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Cheia de Charme: a classe trabalhadora no paraíso da cibercultura

Cheias de Charme (Full of Charm) 5 The working class in cyberculture paradise

Gisela Grangeiro da Silva Castro1

Resumo Dada a liderança da Rede Globo no cenário midiático brasileiro, este trabalho toma como objeto de análise as estratégias utilizadas na Cheias de Charme para incentivar a interação com os usuários de redes sociais na internet. A telenovela participa da pedagoria social, notadamente junto ao público que tem a televisão como principal fonte de lazer no cotidiano. Cheias de Charme dirige- se à classe C e elege a figura da empregada doméstica como protagonista. No complexo e excludente ecossistema comunicacional atual, destaca-se o crescimento do acesso aos meios digitais por parte das classes menos favorecidas e a relevância do internauta brasileiro nas redes sociais digitais. Ao examinar a transmidiação desta narrativa, discute-se a hibridização entre comunicação, consumo e entretenimento em nossos dias. Palavras-chave Comunicação e consumo; cibercultura; entretenimento; telenovela; convergência midiática.

Abstract Given the leadership of Rede Globo in the Brazilian media scene, this paper aims to analyze marketing strategies present in the telenovela Cheias de Charme (Full of Charm) in order to elicit interaction with internet social networks. The telenovela takes part in the social pedagogy, especially aimed at the audience stratum for whom television is the main source of daily leisure. Cheias de Charme focuses on class C portraying domestic workers as main characters. In today’s complex communication ecosystem, we highlight the growing access of lower income classes to digital media and the relevance of the Brazilians in digital social networks. By examining this example of transmedia storytelling we discuss today’s striking HYBRIDIZATION between communication, consumption and entertainment. Keywords Communication and consumption; cyberculture; entertainment; telenovela; media convergence.

1Docente e pesquisadora do PPGCOM-ESPM, tendo sido coordenadora do Programa de 2008 a 2011. Conselhei- ra da ABCiber, tendo exercido o cargo de Diretora de Comunicação da associação no período 2009-2011, sócia da Intercom e editora da revista Comunicação, Mídia e Consumo. 60

Todo dia acordo cedo, uma cultura (...) cujas imagens, sons e es- Moro longe do emprego petáculo ajudam a urdir o tecido da vida Quando volto do serviço quero o meu sofá cotididana, dominando o tempo de lazer, (Trecho da canção Vida de empreguete) modelando opiniões políticas e compor- tamentos sociais, e fornecendo o material Tomando como ponto de partida a situação de com que as pessoas forjam sua identidade. liderança ocupada pela Rede Globo no cenário mi- (...) A cultura da mídia é industrial; organi- diático brasileiro – tanto em termos de audiência za-se com base no modelo de produção de quanto por sua pujança como produtora de con- massa e (...) almeja grandes audiências, por teúdo, o presente trabalho pretende refletir sobre isso deve ser eco de assuntos e preocupa- a entrada da telenovela brasileira às paradas de ções atuais (...) apresentando dados da vida sucesso das redes sociais na internet. Devido ao social contemporânea. (KELLNER 2001:9) seu protagonismo nas práticas cotidianas junto a Entre nós, esse é o caso da telenovela, que públicos de diferentes segmentos, a programação ocupa um lugar de destaque na programação televisiva – com destaque para a telenovela – par- da maior rede de televisão brasileira e congrega ticipa de modo significativo da pedagogia social grandes audiências justamente por sua proximi- contemporânea. Nesse sentido, interessa exami- dade e ressonância com a realidade social. É cer- nar seus modos de endereçamento e lógicas de to que, no que diz respeito às da Glo- produção visando ajustar-se ao contexto da co- bo, mesmo que não se acompanhe regularmente o municação mediada por computador, interpelando desenrolar das mirabolantes tramas é difícil ficar o espectador que é também usuário de internet. indiferente devido à sua grande incidência nas conversas do dia a dia. Não raro, por exemplo, ex- pressões criadas como bordão para determinados Mídia, telenovela e vida social personagens passam a fazer parte integrante da linguagem cotidiana. Ocorre também que seja as- Ao comentar sobre a participação da mídia na similado como adjetivo o nome da vilã (ou vilão) de construção social da realidade, Paula Simões e uma trama marcante. Para melhor compreender a relação entre telenovela e vida social em nosso Vera França observam que “os diversos discursos país, Paula Simões e Vera França ressaltam, com produzidos em uma cultura trazem as marcas da propriedade, que sociedade e do contexto em que estão inscritos” a telenovela ocupa, (...), um importante lu- (2007: 58). Kellner (2001) e Silverstone (2002), den- gar na cultura e na sociedade brasileiras. tre outros estudiosos, ensinam que a constituição Ela constrói um cotidiano na tela em estrei- dos modos de ser e viver são hoje em grande parte ta relação com a realidade social em que condicionados pelos padrões e modelos forneci- se situa, trazendo para a construção das dos pela cultura da mídia. Citando Douglas Kellner, personagens as preocupações, os valores deve-se entender a cultura da mídia como 61

