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Governo de Minas Gerais, Fundação Municipal de Cultura e Le Petit apresentam: Mostra de cinema permanente décima sétima edição EDITORIAL Daniela Fernandes Violência SA Desde o início da década de 1980, Marilena Chauí já discorria: a sociedade brasileira é autoritária e violenta. “Não se trata, porém, de considerar os brasileiros como individualmente violentos. Trata-se de esclarecer as estruturas históricas que produzem uma vida social em que o espaço público e republicano é mingua- do, transferindo-se ao Estado o papel de sujeito da cidadania e reproduzindo-se, no cotidiano, relações de poder.” O autoritarismo e a violência serão escan- carados na tela do cinema na nossa 17ª Edição. Como não abordar, “exibir” um tema que é tão atemporal? A opressão, o medo e a inti- midação caminham lado a lado por décadas e décadas na nossa história. Partindo do tema “A Violência no Cinema Brasileiro”, apresen- taremos a nossa inquietação e impassividade diante de questões que envolvem desde a vio- lência à nossa ética. Através do olhar forte da nossa curadoria, serão apresentados 8 clássicos da filmografia brasileira e, cá pra nós, este ano a Mostra vai tirar seu fôlego. Nosso caderno de crítica apresenta um novo formato, mais encor- pado, demonstrando o olhar de 16 críticos que resenharam, de forma elétrica, sobre os filmes. O que falar dos próximos 4 meses de sessões e encontros? Que serão intensos e libertários. Nosso papel continuará sendo o de dialogar, questionar e trazer à tona questões históricas. Nossos filmes, nossa memória – assim como a ética – não podem ser esquecidos. Diretora Curta Circuito CURADORIA Andrea Ormond Abra a porta e deixe entrar: a violência no cinema brasileiro O cinema brasileiro é parte da alma nacional, tanto quanto a malandragem ou a jabuticaba. E existe nele um mundo sórdido, obscuro. Por mais que doa, é preciso admitir: o país do futu- ro tem exímia tradição em matéria de violência. Atos grandiosos – torturas, banhos de sangue –; atos pequeninos – escondidos debaixo do tapete. Para desafiar a lógica do bom mocismo nacional, a Mostra Curta Circuito de 2018 coloca o dedo na ferida. São oito filmes sobre a violência no cinema brasileiro. Nem sempre modo vazio. Abandonamos as escolhas mais pelas pornochanchadas dos anos 1960 e 1970 Falando sobre o cinema de ação no Brasil, debatidos, mas atualíssimos. conhecidas pelo grande público e preferimos –, desconstrói esse dogma. Celeste (Cláudia com tiros, correrias espetaculares e poucos Teremos serial killer (Ato de Violência, de elementos raros, inusitados. Afinal, cinema é Ohana), a cocota filhinha de papai, manipula recursos financeiros, surgeOs Treze Pontos, Eduardo Escorel); uma tentativa brasileira de um fenômeno artístico, embriagado de diversi- um idiota. É o confronto da força bruta com a realizado em Minas Gerais. Alonso Gonçalves cinema de ação (Os Treze Pontos, de Alonso dade, de estilos, intenções. força do sexo, cheio de tintas novelescas e car- dirige a trama e encarna o protagonista. Um Gonçalves); juventude transviada (A Lei do Cão, Eu Matei Lúcio Flávio debocha do realismo tões-postais do Rio de Janeiro. Tudo planejado autêntico sururu no roteiro, misturando loteria de Jece Valadão); a versão radiofônica dos jor- social. Dirigido por Antonio Calmon, ovelha des- por Paulo Sérgio Almeida, diretor que mais tarde esportiva – sim, houve uma época em que ela nais populares de notícias (O Outro Lado do Cri- garrada do Cinema Novo, o filme peitou os câno- se especializou na franquia dos filmes de Xuxa existiu – e informática. A estratégia acaba res- me, de Clery Cunha); a epopeia da ultraviolên- nes e deu uma resposta pop, autoral. Da mesma Menenghel. Beijo na Boca usa algumas histórias saltando o eterno flerte dos filmes de ação com cia (Eu Matei Lúcio Flávio, de Antonio Calmon); carne em que Hector Babenco criou Lúcio Flávio de crimes cometidos por casais homicidas. Boni- a tecnologia. Mesmo sem firulas digitais e sem a mulher como elemento devorador e senhora – O Passageiro da Agonia, um filme-denúncia, tos e, de longe, absolutamente normais. a estética de videogame que atualmente povoa de si (Beijo na Boca, de Paulo Sérgio Almeida); o Eu Matei Lúcio Flávio extraiu praticamente uma Essa tensão entre normalidade e patologia os blockbusters, Os Treze Pontos deixa agradável ódio em tempos de votação eleitoral (A Próxima história em quadrinhos, coleção de vinhetas explode em Ato de Violência. Como pano de surpresa para os espectadores. Vítima, de João Batista de Andrade); a canalhice memoráveis que muito anteciparam o cinismo fundo, vemos a análise sobre até que ponto o Em tempos idos, o rádio era elemento aglu- do crime organizado versus o poder gay (Repúbli- das décadas seguintes. Críticas apressadas não desejo de “constituir família” é uma tara impos- tinador da família brasileira. Assim como o ca dos Assassinos, de Miguel Faria Jr.). entendem as alucinações de Calmon. Mas foi ta pela