Sobre O Cinema Popular E Erótico
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JOSÉ INACIO DE MELO SOUZA ABRINDO AS PERNAS AO SOM DE MOZART E BARTÓK: OBSERVAÇÕES SOBRE O CINEMA POPULAR E ERÓTICO RESUMO Ensaio sobre o filme popular e a comédia erótica produzidas na Boca do Lixo de São Paulo e na “Boca” carioca durante os anos de 1969 a 1982. As balizas foram dadas pelos filmes Adultério à brasileira, de Pedro Carlos Rovai, e Coisas eróticas, de Raffaele Rossi, o primeiro filme pornográfico a vencer a barreira da Censura. PALAVRAS-CHAVES Filme Popular; Comédia Erótica; Chanchada; Pornochanchada; Exibição; Boca do Lixo ABSTRACT Essay on the popular film and erotic comedy produced at the Boca do Lixo and the "Boca" carioca between 1969 and 1982. The analisys were limited by the films Adultério à brasileira (1969), directed by Pedro Carlos Rovai, and Coisas eróticas (1982), by Raffaele Rossi, the first pornographic movie to overcome the barrier of censorship. KEY WORDS Popular film; Erotic comedy; Chanchada; Pornochanchada; Exibition; Boca do Lixo INTRODUZINDO O PROBLEMA: O BANHO DE CHUVEIRO O banho de Janet Leigh em Psicose (Psycho, 1960) de Alfred Hitchcock. Há sequência no cinema moderno mais analisada do que esta? Para um filme de 109 minutos, 45 segundos parecem um tempo desmesurado para a “cena do chuveiro”, termos com que a maioria dos comentários define este mínimo espaço dentro da narrativa. Para a sequência, Hitchcock usou três ou sete bíblicos dias dos 36 empregados nas filmagens, mostrando especial carinho pela meticulosidade dedicada ao momento de terror vivido pela protagonista. O argumento central é bem conhecido. Marion Crane (Janet Leigh), depois de dar um desfalque na firma em que trabalha, hospeda-se num motelzinho decadente de beira de estrada dirigido por Norman Bates (Anthony Perkins). Instalada no quarto, Marion decide tomar um banho antes de seguir viagem, depois de se arrepender do gesto criminoso (antes de tudo um banho simbólico, sem duvida, de limpeza da sujeira que tinha cometido). Ela partiria ao encontro do namorado, para os padrões da época mais do que isto, mas eles vão se casar, e o roubo, na origem, seria uma forma de dar um empurrão no rumo da união. O corpo de Marion sob o chuveiro é exibido ao espectador já todo cortado, em cerca de 50, 70 ou 77 cenas, dependendo do exegeta mais ou menos cuidadoso. Vemos pernas, tomadas do tronco acima dos seios, tomadas frontais e perfis nesta altura. Somente quando Norman a esfaqueia em tomadas frontais ou em contra- plongée é que um vislumbre distante do corpo total aparece/parece ao espectador/voyeur do crime, para o qual teria sido contratada uma stripper como dublê (Marli Renfro). Depois novamente o torso, pernas, o corpo molhado escorrendo pela parede da banheira, uma última tentativa falha de se segurar em alguma coisa antes do abismo da morte – a cortina de plástico –, cujos ganchos se rompem com o peso do corpo que cai, construído dois anos antes no filme com James Stewart, até que a imagem se fixa no olho aberto e sem vida, a câmara girando ao seu redor, como um corpo que cai. Vinte anos depois Brian de Palma retornou à “cena do chuveiro” em Vestida para matar (Dressed to kill). Uma prosaica dona de casa, Kate Miller (Angie Dickinson), mediocridade capaz de pensar em compras para o jantar ao ficar estatelada diante de uma tela no Metropolitan Museum (ou seus dublês: o Philadelphia Museum of Art ou uma tela qualquer inventada para a cena), vê-se subitamente atacada por um estranho ao tomar uma ducha. A câmera entra lentamente pela porta do banheiro, introduzindo, na passagem até o box envidraçado, o marido que se barbeia com uma navalha. Angie ou sua dublê, a playmate Victoria Johnson, passa o sabonete delicadamente nos seios em close, desce até os pelos pubianos, ainda em close, numa suave introdução à masturbação, que se fixa num rosto de gozo. Nesse momento que antecede ao prazer solitário, enquanto o marido continua se barbeando, ela é atacada por trás, por uma mão que lhe tapa a boca enquanto outro corpo de homem se cola ao seu, levantando-a do chão. Ela consegue afastar a mão, ensaiando um grito de socorro, que é cortado para a cena seguinte de amor com o marido na cama do casal. Vinte anos depois, o remake da cena do chuveiro hitchcockiniana é bem longa em relação à chuveirada anterior, perto de dois minutos, o número de cortes e bem menor, a música de Pino Donaggio acalenta um sonho que se transforma em cena de terror, ao contrário de Bernard Herrmann, destacando somente o momento crucial que precede a morte. Poderíamos perseguir o tema nas origens do cinema, em 1904, 1897 (Méliès) ou mais ainda, em 1895, com as películas Pathé Frères, Bain d’une mondaine (1895), Mondaine au bain ou Le bain des dames de la cour/Os Banhos das damas da corte, ambas de 1904. As duas primeiras desapareceram. De Mondaine au bain restou somente a imagem de uma mulher de costas para a câmera, vestida com uma malha para simular nudez, que a criada “molha” com cinza de forma a ser captada objetivamente pelo cinegrafista. O fiapo de conteúdo destacava: “uma bela mulher, num banheiro, tira sua roupa para