<<

Intercom – Sociedade Brasileira de Estudos Interdisciplinares da Comunicação XXI Congresso de Ciências da Comunicação na Região Centro-Oeste – Goiânia - GO – 22 a 24/05/2019

O malandro no cinema brasileiro: A representação como mediação em Madame Satã1

Iago, PORFÍRIO2 Márcia Gomes, MARQUES3 Universidade Federal de Mato Grosso do Sul, Campo Grande – MS

Resumo

Este artigo apresenta uma reflexão quanto à representação da figura do malandro no cinema brasileiro, para compreender as representações do malandro em diferentes momentos do cinema. Nesse sentido, são selecionamos os filmes Rio, Zona Norte (1957), de Nelson Pereira dos Santos, Vai trabalhar, vagabundo (1973), de , e Ópera do malandro (1985), adaptação da obra homônima de Chico Buarque por Ruy Guerra, na base da análise e interpretação da representação mimética do malandro em Madame Satã (2002), de Karim Aïnouz. A representação é compreendida a partir de sua matriz cultural e constituição do personagem, e elevada a um nível interpretativo de mediação do seu contexto sócio-histórico construção do personagem a partir do malandro-tipo, no sentido weberiano.

Palavras-chave: Representação; Mimesis; Malandro; Cinema brasileiro; Madame Satã.

Introdução

Este artigo se debruça em compreender a representação da figura do malandro no cinema, tornando evidente o universo da malandragem enquanto processo de trocas simbólicas na constituição da personagem e o lugar histórico em que se constitui. Nesse sentido, a representação é entendida aqui como aspecto que propõe novos significados através da aproximação do real incorporado aos elementos miméticos, tensionando as instâncias ficcionais e possibilidades reais de existência. Dessa maneira, a representação mimética está na pêndulo das matrizes culturais e no processo de construção de sua personagem, o malandro-tipo, no

1 Trabalho apresentado na DT4 – Comunicação Audiovisual (GP Cinema) do XXI Congresso de Ciências da Comunicação na Região Centro-Oeste, realizado de 22 a 24 de maio de 2019. 2 Autor do artigo. Jornalista e mestrando em Comunicação pelos Programa de Pós-Graduação em Comunicação da Universidade Federal de Mato Grosso do Sul (PPGCOM/UFMS). A pesquisa tem apoio financeiro da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES). E-mail: [email protected]. 3 Orientadora do trabalho. Professora Dra. da UFMS. E-mail: [email protected]. 1 Intercom – Sociedade Brasileira de Estudos Interdisciplinares da Comunicação XXI Congresso de Ciências da Comunicação na Região Centro-Oeste – Goiânia - GO – 22 a 24/05/2019

sentido weberiano do tipo-ideal, que é “uma tentativa de apreender os indivíduos históricos ou seus diversos elementos em conceitos genéticos” (WEBER, 2006, p. 76). Ou seja, o malandro- tipo estaria condicionado a uma representação que demarcasse suas características histórico- sociais com relação à ginga, estratégias e táticas de sobrevivência inseridos na boêmia, nos jogos como saída para ganhar dinheiro fácil, na lábia ao aplicar o conto do vigário, o malandro lapeano (carioca) dos finais do século XIX. Nesses aspectos, para discutir essas questões, este artigo se estrutura por três caminhos de reflexão e interpretação. No primeiro deles, apresentamos alguns pressupostos teóricos quanto à representação e mimesis, para chegarmos ao fenômeno da representação mimética como mediação do malandro na sua compreensão de representante da nacionalidade, a partir do vórtice representativo entre seu contexto histórico e a constituição de sua personagem, com seus atributos, características e conjuntos de significados. No segundo momento, apresentamos abordagens da figura do malandro no cinema brasileiro, com destaque para o período da chanchada cinematográfica com foco para que representou o papel de malandro em filmes desse período. Nessa perspectiva, destacamos os filmes Rio, Zona Norte (1957), de Nelson Pereira dos Santos, Vai trabalhar, vagabundo (1973), de Hugo Carvana, e Ópera do malandro (1985), adaptação da obra homônima de Chico Buarque por Ruy Guerra, para pensar as diferentes formas de representação do malandro. Desse modo, o último ponto que pretendemos discutir reside em considerar o filme Madame Satã (2002), de Karim Aïnouz para identificar momentos de representação mimética na personagem Madame Satã (Lázaro Ramos).

No fio da representação mimética

A dimensão da vida social é guiada por padrões de comportamento constituídos e organizados por algumas instituições sociais. Nesse sentido, os meios de comunicação têm tido papel principal na configuração de interpretações e reconhecimentos daquilo que é consumido e compartilhado de conteúdos simbólicos – que direcionam a diferentes maneiras de representar a realidade. Quando se considera a representação como aspecto que propõe novos significados através da aproximação do real incorporado aos elementos miméticos, superpõem- se as instâncias ficcionais e possibilidades reais de existência, e o seu ponto convergente é a representação tensionada pela mimesis. Pensando as relações entre representação e mimesis, Luiz Costa Lima (1981) faz uma divisão dos dois polos. Para Lima (1981), o fenômeno da representação é um sistema de

