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De empregada a "empreguete": das lutas simbólicas na televisão brasileira

Iara Gomes de Moura 1

Resumo A construção das imagens que os sujeitos fazem de si atualmente é uma tarefa que inclui inevitavelmente a reflexão acerca do consumo como ação humana dotada de sentido social. Neste trabalho, nos propomos a analisar a representação das classes populares na brasileira, lançando olhar sob a novela Cheias de Charme e o concurso “As empregadas domésticas mais Cheias de Charme do Brasil", promovido pelo Fantástico – Revista eletrônica exibida pela Rede Globo aos domingos. Este artigo decorre do nosso percurso de pesquisa em torno do protagonismo das empregadas domésticas na telenovela Cheias de Charme, exibida pela Rede Globo no horário das sete durante o ano de 2012. Compreendemos que este objeto está atrelado à conjuntura político- econômica brasileira de suposta ascensão da “nova classe C” e a uma estratégia de mercado que confere legitimidade aos hábitos de consumo e estilo de vida atribuídos às mulheres desse estrato social. Palavras-chaves: Telenovela, visibilidade, nova classe C, empregadas domésticas.

Introdução Marilene Jesus, baiana de 33 anos, acorda às cinco da manhã todos os dias e sai para cumprir a rotina de varrer, lavar roupa, fazer comida e espanar a poeira dos móveis da casa da patroa. Desde quando, ainda menina, a mãe a encaminhou para trabalhar “em casa de família” a rotina se repete. Em 22 de julho de 2012 algo novo aconteceu na vida de Marilene 2. Nesse domingo, ela deixou de ser uma anônima espectadora, como as tantas brasileiras “fãs de carteirinha” das , para se tornar a empregada doméstica mais cheia de charme do Brasil . A vencedora do concurso promovido pelo Fantástico – Revista eletrônica semanal exibida pela Rede Globo – via transmutar-se em realidade a fictícia ascensão social das empreguetes que acompanhava diariamente, às 19h, em Cheias de Charme , telenovela em exibição pela mesma emissora. Numa estratégia de aproximar-se das audiências utilizando-se de ferramentas transmídia, a Rede Globo de Televisão levou ao ar durante cinco meses uma novela que para além do

1 Mestranda do Programa de Pós-graduação da Universidade Federal Fluminense 2 Dados retirados de reportagem publicada em 22/07/2012 no site do Correio 24 Horas. Disponível em: http://www.correio24horas.com.br/noticias/detalhes/detalhes-1/artigo/baiana-e-escolhida-a-empregada-mais-cheia-de-charme-em-concurso-do- fantastico/ Acesso em: 25/03/2013

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acompanhamento costumeiro feito pela tela da TV propiciava aos telespectadores uma interação com a trama que se desenrolava através de outros veículos de comunicação com destaque para a internet. Na rede, os/as telespectadores/as podiam, por exemplo, ter acesso – antes do lançamento no universo ficcional – ao clipe que as empregadas da trama lançaram com o hit “Vida de empreguete ”. Além disso, podiam acompanhar “ O diário de Cida ” (blog com relatos pessoais de uma das protagonistas), baixar a música como toque do celular, receber conselhos sobre limpeza e organização da casa e comprar variados itens – de vassoura ou pá a peças do figurino – customizados e disponibilizados pela Globo Marcas.

