maioria das domésticas são alfabetizadas sem escolarização ou com nível fundamental incompleto, cerca de 48,9% em 2011. No entanto, comparativamente os dados apontam para melhorias com um crescimento de 7,7% entre as que possuem ensino médio completo e superior incompleto. Apesar dos dados estatísticos apontarem para uma melhoria nas condições de trabalho, a informalidade e a precariedade ainda são uma marca do serviço doméstico no Brasil. Ainda que novas leis incentivem a regulamentação da profissão, a informalidade continua acima do tolerável o que faz com que os profissionais desse setor trabalhem sem seus direitos garantidos, tornando o serviço doméstico “como o lugar do não-prestígio, da não-cidadania, do não-direito, da não-pessoa” (MORI, BERNARDINO-COSTA e FLEISCHER, 2011, p. 16). Ainda de acordo com o DIEESE, entre 2004 e 2011 houve uma diminuição no número de trabalhadoras sem carteira assinada, de 57% em 2004 para 44,9% em 2011, porém, observa-se que o índice continua alto com quase metade dos trabalhadores domésticos atuando na informalidade. Entre as diferentes regiões do país também é possível notar discrepâncias, o Sudeste e o Sul, por exemplo, possuem um menor número de trabalhadores domésticos sem carteira assinada, por outro lado, há um maior número de diaristas. No Norte e Nordeste, no entanto, estão os piores índices no que diz respeito à contribuição ao INSS – Instituto Nacional do Seguro Social. Ainda de acordo com o DIEESE é possível observar mudanças na faixa salarial do setor que apresentou um certo aumento na última década acompanhando as mudanças salariais do brasileiro em geral. Principais avanços nas Leis trabalhistas: A primeira iniciativa de regulamentar o serviço doméstico foi através da Lei n° 5.859 de dezembro de 1972 cujo objetivo era conceituar o trabalho realizado no setor e incluí-lo em alguns aspectos do direito trabalhista como as férias anuais e a carteira de trabalho assinada. Em 1988, com a Constituição Federal, esses direitos foram ampliados a partir do artigo 7° que garantia a obrigatoriedade de pagamento do salário mínimo, 13° salário, aviso prévio, aposentadoria, entre outros. No entanto, o trabalhador doméstico ainda não estava coberto pelos outros direitos que eram garantidos aos demais trabalhadores urbanos e rurais. Em 2001 a Medida Provisória 10.208 garante ao trabalhador doméstico a contribuição ao FGTS (Fundo de Garantia por Tempo de Serviço) de forma facultativa. Já a Lei 11.324/2006 vem para alterar alguns artigos da Lei 5.859 e garantir estabilidade

65 para gestantes, 30 dias corridos de férias e a proibição de descontar alimentação, moradia e produtos de higiene utilizados em serviço (MTE, 2012). Em abril de 2013 é promulgada a PEC 66/2012, popularmente conhecida como PEC das Domésticas. A Proposta de Emenda Constitucional do artigo 7° da Constituição Federal traz a equiparação dos direitos trabalhistas entre os empregados domésticos e os demais trabalhadores urbanos e rurais. Originalmente os trabalhadores domésticos eram cobertos por apenas nove incisos do artigo, sendo deixados de fora direitos importantes. Com a PEC, eles passam a gozar do estabelecido nos 34 incisos presentes no artigo. As principais mudanças incluem jornada de trabalho de 8 horas diárias e 44 hs semanais, pagamento de hora extra, ofício considerado insalubre e perigoso sendo vedado a menores de 18 anos, seguro por acidente de trabalho, adicional noturno, vínculo trabalhista para quem trabalha 2 dias ou mais na mesma residência, FGTS obrigatório, entre outros. Apesar de reconhecer a necessidade de garantia dos direitos trabalhistas para os empregados domésticos, a PEC gerou algumas discussões principalmente entre os empregadores, composto principalmente pela classe média tradicional, que alegam impossibilidade financeira para o pagamento de todos os direitos exigidos por Lei, uma vez que o serviço doméstico é caracterizado pela falta de lucratividade do patrão. Questionou-se ainda se a aprovação da Proposta incentivaria a informalidade ou aumentaria o número de desempregados no setor, visto que a formalização aponta não só para direitos conquistados mas também para novos deveres dos empregados, entre eles, a qualificação profissional.

3.4. O espaço social de construção da telenovela Ao propor o estudo da telenovela é necessário, ao pesquisador, compreender e analisar o espaço social no qual ela está inserida. Deve-se dessa forma estar atento aos padrões de produção e aos diversos elementos internos e externos que interferem direta ou indiretamente no produto final. Como organismo vivo, atual e conectado às formações sociais do seu momento histórico, a telenovela sofre interferências de inúmeros elementos do campo político, econômico e artístico que incidem na sua construção interferindo nos caminhos escolhidos pelos seus realizadores. Durante sua história, percebemos que a telenovela traçou um caminho evolutivo que estava diretamente ligado às exigências do público e do mercado, às mudanças tecnológicas e à interferência do Estado como agente regulamentador. A problemática então, de

66 empreender a análise de um produto tão complexo está em encontrar um caminho teórico analítico que nos permita entender a importância e a real interferência desses elementos na produção e recepção da telenovela enquanto produto do campo de produção simbólica. Em seu trabalho sobre a representação do popular na telenovela “” (TV Globo, 1996) - de Benedito Ruy Barbosa com direção de Luís Fernando Carvalho – Maria Carmem Jacob de Souza (2004a) privilegiou em sua análise um estudo que levava em consideração a observação do meio artístico focado na autoria da novela. Nesse caso, a pesquisa se concentrou no importante papel dos realizadores considerados como “os peritos ou ‘profissionais da produção simbólica’” (p. 41), mediadores da representação social do popular. Como proposta analítica a autora propôs pensar esse produto cultural a partir de uma perspectiva relacional que considere seu intercruzamento com outros campos que interferem direta e indiretamente na sua concepção. Semelhantemente, Lopes, Borelli e Resende (2002) propõem o estudo da telenovela a partir de uma perspectiva que articula o texto cultural com o seu tecido social. Dessa forma, entende-se a produção como resultado de um contexto, levando-se em consideração não só aspectos internos do produto (manobras enunciativas, estética, técnica, linguagem, etc.) mas também suas condições de produção que irão interferir nas escolhas dos realizadores. Nessa perspectiva, a telenovela então, é pensada como um universo com regras e práticas que dentro de um determinado espaço social se entrecruza com diversos campos, estando, portanto submetida à ação de agentes, grupos e instituições que lhe atravessam e lhe estruturam. Assim, podemos pensar a telenovela como um produto construído historicamente a partir das disputas por poder e hegemonia dos campos que fazem parte da sua formação e estruturação. Para Souza (2004a), uma das problemáticas evidentes que marcam essas disputas está na oposição entre sua dimensão artística e seu aspecto mercadológico, oposição essa que é característica do campo artístico onde se insere a telenovela. O universo das práticas que envolvem as telenovelas não diz respeito ao palco das posturas que definem a arte a partir da recusa do econômico. Entretanto, observa-se uma forte preocupação dos agentes em não deixarem de definir e buscar a qualidade artística do gênero telenovela, apesar de saberem da força do econômico na sua constituição. (p. 57)

67 Refletindo sobre a legitimação de um campo da telenovela, Malcher (2000) destaca o crescimento dos trabalhos nessa área e a intensa dedicação dos pesquisadores como uma possibilidade de ampliação do campo de estudos em comunicação. Para a autora, as pesquisas que tomam a telenovela como objeto científico, realizadas em instituições de ensino reconhecidas e financiadas por agências de fomento, serviriam como uma competência científica que legitimam a criação desse determinado campo de conhecimento. Ainda no âmbito acadêmico, o estudo da telenovela se fortalece a partir de um movimento que a considera como fenômeno social (PALLOTTINI, 2012), e por isso, nos ajudaria a compreender as questões sociais que perpassam as suas tramas. Em seu intenso trabalho de identificação dos diversos elementos constituintes do campo da telenovela, Souza (2004a) estabelece quatro deles como fundamentais nas suas regras de funcionamento que estão diretamente relacionados ao seu intercruzamento com os campos político, econômico e artístico: o papel do Estado, o mercado publicitário, os telespectadores e o meio artístico. Entendemos que esses elementos não são únicos e que articulam-se com outros no processo de produção das novelas como, por exemplo, mudanças tecnológicas, suporte de imagem, linguagem, etc (ver capítulo 2). Porém, no âmbito do espaço social, tomamos a indicação de Souza (2004a) como referência. Ao Estado, coube o papel de “construtor do mercado de bens simbólicos” (p. 116) dando as condições técnicas que viabilizariam a televisão em nível nacional e conseqüentemente colaborariam com a estruturação da telenovela (HAMBURGER, 2011). Além disso, as questões políticas e a censura do Governo Militar interferiram diretamente na expansão do mercado televisivo brasileiro, incentivando ou restringindo a implantação e ampliação de determinadas emissoras de TV, a exemplo da TV Excelsior que se mostrou inviável para o projeto político vigente na época e teve sua extinção em 1969. Na produção da telenovela, a censura do Governo Militar levou para a televisão um grupo de “autores de esquerda” que não encontrava mais espaço para trabalhar no teatro e no cinema. Assim, a narrativa teleficcional da década de 1970 foi premiada com a incorporação de escritores engajados que deram um tom mais criativo às telenovelas da época que ficaram conhecidas como “novelas verdade” (Souza, 2004a). Além disso, novas narrativas foram incorporadas com o intuito de atender às demandas dos Planos e Políticas Nacionais de Cultura, do discurso modernizador e ao mesmo tempo coercitivo do Estado que combatia a veiculação de temáticas

68 consideradas “grotescas” e com “tom popularesco” sendo privilegiado o modo de vida das classes alta e média da sociedade brasileira. Nesse quadro, as telenovelas surpreendentemente ascendem à posição de programas líderes de audiência, carros-chefes da programação de uma indústria que se estabelece como uma das maiores do mundo, abrindo espaço em um emergente Mercado global segmentado pela Guerra Fria. (HAMBRUGER, 2011, p. 66)

O mercado publicitário, por sua vez, consolidou as telenovelas como um dos produtos de maior rentabilidade das emissoras a partir do final dos anos 1950, o que gerou não só um maior prestígio e, consequentemente, mais investimento para o setor, como também reorganizou sua estrutura narrativa em intervalos estratégicos com o famoso gancho, além de inserções cada vez mais constantes de merchandising20 nas cenas. Esse fator nos direciona à importância dos telespectadores que se articula diretamente às tendências do mercado e às necessidades das emissoras de atingirem cada vez mais o público consumidor de telenovelas. A partir dos mecanismos de mensuração e expectativas de audiência como o IBOPE21 e o Group Discussion22, as emissoras reorganizam sua programação, disputam fatias do mercado publicitário, estabelecem critérios de prestígio e adequam o fazer telenovela às exigências e modo de vida do telespectador. “Consequentemente, uma importante característica do campo é essa busca frenética e constante pela sedução do público, que está imerso em um contexto diverso, eclético e pleno de ruídos, sempre pronto a ser distraído” (SOUZA, 2004a, p. 144). Nesse sentido, são comuns na história da telenovela ocorrências em que a narrativa original foi modificada de acordo com a exigência do público, assim, o percurso de algumas personagens é definido a partir de interferências diretas ou indiretas do telespectador. Dentre muitos casos clássicos destaca-se o da telenovela “Torre de Babel” (1998-1999, escrita por Sílvio de Abreu e dirigida por Denise Saraceni) em que um casal homossexual – vivido por Sílvia Pfeifer e Christiane Torloni - teve que ser literalmente explodido, junto com um shopping center, a pedido do público que, naquela época, não considerou de “bom tom” sua existência no horário

20“O merchadising é a publicidade implícita que se faz no interior da ficção, durante o decorrer da ação na telenovela. Criada no texto pelo próprio autor, essa publicidade é inserida no fluxo narrativo, na corrente ficcional, e dela passa a fazer parte. Diferentemente da publicidade comum, que aparece desligada da ficção, é explícita e se assume como tal, o merchandising disfarça e tentar passar pelo que não é.” (PALLOTTINI, 2012, pg. 110) 21Instituto Brasileiro de Opinião e Estatística. 22O Group Discussion consiste em um grupo formado por um número próximo ao de 13 mulheres que são reunidas a partir de características determinadas (classe, idade, região, etc) e como num “bate papo” expõem suas opiniões sobre as telenovelas que estão sendo exibidas.

69 nobre da TV brasileira. Essa interferência do público age diretamente no meio artístico que precisa se adequar às novas características de consumo, principalmente os autores que vêem suas obras serem constantemente “atualizadas” de acordo com as tendências do mercado. O estudo desses outros campos nos daria então, um panorama para entender o espaço social de construção da telenovela, em uma análise que privilegia seu momento histórico de criação, a influência das lógicas econômicas de mercado e o papel do telespectador ressaltando sempre o seu caráter de “obra aberta”. Assim, ao propor o estudo da telenovela “Cheias de Charme”, se faz necessário entender qual o contexto social, político e mercadológico na qual ela foi concebida buscando identificar essas influências nas escolhas temáticas e estéticas da obra.

3.5. Situando o objeto de pesquisa “Cheias de Charme” estreou, em 2012, como um dos carros-chefe da Rede Globo no processo de aproximação da emissora com um novo público consumidor emergente. A escolha da temática e estética da novela foram impulsionadas por pesquisas de mídia encomendadas pela Rede que apontaram para a necessidade de mudanças significativas nas suas produções, tendo em vista a emergência de uma “nova” classe C no cenário político e econômico nacional, como afirma Octávio Florisval, diretor-geral da emissora, em entrevista ao portal UOL23: “São pesquisas para nossa reflexão interna, para orientar a área de criação e de jornalismo [...] Estes 80% das classes C, D e E têm uma vida própria, com características próprias. Nós precisamos atendê-los [...] Eles têm que estar mais bem representados e identificados na dramaturgia, no jornalismo.” Somam-se a isso, outras pesquisas de mercado direcionadas para o novo filão consumidor da classe C que indicavam a TV aberta como uma das principais fontes de lazer para as classes populares, sendo a Rede Globo entre as demais emissoras obtendo a preferência de 47% dos entrevistados (IBOPE, 2012). Ainda de acordo com o IBOPE, a TV aberta é o veículo de entretenimento favorito para preencher os espaços de ociosidade sendo a principal fonte de informação e lazer desse público, chegando a consumir até 15 horas semanais do tempo da população. Mapeando as intenções de consumo da “nova” classe C, o IBOPE também aponta que as telenovelas nacionais são,

23Entrevista concedida a Maurício Stycer, crítico do UOL, publicado originalmente em maio de 2011. Disponível em: http://televisao.uol.com.br/ultimas-noticias/2011/05/09/globo-muda-programacao-para- atender-a-nova-classe-c.jhtm, acesso em: 02 de fevereiro de 2014.

70 na TV aberta, o programa favorito das classes C1 (57%) e C2 (62%)24 à frente de outros programas como os de auditório e os de comédia. Além disso, os dados direcionam para a grande influência da teleficção no comportamento do consumidor ao indicar que 20% dos entrevistados se espelham nas personagens de telenovelas e cultuam celebridades, estando dessa forma, mais propensos aos apelos publicitários. Assim, o movimento dos produtores, empresários e realizadores está no sentido de empenhar esforços para promover uma maior aproximação de seus produtos com esse novo público consumidor através de mudanças na narrativa e nos formatos da teledramaturgia. Dessa forma, o novo cenário socioeconômico nacional vem produzindo alterações significativas na estrutura das telenovelas impulsionadas por novos contornos nos elementos constituintes de sua produção citados por Souza (2004a): Estado, mercado publicitário, telespectadores e campo artístico. Nota-se, portanto, outro padrão estético que perpassa temática, texto, trilha sonora e demais elementos de composição de cena como figurino, maquiagem e cenários, além da incorporação de outras mídias que tem alterado o modo de se consumir telenovela. Por se tratar de um padrão relativamente recente, os estudos sobre essa nova estética e narrativa ainda estão em andamento, sendo possível contar apenas com algumas considerações iniciais. Porém, é possível, a partir de uma observação mais atenta e da leitura de trabalhos introdutórios sobre o assunto, estabelecer algumas considerações que nos levem a refletir sobre as mudanças estruturais das telenovelas atuais pensadas para agradar esse determinado público consumidor. Nesse sentido, “Cheias de Charme” assume um papel central, como afirma Baccega et. al. (2013): Cheias de Charme teve a figura da empregada doméstica como protagonista. Ainda que isso não signifique uma inovação, torna-se relevante num momento socioeconômico do país em que as classes populares ascendem ao consumo material, além da ampliação das possibilidades de visibilidade proporcionadas pela internet, elementos que tiveram destaque nesta telenovela, aliados às estratégias de transmidiação, motivando e incentivando novas práticas de consumo cultural, assim como a constituição de novos modos de fruição da ficção televisiva. (p. 64)

Refletir sobre o processo de adaptação da telenovela a um novo público consumidor significa falar de um processo de articulação entre ficção e realidade em que novas tramas emergem junto com as demandas do país, refletindo assim, o modo de

24A definição da estratificação social brasileira pode ser vista através de duas tabelas no tópico “Discutindo a nova classe média brasileira”, onde é possível entender mais claramente a renda per capita de cada classe social e suas subdivisões.

71 vida da população bem como os seus gostos, desejos e anseios, como aponta Lopes (2003): Isso pode ser identificado através dos dois planos estruturais da telenovela: o renovado senso de exploração de temas cotidianos e o verdadeiro efeito-demonstração dos padrões de consumo vividos pelos personagens, os quais acenam para a população de espectadores com a possibilidade concreta de integração social por meio do consumo (pg. 25)

Essas estratégias de aproximação com os públicos oriundos das classes E, D e C, também foram uma tendência nos primeiros anos da década de 1990 quando pesquisas de mercado realizadas pelo IBOPE apontaram que 90% dos entrevistados possuíam televisão e que, para a grande maioria, as telenovelas e minisséries eram uma das mais importantes fontes de lazer, sendo esse percentual maior nas classes sociais mais baixas (SOUZA, 2004a). Esses dados provocaram na época uma grande disputa das emissoras que saíram em busca de atrair esse novo público que havia se tornado significativo na arrecadação publicitária das redes. Nesse período, destacaram-se no cenário nacional programas como os do Faustão, Ratinho e Gugu. Se na década de 1990, as mudanças estavam associadas à estabilidade econômica do Plano Real que colocou as classes D e E na cena televisiva alterando significativamente o perfil dos telespectadores, no Brasil contemporâneo, as mudanças são advindas também da estabilidade econômica, mas, de um plano de governo que tem por objetivo a valorização das classes populares e, principalmente, de um eventual esforço em destacar as características e potencialidades de consumo de uma “nova” classe média emergente. Nesse sentido, “Cheias de Charme” se apresenta como uma experiência bem sucedida de captação desse público e sinaliza a abrangência da Rede Globo nesse nicho. Temática popular - A trama da novela nos apresentou a história de três empregadas domésticas que após gravarem um clipe e ser divulgado na internet viraram celebridades musicais. Maria da Penha, Maria Aparecida (Cida) e Maria do Rosário retratam a vida de milhares de mulheres que se sustentam do serviço doméstico no Brasil. Observando as histórias, dilemas e conflitos retratados, podemos afirmar que “Cheias de Charme” aponta para dois momentos históricos da sociedade brasileira. Em boa medida as histórias das protagonistas contam as dificuldades enfrentadas para sustentar a família, o preconceito com as trabalhadoras do lar, a dificuldade de auto- aceitação de sua condição de doméstica – no caso de Cida -, a submissão pela necessidade de manter o emprego e principalmente o embate com suas patroas

72 representadas pela cantora de eletroforró Chayenne e a socialite Sônia Sarmento. Em contraponto, essas características do velho Brasil são rebatidas por um discurso que aponta para mudanças a partir da valorização da profissão, conscientização de seus direitos trabalhistas, reconhecimento da importância do trabalho doméstico para a economia – defendida pela advogada e patroa “boazinha” Lygia - e orgulho da profissão com a qual sustenta a família – representada mais especificamente pela personagem Penha.

