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UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS INSTITUTO DE ARTES

GABRIEL HENRIQUE DE PAULA CARNEIRO

NOITES PAULISTANAS: O CINEMA PAULISTA DA GERAÇÃO 1980

CAMPINAS 2016

GABRIEL HENRIQUE DE PAULA CARNEIRO

NOITES PAULISTANAS: O CINEMA PAULISTA DA GERAÇÃO 1980

Dissertação de Mestrado apresentada ao Instituto de Artes da Universidade Estadual de Campinas como parte dos requisitos exigidos para a obtenção do título de Mestre em Multimeios.

ORIENTADOR: PEDRO MACIEL GUIMARÃES JUNIOR

ESTE EXEMPLAR CORRESPONDE À VERSÃO FINAL DA DISSERTAÇÃO DEFENDIDA PELO ALUNO GABRIEL HENRIQUE DE PAULA CARNEIRO, E ORIENTADA PELO PROF. DR. PEDRO MACIEL GUIMARÃES JUNIOR.

CAMPINAS 2016

Agência(s) de fomento e nº(s) de processo(s): CAPES

Ficha catalográfica Universidade Estadual de Campinas Biblioteca do Instituto de Artes Silvia Regina Shiroma - CRB 8/8180

Carneiro, Gabriel Henrique de Paula, 1988- C215n CarNoites paulistanas : o cinema paulista da geração 1980 / Gabriel Henrique de Paula Carneiro. – Campinas, SP : [s.n.], 2016.

CarOrientador: Pedro Maciel Guimarães Junior. CarDissertação (mestrado) – Universidade Estadual de Campinas, Instituto de Artes.

Car1. Cinema - Brasil. 2. Cinema - São Paulo (Estado) - História. 3. Cinema - História - 1980-1990. I. Guimarães Junior, Pedro Maciel,1975-. II. Universidade Estadual de Campinas. Instituto de Artes. III. Título.

Informações para Biblioteca Digital

Título em outro idioma: São Paulo's nights : São Paulo's cinema of 1980's generation Palavras-chave em inglês: Motion pictures - Motion pictures - São Paulo (State) - History Motion pictures - History - 1980-1990 Área de concentração: Multimeios Titulação: Mestre em Multimeios Banca examinadora: Pedro Maciel Guimarães Junior [Orientador] Alfredo Luiz Paes de Oliveira Suppia Renato Luiz Pucci Junior Data de defesa: 22-08-2016 Programa de Pós-Graduação: Multimeios

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AGRADECIMENTOS

A Nuno Cesar Abreu, por acolher a proposta de pesquisa e me guiar num primeiro momento, e a Pedro Maciel Guimarães, por assumir a orientação em momento tão delicado, dando uma nova leitura ao trabalho;

A Renato Luiz Pucci Jr., pela leitura atenta e comentada na defesa; a Alfredo Suppia, pelas observações tanto na qualificação, quanto na defesa; e a Március Freire, pela avaliação na qualificação;

A Mônica Campo, pelos conselhos;

A Pedro Ribaneto, pela parceria e pela filmagem;

Aos meus pais, Neuza e José Roberto, pelo apoio e incentivo;

A CAPES, pelo financiamento da pesquisa; Aos professores, funcionários e colegas do PPG Multimeios; Aos entrevistados, André Klotzel, Augusto Sevá, Cláudio Kahns, Emanoel Rodrigues, Guilherme de Almeida Prado, Hermano Penna, Ícaro Martins, Jair Correia, Márcio Kogan, Roberto Gervitz, Rubens Xavier, Sérgio Toledo, Suzana Amaral, Tony de Sousa e Ugo Giorgetti; a Reinaldo Volpato e a Rodrigo Pereira, pela colaboração, e a Rubens Rewald, pelo acesso ao acervo da Apaci; A todos que colaboram direta ou indiretamente para esta pesquisa;

A Camila Fink, por tudo.

RESUMO

Com a luta da Associação Paulista de Cineastas (Apaci) por maior representação entre os financiados pela Embrafilme e com o declínio do sistema da Boca do Lixo, o cinema paulista se renovou, a partir de uma geração de cineastas independentes que fizeram seus primeiros longas-metragens de ficção nos anos 1980. Era uma geração cinéfila, majoritariamente formada na área pela universidade, que prosperou com a abertura política e com as novas tecnologias que chegavam ao Brasil. O presente trabalho pretende ser um panorama histórico sobre essa geração, abordando os cineastas e seus filmes, os modelos de produção, as políticas cinematográficas e os contextos histórico e mercadológico, entre outros. Sem caráter ou pretensão de movimento, o cinema da geração é diversificado e aponta para diferentes vertentes e propostas estéticas. Bastante premiado, esse cinema não teve continuidade, abortado pelo governo Collor, junto com toda produção nacional, e hoje permanece como um período de transição para o que veio depois, a Retomada.

Palavras-chave: cinema brasileiro; cinema paulista; história do cinema; década de 1980

ABSTRACT

With the struggle of Associação Paulista de Cineastas (APACI) for greater representation among Embrafilme and with the decline of the Boca do Lixo system, São Paulo’s cinema was renewed by a generation of independent filmmakers who made their first feature-length fiction films in the 1980s. It was a cinephile generation, mainly formed by the university, that flourished with the political opening and the new technologies that arrived in Brazil. This paper aims to be a historical overview of this generation, addressing the filmmakers and their films, models of production, the film policy, historical and market contexts, among others. The cinema of this generation is diverse and points to different approaches and aesthetic proposals. Quite awarded, this cinema was aborted by the Collor government, along with all national production, and today remains as a transitional period to which came after, the Retomada.

Key words: Brazilian cinema; São Paulo’s cinema; film history/ 1980s

LISTA DE ILUSTRAÇÕES

Figura 0 – Cinema Paulista Já!...... 19 Figura 1 – Cena de Eva, de Duas Estranhas Mulheres (1981)...... 37 Figura 2 – Cena de Shock (1984)...... 45 Figura 3 – Cena de Shock (1984)...... 45 Figura 4 – Cena de Flor do Desejo (1984)...... 55 Figura 5 – Cena de Flor do Desejo (1984)...... 55 Figura 6 – Cena de Flor do Desejo (1984)...... 55 Figura 7 – Cena de O Olho Mágico do Amor (1981)...... 63 Figura 8 – Cena de O Olho Mágico do Amor (1981)...... 63 Figura 9 – Cena de O Olho Mágico do Amor (1981)...... 63 Figura 10 – Cena de Estrela Nua (1985)...... 69 Figura 11 – Cena de Estrela Nua (1985)...... 69 Figura 12 – Cena de Estrela Nua (1985)...... 69 Figura 13 - Cena de A Marvada Carne (1985)...... 111 Figura 14 - Cena de A Marvada Carne (1985)...... 111 Figura 15 - Cena de A Marvada Carne (1985)...... 112 Figura 16 - Cena de A Marvada Carne (1985)...... 112 Figura 17 - Cena de Feliz Ano Velho (1988)...... 131 Figura 18 - Cena de Feliz Ano Velho (1988)...... 131 Figura 19 - Cena de Feliz Ano Velho (1988)...... 131 Figura 20 - Cena de Feliz Ano Velho (1988)...... 131 Figura 21 - Cena de Anjos da Noite (1987)...... 135 Figura 22 - Cena de Anjos da Noite (1987)...... 135 Figura 23 - Cena de Anjos da Noite (1987)...... 135 Figura 24 - Cena de Asa Branca, um sonho brasileiro (1981)...... 144 Figura 25 - Cena de Asa Branca, um sonho brasileiro (1981)...... 144 Figura 26 - Cena de Brasa Adormecida (1986)...... 147 Figura 27 - Cena de Brasa Adormecida (1986)...... 147 Figura 28 - Cena de Brasa Adormecida (1986)...... 148 Figura 29 - Cena de Brasa Adormecida (1986)...... 148 Figura 30 - Cena de Cidade Oculta (1986)...... 151 Figura 31 - Cena de Cidade Oculta (1986)...... 151

Figura 32 - Cena de Cidade Oculta (1986)...... 151 Figura 33 - Cena de Cidade Oculta (1986)...... 151 Figura 34 - Cena de Cidade Oculta (1986)...... 155 Figura 35 - Cena de Cidade Oculta (1986)...... 155 Figura 36 - Cena de Cidade Oculta (1986)...... 155 Figura 37 - Cena de Anjos da Noite (1987)...... 172 Figura 38 - Cena de Anjos da Noite (1987)...... 172 Figura 39 - Cena de Anjos da Noite (1987)...... 172 Figura 40 - Cena de Anjos da Noite (1987)...... 172 Figura 41 - Cena de Anjos da Noite (1987)...... 173 Figura 42 - Cena de Anjos da Noite (1987)...... 173 Figura 43 - Cena de Fogo e Paixão (1988)...... 186 Figura 44 - Cena de Fogo e Paixão (1988)...... 186 Figura 45 - Cena de Beijo 2348/72 (1990)...... 191 Figura 46 - Cena de Beijo 2348/72 (1990)...... 191 Figura 47 - Cena de Beijo 2348/72 (1990)...... 191 Figura 48 - Cena de Beijo 2348/72 (1990)...... 193 Figura 49 - Cena de Beijo 2348/72 (1990)...... 193 Figura 50 - Cena de Maldita Coincidência (1980)...... 213 Figura 51 - Cena de Maldita Coincidência (1980)...... 213 Figura 52 - Cena de Maldita Coincidência (1980)...... 214 Figura 53 - Cena de Romance (1988)...... 220 Figura 54 - Cena de Romance (1988)...... 220 Figura 55 - Cena de Sargento Getúlio (1980)...... 228 Figura 56 - Cena de Sargento Getúlio (1980)...... 228 Figura 57 - Cena de Sargento Getúlio (1980)...... 228 Figura 58 - Cena de Sargento Getúlio (1980)...... 228 Figura 59 - Cena de Sargento Getúlio (1980)...... 228 Figura 60 - Cena de Noites Paraguayas (1982)...... 235 Figura 61 - Cena de Noites Paraguayas (1982)...... 235 Figura 62 - Cena de Noites Paraguayas (1982)...... 235 Figura 63 - Cena de Noites Paraguayas (1982)...... 235 Figura 64 - Cena de Noites Paraguayas (1982)...... 235 Figura 65 - Cena de Noites Paraguayas (1982)...... 235

SUMÁRIO

1 INTRODUÇÃO...... 12 1.1 Precisões metodológicas: um cinema paulista dos anos 1980...... 16

2 JOVEM BOCA PAULISTA...... 20 2.1 Os novos boqueiros...... 23 2.2 Com um pé fora da Boca...... 32 2.2.1 Jair Correia...... 33 2.2.2 Guilherme de Almeida Prado...... 46 2.2.3 Ícaro Martins & José Antônio Garcia...... 57

3 POLO DA VILA MADALENA...... 72 3.1 Gira Filmes...... 76 3.2 Barca Filmes...... 90 3.3 Tatu Filmes...... 96 3.4 Superfilmes...... 115

4 UM CINEMA POPULAR...... 120 4.1 Uma busca por um cinema popular brasileiro...... 122 4.2 Cinema de gênero...... 132 4.3 São Paulo, sinfonia da metrópole...... 137 4.4 Os diretores e seus filmes...... 140 4.4.1 Djalma Limongi Batista...... 140 4.4.2 Chico Botelho...... 149 4.4.3 Sérgio Toledo e Roberto Gervitz...... 156 4.4.3.1 Vera...... 158 4.4.3.2 Feliz Ano Velho...... 165 4.4.4 Wilson Barros...... 170 4.4.5 Guilherme de Almeida Prado...... 176 4.4.6 Isay Weinfeld e Marcio Kogan...... 182 4.4.7 Walter Rogério...... 189 4.4.8 Augusto Sevá...... 194

5 UM CINEMA POLÍTICO...... 200 5.1 Pensando política no Brasil nos anos 1980...... 201 5.2 As discussões políticas da geração paulista de 1980...... 205 5.3 Os diretores e seus filmes...... 211 5.3.1 Sérgio Bianchi...... 211 5.3.2 Hermano Penna...... 222 5.3.3 Aloysio Raulino...... 232 5.3.4 Suzana Amaral...... 238 5.3.5 Ugo Giorgetti...... 244

6 POLÍTICAS CINEMATOGRÁFICAS...... 252 6.1 Apaci...... 253 6.2 Polo cinematográfico de São Paulo...... 259 6.3 Embrafilme: gestões Celso Amorim e Roberto Parreira...... 262 6.4 Nova República...... 264 6.4.1 Propostas para uma Política Nacional do Cinema...... 265 6.4.2 Crise econômica...... 268 6.5 Fim dos tempos...... 271 6.5.1 Campanha da Folha de S.Paulo contra a Embrafilme...... 272 6.5.2 Gestão no MinC...... 281 6.5.3 A classe não quer mais a Embrafilme...... 285 6.5.4 Uma penada...... 288 6.5.5 Recortes sobre o fim da Embrafilme: cineastas paulistas...... 292 6.6 O cinema paulista tenta se reerguer...... 295

7 CONSIDERAÇÕES FINAIS: apontamentos para um futuro passado...... 297 7.1 A técnica na estética...... 297 7.2 O cinema do ‘eu’...... 300

BIBLIOGRAFIA...... 303 APÊNDICE A: Filmografia comentada...... 315 APÊNDICE B: Filmografia citada...... 337 APÊNDICE C: Entrevistas realizadas...... 355

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1 INTRODUÇÃO

Jovem Cinema Paulista dos anos 1980. Novo Cinema Paulista dos anos 1980. Cinema da Vila Madalena. Estes são alguns dos nomes que se deu, com mais ou menos abrangência, à geração que fez seus primeiros longas-metragens de ficção entre 1980 e 1990 em São Paulo. Nenhum deles, porém, parece dar conta do que ocorreu no cinema de São Paulo da década de 1980. Cinema da Vila Madalena engloba os filmes feitos em uma região, que, de maneira geral, é o grosso dessa produção, mas não uma totalidade. ‘Jovem’ e ‘novo’ são termos que tentam dar conta de uma renovação no campo, da mudança de sistema predominante, como se o cinema paulista ressurgisse. Nesse sentido, denota-se um juízo de valor, em especial porque o ‘novo’ e o ‘jovem’, dentro da perspectiva do cinema autoral e do pensamento moderno, é sempre visto como algo melhor (vide os termos /Brasil, Novo Cinema/Portugal, Nova Hollywood/EUA, Nouvelle Vague/França, Japão, Índia, Tchecoslováquia, etc.). Além disso, presume-se também uma ruptura estética ou de modelo de produção proposital, um movimento. O ‘jovem’ ainda poderia se aplicar à idade dos diretores, mas muitos deles chegavam aos 40 anos. Evidentemente, o cinema paulista da geração 1980 trouxe avanços no modelo de produção (seja se aproveitando de um sistema fechado, como a Boca, para criar produtos nada dogmáticos; seja na formação de coletivos e cooperativas de produção para filmes baratos), e na estética (o amálgama de representações de variadas escolas do cinema mundial, bem como o aproveitamento de outras artes na vinculação criativa), entre outros. Isso, porém, não significa que o cinema em questão tenha criado parâmetros, mesmo porque, com a derrocada da Embrafilme e o hiato até a Retomada, pouco dele restou na produção nacional para além dos remanescentes.

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Desde os anos 1980, o cinema paulista dessa década foi rotulado e enquadrado. Tentativas de entendê-lo, na época, incluem desde artigos em livros até críticas em jornais. A imagem criada por esses primeiros textos permeia até hoje o imaginário sobre essa geração do cinema paulista, mesmo que desconstruções tenham sido feitas a posteriori.

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Em artigo na Folha de S.Paulo sobre o lançamento em vídeo de Anjos da Noite (1987), de Wilson Barros, em 1988, Fernão Ramos o qualificou como “um filme característico” da geração 1980 do cinema paulista. Explica ele: O receituário não varia muito: Escola de Comunicações e Artes da USP, Vila Madalena, passagens esporádicas pela ‘boca’, três ou quatro curtas e um longa- metragem de estreia batalhado com muito esforço. Longe no horizonte (e visto com má vontade) surge o Cinema Novo e o órgão estatal, a Embrafilme, que seus expoentes, direta ou indiretamente, administram até hoje. Se comparados entre si, os filmes desta geração também formam uma unidade relativamente coesa com alguns traços estéticos em comum. A imagem, quase sempre urbana, é acentuada em sua artificialidade com uma fotografia bem marcada de cores fortes e contrastadas. Ambientes predominantemente noturnos e decadentes propiciam a exploração intensa desta imagem a anos-luz da foto ‘estourada’ que nos anos 60 surgia como significativa da realidade nacional (no caso, nordestina). A esta imagem de fantasia corresponde um universo ficcional pouco realista que já foi definido com precisão como sendo uma ‘ficção de mentirinha’. Ou seja, uma ficção de ficção, narrativa em segundo grau daquilo que já é por si mesmo, de maneira transparente, uma história. O jogo especular da citação da citação – numa época em que a narrativa ficcional de primeira mão parece ter pouco fôlego – surge como saída que passa ao largo dos exaltados discursos de uma modernidade que marcou durante muito tempo o cinema brasileiro. A relação com o filme de gênero também é um elemento característicos destes filmes.1

O texto de Ramos aponta características estruturais (ECA, Vila Madalena, financiamento etc.) e formais (artificialidade, gênero etc.) que balizam as análises até hoje, inclusive as deste trabalho. Tais particularidades já haviam sido apontadas por Jean- Claude Bernardet em seu artigo Os Jovens Paulistas, publicado em 1985, em que examina os filmes produzidos pelos cineastas paulistas nos dez anos anteriores. Diz ele: Pedra de toque do Cinema Novo, um dos pilares da filosofia de , o conceito de autor deixou de ser o fator de criação que fora nos anos 50 e 60; não desapareceu, mas está em dormência. Em contrapartida, o cinema – e não só – conhece hoje o que alguns críticos chamam de ‘volta à ficção’: em oposição à desconstrução, desmontagem, desdramatização, fragmentação, tendências ensaísticas e conceituais dos anos 60, o prazer de narrar e o de acompanhar o desenrolar de uma narrativa ganham nova força. Os roteiros de Asa Branca e A marvada carne revelam um gosto pela ‘boa’ construção de situações, por um enredo que se vai desenvolvendo em seqüências concatenadas, personagens desenhados claramente e que perseguem objetivos definidos.2

Bernardet opõe a nova geração à tradição do cinema brasileiro moderno autoral e evidencia a importância do roteiro nos filmes. O crítico também discorre sobre o artificialismo, ou, como diz, ‘falso naturalismo’3, e a metalinguagem.