2 Intercom – Sociedade Brasileira de Estudos Interdisciplinares da Comunicação XXI Congresso de Ciências da Comunicação na Região Centro-Oeste – Goiânia - GO – 22 a 24/05/2019

classificação, pois ocorre a partir de critérios classificatórios disponíveis, ou seja, os meios pelos quais são atribuídos significados a seres e objetos, tornando o mundo mais significativo e com mais elementos para leitura da realidade. Desse modo, as classificações – atualizadas através das representações e funcionando como espécie de grille, de acordo com o autor –, trazem uma orientação iminente sobre o mundo. Assim, os aspectos da representação concernem a maneira pela qual são organizadas as redes de classificações (grilles) e as molduras de convenções (frames), e dão forma ao modo como se processam as interações humanas. O processo de representação está no pêndulo da construção do simbólico e atribuição de um novo sentido a determinado objeto. Para Moscovici (2003), surge para tornar familiar algo não familiar. Os meios de comunicação de massa – aqueles produzidos em grandes escalas pelo capitalismo informacional a partir do século XX para atingir um número significativo de pessoas – está em permanente organização e construção da realidade social – e incluímos o cinema nessa perspectiva. Dessa maneira, o cinema opera como uma representação cujas imagens estão em constante movimento para criar o efeito de realidade. Esta concepção já era trabalhada na teoria realista do cinema na década de 1950 em André Bazin, que procurou discutir a conservação natural e essencial da realidade representada com os pressupostos do realismo cinematográfico, com base na franca representação da real. A observação é pertinente, pois trata-se da discussão de uma realidade em movimento que foi construída através de outras imagens elaboradas a partir da realidade propriamente dita. “A realidade da coisa transfere-se para a imagem (este é o modelo) e, na reprodução, dada a impassividade da câmera, esta imagem é oferecida livre de preconceitos” (XAVIER, 2005, p. 82), resultando em um objeto puro, que revela aquilo que pressupõe a sua essência4. A representação mimética fornece visões diferentes e complementares quanto à representação da representação. Precisamente, isto se estabelece com a não completude da equivalência da verossimilhança ao identificar uma aproximação e diferença entre a realidade representada e a maneira como ocorre a mise-en-scène. A encenação e personificação a partir das convenções cinematográficas de fatores que caracterizam o protótipo do malandro-tipo ideal.

4 Este aspecto é o polo da problemática do efeito de realidade na representação: a questão da ideologia. Em Cinema e ideologia, Jean-Patrck Lebel (1972) ressalta que nesse sentido o processo cinematográfico de acumulação de diferentes elementos que constituirão a significação de um filme (montagem, adaptação, roteiro, etc.), é uma produção ideológica. Nosso interesse, portanto, está nas implicações e capacidade de criar um universo ficcional que organize o real na perspectiva de produzir seu efeito de realidade, isto é, a representação mimética.

3 Intercom – Sociedade Brasileira de Estudos Interdisciplinares da Comunicação XXI Congresso de Ciências da Comunicação na Região Centro-Oeste – Goiânia - GO – 22 a 24/05/2019

Para Lima (2003), a mimesis, em sua concepção grega, é atrelada a uma relação entre linguagem e realidade como ação imitativa. Vista em si mesma, a mimesis não tem um referente como guia, é ao contrário uma produção, análoga à da natureza (o limite aristotélico da metáfora orgânica). Não sendo o homólogo de algum referente, tanto ao ser criada, quanto ao ser recebida, ela o em função de um estoque prévio de conhecimentos que orientam sua feitura e sua recepção [...]5” (LIMA, 2003, p. 70).

Enquanto a mimesis, segundo o autor, opera como a representação de representações, o que significa que, enquanto encenação representacional do sujeito, ela enuncia condições, a priori, de conhecer e questionar o que é representado, a identificação com a encenação das ações. A partir da experiência mimética, é possível reconhecer uma semelhança que pode não pertencer à essência daquilo que é representado. Nesse aspecto, de acordo com Lima (1981), o modo de atribuir significados aos outros se constitui por parâmetros de classificação que resulta em uma quebra de harmonia da representação, ou, na esteira do autor, em choques de representações. É interessante considerar que não procuramos questionar a dicotomia mentira versus verdade na busca por uma essência do malandro-tipo. Desse modo, compreendemos neste artigo a representação mimética como mediação entre os meios de comunicação e a realidade social em torno de determinado objeto. Representação não como imagem refletida, senão como proposta de visão e mediação das relações sociais, pois caminha para outras esferas da vida cotidiana. Nesta perspectiva, a representação mimética está no plano do personagem (malandro-tipo) e lugar (seu contexto). Para o primeiro, envolve a complexa relação de elementos históricos e sociais na constituição do personagem malandro, na dimensão proposta do Jesús Martín-Barbero (2010) quanto às matrizes culturais6. O lugar social de uma época representada em seu contexto, na esteira de Michel de Certeau (1994), como ancoragem para a encenação/representação mimética. Em direção comparativa com fins de compreender as representações do malandro no campo de diferentes momentos do cinema, é que selecionamos os filmes Rio, Zona Norte (1957), de Nelson Pereira dos Santos, Vai trabalhar, vagabundo (1973), de Hugo Carvana, e Ópera do malandro (1985), adaptação da obra homônima de Chico Buarque por Ruy Guerra,

5Grifos do autor. 6 MARTÍN-BARBERO, Jesus. De los medios a las mediaciones: comunicación, cultura y hegemonía. Rubi (Barcelona): Anthropos Editorial: México, Universidad Atónoma Metropolitana – Azcapotzalco, 2010. 4 Intercom – Sociedade Brasileira de Estudos Interdisciplinares da Comunicação XXI Congresso de Ciências da Comunicação na Região Centro-Oeste – Goiânia - GO – 22 a 24/05/2019

na base da análise e interpretação da representação mimética do malandro em Madame Satã (2002), de Karim Aïnouz.