entrar numa banheira. Uma criada se aproxima apara ajudá-la”. Da terceira fita temos uma vistosa exibição de seios e nádegas tomadas dentro do enquadramento distanciado e fixo, como era o padrão para o tipo de cinema em plano único, porém suficiente no seu minuto para excitar a imaginação dos espectadores do Moulin Rouge de Paschoal Segreto, que a apresentou dentro das sessões cariocas de “gênero alegre” em 1908. Este voo rápido sobre mais de cem anos de história do cinema serve-nos de introdução para um tema muito explorado por vários filmes populares dos anos 1970: o banho, nas mais diversas condições, das atrizes dos filmes brasileiros. Raramente homens são colocados nesta posição. Quando isto se dá, trata-se na maioria das vezes de um homossexual, Aurora Boreal (Carlos Leite) em Manicures a domicílio; um fraco, traído pela mulher, de situação financeira inferior a dos amigos como Paulão (Reginaldo Faria) em O Flagrante; um personagem dominado por um trio de mulheres como o Teodoro (Thales Pan Chacon) em Elite devassa, ou mesmo um caminhoneiro (Mário Benvenutti) que, no deprimente Gugu o bom de cama, aceita uma transa com um travesti (Rogéria), porque “no fundo é tudo a mesma coisa” (será?). No filme de Hitchcock o banho tem a função de tensionar a corda do terror, enquanto em de Palma o mesmo tensionamento, segundo David Bordwell, é carregado de um prolongamento maneirista, próprio do cinema pós-moderno. Nos filminhos de um minuto dos primeiros tempos estamos diante de casos típicos de um cinema de mostração em que o “cubo” cênico em que estão as atrizes serve a um voyeurismo, que hoje pode ser visto como inocente e despreocupado. Mas como interpretar a “cena do chuveiro” com Maria Lucia Dahl em O Bom marido, por exemplo? Estas encenações no cinema popular, que se expandem por tomadas de tempos variados em praias, piscinas, lagos, cachoeiras, e aqui os exemplos explodiriam na sua variedade (a sequência do lago do grupo de moças que formarão o bando das Cangaceiras eróticas; o banho de Selma Egrei em A carne; qualquer cena de praia que explore o traseiro das banhistas, etc) servem a alguma função dentro da narrativa ou são “tempos mortos” dentro dela? Na primeira sequência de banho em As Cangaceiras eróticas a alegre brincadeira aquática das oito moças, jogando água umas nas outras, não tem função alguma, ao contrário da segunda sequência no mesmo cenário utilizada para a atração dos cangaceiros do bando inimigo de Cornélio Sabiá (os mais indulgentes chamariam a primeira de cena preparatória da segunda, isto é, totalmente integrada na narrativa). No filme de Antonio Calmon, já sabemos que Malu Carvalho (Maria Lucia Dahl) está atrasada para a recepção do aguardado industrial alemão de urinóis, vindo ao Brasil para a formação de uma joint venture. Mesmo assim, Afrânio Carvalho (Paulo César Pereio) adentra ao banheiro para que possamos ver os seios de Malu. No caso de A Carne (direção de José Marreco), o banho de cachoeira de Lenita (Selma Egrei) corresponde a um trecho do livro em que ele se dá no lago, situando-se a nudez da protagonista no limite permitido para a época de Júlio Ribeiro: ela nada de camisão. A cachoeira no lugar do lago, e os seios nus de Selma Egrei sob a força da queda d’água, correspondem a um momento de voyeurismo concedido ao espectador para uma narrativa insossa e mal alinhavada, embora os roteiristas tenham sido Antonio Calmon, Antonio Bivar e Isabel Câmara, três nomes de respeito no campo teatral e cinematográfico. Ou seja, na alta ou baixa cultura do cinema popular a centralidade do corpo feminino carrega-se de uma força centrífuga que nos leva a considerar todos estes momentos de exposição como uma junção ao passado do cinema, àquele cinema dito primitivo. Esta nova perspectiva foi desenvolvida depois que vários estudiosos, alguns deles preparando ainda trabalhos acadêmicos nos anos 1970, como André Gaudreault, Tom Gunning, Charles Musser, entre outros, dedicaram-se à análise das fitas produzidas entre 1895 e 1908, lendo tais filmes de forma diversa da historiografia anterior, isto é, não como “precinema” ou “primitivos”, mas como películas em que as cenas e tomadas se apresentavam mais no ato de mostrar do que de narrar. Esta distinção é muito útil no caso do cinema popular realizado no Brasil na década de 1970, pois expande a nossa compreensão de filmes considerados apenas como machistas e voyeurísticos na exploração do corpo feminino para outras formas específicas de entendimento das narrativas como um “cinema de aprendizado” em que várias formas de narrar são possíveis, incluindo as mais antigas e, teoricamente, abandonas há várias décadas.1 As narrativas da década de 1970 ao se configurarem como uma mistura de estilos e de períodos históricos na construção das películas, forjaram algo intrínseco ao “baixo cinema” popular, cujos diretores em poucos casos conseguiram chegar ao status de artesãos, e mais raramente ainda ao de cineastas (produtores de artefatos considerados artísticos pelo meio cinematográfico ou o mercado de bens culturais), sumindo do panorama cinematográfico com a chegada do filme pornográfico no início da década seguinte.