1. Das lutas por distinção simbólica: ascensão de uma nova classe média no Brasil? Ainda que haja discordâncias quanto à nomenclatura adequada e a solidez do fenômeno de ascensão da chamada nova classe C no Brasil, observamos atualmente, a centralidade do tema nos debates acadêmicos, midiáticos e cotidianos de uma maneira geral 3. Com relação à televisão, destaca-se o protagonismo de personagens, trilhas sonoras e cenários pertencentes ao campo cultural deste estrato social, além de um interesse manifesto dos produtores e diretores em atrair essas audiências 4. A questão que norteia a maior parte do debate sobre o fenômeno gira em torno dos critérios adotados para o estabelecimento da ascensão social. Enquanto os números propagandeados pelo Estado e noticiados pelos meios de comunicação baseiam-se fundamentalmente na renda e/ou no poder de consumo para o estabelecimento da classificação, pesquisadores apontam a falência deste modelo. Marcio Pochmann (2012) defende que a mudança pela qual passa a estrutura social brasileira prescinde de interpretações mais profundas, que se situem além de uma “retórica de classe de rendimento” e do tratamento tendencioso de dados estatísticos (Pochmann, 2012, p.7). A principal hipótese do autor é a de que a publicização do aparecimento de uma nova classe média, inclusive através dos meios de comunicação, não é um equívoco conceitual, mas a (...) expressão de disputa que se instala em torno da concepção e condução das políticas públicas atuais. A interpretação de (nova) classe média resulta, em consequência, no apelo à reorientação das políticas públicas para a perspectiva fundamentalmente mercantil. Ou

3 Carta capital / Disponível em: http://www.cartacapital.com.br/economia/muito-alem-da-caricatura/ Acesso em: julho de 2012; Folha de São Paulo / Disponível em: http://www1.folha.uol.com.br/ilustrissima/1119929-todos-querem-tirar-a-nova-classe-media- para-dancar.shtml acesso em: setembro de 2012 4 Em reportagem da Revista Mídia Dados Brasil 2013 trata da preocupação do mercado de mídia em atrair esse público consumidor: (...) a ascensão da classe C continua sendo fato relevante, bem como o crescimento de sua renda, pela oportunidade de abertura de novos mercados para uma série de produtos e serviços. (p. 100) Disponível em: http://www.gm.org.br/page/midia-dados Acesso em: 04/07/2013

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seja,o fortalecimento dos planos privados de saúde, educação, assistência e previdência (POCHMANN, 2012, p.11)

Nesta mesma perspectiva Jessé Souza (2012) aponta a necessidade de se levar em conta diversos outros fatores para localizar este ou aquele grupo na pirâmide social. A partir de uma perspectiva Bourdiesiana, o autor critica as análises eminentemente economicistas e destaca que há um conjunto de pressupostos e condições estruturados previamente por um pertencimento de classe. (Souza, 2012, p. 305). O lançamento de produtos televisivos que objetivam encaixar-se em formato e conteúdo ao habitus (Bourdieu, 2007, p. 410) das classes populares – à exemplo do programa Esquenta! – revela de maneira contundente posicionamentos e discursos que refletem as disputas simbólicas em jogo. Em artigo publicado em sua coluna semanal no Jornal O Globo em 15 de abril do ano passado (período de estreia das telenovelas Cheias de Charme e Avenida Brasil ), o jornalista Artur Xexeo critica a tentativa dos produtores de atrair a nova classe média. Sejam bem-vindos ao paraíso os que ganham entre R$ 1.200 e R$ 5.174 por ano. Mas tem que ter lugar para todo o mundo. Eu quero de volta o meu filme legendado na TV e torço pela possibilidade de passar um intervalo comercial inteirinho sem assistir a um anúncio do Supermarket. Onde foi parar a televisão da velha classe média? Sempre fui noveleiro, nunca tive vergonha disso. Assisti às novelas de Ivany Ribeiro em versão original. Mas não aguento mais tramas ambientadas na comunidade, sambão na trilha sonora, mocinha cozinheira e galã jogador de futebol. Eu quero de volta a minha novela de Gilberto Braga! (disponível em: http://oglobo.globo.com/cultura/xexeo/posts/2012/04/13/sobre-classe- media-440203.asp )