As três histórias principais são entrelaçadas com histórias secundárias de outros personagens que em sua maioria se dividem entre a comunidade fictícia intitulada “Borralho”, representando a “nova” classe média brasileira, e o condomínio de luxo “Casa Grande” onde residem os patrões (essa oposição será devidamente aprofundada na análise realizada no capítulo 04). Os embates entre as diferentes classes sociais são notórios durante toda a trama apresentando ora um retorno ao discurso preconceituoso de não aceitação da nova classe emergente, ora apontando para um futuro de mudanças. Esses conflitos são levemente suavizados a partir da incorporação da temática musical e do humor que conferem leveza à trama. A música, por exemplo, foi o principal articulador de mudança na vida das personagens principais que deixam de ser empregadas para se transformarem em “empreguetes” – termo que dá nome ao trio musical. A música “Vida de Empreguete” composta por Rosário, conta as dificuldades da vida como empregada doméstica e retrata o sonho de virar patroa apontando assim para um desejo de ascensão social.

O esforço de adequação do produto telenovela às exigências estéticas e ao gosto das classes populares significa a intensificação de um dos temas centrais da narrativa melodramática: a ascensão social, que, junto com a temática do amor, formam os pilares básicos para a construção das histórias. Com isso, destacamos a importância das temáticas baseadas na ascensão social como um dos maiores diferenciais para atingir uma nova classe social emergente e com potencial de consumo. Assim, as tramas são pautadas em histórias onde apesar de todos os conflitos, dificuldades e provações às quais são submetidas as personagens, a busca pela é recompensada pelo amor e pela ascensão social que muitas vezes perpassa pelo casamento, pelo aparecimento de uma herança deixada por um parente desconhecido, ou então, pelo esforço de subir na vida “custe o que custar”. Durante décadas, as novelas reproduziram essa fórmula onde

73 personagens de classes sociais mais humildes tinham como objetivo igualar o seu padrão de vida ao das classes A e B.

Para Jameson (1980) a repetição de fórmulas prontas, e ao mesmo tempo a ruptura com essa repetição, são traços característicos da produção cultural de massa. À medida que a repetição produz a sobrevivência do gênero e garante a empatia do público, a ruptura se apresenta como estratégia obrigatória e como resposta “a cada vez mais rápida temporalidade da sociedade de consumo, com suas mudanças de estilo e de moda a cada ano ou estação” (p. 09). Dessa forma, nas produções pensadas para a “nova” classe C, mantem-se a temática da ascensão social mas, com algumas fraturas no arquétipo que vinha sendo representado. Destaca-se o caso da personagem Maria da Penha, que mesmo após se tornar musical, continua morando na mesma casa em que residia quando era empregada doméstica – na comunidade do Borralho. Como cantora de sucesso a situação financeira da personagem se eleva e Penha pode se “dar ao luxo” de ter uma vida melhor, com banheira de hidromassagem, cozinha bem equipada e filho estudando em escola particular. Porém, a ex-doméstica não “abre mão” de sua comunidade, de conviver com os vizinhos que conhece há anos e possui uma relação de irmandade, de criar o filho no mesmo lugar em que cresceu, etc.

Indicador de um novo perfil da população brasileira essa nova representação da ascensão social nos direciona para um novo padrão e estilo de vida onde a valorização do trabalho e das raízes é privilegiada, como aponta Florisval25:

No passado, a classe C seguia muito os padrões das classes A e B. Ela morava na periferia de São Paulo e do Rio e tinha a aspiração de vir para um bairro de classe média, queria ter mais ou menos as mesmas coisas que uma família de classe média. Eram seguidores [Agora] O camarada mora no Tatuapé, mas não quer vir morar nos Jardins. Quer morar lá, quer ser reconhecido pela comunidade dele, ele tem os valores e hábitos dele. Ele não quer se vestir como se veste o pessoal daqui [...] No passado, você não tinha que se preocupar tanto. Hoje, não. Atenção. Eu tenho que fazer para todos. Aquela divisão de que 80% do público é das classes C, D e E continua, mas eles têm mais presença, mais opinião. Eles ascenderam. Têm um jeito próprio de ser [...] Em dramaturgia, se você voltar 20 anos, você tinha alguns estereótipos. A novela estava centrada nos Jardins, em São Paulo, ou na zona sul do Rio e tinha um núcleo, aquele núcleo alegre, de classe C, na periferia. Hoje, não. A gente começa a ver essas histórias trafegando mais na periferia.

25Ainda em entrevista a Maurício Stycer, crítico do Portal UOL.

74 Essa atual conjuntura faz emergir nas histórias novos personagens que trazem novos dilemas, conflitos e principalmente uma nova estética que pode ser contemplada no percurso artístico escolhido para o desenvolvimento da trama. Assim, elementos básicos de construção da telenovela vêm sofrendo alterações de acordo com as tendências de consumo da “nova” classe média. Não é difícil perceber essas mudanças, principalmente nas produções mais recentes datadas do ano de 2012. Observamos um esforço notório de adequação de trilha sonora, figurino, personagens e cenários. A tradicional MPB abre espaço para o tecnoforró e o sertanejo universitário, os apartamentos do Leblon e de Copacabana cedem lugar às comunidades onde cada vez mais tem se ambientado as novelas. Não queremos com isso dizer que personagens da classe trabalhadora não estavam presentes nas antigas tramas, mas, observamos que nas narrativas atuais eles têm assumido cada vez mais o lugar de protagonistas com um lugar de fala que privilegia suas origens, gostos, músicas e modo de falar. Em seu estudo sobre a estrutura narrativa das telenovelas, Pallottini (2012) aponta para o lugar sempre marcante da classe média nos núcleos secundários e periféricos das histórias, criados, quase sempre, para aliviar o teor dramático das tramas principais através do humor. “Já se tornou lugar-comum glosar a insistência dos autores em contrabalancear núcleos de personagens ricas com núcleos de pobres – na verdade, de gente da pequena classe média; os pobres mesmos dificilmente têm lugar na telenovela” (p. 67). Em “Cheias de Charme”, porém, as protagonistas da trama são três empregadas domésticas que assumem lugar de fala privilegiado dando maior visibilidade às classes populares, visibilidade essa que é ampliada para outras mídias como jornais, revistas, blogs e sites que começam a produzir matérias sobre a relação patroa/empregada, dando destaque para a discussão da temática em outra mídias (ver ANEXO C). Essa visibilidade no entanto é acompanhada de tensões e conflitos que são demonstrados na novela a partir de uma relação, quase sempre assimétrica, entre empregadas e patroas. A representação desse grupo social – empregadas domésticas – começa a ser questionado quando observamos aspectos que colaboram e/ou legitimam os discursos de dominação e subalternidade. A ascensão social das protagonistas, por exemplo, é realizada a partir de um acaso quando o videoclipe “Vida de Empreguete” se torna um viral na rede, a partir daí com o status de “celebridades” e não mais de empregadas domésticas as protagonistas alcançam, por exemplo, o ideal de consumo desejado. É importante ressaltar que a virada na vida das personagens principais só é possibilitada porque houve uma mudança de grupo social, de empregadas para cantoras,

75 caso contrário elas estariam destinadas ao serviço doméstico. Observa-se ainda outros aspectos como a escolha das atrizes e outras questões que serão devidamente debatidas no capítulo seguinte. Reconhecemos também que a novela não inaugurou ou foi pioneira em dar papéis de destaque às empregadas domésticas ou ao cotidiano das classes populares. Na história da teledramaturgia, principalmente na década de 1970, as temáticas populares foram muito bem exploradas em obras como “Bandeira 2” (1971) de Dias Gomes, por exemplo. No entanto, as personagens “domésticas”, na maioria das vezes, eram relegadas a papéis secundários com pouca participação na trama principal e apresentadas quase sempre sem uma história própria, com a exceção de destaques como “Gabriela, cravo e canela” (1975, adaptada por Walter George Durst), “Sem lenço sem documento” (1977-1978, de Mário Prata e direção de Regis Cardoso e Denis Carvalho), “Anjo Mau” (1976, de Cassiano Gabus Mendes) e “” (2003, escrita por Walcyr Carrasco e dirigida por Jorge Fernando). Sendo assim, “Cheias de Charme” se encontra em posição de destaque com relação às temáticas abordadas e personagens representados, apresentando mudanças significativas nos personagens principais das telenovelas. Mercado Musical - Dados da pesquisa do IBOPE (2012) indicam que ritmos musicais como forró, sertanejo, axé, samba, gospel e funk são os preferidos das classes populares, sendo dentre esses, o sertanejo mais ouvido entre as classes C1 (34%) e C2 (36%). Nesse sentido, observamos alterações significativas na trilha sonora da novela que tende a apelar para o gosto musical dessas classes inovando ao deixar de lado o clássico MPB trazendo uma mistura eclética que inclui o tecnobrega - em sua abertura com a música “Ex mai Love” de Gaby Amarantos - além da banda Calypso juntamente com o sertanejo universitário de Michel Teló e João Neto e Frederico, a MPB com Fernanda Takai, Zeca Balero e Roberta Sá e nomes consagrados como Beth Carvalho e Alcione. Além disso, os grupos musicais compostos pelas personagens da trama estrelaram músicas e clipes inéditos (ANEXO B) de estilos musicais pouco vistos em produções da nossa teledramaturgia como o eletroforró, no caso de Chayene, do sertanejo universitário com o cantor Fabian e uma mistura bem humorada de diversos ritmos no caso das Empreguetes. Macedo (2012) também destaca a escolha da trilha sonora de “Cheias de Charme” a uma possível associação entre a estética musical brega e o universo de consumo de empregadas domésticas.

76 Por exemplo, na década de 1970, entre os movimentos musicais que surgiram no Brasil, a música “brega” obteve um grande sucesso de público e de vendas atingindo, sobretudo, ouvintes das classes populares. Cantores como Waldik Soriano, Odair José e Wando conquistaram o “povo brasileiro” e algumas de suas músicas tornaram-se verdadeiros hinos populares da época. Dentre as alcunhas que essa geração recebeu estava a de “cantores das empregadas”, rótulo que relacionava um tipo de música com uma categoria profissional, rebaixando a ambos: a música “ruim” só poderia fazer tanto sucesso graças a um grupo profissional feminino e pouco prestigiado socialmente. (p. 11)

Essa tendência vai de encontro com o que tem sido exibido nas últimas décadas da teledramaturgia nacional onde a trilha sonora era composta, quase exclusivamente, por clássicos da MPB, do samba e da bossa nova como Roberto Carlos, Zeca Pagodinho, Nana Caymmi, Marisa Monte, entre outros. “Apesar da mistura de ritmos ser usual nas produções da Globo, há, segundo os produtores de Cheias de Charme, uma aposta no que eles chamaram de ‘música popularíssima brasileira’.” (MACEDO, 2012, pg. 10) Leia-se aqui, um esforço de aproximação com as novas tendências musicais que emergem das periferias e ganham corpo através da democratização da produção musical e novas formas de difusão de conteúdo através da internet e de novas plataformas midiáticas. Novas tecnologias e estratégias de transmidiação - Novos horizontes também são explorados a partir da convergência com outras mídias que não só garantem um diálogo mais direto e próximo com os telespectadores, mas também possibilitam a continuidade da narrativa que não se esgota nas exibições diárias da telenovela, ao contrário, é ampliada com a participação da audiência na internet e com a possibilidade de arquivamento e memória através da disponibilização dos capítulos no site oficial da emissora26 e em blogs pessoais e perfis de redes sociais. Em “Cheias de Charme” as estratégias de aproximação foram realizadas para atrair um público brasileiro cada mais conectado com a internet como apontam os dados de uma pesquisa publicada em abril de 2012 realizada pelo Instituto Datafolha em parceria com a agência F/Nazca Saatchi & Saatchi. De acordo com a pesquisa: há cerca de 84 milhões de internautas no Brasil; desse total houve um crescimento significativo de usuários na classe C alcançando 53% de usuários; 41 milhões acessam a internet em dispositivos móveis como celular e tablet; 76 milhões de brasileiros (90% dos internautas) possuem perfil em redes sociais; cerca de metade de usuários da internet

26Site oficial da novela: http://gshow.globo.com/novelas/cheias-de-charme/index.html

77 móvel utiliza as redes sociais para comentar e/ou participar em tempo real de conteúdo de outras mídias, em especial da televisão; 61% utilizam a internet para visualizar conteúdo original veiculado em outros meios de comunicação - sendo que 30% consome programas televisivos pela web. A publicação desses dados nos dá o entendimento do contexto de consumidores no Brasil e nos mostra a importância da internet no lazer e entretenimento do brasileiro, sinalizando para um novo modo de consumir os produtos televisivos a partir da emergência de um novo telespectador. A transformação do receptor em usuário de mídia favorece novos modos de interação, como o espectador que prolonga na internet sua experiência com a programação da TV. [...] Trata-se de um interator conectado que manipula simultaneamente diferentes plataformas comunicacionais mesclando os tênues limites entre o público e o privado [...] dando origem a uma mescla pessoal e idiossincrática cujos principais componentes são comunicação, entretenimento e consumo, elementos que estão na base da experiência contemporânea de mundo. (BACCEGA et al., 2013, p.72)

Nesse sentido, a telenovela em questão é considerada como um exercício bem sucedido de metalinguagem e narrativa transmídia, pois brinca com os limites entre ficção e realidade à medida que insere em sua história referências da vida cotidiana, mistura programas ficcionais com programas reais da grade da emissora, dialoga com cantores de sucesso em seus shows e possibilita a interação com os telespectadores a partir de uma “segunda tela”27 no portal da TV Globo. Destacam-se nesse sentido o blog Estrelas do Tom criado pelo personagem Tom Bastos que na trama era o produtor musical das Empreguetes. O blog era uma referência na telenovela e também se tornou na vida real dialogando constantemente com os telespectadores e conclamando-os a participar através de concursos como por exemplo a Batalha do Passinho ou incentivando a publicação de vídeos com paródias da música Vida de Empreguete. O movimento Empreguetes para Sempre também foi lançado no Portal da TV Globo onde não só artistas, mas também os fãs deixavam vídeos pedindo a volta do trio. A página Trabalhador Doméstico também se destacou com informações sobre legislação e leis trabalhistas para as domésticas (ANEXO D).

27“A segunda tela pode ser qualquer dispositivo com acesso à internet como smartphones, tablets, notebooks, entre outros, usados de forma simultânea à programação da TV. Essa navegação paralela permite o consumo de conteúdos complementares (saber mais sobre a história, os atores, a trama, trilha sonora, ou, simplesmente, onde comprar as roupas utilizadas pelos protagonistas) e a interação com outras pessoas. Uma experiência que potencializa a repercussão do conteúdo e o laço social, e tem se tornado cada vez mais comum” (FINGER apud GUIMARÃES, 2013, pg. 07)

78 Assim, a produção confirma uma das características mais marcantes das telenovelas, como afirma Pallottini (2012): “A telenovela tende, pelos menos nos espíritos mais desavisados, a instituir uma confusão entre ficção e realidade, dado o seu caráter invasivo [...] há um simulacro de realidade, uma ficcionalização da realidade e uma realização da ficção” (pg.59). O clipe Vida de Empreguete, que deu fama às protagonistas da trama, foi produzido de forma caseira e se tornou um viral28 ao se espalhar pela internet transformando as empregadas domésticas em celebridades virtuais, em uma clara referência às tendências atuais onde “pessoas comuns” ganham fama após postarem seus vídeos na web. Além disso, os grupos musicais fictícios fizeram participação em programas reais como o Esquenta!, Domingão do Faustão, Encontro com Fátima Bernardes, Video Show, Caldeirão do Huck e Mais Você, além de participarem de encontros musicais com Ivete Sangalo, Luan Santana, Gaby Amarantos e João Neto e Frederico. O programa Fantástico lançou o concurso “A empregada mais cheia de charme do Brasil” com inscrições de todo território nacional onde a vencedora fez uma participação especial em um capítulo da novela, ressaltando assim, a utilização da metalinguagem e autorreferencialidade. A narrativa transmídia por sua vez é caracterizada pela “integração de conteúdos e meios com o objetivo de evidenciar a colaboração do usuário, que passa a ter vez e voz, tornando-se foco das atenções, como inventor de produtos e narrador de experiências” (GUIMARÃES, 2013, pg. 08). Assim, ao explorar essa potencialidade, a telenovela possibilitou uma convergência entre TV e internet ampliando suas possibilidades narrativas e oferecendo ao telespectador mais conteúdo além do apresentado na TV, como destaca Guimarães (2013): O portal também dava acesso a outros subprodutos, como por exemplo, o site do Fã-Clube Oficial das Empreguetes (mantido pela própria produção da trama) e o blog Estrelas do Tom, mantido por Tom Bastos (Bruno Mazzeo), empresário de Chayene, Fabian e das Empreguetes. Enfim, os telespectadores podiam encontrar uma infinidade de links, textos, vídeos, músicas e conteúdos para navegar enquanto assistiam ao capítulo do dia, ou depois que o mesmo já tivesse ido ao ar. (p. 08)

28Um vídeo viral é um produto que alcança grande popularidade na internet sendo compartilhado por muitos usuários nas redes sociais, nos e-mails e também nos celulares.

79 Assim, os autores inovaram ao exibir o clipe Vida de Empreguete29 primeiro na internet para depois ir ao ar na novela consolidando a produção como um marco na experiência da convergência de mídias. Pela primeira vez, a televisão cedeu para a internet a primazia na exibição de uma cena-chave de teledramaturgia. Tudo isso sem emulação. Foi com o clipe “Vida de empreguete”, apresentado primeiro na internet (no sábado) e só bem depois (na segunda-feira) em “Cheias de charme”, novela das 19h da TV Globo. O fato não representou apenas um passo inédito para a teledramaturgia. Significou uma movimentação nunca operada pela própria emissora. A ousadia logo se revelou um acerto e com ganhos para ambas as mídias. [...] (KOGUT apud BACCEGA et. al., 2013, p. 68,69) O sucesso de “Cheias de Charme” foi também responsável pelo maior IBOPE do horário das 19hs nos últimos cinco anos de produção da emissora (ANEXO E), chegando a bater a marca de 40 pontos no capítulo em que mostrou o sucesso das Empreguetes e a falência da família Sarmento. A intensa aproximação do produto com a audiência pode ser confirmada com dados que apontam que o clipe Vida de Empreguete obteve mais de 12 milhões de visualizações no site da emissora, além de sua música ter se destacado entre as mais tocadas em todo país (ANEXO F); a cena do casamento entre Isadora Sarmento e Conrado Werneck (que foi ao ar no dia 20/06/12) teve 1,9 milhões de acessos no site da Tv Globo; a Globo Marcas emplacou 20 produtos com o selo Cheias de Charme, tais como objetos para limpeza doméstica, calçados, CDs e DVDs com sete músicas inéditas interpretadas pelos personagens da trama, e o site oficial da novela obteve 900 mil visitas diárias entre os dias 16 de abril e 23 de setembro30. Assim, os esforços em destacar as inovações promovidas pela produção de “Cheias de Charme”, ainda em uma análise introdutória, estão no sentido de salientar as mudanças narrativas e estéticas que vem ocorrendo no campo da telenovela a partir das demandas de mercado, das políticas econômicas do Estado, das exigências dos telespectadores e dos esforços criativos dos realizadores e autores. Dessa forma, acreditamos que novos horizontes podem ser vislumbrados para a teledramaturgia

29“Queríamos falar da periferia como o novo centro da tecnologia viabilizando a produção cultural e pensamos nas domésticas formarem um trio e ficarem conhecidas por meio da internet. Daí surgiu a idéia de fazermos essa brincadeira transmidia, de publicar o vídeo na rede no momento em que era postado no folhetim.” Declararam os autores Felipe Miguez e Izabel de Oliveira em entrevista ao portal UOL, disponível em http://televisao.uol.com.br/noticias/redacao/2012/09/27/com-20-produtos-clipes-e-hits- cheias-de-charme-se-destaca-por-unir-internet-e-tv.htm.> Acesso em: 02/02/2014. 30SERRA, Amanda. Com 35 produtos, clipes e hits, “Cheias de Charme” se destaca por unir internet e TV. UOL, Entretenimento – Televisão e novelas. Disponível em Acesso em: 02/02/2014.

80 brasileira que vem sendo, durante décadas, acusada de ter se tornado um produto de fórmula pronta com poucas inovações estilísticas e narrativas.