Jogada de malandro: entre a sinuca e o samba

O rosto de Paulo José, representando a figura de uma mãe indígena toda despenteada em dores de parto e vestindo um roupão amarelo surrado, é colocado em cena após uma voz over iniciar a narrativa das primeiras imagens de Macunaíma (1969), de Joaquim Pedro de Andrade. Aos gritos ensurdecedores da mãe, Grande Otelo (1915-1993) vai caindo, aos berros, por entre as pernas tomadas de pelos. A mãe, em seguida, diz: “pronto, nasceu”. Nascia, assim, o “herói de nossa gente”, mas também o representante do malandro no cinema. Era a inserção do herói sem nenhum caráter na representação cinematográfica depois de quatro décadas de sua publicação, em 1928, como obra literária do Modernismo por Mário de Andrade – obra que foi inserida no imaginário social como representante de uma brasilidade. Macunaíma (1969) situa-se na terceira fase do Cinema Novo sintetizado aos movimentos do Cinema Marginal, Modernismo e também da Chanchada – nosso foco de abordagem neste trabalho. Preguiça, esperteza, egoísmo e sedução serão o jogo do herói mergulhado na modernidade tardia da década de 60, que representa as contradições de um Brasil que tentava consolidar um projeto moderno (que vinha desde da ditadura do Estado Novo) amplamente fracassado pelo regime totalitário da ditadura militar (1964-1984), que vilipendiou as liberdade, perseguiu, torturou a assassinou cruelmente seus opositores durante o período. Grande Otelo personifica Macunaíma, pois após sua atuação no filme de Joaquim Pedro de Andrade (1969), ficou difícil para os críticos dissociarem a sua imagem à do malandro literário7, ainda que apareça nos primeiros momentos do filme8. Macunaíma certamente merece

7 Em entrevista ao programa da TV Cultura (São Paulo) Roda Viva, em 1985, Grande Otelo revela ter vontade de pesquisar se Mário de Andrade fez alguma menção ou relação a ele em Macunaíma (1928), quando o ator contava com apenas 13 anos. Nesse época, já trabalhava como ator, desde os nove anos, quando foi contratado pela Companhia Negra de Revista, a primeira companhia para atores negros, e foi durante as apresentações dessa companhia que conheceu Mário de Andrade, segundo Robert Stam (2008). 8 Grande Otelo faz representa o Macunaíma nos primeiros momentos, pois logo o indígena negro vira branco ao ir para a cidade, sinônimo de uma preocupação para um Brasil que insistia (insiste) na democracia racial e no processo de branqueamento enquanto modelo, que “foi uma descoberta local, da mesma forma que é no Brasil que a raça se apresenta como uma situação passageira e volúvel, em que se pode empretecer ou embranquecer” (SCHWARCZ, 1998, p. 232). Sobre esta discussão, ver: SCHWARCZ, Lilia Moritz. Nem preto nem branco, muito pelo contrário: cor e raça na intimidade. In: História da vida privada no Brasil: contastes da intimidade contemporânea / coordenador-geral da coleção Fernando A. Novais; organizadora do volume Lilia Moritz Schwarcz. São Paulo: Companhia das Letras, 1998. 5 Intercom – Sociedade Brasileira de Estudos Interdisciplinares da Comunicação XXI Congresso de Ciências da Comunicação na Região Centro-Oeste – Goiânia - GO – 22 a 24/05/2019

uma discussão de fôlego quanto às questões concernentes ao malandro literário e fílmico, o que nos interessa aqui, no entanto, é a persona Grande Otelo na representação do malandro no cinema, especialmente no movimento da Chanchada cinematográfica. Conhecido como kitsch cinematográfico, a Chanchada formava seu elenco de personagens malandras e populares, com linguagem humorística e cômica para parodiar a realidade brasileira. Entre a oscilação de uma dialética da malandragem e uma estética da vida cotidiana improvisada a partir de situações dramáticas – traços marcantes que vão caracterizar o movimento. A Chanchada surge, segundo João Luiz Vieira (1987), como resposta a um cinema dominante (o modelo de Hollywood) que, ao imitá-lo termina por rir de si próprio, como, por exemplo, no filme de (1959), O homem do Sputnik, com Oscarito (Anastácio Fortuna), morador do meio rural que descobre um satélite russo que cai em seu quintal matando suas galinhas de estimação e passa a ser cortejado pelos americanos e russos, que demonstram desconhecer o Brasil, ou em Os Cosmonautas (1963), de Victor Lima, que ironiza a compulsão norte-americana e russa pelos estudos e corridas espaciais. Só para ficar como exemplo essas duas chanchadas, entre tantos outros exemplos, dentre os quais compõe o repertório de umas das companhias cinematográficas do movimento (ao lado da Vera Cruz e Cinédia), a Atlântida, que, fundada em 1941, produziu mais de 60 filmes. Se, como definiu Nelson Pereira dos Santos, a chanchada foi o cinema dos tipos populares das grandes cidades9, Grande Otelo, na consideração de Stam (2008), carregou o fardo da representação do negro no cinema, também constantemente personificou o malandro no cinema brasileiro, como em O caçula do barulho (1949), Ricardo Freda, e o Amei um bicheiro (1952), Jorge Ileli, Paulo Wanderley – com elementos característicos da identidade do malandro: o jogo como saída e o caçula que não trabalha e sempre se mete em confusão, respectivamente – assim como veremos em Vai trabalhar, vagabundo (1973), de Hugo Carnava, contrastivamente em Ópera do malandro, Ruy Guerra, onde o malandro Max Overseas é cafetino que vive de pequenos trambiques., ascendendo à pequena burguesia. Em Rio, Zona Norte (1957) está o realismo carioca na interlocução do malandro compositor de samba e trabalhador de biscates oprimido. Filme de Nelson Pereira dos Santos, que inaugurou “um cinema muito mais preocupado como instrumento de expressão e denúncia social do que os musicais e as comédias ligeiras” (VIEIRA, 1987, p. 117). Rio, Zona Norte, na compreensão do crítico, seria a semente do Cinema Novo que germinaria na década de 1960.