No trecho exposto, explicita-se o sentido do gosto e dos hábitos de consumo enquanto instrumentos de distinção social. É neste conflito que o objeto deste artigo se coloca. Buscamos afastar-nos das análises que tendem a circunscrever a posição de classe a partir do que se convencionou chamar de “economicismo” – que contém desde a visão marxista para a qual o critério fundamental é a posição na cadeia produtiva até a perspectiva liberal-conservadora segundo a qual o poder de consumo ou a renda são capazes de definir, em última instância, a posição de classe. Segundo a perspectiva que adotamos, existem valores imateriais em disputa no processo de reprodução das classes sociais e que, determinam, as possibilidades reais de ascensão ou permanência dos indivíduos em determinados estratos. Carla Barros (2012) ao empreender uma análise sobre as representações do serviço doméstico na televisão chama atenção para a mudança de abordagem que marca, neste período, as telenovelas:

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O imaginário referente à empregada doméstica, muitas vezes articulado à “acomodação das diferenças” vividas no país por conta da dominação personalista que apaziguava os confrontos de classe, parece ter agora novas representações, mais nuançadas – por um lado, evidencia-se a vontade de ocupar o lugar do dominador, através do caminho da vingança pessoal e social ( Avenida Brasil ) ou do exercício de talentos artísticos singulares ( Cheias de Charme ); por outro, a própria trajetória das ex-empregadas nas referidas tramas e os efeitos da “mudança de lugar” comunicam alguma possibilidade de questionamento da “ordem estável” do antigo mundo. (BARROS, 2012, p. 81)

Problematizamos, a partir do exposto, o movimento de transformação da representação das classes populares na televisão dando ênfase, sobretudo, nos novos sentidos emergentes em torno das mulheres trabalhadoras domésticas, ou como se costuma chamar no Brasil, empregadas.

2. Empreguete, patroete e piriguete: da construção do feminino em Cheias de Charme

“Todo dia acordo cedo, moro longe do emprego, quando volto do serviço, quero meu sofá. Tá sempre cheia a condução, eu lavo pano, esfrego o chão, a outra vê defeito até no que não há. Queria vê a patroinha aqui no meu lugar, eu ia rir de me acabar (...) Eu levo vida de empreguete eu pego às sete, fim de semana salto alto e vê no que vai dá, um dia compro apartamento, viro socialite, toda boa vou com meu ficante viajar”. O hit Vida de Empreguete, composto especialmente para a novela Cheias de Charme , apresenta o mote da história: o dia-a-dia de empregadas domésticas que sonham em se tornar ricas e trocar de lugar com as patroas. Na trama, a luta de classes desenrola-se a partir de uma matriz cultural (Barbero, 2009) há muito arraigada na cultura ocidental: a fábula da gata borralheira, na qual a “princesa” fadada a uma vida de privações e trabalho doméstico sofre humilhações diárias de suas patroas até o dia em que conquista o amor do príncipe e, finalmente, dá a volta por cima. Os nomes utilizados para designar, respectivamente, o bairro popular, onde vivem as empregadas e o condomínio rico, onde moram as patroas – Borralho e Casa Grande – fazem analogia direta ao conto de fadas e à obra seminal “Casa Grande Senzala”, de Gilberto Freyre. Barbero explica a força do melodrama nos dias atuais a partir do resgate que o gênero faz das memórias culturais. Começamos a suspeitar de que o que faz a força da indústria cultural e o que dá sentido a essas narrativas não se encontra apenas na ideologia, mas na cultura, na dinâmica profunda da memória e do imaginário (...). (BARBERO, 2010, p.308)

O primeiro pressuposto do qual partimos aponta para uma representação das personagens pertencentes à chamada nova classe média dirigida à exaltação do poder de consumo adquirido por meio de situações inusitadas. Maria do Rosário, Maria da Penha e Maria Aparecida, as protagonistas de Cheia de Charme , passam a ser valorizadas e aceitas socialmente a partir do