81 4. “CHEIAS DE CHARME”: RECONSTRUINDO CONFLITOS DE CLASSE

4.1. Procedimentos metodológicos de análise Durante todo o desenvolvimento desse trabalho focalizamos o nosso raciocínio – organizado aqui através dos capítulos e do referencial teórico apresentado – na construção de um texto que destacasse a importância da telenovela como produto cultural relevante na construção de um imaginário do Brasil. Nesse sentido, dedicamos os nossos esforços em destacar a importância da telenovela na produção e reprodução dos discursos sobre o país. Esses discursos envolvem nossos aspectos sociais, econômicos, políticos, entre outros, além de contribuir para o debate público e/ou silenciamento de temas caros à nossa formação social. Nesse sentido, contextualizamos nos capítulos anteriores a teleficção nacional e a telenovela “Cheias de Charme” – objeto de análise – por entender a importância de se estudar este produto audiovisual situando-o historicamente, entendendo que ele carrega as marcas da historicidade que incide diretamente na sua produção narrativa, técnica e artística. Nessa perspectiva, a proposta teórico-metodológica a ser realizada na análise nos permite articular as questões internas da telenovela (narrativa, técnica e artística) com o seu contexto sócio-histórico, vinculando assim, texto e contexto. Essa articulação nos possibilita realizar uma análise do produto “Cheias de Charme”, sua estrutura e estratégias discursivas, inscrita em seu contexto social que inclui dimensões sociais, culturais, políticas, representacionais etc. Essa abordagem analítica se justifica pelo caráter multidisciplinar da Comunicação Social que nos possibilita transitar nos mais variados campos acadêmicos articulando os produtos da mídia com outras áreas do conhecimento. Destacando aqui, que nossa proposta de trabalho se situa em pensar as representações das relações de poder entre as diferentes classes sociais a partir da telenovela “Cheias de Charme”, buscando entender como se dá a produção de sentidos sobre esse tema. Dessa forma, nosso foco está em entender como as diferentes classes sociais são representadas e principalmente como se manifestam as relações de poder entre os sujeitos. No produto audiovisual analisado destacam-se, de um lado, as empregadas domésticas - representantes dos trabalhadores e da “nova” classe média brasileira – e do outro as patroas – representantes das classes A e B. Dessa forma, o nosso trajeto analítico busca entender como se constroem as identidades desses dois grupos sociais e como se tensiona esse relacionamento.

82 Por se tratar de uma obra audiovisual, a telenovela nos remete a inúmeros elementos de composição que reúnem aspectos textuais (verbais), sonoros e imagéticos sendo, cada um deles, importantes para a efetivação do efeito desejado sobre a audiência e para a significação do sentido. No entanto, nossa proposta não se debruçará na análise técnica e estética da telenovela, mas sim, na relação entre os diferentes sujeitos sociais. Porém, apesar de não serem o nosso objeto direto de análise os elementos do texto audiovisual não serão de todo descartados e poderão ser resgatados no decorrer da análise à medida em que forem importantes para o entendimento dos efeitos desejados e contribuírem para a intencionalidade discursiva.

4.1.1. Seleção do corpus da pesquisa O corpus da pesquisa é constituído pela telenovela “Cheias de Charme” que foi veiculada no ano de 2012, no horário das 19 h, na Rede Globo. Essa telenovela teve um total de 143 capítulos e uma grande quantidade de aspectos discursivos que podem ser analisados e estudados sob diferentes perspectivas. Porém, pela impossibilidade de esgotar todos esses elementos e possíveis “caminhos” analíticos recortamos o nosso corpus de pesquisa de acordo com a delimitação do nosso campo de interesse. Sendo assim, focamos o nosso olhar nos conflitos de classe, que nesse caso, envolvem tensões entre empregadas e patroas presentes na trama. Dessa forma, procuramos observar as estratégias discursivas utilizadas na novela, isolando os elementos que orientam o olhar e o discurso, buscando entender os efeitos provocados por eles a partir dos recursos e meios utilizados na obra para o cumprimento das estratégias de produção e apreciação. Dos 143 capítulos totais da obra, selecionamos como corpus os capítulos referentes à fase inicial da telenovela que compreendem a primeira etapa da história onde as protagonistas ainda trabalham como domésticas. Dessa forma, a análise preliminar foi realizada tendo como corpus inicial uma amostragem composta pelos 57 capítulos iniciais que foram ao ar do dia 16/04/2012 até 20/06/201231. Essa seleção se justifica pela observação de que, nessa primeira fase, os conflitos de classe são mais intensos já que as personagens principais ainda trabalham como domésticas e se relacionam de forma direta com suas patroas. O último capítulo selecionado para análise preliminar do corpus retrata o resgate de Cida, a última empreguete que ainda estava

31 Os capítulos analisados estão disponíveis no site oficial da emissora através do link: http://gshow.globo.com/novelas/cheias-de-charme/index.html.

83 trabalhando como doméstica, marcando uma virada na história com a profissionalização do trio musical. A obra analisada possui cerca de 41 personagens, sendo quase 10 empregadas domésticas, impossibilitando dessa forma uma análise completa do perfil e dos conflitos de todas as trabalhadoras representadas na trama. Dessa forma, nosso trabalho se restringiu ao mapeamento das relações entre as personagens principais (Maria da Penha, Maria do Rosário e Maria Aparecida) e suas respectivas patroas (Lygia Ortega, Chayene, Sônia Sarmento e suas filhas Ariela e Isadora). Durante a análise inicial, mapeamos, dentro do recorte proposto, as cenas significativas de acordo com os seguintes critérios: 1. A cena deve ser representada por, pelo menos, uma das personagens principais e sua respectiva patroa; 2. Representar o relacionamento entre patroas e empregadas seja ele pacífico ou conflituoso, nesse último caso mostrando direta ou indiretamente atritos motivados por suas diferenças sociais; 3. Apresentar uma posição bem marcada de quem é a patroa e de quem é a empregada, e 4. Demonstrar exemplos de preconceito, xingamentos, agressões, ou qualquer outro aspecto que se refira a conflitos e tensões. Desse primeiro recorte, registramos um número significativo de cenas que demonstram ocorrências de conflitos e tensões. Ao longo dos 57 capítulos analisados, mapeamos cerca de 45 cenas em que há xingamentos, agressões verbais e físicas, humilhações, opressão psicológica, exploração financeira, preconceitos, dentre outros. Em geral, nessas cenas, as patroas assumem um papel muito mais agressivo que as domésticas que tendem a um comportamento mais passivo, principalmente Maria do Rosário e Maria Aparecida – apesar da trama mostrar uma mudança de comportamento da personagem nos últimos capítulos analisados. As poucas cenas de enfrentamento direto que demonstram uma postura mais incisiva das domésticas é protagonizada por Maria da Penha. No entanto, quando se reúnem, na ausência das patroas, é comum as protagonistas utilizarem tons de deboche e até xingamentos ao reclamarem de seus empregos e das casas onde trabalham - sempre com um tom de humor – porém, essas ocorrências não fazem parte do nosso recorte e por isso não foram contabilizadas aqui. É interessante ressaltar também que nem todos os relacionamentos são pautados por tensões, algumas cenas apontam para um relacionamento harmonioso e de amizade

84 representadas no relacionamento entre Penha e a patroa Lygia. Essa relação, apesar de ser significativa na trama, apresenta dentro do contexto geral, uma exceção com poucas ocorrências de cenas, já que os demais relacionamentos são marcados exclusivamente por conflitos.

4.1.2. Análise das personagens Para a análise das personagens, utilizamos o conceito de ethos. Originário da retórica aristotélica, a idéia de ethos é tomada aqui a partir das reflexões propostas pelo teórico Dominique Maingueneau. O ethos refere-se ao orador e na perspectiva de Maingueneau (2002) “por meio da enunciação, revela-se a personalidade do enunciador” (p. 97-98). Porém, o autor ressalta que diferentemente da retórica aristotélica a análise do ethos que ele propõe pode ser realizada em situações discursivas diferentes sejam elas oral, textual, visual, verbo-visual, podendo, em nosso trabalho, ser aplicada à análise de personagens de telenovelas. Nesse caso, a análise da identidade social da personagem, do eu, é realizada a partir da perspectiva verbal e não-verbal, sendo o ethos manifestado por todo o corpo. (FAIRCLOUGH, 2001) Dessa forma, a partir daquilo que o orador nos revela através de suas falas, gestos, roupas, entonação de voz, entre outros, podemos identificar sua personalidade, sua(s) identidade(s), o grupo social ao qual pertence, as ideias e convicções que representa, seu posicionamento social etc. A construção da imagem das personagens foi então realizada a partir de uma análise geral da telenovela tomando como ponto de partida os indícios presentes na obra. Seguindo as indicações de Maingueneau essa análise foi realizada a partir de dois eixos principais representados pelo caráter e pela corporalidade, como aponta o autor: “O ‘caráter’ corresponde a uma gama de traços psicológicos. Já a ‘corporalidade’ corresponde a uma compleição corporal, mas também a uma maneira de se vestir e de se movimentar no espaço social. O caráter e a corporalidade do fiador provêm de um conjunto difuso de representações sociais valorizadas ou desvalorizadas sobre as quais se apóia a enunciação [...]” (pg. 98-99). A análise das personagens nos possibilitará também o entendimento sobre as formações ideológicas e as formações discursivas nas quais estão inscritas e que reúnem as informações, atitudes, conhecimentos e posicionamentos sobre determinados assuntos e sobre os outros sujeitos.

Considerando uma formação social, poderemos falar de uma “formação ideológica” para caracterizar um elemento suscetível de

85 intervir, tal como uma força confrontada a outras, na conjuntura ideológica característica de uma formação social, em um dado momento; cada formação ideológica constitui assim um conjunto complexo que comporta atitudes e representações que não são nem “individuais” nem “universais”, mas que se referem mais ou menos diretamente a “posições de classe” em conflito umas com as outras. (PÊCHEUX, 2011, p. 72 – 73)

As formações ideológicas nas quais se inserem os discursos das personagens serão determinantes para a construção dos sujeitos representados na tela. Já o conceito de formação discursiva, complementar ao de formação ideológica, define o que deve ou não ser dito pelos diferentes sujeitos, congregando regularidades linguísticas, de pensamento, temáticas (BRANDÃO, 2009).

4.1.3. Análise das cenas O primeiro recorte do corpus – composto por 57 capítulos da primeira fase da novela – resultou em um mapeamento com as principais cenas de conflitos entre patroas e empregadas. Marcante na narrativa da telenovela esses conflitos foram observados em cerca de 45 cenas. Para efeitos desse trabalho consideramos que a análise exaustiva de um número tão significativo de material seria inviável e impossível de ser realizado por apenas um pesquisador. Dessa forma restringimos a nossa amostragem e selecionamos um menor número de sequências para a análise final levando em consideração sua relevância na história de cada personagem. Apesar de restringir o nosso corpus de análise, acreditamos que as cenas escolhidas são significativas e representam qualitativamente a essência da temática abordada em “Cheias de Charme”, servindo assim, aos objetivos de nossa análise. Nessa perspectiva, seguimos a orientação de Orlandi (2005) quando ela afirma que uma das possibilidades de análise está uma abordagem em que “não se objetiva (…) a exaustividade que chamamos horizontal, ou seja, em extensão, nem a completude, ou exaustividade em relação ao objeto empírico. Ele é inesgotável.” (pg. 62). Dessa forma, as cenas escolhidas se constituem uma representação ou um exemplo do que chamamos de eixo de conflitos de cada personagem. A partir de uma análise global dos conflitos apresentados pelas protagonistas e por sua patroas, observamos temáticas, um eixo de conflito que norteia sua história na trama. Como a análise de todas as cenas seria inviável, selecionamos de cada personagem uma cena significativa e também uma cena

86 com todas as patroas e empregadas que consideramos importante na estrutura narrativa da telenovela. Um dos eixos de conflito de Maria da Penha é a sua relação assimétrica com a patroa Chayene onde está delimitado que ser patroa é ser superior e ser empregada é ser inferior. Ocupando posições sociais bem distintas, as diferenças de classe são externalizadas pela patroa com agressões verbais culminando em uma agressão física motivando Penha a buscar por seus direitos. A cena escolhida para análise como representativa desse conflito nos mostra Chayene agredindo Penha verbal e fisicamente. A sequência foi ao ar no cap. 01 (16.04.12) e é composta pelas cenas 14 (Chayene joga sopa em Penha) e 17 (Chayene humilha Penha). No caso de Maria do Rosário, a sua relação com a patroa Chayene tem como um dos eixos de conflito a disputa amorosa pelo cantor Fabian. Chayene, que é apaixonada por Fabian e possui um “namoro” midiático com ele, sente ciúmes de Rosário por conta de sua aproximação com o cantor. Nesse caso, entra em jogo a sexualidade como um dos elementos do jogo de poder entre patroas e empregadas. O ciúme se materializa em hostilidade como pode ser visto na sequência escolhida para análise que foi ao ar no dia 01/05/12 na primeira cena do capítulo 04 (Chayene acha que Rosário está se insinuando para Fabian). O eixo de conflito entre Maria Aparecida e a patroa Sônia Sarmento gira em torno do sentimento de gratidão que a empregada nutre pela família que a acolheu. Esse sentimento de gratidão é devidamente explorado pelos patrões e um dos motivos do silenciamento de Cida nessa relação assimétrica. A cena analisada foi ao ar no dia 28.05.12 no capítulo 37, cena 01 (Sônia humilha Cida). E, por fim, o enfrentamento de todas as patroas e empregadas reunidas para um café da manhã no Programa “Mais Você” por conta do sucesso do clipe “Vida de Empreguete”. A sequência foi ao ar no capítulo 45 (06.06.12) e a cena escolhida para análise foi a de número 03 (Patroas e Empregadas lavam roupa suja no Mais Você). Nas cenas escolhidas para análise, foram observadas as ações, interações e diálogos entre as personagens, bem como as motivações psicológicas que direcionam seus relacionamentos demonstrando semelhanças e diferenças que indicam para seu posicionamento social. Observou-se também como se estabelecem as relações de força entre patroas e empregadas, o lugar de fala de cada uma delas, o posicionamento diante do interlocutor.

87 As relações de força (ou de poder) fazem parte da arena de lutas do jogo discursivo estabelecida entre os interlocutores “pois quem fala, fala de algum lugar, a partir de um direito que lhe é reconhecido socialmente” (BRANDÃO, 2009, p. 07) e essa posição de onde o sujeito fala legitima seu discurso. De certa forma, essas “lutas” ocorrem na esfera das formações imaginárias de modo que, quando nos referimos ao lugar de fala, não estamos fazendo referência a um espaço físico, mas sim às imagens construídas sobre o locutor que legitimam sua fala, como esclarece Orlandi (2005): Temos assim a imagem da posição do sujeito locutor (quem sou eu para lhe falar assim?) mas também da posição do sujeito interlocutor (quem é ele para me falar assim, ou para que eu lhe fale assim?), e também a do objeto do discurso (do que estou lhe falando, do que ele me fala?). É, pois todo um jogo imaginário que preside a troca de palavras. E se fazemos intervir a antecipação, este jogo fica ainda mais complexo pois incluirá: a imagem que o locutor faz da imagem que seu interlocutor faz dele, a imagem que o interlocutor faz da imagem que ele faz do objeto do discurso e assim por diante. (p. 40)

A observação das cenas levou ainda em consideração a análise tridimensional do discurso proposta por Fairclough (2001) a partir da articulação entre texto, dimensão social e dimensão discursiva. Segundo o autor “A prática discursiva (…) contribui para reproduzir a sociedade (identidades sociais, sistemas de conhecimento e crença) como é, mas também contribui para transformá-la” (p. 92), enquanto que “A prática social tem várias orientações – econômica, política, cultural, ideológica -, e o discurso pode estar implicado em todas elas, sem que se possa reduzir qualquer uma dessas orientações do discurso” (p. 94). Além disso, considerou-se também as três dimensões de sentido propostas pelo mesmo autor: a identitária (como as identidades são estabelecidas no discurso), a relacional (como se estabelecem as relações entre os participantes) e a ideacional (como os textos significam o mundo). É importante ressaltar que além da análise direta das cenas escolhidas observou- se, de forma geral, no desenrolar da trama outros aspectos narrativos que também direcionavam para a dicotomia patroa/empregada, ressaltando as relações de poder e as diferenciações de classe entre esses dois grupos sociais (SANTOS, 2004). Esses elementos foram observados na totalidade dos capítulos da telenovela e aqui, nesse trabalho, apresentados a partir de uma análise geral do primeiro capítulo que usamos como base para discutir aspectos importantes da trama como por exemplo, a oposição entre a Comunidade do Borralho e o Condomínio CasaGrande.

88 4.2. Sinalizando conflitos: o primeiro capítulo O primeiro capítulo de uma telenovela é como um cartão de visita, onde devem ser apresentados aos telespectadores as histórias centrais que serão desenvolvidas durante a trama, bem como suas personagens, núcleos de atuação, dramas, dilemas, protagonistas e antagonistas. A partir do primeiro capítulo, o telespectador é capaz de “sentir” a linha por onde será conduzida a história, sendo por isso, de fundamental importância para a captação da audiência. Pallottini (2012) ressalta a dificuldade de implantação de uma nova novela, uma vez que, inevitavelmente, ela sucede outra ocupando os mesmos dias e horários. A ligação do telespectador habituado há meses com a mesma história, personagens, trilha sonora e ainda impactado pelos capítulos finais da telenovela que se encerrou, dificulta o seu apego emocional a um novo mundo ficcional e por isso “Ele resiste, irrita-se, rebela-se contra a intromissão de gente estranha naquele horário em que ele estava acostumado a receber em sua casa determinadas personagens e somente aquelas” (p. 71). Há um certo tipo de contrato entre personagens e telespectadores, uma intimidade, segredos que são contados apenas para quem está do outro lado da tela, confidências, risos e choros que dificultam e tornam, de certa forma, traumática a transição de uma novela para outra. O rompimento então, deve ser feito de uma vez só, de forma que o telespectador assíduo tem apenas um dia – o domingo, já que no sábado é reprisado o último capítulo que foi ao ar na sexta – para se desapegar da antiga história e se adaptar à nova novela que já está no ar. Dessa forma, o primeiro capítulo deve ser sempre impactante, de modo que o telespectador possa se interessar pela nova trama, e para isso ele deve ser interessante, movimentado e informativo (PALLOTTINI, 2012) oferecendo à audiência os elementos necessários para a fixação de um novo contrato emocional. Um bom capítulo inicial é aquele que não dá tempo do telespectador respirar, para isso é necessário que a ação aconteça, que a história se desenvolva, que as personagens e seus conflitos sejam apresentados. Em geral, essa apresentação inicial pode ser feita de forma fragmentada – mostrando um pouco de cada personagem e suas histórias, priorizando os dilemas centrais de cada núcleo – ou de forma direta, reservando grande parte do capítulo – ou até mesmo sua totalidade – para o assunto principal da telenovela desvendando os acontecimentos que irão dar suporte para o desenrolar da trama. O primeiro capítulo de “Cheias de Charme” cumpre bem essa função trazendo para a tela cenas bem organizadas e estruturadas que dão conta de oferecer ao

89 telespectador os elementos necessários para a compreensão da trama. O ritmo do capítulo é intenso, com muitos acontecimentos e fatos que mudarão a história das protagonistas. Em geral, as telenovelas possuem um casal romântico a partir do qual se desenvolve a história, “Cheias de Charme”, no entanto, nos oferece três protagonistas e suas histórias de vida é que conduzirão o enredo da novela. Prioriza-se, nesse caso, a apresentação das personagens de forma fragmentada, com o capítulo sendo dividido e estruturado a partir das três histórias centrais. A sequência de abertura do capítulo nos mostra as três personagens principais – Maria da Penha, Maria do Rosário e Maria Aparecida – chegando, separadamente, em uma delegacia de polícia. Imagens desfocadas dos giroflex coloridos das viaturas policias são intercaladas em cortes rápidos com imagens de semáforos, carros e motos andando pela rua sincronizadas com a música de fundo “Marias Brasileiras” (instrumental). A edição, sincronizando as imagens com o ritmo da trilha sonora, prioriza a ideia de movimento, ação e aventura enfatizadas pelas sirenes policiais. As personagens ainda não se conhecem e esse encontro, por acaso, é o evento que irá desencadear uma futura amizade entre as protagonistas. Após se apresentarem aos policiais – dizendo nome e profissão – as três Marias conversam enquanto aguardam o delegado. Até esse ponto o telespectador tem uma vaga noção sobre o motivo que as levou até a delegacia o que gera uma expectativa para as próximas cenas onde espera-se que será desvendado esse pequeno mistério. O pouco contato com as personagens ainda não é revelador de suas identidades, apesar de podermos identificar algumas pistas que indicam para traços de suas personalidades, como as roupas, o modo de falar, de se dirigir às pessoas e principalmente como se identificam e se apresentam aos policiais. Ao serem confrontadas pelos policiais a se apresentarem, podemos entender, ainda que de forma preliminar, a maneira como as protagonistas da trama se identificam, se reconhecem e principalmente quais as identidades que estão em jogo, que emergem e que coexistem nas personagens e a partir das quais elas são construídas. Segue abaixo o diálogo: Policial: - Chega! Uma de cada vez! Nome! Maria da Penha (MP): - Maria da Penha Fragoso Barbosa Maria do Rosário (MR): - Maria do Rosário Monteiro da Silva Maria Aparecida (MA): - Maria Aparecida dos Santos Souza MP: - Sou empregada doméstica MA: - Sou estudante e também trabalho de arrumadeira MR: - Cantora [pausa/olhada das outras personagens] e cozinheira nas horas vagas MA: - Porque que eu tô aqui moço? Fui atacada por uma cachorra!