e temas que perpassam o cotidiano dos te- Ainda segundo o autor, o entretenimento estaria na lespectadores. (2007:52) base da programação midiática devido à sua capa- cidade de seduzir grandes audiências. Além de desempenharem papel de destaque no Ao apontar as dinâmicas do entretenimento entretenimento e lazer cotidianos, as telenovelas nas bases da comunicação digital, Manuel Cas- atuam de modo significativo na formação social tells (2009: 69) elenca como componente principal dos gostos e na consolidação de novas práticas de do atual sistema midiático uma nova modalidade consumo. É sabido que, de um modo geral, a mídia de entretenimento inteiramente baseado na inter- interpreta a produção e socializa para o consumo. net e nos programas de software. No caso específico das telenovelas, neste exer- De fato, os processos de globalização de mer- cício nem sempre explícito de pedagogia social, cado e o surgimento da informática e da microe- temos que a cenografia, o enredo, o elenco e os letrônica atuam na reconfiguração de nossas prá- personagens funcionam como vitrines por meio dos ticas quotidianas. Essa constatação levou Kellner quais os telespectadores podem apreender estilos (2001) a propor que estaríamos imersos em uma de vida e modos de ser. sociedade do infoentretenimento, denominação Comentando sobre a compreensão do consumo que aponta de modo exemplar a fusão desses ele- como ponto de partida para se analisar as práticas mentos caracterizando o tempo presente. contemporâneas, Maria Aparecida Baccega ensina que o importante é entender o mercado não apenas como local onde mercadorias são trocadas por di- A mobilização do telespectador como interator nheiro. Nesse contexto de análise, ele “passa a ser visto como território de interações, com espaços de Inegavelmente, a influência das redes digitais escolha e de diálogo entre sujeitos, de satisfação como espaços de comunicação, sociabilidade e de necessidades materiais e culturais” (2009: 15). negócios se reflete nos fluxos comunicacionais e Em seus mais diversos entrecruzamentos, co- modos de produção, distribuição e consumo dos municação, consumo e entretenimento estão na suportes de base analógica. Na telenovela, o jogo base da nossa experiência atual. Manuel Castells comunicativo que se estabelece entre o conteúdo (2009) compreende a mídia atual como sendo, so- exibido na TV e o que circula nas redes digitais bretudo, um grande negócio. O autor assinala que motiva o interesse dos pesquisadores da área. “as mesmas tendências que têm transformado o Segundo Ana Silvia Médola e Léo Victor Redondo, mundo dos negócios – globalização, desregula- produtores e receptores de ficção televisiva mo- mentação e expansão de redes telemáticas – tam- bilizados com a perspectiva da convergência total bém vêm alterado as operações da mídia.”2 (p. 71). vem desencadeando novas práticas no cenário midiáticas brasileiro. Os telespectadores “são 2 No original: “Because the media are predominantly convocados a exercer algum tipo de participação a business, the same major trends that have transfor- nos programas estabelecendo diferentes níveis med the business world – globalization, digitization, networking, and deregulation – have radically altered de diálogo com a programação” (2009: 149), pro- media operations.” (tradução livre) 62