9 Revista Civilização Brasileira, 1965, p. 193. 6 Intercom – Sociedade Brasileira de Estudos Interdisciplinares da Comunicação XXI Congresso de Ciências da Comunicação na Região Centro-Oeste – Goiânia - GO – 22 a 24/05/2019

Os três filmes selecionados neste artigo retratam as ambivalências da figura do malandro, que ganha legitimidade com o samba, como visto em Rio, Zona Norte. Se por um lado o malandro tem a “preguiça como resistência cultural à dominação” (XAVIER, 2012, p. 259) e da ordem instituída, como em Macunaíma (1959) ou em O camelô da rua (1958), de Eurides Ramos e Hélio Barrozo Netto, com o malandro que, enquanto espera a herança familiar, vive a fugir dos policiais que tentam pegá-lo por vender amassador de batatas de forma ilegal e da dona da casa onde mora, para quem deve meses de aluguel atrasado, por outro lado há o malandro do jogo de pequenos golpes, como em Vai trabalhar, vagabundo (1973), De pernas pro ar (1957) com Grande Otelo representando um vendedor que, tal como o malandro Vicente de O camelô da rua larga, vive a enganar os policias fugindo destes por vender bonecas mecânicas, ou em Também somos irmãos (1949), quando Miro (Grande Otelo) descamba para o universo da malandragem ao ser impedido de optar por outro caminho pelo fator da discriminação. Em plongeé a avenida Presidente Vargas é enquadrada com pessoas circulando apressadamente, entre carros. Em seguida, uma imagem em contra-plongée mostra o relógio da torre da Estação Central do Brasil, que liga o subúrbio, Zona Norte, ao centro moderno com atmosfera de desenvolvimento. Um homem caído é retirado dos trilhos juntamente com seus papéis amassados. A câmera mostra Espírito da Luz Soares (Grande Otelo) desacordado. Em seguida, aparece a cena um coro de sambista no qual Espírito acompanha com o samba de sua autoria Mexi com ela, que será o grande fio narrativo do samba malandro no filme. Essas são as primeiras imagens de Rio, Zona Norte, que interpõe flashback da vida do sambista malandro Espírito com o desenvolver do seu socorro – que, ao chegar no hospital, é tido como pingente, ou senão indigente, pela polícia e médicos. Ainda que Espírito não seja dado à malandragem e aos pequenos golpes, é o malandro distópico que transforma o sofrimento em samba10, ou seja, ainda quando é representado como um indivíduo sufocado pela situação socioeconômica – não tem capital para emplacar seus sambas, sonha em fazer sucesso com os sambas para terminar de construir a casa na favela e ganhar a guarda do filho Norival – , aceita o sofrimento sem reclamar, como quando é enganado pelo malandro Maurício que o faz assinar um termo que retira sua autoria do samba Mexi com ela – mediante as dificuldades econômicas, assina a perda de seus direitos autorais, em troca de dinheiro.

10 Compreendemos a persona Espírito como um malandro distópico pelas tentativas de ascender socialmente pelo caminho da ordem, tal como Madame Satã, que vê na carreira artística uma mudança da vida opressora do malandro. Desse modo, “tento em mente que a utopia malandra inclui histórica e poeticamente este item fundamental – ascender economicamente (“abafar”) enquanto sambista para poder esquivar-se ao trabalho” (MATOS, 1982, p. 176), Espírito representa o fim desta utopia. 7 Intercom – Sociedade Brasileira de Estudos Interdisciplinares da Comunicação XXI Congresso de Ciências da Comunicação na Região Centro-Oeste – Goiânia - GO – 22 a 24/05/2019