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momento em que adquirem, com a fama e o enriquecimento, status de vida próximos aos das classes A e B. O ápice das empregadas domésticas não é alcançado através da conquista de direitos como a assinatura da carteira, aumento salarial ou assistência do estado referente à conquista da casa própria, etc. A reviravolta na vida das personagens está ligada ao alcance de um padrão de consumo capaz de igualá-las ou, pelo menos, aproximá-las dos modos de vida das classes ricas. Se, por um lado, Rosário realiza o sonho de comprar uma casa no condomínio da antiga patroa (num movimento de igualar-se), Penha opta por reformar sua casa localizada na Comunidade do Borralho e Cida adquire um apartamento modesto onde passa a morar com a madrinha, também empregada (num movimento de afirmar as diferenças e manter uma espécie de fidelidade à sua classe de origem). A primeira compra jóias, a segunda geladeira, fogão e reforma o “puxadinho” da vizinha e a última compra roupas novas para si e para a madrinha. As três abrem conta no banco (num episódio em que há merchandising da Caixa Econômica Federal). Tanto no caso da que opta por um estilo de vida da patroa como no das que se mantém próximas às características de “empreguetes”, a construção dos modos distintos de se relacionar e viver em sociedade está atrelada ao consumo, caracterizando uma alegoria de uma sociedade onde (...) pequenos hábitos de compra ao alcance da maioria dos consumidores vão moldar as identidades individuais e colaboram para a sensação de liberdade de escolha que se amplia para outras esferas da vida, como se atos de volição fossem suficientes para definir nossas posições sociais porque afinal somos feitos daquilo que possuímos (BAUMAN apud ROSINI 2010, p. 247). O paradoxo está em afirmar as diferenças para negar as distinções apresentando as primeiras como disponíveis a todos que se esforçam para superar falhas pessoais. (ROSINI, 2013, 22)

Por outro lado, há a exaltação das protagonistas como mulheres batalhadoras, que se dividem entre as atividades profissionais e os compromissos domésticos, além de seus conflitos amorosos. Essa característica é acentuada na personagem Lygia, advogada, patroa de Penha que luta para conciliar os cuidados com o filho, o casamento e a atividade profissional. O dilema entre o privado e o público é apresentado na polarização entre o sucesso na vida profissional e os problemas com o filho adolescente e com o marido infiel. Segundo Filipe Miguez, um dos autores, “a novela é uma grande homenagem a essa mulher [guerreira] que existe em todas as classes ”5. O mito da super-mulher construído pela mídia é criticado por feministas como mais uma maneira de encobrir as disparidades entre os gêneros, reforçando a imagem de que é possível, sem nenhuma mudança estrutural e sem questionamento das relações de gênero tal como se colocam atualmente, a união dos predicados de beleza dentro dos padrões estabelecidos, sucesso

5 Entrevista disponível em: http://tvg.globo.com/novelas/cheias-de-charme/Fique-por-dentro/noticia/2012/04/cheias-de-charme-uma- homenagem-mulher-guerreira-de-todas-classes.html

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profissional, independência financeira sem, porém, descuidar do cuidado com o lar e com a manutenção da família. Desta forma, ainda que as empreguetes tenham atingido o status de e alcançado a vida pública, não ocorre um deslocamento do âmbito privado. Analisando as trajetórias de vida de duas celebridades brasileiras, Gisele Bundchen e Luciana Gimenez, a pesquisadora Lígia Lana observa o reforço desta condição. De maneira sintetizada, pode-se dizer que nas trajetórias analisadas a mulher possui renda própria, trabalhando fora do âmbito doméstico. Entretanto, não há desobrigação das tarefas privadas ou a divulgação da maneira como as personagens conciliam os dois tipos de atividade. Trata-se, em ambos os casos, de mulheres com condições econômicas para contratar empregados domésticos. A relação entre as atividades públicas e privadas não é tematizada como um campo problemático, o que sugere a manutenção das desigualdades. (LANA, 2012, p.256)