90 MP: - Eu vim dar queixa da minha patroa, ela me agrediu. MR: - Eu destruí o camarim do Fabian [pausa] o cantor.

A partir desse diálogo, observamos que Penha prontamente se apresenta como empregada doméstica, ao contrário das outras protagonistas que se identificam primeiro como estudante e cantora para depois se apresentarem como arrumadeira e cozinheira, respectivamente. A prontidão de Penha em se apresentar como doméstica demonstra clareza em se identificar a partir de sua profissão (BAUMAN, 2000) não havendo conflitos, ao menos perceptível, com outras identidades. Ao afirmar o motivo que a levou à delegacia – prestar queixa de sua patroa que a agrediu – Penha demonstra engajamento e conhecimento das leis trabalhistas, utilizando-as para garantir seus direitos e fazer com que a Lei seja cumprida. Cida e Rosário no entanto, parecem desconfortáveis em se identificar como domésticas, dessa forma, apresentam-se primeiramente com outra profissão para em seguida identificarem-se como arrumadeira e cozinheira, mas ainda há uma recusa em utilizar o termo “empregada doméstica”. É possível perceber que há conflitos entre as identidades apresentadas pelas duas últimas protagonistas, há um desconforto em assumir suas identidades profissionais e um desejo em ser representadas de outra forma. Essa breve cena é uma introdução para que possamos entender como esses sujeitos se identificam. Inicialmente descontextualizada, ela nos dá indícios importantes sobre a personalidade de cada personagem deixando claro que a identidade profissional de doméstica é vivenciada de forma diferenciada pelas três protagonistas. No decorrer da obra, observamos que Penha possui uma consciência de classe, um pertencimento de grupo, que reconhece seus direitos, valoriza seu trabalho e o tem como um sustento digno; em Cida a identidade de doméstica aparece com conflitos internos, múltiplas e contraditórias identidades (não sabe se é empregada ou membro da família), não se reconhece na profissão e por isso observa-se uma eminente crise identitária; Rosário escolhe a profissão de doméstica para atingir seu principal objetivo que é ser cantora. Essa breve apresentação das personagens nos dá também a primeira ocorrência de conflito entre patroas e empregadas. Na primeira cena da novela antes de completarem 2 minutos de trama, já temos um grave conflito sendo apresentado quando Penha afirma que foi prestar queixa de sua patroa, Chayene. Ao afirmar que foi agredida, percebemos que o desentendimento das duas personagens ultrapassou os limites éticos e culminou em uma agressão física.

91 O capítulo segue e nas cenas seguintes temos a imagem de um relógio retrocedendo para, enfim, mostrar os acontecimentos do dia que levaram as três protagonistas à delegacia. A partir daí temos, o desenrolar dos conflitos de Penha, Cida e Rosário como carro-chefe para o desenvolvimento do capítulo que segue com a apresentação também das patroas Chayene, Lygia Ortega, Sônia Sarmento e sua filha Ariela – a outra filha, Isadora, só entrará na novela a partir da segunda semana -, e das demais personagens secundárias que inclui também o núcleo familiar de cada personagem principal. Assim, somos apresentados não só às personagens mas também à temática principal da novela que é desenvolvida a partir de elementos representativos que nos dão o “tom” da obra. O relacionamento entre patroas e empregadas assume papel central na trama e podemos, a partir do primeiro capítulo, capturar indícios que remetem a essa dicotomia. O estabelecimento da dicotomia patroas/empregadas esconde uma relação assimétrica e vertical produzida por um contexto histórico, social e econômico de dominação. Para Santos (2004), as relações dicotômicas, aparentemente simétricas, ocultam sempre uma relação de poder, hegemônica, com uma hierarquia pré-estabelecida. Em “Cheias de Charme” a dicotomia patroas/empregadas é tencionada constantemente, ora reproduzindo as hierarquias historicamente produzidas, ora buscando rompê-las. De qualquer forma, a oposição bem marcada entre esses dois grupos sociais nos oferece elementos para a observação de uma diferenciação de classes a partir da qual se constroem as identidades de patroas e empregadas. Nesse sentido, destacamos abaixo dois recursos utilizados pela produção da telenovela que marcam explicitamente a oposição empregadas x patroas.

4.2.1. CasaGrande x Borralho Podemos observar que uma das estratégias narrativas que demarcam explicitamente o lugar das diferentes classes sociais em “Cheias de Charme” foi trazer para a trama a existência de dois bairros onde se passam as principais ações da novela. O condomínio CasaGrande e a comunidade do Borralho são lugares de representação e diferenciação das classes sociais, distanciadas e separadas não só geograficamente mas também culturalmente. O lugar onde cada personagem vive, assume, nessa obra, uma função significativa para narrativa pois é um indicador explícito de sua classe social, delimitando também sua função trabalhista, suas referências familiares, seu modo de viver, uma forma própria de falar e de se vestir, uma visão de mundo. A dicotomia

92 CasaGrande e Borralho dá vida à oposição popular x burguesia, representada em “Cheias de Charme” por empregadas e patroas. Ao intitular o condomínio onde moram as patroas de CasaGrande, os autores da novela automaticamente acionam a nossa memória a partir do recurso da intertextualidade nos remetendo a todos os conceitos, preceitos e ideias da obra de Gilberto Freyre (2003), Casa Grande e Senzala. O diálogo com Freyre está no nível da interdiscursividade promovendo a ativação do dispositivo da memória discursiva. É através dessa memória que acionamos inconscientemente outros discursos e falas anteriores ao nosso sobre determinado assunto situando o interdiscurso na esfera do já- dito. O que já foi dito em outros momentos dialoga com o que estamos dizendo agora, dessa forma, “O interdiscurso é todo o conjunto de formulações feitas e já esquecidas que determinam o que dizemos. Para que minhas palavras tenham sentido é preciso que elas já façam sentido” (ORLANDI, 2005, p. 33). A Casa Grande descrita por Freyre, remete ao lugar histórico onde senhores(as) do Brasil Colonial viviam e usufruíam dos serviços dos escravos doméstico (já descrito no capítulo 3). Na Casa Grande dos latifundiários, os escravos serviam aos seus senhores em uma condição de subalternidade que envolvia uma relação de tripla dominação: gênero, raça e classe social. A Casa Grande também representava o centro do poder, da riqueza e das decisões. Não coincidentemente o condomínio CasaGrande é o lugar em que moram todas as patroas da trama e suas famílias abastadas, lugar de luxo, mansões, prédios modernos, e também o lugar onde trabalham todas as domésticas da novela e um outro grupo de trabalhadores entre eles porteiros, seguranças, motoristas, babás etc.

Figura 03 – Comunidade do Borralho e Condomínio Casa Grande

Fonte: Gshow

93

Em oposição à Casa Grande temos na obra de Freyre (2003) a senzala, representada em “Cheias de Charme” pela comunidade do Borralho onde residem as empregadas domésticas e todo o núcleo trabalhador da trama. Aqui mais uma vez vemos o recurso da intertextualidade sendo utilizado através do borralho que nos remete à fábula da Gata Borralheira. O borralho originalmente significa cinzas e a Cinderela era chamada de Gata Borralheira por estar sempre suja de cinzas/borralho por conta de seu excessivo trabalho doméstico. Sendo assim, no imaginário popular, o borralho assumiu o lugar de trabalho, estar sujo de borralho ou estar no Borralho, significa ser trabalhador. Mas o conto da Gata Borralheira também remete a uma história de ascensão social, o romance com um príncipe que lhe tira da condição de explorada no serviço doméstico e a eleva à condição de princesa. Na fábula, a moral da história associa o final feliz como recompensa pelos dias cansativos de trabalho, honestidade e subordinação. Um indício que nos remete à história de vida das três protagonistas e sua futura transformação em celebridades como recompensa pela vida dura e difícil que tiveram, assim como no conto de fadas. É significativo também observar a forma como o Borralho é representado no primeiro capítulo da novela. Após a cena de abertura onde vemos as três protagonistas na delegacia, temos a imagem de um relógio retrocedendo, em seguida um despertador toca e a câmera o mostra – em plano detalhe - marcando 05:10 h da manhã. Penha levanta, se espreguiça e abre a cortina de seu quarto, em seguida, ouve-se como trilha sonora o radialista Gentil Soares fazendo a abertura de seu programa “Bom dia, Dona Maria!”. Enquanto ouvimos Gentil Soares saudando suas ouvintes vemos intercaladas imagens do Borralho.

Gentil Soares: “- Alô você que está acordando! Você que já está de pé na batida eu sou Gentil Soares e está no ar o Bom Dia Dona Maria. Bom dia Dona Mirna, Dona Vanda, Dona Bené e para todas que ligaram pro [música no fundo: Gentil Soares, galo canta bem cedinho e traz Gentil pro seu radinho] Gentil diz bom dia pra você! Esta é pra você secretária do lar que ganha a vida dando duro em casa de família. [música de fundo do cantor Fabian]”

94 Figura 04 – Sequência de imagens que representa o Borralho

Fonte: Gshow

A fala do radialista Gentil Soares intercalada com imagens do Borralho é significativa e nos dá indícios de como as classes populares/trabalhadoras serão representadas na novela. A sequência audiovisual editada para representar o Borralho reforça a ideia de uma comunidade de gente simples e trabalhadora que às 05 h da manhã já está de “pé na batida”, disposta e pronta para “dar duro”. Essa percepção é reforçada quando observamos mais atentamente as características dos moradores do bairro, canalizadas para a personagem Penha que tomamos como exemplo de moradora padrão. Honestidade, disposição para o trabalho, generosidade, alegria, expansividade, “'comunitária' e não 'individualista'” (SOUZA, J., 2012, p. 49), possuidora do que Jessé Souza (2012) denomina por “capital familiar” que, na falta do capital econômico, constitui a transmissão de valores familiares que priorizam exemplos de ética do trabalho, superação das adversidades e honestidade. Essas características funcionam como índices de analogia, como aponta Maria Carmem Jacob de Souza (2004a), que remetem à ideia de classes populares que vêm se perpetuando na teledramaturgia nacional: “No caso particular dos personagens que representam o popular, observa-se uma tendência à defesa do trabalho, da dedicação, da honestidade e da cordialidade como matrizes de homem ou mulher pobre (...)” (p. 37). Dentre os moradores do bairro, os únicos que não possuem essas características são

95 Maria do Socorro, também empregada doméstica, e Sandro, o marido malandro de Penha. Os moradores da comunidade do Borralho são representados aqui com características da “nova classe trabalhadora” ou simplesmente dos “batalhadores brasileiros” descrito por Jessé Souza (2012). Enfatizam-se assim, aspectos que remetem à valorização do trabalho como uma das poucas possibilidades de um futuro melhor. Dessa forma, contribui-se para a propagação da ideia de esforço individual e do conceito de meritocracia onde “a superação das dificuldades econômicas é solucionada individualmente pela trajetória profissional, ancorada na vontade pessoal e na força emocional dos que estão em desvantagem (...)” (RONSINI, 2012, p. 119). Observa-se ainda que o retrato do Borralho em “Cheias de Charme” corresponde a uma vertente de representação idealizadora das classes populares/trabalhadoras ao ressaltar sua autenticidade e demonstrar um certo fascínio e valorização de seu estilo de vida. O estigma de periferia, e consequentemente de pobreza, se transforma em emblema com a exaltação do povo e reivindicação de valorização das origens humildes (Souza, M., 2004a).

4.2.2. Empregadas x Patroas, ou seria o Bem x o Mal? O antagonismo entre o bem e o mal é parte integrante da estrutura narrativa da teleficção. Ainda que nas produções atuais haja uma maior complexidade nessa estrutura, vilões e mocinhos continuam assumindo o protagonismo das histórias e se enfrentando diariamente nas telenovelas que vemos no ar. Consideradas personagens tópicas das narrativas melodramáticas o herói e o vilão, ou a heroína e a vilã, são tipos característicos da narrativa folhetinesca que a telenovela moderna manteve em suas histórias (PALLOTTINI, 2012). As personagens tópicas obedecem a um esquema predeterminado de representação, com características que se repetem continuamente a cada nova produção tornando suas ações já conhecidas pelo público. Na representação do bem e do mal em “Cheias de Charme”, vemos a manutenção dessas personagens tópicas principalmente através da perpetuação de aspectos morais. As heroínas – representadas, de modo geral, pelas empregadas domésticas - mantém um conjunto de características que envolve honestidade, simplicidade, romantismo, suas histórias são marcadas pelo sofrimento, injustiça e delas espera-se a superação das dificuldades e o triunfo da felicidade representada pela ascensão social ou pelo casamento. As vilãs – em geral representadas pelas patroas – passam toda a trama se

96 opondo às mocinhas, tramando para dificultar suas vidas, são ressentidas, ambiciosas e se convencionou que devem ser castigadas no final, seja com o declínio social, a morte ou prisão. Ainda que haja exceções, a oposição bem x mal é abordada em “Cheias de Charme” a partir da dicotomia empregadas e patroas. Essa clara demarcação se deve ao fato de que a virtude ou a maldade na sua forma pura não conferem complexidade psicológica facilitando a identificação moral das personagens, mediando assim, a empatia ou rejeição do público (PALLOTTINI, 2012). Ou ainda como afirma Ronsini (2012): “o ponto de vista dos criadores é que as relações sociais e o destino das pessoas se resolve pelas opções morais entre o honesto e o desonesto, fortes e fracos, bons e maus” (p. 121). Nesse caso, observamos que há uma constante discursiva na forma como patroas e empregadas são representadas, um processo parafrástico onde os discursos se sustentam a partir de um já-dito que se repete continuamente garantindo assim, a estabilização discursiva dentro das mesmas esferas do dizer. A oposição patroa/empregada é histórica, sendo registrada desde os tempos do Brasil Colonial a partir da rivalidade entre escravas e sinhás. Gilberto Freyre (2003) registra: “O motivo, quase sempre, o ciúme do marido. O rancor sexual. A rivalidade de mulher com mulher” (p. 421). Relação desigual, baseada na subjugação racial e social, conferia à sinhá uma posição privilegiada diante da escrava a quem podia infligir, inclusive, castigos físicos. Freyre (2003) relata a prática comum de sinhás quebrarem os dentes ou marcarem o rosto de suas escravas domésticas para que ficassem menos atraentes para seus senhores. A relação entre patroas e empregadas é uma relação entre mulheres, dentro do ambiente doméstico, com fronteiras profissionais pouco definidas e uma constante disputa por território (Preuss, 1997). Essas características tornam esse vínculo ambivalente, com sentimentos contraditórios de ambas as partes, que se refletem em uma relação de proximidade e oposição.

97 Quadro 1: Personagens representativos do bem e do mal BEM MAL Maria da Penha (empregada) Chayenne (patroa) Maria do Rosário (empregada) Sônia Sarmento(patroa) Maria Aparecida (empregada) Ariela Sarmento (patroa) Dona Valda (empregada) Isadora Sarmento (patroa) Lygia (patroa) Máslova (patroa) Gracinha (empregada) Socorro (empregada) Ivone (empregada) Branca (patroa) Brunessa (empregada)

Em “Cheias de Charme”, as patroas, com seus discursos, dão continuidade às desigualdades históricas mantendo um comportamento e um perfil de patroas “más” que humilham e exploram suas funcionárias. Na esfera textual, as palavras usadas para se referir às trabalhadoras como “criadagem” e “serviçais” ou ainda no diminutivo como, por exemplo, “mocinha”, “empregadinha” e “gentinha” demonstram desprezo e superioridade; as agressões físicas e psicológicas, ameaças e apelo para a gratidão das empregadas apontam para a manutenção da dominação e dependência social; os xingamentos – principalmente proferidos por Chayene – como, por exemplo, “égua”, “jumenta”, “quenga”, “paneleira”, “ariranha da pata furada”, “potra”, “burra” e “porca” reforçam o estereótipo de vilania. Outras frases de igual peso discriminatório também são proferidas pelas patroas a exemplo de:

- “Empregada é que nem eletrodoméstico, tem prazo de validade.” - Sônia Sarmento - “Lhe pago não é pra ficar de bate coxa. Quando chego em casa quero ser servida.” / “E tu cale a sua boca também sua paneleira traíra, teu lugar é no fogão!” / “Você acha que vai posar do meu lado assim vestida de gente?”- Chayene - “Ah! A classe alta ficou refém da criadagem.” / “No meu tempo elas imploravam para trabalhar com a gente por qualquer trocado.”- Máslova

Esses são apenas alguns indícios que apontam para a necessidade de manutenção do poder dentro do ambiente doméstico, demonstração de superioridade na tentativa de não ser substituída pela empregada na condição de “dona do lar”, ou ainda uma tentativa de manter a distinção social demonstrando claramente qual o lugar ocupado pela empregada no jogo de disputa do espaço social, como aponta Preuss (1997): “Ao mesmo tempo em que precisa dos serviços da empregada, a patroa não deseja ser

98 substituída, apenas obedecida. O controle precisa manter-se em suas mãos e, para tal, são várias as estratégias (...)” (p. 54-55). Por outro lado, as empregadas, que necessitam do trabalho, entendem sua condição social desfavorecida e se submetem a uma relação desigual dentro do espaço social da patroa. Nesse sentido, as heroínas de “Cheias de Charme” reforçam, através de seus discursos, o estereótipo das mocinhas sofridas que precisam “sobreviver” às dificuldades impostas pelas patroas vilãs. Reforçam esse aspecto frases como:

- “Não vem não Penha! Dr. Lygia faz parte da categoria de patroas malditas que fazem a gente sofrer” - Rosário - “Agora todo mundo sabe! O Brasil inteiro sabe que tu maltrata empregada!” - Penha falando com Chayene - “O fato é que a gente sofre muito na mão de patrão viu? Ô vida essa nossa!” - Cida

Observa-se também que há uma forma própria das empregadas se referirem às patroas, em geral usam o deboche quando as chamam de “madames” - indicativo de futilidade e frivolidade; o humor quando Penha, por exemplo, diz que Chayene é “babado, confusão e gritaria” ou quando afirma que a patroa cheira a enxofre; e até mesmo xingamentos como: bruaca, lacraia, sarnentas – quando Cida se refere às mulheres da família Sarmento. De modo geral, esse comportamento é observado nas cenas em que as três personagens estão juntas ou quando desabafam com amigos e familiares, na frente dos patrões o comportamento é diferente e quase sempre subalterno. Os xingamentos e deboches que utilizam para se referir às patroas é “justificado” pelo histórico de humilhações e sofrimentos, não aparentando para a audiência sinal de maldade ou perversidade, o que inviabilizaria suas características de mocinhas. Apesar da novela demarcar a oposição entre empregadas e patroas, observamos outras tensões que vão além das dicotomias apresentadas acima. No universo ficcional criado para representar o bem e o mal em “Cheias de Charme”, duas personagens se destacam e destoam de seus grupos sociais originais: a patroa Lygia Ortega e a empregada Maria do Socorro. Ao contrário das outras patroas que se opõem às protagonistas, a advogada Lygia buscou um relacionamento de amizade com Maria da Penha enquanto a empreguete trabalhava em sua casa. Conhecedora das leis, Lygia é justa, correta e além de pagar todos os direitos trabalhistas ainda defende a causa das domésticas por mais igualdade. A dicotomia aqui é rompida a partir dessa personagem

99 que, apesar de figurar no núcleo das patroas, se impõe como benevolente e atenta à causa das empregadas domésticas. No site oficial da telenovela Lygia é descrita como: “Justa, tem um grande senso ético. (…) vive o paradoxo da mulher moderna: quando sai de casa para ganhar o pão, precisa deixar outra pessoa cuidando da sua família”. Esse senso de justiça é demonstrado pelas suas ações – advogada de Chayene, ela deixa o caso ao se compadecer por Penha e por considerar a ação injusta – e pelas suas falas:

- “Parceria, é isso que tem entre a gente” - em conversa com Penha - “Eu assino carteira, pago direitinho, faço tudo conforme a lei. Te garanto que eu sou uma patroa bem melhor que a Chayene. Há tempos que eu estou procurando uma parceira de confiança, Penha!”