movendo a ressonância desta programação junto os quadrinhos. Recebe os conteúdos e se às redes socias nas quais estão conectados. envolve em intercâmbios comunicativos Ao interagir simultaneamente em diversas pla- utilizando, alternadamente, diversos dis- taformas midiáticas como a própria TV, o portal positivos polifuncionais onde se integram Globo.com, o Twitter e o YouTube por exemplo, textos, imagens e áudio. (IGARZA 2008: 142) este novo telespectador usuário de mídias sociais interage com a trama da telenovela ao produzir Trata-se de fomentar a constituição desse novo conteúdo e compartilhar comentários e produ- tipo de telespectador que é o usuário das redes ções próprias nas redes das quais participa. sociais na internet; um misto de receptor e pro- Ao discorrer, com pertinência, sobre os novos dutor ativo e conectado que manipula simultane- modos de assistir televisão, Milly Buonanno (2010) amente diferentes plataformas comunicacionais descarta como equivocada a noção de que uma fusionando os tênues limites entre o público e o suposta ‘revolução digital’ teria tornado ativo o privado, o trabalho ou as tarefas escolares e o la- ‘mero’ espectador televisivo. Suas ideias sobre o zer, dando origem a uma mescla pessoal e idios- papel ativo do receptor encontram ressonância sincrática cujos principais componetes são comu- na conceituação proposta por Maria Aparecida nicação, entretenimento e consumo. Baccega que entende o receptor, desde sempre, Conforme denominação proposta por Janet como “sujeito ativo (que) não só interpreta, res- Murray (2003) ao tratar do fruidor que é simultane- significando, as mensagens da mídia, como tam- amente co-autor de narrativas que se desdobram bém inclui essa ressignificação no conjunto de em múltiplas plataformas, as chamadas narrativas suas práticas culturais, modificando-as ou não” transmidiáticas, o termo interator parece adequa- (2009: 19). do para classificar de modo geral o usuário de Roberto Igarza (2008) analisa o processo de novos tipos de mídia. De fato, interpelar e enga- convergência de meios que ocorre em maior ou jar o espectador como interator parece ser cada menor escala nas indústrias culturais ao redor do vez mais importante, não somente em termos pro- mundo. Sua posição se afasta do determinismo priamente comerciais como também para con- tecnológico, um viés de certa forma característico ferir uma roupagem contemporânea a formatos na análise de Jenkins (2008), rumo ao entendimen- e gêneros midiáticos mais tradicionais, como no to da convergência como caso da telenovela, preservando seu interesse e um processo mais cultural e transmidiático relevância em tempos de convergência e transmi- do que tecnológico. A cultura da conver- dialidade. gência é uma cultura em que a circulação de informação transcende os meios, na qual o entretenimento e a fruição são trans- Cibercultura e ficção televisiva -meios. Para desfrutar plenamente de uma Cheias de Charme não é a primeira telenovela história, o usuário vê o filme, debate em fo- da Globo cuja narrativa faz uso de estratégias de ros e blogs, joga com os videogames e lê transmidiação. Antes de examinar o sucesso de 63