1 Fernão RAMOS. “Anjos da Noite” procuram a redenção. 2 Jean-Claude BERNARDET. Os Jovens Paulistas, p. 78-9. 3 “O ‘falso’ não provém da inserção de figuras fantásticas no meio de uma narrativa ‘real’. (...) Esse tom provém, ao contrário, dos próprios elementos que indicam o real: ambientes naturais, ou que passam por tais, verossimilhança detalhada, (...) da cenografia, objetos de cena, figurinos, (...) [o] necessário para fazer

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A preferência por temas urbanos, muitas vezes com visual estilizado, e a associação com gêneros de tradição hollywoodiana e populares, rendeu também a pecha de filmes internacionalistas, interessados no mercado externo e despreocupados com a questão nacional, ideologia que pautou os anos 1960 e 1970. O mote era outro, porém: em tempos de abertura política, querer-se-ia comunicar com o planeta inteiro4. Desde os primeiros textos, três trabalhos de fôlego foram realizados pensando aspectos dessa geração: a tese de doutorado de Chico Botelho, Técnica e estética na imagem do novo cinema de São Paulo, defendida em 1991, abordando a fotografia no cinema paulista de 1985 a 1990; o livro A Imagem Fria: Cinema e Crise do Sujeito no Brasil dos anos 80 (2003), do psicanalista Tales Ab’Saber, fruto de sua dissertação de mestrado de 1995, em que faz uma análise sobre a relação do contexto histórico com oito filmes5; e o livro Cinema Brasileiro Pós-Moderno – O Neon-Realismo (2008), de Renato Luiz Pucci Jr., a partir de seu doutorado de 2003, em que aplica o conceito de pós- modernismo e neon-realismo à trilogia paulistana da noite6. A questão é que tais agremiação parecem insuficientes para dar conta de tudo que a geração produziu. Essa receita pode ser melhor ou pior aplicada a um conjunto de filmes dentro desse escopo, em especial no segundo quinquênio da década, mas não abrange mais da metade do que se foi realizado. Por isso prefiro um termo genérico, geracional: cinema paulista da geração 1980. O que os aproxima, essencialmente, são duas coisas: o local, São Paulo, e o período, os anos 1980. Com isso, todos se conheciam, todos trocaram experiências em algum momento, e todos sofreram influências entre si e tiveram uma trajetória similar. Havia pontos de contato, mesmo que seus filmes fossem completamente diferentes.

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um filme verista, por um lado; e, por outro, uma constante ironia a alimentar a narrativa. Ironia que provém do roteiro, das situações cômicas, mas não só, que provém de que, apesar de toda essa verossimilhança, uma fábula está sendo contada.”3 Cf. Jean-Claude BERNARDET. Os Jovens Paulistas, p. 80. 4 “(...) a fotografia desses novos filmes de São Paulo abandona o nacionalismo. (...) no cosmopolitismo de São Paulo, o estrangeiro se confunde com o nacional e o novo cinema paulista parece querer agora dialogar com o mundo.” Cf. Francisco Cassiano BOTELHO Jr. Técnica e estética na imagem do novo cinema de São Paulo, p. 49-50. 5 Noites Paraguayas (1982), de Aloysio Raulino; A Hora da Estrela (1985), de Suzana Amaral; A Marvada Carne (1985), de André Klotzel; Vera (1986), de Sérgio Toledo; Cidade Oculta (1986), de Chico Botelho; Anjos da Noite; A Dama do Cine Shanghai (1988), de Guilherme de Almeida Prado; e Feliz Ano Velho (1988), de Roberto Gervitz. 6 Cidade Oculta, Anjos da Noite e A Dama do Cine Shanghai.

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Para além do olhar externo, da academia e da crítica, existe um outro olhar, de quem esteve envolvido intimamente no processo de fazer filmes. São visões muitas vezes similares ao que já se disse, outras vezes um tanto díspares. São, de qualquer forma, complementares, e ajudam a pensar e a entender a atividade nesse contexto. Segundo Guilherme de Almeida Prado, a geração é mais aberta, com uma linguagem desligada de parâmetros fixos, mesmo porque o dinheiro sempre foi minguado em São Paulo7. O que fizeram foi reaproveitar todas as boas ideias que surgiram no cinema brasileiro nos noventa anos anteriores, ao contrário dos modelos predecessores que operavam com a ruptura8. Sua busca é pela síntese – de Humberto Mauro à chanchada, do Cinema Novo e Cinema Marginal à Vera Cruz etc. Diz ele: É evidente que não se trate APENAS de um reaproveitamento de ideias do passado, pois estas são e serão vistas com novos olhos e ouvidos. Novos porque, ao contrário da geração que começou no cinema antes de 68 (que, a partir dessa data, viu desaparecer seus sonhos e vitórias e tiveram que recomeçar a luta), essa nova geração era ainda muito jovem nos anos de repressão; não tinha uma completa consciência do momento que estava vivendo e, portanto, começou com seu trabalho com uma visão da realidade brasileira mais aberta, terna, irreverente e sem mágoas do passado. Além de não ter a seu favor o choque de um rompimento de gerações, a nova geração também não propõe uma ruptura com o público (tradicionalmente acostumado com uma temática e estética do cinema importado), o que faz com que se procure propor as ideias aos poucos, de maneira sutil, mas nem por isso menos instigante.9

Ícaro Martins também vê a geração, de maneira geral, como fruto do contexto histórico que o país vivia, refém da ditadura militar. “Não era um movimento fechado, coeso, com propostas, com uma abordagem. Até porque isso era um reflexo do esfacelamento das células de movimento estudantil. Os anos 1970 eram barra pesada, não tinha condições de criar um movimento”, aponta. Para além da formação em cinema na universidade, o gosto pela metalinguagem e pelos gêneros narrativos, Martins aponta que a geração “é tremendamente consciente, pós-Cinema Novo – todos sabíamos que o Cinema Novo tinha acabado –; pós-Cinema Marginal também”. Com a repressão política nos anos 1970, os cineastas precisavam “inventar outra maneira para sobreviver. Então muita gente trabalhava em outros filmes, ou trabalhava em mercado de publicidade, para

7 ‘FLOR do desejo’, uma crônica filmada da corrupção no Brasil. (O Globo, 1985) 8 “Historicamente, a Vera Cruz propunha romper com o amadorismo das chanchadas; o Cinema Novo propunha romper com o artificialismo da Vera Cruz; o Cinema Marginal propunha romper com o culturalismo social do Cinema Novo e a propunha romper com o hermetismo do cinema marginal. Na década de 80, o Cinema Novo se transforma no cinemão, a pornochanchada no filme de sexo explícito e o cinema marginal quase desaparece com o aumento dos custos de produção. Então, romper com quê?” Cf. Guilherme de Almeida PRADO. O que o cinema brasileiro tem. (Folha de S.Paulo, 1986) 9 Id.

16 a Boca etc. Isso talvez seja uma das razões de ser um ‘movimento’ com tantas vertentes e [ser] profundamente criativo”10. Para Roberto Gervitz, o período foi o auge do pós-modernismo e uma série de elementos ornamentais eram usados de maneira pouco conceituais. Mas o que realmente havia em comum era um cinema cada vez mais urbano, querendo romper com um tipo de estética que vinha de uma produção feita na Embrafilme nos anos 1970 e que a televisão já adotava. “Começamos a dizer ‘não é isso’, não àquela fotografia naturalista que não tinha um discurso estético. Começamos a buscar um discurso estético, mas tinha que estar ligado com o que queria passar, não podia estar acima de você”11, conta. A busca pela urbanidade inclusive provocou rupturas de expectativa no exterior acerca do que seria o cinema brasileiro. Ele lembra de uma exibição de Feliz Ano Velho em uma mostra na Itália: “Uma mulher da Variety me falou ‘isso não parece filme brasileiro’. ‘Por quê?’ ‘Não tem nada a ver com Cinema Novo’. ‘Não tem, porque o Cinema Novo acabou há dez anos. O Brasil hoje não é mais um país agrário, hoje é urbano. São Paulo é uma capital cosmopolita. Cresci na cidade grande’”. Augusto Sevá, por sua vez, acredita que o que há em comum na geração talvez esteja diluído no extrafílmico. Os filmes eram fruto de um modelo de esgotamento de nação e do cinema. Os cineastas não tinham uma consciência plena e não sabiam o que estava porvir, porém. “Tínhamos percepção de que algo muito estranho estava acontecendo, estava tudo errado”, diz ele, ao apontar a inflação a 2000% ao ano e a queda do market share em 15% em quatro anos. “Talvez resida aí o germe do entendimento de porque esses filmes são tão díspares dentro desse conjunto”12, conclui.

1.1 Precisões metodológicas: um cinema paulista dos anos 1980

A proposta desta dissertação é fazer um panorama histórico sobre a geração paulista que realizou seus primeiros longas de ficção entre 1980 e 1990: formação, filmes, propostas estéticas e discursivas, formas de produção e financiamento, trajetória etc. Também se buscou entender o contexto histórico e cinematográfico da época, especialmente no campo econômico e de políticas culturais. Há, aqui, um trabalho obsessivo com dados, datas, valores, nomes, que muitas vezes se provou frustrante pela

10 Em entrevista para o autor em 24 de setembro de 2014. 11 Em entrevista para o autor em 16 de janeiro de 2015. 12 Em entrevista para o autor em 26 de novembro de 2014.

17 dificuldade de acesso a documentos oficiais – às vezes pela própria ausência deles. Por isso, pode haver falhas, evidente. O foco principal foi fazer um levantamento de informações, trazendo uma polifonia de vozes, seja através de depoimentos em jornais, revistas, livros e afins, seja através das (longas) entrevistas exclusivas concedidas ao autor do texto, sobre fatos históricos e sobre fatos cinematográficos. A escolha por uma perspectiva histórica em detrimento da análise fílmica vem de uma sensação de ausência de material bibliográfico a respeito. O cinema brasileiro, como um todo, carece de um maior trabalho histórico, preocupado não apenas em construir um discurso sobre um período, mas também em levantar e apurar informações, para que o entendimento sobre determinado filme, diretor ou contexto possa ser mais acurado e preciso. Os estudos sobre cinema brasileiro tendem a privilegiar a análise fílmica, a leitura teórica sobre determinadas obras. É o caso da bibliografia sobre o cinema paulista dos anos 1980. Existe uma lacuna a ser preenchida e o presente trabalho pretende ser parte disso. A estrutura da dissertação já propõe uma interpretação dessa história. Apesar dos rótulos tenderem a enquadrar os filmes dentro de uma mesma lógica (temática, estética, de produção etc.), os longas da geração são bastante distintos entre si. Parece-me que encaixá-los num movimento ou agrupá-los dentro de um devir cinematográfico é limitá- los. Como aproximar A Caminho das Índias e O Olho Mágico do Amor, Sargento Getúlio e Fogo Paixão, ou mesmo Noites Paraguayas e A Dama do Cine Shanghai? São filmes muito distantes entre si. Claro, há pontos de ligação, especialmente humano, de profissionais que trafegavam entre todas essas vertentes. Seria isso o bastante para enjaular todos esses filmes dentro de um conceito? Penso que não. Por isso a preferência em trabalhar os filmes em blocos. Optei por duas grandes perspectivas, que parecem acomodar mais genericamente dois tipos de filmes bastante distintos no período: o filme de cunho popular e o filme de cunho político, pensando nos conceitos em como eram entendidos na época. Debruço-me mais atentamente sobre eles em dois capítulos, Um cinema popular e Um cinema político. Nessa divisão, já se quebra um paradigma sobre o que se considera a produção desse contexto. Um cinema popular engloba os filmes comumente associados ao receituário de Ramos. Já Um cinema político versa sobre longas importantes do período geralmente esquecidos ou relegados, não associados à geração, por preocuparem-se com uma tradição de nossa cinematografia, o filme político/social.

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Para entender melhor a noção de cinema popular proposta pelo trabalho, a dissertação se inicia com o capítulo Jovem Boca Paulista, que aponta para uma transição entre a produção da Boca do Lixo, voltada para filmes de cunho erótico popular de fins comerciais, e a busca por um cinema popular preocupado com linguagem e estética feito pela jovem geração. São esses filmes de Guilherme de Almeida Prado, Ícaro Martins, José Antonio Garcia e Jair Correia, que, ao lado de Asa Branca, um sonho brasileiro, abrem para uma alternativa para o cinema popular paulista. Paralelamente à Boca do Lixo, formava-se outro centro de produção, o Polo da Vila Madalena, assunto do segundo capítulo, cujas produtoras Gira Filmes, Barca Filmes, Tatu Filmes e Superfilmes abriram espaço para novos realizadores através de seus projetos coletivos e cooperativos que conseguiram se impor no mercado. Boa parte dos realizadores do contexto fizeram seus primeiros longas dentro da Boca ou da Vila. A produção independente, atrelada ou não à Embrafilme, mesmo que fora desses dois polos, costumou conversar bastante com eles, permitindo uma circulação de pessoas, projetos e afins. De qualquer maneira, grande parte dessa geração teve passado cinéfilo e/ou cursou Cinema na Escola de Comunicação e Artes, na Universidade de São Paulo (ECA/USP)13, que teve papel fundamental na formação, em especial pelas aulas de Paulo Emílio Salles Gomes14. Porém, conforme pode ser visto no capítulo Políticas cinematográficas, o cinema dessa geração só parece ter florescido por conta de órgãos públicos de financiamento, como a Secretaria da Cultura, do Governo do Estado de São Paulo, e a Embrafilme, em especial por conta de dois convênios entre ambos para a produção de filmes paulistas, realizados após a luta da classe reunida sob o teto da Apaci.

13 Criado, em 1967, dentro Escola de Comunicações Culturais (ECC), fundada um ano antes, rivalizava, à época, com a Escola Superior de Cinema (ESC), do Colégio São Luís, capitaneada pelo padre Lopes, em 1965. Em 1969, com a ESC já decadente, a ECC integrou os cursos de música e artes plásticas à grade e passou a se chamar Escola de Comunicação e Artes (ECA), nome que permanece até hoje. 14 Como aponta o cineasta André Klotzel, em entrevista para o autor em 29 de setembro de 2009: “O Paulo Emílio fazia a gente assistir a tudo. Existia o filme da semana – as aulas dele eram na sexta-feira. Tinha o relator do filme, o crítico... Ficávamos a manhã inteira discutindo o filme da semana. E quase sempre era pornochanchada. O Paulo Emílio achava fundamental conhecermos isso; ele levava o pessoal da Boca para discutir com o pessoal da ECA. O Paulo Emílio não tinha o ranço acadêmico. Era completamente aberto ao mundo do cinema. Para nós, isso representou uma descoberta. Tínhamos muito uma cabeça para o cinema italiano, cinema de arte, e o Paulo Emílio mostrou o cinema sujo, da Boca, o que havia por trás daquilo, como pensavam. Ele entrava na antropologia da estética, daquele raciocínio moral, do raciocínio artístico. ‘Olha o que eles acham dos ricos, como são retratados. E os homossexuais? Tem preconceitos?’ Começamos a olhar diferentemente, para algo considerado cinematograficamente menor. O Brasil estava naqueles filmes. Isso foi incrível.”

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Esta dissertação, assim, compreende o trabalho na década de André Klotzel, Aloysio Raulino, Augusto Sevá, Chico Botelho, Djalma Limongi Batista, Guilherme de Almeida Prado, Hermano Penna, Ícaro Martins, Isa Castro, Isay Weinfeld, Jair Correia, José Antonio Garcia, Márcio Kogan, Reinaldo Volpato, Roberto Gervitz, Sérgio Bianchi, Sérgio Toledo, Suzana Amaral, Ugo Giorgetti, Walter Rogério e Wilson Barros.

Figura 0 – O pessoal de cinema da geração de 1980 clama “CINEMA PAULISTA JÁ!”. (Crédito: Ayrton Magalhãs / Fonte: Alain Fresnot: Um cineasta sem alma)

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2 JOVEM BOCA PAULISTA

Em São Paulo, entre os anos 1960 e 1980, o principal polo produtor de cinema era a Boca do Lixo, que seguia basicamente uma premissa: ‘baixo custo + erotismo + título apelativo’. Com essa fórmula, a Boca conseguia altíssimas bilheterias e enorme retorno financeiro em relação ao que havia sido investido. Havia liberdade criativa, mas alguns outros requisitos precisavam ser preenchidos, como convenções dramáticas de certos gêneros narrativos e comunicação com o grande público. Nesse panteão, diretores diversos exploraram o erótico em variados gêneros e estilos, seja com produções bem acabadas ou não. Nomes como Jean Garrett, Ody Fraga, Fauzi Mansur, José Miziara, Alfredo Sternheim, Tony Vieira, Cláudio Cunha, Francisco Cavalcanti, Antonio Meliande, Clery Cunha, Oswaldo de Oliveira, entre outros, seguiram muitos preceitos da Boca. Outros, porém, se aproveitaram do contexto para criar obras bastante autorais e narrativamente ousadas, em especial e . Mesmo os cineastas não diretamente atrelados a esse sistema se utilizavam de profissionais, equipamentos, entre outros insumos fílmicos da Boca para suas produções, caso do pessoal ligado às produtoras do Bixiga, como a Lynxfilm e a OCA. Existia cinema em São Paulo fora da Boca, claro. Cineastas como João Batista de Andrade, Roberto Santos, Denoy de Oliveira e Maurice Capovilla continuavam a filmar, amparados pela Embrafilme, com raros sucessos de público. A exceção era Hector Babenco, que conseguia bilheterias excepcionais, com tramas policiais, sem apelo erótico e sem se atrelar à Boca do Lixo. A virada dos anos 1970 para os 1980 trouxe uma mudança crucial para o cinema produzido em São Paulo. Nessa época, o cinema da Boca atingiu seu auge em termos de representação de mercado. O número de filmes produzidos entre 1977 e 1978 subiu de 21 para 40 longas-metragens e a proporção de filmes da Boca dentro da produção nacional de 29% para 40%. O aumento da produção de filmes na Boca do Lixo foi acompanhado pelo crescimento do market share do cinema brasileiro, de 24,5% em 1977 para 29,2% em 1978. Os anos posteriores viram o desenvolvimento desse cenário, chegando ao auge em 1981, em que 55 filmes foram produzidos entre os 80 realizados no Brasil naquele ano15.