A relação entre Penha e Sônia é marcada por um sentimento de amizade e gratidão, diferenciando-se das demais. Neste caso, a disparidade entre as classes é resolvida pela construção de uma relação afetiva enquanto o trabalho doméstico é ressaltado ao mesmo tempo como atividade oposta - do ponto de vista qualitativo – do trabalho fora de casa e como complemento necessário deste. Excetuando-se Lygia, as demais patroas são arquétipos de madrastas e bruxas. Nestas personagens o tom satírico e bizarro se destaca. Chayenne, a vilã, é uma rica cantora de tecnoforró, originária do estado do Piauí. A personagem confere comicidade à trama pelo seu figurino composto por cores, estampas e plumas que remetem ao universo das cantoras do tecnobrega e de forró eletrônico. Além disso, ganhou apelo popular pelo texto carregado de sotaque, regionalismos e neologismo. Curica, rejuvelhecer, perebíase, ariranha, são alguns vocábulos comuns nas falas da personagem. Observa-se que ainda que tenha adquirido capital econômico e passado a pertencer à classe rica, Chayene conserva o habitus das classes populares, como por exemplo, o gosto por roupas exageradas e por comidas gordurosas. Sônia, a patroa de Cida, encarna a madrasta da história. Faz questão de se distinguir a partir das roupas e joias que consome mesmo quando a situação financeira da família se torna complicada. Como nos contos infantis, as filhas Isadora e Ariela são fúteis e invejam e temem a beleza da empregada. A história de Cida também é marcada pelo envolvimento amoroso com um rapaz rico que estaria “prometido” a Isadora. Neste núcleo, o drama do reconhecimento (Barbero, 2009, p.306) adquire seu ápice quando é revelado que Cida é, na verdade, filha do patrão.

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O eixo trabalho/renda é um dos principais norteadores a partir do qual podemos entrever a construção que se faz das imagens do feminino na telenovela. Um olhar sob as relações afetivas e sexuais também nos oferece revelações importantes nesse sentido. O amor como pressuposto para o sexo, a postura recatada, a busca pelo amor romântico e a manutenção de valores e condutas condizentes com a família tradicional e heteronormativa caracterizam, de uma maneira geral, as empreguetes. No último capítulo da novela, Penha reconcilia-se com o ex-marido, Rosário e Cida se casam enquanto a primeira anuncia para o noivo que está grávida. A , assim, é completada, quando, além da emancipação no campo do trabalho, na conquista pelo espaço público, elas conquistam o que seria o ápice na vida de qualquer mulher: casamento e filhos. Por outro lado, destaca-se o papel da “piriguete” Brunessa na trama. Com uma moral sexual liberada dos tabus da monogamia e do amor romântico e ligada na maior parte das vezes ao interesse econômico, Brunessa exibe um corpo exuberante e curvilíneo e vive à procura de “bons partidos” com quem possa se divertir e usufruir, ainda que de maneira efêmera, do “bom e do melhor”. A etimologia do termo, advinda de perigo, já expressa em si, o machismo que aponta a liberalização sexual da mulher como uma ameaça à moral e bons costumes. Neste caso, o comportamento sexual da personagem é percebido de maneira dúbia, a um só tempo, exalta-se a liberalização do corpo, a suposta independência conquistada e a separação entre sexo e amor e, por outro lado, demarca-se profundamente a linha entre ela e as garotas que “são pra namorar”. Berg, Torres e Silva (2011), a partir de um estudo com três meninas da periferia frequentadoras de bailes funks, apresentam um contraponto à visão apressada que conduz à celebração do comportamento sexual “descolado” de algumas garotas das classes populares como fora imagem de insubmissão ou emancipação. Eles apontam que a erotização precoce e exacerbada pode refletir um sentimento introjetado de “disputa” pelo homem provedor que lhes tiraria o sentimento de insegurança acumulado numa vida marcada desde a infância pela escassez de recursos financeiros e afetivos e pela ameaça constante de violência sexual. Além disso, a celebração do corpo pode, neste sentido, reforçar uma coisificação do objeto de prazer e dominação masculina. Confirmando a perspicaz intuição de Freud, a exibição ritualizada de um prazer ou realização é tanto mais necessária quanto mais esse prazer e ritualização são negados a quem os exibe. O desprazer vem de que, na intimidade precária dessas meninas e rapazes, a “entrega de si” não suspende os estigmas da dominação do homem sobre a mulher, agravada pela dominação de classe. (BERG, TORRES, SILVA; 2011, p.162)

