Índice De Receitas Agradecimentos
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Doces da minha vida - FINAL.indd 6 16/09/2014 18:20:20 UMA VIAGEM DOCE, DAS COZINHAS DA NOSSA INFÂNCIA PARA O MUNDO A primeira vez que ouvi falar deste livro foi numa entrevista que fiz ao Virgílio a propósito do anterior Tratado do Petisco e das Grandes Maravilhas da Cozinha Nacional. Nessa altura ele disse-me esperar que o livro seguinte fosse sobre doçaria. E acrescentou esta frase: «A doçaria tem uma linguagem muito mais poética.» Aqui está, então, esse livro – doce de várias maneiras. E uma delas é, sem dúvida, a linguagem. Este é também, entre muitas outras coisas, um livro cheio de memórias de infância, de imagens dessa grande cozinha familiar que se enchia de doces e de conversas sobre doces. Há momentos em que nos é permitido espreitar para esse passado, e vemos Virgílio, ainda criança, a comer a aletria, «esse consolo caseiro de inverno», que apare- cia muitas vezes ao lado do arroz-doce, e que também «servia de mimo quando está- vamos adoentados». Ou a pedir à Mãe que, mesmo fora da época natalícia, fizesse os bolinhos de arroz, receita que vinha já da família do Pai. Ou ainda, a acordar bem cedo para ir a correr até à cozinha e «espreitar o tabuleiro que continha os bolos que tinham ficado a dormir», esses dormidos de Bragança, que depois tinha que esperar, paciente- mente, que cozessem, para o prémio final que era «devorar um ainda meio quente». É dentro de uma dessas cozinhas de aldeia transmontanas, «com uma grande lareira onde havia sempre potes de três pés com água e ossos de presunto e alguma confeção de cozedura lenta», que assistimos a um delicioso diálogo, num dos tex- tos de que mais gosto do livro, o «concílio das mulheres da família», da noiva a decidir que doces se vão fazer para a festa de casamento. Somos convidados silen- ciosos nessa cozinha, onde ficamos a ouvir falar sobre esse tema (que subitamente descobrimos muito mais complexo do que imaginávamos) que é o arroz-doce, por um grupo de mulheres que sabem que é nos doces e não nos salgados que «se desenvolve a delicadeza dos gestos». 7 Doces da minha vida - FINAL.indd 7 16/09/2014 18:20:21 Mas não é só de doce poesia que se faz este livro. A arte de Virgílio é, quando nos apanha distraídos a espreitar estas cozinhas e a ouvir estas conversas, agarrar- -nos na mão e fazer-nos voar dali para fora para nos mostrar que a história dos doces é também uma história do mundo. Voltemos à aletria, como exemplo, para perceber que esse «consolo caseiro de inverno» é uma receita que nos terá sido deixada pelos mouros e que o autor encontrou também, noutras versões, em via- gens por Marrocos. Seguimos viagem depois por livros de receitas ao longo dos tempos – neste como em muitos outros doces deste livro – como investigadores à procura de pis- tas, guiados por Virgílio, que, no meio da sua impressionante biblioteca, já nos abriu o caminho encontrando todas as referências que nos vão permitir traçar a história deste ou daquele objeto de desejo. É um trabalho de investigação muito sério, e absolutamente essencial para que não fiquemos apenas pelas lendas (embora elas também sejam importantes para a história), o que Virgílio Gomes aqui faz. E aqueles que, como eu, o conhe- cem, sabem que não é apenas nos livros que ele procura as pistas. É capaz de per- correr o país, com encontros marcados em pastelarias, conventos ou casas de doceiras para recolher mais uma informação que ajude a esclarecer mistérios ou a derrubar mitos. E quem diz o país, diz o Brasil, por exemplo, passagem obrigatória para se fazer a história da doçaria portuguesa, porque foi para lá que ela viajou, e é lá que ainda hoje encontramos muita informação importante. Veja-se outra crónica deli- ciosa como é a da Expedição Gulosa Doce, em que Virgílio parte em busca dos «famosos fartes, doces chegados à Terra de Vera Cruz antes de ser Brasil» para per- correr casas de doceiras, ouvir os seus relatos, alegrar-se ou desiludir-se, mas vol- tando sempre sabendo mais. Por vezes, estas viagens levam-nos a sítios menos doces, como o Engenho Livramento, no Ceará, Brasil, para recordarmos que a história do açúcar se fez em cima do muito sofrimento dos escravos que trabalhavam nas plantações de cana. Mas para falar de açúcar, esse elemento essencial da doçaria, temos que viajar ainda mais longe, passando pela Índia e pela China, e entrando nas caravanas que trouxe- ram a «doce cana» para o Ocidente, de onde haveria depois de atravessar o Atlântico. E viajamos de volta a Portugal, para ouvirmos o autor fazer algumas das per- guntas incontornáveis quando se trata de uma