15 Dados retirados de quadros comparativos presentes em Boca do Lixo: Cinema e Classes Populares, p. 186-7, e Cinema, Estado e Lutas Culturais: Anos 50, 60, 70, p. 136.

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O Brasil passava por mudanças estruturais em seu governo. O Regime Militar entraria em sua última fase com a posse do presidente João Figueiredo em 15 de março de 1979, encaminhando o país para a redemocratização, devido às pressões populares de diversos setores e à falência do modelo pretendido pelos militares da linha dura no começo da década. Desde o início de 1979, o Brasil já estava livre do Ato Institucional nº 5. Figueiredo, no mesmo ano, decretaria a anistia e findaria com o bipartidarismo, acabando com boa parte das principais bases de repressão da ditadura. A censura, porém, continuou por mais alguns anos. A relação entre o cinema erótico produzido em massa no cinema brasileiro, em especial na Boca, e a censura sempre foi conturbada. Diversos filmes sofreram cortes para serem liberados para exibição, alguns chegaram inclusive a serem interditados. Dentro de um modelo de rápido esgotamento de uma fórmula, calcada na nudez e na insinuação sexual, a maneira encontrada pelo mercado para manter o interesse do público era provocá-lo, apimentando os filmes. Os anos 1970 expandiram as conquistas das mulheres e as liberdades sexuais, tencionando vários tabus ao redor do mundo. Os filmes refletiam isso, ao aprimorar narrativamente libertinagens do imaginário popular, apelando mais nas cenas de sexo, em busca de claramente atrair mais público. A censura, ao longo dos anos 1970, abrandou. Se no começo da década, o corpo nu feminino era exposto comedidamente, ora um seio, ora uma nádega, em 1980, extensas cenas de sexo simuladas, expondo os corpos masculinos e femininos – nudez genital continuava um tabu logo a ser ultrapassado – haviam se tornado comum. Via-se closes de nádegas e seios, algo inimaginável cinco anos antes. A rapidez com que a permissividade sexual nas telas cresceu durante o ciclo das produções de cunho erótico fez com que o público desses filmes aumentasse igualmente, fomentando ainda mais o cinema da Boca do Lixo. Se era sexo o que o povo queria, era sexo que o cinema comercial da Boca daria. No meio da ascensão da Boca, em 03 de novembro de 1980, o filme de arthouse japonês O Império dos Sentidos (Ai no corrida, 1976), de Nagisa Oshima, que possui cenas de sexo explícito, estreia nas telas brasileiras por força de um mandado de segurança, após longa batalha judicial. A resposta do público foi muito positiva em termos mercadológicos, levando mais de 5 milhões de pessoas às salas de exibição. Conforme afirma Alfredo Sternheim: “o público lotava os cinemas menos por interesse artístico e mais para apreciar as genitálias dos personagens centrais em plena atividade.”16

16 Alfredo STERNHEIM. Boca do Lixo: Dicionário de Diretores, p. 36.

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Já em 1979 o cineasta Raffaele Rossi, ao tomar conhecimento de O Império dos Sentidos, viu no sexo explícito uma possibilidade de enfim ganhar muito dinheiro, visto que seus filmes, feitos em condição de penúria, mais lhe davam dívidas do que qualquer outra coisa. Após tentativas de levantar dinheiro e parceiros para a empreitada, Rossi filmou e montou em 1981 Coisas Eróticas. O longa, dividido em três episódios, apenas inseria, em termos narrativos, cenas de sexo explícito em uma comédia erótica típica, o filme erótico ligeiro em que a Boca se especializou. Após muitos problemas com a censura, o mesmo modelo de mandado de segurança usado com O Império dos Sentidos foi empregado em Coisas Eróticas. Lançado em julho de 1982, o longa-metragem fez um enorme sucesso de público, levando 4,7 milhões de pessoas aos cinemas, sendo até hoje um dos filmes brasileiros mais vistos. A partir do filme de Rossi, buscando o lucro rápido, exibidores passaram a exigir cada vez mais longas com cenas de sexo explícito. Para competir com a avalanche da produção pornográfica norte-americana (e internacional), o cinema nacional realizou nos anos seguintes cerca de 500 títulos17, um número altíssimo para os parâmetros brasileiros, tornando-se o tipo de produção predominante18. Os filmes que mantinham os padrões anteriores, as chamadas , não tinham mais apelo para o público. Ao longo dos anos 1980, as produções recorreram a fetiches sexuais diversos, como a zoofilia. Ainda assim, a competição com o produto estrangeiro levou a Boca à falência, mesmo que outros fatores conduzissem o cinema brasileiro a uma crise sem precedentes, como a conjuntura financeira, a inflação desenfreada, o aumento do custo dos ingressos, a extinção dos cinemas de ruas e a queda assustadora do número de salas de cinema, e o surgimento do videocassete. Enquanto uma produção nacional pornográfica custava por volta de US$ 50 mil, as norte- americanas saíam por US$ 2 mil pelo direito de exibição. A disparidade fez com que não se valesse mais a pena, para o exibidor, passar filmes nacionais. Muito por conta dessa invasão, foram poucos os diretores que estrearam em longas nos anos 1980 na Boca do Lixo e não se embrenharam no filme de sexo explícito. A grande maioria desses cineastas não passou de um único filme.

17 Cf. Nuno Cesar ABREU, Boca do Lixo: cinema e classes populares, p. 127. 18 “Em 1984, por exemplo, dos 105 filmes nacionais produzidos (exibidos em São Paulo), nada menos que 69 (sem intenção cabalística) eram de sexo explícito”. Cf. Ibidem, p. 131.

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2.1 Os novos boqueiros

Enquanto consagrados cineastas dependentes da Boca fizeram a transição para o financiamento estatal, via Embrafilme ou apoio da Secretaria do Estado da Cultural de São Paulo, como Carlos Reichenbach, Ozualdo Candeias e Francisco Ramalho Jr., após tentativas de contornar a crise que se instalava na região, outros tantos seguiram dois caminhos: abandonaram a profissão ou se entregaram à feitura de filmes de sexo explícito. Não havia outra forma. Quem não se rendia à indústria do pornô não conseguia espaço em audiovisual. Muitos cineastas consagrados da Boca, assim, dedicaram-se aos explícitos, alguns usando pseudônimos, caso de Antonio Meliande (Tony Mel), Fauzi Mansur (Bake, Victor Triunfo, Rusnam Izuaf), Ody Fraga (Johanes Dreyer) e David Cardoso (Roberto Fedegoso). Tony Vieira e Jean Garret adotaram o nome de batismo, respetivamente Mauri de Queiroz e J.A. Nunes. Outros assumiram seu nome em todas as produções explícitas, como Alfredo Sternheim, José Miziara, Juan Bajon, Cláudio Cunha e José Mojica Marins. Não apenas cineastas seguiram esses dois caminhos, como toda cadeia de produção: fotógrafos, montadores, eletricistas, maquinistas, assistentes, atores, atrizes, produtores etc. No começo da década de 1980, com o aumento da produtividade e do retorno financeiro, aumentou também a oportunidade para os estreantes na direção. Vários deles egressos de funções técnicas e acostumados com o sistema de produção tentaram mudar de cargo. Profissionais como o montador Walter Wanny, o assistente de câmera Rubens Eleutério, os assistentes de direção Mário Vaz Filho e Conrado Sanchez, os atores Bentinho e Ubiratan Gonçalves, os produtores e roteiristas José Adalto Cardoso e Diogo Angélica estrearam na direção de longa-metragem nos três primeiros anos da década. Todos, invariavelmente, acabaram se dedicando, posteriormente, ao longa de sexo explícito. Vaz Filho e José Adalto, aliás, estiveram entre os principais diretores do setor, com películas de forte apelo cult até os dias de hoje, caso de Um Pistoleiro Chamado Papaco (1986) e A Dama de Paus (1989), de Vaz, e de As Taras do Mini-Vampiro (1987), de Adalto. Outros profissionais estrearam diretamente na direção de filmes de sexo explícito. O fotógrafo Eliseu Fernandes e o ator e produtor Mário Lima realizaram apenas um longa cada. Há casos como o de Daniel Santos, que teve uma produção acidentada com seu drama Encontro Marcado, seu único longa, iniciado em 1978. Finalizou em 1982, sem conseguir uma brecha no mercado. Comprado pela Madial Filmes, teve cenas de sexo

24 explícito enxertadas e foi lançado em 1985 como A Boca Macia. Já Norberto Ramalho, Carlos Nascimento e a dupla Sady Baby e Renato Alves tiveram uma carreira profícua. Carlos, ao lado de seu pai Nilton, antigo cineasta, é responsável por mais de trinta longas em sete anos. Alves e Baby são provavelmente os produtores/diretores mais ousados do segmento, trazendo em seus filmes os mais diversos fetiches e práticas pouco exploradas, tais como zoofilia, escatologia e homossexualidade masculina. Nem todos os que estrearam na Boca nos anos 1980 fizeram filmes de sexo explícito. Os casos são poucos e pontuais. É possível, inclusive, fazer uma breve distinção entre dois públicos-alvo: o espectador fiel à produção erótica da Boca do Lixo, interessado em sexo e nudez; e o espectador com alguma ligação ou interesse por faroestes ou filmes caipiras. O que chama a atenção aqui não é a existência de um cinema rural, muito comum à época, e sim a proporção. Dos 33 filmes realizados por diretores estreantes na Boca do Lixo que não se embrenharam pelo sexo explícito, 8 filmes têm temática rural sem erotismo, quase 25% da totalidade, uma dimensão bem maior do que o usual. Em certo sentido, poder-se-ia supor que os cineastas viam o filão como uma alternativa econômica viável sem ter que se submeter ao explícito – caminho natural para quem já trabalhava o erótico. Por outro lado, é notável o fracasso comercial obtido por boa parte desses 8 filmes, dos quais 2 não conseguiram estrear no circuito e os demais mal se pagaram. Os 8 filmes citados são: O Cangaceiro do Diabo (1980), de Tião Valadares, Conflito em San Diego (1981), de Maurício Miguel, Sexo e Violência no Vale do Inferno (1981), de Domingos Antunes, Cercado pelo Ódio (1981), de Ulisses Alves, O Inferno Começa Aqui (1982), de Emanoel Rodrigues, O Menino Jornaleiro (1982), de Alcides Caversan, Rodeio de Bravos: Onde o Chão é o Limite (1982), de Coriolano Rodrigues Mineiro, e O Filho Adotivo (1984), de Deni Cavalcanti. Os quatro primeiros se inscrevem na tradição do faroeste, com conflitos armados, terras em vias de se tornarem civilizadas e a luta do bem contra o mal. O Cangaceiro do Diabo, escrito, capitaneado e protagonizado por Tião Valadares, acompanha um vaqueiro que firma pacto com o demônio, envereda-se pelo cangaço e forma um bando de saqueadores. Feito com baixíssimo orçamento, com parte da equipe dos filmes de Tony Vieira e com Ozualdo Candeias na fotografia, Valadares – escreve Rodrigo Pereira19 - contratou Rajá de Aragão como diretor e, após a conclusão, Tião

19 Em texto para a programação da mostra 5 Vezes Nordestern, ocorrida em setembro de 2005, na Casa França-Brasil, no /RJ. O texto pode ser consultado no blog do cineclube Malditos Filmes

25 assumiu para si o crédito. Valadares (Sebastião Gomes da Silva, 1937-2011) trabalhou em diversas profissões, como ambulante, por exemplo. No cinema, sempre na Boca, foi ator e argumentista, antes e depois de O Cangaceiro do Diabo. Com o declínio da região, mudou-se para Uberaba/MG, onde ficou até o fim de seus dias. Há relatos de ter dirigido, de maneira amadora, mais um longa, O Cangaceiro do Vale da Morte (2008)20. Cercado pelo Ódio acompanha Josias, um sujeito que saiu da prisão e busca reencontrar a família, mas o fazendeiro e mandante local pretende evitar esse encontro. Única produção paulista do carioca Ulisses Alves Pereira, que começou no cinema como ator. Fez ainda no Rio de Janeiro os eróticos Tarados na Fazenda dos Prazeres (1982), com Nilo Machado, e Sexo em Fúria (1984). Conflito em San Diego e Sexo e Violência no Vale do Inferno tiveram trajetórias parecidas. Rodados nos anos 1970, com muitas dificuldades de produção, só foram finalizados no início dos anos 1980. Conflito em San Diego foi rodado em 1971 em Ribeirão Preto como Os Incríveis Yankees e se passa no sul dos EUA, onde duas famílias entram em conflito, após a Guerra da Secessão, por uma delas continuar a escravizar negros. Protagonizado pela banda Os Incríveis, que se desfez pouco depois, o filme foi produzido pelo italiano Dino Sizzi, que não pagou nada nem ninguém. Sexo e Violência no Vale do Inferno, rodado em 1975 e lançado em 1982, traz a dupla Duduca e Dalvan numa história de intrigas familiares no Triângulo Mineiro no final do século XIX. O longa foi dirigido por Domingos Antunes (Domingos Antunes de Souza, 1950), baiano radicado em São Paulo, que sempre se interessou pelo universo dos filmes rurais, tendo colaborado em alguns roteiros. Já O Inferno Começa Aqui, O Menino Jornaleiro, Rodeio de Bravos: Onde o Chão é o Limite e O Filho Adotivo se inscrevem na tradição do drama rural. O Inferno Começa Aqui se passa no Alagoas e tem forte acento político e social, retratando um coronel que, em tempos de seca, prefere deixar a água da fazenda para o gado em sacrifício de sua família e funcionários. Foi rodado com um orçamento minúsculo em 1980, como O Açude, e finalizado em 1982. Emanoel Rodrigues (Emanoel Rodrigues de Melo, 1936-2016), diretor e roteirista de diversos programas televisivos, como os d’Os Trapalhões, e roteirista de alguns filmes da Boca do Lixo, teve que entregar

Brasileiros, responsável pelos ciclos no local. Cf. < http://malditosfilmesbrasileiros.blogspot.com.br/ >. (Acesso em 07 de maio de 2015) 20 Cf. MOSTRA de Cinema de Uberaba Homenageia Tião Valadares.

26 esse seu único filme como diretor para a Marte Filmes como pagamentos das dívidas. Nunca foi lançado comercialmente. O Menino Jornaleiro acompanha uma família muito pobre, em que o pai é pedreiro e sofre para conseguir trabalho, a mãe é dona de casa e faz biscates e o filho é jornaleiro. A vida deles tem uma guinada ao entrar em contato com uma família rica que tenta se impor na cidade. Com a dupla Tonico e Tinoco no elenco, cantando várias músicas, o longa tinha o próprio diretor Alcides Caversan (1944) interpretando o vilão da história. O cineasta, antes de fazer O Menino Jornaleiro, um caipira, trabalhou em diversas funções em filmes variados na Boca do Lixo. Foi câmera, fotógrafo, montador e ator, entre outros. Constituiu a Aces Filmes, com Edson Dales, em 1980, para realizar o longa. Caversan ainda dirigiu a comédia erótica rural Arapuca do Sexo (1983), em que um famoso astro, constantemente confundido com seus personagens, cansa-se dessa vida e busca refúgio numa fazenda. Rodeio de Bravos: Onde o Chão é o Limite é a única investida na direção de Coriolano Rodrigues Mineiro (1940-2012), mais conhecido como Rodrigo Montana, que trabalhou bastante como ator e na equipe de produção desde o começo dos anos 1970. O longa, nunca lançado comercialmente, teve roteiro de Rajá de Aragão e acompanha um rapaz determinado a se tornar um bem-sucedido montador de rodeiros após se interessar pela organizadora do evento. Montana era admirador de faroestes. Manteve escritório na Boca do Lixo até o fim de sua vida, onde acalentava o desejo de retornar à direção com Castelo de Amor, baseado em canção do Trio Parada Dura. Lá mantinha também a Associação São Paulo, a Cidade e o Cinema, que criou e presidia. O Filho Adotivo é a tentativa de Deni Cavalcanti capitalizar com a fórmula encontrada por Jeremias Moreira Filho e Moracy do Val em 1977 e 1978, quando fizeram O Menino da Porteira e Mágoa do Boiadeiro. Ancorados na figura do cantor Sérgio Reis como Diogo e em sucessos da música caipira que dão nome aos longas e guiam a história, os filmes fizeram bastante sucesso, em especial o primeiro. Cavalcanti, com Sérgio Reis como produtor também, retomou a premissa para um novo longa, baseado na composição de Arthur Moreira e Sebastião Ferreira da Silva, roteirizado por Benedito Ruy Barbosa. Dessa vez, Diogo é um respeitado peão de rodeio que descobre sua filiação com um jovem que tenta sucesso por lá. O longa foi uma tentativa de Cavalcanti diversificar sua produção, calcada em filmes eróticos, já antenado com as impossibilidades comerciais das típicas pornochanchadas. O fracasso comercial afastou o diretor do meio por seis anos e o astro Sérgio Reis do cinema.