Observa-se que a novela apoia-se em dicotomias há muito difundidas na cultura ocidental: bela/feia, boa/má, corpo/intelecto, amor/sexo, público/privado, rico/pobre. Em resposta às

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disparidades de classe e de gênero apresenta-se uma “tele-realidade” 6 assentada numa exaltação do poder de consumo e na resolução de conflitos sociais por meio da superação individual, do personalismo e das relações afetivas. Com relação ao retrato que faz das mulheres, sobretudo das classes populares em ascendência financeira, não inclui questionamento das estruturas sócio-econômicas e de gênero que incidem sobre a vida desse grupo, corroborando com um discurso que tende a diminuir as ideias feministas. Há uma celebrização das mulheres das classes populares que, apesar de quebrar a invisibilidade destas e conferir-lhes uma representação elogiosa, não questiona os limites e possibilidades do cenário de ascensão pelo consumo que a chegada das brasileiras à chamada nova classe C representa.

3. A empregada doméstica mais cheia de charme do Brasil – jogos de visibilidade em busca de reconhecimento

“Rárárárá mas eu tô rindo à toa, não que a vida seja assim tão boa, mas o sorriso ajuda a melhorar(...)” Embalada pelo forró do grupo de forró Falamansa, Marilene cantarola enquanto espana os móveis da casa da patroa e sorri para a câmara repetidas vezes. Foi com esse vídeo, assistido e compartilhado por milhares de brasileiros (as) na internet, que a baiana ganhou o concurso “A Empregada Doméstica mais Cheia de Charme do Brasil”. Além da fama repentina conquistada nas redes sociais, Marilene de Jesus recebeu como prêmio a participação num dos capítulos da telenovela que costumava assistir ao voltar do trabalho. O concurso realizado pelo Fantástico, revista eletrônica semanal exibida pela Rede Globo, teve mais de 1400 participantes de todo o Brasil, dentre as quais, foram eleitas por júri popular cinco finalistas que passaram pelo crivo das atrizes protagonistas de Cheias de Charme, Isabelle Drummond, e Thaís Araújo. Durante a escolha da vencedora, levada ao ar no Fantástico em 22/07/2012, o carisma e a “verdade” de Marilene, foram os elementos destacados pelo júri para o resultado. Características reforçadas pelas entrevistas dadas pela patroa, Vitória Régia, após o anúncio: “Se ela já ria à toa, agora então...” 7.

6 “A TR e claramente uma área vital de pesquisa se considerarmos que ela é cada vez mais importante na programação da televisão popular, e, se acreditarmos que uma das coisas que ela faz é melodramatizar todos os destinos , como uma questão de responsabilidade individual, ao mesmo tempo obscurecendo os fatores estruturais que ainda os determinam fortemente. (Morley, 2010, p. 14) 7 Notícia publicada em 22/07/2012, disponível em: http://www.correio24horas.com.br/noticias/detalhes/detalhes-1/artigo/baiana-e- escolhida-a-empregada-mais-cheia-de-charme-em-concurso-do-fantastico/ Acesso em: 24/06/2013

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Os sentimentos de alegria e espontaneidade que emanam do vídeo inserem-se numa rede ampla e difusa de discursos e ações que reproduzem valores como a auto-realização, o empreendedorismo, o individualismo, a ideologia meritocrática e, em última instância, a busca pela autenticidade – base moral por trás de todos os anteriores. Essas características compõem recorrentemente as descrições do estado atual da subjetividade moderna e estão ligadas ao conceito também amplamente explorado de capital social. A partir de narrativas centradas nos indivíduos e de uma interpelação constante ao “eu verdadeiro” de cada um de nós, os discursos midiáticos, notadamente através da publicidade, estimulam as pessoas a buscar conhecer e controlar a si mesmo com vistas a uma melhor performance corporal, um melhor desempenho afetivo e social e, claro, ao sucesso financeiro. (...) até aqueles que ignoram as minúcias do conceito de capital humano sentem-se estimulados, hoje em dia, a agir programaticamente para acumular conhecimentos, habilidades técnicas, redes de contatos e disposições motivacionais que o deixarão em posição de vantagem nas relações de concorrência que se disseminam – sem exagero – por todas as esferas da vida. (FILHO; CASTELLANO, 2012, p. 29)