história da doçaria portuguesa: o que é exatamente a doçaria conventual? É preciso clarificar as coisas, porque muito 8 Doces da minha vida - FINAL.indd 8 16/09/2014 18:20:22 Doces da minha vida - FINAL.indd 9 16/09/2014 18:20:26 do que encontramos nas pastelarias como sendo conventual não o é. E aí entra mais uma vez o trabalho de investigação de Virgílio, procurando nos arquivos dos con- ventos, nos antigos livros de receitas, para estabelecer tanto quanto possível que determinado doce nasceu realmente naquele convento, e que transformações sofreu quando depois se espalhou pelo país. Tive a sorte de ter a companhia do Virgílio numa dessas excursões pelo país, neste caso uma viagem não muito longa, mas muito interessante, em busca da his- tória do pão de ló de Alfeizerão, esse doce que terá nascido de um erro, quando um bolo destinado ao rei D. Carlos é retirado demasiado cedo do forno, e o inte- rior fica mal cozido. Mas foi um daqueles erros sábios, porque não só o rei muito apreciou, como o bolo se tornou uma especialidade local – a cuja confeção eu e o Virgílio assistimos na Casa do Pão‑de‑ló de Alfeizerão, e que é um desses exem- plos em que o saber e a experiência, a exatidão e o rigor que se escondem por trás da delicadeza dos gestos da doceira nos deixam, como ele escreve na sua crónica, «boquiabertos». É importante sabermos qual o papel do chocolate na nossa doçaria, ou dessa exótica baunilha, ou até que ponto podemos inovar sem trair o espírito original de um doce (temos o caso dos pastéis de nata, por exemplo). E é essen- cial prestar homenagem a todos os que continuam a manter as tradições, por mais trabalhosas que elas possam ser – é a eles que temos que agradecer o facto de muitos doces regionais continuarem a existir. É também para isso que existe este livro. Saímos dos conventos, desse universo de tachos de cobre e complexos pon- tos de açúcar para entrar nas cozinhas populares, e encontrar os doces regionais e populares, aos quais Virgílio quer devolver uma dignidade que alguns foram per- dendo. Vamos descobrindo também as muitas histórias de santos que estão ligados à doçaria, das ganchas de São Brás, bispo e mártir famoso por ter salvado uma criança tirando-lhe uma espinha da garganta, às fogaças de Palmela, votivas a Santo Amaro. É um mundo doce, este, em que as farófias se podem chamar «nuvens», ou «ovos nevados», e em que as receitas viajam na cabeça de uma freira de um con- vento para o outro, ou são copiadas à mão de antigos livros, durante gerações – tal como o livro de receitas da Mãe de Virgílio, a partir do qual ainda hoje os filhos vão fazendo doces, preservando uma memória que pertence à história do país, mas que é, ao mesmo tempo, uma memória de cada um. É, afinal, uma memória dessa 10 Doces da minha vida - FINAL.indd 10 16/09/2014 18:20:26 infância em que esperávamos ansiosos que a alquimia dos ovos, da farinha e do açúcar se desse mais uma vez no fundo dos tachos, e que o calor do forno fizesse depois crescer o bolo mais desejado. Obrigada, Virgílio, por não nos deixar esquecer. Alexandra Prado Coelho Lisboa, 14 de agosto de 2014 11 Doces da minha vida - FINAL.indd 11 16/09/2014 18:20:27 Doces da minha vida - FINAL.indd 12 16/09/2014 18:20:29 AÇÚCAR oucos se dão conta dos sofrimentos no Mundo para que este produto, que todos acham tão simples e tão doce, esteja disponível com tanta facilidade, Pe a tão baixo preço. Trata‑se de um artigo sobre o qual me encanta escrever. E desvendar algumas histórias a ele associado. É daqueles produtos com os quais a história tanto se preocupou e tantos registos lhe deu. Sabe‑se pouco sobre a nascença do açúcar. Está identificado como originário da Índia e manuscritos chineses referem a presença da cana‑de‑açúcar já no século VIII antes de Cristo. Também há notícias sobre a existência de cristais de açúcar no continente indiano, no século V antes de Cristo, que permitiam um melhor arma- zenamento e transporte. Parece que os chineses reivindicam a paternidade do açú- car. Segundo consta, foi ainda neste continente que se terá passado do caldo de cana‑de‑açúcar para os cristais de açúcar e, então, se desenvolve a sua preparação e divulgação nas rotas comerciais da época que já incluíam a navegação. No século V, terão sido monges budistas que da Índia passaram para a China o ensino da plan- tação e cultivo da cana‑de‑açúcar, e o imperador Li Shimin torna-se um interessado pelo açúcar. Segundo a História Natural, de Sukung, encontramos a seguinte transcri- ção: «O Impe rador Tai‑Hung enviou trabalhadores para que aprendessem a arte de fabrico do açúcar a Lyu (Índia) e sobretudo a Mo Ki To (Bengala)», no século VII.