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Os demais filmes dirigidos por estreantes, em sua maioria, trabalhavam com algum nível o erotismo. Com A Noite das Taras (1980), produção de David Cardoso, os filmes em episódios – compostos por dois a quatro curtas/médias sem ligação específica – ganharam sobrevida. O modelo era mais barato de produzir, permitindo a diferentes equipes trabalharem ao mesmo tempo, sem sofrer com a alta inflação em cima dos insumos, e tinha grande rentabilidade. O sucesso foi enorme, instigando outros produtores a seguirem o mesmo caminho, assim como fez o galã-produtor. Antônio Polo Galante logo produziu As Safadas (1982). Convidou os experientes Antônio Meliande e Carlos Reichenbach, e Inácio Araújo, montador e roteirista que buscava uma oportunidade na direção. Francisco Inácio Araújo Silva Jr. (1948) fez o segundo episódio do longa, Uma Aula de Sanfona, sobre a relação de duas irmãs com o vizinho acordeonista. Araújo posteriormente se tornou crítico de cinema, atuando em especial na Folha de S.Paulo. Ensaiou um longa-metragem por muitos anos, Casa de Meninas, publicado em formato de romance. A Embrapi (Empresa Brasileira de Produtores Independentes), uma cooperativa formada por técnicos e diretores, realizou As Viúvas Eróticas (1982). Antônio Meliande assinou novamente um episódio, o segundo. O terceiro ficou a cargo de Mário Vaz Filho. Já o que abre o filme, Magnólia, foi dirigido por Cláudio Portioli, recorrente diretor de fotografia dos filmes da Boca do Lixo. No episódio, o fantasma de um marido recém- falecido assombra a esposa enquanto ela aproveita a viuvez com o amante. Portioli (1935-2004), diferentemente de Oswaldo de Oliveira e Antônio Meliande, só fez a transição da fotografia para a direção quando o sistema da Boca do Lixo entrou em declínio. Com isso, além de Magnólia, em As Viúvas Eróticas, só assinou a direção de mais dois episódios, ambos produzidos por David Cardoso, que continuava se aproveitando dessa fórmula. A Noite das Taras 2 (1982) traz dois episódios. O segundo, A Guerra da Malvina, dirigido por Portioli, versa sobre um assalto perpetrado por mulheres à casa do astro David Cardoso. O diretor ainda fez o segundo episódio de Caçadas Eróticas (1983), intitulado O Dia da Caça. O filme, porém, só foi lançado em 1985, com cenas de sexo explícito posteriormente enxertadas por Cardoso. Um dos atributos notáveis da Boca era a relativa facilidade em subir na hierarquia cinematográfica. Na virada dos anos 1970 para 1980, em experiências solitárias na carreira, alguns atores de renome se embrenharam na função – nada de novo na Boca, vale ressaltar, visto casos como , David Cardoso e John Herbert, com

28 extensas carreiras como cineastas. Em 1979, os veteranos Sérgio Hingst e Ewerton de Castro estrearam na direção de longas, respectivamente, com Alucinada pelo Desejo e Viúvas Precisam de Consolo. Em 1980, foi a vez de Mário Benvenutti (1926-1993), ator de Noite Vazia (1964), A Margem (1967) e Anjo Loiro (1973), entre outro. Gugu, o bom de cama, produzido pela Marte Filmes, é uma comédia de costumes sobre um costureiro homossexual que, por pressão da mãe, casa-se e tem um filho. Pouco depois, abandona a família, muda-se para o Rio de Janeiro e monta um ateliê de sucesso. Quando a ex-esposa morre, ele volta para cuidar do filho, também costureiro e homossexual. Ambos, porém, escondem a opção sexual um do outro. O humor do filme baseia-se, assim, nos estereótipos da homossexualidade. O longa foi mal nas bilheterias, o que talvez tenha afastado Benvenutti do cargo. Em 1980, o gaúcho Alan Pek (José Alexandre Paledzki, 1945), antigo técnico, filma Por que as Mulheres Devoram os Machos?. O longa, dividido em três episódios – As Amigas, Um Encontro e Desamor e Crime – e repleto de sexo, acompanha situações em que o homem é oprimido pela mulher enquanto amante. Mal recebido, o trabalho é a única incursão de Pek na direção. O mineiro Ciro Carpentieri Filho (1941) começou como produtor na sua empresa Misfilmes. Em 1981, resolveu ir além e fazer um filme enquanto diretor e roteirista. Inspirado no bordel La Licorne – e na dona Laura Garcia –, famoso pelas festas e noitadas, As Meninas de Madame Laura acompanha os dramas de diferentes moças que trabalham num prostíbulo de luxo enquanto tentam uma vida regrada pelas manhãs. O filme conta com Guilherme de Almeida Prado na assistência de direção e diversas musas, como Zélia Martins, Zilda Mayo, Cinira Camargo e Zaira Bueno. O longa só foi lançado em 1983 e amargou o fracasso, terminando a carreira de Carpentieri no cinema. Cassiano Esteves, da Marte Filmes, produziu vários estreantes no começo dos anos 1980. Um deles foi José Carlos Barbosa, que também dirigiu apenas um longa. Eva, o Princípio do Sexo (1981) narra um episódio na vida da professora de sexologia Eva, que vai ao encontro de seu cliente, Robertinho, em sua fazenda, para curá-lo de sua timidez sexual. Enquanto está lá, descobre o que aflige o rapaz e as influências negativas sofridas pela família. Aos poucos, Eva cura todos. O filme também só conseguiu lançamento em 1983. Compositor, autor de algumas trilhas sonoras na Boca do Lixo, e egresso do curso de cinema da FAAP, Manoel Paiva (Manoel Iraldo Paiva, 1950-1987) fez um curta e um média antes de estrear no longa-metragem, com Doce Delírio (1982). O filme mostra

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Júlia em sua jornada de conciliação consigo mesma, após ser largada pelo marido na noite do 27º aniversário de casamento, e os efeitos do desquite na filha e em sua vida amorosa. O longa ganhou o Prêmio APCA de Melhor Atriz, para Bárbara Fazio, mas não vai além dos dramas eróticos produzidos na região. Paiva morreu durante um assalto. Preparava seu segundo longa. Com produção de Wilson Rodrigues e sua Planeta Filmes, o mineiro Alonso Gonçalves (Alonso José Gonçalves, 1943) realizou seu primeiro longa-metragem. O cineasta, que trabalhava num laboratório cinematográfico, já havia tido experiência na função com médias. Escreveu, dirigiu, fotografou e atuou em Os Delinquentes, policial rodado nos finais de semana com elenco mineiro, ao longo de 1979, rebatizado de Tara Maldita (1982) para lançamento. O longa acompanha um operário descontente com a firma em que trabalha, que se rebela e arma um assalto à empresa. Gonçalves voltou a Belo Horizonte, onde fundou sua produtora Karina Filmes, e realizou Treze Pontos (1985) e Somewhere in Brazil (1992). Desde 1998, trabalha como supervisor de efeitos especiais e, vez por outra, como ator, na Rede Globo. Nesse período, realizou Confronto Final (2005). Prepara-se para rodar Os Companheiros. Em 1982, também chegou aos cinemas O Castelo das Taras, de Julius Belvedere, que mistura o fantástico com o erótico. No longa, um grupo ligado à parapsicologia invoca, num castelo da aldeia, o espírito do Marquês de Sade, que incorpora um pastor protestante e passa a cometer profanidades. Belvedere (Russel da Silva Ribeiro, 1943) trabalhava como professor de língua portuguesa quando foi acompanhar duas alunas a um teste na Boca do Lixo. Lá, foi convidado para roteirizar um filme. A partir daí, seguiu carreira no cinema, como roteirista, principalmente. Não gostando do tratamento que davam a suas histórias, o cineasta decidiu tomar as rédeas. O filme fez ótima bilheteria, sendo o sexto longa brasileiro mais visto em 1982, com 284.273 espectadores. Com a entrada do explícito, Belvedere preferiu não seguir a carreira e voltou ao ensino. O produtor de O Castelo das Taras, Dorival Coutinho (Dorival Ferreira Coutinho, 1952-2012), que trabalhou principalmente como ator, estreou na direção no ano seguinte, em 1983, com Mulher Natureza. O filme retrata um rapaz solitário que tem sonhos eróticos em seu quarto, entre eles, com a natureza e sua deidade. Coutinho também não quis trabalhar com o sexo explícito na Boca. Em 1996, porém, abriu a Escola do Sexo, um curso para atores de pornô, e, em 2002, lançou o livro Bíblia do Sexo Sagrado – Ciência da Vida?.

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Força Estranha (1983), também conhecido como Estranhos Prazeres de uma Mulher Casada, é um drama de horror sobrenatural, em que o marido e uma amiga arquitetam um plano para que a esposa comece a ter alucinações fantasmagóricas. O diretor, Pedro Mawashe, pseudônimo adotado por Jean Pierre Manzon (1954-2014), filho do fotógrafo e cineasta Jean Manzon, de quem seguiu os passos, ganhou a vida com documentários e filmes publicitários e institucionais. No mesmo ano, o então ator Arlindo Barreto (Arlindo Tadeu Barreto Montanha de Andrade, 1953) fez seu debut e única incursão na direção, com O Escândalo na Sociedade, sobre a decadência moral de uma família de alta sociedade calcada apenas em bens materiais. O drama erótico foi produzido e estrelado por Sady Baby, que posteriormente se transformou num dos principais nomes do cinema de sexo explícito no Brasil; aqui, em seu único filme não explícito. Barreto já havia atuado em muitos filmes da Boca e em algumas novelas quando fez O Escândalo na Sociedade. Entre 1984 e 1986, atuou como palhaço Bozo, no SBT, fazendo muito sucesso. Sofreu com vício de drogas, bastante midiatizados, e, há trinta anos, converteu-se à religião evangélica e hoje é pastor. O destaque no período em termos quantitativos foi Deni Cavalcanti (José Cavalcanti Neto, 1950), paranaense que se mudou para São Paulo antes dos 18 anos. Ator e cantor, estreou no cinema com Será que Ela... Aguenta? (1977), de Roberto Mauro. No mesmo ano, abriu sua primeira produtora, a Itapuã, e seguiu trabalhando em outros filmes da Boca, em especial como ator. Dirigiu, em 1981, seu primeiro longa-metragem, Amélia, Mulher de Verdade, drama espírita, em que um sujeito e um grupo de pessoas, após morrer, vê, no além, flashes de suas vidas terrenas. Ainda 1981, abriu a produtora e distribuidora Madial Filmes, por onde fez Aluga-se Moças (1981). Cavalcanti se aproveitou do sucesso da cantora e dançarina Gretchen e das chacretes Rita Cadillac e Índia Amazonense e fez um dos filmes de maiores bilheterias da Boca do Lixo, levando pouco mais de 3 milhões de espectadores aos cinemas. O longa acompanha as complicadas vidas de várias garotas que se cruzam num bordel de luxo. Cavalcanti já estava com Procuro uma Cama (1982) engatinhado quando fez muito sucesso. No longa, três jovens de famílias abastadas fogem de casa e acabam se prostituindo em São Paulo para se sustentarem. Sem fazer o mesmo público, o diretor apostou na continuação Aluga- se Moças 2 (1983), contando com Cadillac e Amazonense novamente no elenco e falando sobre garotas que se prostituem. Numa época já marcada pelo sexo explícito, o filme não conseguiu o mesmo sucesso. Por conta disso, Cavalcanti mudou consideravelmente de abordagem e faz o caipira O Filho Adotivo. Após seis anos afastado, voltou com o policial

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A Rota do Brilho (1990), em que dois detetives investigam o narcotráfico na rota ferroviária entre Santa Cruz de la Sierra, na Bolívia, e São Paulo. Estrelado por Alexandre Frota e Marcos Manzano, o filme foi mal de bilheteria, mas ganhou uma breve aura cult quando a coadjuvante Lilian Ramos, em 1994, foi fotografada sem calcinha ao lado do então presidente Itamar Franco. Com a derrocada do cinema, Cavalcanti migrou para a televisão. A Rota do Brilho vem na esteira de tentativas de diretores boqueiros em encontrarem uma sobrevida no cinema, num cenário em que o filme de sexo explícito já havia fracassado no mercado, ainda que existisse alguns realizadores que persistissem no gênero. São os últimos suspiros da Boca do Lixo, em que cineastas ensaiavam uma volta nunca concretizada. Nessa época, foram lançados a comédia As Prisioneiras da Selva Amazônica (1987), de Conrado Sanchez; o drama O Preço da Fama (1988), de Henrique Borges; o religioso Rastros na Areia (1988), de Hércules Breseghelo; os de horror A Hora do Medo (1986), de Francisco Cavalcanti, Atração Satânica (1989) e Ritual Macabro (1991), ambos de Fauzi Mansur, feitos para o mercado externo; o de artes marciais Gaiola da Morte (1992), de Waldir Kopezky; os policiais Eu Matei o Rei da Boca (1987), de Agenor Alves, Calibre 12 (1987), de Tony Vieira, Horas Fatais – Cabeças Trocadas (1987) e Instrumento da Máfia (1988), ambos de Cavalcanti, e O Dia do Gato (1988), de David Cardoso; e o infantil O Gato de Botas Extraterrestre (1990), de Wilson Rodrigues. Em 1988, Pedro Luiz Nobile (1953), sonoplasta de mais de 50 filmes na Boca do Lixo, desde 1976, também estreou na direção com um filme infantil. O média-metragem Príncipe Natan e a Princesinha Curiosa é uma aventura em que uma princesa curiosa deve aprisionar novamente o gênio do mal que ela liberou. Ainda dentro da Boca, vale destacar Avesso do Avesso (1986), média-metragem de Tony de Sousa (Antonio Ferreira de Sousa Filho, 1952). O diretor começou na Boca como ator, assistente de direção e de produção, e chegou a fazer alguns curtas. Já na decadência da região, realizou um filme ousado, muito influenciado pelo cinema do Ozualdo Candeias. O filme acompanha um operário, Chico, que passa o dia trabalhando na fábrica de gesso ou dentro do trem. Seu momento de lazer é quando vai ao cinema assistir à produção erótica da Boca do Lixo ou aos faroestes de que tanto gosta. Mesmo não buscando um tom popular e acessível ao grande público, Sousa está em consonância com algumas preocupações da geração do cinema paulista da década de 1980, como a metalinguagem e a representação da imagem cinematográfica. Nunca foi lançado

32 comercialmente, por ser uma média – duração mais rejeitada no meio, sem conseguir espaço em festivais ou nas salas –, ainda que tenha conseguido certificado de longa21. Se Tony de Sousa teve um pouco mais dificuldade em fazer um salto em relação à Boca – ainda que tenha feito mais alguns curtas e um longa para televisão, antes de se consolidar como professor universitário e escritor –, outros tiveram mais sorte.

2.2 Com um pé fora da Boca

Mesmo vinculados aos paradigmas do sistema de produção da Boca do Lixo, quatro cineastas estreantes em 1981 no longa-metragem se afastam de certa maneira da produção típica. Jair Correia, Guilherme de Almeida Prado e a dupla Ícaro Martins e José Antonio Garcia não se preocupavam apenas em fazer filmes para ganhar dinheiro, tampouco se limitavam a reproduzir modelos e fórmulas exaustivamente testadas. Curiosamente, todos eles, ainda que tenham feito sua carreira na Boca, chegaram ao local por caminhos diversos, ligados a outros braços do cinema paulista. Os filmes inaugurais desses diretores, os mais próximos das típicas pornochanchadas boqueiras, tem em seu cerne a reflexão sobre o gênero. Pode-se argumentar que outros cineastas da Boca trilharam um caminho parecido, caso de Carlos Reichenbach e de Ozualdo Candeias, entre alguns outros diretores que usaram o erotismo e o mecanismo da Boca para fazerem filmes ousados e bastante diferentes, inclusive seguindo outra trajetória com o fim da Boca. São profissionais que estrearam no cinema nos anos 1950, 1960 e 1970, em geral vinculados a outros contextos históricos – o Cinema Marginal, o cinema industrial paulista dos anos 1950 etc. A diferença entre eles parece ser o viés em que trabalham o erotismo, em especial nos filmes de Almeida Prado e da dupla Ícaro e José Antonio. Ainda que preencham todos os requisitos da típica produção da Boca, são filmes que se vinculam a outras propostas estéticas, narrativas e de produção da época, que serão desenvolvidas na década inteira em São Paulo. Não à toa, todos eles fizeram filmes, posteriormente, fora da Boca e/ou com financiamento estatal, obtendo reconhecimento da crítica e de festivais.

21 Tony de Sousa explica, em entrevista para o autor em 07 de junho de 2011: “[O filme] ficou pronto quando a Embrafilme estava nas últimas e havia uma pressão da classe cinematográfica, porque não se vinha produzindo mais nada. E para mostrar que ainda havia filmes sendo produzidos, meu filme entrou na estatística de longa, apesar de ter apenas 52 minutos.”

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2.2.1 Jair Correia

Jair Correia (São Paulo, 1956), dentre os quatro, é o que mais se aproxima da formação usual dos profissionais da Boca do Lixo22 e cujo filme de estreia mais flerta com algumas produções do gênero fantástico feitas por lá. Fanático por quadrinhos, leitor voraz e espectador assíduo do cinema em São Caetano do Sul, desde cedo Correia se interessou pelas artes plásticas, desenhando parentes, pintando painéis na escola ou fazendo colagens. Ainda no colégio, fez cenografia de uma peça teatral e participou de sua primeira exposição coletiva, na Galeria Prestes Maia, em 1970. Aos 16 anos, já vendia trabalhos de quadrinhos e “páginas de divertimento” para jornais de São Paulo, Paraná, Rio de Janeiro e , além de ter trabalhado como repórter e fotógrafo. Ele comenta que sua entrada no cinema se deu ao acaso. Quando a revista Mad passou a ser publicada no Brasil, em 1974, o editor Otacílio d’Assunção Barros, o Ota, convidou-o a desenhar uma história em quadrinhos de um filme brasileiro. Procurou a Embrafilme, na Boca, para saber sobre qual filme poderia desenhar. Conheceu, assim, o cineasta Egydio Eccio, que estava para lançar O Sexualista (1975), com quem passou a se encontrar para trocar ideias sobre a transposição do filme para o quadrinho. Por discordar dos valores que a editora pagava na época, Correia deixou o trabalho e foi se desculpar com o Eccio na filmagem do episódio Ver para Crer do longa Guerra é Guerra (1976). Conta: Lá, comecei a mexer no ambiente, dar algumas sugestões cenográficas, conversar com o diretor de fotografia Edward Freund sobre luz, lentes, enquadramentos. Nada além do superficial. No final do dia, eu e o Egydio fomos beber no Bar Léo e ele me perguntou se sabia o que estava fazendo na filmagem. Eu, desconcertado, disse que não e ele me convidou para ser seu assistente de direção naquele filme.23

Correia foi ainda assistente de direção em dois longas dirigidos por Egydio Eccio em 1976: Fruto Proibido (1976) e Pintando o Sexo (1977), em que também fez

22 Conforme Nuno Cesar Abreu: “No início dos anos 1970, estava em curso o desenvolvimento de um mercado de trabalho para profissionais (e iniciantes) de formação e origens diversas, que encontram no efervescente ambiente da Rua do Triunfo um campo para se afirmarem. Em sua maioria, eram trabalhadores – diretores, roteiristas, fotógrafos etc. – que estavam sendo ‘feitos pela vida, formados pela técnica’ no caldo cultural da Boca do Lixo. (...) [as] formas de recrutamento evidencia[m] a grande mobilidade entre áreas afins com o cinema – como o teatro, o circo, a rádio, a televisão -, típica de uma indústria incipiente e precária. Evidencia, também, que as especializações (a divisão de trabalho) da produção cultural ainda não estavam bem definidas. Contido nessa mobilidade está o acaso, recorrentemente referido pelos entrevistados como o motivo para ‘entrar no cinema’.” Cf. Nuno Cesar ABREU, Boca do Lixo: cinema e classes populares, p. 54-57. 23 Em entrevista para o autor, por email, em 22 de novembro de 2011.