Espírito representa os sonhos que caminham para um fim trágico: um pingente, sambista, morto nos trilhos da Central. Um malandro que busca reescrever sua história de sambista, ao tentar construir uma nova família com Adelaide, que passa a morar com ele levando seu bebê, ainda quando “a relação amorosa tem lugar fora do samba, e não dentro dele. Ela começa onde o samba termina, e termina onde o samba começa (MATOS, 1982, p. 179). Como observou Hirano (2013), “se nas chanchadas as personagens de Grande Otelo lograram êxito via golpes de sorte e malandragem, agora acontecia o inverso: mais do que mostrar o precipício de um sonho, Nelson Pereira dos Santos declara o fim iminente do “samba autêntico” (HIRANO, 2013, p. 322). Há um fator de classe e raça preponderante na tragédia de Espírito que, ainda que tenha talento, é impedido de ascender com seus sambas pela exclusão social, política e econômica. De toda forma, não deixava suas frustrações abaterem-lhe o ânimo e vontade de reescrever a história, mesmo depois da família desfeita (Adelaide vai embora, pois não enxerga no samba melhores condições de vida) e seu filho Norival é brutalmente assassinado, além de ter que entregar a casa onde mora. A partir dos flashback é possível aproximar das variações sociais e dos movimentos e práticas estabelecidas na representação das classes étnicas e sociais que permeiam a vida cotidiana de Espírito: Maurício diz não ter avisado sobre a gravação de seu samba por morar longe, no subúrbio; quando tem seu samba fechou o paletó aceito para ser gravado pela diva da samba-canção do rádio Ângela Maria, procura o amigo Moacyr para ajudá-lo com o arranjo e é recebido na roda de intelectuais brancos que discutem a estilização e características estéticas de seu samba. Espírito de Nelson Pereira dos Santos traz os principais temas das dificuldades de inserção social para um indivíduo marginalizado – tal como veremos em Madame Satã (2002) –, quando os fatores de classe e raça se sobrepõem em detrimento do talento artístico11. Nesse sentido, um filme significativo é a Tenda dos milagres (1977), de Nelson Pereira dos Santos, quando o personagem Pedro Arcanjo é um mulato da classe-media brasileira, intelectual e escritor, que ainda assim enfrenta preconceitos, ao contrário de Câncer (1969), de Glauber Rocha, que tem o personagem negro, desempregado e à procura de um emprego e, por essa razão, oscila entre a honestidade e a vida marginal.

11Como no personagem de Lima Barreto, Isaías Caminha, em Recordações do escrivão Isaías Caminha, jovem mulato e pobre, que parte do interior do Rio de Janeiro para capital com o sonho de tornar-se doutor, mas que por ser mulato e pobre, não passa de um repórter de marinheiro, sendo um personagem que representa a marginalização social brasileira. 8 Intercom – Sociedade Brasileira de Estudos Interdisciplinares da Comunicação XXI Congresso de Ciências da Comunicação na Região Centro-Oeste – Goiânia - GO – 22 a 24/05/2019

Do malandro sambista oprimido, que usa a caixa de fósforo para acompanhar seu samba, à representação do malandro-tipo, que tem a imagem identificada como boêmio, jogador do jeitinho brasileiro e avesso ao trabalho, ainda que sejam biscates como realizados por Espírito. Trata-se do malandro Sacundino Meireles (Hugo Carvana), ou somente Dino, em Vai trabalhar, vagabundo (1973), de Hugo Carvana – seu primeiro filme como diretor. Em pleno auge do regime militar, Hugo Carvana mapeia os costumes e cotidiano do Rio de Janeiro da década de 1970, com personagens protagonistas com características da malandragem, em conflito com a ordem instituída, procurando sobreviver às mudanças urbanas e os projetos de progresso ao lado do “milagre econômico”, procurando se reinventar quando suas casas do subúrbio vão desaparecer – vista com preocupação pelo dono da sinuca, ponto de encontro dos malandros, que vai apresentando as mudanças pelas quais a cidade passou no tempo em que Dino esteve preso, dizendo também que “muita gente boa” desapareceu, malandros bons na sinuca. Nessas redes de classificações (grilles) percebidas nas produções cinematográficas Carvana, é possível também observar os desdobramentos do cotidiano brasileiro em Se segura, malandro (1978), para além da figura representativa do malandro. Vai trabalhar, vagabundo inicia-se em preto e branco com Dino caminhando por um corredor escuro deixando a cadeia, acompanhado por uma voz que fala do otimismo e de sua “oportunidade de se reintegrar à comunidade”, após ter pago “sua dívida com a sociedade”, aconselhando-o que o trabalho é a saída, ao que ele parece dar pouca importância. A fala ilustra os dilemas brasileiros mostrados nas imagens a seguir, como o trem, os altos prédios sinônimos da modernidade e progresso, a cidade em obras, trabalhadores na rua, transeuntes a caminho do trabalho, fileiras de carros novos à venda. De volta à vida da malandragem, pequenos golpes, aplicando o conto-do-vigário, jogos e sinucas, Dino pede “meia hora de cerveja” em plena luz do dia, deixando clara a sua despreocupação com o tempo, diferente do tempo que rege as relações do trabalhador na sociedade capitalista. Representante das camadas sociais, oprimidas e excluídas, vítimas do progresso em curso, como quando visita os pais em um grande cortiço, onde é recebido com lágrimas de alegria e muita festa, momento em que sua mãe o aconselha a conseguir um emprego fixo, para “passar longe da sinuca, pois porta de sinuca é entrada de cadeia”. A tônica central do filme é em torno de um jogo de sinuca entre os campeões do pano verde: Babalu (Nelson Xavier) e Russo (Paulo César Peréio). O primeiro malandro está