Vida de Empreguete junto ao público internauta, Vilma (Arlete Sales) é uma motorista de táxi que convém discutir os esforços da emissora em dia- é também uma internauta ativa e entusiasmada. logar com o usuário de ferramentas digitais de co- Para reforçar esta característica, o táxi da per- municação e situar sua programação no contexto sonagem recebe o apelido de Modem, multimodal que caracteriza o ecossistema comu- numa alusão ao dispositivo eletrônico respon- nicacional atual. sável por viabilizar a conexão à rede mundial de Sem pretender historiar de modo sistemático e computadores. exaustivo as diversas experiências da Rede Globo Sendo a telenovela um produto voltado para o em estabelecer conexões entre a sua programa- grande público, as intenções por parte da emis- ção televisiva e o universo digital, vale destacar a sora ao inserir elementos da cultura digital nas inserção da internet como personagem, por exem- tramas podem ser compreendidas por meio de um plo, na novela (Manoel Carlos). Nes- duplo viés. Para o telespectador que já é usuário ta trama, a personagem vivida por Alinne Moraes de mídias digitais, busca-se a sua identificação sofre um grave acidente que a leva a submeter- -se a um longo processo de recuperação. Como ao trazer para a novela a representação dessas parte desses esforços, a personagem é encoraja- práticas que fazem parte do seu cotidiano. Já da a criar um blog no qual passa a registrar seus para o telespectador não iniciado, diversas cenas progressos, decepções e expectativas. Abrigado apresentam de modo didático o passo a passo no portal Globo.com e funcionando como narrati- da interação com os meios digitais. Trata-se de va complementar, o blog Sonhos de Luciana pode simultaneamente interpretar e interpelar o teles- ser entendido como um convite à participação do pectador-internauta, participando igualmente de espectador-internauta. sua constituição e da consolidação do uso das Também como narrativa complementar da no- novas mídias no seu dia a dia. vela Viver a Vida no mundo digital criou-se o Por- tal da Superação, o qual abrigou – na íntegra – os depoimentos exibidos ao final de cada capítulo A classe trabalhadora vai ao paraíso da trama. Nesses depoimentos, gente comum de diferentes idades, gênero e situação social conta- O subtítulo escolhido para este trabalho alude vam diante da câmera suas diversas histórias de ao clássico filme italiano estrelado por Gian Ma- sofrimento, destacando como conseguiram trans- ria Volonté: A classe operária vai ao paraíso (La por suas limitações ou dificuldades. Por meio do classe operaia va in paradiso, direção Elio Petri, recurso às plataformas digitais complementares 1971). Evidentemente, esta aproximação com a te- à trama, esperava-se encorajar o telespectador lenovela em questão não busca identificar na tele- a prolongar ali sua experiência com a telenovela. dramaturgia a verve política da obra de Petri. A in- A cibercultura foi tematizada em Fina Estam- tenção é fazer um chiste a partir da idealização da pa, novela de Aguinaldo Silva exibida no horário internet como portal mágico de pessoas comuns nobre das 21h. Dentre os personagens da trama, rumo ao estrelato. 64

Escrita por Filipe Miguez e Izabel de Oliveira, das redes digitais de comunicação, por meio das roteiristas novatos na teledramaturgia da Rede quais um dado conteúdo pode ser rapidamente Globo, Cheias de Charme é uma versão atualiza- replicado e distribuído entre pares. A viralização da da arquetípica história da Cinderela. A trama se dá quando a velocidade e o alcance da reticu- acompanha as protagonistas Cida (Isabelle Drum- lação ocorrem de modo semelhante a um ataque mond), Penha (Taís Araújo) e Rosário (Leandra de vírus, quando o conteúdo se espalha acelera- Leal), um trio de empregadas domésticas que al- damente atingindo um número sempre crescente cançam notoriedade na cena musical. de nós na rede. O ponto de mutação que as leva ao sucesso é Evidentemente, a viralização é um fenômeno o lançamento e a viralização do videoclipe Vida de imprevisível cuja repercussão pode ser consta- Empreguete nas redes sociais. Numa complemen- tada mas, não propriamente garantida, mesmo