34 continuidade. Além disso, trabalhou como assistente de montagem de Eccio nos três filmes e como editor de áudio nos dois últimos. O aprendizado intenso com Egydio Eccio nesses dois anos, interrompido por seu falecimento em novembro de 1977, preparou Correia para outros voos. Por meio de Eccio, Jair Correia conheceu personalidades do teatro, como Antunes Filho e José de Anchieta. Em 1977, Anchieta o convidou para montar seu primeiro e único longa como diretor, Parada 88 – O Limite de Alerta, uma ficção científica distópica, realizada em forma de cooperativa com parte da equipe e do elenco (Roberto Santos, , Regina Duarte), com fotografia de Chico Botelho e assistência de câmera de José Roberto Eliezer. No longa, que Correia lembra com bastante carinho, ainda atuou como diretor de dublagem. Feito fora da Boca do Lixo, com verba (mínima) da Embrafilme, com profissionais associados à Escola de Comunicação de Artes, da Universidade de São Paulo (ECA/USP), e às produtoras do Bixiga, o filme aponta o diálogo de Correia para com outros braços do cinema paulista. Em 1978, Jair Correia montou e dirigiu a produção de J.J.J. – O Amigo do Super- Homem (1979)24. Na Boca, ainda montou Mágoa do Boiadeiro, e Bacanal (1980), de Antonio Meliande. Também editou o som de As Aventuras da Turma da Mônica (1982), de Maurício de Sousa. Entre 1978 e 1979, estreou na direção, com documentários de curta-metragem, todos por ele montados. Além do paraguaio Ytaipú (1978), que Correia considera “nada importante”, o cineasta fez A Ciência Milenar da Acupuntura (1979) e três sobre artes plásticas, todos em 1979: A Arte na Madeira de Agenor, A Arte no Mármore e A Índia na Porta do Brasil. Todos os curtas foram feitos para atender a Lei do Curta25. Se a direção veio como algo natural, dentro de um cenário que estimulava a produção, o primeiro longa-metragem foi acidental como o início da carreira no cinema. Correia conta: Quando estava montando Mágoa de Boiadeiro, usava a moviola da Marte Filmes e logo nos primeiros dias o [dono] Cassiano Esteves veio falar comigo. Disse que me conhecia dos meus trabalhos anteriores e me cumprimentou pela minha atuação. Eu não conhecia o Cassiano, aqueles elogios me foi como bater a mão no meu ombro e dizer ‘está tudo bem’. Ele sempre passava na moviola

24 Também conhecido como João Joca Júnior, Detetive Carioca, projeto acalentado por Eccio, que faleceu antes de poder realizá-lo. Como sua produtora, a Telemil, havia recebido verba da Embrafilme num edital para televisão e precisava ser feito (ou o dinheiro deveria ser devolvido), o projeto foi para as mãos de Denoy de Oliveira. 25 Resolução 37 do Concine a respeito da Lei Federal 6.281, que estabelecia a inclusão de um filme de curta-metragem nacional antes da exibição de um longa estrangeiro, com renda de 5% das bilheterias para o produtor do curta.

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para dizer que estava tudo bem e que havia café quente na garrafa térmica, era muito gentil. Um dia ele me fez uma proposta: ‘Jair, você precisa dirigir seu primeiro filme. Faz o seguinte, traz um roteiro e vou dar para minha mulher ler, se ela gostar, o produzo para você’. Lógico que achei aquilo uma brincadeira e nem dei bola, apenas respondendo com um sorriso maroto. Na semana seguinte, ele me perguntou se o roteiro já estava pronto. ‘Que roteiro?’, perguntei. E ele novamente acentuou a proposta. Estava claro que queria trabalhar comigo.26

Duas Estranhas Mulheres (1981) é dividido em dois episódios, Eva, “a primeira mulher”, e Diana, “a caçadora” – “figuras míticas no inconsciente do imaginário masculino”, segundo Correia, que também montou o filme. As histórias dos episódios nasceram em dois contos que escreveu para o livro de poemas e contos Telúrico (1982), lançado por conta própria. O cineasta teve ajuda da sua então esposa, Leila Maria Bueno, na roteirização. O filme seria originalmente composto por três episódios – formato que estava em voga no começo dos anos 1980 na Boca do Lixo. Jair Correia só faria Diana. John Doo e Jean Garrett fariam os outros dois. Com a desistência de um deles, Esteves perguntou a Correia se ele teria mais uma história. Foi quando apresentou Eva, que foi aprovado. No processo, o outro diretor desistiu também, sendo composto apenas pelos filmes de Jair. Eva foi filmado primeiro; Diana foi feito para juntos terem por volta de 90 minutos. Ficou com 82. Segundo o cineasta, o longa foi rodado em quatro semanas, duas para cada episódio, em 1980, a um custo de 150 mil dólares, com onze latas de negativo – para tal ensaiava exaustivamente e filmava uma única vez. Para equipe, Correia contou com profissionais experientes no cinema da Boca do Lixo. Caso do fotógrafo Toni Rabatoni, um grande parceiro em seus três longas, das vestais Patrícia Scalvi27 e Misaki Tanaka, e do diretor-ator John Doo. O primeiro episódio, Diana, estruturado como um grande flashback, Diana (Patrícia Scalvi), presa, conta aos policiais como seu marido Raul foi morto. Raul é bruto, violento, impaciente. Otávio, seu amante, é doce, gentil, amoroso. A questão é que Raul e Otávio são a mesma pessoa (Hélio Porto), sofrendo de um distúrbio de personalidade – evocando assim ao romance O Médico e o Monstro, de Robert Louis Stevenson. Diana conhece Otávio por acaso, confundindo-o com Raul. Logo, apaixona-se por ele. Raul desconfia de um suposto amante de Diana. O problema é que o transtorno é cada vez mais instável e, em questão de segundos, Raul se transforma em Otávio e em Raul novamente,

26 Ibidem. 27 O cineasta comenta, em entrevista para o autor, por email, em 22 de novembro de 2011: “A Patrícia Scalvi é uma atriz extraordinária e a minha intenção era a de trabalhar com atrizes que haviam feito filmes de apelo sexual, mas que tinham possibilidades maiores de atuação.”

36 a ponto de a situação para Diana ser insuportável. A mudança de personalidade é clara. O tom de voz, a expressão facial e as palavras ditas diferenciam instantaneamente quem está presente. Cansada da agressividade de Raul, que a espanca e a estupra vez por outra, incapaz de diálogo e bastante intolerante, Diana resolve tomar as rédeas de seu destino, nem que isso signifique sacrificar Otávio. Em seguida, vemos Eva. Nesse episódio, China (John Doo) dorme ao lado de sua esposa (Misaki Tanaka), enquanto sonha com uma mulher (Fátima Celebrini) e um homem barbudo (Vandi Zaquias) transando. No dia seguinte, China dirige rumo a Porto Alegre e, no meio do caminho, dá carona a Eva, a mulher do sonho, cujo carro quebrara. Eva também vai a Porto Alegre para identificar o corpo do marido, com quem não mais morava, e que morrera carbonizado num acidente de carro. Para China, tudo aquilo parece um déjà vu. Ambos acabam se envolvendo romanticamente e vão para um motel – o mesmo do sonho de China. Ele já havia contado sobre o sonho para Eva, que, ao chegar ao local, considera aquilo um golpe. Num acesso de fúria, China a estrangula, foge e joga o carro para fora da estrada. A questão é que, constantemente, vemos um duplo de China em espelhos diversos com a imagem do barbudo do sonho. China acorda, Eva também. As ações se repetem, com a diferença de que o barbudo é quem dá a carona a Eva dessa vez. Ambos os episódios trabalham com gêneros definidos, como o policial e o fantástico, bem a gosto da Boca, e podem ser facilmente associados a trabalhos que Jean Garrett, John Doo e Walter Hugo Khouri faziam na seara dentro do sistema da Boca do Lixo. A priori, Duas Estranhas Mulheres é apenas mais um filme erótico, com cenas diversas de nudez – incluindo frontal –, de insinuação sexual e com inclinação psicológica do gênero fantástico. Tanto Diana quanto Eva trazem personagens femininos à mercê de homens, esses sim frutos de uma estranha natureza psicológica. A diferença parece ser o tratamento dado por Correia para pensar a loucura e a ideia do outro. O cineasta, diferentemente de Guilherme de Almeida Prado e da dupla Ícaro Martins e José Antonio Garcia, não trabalha com metalinguagem e não trabalha diretamente a representação cinematográfica em seus filmes. Interessa-lhe outra imagem, bruta, psicológica. Em ambos os episódios de Duas Estranhas Mulheres, os problemas dos homens – e, por consequência, das mulheres que com eles entram em contato – é a imagem que tem/fazem de si mesmos. É a ideia mais primitiva, que antecede a imagem cinematográfica e a noção do filme como filme. É o homem como imagem. Não à toa, o conceito trabalhado, ainda que não explícito por seu diretor, parece ser o da projeção, em

37 que seus personagens se projetam em outros – esses outros podendo ser eles mesmos, caso de Raul e Otávio, ou um notório desconhecido, como China e seu arquétipo barbudo. Vemos, em ambos os casos, um espelhamento, que se aproxima ou se distancia pela aparência física. Logo no começo de Diana, quando ela convida Otávio para sua casa, ele pergunta quem era o sujeito da foto. Ela responde ser seu marido e pergunta se ele não vê sua semelhança com Raul. Ele refuta de imediato, acha a comparação absurda, ainda que para nós, espectadores, e para Diana, seja evidente. Correia construirá Raul e Otávio para serem muito diferentes, a ponto de que a personalidade deles transforme nossa percepção de suas aparências. Isso é mais contundente em Eva. A começar, vemos a projeção do sonho de China (Eva e o barbudo transam) na vida real, com ele tocando a esposa enquanto dormem. Posteriormente, o uso do espelho será constante para determinar essa corporificação da imagem – confirmada pela reincidência no dia seguinte sem a mediação de China. O auge de tal projeção se dá quando China, de costas para a câmera, se vê no espelho e sua imagem é a do barbudo, mimetizando suas ações. Vale ainda destacar o personagem China como elo em Diana e Eva. Protagonista de Eva, já havia aparecido em Diana numa ponta, interagindo com Raul. A participação não parece fortuita, tampouco falta de figurante para a cena, e sim mais uma peça do jogo de espelhamento entre as histórias, para apontar a semelhança dos universos.

Figura 1 – China se olha no espelho, em Eva/Duas Estranhas Mulheres (1981)

No longa, fica claro um aspecto forte no cinema de Jair Correia: o caráter não explicativo dos acontecimentos fantásticos ou extraordinários de seus filmes. Tanto em Diana quanto em Eva, Correia não demonstra qualquer insinuação de explicar as

38 situações, seja a possível dupla-personalidade de Raul/Otávio – que também poderia ser um sonho, uma ilusão de Diana –, seja a transmutação de China no barbudo. Abordagem em harmonia com a lógica do embaralhamento da psique proposto em seu cinema – nunca sabemos se a imagem que vemos são os fatos da narrativa ou a interpretação/imaginação de seus personagens. Tal fator está em consonância com a própria ideia de representação tão forte no cinema paulista dos anos 1980 de forma geral. Importa, afinal, para Correia, o adensamento nas personalidades, a tentativa de compreensão do estado emocional. Por isso, o uso frequente do zoom psicológico, aquele que se aproxima aos poucos do personagem, focando em seu rosto expressivo, quase como se buscasse adentrar sua mente e exprimir seus sentimentos – tipo de zoom muito frequente, por exemplo, no cinema de Walter Hugo Khouri. “Acho que é mais por procurar entender as diferentes facetas do ser humano, a dialética que caracteriza nossa personalidade e os desdobramentos e consequências dos seus atos”, comenta o cineasta28, que aponta influência direta da literatura dos argentinos Adolfo Bioy Casares e Jorge Luis Borges, associados ao realismo fantástico, e do longa-metragem Na Solidão da Noite (Dead of Night, 1945), capitaneado por Alberto Cavalcanti. Para compor essa atmosfera, além do zoom e de um ritmo de tensão crescente, o cineasta faz uso de música clássica (entre outros, Liszt, Vivaldi, Tchaikóvski, Dvorak, Beethoven e Bach). Duas Estranhas Mulheres ainda antecipa outro ponto importante do cinema de Jair Correia: em seus três longas, existe a opressão sobre a figura feminina. Não à toa, Correia, em geral, escolhe as mulheres como centro de seu cinema, assumindo o lado delas na história – ainda que características tidas hoje como manifestação de machismo possam ser percebidas. O longa foi lançado, sorrateiramente, em 03 de agosto de 1981, no Rio de Janeiro, onde, apesar de bom público, foi mal recebido pela crítica. Quase um ano depois, em 24 de maio de 1982, o filme chegou a São Paulo, deslumbrando o crítico Rubém Biáfora, que encerrou sua crítica em O Estado de S. Paulo dizendo ser o filme “excepcional e totalmente obrigatório. Nota máxima”29. O elogio de Biáfora ajudou a promover o filme, que ganhou como melhor direção, melhor atriz (Patrícia Scalvi) e melhor ator coadjuvante (Vandi Zaquias) no Prêmio da Associação Paulista de Críticos de Arte, a APCA, em 1983. Em termos de bilheteria, segundo o cineasta, o filme fez por volta de 1 milhão de espectadores ao longo de sua carreira comercial.

28 Em entrevista para o autor, por email, em 13 de fevereiro de 2015. 29 Rubem BIÁFORA. A volta de Antonioni e um excepcional filme paulista.

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À época do lançamento, Jair Correia e a crítica já viam outra vinculação para além da típica produção da Boca. Em texto não assinado para O Estado de S. Paulo, feito provavelmente por influência de Biáfora que uma semana antes exaltou o longa, dizem: São dois episódios (‘Diana’ e ‘Eva’) que, a partir de um orçamento considerado baixo, com um produtor normalmente engajado na elaboração de comercias e baratas pornochanchadas, tentam demonstrar que a ‘boca’ paulista está mudando. Pelo menos é essa a esperança do diretor Jair Correia. ‘Eu ainda utilizo cenas de sexo para levar o público ao cinema. Confesso. Mas a questão é o que mostrar junto a isso. Inclusive porque a própria ‘boca’ está num momento muito delicado: ou parte para filmes mais arrojados ou começa a produzir filmes de maior categoria. Eu optei pelo segundo caminho e sinto que está nascendo um novo cinema paulista com muitas obras de diretores estreantes, a geração dos 20 e poucos anos. Isso é importante. Veja o prêmio do Marcos Magalhães em Cannes. É um reflexo de que o tempo da ideia na cabeça e uma câmera na mão já passou. O que precisamos é de filmes tecnicamente bem feitos e que, sem serem apenas comerciais, tenham um suporte empresarial para produzi-los’.30

Com a experiência de Duas Estranhas Mulheres, Correia foi convidado por Hélio Porto, ator do episódio Diana, para dirigir Retrato Falado de uma Mulher sem Pudor (1982). Porto havia escrito o roteiro e conseguido produtores/investidores para o projeto – os novatos Gelson Nunes e Sílvio França Torres, que estavam interessados em fazer cinema. Porto também assina a direção ao lado de Correia. Feito fora do sistema da Boca do Lixo, no segundo semestre de 1981, ao longo de oito semanas, ainda que utilizando parte da estrutura – como equipe e elenco –, e com orçamento de superprodução (Correia estima em US$ 2 milhões, treze vezes mais do que em Duas Estranhas Mulheres, e diz que teve 60 rolos de película disponíveis), Retrato Falado de uma Mulher sem Pudor acompanha o policial Silvio (Porto) em suas investigações sobre o misterioso assassinato de Paula Marcondes (Monique Lafond), modelo famosa que se relacionou com homens muito importantes. Através de uma estrutura de flashbacks, cada interrogatório com um dos sete homens muito próximos à estrela revela um diferente episódio que ajuda a construir quem foi Paula e quem a assassinou. Ao fechar o cerco sobre a identidade do assassino, Silvio é afastado da polícia e resolve continuar as investigações por conta própria. Quando começou a atuar no cinema, Hélio Brasil Porto (1940-1999) já era um veterano da dublagem, setor em que trabalhava desde 1963, quando iniciou na Ibrasom. Passou por diferentes estúdios de gravação, incluindo a TV Cinesom, do qual foi dono entre 1967 e 1971. Trabalhou em filmes diversos e em séries televisivas, como Os Três

30 ‘DUAS Estranhas Mulheres’’, a estréia de Jair Correia.

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Patetas, e foi a voz de James Stewart em vários longas. No cinema, Porto atuou, em especial, na Boca do Lixo, em filmes como Por um Corpo de Mulher (1979), de Hércules Breseghelo, A Dama da Zona (1979), de Ody Fraga, e A Noite dos Bacanais (1981), de Fauzi Mansur. Em 1980, produziu o longa P.S. Post Scriptum, de Romain Lesage. O desafio seguinte foi levar uma história sua para as telas. Retrato Falado de uma Mulher sem Pudor foi sua única incursão como diretor e roteirista, bem como sua última aparição como ator no cinema. Porto havia gostado de trabalhar com Correia e o chamou para dirigir. Jair explica o que o atraiu ao projeto: “Estava acontecendo vários crimes contra mulheres autossuficientes em nome de uma moral conservadora machista e era isso que o roteiro explorava. Me interessou muito o tema e aceitei dirigi-lo.”31 Retrato Falado apresenta uma preocupação de seus diretores em construir a figura de uma mulher forte e independente, livre profissional e sexualmente. Paula não tem amarras para conquistar o homem que quer e nem para o tratar como ela julga que ele merece. Relaciona-se, assim, com toda a sorte de homens, de empresários e industriais a publicitários e fotógrafos. Dona de si e de seu próprio corpo, tem nele seu meio profissional, enquanto modelo. Ex-aeromoça, quis ser manequim justamente para ser independente financeiramente e bem sucedida. A formulação dessa personagem se dá através dos depoimentos dos homens que a circundaram32 e de uma amiga, Priscilla (Zélia Toledo), que colaboram para enfatizar o aspecto libertário da vida de Paula. O segundo ponto pelo qual os diretores se interessam em construir é a sociedade machista e retrógrada na qual Paula está inserida. Para isso, mostram situações diversas em que homens tentam se aproveitar dela por ela ser modelo e por não ser comprometida, associando a figura da modelo à de uma prostituta. Um recurso frequente no filme, o vídeo, em imagens feitas por Jayme Monjardim para o longa, em especial nos noticiários sobre Paula, enfatiza o machismo. Logo no começo do longa, uma reportagem traz um povo-fala, com populares opinando sobre a modelo e sua morte. O machismo, vemos, não vem só dos homens. Uma mulher diz: “pelo que ouvi, ela não tinha uma vida muito decente, não é?” – como se isso justificasse o assassinato.