9 Intercom – Sociedade Brasileira de Estudos Interdisciplinares da Comunicação XXI Congresso de Ciências da Comunicação na Região Centro-Oeste – Goiânia - GO – 22 a 24/05/2019

no processo de regeneração ordenado pela mulher com auxílio de sua religião, a Umbanda12. A regeneração do malandro Babalu se conclui em Vai trabalhar, vagabundo – a volta (1991), de Hugo Carvana, como trabalhador e pequeno-burguês – como veremos na representação do malandro Max Overseas, em Ópera do Malandro (1985). Para Matos (1982), essa atitude regenerada do malandro não é, no entanto, de postura moral e interior, mas sim provocada por um “medo da repressão, da cadeia que ele já conhece muito bem (MATOS, 1982, p. 111), como para não ter o mesmo destino do amigo Dino que não muda nunca, como atesta no filme de 1991. O malandro russo é encontrado em um hospício, onde a representação de louco está nos médicos e enfermeiros. Internado por alcoolismo, se diz estar curado, mas isso só acontece quando Dino o visita para propor um grande jogo de sinuca e lhe entrega cachaça caseira. Babalu, trabalhador oprimido e insatisfeito por “trabalhar feito um cão” em um botequim por “200 contos”, aceita a proposta do jogo feito pelo malandro Dino13. O filme chama a atenção para a identidade instável do malandro Dino, representado como um malandro valente, “quem tá no desvio, sabe que ajoelhou, tem que rezar”, assim como o malandro Miro (Grande Otelo), em Também somos irmãos (1949), que aceita assumir a culpa do crime cometido pelo irmão, de modo a ficar preso no lugar dele, pois sabe que a vida, de uma maneira ou outra, o levará de volta para a prisão/rua. O malandro se pauta, dessa maneira, pela estratégia de sobrevivência, a estratégia, segundo Certeau (1994) como um conjunto de saberes, ou espertezas e jeitinhos, que sustenta e determina “o poder de conquistar para si um lugar próprio” (CERTEAU, 1994, p. 100), ou seja, seu espaço social a partir de golpes com variadas definições. Nesse sentido, em Vai trabalhar, vagabundo (1973), a sinuca será um jogo ardiloso – em um jogo histórico, Babalu e Russo apostam Dona Vitória, sem ela saber, como um prêmio, o primeiro ganha e casa-se com Dona Vitória (Rose Lacreta), o segundo enlouquece por perder e afoga-se na cachaça –, uma maneira não criminosa de conseguir dinheiro de modo fácil, sem precisar ser um trabalhador oprimido como Espírito, que mesmo talentoso rende-se à opressão. Os malandros da sinuca usam o talento da lábia dissimulada nas práticas da malandragem, com golpes, aventuras e situações imprevistas, que rende-lhes boa fama e imagem, como quando Dino volta ao cortiço. O mesmo não acontece com o malandro Miro (Grande Otelo), Também

12 Cabe fazer uma observação quanto a presença da religião afro-brasileira nas representações do malandro, de maneira intensiva em Vai trabalhar, vagabundo e Madame Satã. 13 Podemos visualizar em Dino, Babalu e Russo a representação também dos malandros Malagueta, Perus e Bacanaço, os três famosos malandros jogadores de sinuca das noites paulistanas de João Antônio (1878), pois vivem em torno da penúria social e da vida de malandro com pequenos golpes, vendo no jogo uma estratégia de sobrevivência.

10 Intercom – Sociedade Brasileira de Estudos Interdisciplinares da Comunicação XXI Congresso de Ciências da Comunicação na Região Centro-Oeste – Goiânia - GO – 22 a 24/05/2019

somos irmãos, que é mal visto pela favela por estar na vida da malandragem, na oscilação das marés de sorte e azar, dos jogos de dinheiro fácil e vivendo às custas dos otários, como em Vai trabalhar, vagabundo. Por outro lado, o malandro também vive a ilusão de ascensão fulminante, ainda que seja para a vida de pequeno-burguês, uma ambição de ascensão social ambígua à sua caracterização do jeito malandro. O sonho de tornar-se burguês para “ganhar legitimidade social” ainda que precise se sujeitar a um “assalariado obediente” (MATOS, 1982). A adaptação de Ópera do malandro, peça musical de Chico Buarque (1978), para o cinema, ocorre em um momento significativo para o malandro que estamos a tratar neste artigo, em suas variadas formas de representação cinematográfica, pois, por um lado, está o auge da ditadura militar no Brasil, com repressão, perseguição e censura de produções intelectuais e, por outro, está a problematização de figuras que revelam as dicotomias da identidade e cultura brasileiras, ambientadas no Rio de Janeiro da década de 1940, final do Estado Novo (1947-1947), em uma dialética de malandros explorados para malandros exploradores, com destaque para a emergência da tensão das práticas do jeitinho brasileiro, que põe em relevo a legitimidade e exclusão das representações da figura do malandro, sempre apto a encenar, representar mimeticamente o que não é, no jogo de encenação, lançando mão de um conjunto de estratégias, táticas e habilidades para sobreviver, elementos expressivamente presentes em Ópera do malandro (1985). No filme de Ruy Guerra (1985), Max Overseas () é o típico malandro que ascende à pequena burguesia. Chefe de uma quadrilha de contrabando, é ardiloso, preocupado com a estética: sempre com o chapéu panamá, sapato bicolor e seu terno de ceda branco. No filme, acompanhamos a ascensão e queda do malandro. Com a reconstituição do contexto histórico – o fim da Segunda Guerra Mundial e fase final do Estado Novo –, o filme desenvolve-se na Lapa e retrata o fim de um malandro- tipo do final do século XIX para um malandro profissional, de terno, gravata e capital. Max Overseas vive a explorar os pequenos malandros, mantém ligações promíscuas com a polícia, como quando fará um discurso posicionando-se contrário ao apoio do Brasil à Alemanha nazista e é advertido por um grupo de adeptos ao nazismo, arma-se a confusão, todos são presos e o malandro esquerdista se livra da polícia, representante do Estado, da lei, como diz. O malandro traveste de nobre, faz trapaças, numa ciranda da malandragem que o leva a ser nada além que o barão da ralé. Jogador de sinuca que “não suja a navalha ou sai no tapa”, Max não tem sorte neste jogo, perdendo para o malandro rival Sátiro do Bilhar (Wilson

11 Intercom – Sociedade Brasileira de Estudos Interdisciplinares da Comunicação XXI Congresso de Ciências da Comunicação na Região Centro-Oeste – Goiânia - GO – 22 a 24/05/2019

Grey), que não aceita o “isqueiro importado” como prêmio por não dar samba, como a caixinha de fósforo. O malandro se encontra diante de uma ambiguidade tensionada entre a ordem e desordem, que tenta fugir da opressão do capitalismo e das formas de exclusão da sociedade, seja com seu talento musical ou sua aversão à ordem, com vistas de ascender socialmente.