Fonte: http://tvg.globo.com/novelas/cheias-de-charme/Empreguetes/

taridade bem sucedida entre a narrativa televisiva quando se dispõe de esquemas profissionais de e seus prolongamentos no universo digital, o clipe produção de conteúdo dito viral. Por mais que se foi lançado oficialmente no portal Globo.com (con- façam esforços para constituir o chamado marke- forme anunciado no final do capítulo da telenovela ting viral, sua ocorrência e eficácia terá sempre no qual o clipe é inserido na rede), tendo gerado uma parcela maior ou menor de imponderável. mais de um milhão de visualizações apenas nas 24 Dentre as diversas tentativas até agora horas que antecederam sua exibição na televisão. utilizadas pela emissora para tornar a telenovela Chama-se viralização a reticulação exponen- uma narrativa transmidiática, Cheias de Charme cial de um dado conteúdo nas redes sociais. A re- conseguiu gerar grande repercussão junto ao pú- ticulação, ou capilarização, é uma característica blico internauta. Vida de empreguete deu origem 65 a paródias, e outros tipos de reapropriação carac- e nas redes), esta campanha não logrou atingir a terísticas da cibercultura. Como parte dos desdo- mesma repercussão da anterior. bramentos transmidiáticos da narrativa televisiva, No interdiscurso típico da programação da o blog do personagem de Bruno Mazzeo lançou Rede Globo, onde é comum um programa aludir a um concurso de paródias de Vida de Empreguete. outros da mesma emissora, o dominical Fantásti- Em cena, o empresário Tom mostrava às meninas co lançou a campanha “A Empregada mais Cheia alguns dos melhores vídeos postados pelos fãs do de Charme do Brasil”, que teve a seguinte chama- trio. Um exemplo digno de nota é “Vida de pirigue- da na web. te”, que já tinha ultrapassado as 600 mil visualiza- Você é uma empregada doméstica cheia ções em 19 setembro de 20123, mesmo estando a de charme e de personalidade? Então, você telenovela já fora do ar. tem chance de dar pinta na novela Cheias Outro exemplo de transmidiação desta narrati- de Charme e viver o sonho das persona-

Fonte: http://guia.ingresse.com.br/2012/06/vida-de-piriguete-uma-parodia-de-vida-de-empreguete/ va de ficção televisiva levou aos trending topics4 gens Penha, Rosário e Cida. do Twitter a hashtag #empregueteslivres, campa- É isso mesmo! Na campanha “A empregada nha lançada na trama da telenovela como reação mais cheia de charme do Brasil”, do Fan- à prisão do trio protagonista, as empreguetes, e tástico, você envia um vídeo de até um mi- que gerou repercussão nas redes sociais. Mais nuto mostrando todas as suas aptidões ar- adiante na trama, outra campanha foi lançada nas tísticas. Cante, cozinhe, dance, passe e se redes: a campanha #empreguetesparasempre. divirta, porque a empreguete mais criativa Apesar da adesão de alguns famosos (em cena ganha uma participação na novela!5

3 Fonte: http://www.youtube.com/watch?v=KO6stDl-FVI 5 http://tvg.globo.com/novelas/cheias-de-charme/ 4 Assim são chamadas as frases mais publicadas e, Fique-por-dentro/noticia/2012/05/empregada-mais- portanto, mais comentadas, em dado momento no -cheia-de-charme-do-brasil-pode-aparecer-na-nove- microblog Twitter. la.html 66