31 Em entrevista para o autor, por email, em 22 de novembro de 2011. 32 Johnny Gravatinha (John Herbert), Juca (Paulo Minervino), Bergson (Serafim Gonzales), Roldão (Fúlvio Stefanini), Abdelaziz Kamel (Paulo César Pereio), Cacá Sales (Jonas Bloch) e Marcos Arruda (Luiz Carlos Moraes).

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O filme propõe assim um retrato bastante vanguardista e ainda bastante atual sobre a representação da mulher na sociedade oitentista. No final do filme, Silvio vê a gravação do primeiro teste de publicidade feito por Paula, em que ela se abre. Ela diz: O problema da mulher sempre foi o homem, falando sério, isso mesmo. Depois do assim chamado advento da indústria automobilística e da pílula anticoncepcional, acho que isso fundiu um pouco a cabecinha dos homens. A mulher motorizada sem problemas foi perdendo a dependência do antigo amo, do senhor da casa.

O problema do filme é que ele se contradiz em termos de discurso, uma vez que passa toda sua duração construindo uma mulher forte, livre das amarras sociais e do papel da mulher na sociedade, mas encerra seu depoimento com: É que no duro, no duro mesmo, lá no fundo, bem lá no fundinho mesmo, eu jogaria isso tudo fora, jogaria toda essa independência, essa liberdade de movimentos. Sabe porquê? O que gostaria mesmo é estar ao lado do homem amado, ter uma porrada de filhos, sei lá, eu acho que simplesmente ir vivendo.

Segundo Correia, essa contradição existe porque “Paula era uma mulher comum, como toda mulher gostaria de ser. Hoje, provavelmente o final seria diferente”33. Em termos de estrutura formal, o filme se ampara numa linha mestra da investigação policial (o tempo presente), em que cada interrogatório agrega um pouco mais ao retrato de Paula, através de reconstruções de episódios de sua vida (tempo passado). Interessa menos aos diretores saber quem é o assassino – logo revelado na primeira cena, numa rápida aparição mais nítida do sujeito –, e mais na construção dessa personagem em seu meio. O tempo presente também é empregado para fazer alusões aos métodos usados por alguns policiais para conseguir confissões: a tortura. Realizado em 1981, com a derrocada da ditadura militar e o arrefecimento da censura, o filme é um dos primeiros a trazer tal mecanismo à tona, com certa crueza. É interessante notar que os torturados pela polícia são os dois sujeitos com pouco ou nenhum status social e financeiro. O longa, porém, mesmo contando com um orçamento alto e vários profissionais do primeiro escalão – Toni Rabatoni faz novamente a fotografia, Egberto Gismonti faz a trilha, por exemplo –, teve uma produção bastante acidentada, marcada por problemas entre Correia e a produção, o que afetou a montagem. Correia explica: Não havia divisão de tarefas [na direção]. Na verdade, ele [Hélio Porto] era um mediano assistente de direção, mas, como o roteiro era seu e tinha me apresentado aos produtores, se viu no direito de assinar uma codireção. Quando acabaram as filmagens de Retrato Falado, criou-se um clima de traição nos bastidores da produção. Um assistente ouviu uma conversa entre o Hélio e um dos produtores de que a minha presença seria desnecessária a partir daquele

33 Em entrevista para o autor, por email, em 10 de setembro de 2015.

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momento e isso chegou até meus ouvidos. No dia seguinte, como não queria ser joguete em mãos espúrias, propus a venda de minha participação no filme, o que foi rapidamente aceito e recebi uma quantidade de dinheiro que me sustentaria nos dois anos seguintes. Como ia montar o filme, mas era uma pessoa dispensável, indiquei para a montagem o grande Mauro Alice. Acontece que não uso claquete e ninguém conseguia colocar ordem em quase cem rolos de copião. Nem o Hélio, nem ninguém, o que mostrou que não era tão dispensável assim. Dois dias depois, apareceram em meu apartamento na Vila Madalena o produtor Gelson Nunes e Mauro Alice, pedindo que fosse à moviola pôr ordem no material. Me pagaram muito bem por isso. Chamamos o Francisco Ramalho Jr., que é um grande diretor e amigo, para colaborar no corte final. Acho que isso deu a estrutura de Cidadão Kane [uma investigação apresenta uma sucessão de flashbacks sobre a personagem], muito embora o tratamento inicial dado por mim seja a linha mestre do filme. Geralmente dirijo um filme ‘montado’, ou seja, a dinâmica como ele ficará no final já estruturo nas filmagens.34

Segundo o montador Mauro Alice, o processo foi um pouco diferente, como se pode ver em seu depoimento sobre o filme: [O] filme não montava. A história, contada a partir de três pontos de vista, não concatenava, não formava um filme. Então chamaram o Ramalho para refazer o roteiro, e ele, depois de ver as imagens, recomendou ao produtor Gelson Nunes o meu nome para ajudá-lo. Então, fui eu de volta pra Boca do Lixo trabalhar no escritório da Marte Filmes. Examinamos o material. Havia cenas com conclusão, outras não. O filme era muito passado a ferro para ter três versões. O Ramalho observou problemas de continuidade. (...) comecei a utilizar aquilo que na pré-montagem foi desprezado como restolho. Eu colei tudo e comecei a passar e a estudar aquele material, descobrir as belezas, feiúras aproveitáveis. Então eu fazia essas coisas como pequenos intervalos (...). E procurava me ater a recursos estritamente cinematográficos para escapar daquele ramerrão de outra narrativa oral. Comecei a aumentar o valor dos testemunhos obtidos pelo policial que interrogava uma mulher, ou um homem que queria dar um testemunho. O contado era tão real quanto aquilo que se sabia que era a realidade. Criei esses élans e essas amarras que auxiliaram o Ramalho a fazer um roteiro conforme a necessidade de tirar informações excedentes ou a possibilidade de passar para outra coisa. E ficou muito bonito. Quase todas as passagens tinham elementos-gancho envolventes que ajudaram.35

Quanto à divisão de tarefas entre os diretores Hélio Porto e Jair Correia, o assistente de direção Tony de Sousa aponta que a Porto cabia o ensaio com os atores, uma vez que tinha intimidade com eles, e a Correia todo o resto, incluindo a movimentação dos atores e da cena36. Esse processo todo e o fato de Jair Correia não ter escrito o roteiro e não ter tido voz sobre a montagem final talvez façam de Retrato Falado de uma Mulher sem Pudor

34 Id. 35 Sheila SCHVARZMAN. Mauro Alice: Um Operário do Filme, p. 240-1. 36 Em entrevista para o autor, por email, em 14 de julho.

43 seu filme mais desigual, aproximando-se das produções eróticas da Boca do Lixo mais luxuosas, como as realizadas por Fauzi Mansur. O filme foi lançado em 23 de agosto de 1982, no Rio de Janeiro, onde foi mal recebido pela crítica. O longa só chegou em São Paulo em 28 de fevereiro de 1983, fazendo pouco barulho. Rubém Biáfora, do Estadão, já havia falado do filme quase um ano antes, quando da estreia, também tardia, de Duas Estranhas Mulheres, chamando-o de “surpresa total”37 – ter gostado de Retrato Falado foi o que o instigou a conhecer o trabalho anterior de Correia. Segundo o diretor, o filme fez por volta de 600 mil espectadores em sua temporada nos cinemas. Pouco depois de se desligar de Retrato Falado de uma Mulher sem Pudor, Jair Correia foi apresentado ao produtor Luiz Carlos Dupont, da DIF, Distribuidora Internacional de Filmes, que estava interessado em produzir seu novo longa-metragem. O cineasta já tinha o argumento do que seria Shock (1984) pronto. Com o aval de Dupont, desenvolveu o roteiro com Gertrude Eisenlohr, amiga e psicóloga, pois buscava aprimorar os fundamentos psiquiátricos da história. Rodado em cinco semanas, entre julho e agosto de 1983, com US$ 600 mil38, Shock contou jovens nomes da televisão e do teatro, alguns deles fazendo sua estreia no cinema, caso de Cláudia Alencar, Mayara Magri, Elias Andreato e Taumaturgo Ferreira. A exceção foi a starlet da Boca Aldine Müller. O filme se propõe a ser o retrato de uma geração, apostando numa liberdade poética muito grande. No longa, após uma festa regada a rock, álcool e drogas, num casarão afastado da civilização, um misterioso assassino (Vandi Zaquias), identificado apenas pelas suas botas, elimina um a um os remanescentes no local. São três casais: Eni (Cláudia Alencar) e Samu (Elias Andreato), membros da banda que cuidam da bateria até a manhã seguinte, quando seria buscada; Isa (Aldine Müller) e Nuno (Kiko Guerra) que, enfastiados, ocuparam um dos quartos e, após a transa, dormiram; e Sara (Mayara Magri) e Gil (Taumaturgo Ferreira), que se refugiaram num dos quartos com o mesmo propósito, mas ela, virgem, não quis saber de sexo, e ficaram lá, conversando, até ele adormecer. Shock se enquadra perfeitamente dentro dos códigos do slasher, subgênero do horror em que um assassino serial faz suas vítimas de maneira muito gráfica e de forma aleatória. O slasher, à época, estava em seu auge, com diversos exemplares norte-

37 Rubem BIÁFORA. A volta de Antonioni e um excepcional filme paulista. 38 Dados do diretor. Em entrevista para Felipe M. Guerra, ele afirmou ter custado US$ 400 mil. Cf. Felipe M. GUERRA. Jair Correia, ele fez um slasher movie no Brasil. < http://bocadoinferno.com.br/entrevistas/2004/10/jair-correia-ele-fez-um-slasher-movie-no-brasil>.

44 americanos que geraram muitas franquias, caso de Halloween – A Noite do Terror (Halloween, 1978), de John Carpenter, e Sexta-Feira 13 (Friday the 13th, 1980), de Sean S. Cunninghan. Laura Cánepa explica: Os chamados slasher movies (numa tradução literal, ‘filmes de fatiadores’) surgiram por volta da década de 1960 nos EUA e foram febre entre os filmes juvenis na década de 1980, sobrevivendo até os dias de hoje. Esse subgênero do horror envolve, tipicamente, um psicopata do sexo masculino, quase sempre disfarçado, que caça e mata suas vítimas usando métodos extremamente violentos e sádicos, e empunhando armas pouco convencionais como foices, motosserras etc.39

Jair Correia nega veementemente qualquer associação ao horror e ao slasher principalmente40. Em Shock, o cineasta pela primeira vez foca os jovens, ao invés dos adultos, e traz um curioso relato sobre gostos musicais, convívio social, relações amorosas e linguajar. Para ele, seu interesse não era o mercado, propriamente, que um slasher ou um filme para jovens poderia atrair, e sim uma questão simbólica-política que o retrato abarca. Ele conta: Na verdade, não [me interessava] fazer um filme jovem, mas um filme de jovens em um momento político de grande transformação social. Estávamos vivendo o fim da ditadura e o fim da censura e falar de um vazio intelectual que estava permeando a cabeça dos jovens seria um tema interessante. E, se essa geração estava pondo a cabeça para ser dominada, quem era o dominador então?41

Em outra entrevista, para Felipe M. Guerra, ele complementa essa ideia: “O que me levou a fazer Shock foi a falta de sentido na vida que havia nos jovens daquele período, a escassez intelectual e, metaforicamente, o assassino é o próprio sistema (a polícia, a política, o Exército, as forças de aniquilamento social, sejam elas quais forem).”42 Esse desejo do diretor talvez seja seu principal trunfo na criação de seu slasher. O filme se beneficia muito da construção atmosférica, aumentando gradativamente a tensão, de piadas e bobagens no início para um clima de angústia e sufocamento ao fim, bastante ancorado na trilha musical e na sonoplastia de maneira geral. O principal catalisador dessa transformação é o assassino. Vemos basicamente seus coturnos pretos, andando de um lado para o outro, com algumas participações das mãos e de outros detalhes que não o identificam. Sem uma fala sequer, o assassino atemoriza os jovens com seus passos largos

39 Laura Loguercio CÁNEPA. Medo de quê? - Uma História do Horror nos Filmes Brasileiros, p. 314. 40 Em entrevista para o autor, por email, em 22 de novembro de 2011, ele disse: “Não vejo nenhum paralelo entre Shock e nenhum dos filmes slasher dos anos 70/80. Não gosto de filmes de horror e nem vejo filmes americanos do gênero. Minha praia é outra”, fazendo, porém, ressalvas a diretores como Alfred Hitchcock, Brian De Palma, Stanley Kubrick, Roman Polanski e alguns outros. 41 Em entrevista para o autor, por email, em 22 de novembro de 2011. 42 Felipe M. GUERRA. Jair Correia, ele fez um slasher movie no Brasil.

45 e ruidosos, bem como os provoca, ao tocar a bateria, entre outras atitudes. O uso das botas do psicopata só funciona porque Correia se preocupa em direcionar nosso olhar para os pés, filmando planos-detalhes de vários personagens, não apenas do vilão. O assassino é, assim, um ser quase invisível, sem rosto, sem identidade. Toda essa construção tem um propósito. Ao final, há uma inversão bastante interessante e crítica. Apenas uma pessoa consegue chegar viva à manhã, Eni, já complemente louca (por conta da tensão), socorrida pelos policiais. Eles alegam ter conseguido capturar o responsável pelas atrocidades, de quem estavam no encalço havia certo tempo. A câmera faz um movimento suave, do ponto de vista de Eni, descendo do rosto do criminoso até seus pés, quando vemos que os coturnos pretos são calçados pelos policiais e não pelo suposto assassino. O cineasta explica o artifício: Não mostrar o assassino gera uma pergunta constante: de qual matador devemos ter medo, daquele que surge no beco escuro ou daqueles que pensamos estar nos protegendo? [Fazer a inversão no final serve] para mostrar que os nossos carrascos estão vivos e invisíveis. E que por mais estruturante que for nossos desejos, haverá sempre uma possibilidade deles serem destruídos pelo desconhecido. Muitas vezes o monstro mora dentro de nós mesmos.43

Figuras 2 e 3 - O assassino pelas botas, em Shock: rondando a casa; o suspeito apresentado (centro) ao lado dos policiais

O roteiro também dá pistas sobre as dificuldades em o que os jovens devem acreditar, nesse final de ditadura militar, com um histórico de forte repressão. Em determinado momento, o personagem Samu fala: Não é nenhum barato ficar vendo gente morta para tudo quanto é lado não. Ficar sendo ameaçado de morte, sentindo um puta medo. E nem dentro da minha própria casa eu posso ser livre. E o que é pior? Não posso nem sair, porque seja o que for, quem que estiver lá fora está querendo matar todos nós.

43 Id.

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Já em 1984 começam a aparecer tendências do que marcaria o visual do cinema paulista da década, só aprofundado na segunda metade do decênio: a fotografia e a direção de arte azuladas. O trabalho de Rabatoni (foto) e Sérgio Dias Reis (arte) é tímido frente a artificialidade cromática alcançada posteriormente em filmes como Vera, Cidade Oculta e Anjos da Noite, por exemplo, mas já aponta para um desejo de construção imagética para além do realismo. Lançado em São Paulo em 12 de março de 1984, o filme teve boa recepção da crítica, ainda que tenha sido ignorado pela seleção do . Jair Correia aponta que o filme fez, em sua temporada nos cinemas, cerca de 800 mil espectadores. O número parece um pouco inflado considerado o momento que o cinema vivia em 1984 e que sequer foi encontrado registro de estreia no Rio de Janeiro, principal praça brasileira ao lado de São Paulo. Ainda assim, Shock teve uma boa carreira em home vídeo, esgotando a tiragem do VHS lançada pela CIC Video, e tornando-se um cult nesse segmento. Após Shock, novamente com produção de Dupont, Correia começou a trabalhar no roteiro de O Proprietário, escrito com o espanhol Mario García-Guillén. A produção seria rodada em Blumenau em março e abril de 1986. Com o Plano Cruzado, os apoiadores do filme desistiram da participação e o projeto morreu. Correia e Dupont até tentaram transformar o longa num projeto internacional, sem sucesso. Paralelamente, Correia dirigiu o programa televisivo Comando da Madrugada, do Goulart de Andrade. Desde 1984, o cineasta morava entre São Paulo e Ribeirão Preto. Com a falência do projeto O Proprietário, ele se mudou de vez para Ribeirão, onde passou a se dedicar às artes plásticas e ao teatro. Participou do grupo teatral Fora do sériO, para onde fez cenografia, produção executiva e dirigiu alguns espetáculos, caso do premiado Auto da Barca do Inferno. Desde 2008, trabalha no projeto de animação Metamorphosis, atualmente em captação.