Madame Satã: o malandro da navalha

“Eu trabalhava. Honestamente. Tinha conseguido um lugar de travesti sambista no teatro Casa de Sapê da Casa de Caboclo. Praça Tiradentes” (SATÃ, 1972, p. 1). Madame Satã inicia suas memórias contrapondo o malandro tradicional, aquele com aversão ao trabalho, que, embora fosse boêmio, estava “estava louco para ter uma profissão certa que me permitisse viver em paz comigo e com os outros. E o teatro era um caminho” (SATÃ, 1972, p. 1). Procurando construir uma carreira artística, assim como Espírito, de Rio, Zona Norte, com a diferença que Madame Satã se depara com o desafio da vida artística versus vida de malandro. Memórias de Madame Satã foi publicado em 1972, após a entrevista dada ao Pasquim. As narrativas memorialísticas do malandro foram escritas por Sylvan Paezzo, por ser Madame Satã analfabeto. Nos anos 70, há o seu ressurgimento na mídia, com entrevistas e publicação do livro que comporia o projeto biográfico que colocaria o “malandro na praça outra vez”14. Já vivendo na Ilha Grande, após ter abandonado a navalha e sua Lapa querida, seu retorno ocorre no auge da ditadura militar, na década de 1970.

A representação mimética do malandro envolve suas origens históricas, suas matrizes culturais, na perspectiva de Jesús Martín-Barbero (2010), e a construção de sua personagem enquanto representação. Discutindo a construção da personagem cinematográfica, Gomes (2011) considera que a personagem só ganha vida quando encarnada por um ator. Dessa maneira, não é preciso ter conhecido Madame Satã para ter entendimento de sua figura na cultura brasileira. Protagonizando o rei malandragem, o ator Lázaro Ramos nos apresenta mimeticamente camadas de leituras de sua personalidade multifacetada. A compreensão das matrizes culturais, nesse sentido, está em estabelecer movimentos interpretativos com o processo histórico da formação do malandro e sua apropriação de elementos culturais que vão configurar os paradoxos da identidade e singularidade da cultura brasileira, ainda que sua figura não seja uma novidade, pois suas

14 Referência à música A volta do malandro, de Chico Buarque. 12 Intercom – Sociedade Brasileira de Estudos Interdisciplinares da Comunicação XXI Congresso de Ciências da Comunicação na Região Centro-Oeste – Goiânia - GO – 22 a 24/05/2019

origens ocorrem no “século XIX, e servia para definir um sujeito que opera na linha fronteiriça entre o licito e o ilícito: trabalha o mínimo possível, vive do jogo, das mulheres, de pequenos expedientes e dos golpes que aplica nos otários” (SCHWARCZ ; STARLING, 2015, p. 383). Assim, a representação mimética inscrita na encenação (mise-en-scène) medeia o reconhecimento do malandro como representante da nacionalidade, a partir do pêndulo representativo entre seu contexto histórico e a constituição de sua personagem, com seus atributos, características e conjuntos de significação. O filme inicia-se com o rosto de Madame Satã (Lázaro Ramos) em close e visivelmente machucado, acompanhado de uma voz em off narrando o que supostamente seriam os frames do malandro – seus autos judiciais –, múltiplas molduras de representação que darão indícios a respeito da maneira como será representado, ou seja, um conjunto de classificações que demarcarão orientações sobre a vida marginal e artística do personagem multifacetado. Como para contrapor os dois mundos antagônicos, entre ordem e desordem, que vão demarcar as estratégias de sobrevivência no universo da malandragem, em seguida Madame Satã está mimetizando, por trás de uma cortina de contas, a cantora do Cabaré Lux, Vitória dos Anjos (Renata Sorrah), para quem trabalhava como camareiro há dois meses sem receber. Do mundo do sonho artístico para o submundo da malandragem, Madame Satã desce as escadas do Cabaré com seu chapéu panamá, mas com o rosto ainda em êxtase e o olhar distante ao som da música Nuits d’Alger, de Josephine Baker, por quem o malandro tinha forte admiração – "eu sou filho de Iansã e de Ogum, e de Josephine Baker sou devoto” –, assim como Grande Otelo, com quem chegou a atuar durante sua visita ao Brasil em 1939 (SATM, 2008). No bondinho, que percorre os Arcos da Lapa, o malandro continua com seu olhar sonhador, assim como Espírito no trem da Central, momentos antes de sua queda nos trilhos. Madame, põe em relação a vida utópica do malandro com a realidade de um trabalhador oprimido. A sua chegada ao Bar e Restaurante Danúbio Azul, é rodeada por pessoas jogando, prostituição, bebidas e rodas de samba. Nesse momento, são apresentados dois universos sobre os quais a vida de Madame Satã será retratada, onde serão geradas suas ações imanentes a tática do malandro. Madame realiza com frequência uma representação mimética, seja enquanto encena para o personagem Renato Noite cheia de estrelas, de Candido das Neves, ou quando representa em instâncias que se expressam em seus diferentes frames, como pai de família, pois cria a filha de Laurita, chegando a estabelecer uma espécie de ordem patriarcal na casa onde mora com Laurita (Marcélia Cartaxo), sua filha e Tabu (Flávio Bauraqui). 13 Intercom – Sociedade Brasileira de Estudos Interdisciplinares da Comunicação XXI Congresso de Ciências da Comunicação na Região Centro-Oeste – Goiânia - GO – 22 a 24/05/2019