Conclamar a participação do público por meio ção com os usuários de redes sociais na internet, da produção de conteúdo pode ser visto como uma é importante destacar que o portal oficial Globo. estratégia que contribui para o esforço de interpe- com estabelece um jogo de complementaridade lar e interagir com o telespectador que é também com a programação diária da Rede Globo. usuário de mídia, característico dos tempos em Concebido como principal ambiente virtual de que vivemos. Ainda que se possa pretender ter integração entre a emissora e seu público, o por- controle sobre as implicações de se conjurar esta tal pretende ser o local onde, segundo o discurso participação no bojo de uma trama ficcional como oficial, pode-se encontrar “tudo sobre o conteúdo a telenovela, corre-se o risco da estratégia não e marcas das Organizações Globo”. Na contramão funcionar a contento. das práticas de livre produção e compartilhamen- Vencedora do concurso mencionado acima, a to vigentes na cibercultura, a Globo atua judicial- risonha Marilene de Jesus viveu seu momento de mente para coibir nas redes sociais a circulação durante participação em Cheias de de conteúdo oriundo de sua programação, que é Charme. A experiência desta produção foi regis- protegida por leis de direito autoral e propriedade trada em vídeo6 que narra a história da baiana que intelectual. nunca havia tomado um avião e cujo maior sonho Raquel Recuero constata que a popularização era conhecer seu ídolo, o ator , de ferramentas “que proporcionam a publicação que na trama deu vida ao simpático malandro e a construção de redes sociais” (2012: 16) enseja Sandro. novas práticas de comunicação no cotidiano de Como parte do complexo jogo comunicacional milhões de pessoas ao redor do mundo. É notável que a telenovela estabelece com o público nas o número de usuários brasileiros no Orkut, Face- diferentes plataformas, esse vídeo funciona como book e Twitter, para citar apenas as ferramentas elemento narrativo complementar no qual ficção e majoritárias por meio das quais pessoas se co- realidade se misturam de modo nem sempre pre- nectam e interagem, formando e consolidando as visível – ou evidente. redes sociais digitais. Conforme ensina a autora, “as redes sociais (...) não são pré-construídas pe- las ferramentas e, sim, apropriadas pelos atores Considerações Finais sociais que lhes conferem sentido e que as adap- tam para suas práticas sociais” (2012:20). Para iniciar essas considerações sobre a hibri- Numa concepção abrangente do que sejam os dização comunicação, consumo e entretenimento atores nas redes sociais, entende-se que estes em nossos dias, tendo como foco as estratégias comportam indivíduos, grupos de interesse, cor- utilizadas na telenovela para incentivar a intera- porações e mesmo certos tipos de software que agem segundo comandos pré-programados e pro- 6 http://globotv.globo.com/rede-globo/fantastico/v/ duzem efeitos nas redes sociais na internet. empregada-mais-cheia-de-charme-do-brasil-vira- -estrela-de-novela/2064261/ Sabemos que a capacidade de conjugar o fas- 67 cínio do mundo dos espetáculos e a interatividade tem a televisão como principal fonte de entrete- nas redes de comunicação instantânea e ubíqua nimento e lazer cotidianos. Cheias de Charme está na base de estratégias de marketing que ca- foi dirigida para a chamada classe C – que hoje racterizam a cultura midiática atual. Ao integrar representa mais da metade de nossa população, as novas tecnologias na trama das telenovelas, a tendo tornado obsoleta sua representação gráfica Globo contribui para difundir a ideia de que estas em forma de pirâmide. Como elementos de identi- sejam indispensáveis para a tão propalada qua- ficação com esse significativo segmento de públi- lidade de vida, o grande mote da comunicação co, a trama elege como protagonistas as figuras mercadológica atual (MOTA ROCHA, 2010). Desse da empregada doméstica e das redes sociais na modo, contribui-se para constituir o telespectador internet. como usuário de ferramentas digitais de comuni- Desse certo modo, nesta versão atualizada do cação, integrando os que já o sejam e fomentando conto de fadas, a metáfora da classe trabalhadora a ideia de que usar com desenvoltura os meios di- levada ao paraíso contribui para constituir o so- gitais é requisito fundamental em nossos dias. nho da inserção digital e fomenta o investimento Conforme observa Carla Barros ao pesquisar – por vezes bastante expressivo significativo em nas lan houses a sociabilidade de jovens de co- termos de orçamento pessoal ou mesmo familiar munidades de baixa renda, “Não consumir tecno- – nos dispositivos e ferramentas tecnológicas que logia significa (...) estar à parte de uma dinâmica caracterizam e modulam (porém não determinam) social percebida como muito importante da vida as interações na cibercultura. contemporânea, que é a conexão mediada por aparelhos tecnológicos.” (2012: 117, grifos no ori- ginal) No complexo e excludente ecossistema co- municacional atual, destaca-se o crescimento do acesso aos meios digitais por parte das classes menos favorecidas e a relevância do internauta brasileiro nas redes sociais digitais. De modo colaborativo e lúdico, compartilha- -se um volume de conteúdo sem precedentes nas redes informacionais que congregam pesso- as e negócios ao redor do mundo. A transforma- ção dessas interações em dados que alimentam a segmentação de audiências e públicos atende aos interesses comerciais da indústria midiática. Entende-se que a telenovela participa da pe- dagoria social, notadamente junto ao público que 68

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Cheia de Charme: a classe trabalhadora no paraíso da cibercultura Gisela Grangeiro da Silva Castro

Data do Envio: 17 de setembro de 2012. Data do aceite: 17 de dezembro de 2012.