2.2.2 Guilherme de Almeida Prado

Guilherme de Almeida Prado (Ribeirão Preto, 1954), assim como Correia, também começou no cinema sem formação específica, porém, seu interesse era outro. Proveniente de uma família abastada, morou em sua cidade natal apenas entre os 14 e 17 anos de idade, mas tal fato teve caráter determinante em sua carreira, pois foi quando tomou contato com o cinema, vendo, em média, quase dois filmes por dia. Ainda em

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Ribeirão Preto, Prado ganhou uma câmera Super-8 dos pais. Com ela, realizou vários curtas amadores, caso de Monótonus e Mentes44. Em 1972, mudou-se para a casa dos pais em São Paulo com o objetivo de fazer cinema. Como não teria suporte financeiro de seu genitor nessa carreira, prestou engenharia – além de direito e medicina, únicas faculdades aceitas pelo pai, Gilberto. Cursou a Universidade Presbiteriana Mackenzie. Na capital paulista, encontrou uma variada gama de possibilidades entre as salas exibidoras. Formado em engenharia, mas desesperado por não querer exercer a profissão, Prado mostrou alguns dos roteiros que havia escrito a um velho colega, o então fotógrafo Odon Cardoso. Este o levou à empresa de vídeo publicitário Spectrus, onde trabalhava. Não gostaram dos roteiros, mas o convidaram a escrever outro, pois estavam interessados em fazer cinema. O dono da Spectrus, Sérgio Tufik, queria rodar um documentário sobre sua cidade natal, Ibitinga, no interior paulista. Prado foi o único que aceitou fazê-lo. Para isso, contrataram o fotógrafo Cláudio Portioli, importante nome da Boca do Lixo. Foram a Ibitinga, filmaram o curta-metragem, porém, na montagem, houve desentendimentos entre Tufik e o diretor – este seguiu o roteiro que havia escrito, mas por influência do prefeito da cidade, que o achou muito crítico, o produtor quis remontar o filme de forma que agradasse ao prefeito, pois este pretendia comprá-lo. Prado não aceitou as mudanças e abandonou o projeto. Quando Odon Cardoso e Guilherme de Almeida Prado brigaram com Tufik, pediram emprego a Portioli. Nesse momento, em junho de 1979, ele começaria E Agora, José? – Tortura do Sexo (1979), produzido por David Cardoso e dirigido por Ody Fraga, que precisava de um assistente. Portioli também precisava de um assistente de câmera. Com isso, Odon e Prado começaram suas carreiras cinematográficas na Boca do Lixo. E Agora, José? é o primeiro de oito filmes da Boca em que Prado foi assistente de direção. Ele conta: “Era relativamente fácil trabalhar na Boca. Não havia muitos outros assistentes de direção com a minha capacidade. Em um ano e meio, fiz oito filmes.”45 O que diferenciava o futuro cineasta dos demais profissionais era sua formação teórica autodidata. Ainda que não tivesse uma graduação na área, ele, muito interessado na prática, leu tudo que havia disponível sobre o assunto e assistiu a muitos filmes. Ele conta

44 Prado conta: “Cheguei a fazer uns seis ou sete filmes em Super-8. Dois nunca terminei. Montei mas nunca sonorizei. Ficaram incompletos. O último ficou faltando até filmar um pedaço. Era muito sem recursos técnicos e me cansei do Super-8.” Cf. Luiz Zanin ORICCHIO. Guilherme de Almeida Prado – Um Cineasta Cinéfilo, p. 72. 45 Em entrevista para o autor em 04 de maio de 2008.

48 que fez, sem ninguém pedir, apenas porque achava ser seu trabalho, análise técnica, ordem do dia, programação – tarefas básicas hoje em dia no cinema brasileiro. David e Fraga ficaram muito surpresos – e satisfeitos – com tamanha organização, o que o ajudou na sua reputação. Além de E Agora, José?, foi assistente de direção Ody Fraga, talvez sua maior influência dentro da Boca do Lixo, em mais dois longas (Palácio de Vênus/1980 e A Fêmea do Mar/1980) e um episódio (A Viúva do Dr. Vidal, em Aqui, Tarados!/1980). Prado já havia feito cursos de cinema, inclusive um profissionalizante, promovido pelo Sicesp (Sindicato da Indústria Cinematográfica do Estado de São Paulo), mas a Boca lhe ensinou na prática como se fazia cinema, pelo menos no padrão Boca – com baixo orçamento, produção rápida e uso do erotismo. Entre 1979 e 1981, foi assistente de direção de E Agora, José? – Tortura do Sexo, Império das Taras (1980), de José Adalto Cardoso, Palácio de Vênus, Fêmea do Mar, Aqui, Tarados!, de David Cardoso, John Doo e Fraga, Pornô! (1981), de David Cardoso, John Doo e Luiz Castellini, As Meninas de Madame Laura, e Os Indecentes (1981), de Antonio Meliande. Quando Prado foi fazer cinema na Boca do Lixo, seu objetivo era ser diretor. Nunca escondeu isso de ninguém. Relata: “Ao contrário de outras pessoas que eram assistentes de direção na Boca e diziam que não queriam dirigir, mas que na realidade queriam, sempre quis e falei que queria. Algumas pessoas achavam que era pretensão, mas nunca escondi.”46 Em 1981, conseguiu sua primeira oportunidade como diretor. Havia acabado seu último trabalho como assistente de direção, no filme Os Indecentes, em 15 de dezembro de 1980, e, um mês depois, já estava fazendo As Taras de Todos Nós (1981)47. Prado mostrou o roteiro de um episódio que havia escrito, Programa duplo, para o cineasta e diretor de fotografia Antonio Meliande. Ele o levou a um conhecido, dono de posto de gasolina, que aceitou produzir o filme. Seriam quatro episódios, de quatro diretores diferentes (além de Prado e Meliande, José Adalto Cardoso e Odon Cardoso). O produtor desistiu desse projeto e foi fazer outro filme, e, com isso, Prado e Odon levaram a proposta para a Spectrus. Sérgio Tufik, o dono, ainda queria fazer cinema, e, mesmo relutante no início a fazer uma ‘pornochanchada’, aceitou. Os quatro episódios foram reduzidos a três, Prado escreveu e dirigiu todos, tendo Odon como fotógrafo do filme. O longa é composto por O Uso Prático dos Pés, O Tesourinha e Programa Duplo.

46 Id. 47 Cf. Luiz Zanin ORICCHIO, Guilherme de Almeida Prado – Um Cineasta Cinéfilo, p. 110.

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Realizado com US$ 45 mil, quando, na época, as produções custavam, em média, o triplo, na própria Boca, As Taras de Todos Nós foi rodado em 18 dias, tendo uma lata de negativo por dia. Para cada episódio, seis dias, sendo que O Tesourinha demorou sete dias, deixando para Programa Duplo apenas cinco. Dirigido e produzido por desconhecidos, o filme precisava de atrizes de peso, que pudessem compensar. Além de Neide Ribeiro e da desconhecida Jocelaine Rodrigues, o filme contou com Matilde Mastrangi, na época, em seu auge – aliás, única atriz que participou de todos os filmes do cineasta. Prado a conheceu durante as filmagens de Palácio de Vênus. Segundo o cineasta, um dia, no refeitório, ela se sentou ao lado dele e disse: “quero ficar amiga sua, porque acho que você vai ser um bom diretor, e quero que você me convide para trabalhar com você.” Ao chamá-la para O Uso Prático dos Pés, ela teria retrucado: “Já decidi que vou fazer o filme. Só me convidam para papel em que o cara é apaixonado pela minha bunda; essa é a primeira vez que alguém me convida e o cara é apaixonado pelo meu pé!”48 Tal anedota já aponta para a recriação da típica comédia erótica feita pelo diretor, subvertendo as expectativas. O primeiro episódio, O Uso Prático dos Pés, narra a história de um vendedor de sapatos (Amilton Monteiro) fascinado por pés femininos. O problema é que ele não consegue encontrar um par perfeito. Um dia, uma moça com pé de beleza rara, Cláudia (Matilde Mastrangi), pede a ele uma sandália. Quando encontra, ela já havia ido embora. Ele então corre para alcançá-la, segue-a, e, no quarto dela, a seduz, com uma massagem especialmente desenvolvida para esses fins. Ela se entrega completamente a ele, mesmo sendo casada. Após saírem algumas vezes, o vendedor de sapatos se cansa da moça e parte em busca de novo romance. O segundo episódio, O Tesourinha, tem como tara os pelos pubianos. Joaquim Maria (Flávio Porto) é um viúvo, de vida metódica e triste, até o dia em que sua sobrinha órfã vai morar com ele. Criada de maneira muito livre, Mônica (Jocelaine Rodrigues) não tem problema em andar seminua, falar impropérios e perturbar a paz do tio. Quando, numa quarta-feira, o tio manda a moça dormir no porão, ela fica intrigada e resolve descobrir o motivo. Toda quarta-feira, Joaquim Maria levava uma prostituta a seu quarto, mantinha relações sexuais com ela, e ao fim, fazia um lacinho nos pelos pubianos da mulher e os cortava. Esses pelos eram, posteriormente, guardados em suas gavetas, onde abrigava uma coleção bem extensa. Mônica sente-se excitada por essa tara do tio e decide

48 Em entrevista para o autor, no dia 04 de maio de 2008.

50 se tornar parte da coleção. Seduz o tio, primeiramente, provocando-o – ele a escuta fazendo sexo –, para então ser direta. Durante o ato sexual, ele engasga com a dentadura e morre. No velório, ela coloca o laço com seus pelos nas mãos do defunto. O terceiro episódio, Programa duplo, narra a história de Paulo (Roberto Miranda), um funcionário de uma repartição pública, com um monte de processos acumulados. Recém-casado, não vê a hora de voltar à sua casa para fazer sexo com a esposa (Neide Ribeiro). O problema é que a esposa não quer nada com ele, há sempre outra opção: a novela, a cozinha, etc. A falta de sexo está tão impregnada nele que, ao ver um bocado de salas de cinemas exibindo filmes eróticos e outros tantos cartazes com mulheres nuas estampadas, resolve entrar numa sala especial, com uma sessão tripla. Lá, fica extasiado com a profusão de sexo na tela e começa a se masturbar. Vai para casa sedento por sexo, mas a esposa o esculacha. A rotina se repete. Começa a se imaginar com a esposa na tela – suas fantasias vinham cada vez mais à tona. Quando chega em casa, persegue a mulher até conseguir o que quer, fazendo sexo loucamente, de maneira espalhafatosa. No dia seguinte, feliz, trabalha como ninguém nunca viu e resolve todos os processos que estavam acumulados em sua mesa. Em casa, os sogros vão buscar a filha, pois ele havia pecado contra a moral dela (e todos ficaram sabendo, provavelmente pelo barulho). Nisso, ele abandona tudo e vira projecionista de cinema. Tanto O uso prático dos pés quanto O tesourinha são comédias eróticas, tais quais as produções típicas da Boca do Lixo: sexo, nudez, comédia, fetiches, erotismo exacerbado, usando-se de planos clássicos, narrador onipresente, e poucos cenários. O filme como um todo é bem diferente das demais produções de Prado, justamente por ser uma autêntica comédia erótica, mostrando a influência de cineastas como seu mentor Ody Fraga, em especial no rodrigueano O tesourinha. O episódio que aponta para uma forma diferente de pensar cinema em As Taras de Todos Nós é Programa Duplo, único que Guilherme de Almeida Prado considera digno de valor nos dias de hoje. Havia ali uma preocupação em refletir sobre o cinema paulista da Boca do Lixo de maneira muito espirituosa, calcada na metalinguagem. O plot já é uma referência explícita: o personagem principal é um frequentador de salas especiais, que vai ao cinema assistir às produções eróticas da Boca do Lixo. Vemos, em Programa Duplo, o filme pela ótica do público, que era majoritariamente masculino, ocupando as salas para observar mulheres nuas e cenas de insinuação sexual, muitas vezes se masturbando ou praticando o ato sexual dentro da sala. Essa referência é uma das poucas no cinema da Boca, pois reflete o seu próprio público, e foi logo percebida por

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Jean-Claude Bernardet em seu ensaio Os Jovens Paulistas: “Um personagem sexualmente insatisfeito busca compensação ao assistir a uma pornochanchada paulista de que o filme apresenta trechos, assim como, eventualmente, o espectador de As taras de todos nós busca.”49 O deboche presente no episódio nada mais é do que uma reflexão sobre público consumidor desse tipo de filme. Há duas possibilidades de se pensar tal encenação: a crítica contundente à alienação do público, que não vê nada mais do que o próprio interesse sexual nas telas, pouco se importando com o seu cotidiano, nem com a visão machista que muito dos filmes exploram; e a ‘pornochanchada’ vista de modo libertadora de suas amarras sociais, como algo que transcende a vida banal do público médio, ao colocar um personagem-espectador que se insere dentro dos filmes que assiste nos cinemas, assim como faz o público que assiste As Taras de Todos Nós e tantos outros filmes do gênero, dessa forma, criando uma identificação entre personagem e público. Para Nuno Cesar Abreu, pode-se “supor que os espectadores (...) tenham encontrado [nas pornochanchadas] canais de libertação psicológica ou, no mínimo, diversão lúdica em que se reconhecessem como seres eróticos”50. Guilherme de Almeida Prado, ao realizar Programa Duplo, brinca com isso. Mostra um personagem que se reconhece como ser erótico assistindo aos filmes que passeiam na tela, assim como o espectador de As Taras de Todos Nós se reconhece enquanto ser erótico. Porém, no terceiro episódio, isso vai mais além, porque o espectador passa a se reconhecer enquanto espectador, e se diverte com isso. Enquanto assiste trechos de Fêmea do mar, com Neide Ribeiro, que interpreta a esposa em Programa Duplo51, Paulo sente-se dentro da história. A esposa, na tela, sensual e erotizada é uma provocação a Paulo que, em casa, só o refuta sexualmente. O cinema é um lugar para imaginação fluir, em que você pode criar as histórias. Dessa maneira, ele se insere na história e passa a ser atuante e ter de fato uma presença e o poder sexual. A auto inclusão em seus filmes permeará toda a carreira de Prado. Em Programa Duplo, os filmes vistos pelo personagem Paulo no cinema são O império das taras, Palácio de Vênus e Fêmea do mar, do qual Prado foi assistente de direção. Para compor

49 Jean-Claude BERNARDET. Os Jovens Paulistas, p. 79. 50 Nuno Cesar ABREU, Boca do Lixo: cinema e classes populares, p. 153. 51 O aspecto metalinguístico nesse pedaço é muito forte. O personagem de Roberto Miranda vê no filme Fêmea do Mar a atriz Neide Ribeiro. E sua esposa em Programa Duplo é interpretada por Neide Ribeiro. É quase como se assistisse a própria esposa no filme; daí a criar-se a ilusão de assistir a esposa e se imaginar com ela. Guilherme de Almeida Prado costura essa história como uma grande brincadeira.

52 as cenas que vemos em As Taras de Todos Nós, o cineasta utilizou restos de negativos, podados da versão final. Quando vira projecionista, Paulo passa a colecionar trechos de filmes que lhe interessam, e o que vemos na tela são várias cenas dos dois episódios anteriores (O uso prático dos pés e O tesourinha), exibidos em cortes rápidos. O cineasta conta que, por aproximar seu filme da realidade dos espectadores, encontrou grandes problemas para exibi-lo. Já havia tido dor de cabeça por causa da censura, que queria cortar quase metade do longa-metragem, deixando-o desconexo – conseguiu liberar sem cortes apenas porque seu tio, Sérgio Cardoso de Almeida, era deputado federal –, mas quando o primeiro exibidor que viu o filme detestou, Guilherme quase desistiu. Foram nove meses entre a finalização do filme e a liberação da censura para um público acima de 18 anos. Para os exibidores a quem Guilherme mostrou seu longa-metragem, “o filme depunha contra o público por ter um personagem punheteiro. Que o público ia ficar com raiva do filme e rasgar as poltronas”52. Só conseguiu exibidor porque um amigo distribuidor mostrou apenas o cartaz e o trailer de As Taras de Todos Nós. Entrou em 15 salas de cinema, pelo circuito Cine Marrocos, e fez grande sucesso, com público crescente nas três primeiras semanas. Provavelmente, devido à campanha publicitária, que se apoiava nessa aproximação mal vista (“AS TARAS DE TODOS NÓS / VENHA VER A SUA!”), já presente no pôster desenhado por Jayme Cortez, e nos fetiches sexuais, um prato cheio para as produções da Boca (“O VERDADEIRO FILME SOBRE AS TARAS SEXUAIS. RECUSE IMITAÇÕES”53), presente nos anúncios de jornais. Segundo a Embrafilme, 241.636 pessoas54 foram ver o filme entre 22 de março de 1982, data de estreia do longa-metragem, e o final do ano, quando o balanço foi fechado. Prado estima um público quatro vezes maior ao longo dos cinco anos em que o filme ficou em cartaz, até 1987, uma semana antes de vencer o certificado de censura. Conta que 1 milhão de pessoas foram conferir seu filme nos cinemas. O longa levou uma menção honrosa no Prêmio APCA de 1983, pelo espírito efetivo do filme. A menção foi arquitetada por Rubém Biáfora, conforme relata Prado: Morreu a Lola Brah e As Taras foi seu último trabalho. O Biáfora ficou intrigado com o sucesso de público do filme. Foi ver a Lola e gostou do filme. Mas já estava na penúltima semana em cartaz e não tinha sentido escrever uma crítica; então insistiu com demais críticos nessa Menção Honrosa, que acabou sendo muito importante para mim.55

52 Luiz Zanin ORICCHIO, Guilherme de Almeida Prado – Um Cineasta Cinéfilo, p. 123. 53 Os textos em caixa alta são do pôster. 54 Cf. A reportagem de O Estado de S. Paulo, Os campeões de bilheteria. 55 Luiz Zanin ORICCHIO, Guilherme de Almeida Prado – Um Cineasta Cinéfilo, p. 126.

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Guilherme de Almeida Prado fez, em seguida, Flor do Desejo (1984), uma produção própria, utilizando-se de todo o sistema da Boca. Com o sucesso de As Taras de Todos Nós, o cineasta achou que a Spectrus iria querer fazer um filme mais sério – já que essa sempre fora a pretensão. Porém, ficaram tão felizes com a bilheteria arrecadada, que queriam outra comédia erótica, e recusaram o roteiro de Os Outros que se Danem, de Prado, baseado no conto Sabrina de Trotoar e de Tacape, de Roberto Gomes. Rebatizado como Flor do Desejo, o projeto levou o cineasta a abrir sua própria produtora, a Star Filmes, em 1982, homenagem à companhia cinematográfica de Georges Méliès, Star Film, fundada em 1896, na França. Convencera o pai a entrar com parte do dinheiro, e, assim, poderia concorrer na Embrafilme ao restante. O pai entraria com 60% e a Embrafilme com 40%. Guilherme concorreu, porém assinaram contrato com apenas 28 dos 183 inscritos – e Flor do Desejo ficou de fora56. Chateado com a decisão da Embrafilme, o diretor resolveu fazer o filme com o que tinha – 60% do orçamento, financiado pelo pai, equivalente a US$ 100 mil –, filmando-o no final de 1983, em São Paulo e em Santos. O filme conta a história de Gato (Caíque Ferreira), um estivador no cais de Santos, e de Sabrina (Imara Reis), uma prostituta. Cansada de ter de pagar a cafetina Lady (Tamara Taxman), deixa a casa Flor do Desejo. Após Gato salvar Sabrina de um estupro, iniciam uma parceria, que começa com pequenos bicos e assaltos, até dividirem a cafetinagem de algumas meninas novas no cais. Lady, querendo Sabrina de volta ao Flor do Desejo, chantageia-a. Sabrina descobre que Lady está envolvida com drogas. Não conseguindo dissuadi-la da chantagem, Gato e Sabrina a sequestram, exigindo o dinheiro do deputado Mauro Fulam (Mário Benvenutti), ligado à posse de tóxicos. Conseguem e fogem. Sem parte do orçamento para filmar, o dinheiro acabou antes, fazendo com que o cineasta não filmasse os últimos 20 minutos da trama, fechando o filme na moviola. Dentro da filmografia de Guilherme de Almeida Prado, Flor do Desejo funciona como um filme de transição entre a comédia erótica As Taras de Todos Nós e os policiais farsescos posteriores, caso de A Dama do Cine Shanghai – entre a Boca do Lixo e o modelo de financiamento estatal.