Por outro lado, Socorro não segue a lógica do trabalho e do esforço dos novos trabalhadores brasileiros, dos moradores do Borralho e das demais empregadas domésticas. Ao contrário, ela é preguiçosa, não gosta de trabalhar, come toda a comida dos patrões, quebra a louça das patroas e tem uma verdadeira veneração por Chayene, ao ponto de se auto intitular, com orgulho, a “personal curica de Chay”. Parte do núcleo cômico da novela, Socorro põe em prática todos os planos mirabolantes de Chayene para prejudicar o trio Empreguetes que ameaçam seu sucesso. É válido ressaltar que o recurso humorístico é uma constante em “Cheias de Charme”, principalmente através das personagens Chayene e Socorro, conferindo leveza, arrancando risos e tornando mais “confortável” essa oposição entre empregadas e patroas. Os efeitos sonoros, o figurino extravagante, e a corporeidade dessas personagens minimizam os conflitos e tornam menos realistas as situações representadas.

4.3. Representação dos conflitos entre patroas e empregadas

4.3.1. Relação assimétrica, agressão física da patroa e a busca dos seus direitos pela empregada

Análise das personagens - Maria da Penha Maria da Penha, interpretada por Thaís Araújo, é o estereótipo da empregada doméstica brasileira. É negra, tem cabelo crespo, é arrimo de família e possui um modo de falar específico que demonstra sua pouca escolaridade – tem erro de concordância

100 em suas falas, por vezes não utiliza o plural e comumente se expressa com palavras incompletas ou expressões como “caraca”, “chique de fina”, “peãozada”, “linda de bonita”, “mermo”. Suas características são compatíveis com o perfil das trabalhadoras domésticas presentes no Brasil contemporâneo e apresentadas em pesquisas realizadas por institutos como o DIEESE (2013) e o Ministério do Trabalho e Emprego (2012) (ver capítulo 03).

O conceito de estereótipo aponta para um já-dito, em determinado momento, cristalizado e rígido em uma sociedade que compartilha os mesmos ideais e referências. Esse já-dito, que está na esfera da nossa memória discursiva, por vezes possui origem desconhecida mas está solidificado o suficiente para sustentar o dito, operando dessa forma em analogia com o enunciado pré-construído. Segundo Orlandi (1997) o estereótipo deve ser pensado “como lugar em que trabalham intensamente as relações da linguagem com a história, do sujeito com o repetível, da subjetividade com o convencional. Tudo isso perpassado pelo funcionamento imaginário do discurso.” (p.128) Portanto, ao afirmar que Penha é o estereótipo da empregada doméstica brasileira estamos dizendo que ela possui um conjunto de características, em geral generalizadas, que apontam para uma representação preestabelecida desse grupo social. Há aqui uma relação entre estereótipo e identidade social, uma representação carregada de juízos e valores com discursos dados que identificam socialmente o sujeito. Não coincidentemente, Penha é a única negra das protagonistas, que se reconhece na profissão de trabalhadora do lar e que tem orgulho dela. Tendo que sustentar os irmãos desde cedo – já que a mãe os abandonou – e também o filho – já que o marido é um “autêntico” malandro carioca - a história de vida da personagem se confunde com a de inúmeras batalhadoras brasileiras para as quais inexiste o “privilégio da escolha” profissional, apenas a necessidade de sobrevivência (SOUZA, J., 2012).

101 Figura 05: Maria da Penha

Fonte: Gshow Observa-se também em Penha o estereótipo da mulata sensual comumente associado às personagens femininas e negras já consolidados em nossa memória discursiva. Sua corporeidade aponta para o reforço da ideia do negro alegre, extrovertido e sedutor que se convencionou durante séculos em nossa formação social, como aponta Freyre (2003): “Aliás o nosso lirismo amoroso não revela outra tendência senão a glorificação da mulata, da , da morena celebrada pela beleza dos seus olhos, pela alvura dos seus dentes, pelos seus dengues.” (p. 72). As roupas simples de Penha estão sempre valorizando seu corpo com calças jeans coladas, sandálias de salto alto e blusas com decotes ou modelo “tomara que caia” - destaque para a forma como a personagem constantemente suspende a blusa. Seu andar possui um rebolado peculiar e o balançar de seu corpo durante as conversas reforça sua sensualidade. A construção identitária da personagem nos mostra um conjunto de elementos e práticas que apontam para sistemas simbólicos próprios das representações das minorias e das heroínas na teledramaturgia brasileira. Representações essas que mostram na tela a “pobreza que traz em si a beleza, a sedução da força e da coragem, o espírito do trabalho e do auto- sustento honrado e digno e que não se submete aos poderosos.” (SOUZA, M., p. 13, 2004a)

- Chayene Chayene, interpretada por Cláudia Abreu, é uma cantora de eletroforró que durante muitos anos dominou o cenário musical. A construção da personagem é

102 livremente inspirada nas cantoras Joelma da Banda Calypso e na rainha do tecnobrega Gaby Amarantos. Nascida em Sobradinho, cidade do interior do Piauí, Chayene ascendeu socialmente, de uma origem pobre e humilde para o estrelato musical. Sua origem nos ajuda a entender a complexidade da personagem como, por exemplo, a extravagância no figurino e na decoração da casa. Suas atitudes e ações remetem à representação do emergente social e ao tipo de patroa que tem sua relação com a empregada doméstica como forma de status, distinção e diferenciação social (PREUSS, 1997). Seu vocabulário, observado a partir da dimensão textual, compreende palavras do regionalismo nordestino como “curica” e “brocada de fome” além de xingamentos às domésticas e outras expressões da prática discursiva, demonstrando força nos enunciados a partir, principalmente, de ameaças e humilhações (FAIRCLOUGH, 2001).

Figura 06: Chayene

Fonte: Gshow A composição do caráter e da corporeidade de Chayene nos remete a uma caricatura das artistas do mundo musical. Além de seu figurino extravagante - similar às fantasias de carnaval com muitas cores, plumas, adereços e maquiagem exagerada - a cantora precisa lidar constantemente com as exigências do mundo das “celebridades” que envolve cobranças para o sucesso, mídia, aceitação do público, entre outros. Todas essas características representativas são exageradas e potencializadas de forma caricatural através da expressividade corporal e facial da atriz que com seus trejeitos dá vida à personagem. É necessário ressaltar também que, apesar de ser a antagonista da trama e estar sempre elaborando planos para encerrar o sucesso das Empreguetes, Chayene se tornou uma das personagens mais emblemáticas da novela com grande aceitação do público.

103 Isso por conta dos sentimentos ambíguos que provoca na audiência. Apesar de ser declaradamente uma vilã, suas armações com Socorro são pautada no humor e na comicidade. Destacam-se ainda o lado humano da personagem explorado a partir da solidão e da necessidade que tem de ser aceita e amada pelos fãs, e a empatia que a atriz Cláudia Abreu promoveu com a audiência.

Análise da cena A sequência de cenas escolhida para análise como representativa dos conflitos entre Penha e Chayene foi ao ar no primeiro capítulo da novela (no dia 16/04/12) e compreende as cenas 14 e 17. Nessa sequência, Chayene está em seu quarto se arrumando para um show quando seu assistente Laércio descobre que o vestido que a cantora usaria está queimado com marcas de ferro de passar roupa. Nas cenas anteriores vimos que Penha se distraiu falando ao telefone enquanto passava o figurino da patroa e acabou queimando o vestido. Esse pequeno deslize trará consequências nas cenas que iremos analisar. Ao perceber que o vestido estava queimado Chayene se irrita com Penha, segue abaixo o diálogo:

Chayene: - Ai! Eu não acredito que aquela abestada … [é interrompida por Penha que entra no quarto para servir a refeição] Penha: - Licença Dona Chayene! Chayene: - Tu queimou meu vestido de show sua égua? [Penha se espanta com a pergunta e prontamente se posiciona atrás do carrinho de comida como se quisesse se defender da patroa] Penha: - Foi sem querer Dona Chay... se a senhora quiser eu posso costurar pra senhora. Chayene: - Vou costurar é a tua língua e te descontar no final do mês. Penha: - Sim senhora!

Nesse pequeno trecho, podemos destacar na esfera textual o vocabulário utilizado por Chayene para se referir à Penha. As palavras “abestada” e “égua”, possuem peso pejorativo e se constituem em xingamentos comumente utilizados pela personagem no tratamento com as empregadas domésticas. Destaca-se também os erros linguísticos e as marcas regionais – nordestina - presentes no vocabulário da personagem. Na esfera da prática discursiva, observamos a força dos enunciados a partir dos tipos de atos de fala (FAIRCLOUGH, 2001) transmitido nas frases: - Tu queimou meu vestido de show sua égua?; - Vou costurar é a tua língua e te descontar no final do mês. Essas frases

104 possuem um forte tom de ameaça e também uma promessa que é a de descontar o valor do vestido no salário. Aqui as relações de força estão bem estabelecidas e diferenciadas com cada um dos interlocutores conhecendo o seu lugar de fala. No espaço das formações imaginárias as posições dos sujeitos estão assim estabelecidas: Chayene assume o lugar de fala da patroa e Penha da empregada. Essa relação delineará todo o diálogo e todo o jogo discursivo. Ao confrontar Penha, Chayene coloca em jogo a imagem que faz de si mesma e de sua interlocutora. Entra, então, em cena o esquema das formações imaginárias e dos lugares de fala proposto por Peucheux e apresentado por Orlandi (2005). As imagens de posição dos sujeitos estão implícitas em questões como: “Quem sou eu para lhe falar assim?” ou ainda “Quem é ela para que lhe fale assim?”. Essas perguntas direcionam a condução do discurso da personagem e a forma como ela se posicionará diante de sua interlocutora. Fica claro, na observação da cena que Chayene se posiciona no lugar de patroa e por isso “superior” à empregada, além disso, o fato de Penha ter queimado o seu vestido lhe dá vantagem no jogo discursivo. Por outro lado, Penha questiona-se “Quem sou eu para que ela me fale assim?” ou ainda “Quem é ela para que me fale assim?”. A resposta coloca Penha no lugar da empregada doméstica – subordinada – que queimou o vestido da patroa, portanto, em desvantagem. Fica claro ainda que a questão econômica é um dos elementos da suposta superioridade de Chayene em detrimento de Penha. A patroa possui uma dominação econômica sobre a empregada à medida que é ela quem lhe paga o salário e principalmente por ter conhecimento das condições sociais e econômicas de suas trabalhadoras. Dessa forma, a promessa/ameaça de Chayene a Penha - em lhe descontar o valor do vestido no salário - perpassa pela dominação econômica. Soma-se a isso, a característica de isolamento do serviço doméstico que se realiza dentro esfera privada do lar o que contribui para o ambiente de hostilidade e tensão vivida por empregadas e patroas. A análise desse trecho nos permite também observar como o lugar de posicionamento social dos sujeitos se reflete em sua corporeidade. Chayene com suas falas agressivas e ameaçadoras apresenta-se em cena com um posicionamento altivo e ofensivo dirigindo-se de forma ameaçadora em direção a Penha, sempre com a cabeça erguida, tom de fala alterado e constantemente com o dedo apontado. Penha, por outro lado, refugia-se atrás do carrinho de comidas, se desculpa constantemente e apresenta expressões faciais que remetem ao medo, como os olhos arregalados, por exemplo. Vale

105 ressaltar ainda que nessa cena Penha está vestida com um uniforme que remete ao seu serviço de empregada doméstica. Essa observação do figurino é importante para a análise da significação identitária da personagem. Nesse caso, o ethos de mulata sensual, representado pelas roupas justas que valorizam o seu corpo e seu rebolado dá lugar ao ethos de doméstica.

Figura 07: Expressão facial de Chayene e Penha

Fonte: Gshow

A cena segue e Chayene questiona Penha sobre o cardápio da refeição, ao saber que a empregada cozinhou sopa gelada de cenoura a patroa retruca: “Cenoura? Carboidrato? Tá querendo me ver gorda sua jumenta?”. A preocupação de Chayene com a aparência pode ser percebida no início da cena quando ela se veste em frente ao espelho e questiona Laércio sobre os seus “quilinhos a mais”, uma preocupação típica das celebridades. Ao associar a ingestão de carboidratos com o aumento de peso, Chayene explode e grita para Penha: “Tira essa gororoba xexelenta daqui!”. Em seguida, arremessa a sopa em Penha que, espantada, repete: “O quê que é isso Dona Chayene? O quê que é isso?”. A cena 14 encerra com Penha suja de sopa e um pequeno suspense sobre qual será a sua reação. Duas cenas passam e na cena 17 é apresentado ao público o desfecho desse conflito. A cena inicia no mesmo cenário, com Chayene se justificando com Laércio e afirmando que não jogou a sopa em Penha. Chayene mantém o mesmo ar de superioridade enquanto Penha se limpa e demonstra, em sua expressão facial, inconformidade pela agressão sofrida. Apesar de afirmar que não agrediu Penha, Chayene assume novamente um tom ameaçador caminhando em direção à empregada e afirmando que Penha lhe “detesta” e faz tudo para lhe sabotar. A tensão da cena se estabelece quando Chayene se aproxima de Penha com a mão levantada – simulando

106 um tapa – e dá um esbarrão na empreguete derrubando-a sentada em um puff. Penha prontamente grita: “Não encosta a mão em mim!”, enquanto Chayene responde: “O quê que é! Vai encarar?”

Figura 08: Sequência de imagens: cena 17, capítulo 01

Fonte: Gshow

Nesse ponto, há um aumento no tom de voz das duas personagens intensificando as ameaças. No caso de Chayene além de ameaça temos ainda a ocorrência de um desafio expresso na frase: “O quê que é! Vai encarar?”. Aqui, temos o momento de maior tensão no conflito entre as duas, com as agressões extrapolando o nível verbal e se consolidando com o enfrentamento físico. Diante do desafio de Chayene, Penha se cala. Em pensamento, ela avalia as consequências de um enfrentamento com a patroa: “Penha, Penha se tu parte para a ignorância tu mata ela. Pensa no teu filho que tu tem para criar.” Enquanto Penha avalia suas possibilidades, sua imagem é entrecortada com uma sequência de imagens de Chayene em contra-plongé – ressaltando sua superioridade – dando gargalhadas e jogando folhas de alface em Penha. A gargalhada de Chayene, sua expressão facial e a imagem em contra-plongée ressaltam as características de vilania da personagem. Enquanto Penha, sentada na defensiva, assume a postura da vítima.

107 Figura 09: Chayene agride Penha

Fonte: Gshow

O silenciamento de Penha diante do desafio imposto por Chayene para o enfrentamento não é entendido aqui como significado de conformidade diante de uma situação de conflito que inclui agressões físicas e verbais. A conformidade seria a legitimação da dominação da patroa e do assujeitamento da empregada. Ao contrário, o silenciamento de Penha se inscreve na retórica do oprimido como resistência (ORLANDI, 1997), expressa na relação entre silêncio e pensamento, transcrito acima. Após a saída de Chayene e Laércio do quarto, Penha rompe seu silêncio: “Mas isso não vai ficar assim! Mas isso não vai ficar assim! Mas isso não vai ficar assim mermo! Ou eu não me chamo Maria da Penha!” Aqui, a resistência se expressa a partir de uma promessa. Apesar de evitar o enfrentamento físico e/ou verbal com a patroa, Penha, que durante toda a cena assumiu o papel da minoria subordinada, rompe que a condição de submissão e assume uma postura que aponta, não só para revolta por conta das agressões, mas principalmente para reivindicação de seus direitos como pode ser demonstrado nas cenas posteriores quando a personagem se dirige à delegacia para prestar queixa da patroa. A partir dessa cena e da análise do discurso de Penha, vemos que a personagem não só dialoga com as atuais demandas das trabalhadoras domésticas contemporâneas mas também, representa uma classe que luta para romper com a relação de dominação, resquício da escravidão, a partir de um processo de resistência que inclui o recurso Judicial e novas leis de proteção trabalhista para o setor como a PEC das domésticas (ver capítulo 03). Observa-se então na personagem uma consciência de classe expressa a partir de sua atitude em denunciar sua patroa. Ainda que não observemos em Penha uma militância explícita através de uma luta política, que poderia

108 ser representada pela sua sindicalização, suas ações são representativas para o grupo social ao qual pertence servindo como exemplo para que outras ações como essa sejam tomadas.

4.3.2. A questão da sexualidade e a figura do homem no espaço doméstico

Análise das Personagens32 - Maria do Rosário Maria do Rosário, interpretada por , é a única protagonista que originalmente não tem como profissão o serviço doméstico. Seguindo as indicações do Ministério do Trabalho e Emprego (2012), apesar de ser cozinheira em um bufê, a personagem não pode ser classificada como empregada doméstica porque a empresa para qual trabalha se beneficia economicamente de seus serviços. Filha adotiva de Sidney, gerente do bufê, Rosário sonha desde criança em ser cantora e por conta desse sonho irá se submeter a trabalhar como empregada doméstica na casa da cantora Chayene. Diferentemente das outras protagonistas, que não foram beneficiadas com a possibilidade da escolha profissional, Rosário escolhe a profissão de doméstica na intenção de se realizar como artista. Nesse caso, a personagem assume, temporariamente, a identidade de empregada doméstica. Durante as cenas analisadas da primeira fase da novela vemos em Rosário uma determinação em se auto afirmar como cantora. Apesar de ainda não ter sido descoberta pelo meio musical, a personagem assume essa identidade e se identifica com ela.

32 A cena analisada representa o enfrentamento entre Maria do Rosário e Chayene, porém a análise da personagem Chayene já foi realizada no tópico 5.2.1

109 Figura 10 – Maria do Rosário

Fonte: Gshow

A escolha de Rosário trará conflitos para a relação entre ela e seu pai que não aceita a nova escolha profissional da filha. Na cena que foi ao ar no capítulo 33, Sidney exprime sua indignação e chega até a proibir a moça a aceitar o emprego: “Você tá me dizendo que você vai trabalhar de empregada doméstica, é isso? Não! Não foi pra isso que eu te criei!” É perceptível que Rosário possui uma estrutura familiar diferente das que tiveram Penha e Cida. Residentes no Borralho, Sidney e Rosário demonstram possuir uma condição socioeconômica diferente dos demais moradores do bairro – ainda que essa questão não seja problematizada e não apresente conflitos - esse fato pode ser observado a partir de sua residência, um apartamento amplo, bem mobiliado e decorado em um prédio simples na entrada da comunidade. Assim, Rosário recebeu do pai o capital cultural (BOURDIEU, 1996a; SOUZA, J., 2012) necessário para competir no mercado de trabalho e assumir uma posição profissional mais valorizada, por isso a dificuldade de aceitação de Sidney para que a filha trabalhe como empregada doméstica. O trabalho de doméstica é entendido pelo pai como um serviço aquém de sua qualificação profissional e de sua condição social. Nesse caso, Rosário possui uma vantagem em relação às outras protagonistas, que é a de não depender unicamente da profissão de doméstica, possuir um núcleo familiar estável e outras habilidades profissionais que lhe permitem uma colocação em outros setores trabalhistas.

110 A construção da personagem indica para essa diferenciação e Rosário se apresenta mais bem educada, instruída e “descolada” que as outras empreguetes. Seu caráter e sua corporeidade apontam para características que são exigidas em pessoas que almejam a carreira de artista. Sendo assim, ela é desinibida, não se intimida diante das câmeras, fala bem e possui um figurino antenado com as tendências da moda utilizando sempre jaquetas, short com meia-calça por baixo e camisetas com estampas coloridas. Dessa forma, identificamos em Rosário características que apontam para um identificação da personagem com o ethos de cantora. Como cozinheira do bufê, Rosário está sempre atenta à boa forma e à alimentação saudável das artistas, por isso, consegue o emprego na casa da cantora Chayene. Apesar de também trabalhar como empregada doméstica e se submeter a uma relação assimétrica com a patroa – que inclui xingamentos e humilhações – o conflito de Rosário perpassa pelas dificuldades em consolidar sua carreira de cantora e de conciliar o relacionamento amoroso com o namorado Inácio e a paixão de fã que nutre pelo cantor Fabian.