No caso de Marilene, o ser ela mesma, traduziu-se numa performance diante do vídeo que reproduzia as atividades do cotidiano sem nenhum efeito sonoro, imagético ou figurino especial e maquiagem. Ser ela mesma significava ocupar um espaço de resignação frente ao trabalho redentor, transmutado no sorriso constante. A representação da empregada traduz-se em estranheza quando assistimos à participação de Marilene num dos capítulos da novela. Ainda que reconheçamos os limites claros que se interpõe entre a performance das atrizes (ainda que reivindique uma estética realista) e a atuação da empregada real, chama atenção a disparidade daquele corpo roliço, negro e nos gestos tímidos não moldados pela técnica da teledramaturgia. Queremos chamar atenção para a construção narrativa da telenovela que a um só tempo promove a crença no acaso fortuito que dá acesso ao status de celebridade enquanto demarca fortemente os limites deste espaço. As personagens descobertas pelos caçadores de talentos e depois lançadas em grande escala pelos estúdios são tipos ideiais da nova classe média dependente. A starlet deve simbolizar a empregada de escritório, mas de tal sorte que, diferentemente da verdadeira, o grande vestido de noite já aparece talhado para ela. Assim, ela fixa para a espectadora não apenas a possibilidade de também vir a se mostrar na tela, mas ainda mais enfaticamente, a distância entre elas. Só uma pode tirar a sorte grande, só um pode se tornar célebre, e mesmo se todos têm a mesma probabilidade, esta é para cada um tão mínima que é melhor riscá-la de vez e regozijar-se com a felicidade do outro, que poderia ser ele próprio e que, no entanto, jamais é. (ADORNO; HORKHEIMER, p.136)

A publicização da trajetória de realização de Marilene, não se esgota neste episódio. Semanas após a gravação da novela, um outro vídeo seu é postado no youtube – como os anteriores,

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filmado, editado e disponibilizado pela patroa e por amigas desta da turma de Bacharelado Interdisciplinar de Artes/Cinema da Universidade Federal da Bahia. Desta vez, a estética e a linguagem são de um flagra de uma situação corriqueira. Marilene está trabalhando quando atende o celular. Do outro lado da linha, a vendedora de uma loja de departamentos confirma alguns dados e oferece-lhe um cartão de crédito. “Não acredito”, chora após desligar o telefone enquanto relata à patroa. As duas relembram o dia em que Marilene desejou um cartão e a patroa disse: “Deixa vir sua fama que você vai ver que o cartão vai vir atrás de você”. O comentário da patroa reverbera a crença generalizada que o acesso à visibilidade pública é, em si, um valor capaz de agregar outros tantos capitais. Ser famoso nesse sentido implica ser reconhecido por outrem, a partir de um movimento que não mais vai da história pessoal ou do mérito ao reconhecimento, mas, antes o contrário. Conforme Nathalie Heinich (2012) implica em “colocar um nome numa face e não mais a face sobre um nome” (HEINICH, 2012, p.34). Com relação às mulheres, o alcance do status de celebridade, a partir, principalmente, das trajetórias das atrizes de Hollywood, contribuiu de alguma maneira para a chegada destas à vida pública. Por outro lado, Michele Perrot questiona, inclusive, o pouco uso do termo “mulheres públicas”, demarcando as diferenças entre ser “famosa”, “célebre” e ter, em alguma medida, atuação e interferência equânime na esfera pública. Além disso, a celebrização das mulheres está calcada na exaltação do poder de consumo e no esforço para a construção da beleza (Lana, 2012, p. 2), ainda que no caso das mulheres das classes populares isso seja feito a partir de critérios outros, como na trajetória da cantora de funk Tati Quebra-Barraco, famosa pelo bordão “sou feia mas tô na moda”. 8 A emoção da empregada pela conquista do cartão é tornada pública e ecoa como uma voz uníssona de tantas outras mulheres das classes populares que veem no crédito a possibilidade de finalmente conquistar simbolicamente através do consumo o que lhes falta estruturalmente. Vitória Régia confirma o exposto através de comentário ao vídeo postado no youtube: “no caso dela isso significa reinserção social... ela tinha q usar o cartão da vizinha...”.