A complexidade da personagem sugere uma identidade em fluxo, em permanente construção representada em um universo marginalizado que demanda de forças opostas e táticas para sobreviver às formas de opressão, como visto em Macunaíma (1969). Por outro lado, Madame Satã incorpora a lógica que o impõe na fronteira entre o lícito e ilícito. Após ser pego por Vitória encenando mimeticamente seu espetáculo e usando suas fantasias, é humilhado e discriminado. A cena é observada a partir da porta do camarim que está aberta. Quando fecha- se, ouvimos os gritos de Vitória e vemos Madame quebrando furiosamente todo o camarim. A partir deste momento é estabelecida uma oposição entre a vida de malandro e as tentativas de ascender a carreira artística honestamente, ainda quando chega na conclusão que nasceu “para ter vida de malandro” e vai “levar rasgada”. Para legitimar suas ações ardilosas, como o golpe do suadouro, que realiza com a ajuda de Tabu, está a encenar, representar mimeticamente. Isto ocorre em Vai trabalhar, vagabundo (1973) com malandro Dino encenando a figura de padre, por exemplo, para aplicar seus pequenos golpes de sobrevivência, ou em Vai trabalhar, vagabundo – a volta (1991) quando forja sua própria morte para recomeçar a vida de malandro. Também observamos em Ópera do malandro (1985), com a mimetização de Max Overseas representando um capitão para conquistar Teresinha Fernandes Duran (Cláudia Ohana), filha de seu rival Otto Struedel (Fábio Sabag) – como forma de estratégia da malandragem.

Considerações

A reflexão proposta neste artigo não pode ser esgotada por enveredar uma discussão que, precisamente, demanda fôlego de análise dos procedimentos e perspectivas que abrem os estudos quanto à representação e a figura do malandro. Os fatores que consideramos preponderantes para as tentativas frustradas de seguir uma vida artística e honesta, com Espírito e Madame Satã, ainda que em um nível de resistência a toda opressão imposta, implicam no fato de serem negros, pobres e marginais em uma sociedade desigual.

“A culpada sempre foi a ignorância. A ignorância botou a fome na barriga de muito vagabundo. E como os vagabundos eram ignorantes e analfabetos só sabiam arranjar comida matando ou roubando. Se tivessem instrução não iam ser vagabundos porque teriam oportunidades [...]” (SATÃ, 1972, p. 179).

14 Intercom – Sociedade Brasileira de Estudos Interdisciplinares da Comunicação XXI Congresso de Ciências da Comunicação na Região Centro-Oeste – Goiânia - GO – 22 a 24/05/2019

Referências bibliográficas

CERTEAU, Michel de. Fazer com: usos e táticas. In: A invenção do cotidiano: 1.artes de fazer, tradução Ephraim Ferreira Alves. Petrópolis, RJ: Vozes, 1994.

GOMES, Paulo Emílio Salles. A personagem cinematográfica. In: A personagem da ficção. CANDIDO, Antônio (et all). São Paulo Perspectiva, 2011.

HIRANO, Luis Felipe Kojima. Uma interpretação do cinema brasileiro através de Grande Otelo: raça, corpo e gênero em sua performance cinematográfica (1917-1993). Tese. Universidade de São Paulo, Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social. São Paulo, 2013.

LIMA, Luiz Costa. Mímesis e modernidade: formas e sombras. São Paulo: Paz e Terra, 2003.

LIMA, Luiz Costa. Representação social e mímesis. In: Dispersa demanda. Rio de Janeiro, Francisco Alves, 1981.

MATOS, Cláudia Neiva de. Acertei no milhar: malandragem e samba no tempo de Getúlio. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1982.

MOSCOVICI, Serge. Representações Sociais: investigações em psicologias sociais. Editado em inglês por Gerard Duveen; traduzido do inglês por Pedrinho A. Guareschi. Petrópolis, RJ: Editora Vozes, 2010.

SATÃ, Madame. Memórias de Madame Satã. Rio de Janeiro: Lidador, 1972.

SCHWARCZ, Lilia Moritz; STARLING, Heloisa Murgel Brasil: uma biografia. São Paulo: Companhia das Letras, 2015

STAM, Robert. Multiculturalismo Tropical: Uma história comparativa da raça na cultura e no cinema brasileiros. Tradução de Fernando S. Vugman. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 2008.

VIEIRA, João Luiz. A chanchada e o cinema carioca. In: História do Cinema Brasileiro. RAMOS, Fernão; et all. São Paulo: Art Editora, 1987.

XAVIER, Ismail. O discurso cinematográfico: a opacidade e a transparência, 3ª edição – São Paulo, Paz e Terra, 2005.

XAVIER, Ismail Alegorias do subdesenvolvimento: cinema novo, tropicalismo e cinema marginal. São Paulo: Cosac Naify, 2012

15