Análise da cena Desde que começou a trabalhar como empregada doméstica na casa de Chayene, o objetivo de Rosário era conseguir contatos e visibilidade com os artistas e empresários do meio musical que circulam na casa da cantora, mesmo que para isso ela tivesse que se submeter aos tratamentos humilhantes da patroa. Um desses objetivos era se aproximar do cantor Fabian (Ricardo Tozzi) para entregar um CD gravado por ela e com composições próprias. No entanto, Rosário é uma fabianática33 e sua aproximação com o cantor se estabelece no limite entre a admiração profissional e o romantismo, trazendo sempre características do conto de fadas e do amor proibido entre o patrão/príncipe e a empregada. Porém, sua patroa Chayene também é apaixonada por Fabian e os dois vivem um namoro “midiático” para alavancar suas carreiras e aumentar a visibilidade. Dessa forma, a origem do conflito entre Rosário e Chayene se estabelece na disputa pelo amor de Fabian e pelo ciúme doentio da patroa, como veremos na cena analisada. A sequência escolhida para análise é a primeira cena do capítulo 14 que foi ao ar no dia 01/05/12. Nessa cena, Rosário está na cozinha da casa de Chayene passando pano

33 Termo utilizado na novela para caracterizar as fãs do cantor Fabian

111 no chão e cantando quando Fabian entra e começa a observá-la. Quando Rosário percebe que está sendo observada por ele interrompe a música. Fabian elogia sua voz, diz como ela tem talento para a música e a incentiva a seguir a carreira de cantora. Rosário fica emocionada e quando vai se aproximar de Fabian escorrega no chão molhado e cai nos braços do cantor. Nesse momento Chayene entra na cozinha e vê os dois abraçados, segue o diálogo:

Chayene: - Então é verdade! Tu é mesmo chegado em uma empregadinha [pausa] E tu Rosalba? Perdeste o amor ao emprego? Rosário: - Não! Não é nada disso que a senhora tá pensando [é interrompida por Chayene] Chayene: - Quando eu falo não gosto de ser interrompi... [escorrega no chão molhado e cai]

Nesse fragmento de cena fica claro o ciúme de Chayene com relação à aproximação de Fabian com Rosário. Isso se intensifica porque na novela Fabian é conhecido como o Príncipe das domésticas, por isso a cantora afirmar que ele é “chegado a uma empregadinha”. Por acreditar que Fabian nutre um interesse especial pelas empregadas domésticas, Chayene considera Rosário um perigo em potencial. Na esfera textual destacamos as palavras “empregadinha” e “Rosalba” como demonstração do desprezo que a patroa nutre pela sua funcionária. É importante destacar que Chayene nunca se lembra do nome de suas empregadas domésticas e durante toda a novela ela chama de Rosário de Rosalba, Rosélia, Rosilda, Roxane, Rosilda, entre outros. Para Preuss (1997), a relação entre patroas e empregadas é marcada por inúmeros pontos de conflito e um desses elementos de tensão pode ser identificado como a da disputa pela figura masculina. Marcadamente um jogo de poder entre mulheres, a relação ambivalente do serviço doméstico traz à tona a questão da sexualidade. Presente no ambiente doméstico, a sexualidade envolvendo patrões e empregadas é uma constante em nossa formação social e tem origens na ideologia escravocrata onde os senhores de escravos se beneficiavam sexualmente dos serviços das escravas domésticas. Freyre (2003) destaca a beleza como critério de escolha das escravas separadas para o serviço nas casas-grandes, segundo o autor os escravos originários de alguns lugares da África como Guiné e Serra Leoa não eram bons de serviço “porém, bonitos de corpo. Principalmente as mulheres. Daí serem as preferidas para os serviços domésticos (…) também para os doces concubinatos ou simples amores de senhor com escrava em que se regalou o patriarcalismo colonial.” (p. 384).

112 Dessa forma, o nosso contexto histórico, econômico e social institucionalizou a relação sexual entre patrões e empregadas como uma característica natural do serviço doméstico, entendida aqui como uma outra forma de violência e opressão. Institucionalizou-se também que a empregada doméstica é uma ameaça na relação amorosa dos patrões, sendo a origem do ciúme das patroas. No período do Brasil colonial, esse ciúme se materializava em agressões físicas severas que as sinhás infligiam às escravas, na contemporaneidade o ciúme é uma das causas da hostilidade das patroas. Essa hostilidade é observada como uma constante discursiva de Chayene que durante a cena analisada procura neutralizar e interferir na relação de Rosário e Fabian.

Figura 11: Chayene vê Fabian e Rosário abraçados

Fonte: Gshow

Na continuação da sequência analisada Tom Bastos (empresário de Chayene), Simone (irmã de Fabian) e Laércio se dirigem à cozinha ao ouvirem os gritos de Chayene. Ao ser questionada por Tom Bastos sobre o que estaria acontecendo, Chayene fala:

Chayene: - Essa mequetrefa tá armando Tom! Dentro de minha própria casa. Mas ela não sabe o quê que eu faço com gente dessa laia. Rosário: - Vai me bater que nem bateu na Penha? Chayene: - Tu bem que merecia uns tapa nas oreia, ariranha. Rosário: - Ameaça verbal também é crime Dona Chayene Chayene: - Mas eu ainda posso lhe botar na rua. Rosário: - Mas não foi isso que aconteceu! Eu perdi o equilíbrio e ele me segurou, não foi? [aponta pra Fabian] Chayene: [aumento no tom de voz] - ISSO é a sua versão! [Fala quase que sussurrando] a minha é que tu tentou me matar pra ficar com meu namorado!

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De acordo com Preuss (1997), a questão sexual é um dos poucos momentos em que a empregada pode rivalizar com a patroa, dessa forma, a patroa age de forma a neutralizar o “poder” da empregada, seja no apagamento de sua sensualidade – através do impedimento do uso de roupas curtas ou esmaltes vermelhos, por exemplo – ou através da hostilidade. No caso da cena analisada a hostilidade é a forma encontrada por Chayene para atingir Rosário. Na esfera textual, destacam-se o uso de expressões como “mequetrefa” e “gente dessa laia” como um mecanismo para inferiorizar a empregada. Observa-se ainda a força dos enunciados (FAIRCLOUGH, 2001) a partir da ameaça expressa nas frases: “Mas ela não sabe o quê que eu faço com gente dessa laia.”; “Tu bem que merecia uns tapa nas oreia, ariranha.”; “Mas eu ainda posso lhe botar na rua.” As ameaças de Chayene são uma tentativa de amedrontar Rosário e demonstrar, através da agressividade, seu domínio nesse jogo de poder. Observa-se ainda a demarcação do território da patroa quando Chayene afirma: “Essa mequetrefa tá armando Tom! Dentro de minha própria casa”. Essa afirmação soa ainda como uma ofensa, uma afronta representada pelo fato da empregada se aproximar de seu “namorado” na cozinha de sua casa. Essa disputa de território é comumente observada na relação entre patroas e empregadas que culmina da demarcação de espaços dentro do ambiente doméstico. No entanto, a análise do perfil de Rosário nos mostrou uma identificação mais próxima do ethos de cantora do que de empregada doméstica o que se reflete na significação identitária da personagem manifesta nesse discurso. Ao contrário de Penha, Rosário reage verbalmente às ofensas da patroa lembrando-a que as agressões podem se caracterizar crime: “Vai me bater que nem bateu na Penha?”; “Ameaça verbal também é crime Dona Chayene”. Vale destacar que o nível de instrução da personagem lhe permite conhecer os seus direitos e se valer deles nos momentos de hostilidade. Além disso, Rosário não depende exclusivamente do emprego como empregada doméstica o que lhe dá uma certa liberdade para enfrentar a patroa.

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Figura 12: Expressões faciais de Chayene e Rosário

Fonte: Gshow

Ao ser confrontada por Rosário, e perceber que a agressividade não lhe garantia vantagens nessa relação, Chayene recorre para sua superioridade econômica como uma tentativa de dominação. A assimetria da relação entre empregadas e patroas se apresenta aqui a partir da condição financeira e se materializa a partir da ameaça de Chayene em demitir Rosário. A frase: “Mas eu ainda posso lhe botar na rua” nos parece um último recurso de ameaça da patroa que aparentemente surte o efeito desejado já que Rosário recua em seu tom ofensivo e imediatamente se justifica com a patroa: “Mas não foi isso que aconteceu! Eu perdi o equilíbrio e ele me segurou, não foi?”. A corporeidade das personagens demonstra uma agressividade constante de Chayene e uma mudança de posicionamento de Rosário – inicialmente ofensiva a personagem muda de comportamento após a ameaça em ser demitida. O jogo de poder se encerra quando os outros personagens em cena interferem a favor de Rosário e Fabian ameaça “queimar” Chayene diante da mídia caso ela demita a empregada.

4.3.3. Dependência filial, gratidão e silenciamento

Análise de Personagens - Maria Aparecida Para Maria Aparecida, interpretada por Isabelle Drummond, inexistiu o privilégio da escolha profissional. Órfã aos 12 anos, Cida assumiu o serviço da mãe – copeira na casa da família Sarmento – em troca de casa, comida e ajuda para os estudos. Sua história se assemelha a de inúmeras meninas que receberam a profissão de empregada doméstica como herança familiar, transmitida pelas mães e avós como marca da

115 naturalização da reprodução social do serviço doméstico no Brasil. Seu local de trabalho se confunde com seu lar – o quartinho dos fundos – onde se refugia e pode ser requisitada em qualquer hora do dia, inclusive nos fins de semana. Essa situação é análoga à realidade de outras empregadas domésticas, principalmente no interior do país, que saídas da zona rural se submetem a dormir no serviço. O local de trabalho se confunde com sua própria casa e a relação trabalhista com a patroa se transforma em uma dependência filial. Para Preuss (1997), são as condições sócio econômicas e a proximidade, muitas vezes emocional, que favorecem essa dependência e na maioria das vezes a empregada se sente como uma filha para a patroa. No caso de Cida, essa relação é intensificada pelo fato de morar na casa dos patrões desde de criança, além de ter crescido e brincado com as suas filhas Ariela e Isadora, que considera como irmãs. As falas e as atitudes de Cida remetem a uma relação fraternal com as filhas dos patrões, em diversas cenas a personagem afirma que os Sarmento são a única família que ela possui. Durante as cenas iniciais da novela vemos claramente marcas que indicam para esse sentimento da empregada em relação à família que se converte em devoção, gratidão e submissão. A dependência filial gera em Cida um sentimento genuíno pelo que ela considera ser a sua “única família”, além de uma gratidão eterna aos patrões que lhe permitiram continuar na casa depois da morte da sua mãe, principalmente por conta dos apelos de Isadora por quem Cida é mais próxima e considera uma verdadeira irmã. O sentimento de gratidão impede que Cida perceba as implicações dessa relação como a exploração de seus serviços como doméstica e o seu real posicionamento dentro da família. Através desse sentimento de gratidão a família Sarmento se sente segura e demonstra, em diversas cenas, que a relação estabelecida com empregada está muito aquém de suas expectativas. Por outro lado, Cida se sente devedora e demonstra isso claramente em suas falas e atitudes. Dessa forma, a relação de Cida com a família Sarmento foi construída a partir das bases da gratidão, sentimento esse que é alimentado por uma prática comum nos lares brasileiros: a doação. Brites (2000) utiliza o termo transmissão de patrimônio para nomear a constante prática das patroas doarem seus objetos, roupas e eletrodomésticos usados para a empregada. No caso de Cida, essa doação é feita a partir de Isadora de quem ela recebe as roupas, bolsas e acessórios usados que não pode comprar. É interessante perceber que essa prática, a princípio entendida como um ato de generosidade do patrão, pode assumir outros significados quando analisada de forma mais detalhada. Brites (2000) ressalta alguns aspectos

116 significativos dessa prática: 1. a doação é um laço de reciprocidade na relação patroa/empregada e em ambas as partes há uma consciência dos benefícios gerados, por isso perpetua-se a sua manutenção 2. esses objetos doados servem como uma gratificação pelo pequeno salário pago às domésticas, dessa forma a doação funciona como uma complementação ou ainda como um salário indireto 3. a partir da doação, a gratidão se intensifica, na lógica das patroas essa gratidão gera lealdade, por outro lado, na lógica das empregadas a generosidade dos patrões deve ser recompensada; 4. a transmissão de patrimônio é uma forma de hierarquia social à medida que quem doa está em uma posição social superior na hierarquia. No entanto, para Cida as doações feitas por Isadora carregam um significado afetivo, uma transmissão de bens entre irmãs, uma carga emocional que é transmitida entre duas pessoas que se querem bem. A análise do caráter de Cida demonstra uma menina meiga, ingênua, tímida, romântica e sonhadora. Essas características são evidenciadas em sua corporeidade que inclui uma voz mansa e suave, pouca maquiagem no rosto, gestos delicados, cabisbaixa no relacionamento com os patrões, e pela própria escolha da atriz que é branca, possui cabelos lisos e castanhos, compondo um visual com o qual pode ser facilmente confundida com a filha da patroa. Figura 13 – Maria Aparecida

Fonte: Gshow A crise identitária de Cida se inicia quando ela se apaixona por Conrado Werneck, morador do condomínio e herdeiro de uma das maiores construtoras do país. Conrado é recém chegado na cidade e ao ver Cida na mansão dos Sarmento se encanta com a

117 garota. A boa educação de Cida e suas roupas de grife – doadas pela patroa – fazem com que Conrado pense que ela é filha dos patrões, mentira que Cida sustenta por medo de perder o seu amado. Aqui se intensifica o conflito de Cida. Apesar de declarar não ter vergonha de sua profissão de doméstica, ela vê sua posição social como um impedimento para o seu romance com o príncipe encantado dos contos de fadas com o qual sempre sonhou. O conflito da personagem a inscreve no perfil do indivíduo pós moderno, descentralizado, fragmentado e com múltiplas identidades conflitantes (HALL, 2000). Fruto da instabilidade social dos tempos contemporâneos, vemos na tela uma personagem em constante conflito, em busca de sua auto identificação. A instabilidade de Cida se reflete em seu sentimento de pertencimento onde não há uma identificação completa com as suas duas identidades. Sua identidade de doméstica duela com a identidade de filha adotiva dos patrões – posição que ela sempre acreditou assumir e que se intensifica quando Sônia e Ernani Sarmento aceitam se passar por seus pais de criação e enganar Conrado para tirar proveito financeiro da situação. Alertada pela amigas Penha e Rosário e pelo ex namorado Rodnei, Cida não acredita que ocupa simplesmente o lugar de doméstica na família Sarmento e seu conflito interno se perpetua durante vários capítulos. É importante ressaltar ainda que o conflito identitário de Cida reside no fato da personagem recusar sua identidade de doméstica. Para ela, ser empregada doméstica é uma condição passageira que logo será superada às custas de muito esforço que consiste em uma dupla rotina que intercala o trabalho durante o dia e o cursinho para a faculdade de jornalismo à noite. Vemos, aqui, o discurso economicista do “mérito individual” (SOUZA, J., 2012) se concretizando a partir da personagem. Apagam-se as diferenças, o abandono social e o privilégio de classes a partir de uma lógica onde o sucesso pessoal e profissional é fruto única e exclusivamente do esforço individual. Ao recusar a profissão que herdou da mãe e sonhar em ser jornalista, Cida rompe com as condições sociais em que nasceu, rejeitando o pertencimento a esse determinado grupo social. Vemos aqui um exemplo da autoconstrução apresentada por Bauman (2000) que, motivada pelo ideal da ascensão social, constrói sua própria identidade social. A pós modernidade permitiu ao indivíduo o desapego às classes sociais originárias e a possibilidade da ascensão social tão almejada por Cida.

- Sônia Sarmento

118 Sônia Sarmento, interpretada por Alexandra Richter, é uma típica representante da classe alta. Esposa do prestigiado advogado Ernani Sarmento, Sônia é uma “madame”, requintada e bem educada. Sua boa educação e seu requinte podem ser observados pela sua forma de falar – sempre em tom baixo – seu caminhar, gestos comedidos, etiqueta para se sentar à mesa e receber os convidados para o jantar, figurino priorizando sempre roupas clássicas com cores neutras. A corporeidade de Sônia, expressa a partir de seu figurino, da sua forma de falar e de seu gestual, simboliza, de acordo com Souza, M., (2004a), um processo civilizatório, uma marca de distinção da burguesia que perpassa pelo “controle das emoções, a capacidade de desenvolver o gosto de forma comedida e distanciada, sempre em contraposição ao excessivamente emocional, simples, animalesco e vulgar” (p. 69). Com uma prestigiada condição sócio-econômica, Sônia não precisaria trabalhar, porém, é proprietária da Galerie, uma boutique que tem como público a alta sociedade e se apresenta na trama da telenovela como um verdadeiro altar da “alta cultura”. A loja apresenta um mix de produtos que inclui roupas de grife e objetos de arte, além de possuir um pequeno restaurante interno que serve pratos da alta gastronomia. À frente da Galerie, Sônia demonstra possuir, além de capital econômico, um capital cultural (BOURDIEU, 1996a; SOUZA, J., 2012) que lhe permite passear pelo mundo da arte, além de demonstrar conhecimento das mais variadas áreas o que lhe permite manter o seu prestigiado círculo de relacionamentos que inclui os clientes do escritório de advocacia de seu marido, frequentadores da sua boutique e outros moradores do condomínio CasaGrande.

119 Figura 14: Sônia Sarmento

Fonte: Gshow

O discurso da personagem se inscreve na formação discursiva da lógica burguesa que prioriza as velhas distinções de classe com hierarquias bem definidas, valorizando os aspectos simbólicos e culturais de diferenciação (SOUZA, M., 2004a). Sônia valoriza a “alta cultura” e alimenta uma certa repugnância das classes trabalhadoras – ainda que sua boa educação e seu requinte não permitam que isso seja explicitado em seu discurso. Mantém-se, então, implícita a ideia de oposição entre a cultura erudita e a cultura popular, uma polarização onde há uma hierarquia bem definida e a cultura erudita sobrepõe a popular.

Análise da cena A sequência a ser analisada foi a primeira cena do capítulo 37 que foi ao ar no dia 28.05.12. Nessa cena a família Sarmento está reunida na sala quando Conrado resolve pedir Isadora em casamento – o ex-namorado de Cida a trocou pela patroa quando descobriu que a garota era empregada doméstica. Cida está entrando na sala com um balde de gelo para servir à família quando escuta o pedido de casamento. Surpreendida, Cida derruba o balde no meio da sala interrompendo o pedido de casamento. Imediatamente Sônia pergunta: “Maria Aparecida, o que é isso?” Ariela responde: “Você não sabe a resposta dessa pergunta mamãe?” Em silêncio e, nitidamente, com

120 vontade de chorar, Cida recolhe os cubos de gelo do chão. A cena segue com Isadora aceitando se casar com Conrado enquanto todos comemoram. Cida retorna para a cozinha e em seguida Sônia pede licença para os convidados e se retira. Na cozinha segue-se o diálogo:

Cida se debruça chorando sobre o balcão da cozinha com o balde de gelo. Valda: Cida! O que foi que aconteceu minha filha, fala! Cida: O Conrado e a Isadora vão... [termina a frase com a voz embargada e é surpreendida por Sônia] Sônia: O que foi aquilo lá na sala? Hein? Maria Aparecida! Que comportamento é esse na frente dos meus convidados? Cida: [respira fundo, se vira para a patroa e fala com firmeza] A senhora me desculpa Dona Sônia mas a senhora acha que é fácil ver o Conrado pedindo a Isadora em casamento? Sônia: [risada em tom de deboche] Francamente Maria Aparecida, qual é a surpresa? Você ainda não entendeu não meu anjinho? Homens como o Conrado se divertem com as Cidas mas se casam mesmo é com as Isadoras. [fala de forma pausada] Você é a empregada, filha da arrumadeira que cresceu nessa casa de favor e na primeira oportunidade ridicularizou a família que fez TUDO [grita e aponta o dedo para Cida], tudo por você. Valda: Dona Sônia deixa a menina em paz. Ela já pagou pelo que fez. Sônia: Não se mete Valdelice. Essa ingrata aqui cuspiu no prato que comeu. [vai se retirando da cozinha mas se lembra] Ah! Outra coisa. Você só tá aqui cumprindo o aviso prévio porque a Ariela e a Isadora, elas vão se casar no fim do mês, e eu não posso ficar sem estrutura nesse momentinho da minha vida. Valda: Ah meu Deus! Agora eu entendi! Sônia: E Depois desse aviso prévio você não precisa nunca mais olhar na nossa cara. Aliás, meu anjinho, fofa, é um FAVOR [grita] que você nos faz. Mas até lá vai fazer o seu trabalho direitinho, tá bom? [pausa] Vai ter um jantar de noivado do Conrado e da Isadora e o pai do Conrado é um homem muito importante. Então vê se não apronta. Cida: [com a voz embargada de choro] A senhora quer que eu sirva o jantar de noivado do Conrado com a Isadora? Sônia: E de uniforme [pausa] e se comporte muito bem. E sabe porque? Porque vai se lembrar que você só está livre porque NÓS TIRAMOS VOCÊ DAQUELA CADEIA [grita]. Por hoje você está dispensada pode sair porque eu não aguento ficar olhando pra essa carinha de choro. E eu não quero que os meus convidados também vejam essa carinha chata e enjoada [e sai da cozinha].