Considerações finais O processo de crescimento da renda média da população das classes baixas no Brasil ecoa nas representações midiáticas deste estrato, sobretudo, a partir de dois eixos: a exaltação do poder

8 Sobre isso vê LANA, L. C. C. Tati Quebra-Barraco: a celebrização da mulher da periferia no Brasil hoje.Texto apresentado no Seminário Internacional Natureza e Construção da Celebridade no Século XXI . Belo Horizonte, Fafich-UFMG, 2012

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de consumo adquirido e a demarcação simbólica do que viria a ser o estilo de vida da chamada nova classe média. Neste sentido, nota-se um movimento que a um só tempo “festeja” a ascensão financeira deste grupo enquanto difunde pedagogicamente modos de ser, de consumir e de pensar que em nada questionam o sistema econômico vigente e oferecem alento ao mercado consumidor ávido pela conquista desse crescente nincho. Com relação às mulheres das classes populares, a representação televisiva acentua o personalismo, o individualismo e a autenticidade como maneiras de alcançar o sucesso profissional, pessoal e econômico. As mulheres celebridades são vencedoras porque acumulam capital de visibilidade e respondem satisfatoriamente aos critérios de beleza, “atitude” e vida pessoal equilibrada, o que implica a realização do ideal da maternidade e/ou do matrimônio. Neste sentido, a atribuição de peso às suas capacidades pessoais acaba por encobrir o peso das estruturas culturais, sociais e econômicas que se interpõem à livre-realização das mulheres das classes populares nos âmbitos privado e público. A desigualdade entre os gêneros e entre as classes é encoberta em torno do mito da super-mulher que, no contexto analisado, têm seu trabalho fortemente ligado à esfera do lar, mas têm acesso diferenciado à esfera pública através do consumo. Como dito no início, este trabalho compõe parte da nossa pesquisa de mestrado em torno do fenômeno de representação das classes populares na telenovela brasileira e, por isso, apresenta reflexões iniciais ainda carentes de maior empiria para que gerem debates e apontamentos mais profícuos.

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TAYLOR, Charles. A ética da autenticidade . Lisboa: Biblioteca de Filosofia Contemporânea, 2009.

From maid to "empreguete": search for visibility and recognition in the context of transmedia Cheias de Charme

Astract : The construction of images that the subjects have of themselves is now a task that inevitably includes reflection on consumption as human action endowed with social meaning. In this paper, we propose to analyze the contest "The most maids Charming Floods in Brazil", sponsored by Fantastic - electronic magazine aired by Rede Globo on Sundays - thinking the dynamics of differentiation and seeking recognition by the participants of the event . From the analysis fields of cultural studies, with its emphasis on the process of reception, the article aims to approach the practices which the soap operas viewers make a transmedia context and subjectivity emerging from this relationship. This article stems from our route research around the role of the maids in the soap opera Cheias de Charme, aired by Rede Globo in the seven hours during the year 2012. Understand that this object is related to the political-economic conjuncture brazilian emergence of the "new class C" and a market strategy that legitimizes consumption habits and lifestyle attributed to women of this social stratum. Keywords : Telenovela, visibility, new class C, maids.

12 Seminário Internacional Fazendo Gênero 10 (Anais Eletrônicos), Florianópolis, 2013. ISSN 2179-510X

13 Seminário Internacional Fazendo Gênero 10 (Anais Eletrônicos), Florianópolis, 2013. ISSN 2179-510X