sociedade. Baseado em fatos reais, Ato pinguim em cima da geladeira, o rádio ficava Como visto, o gênero da violência é amplo, ele o responsável por colocar na tela um homem de Violência aborda a história de Chico Pica- no meio da sala. Ao seu redor, crianças de cal- cabem diversos subitens. Além dos aspectos amarrado, martirizado, à imagem e semelhança dinho, aqui batizado de Antônio (Nuno Leal ças curtas, o pai fazendo contas, a mãe pondo visíveis – os hematomas e as certidões de óbi- de São Sebastião – figura típica na mitologia eró- Maia). Homem pacato, que assassina mulher, é os pratos na mesa. Como nem tudo são flores, to –, a violência também abriga outros tipos de tica, analisada por gente como Yukio Mishima. preso, cumpre a pena. Casa-se na prisão, sai em a tradição radiofônica viajou para a atmosfera perversidade. Pode aparecer em um sussurro, Está lá, no meio da saraivada de testosteronas. liberdade condicional, mas repete o crime com barra pesada dos crimes. Casou-se com os jor- durante o jantar da família, e ser tão poderosa Basta olhar. Sem preconceitos. Olhar. uma prostituta. O filme traz o véu da melanco- nais, que já batiam ponto no métier, e nasceram quanto uma facada na jugular. Curiosamente, violência costuma ser as - lia, com passeios sombrios pelas ruas da Boca filhos como Gil Gomes. Gil misturou rádio, Cada um dos filmes selecionados tem a mis- sociada ao universo masculino. Beijo na Boca, do Lixo, de São Paulo. novela e assassinatos. Em O Outro Lado do Cri- são de falar da violência sem engrandecê-la de produzido por Pedro Carlos Rovái – conhecido me, de Clery Cunha, narra causos pitorescos curta circuito 2018 com a voz histérica. Anos mais tarde, Clery e do em 1967, A Lei do Cão possui um tipo de vio- da como, por exemplo, os italianos fazem com Gomes trabalhariam juntos novamente, no lência que seria explorada na década seguinte. os gialli. No Brasil, ela fornece o combustível clássico programa de televisão “Aqui, Agora”. Espécie de redneck paranoia, com jovens trans- para o fenômeno cultural que criou um edifí- Televisão, por sinal, é o mote de A Próxima viados e brasileira filosofia de botequim. Uma cio cinematográfico de extrema originalidade. Vítima. João Batista de Andrade estava incen- pérola da filmografia nacional, que permaneceu Com os pés fincados na brutalização do cotidia- sado com O Homem Que Virou Suco, sobre esquecida por cinco décadas, agora resgatada no, temos uma pantera que cresce exponencial- migrantes nordestinos na megalópole. A Próxi- na programação da Mostra Curta Circuito. mente a todo minuto. Agora mesmo, enquanto ma Vítima aborda novas camadas de crueldade. 2018 é ano de eleições, que podem ser tran- o leitor vira as páginas. Perto do fim do regime militar, durante as elei- quilas ou de terrível fanatismo. A Próxima Víti- No relicário do tempo, os debates trazidos ções estaduais, o repórter de TV, David (Antô- ma já demonstrava que o mundo cruel existe, pelos oito filmes permanecem na ordem do dia. nio Fagundes), apaixona-se por uma garota de mesmo para aqueles que ficam maravilhados Desafiam o narcisismo do século XXI, tão auto- programa. Mergulha de cabeça na loucura de com a euforia cívica. Sobretudo em um país centrado e falsamente equilibrado em campa- amar a mulher de todos, condenada por todos. recordista de homicídios, líder em indicadores nhas higienistas, que não se sustentam diante Fagundes foi destemido o suficiente para rom- de desigualdade social e com fôlego muito cur- de um piparote mais forte. Por trás da euforia per com o rótulo de macho alfa em cena históri- to para o exercício democrático. Debater a vio- da felicidade, da miríade de selfies, das estreli- ca. Ao confrontar o suspeito de um crime, acaba lência tornou-se necessidade urgente. nhas em aplicativos, o mundo lá fora ruge, com recebendo a medida extrema. O rapaz urina Felizmente para nós, a Curta Circuito usa a boca aberta e os dentes afiados. A violência no rosto do repórter. Não há concessões, João o guarda-chuva das artes e seleciona uma, permanece como paradigma brasileiro, brotan- Batista não edulcora o ódio. em especial: o cinema. Nele repousam vários do não apenas dos problemas sociais ou econô- República dos Assassinos utiliza recurso canais de comunicação, como a fotografia, a micos, mas também da dessensibilização das importante em nossa trajetória cinematográfi- cenografia, a escrita do roteiro, as questões almas. Profunda, em quase todo ser humano. ca: a adaptação literária. O livro homônimo de econômicas da produção. Devemos observar o O cinema abre uma porta para esse enrosco. Aguinaldo Silva causou rebuliço ao contar a his- modo com que tudo isso é colocado na panela e A Curta Circuito, sempre embalada na missão tória dos “Homens de Ouro”, grupo de policiais remexido pela equipe de um filme. Sem a inten- de resgate histórico do cinema brasileiro, traz o que recebeu carta branca para combater o crime ção ingênua de dar soluções para um problema carnaval para a sala escura.