A observação dessa cena nos permite perceber que durante todo o diálogo o discurso de Sônia teve como objetivo estabelecer uma distinção clara entre os papéis sociais ocupados pelas personagens. Ao disputar o namorado com a filha da patroa e pleitear um posicionamento de filha, ainda que adotada, diante da família, Cida esqueceu-se de sua posição social originária – de empregada doméstica – igualando-se a Isadora. É importante ressaltar também que durante os capítulos anteriores a personagem de Cida passou por uma transformação interna, saindo do lugar de menina

121 romântica que nutria um sentimento de gratidão pelos patrões até perceber que foi usada por eles e depois descartada e substituída por Isadora no relacionamento com Conrado. Nos capítulos iniciais da novela, o conflito de Cida foi se intensificando e a personagem passou de uma relação fraternal com a família para um relação trabalhista. Destacam-se nesse processo, o dia do seu aniversário de 18 anos quando Ernane Sarmento decide assinar sua carteira de trabalho; os conselhos do ex-namorado Rodinei e o clipe gravado com Penha e Rosário debochando das patroas. Diante das mudanças de Cida, Sônia sente-se coagida, percebe que perdeu o controle sobre a empregada e que precisa colocá-la em seu “devido lugar”. Seu discurso é uma tentativa de manutenção do poder (PREUSS, 1997). O jogo das relações de força (ORLANDI, 2005) é então resgatado pela patroa que precisa reafirmar o seu posicionamento dentro da hierarquia social. Percebe-se isso em frases como: “Que comportamento é esse na frente dos meus convidados?”; “Você ainda não entendeu não meu anjinho? Homens como o Conrado se divertem com as Cidas mas se casam mesmo é com as Isadoras. Você é a empregada, filha da arrumadeira que cresceu nessa casa de favor.”; “Mas até lá vai fazer o seu trabalho direitinho, tá bom?”; “E de uniforme”. Essas falas funcionam como mecanismo de auto afirmação de Sônia, uma tentativa de manutenção do posicionamento social como afirma Orlandi (2005): “Como nossa sociedade é constituída por relações hierarquizadas, são relações de força, sustentadas no poder desses diferentes lugares, que se fazem valer na 'comunicação'”(p. 39-40). O mecanismo de antecipação do discurso (ORLANDI, 2005) permite que Sônia organize suas palavras para que façam sentido dentro da posição social que Cida ocupa nessa relação. Dessa forma, a prática discursiva manifesta em suas falas demonstra a força dos enunciados a partir da estratégia da humilhação. Essa observação nos diz muito sobre a imagem que Sônia faz de Cida principalmente quando a compara com sua filha Isadora. Fica clara a condição de superioridade da patroa e suas filhas em relação à empregada. É também significativo o fato de Sônia obrigar Cida a servir o jantar de noivado de Conrado de uniforme, principalmente quando recordamos que, no primeiro capítulo da novela, Sônia deu de presente um vestido usado de Isadora para Cida usar no noivado de Ariela. Nesse momento, no entanto, Sônia precisa demarcar explicitamente a diferenciação entre a empregada e sua filha, e o uniforme é o símbolo característico das empregadas domésticas. Assim, o uso do uniforme serviria como um mecanismo de diferenciação social.

122 Figura 15: Sônia humilha Cida

Fonte: Gshow

Na esfera textual, observamos que o vocabulário que Sônia utiliza para se referir a Cida é marcado por palavras que, no contexto da cena, indicam para o deboche, sarcasmo e desprezo como: “anjinho”, “fofa”, “enjoada”, “carinha de choro”. Essa percepção é intensificada pela corporeidade da personagem, pela gargalhada, pela forma pausada e explicativa de falar, pelo gestual ameaçador e pelas expressões faciais que indicam desprezo e deboche.

É representativo ainda observar como Sônia apela para o sentimento de gratidão de Cida através das falas: “Você é a empregada, filha da arrumadeira que cresceu nessa casa de favor e na primeira oportunidade ridicularizou a família que fez TUDO, tudo por você.”; “Essa ingrata aqui cuspiu no prato que comeu.”; “Porque vai se lembrar que você só está livre porque NÓS TIRAMOS VOCÊ DAQUELA CADEIA”. Nesse ponto, vemos a lógica da dádiva e da recompensa expressa no discurso de Sônia (Brites, 2000). Os benefícios e generosidades oferecidos pelos patrões deveriam ser retribuídos pela gratidão e lealdade dos empregados para a manutenção dos laços de reciprocidade da relação. Cida, ao contrário, rompe com a lógica da recompensa e por isso é punida com as humilhações.

Dessa forma, as relações sociais aqui representadas são negociadas a partir dos mecanismos da humilhação e do apelo para o sentimento de gratidão, dessa forma, demarcam-se os posicionamentos e identidades sociais.

Observa-se na análise dessa sequência audiovisual que as falas de Sônia são intercaladas com imagens de Cida. Durante toda a cena, a empregada se mantém em

123 silêncio enquanto ouve as ofensas da patroa e não responde às acusações e humilhações às quais é submetida. Ao contrário de Sônia, que domina o jogo discursivo, vemos apenas duas falas de Cida que se cala durante quase todo o diálogo. O silêncio de Cida, porém, é significativo ou melhor, o silêncio também significa. E é a partir dessa significação, a do silêncio, que buscamos entender o posicionamento da personagem nessa cena. O silêncio aqui é entendido sob a perspectiva proposta por Orlandi (1997) que o compreende além do sentido passivo, negativo e subalterno que lhe foi imposto historicamente. O silêncio, na perspectiva da autora, exerce a mediação entre linguagem, mundo e pensamento e dessa forma ele significa. A significação do silêncio pode ser apreendida na ausência de palavras, no entremeio das palavras e na escolha de algumas palavras em detrimento de outras assumindo o que Orlandi chama de política do silêncio fazendo “parte da retórica da dominação (a da opressão) como de sua contrapartida, a retórica do oprimido (a da resistência).” (p. 31) Assim, o silêncio não é falta, nem ausência, ele é significado. A problemática da análise do silêncio perpassa sua materialidade, ou melhor, sua não materialidade, que implica na problemática de sua visibilidade e observação. Dessa forma, o que propomos não é a interpretação do silêncio de Cida, muito menos a sua tradução em palavras o que significaria uma redução de seu significado. Ao contrário, a forma como pretendemos abordá-lo está no nível da compreensão (ORLANDI, 1997) para que, a partir dessa compreensão possamos apreender os seus significados. Para isso, é necessário entender os seus processos de significação que perpassam pelo entendimento do seu contexto que compreende as condições culturais, históricas e políticas (p. 42). Sendo assim, todo o conhecimento e análise anteriormente realizada sobre as personagens, bem como a constituição histórica, política e econômica das relações entre patroas e empregadas se constituem o contexto para a significação desse silenciamento. Para Orlandi, a historicidade é que vai contextualizar a relação entre o dito e não- dito além de determinar e construir as condições do que ela chama de poder-dizer. A sequência discursiva analisada se constrói ente o dito de Sônia e o não-dito de Cida, expondo dessa forma a assimetria na relação discursiva. Fica claro ainda que o silêncio de Cida é pautado pelo mecanismo do poder-dizer contextualizado historicamente pela relação de dominação e subalternidade que se estabeleceu entre patroas e empregadas. Dentro dessa relação há sentidos que não podem se materializar em linguagem,

124 discursos que não podem ser proferidos, sentidos que são apagados/silenciados a partir da lógica da política do silêncio, como afirma Orlandi (1997): “O silêncio trabalha assim os limites das formações discursivas, determinando consequentemente os limites do dizer.” (p. 76) A expressão facial de Cida no entanto nos demonstra inconformidade com a situação, revolta e resistência para manter a política do silêncio.

Figura 16: Expressão facial de Cida

Fonte: Gshow

Nas relações de força estabelecidas entre patroas e empregadas há ainda o que Orlandi chama de interdição do dizer, a proibição, que a autora vai exemplificar com a caso específico da censura, que vai além de sua forma mais comum que é a censura política. A interdição estabelece aquilo que deve ou não ser falado por determinados sujeitos, delimita sua atuação discursiva, “proíbe ao sujeito ocupar certos 'lugares'” (p.78), afetando o sujeito do discurso e sua identidade à medida que determina os sentidos que devem ser produzidos por determinadas posições sociais. No caso específico de Cida, sua condição de doméstica, cumprindo aviso prévio, tendo sido retirada da cadeia pelos patrões lhe coloca em desvantagem no jogo discursivo. Não é que ela não tenha argumentos para combater o discurso da patroa, mas ela não pode contra argumentar, é a interdição agindo sobre o poder-dizer, negando ao sujeito a possibilidade de expor suas opiniões. É importante ressaltar que a censura nem sempre deriva de um processo consciente dos interlocutores, nesse caso específico, ela é fruto de um processo histórico que estabeleceu, na relação entre patroas e empregadas, o que esses sujeitos são autorizados a dizer em relação ao discurso um do outro.

125 4.3.4. Lavando a roupa suja: empreguetes e patroas se enfrentam A última sequência escolhida foi ao ar no capítulo 45 (06.06.12), cena 03 e será analisada até o quarto minuto, destacando-se as passagens mais significativas. Nessa cena as Empreguetes – agora oficialmente como um trio musical – estão, juntamente com as patroas Sônia, Chayene e Lygia, tomando café da manhã no programa Mais Você, apresentado por Ana Maria Braga. O convite para a entrevista é fruto da repercussão a nível nacional que o clipe “Vida de Empreguete” atingiu. Uma primeira observação da análise dessa sequência diz respeito à disposição das personagens em cena. Dispostas em lados opostos na mesa, empregadas e patroas já sinalizam uma separação social. A apresentadora Ana Maria Braga está centralizada atuando como uma mediadora do conflito que está por vir. Essa separação simbólica das personagens, colocadas em lados opostos da mesa, se apresenta como um indício que aponta para as diferentes posições ideológicas que serão defendidas pelos dois grupos sociais. Essa observação nos permitirá compreender como os discursos são produzidos a partir de formações ideológicas distintas.

Figura 17: Empregadas x Patroas no programa Mais Você

Fonte: Gshow A cena se inicia com as Empreguetes dançando ao som da música “Vida de Empreguete” que se tornou um sucesso, enquanto as patroas observam. De volta à mesa, Ana Maria Braga pergunta às patroas como elas encararam a “brincadeira” do clipe, segue o diálogo:

Sônia: Como você se sentiria Ana se uma menina [fala amorosamente sobre Cida] que você criou com todo carinho [imagem mostra Cida sorrindo com uma expressão de ironia] fosse pra internet debochar de [aumenta tom de voz] SUA família [aponta para

126 Cida]. Eu me senti muito mal, sabe? Eu me senti traída, exposta, eu me senti ultrajada [assume a posição de vítima] Chayene: E eu! Pense em uma mulher braba! [fala suavemente com o tom de voz baixo] Mas eu relevei! Sabe Aninha! Eu sou uma pessoa assim muito generosa, [imagem de Rosário concordando com a cabeça – em ironia] muito magnífica, boa mesmo.

Nesse primeiro fragmento de cena, podemos observar como as patroas, Sônia e Chayene se sentiram ofendidas pela divulgação do clipe. Sônia mais uma vez apela para o sentimento de gratidão e dependência filial de Cida – constante em seu discurso - e destaca como sua família foi generosa com a empregada. Por outro lado, Chayene tenta demonstrar um certa “superioridade” ao destacar sua bondade a partir do perdão oferecido às empregadas. Lygia, no entanto, permanece em silêncio. A cena segue com Rosário explicando que o clipe foi uma “brincadeira que deu certo” e que o trio iria investir na carreira musical. Depois de algumas falas Ana Maria Braga pergunta:

Ana Maria Braga (AMB): Vida de empreguete é tão dura assim? Como vocês retratam aí no clipe e tal né? [Mudança de plano - Imagem da entrevista sendo vista pela televisão por Socorro e outros empregados na cozinha de Chayene] Penha: Olha Ana, difícil mermo assim, é aturar cara feia de patroa ignorante que não sabe pedir as coisa com educação. [Funcionários de Chayne comentam a entrevista] Sônia: Eu acho, sabe Ana que nós estamos vivendo uma inversão total de valores, entende? Não somos nós que precisamos das empregadas, nós não precisamos delas pra nada. Elas é que precisam do emprego. Precisam do dinheiro que nós pagamos. [Mudança de plano – Imagem do programa sendo visto na televisão por Isadora e Valda na cozinha da casa da família Sarmento] Cida: Até parece Dona Sônia, a senhora precisa de mim até pra pegar água! [Isadora comenta com Valda a entrevista] Sônia: Eu sou de um tempo em que os serviçais sabiam o seu lugar. Cida: Eu esqueci que a senhora pegou a época da escravidão.

A análise do perfil de Sônia nos mostrou que a significação identitária da personagem a inscreve na formação ideológica burguesa, não só o seu caráter mas sua corporalidade também colaboraram para essa análise. Em seu discurso, nessa cena, observamos um apelo da personagem para a manutenção das hierarquias sociais que promovem a reprodução e naturalização da desigualdade social em países de modernização periférica como o Brasil (RONSINI, 2012). A defesa pela naturalização das desigualdades a inscreve na lógica da classificação social descrita por Santos (2004). Segundo o autor, nessa lógica convencionou-se dividir o mundo em categorias que naturalizam as hierarquias que consequentemente produzem relações de dominação.

127 Dessa forma, naturalizam-se as classificações sociais, a inferioridade e a invisibilidade de certos atores e grupos sociais. O discurso da personagem se inscreve ainda no que Souza, M. (2004a) chama de lógica dos grupos sociais pequeno-burgueses que se sentem ameaçados pela possibilidade de ascensão e “mistura” social possibilitados principalmente pelo crescimento econômico. Souza, M. (2004a) destaca que essa “ameaça” oferecida pelas camadas populares/trabalhadoras está assentada em dois pilares: o medo de perder o controle social – caracterizado aqui pelo poder exercido pelas patroas em sua relação com as empregadas domésticas – e a necessidade de distinção social que guia a lógica pequeno-burguesa. Há em Sônia uma certa nostalgia quando ela afirma: “Eu sou de um tempo em que os serviçais sabiam o seu lugar.” A partir dessa fala, Cida a associa à formação ideológica escravocrata caracterizada pela dominação dos patrões aos empregados. Essa formação ideológica se materializa no discurso da personagem a partir de sua esfera textual, em sua prática discursiva (que envolve a esfera de produção dos discursos) e em sua prática social (FAIRCLOUGH, 2001). Na esfera da prática social, o discurso de Sônia resiste a mudanças e busca manter as relações de poder estabelecidas entre as diferentes classes sociais funcionando como prática política e ideológica. Ainda dentro dessa lógica, o enfrentamento de Cida funciona como uma resistência, seu discurso, nesse caso, age como mecanismo de transformação das relações entre esses diferentes sujeitos sociais (FAIRCLOUGH, 2001).

A cena continua com Ana Maria Braga tentando apaziguar o conflito entre Cida e Sônia e afirmando que só tentou promover uma confraternização quando Chayene pede a palavra:

Chayene: Ana, Ana, pare tudo! Agora eu quero falar! Eu sou uma patroa … eu dou comida, eu dou quartinho, eu dou sabão de coco pra elas se lavar, eu dou papel higiênico, eu dou copo, prato, talher, tudo separado, [ênfase] sem descontar o salário!” Penha: Agora pra tirar férias, Ana, como manda a Lei, era um sacrifício, sabe? Chayene: E o vale que tu me pedia todo dia? Parecia que tava escrito em minha testa vale! Penha: Mas eu pagava com o meu serviço, minha filha! Chayene: Pagava nada! Nem cobrava juros! [outra discussão se inicia dessa vez envolvendo Chayene, Penha e Rosário]

É importante destacar, nesse fragmento de cena, que podemos observar no discurso da personagem Chayene a perpetuação do mito do bom senhor. De acordo com

128 Bernardino-Costa (2007) o mito do bom senhor – juntamente com o ideal da democracia racial - povoou a formação intelectual brasileira com a ideia de que a relação entre senhores e escravos era de certa forma suave, não caracterizada por agressões emocionais. Apesar de ter sido criticada por alguns teóricos, essa concepção se manteve viva evocando a miscigenação como fruto da “intimidade, respeito e consideração existente entre senhores e escravos” (p. 50). A partir desse discurso, apagam-se as diferenças raciais e sociais, minimizam-se os efeitos da escravidão sobre a população negra atribuindo-lhe o estigma da conformidade. Dessa forma, ameniza-se o passado de brutalidade e excesso nas agressões cometida pelos senhores. No discurso da personagem, o mito do bom senhor se materializa nos “benefícios” oferecidos aos empregados: comida, quartinho, sabão de coco, copo, talher. E sem “descontar do salário no fim do mês”, um prova da generosidade da patroa. Assim como o mito do bom senhor se refere a uma ideologia de dominação e apagamento das diferenças, o discurso de Chayene se inscreve na mesma lógica retomando em suas falas a prática discursiva da ideologia escravocrata. Observamos ainda que a fala de Chayene funciona como mecanismo de apagamento das agressões físicas e verbais infligidas às suas empregadas e que teve como consequência um processo judicial movido por Penha. O descontentamento com as falas de Chayene pode ser observado pelas expressões faciais das outras personagens. Lygia, por exemplo, manteve-se durante toda a cena em silêncio, fazendo pouquíssimas intervenções mas, a partir de sua gestualidade podemos perceber que a personagem não compartilha das mesmas opiniões das outras patroas. O mesmo ocorre com as Empreguetes que demonstram surpresa com as falas de Chayene. A única a demostrar aprovação é Sônia.

Figura 18: Reação das outras personagens à fala de Chayene

Fonte: Gshow

129 A sequência segue com Ana Maria Braga perguntando se o trabalho doméstico não deveria ser mais valorizado, as Empreguetes e Lygia concordam ao passo que Sônia retruca: “Mais valorizado? [gargalhada] Mais valorizado do que elas já estão se achando? Nem estudo elas tem e querem ganhar como quem estudou!” Há, nessa frase, de Sônia, um preconceito expresso pelo saber obtido pelas domésticas e uma valorização do saber acadêmico, institucionalizado pela educação formal. Ao comparar os dois tipos de conhecimento a personagem não só desqualifica como também ignora o saber apreendido pelas empregadas domésticas. Destacamos que o trabalho doméstico, desde sua origem, sempre sofreu com a falta de profissionalização, resultado da segregação trabalhista baseada no gênero. O trabalho do lar, na ideologia colonialista e que se perpetua até hoje, seria uma atribuição natural feminina sendo desnecessária sua qualificação. Atualmente, o perfil sócio econômico, e consequentemente escolar (ver dados do DIEESE no capítulo 03), das empregadas domésticas contribui para a perpetuação desse discurso e para a desvalorização do serviço doméstico no Brasil. O discurso de Sônia a inscreve ainda na ideologia do modelo de racionalidade hegemônica, da razão metonímica e da monocultura do saber (SANTOS, 2004) que deslegitimam os saberes subalternos produzidos por grupos sociais precarizados e invisibilizados. Na perspectiva da monocultura do saber, determinados atores sociais não são produtores de conhecimento nem de saberes. A legitimação do conhecimento e do saber se daria a partir de uma produção hegemônica da filosofia e da ciência ocidental, produzindo assim uma hierarquização dos saberes e a desvalorização da diversidade de conhecimentos. “Tudo o que o cânone não legitima ou reconhece é declarado inexistente. A não-existência assume aqui a forma de ignorância ou incultura” (SANTOS, 2004, p. 787). O saber acumulado pelas empregadas domésticas seria então invisibilizado a partir dessa ideologia. No discurso da personagem, a falta de educação formal das empregadas domésticas funciona ainda como um operador simbólico pensado aqui, na perspectiva de Ronsini (2012), como um mecanismo de distinção de classe: “os operadores simbólicos que permitem a cada um de nós na vida cotidiana hierarquizar e classificar as pessoas como dignas de nosso apreço e de nosso desprezo e, assim, desvelar as formas opacas e distorcidas assumidas pela luta de classes.” (p. 46) Ao contrário de Sônia, a patroa Lygia defende em seu discurso a valorização do serviço doméstico e o reconhecimento de sua importância para a estrutura econômica do Brasil, como podemos observar em sua fala: “É um trabalho importantíssimo pra

130 economia do país, a gente ainda não tem estrutura para dispensar o trabalho doméstico. [Ana Maria Braga sussura: eu também acho] Pode ser feito, e a gente já avançou bastante nesse sentido, é a elaboração de leis mais justas né? Que imponham limites né? E que definam as obrigações dos patrões e dos empregados”. A ideologia da racionalidade hegemônica, defendida por Sônia, é contraposta pela ideologia da racionalidade cosmopolita, incorporada no discurso de Lygia, e que defende a diversidade de saberes e a valorização do conhecimento produzido por grupos sociais subalternos. Santos (2004) propõe o conceito de ecologia dos saberes como um contraponto da monocultura do saber. Essa perspectiva legitima saberes anteriormente invisibilizados promovendo o diálogo entre as diversas formas de conhecimento. Ao destacar a importância do serviço doméstico para a economia do país, a personagem se inscreve ainda na lógica da ecologia de produtividade que tem por objetivo a “recuperação e valorização dos sistemas alternativos de produção, das organizações econômicas populares, das cooperativas operárias [...] que a ortodoxia produtivista capitalista ocultou ou descredibilizou” (SANTOS, 2004, p. 793). Essa lógica, combate a desqualificação histórica a qual foi submetida alguns setores sociais, inclusive o doméstico, tido como improdutivo e por isso, menos importante para o crescimento econômico do país. A partir do discurso de Lygia, inscrito na ecologia dos saberes proposto por Santos, esse grupo social ganha visibilidade e reconhecimento como importante setor produtivo. Observamos ainda na personagem a presença do ethos da advogada que defende a justiça através da implementação de Leis. Na esfera textual, destacamos expressões como “leis mais justas”, “economia do país”, “obrigações dos patrões e dos empregados”, como elementos, que dentro desse contexto, são associados ao vocabulário jurídico. Observa-se ainda que o discurso da personagem está em sintonia com as discussões que tem mobilizado as esferas jurídica e política do país no sentido de garantir os direitos das trabalhadoras domésticas. Enquanto as falas de Sônia e Chayene apontam, na prática política e ideológica (FAIRCLOUGH, 2001), para a reprodução, naturalização e consequente manutenção das relações de poder e das diferenças entre os grupos sociais aqui representados – patroas e empregadas – o posicionamento de Lygia funciona como um operador simbólico da necessidade de transformação dessa relação social a partir da emergência de leis que a tornem menos assimétrica. O discurso de Lygia representa ainda uma fratura na constante discursiva

131 das patroas de “Cheias de Charme”, simbolizando as possibilidades de mudança e as demandas do Brasil.

132 5. CONSIDERAÇÕES FINAIS

Quando foi ao ar em 2012, “Cheias de Charme” nos chamou a atenção não só por sua narrativa, qualidade de produção e sucesso de público mas principalmente por dar “visibilidade” às classes populares que dificilmente despontam como protagonistas em telenovelas. Ao destacar três empregadas domésticas como protagonistas da trama, a produção estreitou sua relação com o público-alvo atraindo audiência para a emissora e consagrando a obra como uma das grandes produções da teledramaturgia nacional nos últimos anos. Durante o processo de estudo e análise do corpus, entendemos que essa “visibilidade” concedida às classes populares significou mais uma estratégia mercadológica de aproximação com a audiência do que uma proposta para valorizar ou dar voz à classes e sujeitos sociais subalternizados e historicamente invisibilizados como as empregadas domésticas, por exemplo. Nesse sentido, nosso objetivo foi o de tensionar essa “visibilidade” buscando entender os conflitos inscritos na relação entre as diferentes classes sociais. Dessa forma, focalizamos o nosso olhar em entender como se construíam e como eram representadas as relações de poder entre personagens representativas de dois grupos sociais distintos, as empregadas domésticas e as patroas. Nesse processo, objetivamos destacar tanto a produção de sentidos como o aspecto mercadológico da telenovela ressaltando suas estratégias de aproximação com a audiência. Na análise do produto, trilhamos por um caminho analítico que articulou as dimensões textuais e contextuais do objeto de estudo. A dimensão textual se constituiu o corpo da obra – analisado a partir de cenas pré-estabelecidas -, da estrutura do discurso, seus elementos e estratégias discursivas internas; já o estudo do seu contexto nos permitiu inscrever o texto audiovisual em sua historicidade relacionando-o com suas dimensões sociais, culturais, políticas, representacionais, etc. De acordo com Kellner (2001), a complexidade dos textos da cultura da mídia exige que eles sejam pensados a partir de uma perspectiva que seja capaz de considerar sua “inserção na economia política, nas relações sociais e no meio político em que são criados, veiculados e recebidos.” (p.13) Dessa forma, essa proposta de articulação se mostrou bem sucedida ao nos possibilitar o entendimento das condições de produção do objeto de estudo. As condições de produção influenciam diretamente na produção de sentidos e na efetivação do efeito desejado se tornando necessária para o entendimento das escolhas narrativas e

133 de outros elementos produtores do discurso (ORLANDI, 2005). Assim, “Cheias de Charme” faz sentido porque se inscreve na história se constituindo um organismo vivo e conectado com o seu momento histórico sendo necessário o entendimento dos elementos que contribuem para sua produção. Souza M. (2004a) ressalta o intercruzamento das produções de telenovela com outros campos de atuação destacando quatro deles como elementos constituintes: o Estado, o mercado publicitário, os telespectadores e o meio artístico. Semelhantemente, Lopes, Borelli e Resende (2002) propõem estudar a telenovela em articulação com o seu tecido social. Seguindo essa linha teórica, priorizamos em um primeiro momento entender as condições de produção nas quais a telenovela “Cheias de Charme” foi produzida, veiculada e consumida. Em nosso estudo, observamos que a produção dialogou intensamente com pesquisas de mídia e de hábitos de consumo, especialmente da “nova” classe média – que despontava no cenário nacional no momento de produção da telenovela – pautando assim escolhas narrativas e estéticas como por exemplo, trilha sonora, figurino, cenários, narrativa e o diálogo com as mídias digitais através de estratégias de transmidiação. Ao cruzarmos essas informações com a resposta do público – números de IBOPE, produtos comercializados, acessos no site da emissora, engajamento em campanhas - observamos que o aspecto mercadológico da produção é confirmado e as estratégias de aproximação com a audiência se tornaram eficientes. Durante a análise, observamos que entre as estratégias de diálogo com o público está um esforço em incorporar características e hábitos atribuídos à “nova” classe C. Entre os elementos descritos por Souza J. (2012) como particularidades da “nova classe trabalhadora” ou simplesmente dos “batalhadores brasileiros” estão a ética do trabalho, a superação das adversidades, o espírito comunitário e a valorização do capital familiar na ausência do capital econômico. Essas características foram observadas nas personagens representantes da classe trabalhadora da telenovela, especialmente na protagonista Maria da Penha que tomamos como o modelo de moradora padrão do Borralho. Consideramos que a representação das classes populares/trabalhadoras em “Cheias de Charme” reforça a lógica da meritocracia e do esforço individual onde a responsabilidade das dificuldades econômicas é individualizada (RONSINI, 2012). Observamos que essa lógica corrobora para a violência simbólica destacada com Souza J. (2012) onde se apagam os problemas e as desigualdades sociais a partir de uma representação das classes populares sem contradições e sem o aprofundamento dos

134 conflitos. Prioriza-se assim, uma representação idealizada com a valorização das origens humildes, autenticidade e certo fascínio por seu estilo de vida (SOUZA M., 2004a). No que diz respeito à análise das personagens o conceito de ethos se mostrou pertinente ao nos possibilitar o entendimento dos sujeitos sociais a partir de uma perspectiva que considere sua corporeidade (roupas, gestos, tipo físico, etc) e seu caráter (revelado a partir de suas atitudes e expresso no discurso oral) a partir da proposta de Maingueneau (2002). Assim, pudemos empreender uma análise das empregadas domésticas e das patroas buscando compreender suas identidades, formações ideológicas, habitus e outros elementos diferenciadores de classe. É importante salientar que das três empregadas domésticas protagonistas da trama, apenas uma é negra. As outras atrizes são brancas não representando o perfil do trabalhador doméstico brasileiro revelado em pesquisas do DIEESE (2013). Entendemos que essa escolha não é aleatória mas que reflete o processo de midiatização da profissão e o padrão de beleza estabelecido pelas emissoras. Ao analisar a relação entre patroas e empregadas, observamos que essa aproximação em geral estava permeada por conflitos e preconceitos. Foram mapeadas cerca de 45 cenas dos 57 capítulos da fase inicial em que há ocorrência de xingamentos, preconceitos, opressão psicológica e física. Sendo assim, a representação dos conflitos entre patroas e empregadas reflete uma relação assimétrica onde a dominação econômica e social das patroas coexiste com a submissão das empregadas. Observamos ainda que essa relação de dominação é histórica perpetuando em nossa sociedade; por um lado, a manutenção das hierarquias sociais, a necessidade de diferenciação social e a disputa de territórios no ambiente doméstico, e por outro, a dependência filial e o sentimento de gratidão das empregadas. No jogo das relações de força, observamos que as patroas possuem vantagem no jogo discursivo por estarem hierarquicamente mais bem posicionadas e por possuírem o capital necessário para a dominação econômica. Perpetua-se assim, no discurso dos patrões, a lógica das classificações sociais, o modelo de racionalidade hegemônica, da razão metonímica e da monocultura do saber (SANTOS, 2004) que deslegitimam e invisibilizam os saberes produzidos pelas domésticas. Na esfera textual, essa ideologia se concretiza em ameaças, xingamentos, humilhações, apelo para a gratidão dos empregados e exaltação da generosidade das patroas a partir das doações e da transmissão de patrimônio (BRITES, 2000) perpetuando assim, o mito do bom senhor (BERNARDINO-COSTA, 2007).

135 Por outro lado, a desvantagem das empregadas nesse jogo de poder é causado pela vulnerabilidade social e econômica à qual são submetidas. Na prática discursiva, observamos essa vulnerabilidade no discurso das personagens através do medo de perder o emprego, na gratidão aos patrões, no silenciamento, na dependência econômica e na falta de outras oportunidades profissionais. Dessa forma, nas cenas de enfrentamento com as patroas, as empregadas assumem, de modo geral, um comportamento submisso e subalterno. Porém, observamos que a “insubordinação” e o enfrentamento real com as patroas só são possíveis a partir do momento em que as empregadas se tornam celebridades, como foi visto na análise da cena em que as personagens estão no programa “Mais Você”. A partir da criação do trio Empreguetes, da aquisição de capital econômico e do aumento do poder de consumo é que as empregadas podem rivalizar com as patroas. Vemos aqui a solução mágica para os conflitos anteriormente sinalizados, a concretização do conto de fadas e a ascensão social possibilitada por uma transição radical no estilo de vida das empregadas. Mas, nossa análise demonstrou também que nem tudo são conflitos. Nesse sentido, o discurso da personagem Lygia representa uma fratura na constante discursiva das patroas representadas na trama. Ela se inscreve na ideologia da racionalidade cosmopolita, da valorização da diversidade de saberes e do reconhecimento das habilidades profissionais das empregadas domésticas representando a Ecologia dos saberes e da produtividade proposta por Boaventura de Souza Santos (2004). Destacamos, também, a atitude de Penha em denunciar a patroa Chayene e sua consequente vitória no tribunal conectando a telenovela com as atuais demandas dos trabalhadores domésticos brasileiros.

136 6. REFERÊNCIAS

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143 7. ANEXOS

ANEXO A FICHA TÉCNICA

Uma novela de Filipe Miguez e Izabel de Oliveira Escrita por Filipe Miguez, Izabel de Oliveira, Daisy Chaves, Isabel Muniz, João Brandão, Lais Mendes Pimentel, Paula Amaral e Sérgio Marques

Supervisão de texto Ricardo Linhares

Direção Maria de Médicis Natalia Grimberg Allan Fiterman Denise Saraceni

Direção geral Carlos Araujo

Direção de núcleo Denise Saraceni

Figurino Gogoia Sampai

Direção de Fotografia Roberto Amadeo

Direção de Iluminação Luiz Leal Henrique Sales Gustavo Lacerda

Produção de Arte Guga Feijó

Produção de Elenco Bruna Bueno

Direção Musical Mariozinho Rocha

144 ANEXO B LETRAS DAS MÚSICAS ORIGINAIS CANTADAS PELAS PERSONAGENS

Vida de Empreguete sofá (As Empreguetes) Tá sempre cheia a condução Eu passo pano encero o chão Todo dia acordo cedo moro longe do A outra vê defeito até onde não há emprego Quando volto do serviço quero meu Queria ver a madame aqui no meu lugar sofá Eu ia rir de me acabar Tá sempre cheia a condução Queria ver a madame aqui no meu lugar Eu passo pano encero o chão Eu ia rir de me acabar A outra vê defeito até onde não há Levo vida de empreguete eu pego ás Queria ver a madame aqui no meu lugar sete Eu ia rir de me acabar Fim de semana é salto alto e ver no que Só vendo a patroinha aqui no meu lugar vai dar Botando a roupa pra quarar Um dia compro apartamento viro socialite Minha colega quis botar aplique no Toda boa vou com meu ficante viajar cabelo dela Gastou um extra que era da parcela Levo vida de empreguete eu pego ás As filhas da patroa a nojenta e a sete entojada Fim de semana é salto alto e ver no que Só sabem explorar não valem nada vai dar Um dia compro apartamento viro Queria ver a madame aqui no meu lugar socialite Eu ia rir de me acabar Toda boa vou com meu ficante viajar Só vendo a cantora aqui no meu lugar Tirando a mesa do jantar Marias Brasileiras (As Empreguetes) Maria brasileira Levo vida de empreguete eu pego às De tudo, sou capaz! sete Maria verdadeira Fim de semana é salto alto e ver no que Tudo que você fizer, eu faço mais. vai dar Um dia compro apartamento viro Maria sem-vergonha socialite Marias sensuais Toda boa vou com meu ficante viajar Maria vai-com-as-outras Quero ver você fazer o que ela faz. Levo vida de empreguete eu pego às sete Somos as Marias que sonhamos Fim de semana é salto alto e ver no que Que arrumamos e limpamos vai dar A bagunça que eles fazem. Um dia compro apartamento viro socialite Somos três estrelas disfarçadas Toda boa vou com meu ficante viajar De Marias empregadas Ao redor da malandragem. Todo dia acordo cedo moro longe do emprego Maria brasileira Quando volto do serviço quero meu De tudo, sou capaz!

145 Maria verdadeira Minha vida de patroa não é mole Tudo que você fizer, eu faço mais. Trabalho todo dia Ainda me chamam de madame Maria da pia No fim de semana quero descansar Maria da feira Cadê a folguista para me ajudar Maria falando e escutando besteira Maria fingindo que não entendeu Minha vida de patroa não é mole Os olhares de alguém. Trabalho todo dia Ainda me chamam de madame Maria cantando No fim de semana quero descansar Maria dançando Cadê a curica para me ajudar Maria esperando o amor que não vem Maria lutando Cadê a curica para me ajudar (2x) Maria querendo ser rica também. Voa Brabuleta (Chayene) Maria brasileira Ela gosta de ficar pegando fogo De tudo, sou capaz! De arrastar uma asinha Maria verdadeira Pra deixar doidinhos os moços Tudo que você fizer, eu faço mais. Lábios vermelhos Vida de Patroete (Chayene) Roupa muito colorida Vivo na dieta, comidinha light Pra ouvir um galanteio Vou pra academia, malho meu pilates E ficar feliz da vida Chamo minha turma pra tomar um chá Só que a empreguete foi embora Ela se acha toda, toda, toda, toda Faz o que dá na ‘veneta’ A roupa tá um lixo E o resto que se exploda A comida é o ó A casa tá que é de dar dó Vai de namoro em namoro na cidade Feito uma ‘brabuleta’ Ela ganhou aumento Nunca perde a liberdade Eu ganho ingratidão Essa curica é sem noção Mas chega o dia De marcar uma bobeira Minha vizinha quer alguém Olhe não é brincadeira Que dê um jeito nas crianças Virar presa de paixão Use uniforme e faça as compras Que ela encontre Só que as empreguetes não tão nem aí Quem lhe queira E ficam no mercado Mas de forma verdadeira Só de ti ti ti Pra não ser mais uma só pra coleção

A roupa tá um lixo Voa, voa, voa, voa Brabuleta A comida é o ó Voa, voa, voa, voa Brabuleta A casa tá que é de dar dó Quem me "óia" me inveja Parece até piada Mas no fundo se 'deleita' É só botar um avental Que a curica passa mal Voa, voa, voa, voa Brabuleta Voa, voa, voa, voa Brabuleta

146 Conquistou o beijo de um príncipe Quem te "óia" tá querendo encantado É saber para usar minha receita Se você já se sentiu tão frágil feito um castelo de areia Forró das Curicas (As Empreguetes) Ele resiste a tudo quando em você o Vambora prá festa sonho corre nas veias Que agora começa Cheia de promessa A gente veio pra acender a luz de uma Brabuleta chamou, então é nós aqui chance Muita animação! Para que todo mal olhado agora dance Pulando fogueira Para pôr em cada rosto muitas cores e E se remexendo ao som da sanfona brilho Provando a maçã do amor Para fazer desse mundo um mundo Você mexe com seu coração melhor Vai ter casamento Quem sabe agora não é sua vez? Vamos surpreender com a luz da nossa Mas tome cuidado explosão Prá não acabar no xadrez Vem com a gente, vem viver essa Fizemos promessa pro santo emoção casamenteiro Teu viver é teu viver, ninguém substitui Prá um moço festeiro você Me tirar prá dançar A gente tem que acreditar Longe do tanque, fogão, escovão Que o nosso sol um dia o céu ilumina A gente cai num salão Todos vão olhar surpresos em nós, Começou, não tem hora prá acabar! nosso brilho Deixa o sonho te levar, pode crer, que Esse é o forró das curicas teu sol ilumina Ser empreguete é um trem bão Tristeza aqui não vem não Se você me der (Chayene e Fabian) Esse é o forró das curicas Se você me der, me der um pouco de O trem tá mais do que bão carinho É festa de São João Se você me der, eu quero bem devagarinho Nosso Brilho (As Empreguetes) Vai, vai, vai Não importa onde você estiver Se você me der, me dar aquele bem Nem como você estiver safado O teu sol só você faz raiar, acredita! Se você me der, eu vou ficar Não importa qual a sua cor apaixonado Nem tampouco se você errou O teu sol só você faz raiar, acredita! Me bateu um calor De um amor bem sacana Eu batalho desde cedo para cuidar da Você não me engana família Para ter a luz perfeita que hoje brilha Um amor sem pudor Eu sonhei tanto com a música fazendo De rasgar a fronha meu nome Vem sem vergonha O espanador feito mágica virou microfone Me faz sua presa Meu coração depois de tanto ter Vem me devorar sonhado Faz a cena imperdível

147

Pecorra meu corpo De um jeito gostoso Como tô sensível

Se você me der (vai, vai, vai) Se você me der (vai, vai, vai)

Se você me der O que sou capaz, você pede mais Amar nunca é demais

Se você me der (vai, vai, vai) Se você me der (vai, vai, vai)

Se você me der O que sou capaz, você pede mais Amar nunca é demais

Vai, vai, vai, vai, vai, vai, vai

ANEXO C 148 MATÉRIAS EM JORNAIS E REVISTAS

Fonte: Revista Conta Mais - www.bonecosdobaby.blogspot.com.br

Fonte: Revista Tititi – www.pararecordarnovelasefamosos.blogspot.com.br

ANEXO D 149 TRANSMÍDIA E INTERAÇÃO COM OS TELESPECTADORES

Fonte: http://gshow.globo.com/novelas/cheias-de- charme/Empreguetes/noticia/2012/08/empreguetes-para- sempre.html

Fonte: http://gshow.globo.com/novelas/cheias -de-charme/Trabalhador-Domestico/index.html

ANEXO E 150 “CHEIAS DE CHARME” ALCANÇA PICOS DE AUDIÊNCIA – RECORTE DE SITES E BLOGS

Fonte: Blog do Nilson Xavier (UOL) - nilsonxavier.blogosfera.uol.com.br

Fonte: Folha de São Paulo Online - www1.folha.uol.com.br

ANEXO F 151 MÚSICA “VIDA DE EMPREGUETE”- RECORTE DE SITES E BLOGS

Fonte: Yahoo - http://br.noticias.yahoo.com

Fonte: O Dia IG - odia.ig.com.br