56 O cineasta conta: “Pedi uma reunião com o diretor da Embrafilme, Roberto Parreiras, para saber o motivo de não quererem assinar comigo. O Parreiras foi muito objetivo e disse que eu não tinha competência para fazer aquele filme: ‘Você devia concorrer a curtas-metragens primeiro. Se concorrer a curtas-metragens, a Embrafilme financia’. Eu disse: ‘Escuta, acabei de fazer um longa que está fazendo sucesso nas bilheterias’. E ele disse que pornochanchada não era considerada filme pela Embrafilme, que o roteiro que eu tinha apresentado era muito pretensioso e eu não teria competência para dirigir esse roteiro.” Cf. Luiz Zanin ORICCHIO. Guilherme de Almeida Prado – Um Cineasta Cinéfilo, p. 128-9.

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Flor do Desejo se inscreve dentro da tradição do filme policial, com uma trama sobre criminalidades (meretrício, tóxicos), com eventuais conflitos armados, na chave farsesca (Prado raramente filma em tom realista e sério; seu interesse é a construção atmosférica cinematográfica). A tradição que interessa principalmente ao cineasta é a dos policiais baratos, dramas criminais e filmes de gângsteres, dos anos 1930, 1940 e 1950 e feitos nos EUA, bem como as crônicas policiais dos jornais populares impressos e radiofônicos brasileiros. O longa, porém, não abre mão do recurso mercadológico mais frequente ao filão dos filmes eróticos da Boca do Lixo: bastante cenas de nudez feminina e de insinuação sexual, recorrendo a fetiches diversos. Expediente abandonado pelo cineasta nos filmes seguintes, aliás. Além do sexo, Flor do Desejo faz também uso dos tipos e estereótipos, prática comum aos filmes da Boca57. O sexo, claro, não é gratuito dentro da trama, considerando a profissão da protagonista, e nem deixa de ser filmado com a inventividade costumeira que o cineasta emprega na criação cênica de seus filmes. Em determinado momento do filme, Prado aposta de maneira lúdica numa transa imaginária entre Gato e Sabrina, num cenário de fundo branco só com a cama, onde são cobertos e envoltos de pequenas bolinhas brancas de isopor e, em alguns momentos, com bolhas de sabão. A atmosfera é uma influência do imagético cinematográfico do diretor francês Alain Resnais e de seu O Ano Passado em Marienbad (L’année dernière à Marienbad, 1961). Além da constante nudez, outro ponto liga Flor do Desejo à Boca do Lixo. Mesmo que a produção seja feita por Prado, com investimento do pai, os recursos humanos são essencialmente de profissionais da Boca do Lixo. Na equipe técnica, Antonio Meliande (fotografia), Jair Garcia Duarte (montagem), Claudio Portioli (fotografia adicional), Odon Cardoso (fotografia adicional), Odair Guarany (assistente de câmera), Miro Reis (chefe eletricista), entre outros58. A construção da atmosfera farsesca se dá, especialmente, por conta das inserções metalinguísticas feitas pelo diretor, que provocam o espectador a criar certo

57 Esse recurso, explica Nuno Cesar Abreu, é usado de tal forma que estabeleça uma relação de credibilidade entre o espectador e o filme: “A comédia erótica brasileira fixou um conjunto de personagens, a partir de uma galeria de tipos definidos (clichês), em torno dos quais os plots eram desenvolvidos.” Cf. Nuno Cesar ABREU. Boca do Lixo: cinema e classes populares, p. 145. 58 O filme ainda teria Sandra Bréa como Sabrina, porém, devido aos problemas com drogas, prejudicando sua performance e fazendo com que sempre se atrasasse, Prado resolveu demiti-la após dez dias de filmagem. Bréa foi, inclusive, a razão de Odon Cardoso dar lugar a Meliande na fotografia, pois atribuía a ele sua má performance. Como Imara Reis já conhecia o papel, Prado resolveu apostar na atriz, à época desconhecida. O filme traz também uma ponta de Adilson Barros, em sua estreia no cinema. O ator ficaria depois famoso ao protagonizar A Marvada Carne.

55 distanciamento do material, permitindo-lhe vislumbrar o que vê como um filme, um produto audiovisual. Nesse sentido, Flor do Desejo inaugura um caminho pelo qual o diretor trilha em toda sua carreira, a do cineasta das referências e dos diálogos metalinguísticos que cria, em suas diversas camadas. O filme já abre com um intertítulo, dizendo “Cena Final”, referenciando procedimento corriqueiro aos filmes silenciosos, e situando a história. Em seguida, vemos uma gravação de reportagem para televisão, uma entrevista exclusiva dada pelos bandidos acerca de um crime. Após isso, vemos Gato dentro do cinema, assistindo a uma sessão dupla. Ele vê um faroeste [Desafio à Bala (Requiem for a Gunfighter, 1965)] e um filme de kung fu [Fúria do Dragão (Jing wu men, 1972)], gênero que invadiu os cinemas brasileiros em meados dos anos 1970. Característica essa, aliás, constante na carreira do cineasta, que, em todos os seus longas- metragens, sempre filma alguém assistindo a um filme dentro de uma sala de cinema. Posteriormente, quando um colega cafetão relata uma libertinagem, Gato se vê em seu lugar na ação, primeiro como herói de faroeste e depois de um filme de kung fu.

Figuras 4, 5 e 6 – Metalinguagem em Flor do Desejo: a cartela de abertura (4), e Gato emulando os filmes que vê, faroeste (5) e kung fu (6)

Para além desses procedimentos, que serão muito intensificados nos filmes porvir do cineasta, Prado trabalha fortemente o gênero musical em Flor do Desejo. Quase todas as canções presentes no longa são diegéticas e mais de um par delas são interpretadas por suas personagens, com destaque para a participação de Cida Moreira, dona de uma pensão de meretrizes, onde Sabrina passa a viver após deixar o Flor do Desejo. Num dos momentos mais interessantes do filme, Cida canta I Cover the Waterfront, música de Johnny Green, com letra escrita por Prado para fazer parte da trama: “procuro no cais do porto/ alguém para amar/ mas tudo que encontro/ é o céu azul e o mar”. O musical é o gênero por excelência que trabalha o distanciamento do espectador por conta da artificialidade das ações. O filme ainda conta com participação do grupo musical Premeditando o Breque, ligado, assim como Cida, à Vanguarda Paulista.

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Para além das referências e do gênero narrativo, outra característica aponta para o cinema em que Prado se especializou. O gosto pela noite e pelos cenários e objetos pouco iluminados, contrastados por luzes coloridas e artificiais (também típicas das noites paulistanas oitentistas), como sinais luminosos em neons.59 O cais do porto de Santos representa a luxúria, a degradação, o vício, o sexo, o jogo, o álcool, o impuro, casando com a construção imagética proposta pelo cineasta. Em entrevista à época, Prado explica a escolha de Santos: “[O filme] mostra uma coisa da magia do porto, das prostitutas, bem em cima do brega. Santos é superbrega. É uma crônica desse cotidiano da desonestidade da cidade.”60 Flor do Desejo é o filme mais político do cineasta. Não faz grandes discussões a respeito do plenário, mas mostra a corrupção política e policial, misturando-se ao crime para conseguir o que querem. O deputado Mauro Fulam é ainda pior, pois está diretamente envolvido com o tráfico de drogas. Realizado em época de reabertura política e de crise financeira, o cineasta faz uma caricatura do então candidato à presidência da situação, Paulo Maluf, dando a seu personagem como nome o anagrama de Maluf, Fulam. O diretor é mais explícito nas considerações políticas nos créditos, em que metade da tela é ocupada por manchetes de jornais que invocam os problemas econômicos e financeiros do país, assim como os políticos. O filme estreou no 12º Festival de Gramado, em abril de 1984. Foi exibido ainda em no 17º Festival de Brasília, no final de outubro, de onde saiu com os prêmios de melhor cenografia e de melhor atriz coadjuvante (Cida Moreira). No meio do caminho, o filme foi lançado em São Paulo no dia 04 de outubro. A coluna de estreias de Carlos M. Motta em O Estado de S. Paulo relata a chegada com atraso. Escreve ele: “Sem anúncio nos jornais na véspera e no dia do lançamento, sem cartaz na véspera da estréia no cinema exibidor [Cine Ipiranga 1], começou a ser apresentado quinta-feira passada”61. Não à toa, o filme, mesmo com recepção crítica positiva, amargou nas bilheterias, onde estima-se

59 A sessão Debates do Jornal Tarde traz essa questão para a discussão: “A qualidade mais ressaltada no filme de Guilherme (...) foi a tentativa exitosa de recuperação da identidade nacional, em meio ao vazio cultural que assola o País. O diretor completou a observação afirmando que ‘já basta a própria linguagem cinematográfica, totalmente importada. Pelo menos a temática tem que ser brasileira.’ E neste sentido, consenso geral de público, o filme consegue ser 100% competente. É a cafonada dos cabarés, como ressaltou alguém, os neons, a cenografia onde a farda é extremamente bem explorada e a bandeira brasileira, o deboche. ‘É o marginal que descobriu o basfond e vive suas delícias nos braços da marginalidade’, como foi definido o personagem principal, um estivador desempregado, por [Antônio Jesus] Pfeil.” Cf. O mundo dos cabarés em “Flor do Desejo”. 60 ‘FLOR do desejo’, uma crônica filmada da corrupção no Brasil. 61 Carlos M. MOTTA. Documentário, um dos três novos nacionais.

57 ter feito 20 mil espectadores62. O cineasta lamenta: “O longa-metragem acabou ficando meio em cima do muro. Não tinha a Embrafilme, naquela época que precisava ter. A Boca já não sabia mais como tratar o filme. Acabou ficando no limbo.”63 O fracasso comercial – em tempos de derrocada da Boca – o levou a seguir outro caminho, mais devedor ao seu caráter cinéfilo e referencial. Fez, assim, A Dama do Cine Shangai (1988), com apoio da Embrafilme.

2.2.3 Ícaro Martins & José Antonio Garcia

Ícaro Martins (Francisco Cataldi Martins, Santos, 1954) e José Antonio Garcia (José Antonio de Barros Garcia, São Paulo, 1955-2005), ao contrário de Correia e de Prado, tiveram educação formal em cinema, tendo cursado faculdade na ECA/USP, em turmas diferentes. Martins era cinéfilo, frequentava desde criança o Clube de Cinema de Santos, uma espécie de cineclube em que os pais eram sócios, onde teve contato com diferentes cinematografias para além da norte-americana. O cinema brasileiro entrou mais tarde na vida do futuro diretor, assim como o desejo de fazer cinema, conforme conta: Quando era pequeno, na época das matinês, meu sonho era ser lanterninha de cinema. Achava o máximo da profissão, podia ver filme de graça o dia inteiro. Nem sabia que existia a profissão de cineasta. Comecei a perceber isso com uns 16 anos de idade, mas nem sabia que existia uma escola de cinema. Fiz cursinho para arquitetura. Logo depois de ter feito a inscrição para arquitetura, vi uma matéria no jornal sobre a ECA, que tinha o curso de cinema havia uns 4, 5 anos. Quando vi, quis fazer cinema. Quando comecei a estudar na ECA, queria ser técnico de som, queria trabalhar com cinema, mas não pensava necessariamente em ser diretor. Foi acontecendo.64

Ele entrou no curso de cinema da USP no segundo semestre de 1973, único ano em que teve exame em sua metade, para o período noturno. Em sua turma, futuros profissionais como André Klotzel, Renato Neiva e Uli Brum. O curso de cinema era formado por dois anos de básico em comunicação (primeiro ano) e em artes (segundo ano) e só então as disciplinas específicas de cinema começavam. Para Martins – e para quase todos os alunos de cinema –, o diferencial da ECA era contar, como professor, com Paulo Emílio Salles Gomes, que priorizou o entendimento do cinema brasileiro. O cineasta começou a frequentar suas aulas logo no primeiro ano, como ouvinte. Ele

62 Cf. Márcia Lúcia FRÓES. Noites de suspense em Gramado. 63 Em entrevista ao autor, em 04 de maio de 2008 64 Em entrevista para o autor em 24 de setembro de 2014.

58 comenta: “Nessa época, tinha uma visão totalmente voltada para cinema europeu. Cinema para mim era Godard, Bergman, ou então Cinema Marginal. Um ou outro filme norte- americano, gostava dos de gângsteres (risos). Minha visão era ainda bem culturalista.”65 No final de 1973, Martins trancou o curso por um semestre para viajar pela Europa, na época muito barato por conta da situação econômica do Brasil, com o chamado milagre econômico. O período foi importante para o cineasta, pois foi quando pode entrar em contato com o cinema soviético e com o Cinema Novo, entre outros, proibidos no Brasil. Graduou-se em 1979. Durante o período de estudo, realizou quatro curtas. Pela ECA, fez o documental coletivo Rock (1976), com Cristina Santeiro, Joel La Laina e Helena Bastos, em 16mm, e o misto de ficção com animação O Tamanduá Taí - Ou Plus X + 85 B (1980), filmado em 1978 em 35mm. Paralelamente, fez para a Federação Paulista de Cineclubes (FPC) o documental Favela (1976). Na época, Martins trabalhava na distribuidora Dinafilmes (Distribuidora Nacional de Filmes Brasileiros), criada pela FPC em 1974, que teve a ideia de criar um núcleo de produção. Por conta própria, ainda dirigiu a ficção Tatuagem (1980), pensando na Lei do Curta. Os dois últimos filmes contaram com equipamento da ECA para realização. Ainda aluno, trabalhou como assistente de direção na primeira etapa da filmagem, em 1977, de Maldita Coincidência . Foi quando conheceu o curta Marilyn Tupi (1978), de José Antonio Garcia. Zé Antonio também era frequentador assíduo das salas de cinema desde cedo, influenciado pelos tios que o levavam a sessões noturnas. Gostava de filmes dos mais diversos gêneros e origens, acompanhava os textos de O Estado de S. Paulo e do Jornal da Tarde, e tentava ver tudo que estava em cartaz. Aos 12 anos, associou-se à Cinemateca Brasileira. Estudou no Ginásio Vocacional Oswaldo Aranha, onde participou do grêmio estudantil organizando ciclos de cinema. Sempre quis ser cineasta, mas, por pressão familiar, além de fazer vestibular para cinema na ECA, prestou também para direito na PUC-SP. Foi aprovado em ambos os cursos, iniciando o ano letivo no começo de 1973, mas só ficou uma semana na PUC. Cansado de esperar pela oportunidade prática na ECA, fez em super 8, em Campos do Jordão, numa viagem de final de semana, seu primeiro curta-metragem, o experimental Fragmento (1973). Paralelamente ao curso, trabalhou como fotógrafo profissional freelancer para revistas e moda e foi faz-tudo no jornal Destaque Artes, inclusive crítico

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59 de cinema. Em julho de 1976, filmou seu segundo curta, a ficção Hoje tem Futebol (1977), fotografado por André Klotzel e montado por Alain Fresnot e Ana Elisa Bueno, e com várias participações especiais no elenco, como os jogadores de futebol Zé Maria, Wladimir e Pita, parte do e com Tânia Alves. Garcia contou com a estrutura da ECA para filme, pouco antes de abandoná-la. O filme posteriormente foi reeditado, de 20 para 12 minutos, para que fosse lançado comercialmente, via Lei do Curta, sendo vendido pela Titanus, sediada na Boca do Lixo. Montou, em seguida, a produtora Grama Filmes, com o amigo da ECA Dudu Ferreira, para produzir curtas. Foi quando fez a ficção Marilyn Tupi (1978), único curta que realizou pela produtora. O filme ficou com 30 minutos, sem possibilidade de redução segundo Garcia, o que inviabilizou sua comercialização, ainda que o tenha exibido em circuitos alternativos e na ECA – onde Ícaro Martins assistiu. Garcia ainda fez para a Titanus o documentário A Bola na Escola (1979), já contando com Martins no som direto, e Loucura (1979), misto de documental e ficção. Marilyn Tupi inspirou Martins, que teve uma ideia de fazer um longa a partir dele. Através da amiga em comum, Cristina Santeiro, ele procurou e conversou com Garcia, que achou a premissa interessante, e logo escreveram juntos uma trama policial, com apelo erótico, dividida em episódios e intitulada O Homem Ideal vs. A Mulher Fatal. Era a história de um casal, em que o sujeito, careta, estava sendo drogado pelo médico, que era amante da mulher dele, a modelo Marilyn Tupi. O sujeito era diabético e o médico lhe dava amostras de insulina adulterada, provocando alucinações com a própria a morte. Independente do fato de estar sendo drogado, as visões que ele tinha eram verdadeiras. Cada capítulo seria centrado em um dos personagens. O primeiro seria focado no sujeito, para o qual queriam Nuno Leal Maia. O segundo era focado na Marilyn Tupi, trazendo a perspectiva feminina. O terceiro tinha como personagem principal o médico. Ícaro Martins relata como chegaram à Boca do Lixo: Na época, tínhamos feito o orçamento, que dava Cr$ 11 milhões. Não era um orçamento absurdamente caro. Para todas as pessoas que recebiam a gente, falávamos que tínhamos seis. Fomos falar com absolutamente todo mundo. Os Massaini, produtores de publicidade, Enzo Barone, Lynxfilm, , Pedro Rovai, e dois meses depois estávamos na Boca do Lixo. O produtor para quem o Zé Antonio já tinha feito um curta topou. Era o Adone Fragano, da Olympus.66

66 Id.

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Assim como havia sido para Guilherme de Almeida Prado, a Boca do Lixo foi o último recurso para a dupla de iniciantes e o único lugar que lhes abriu a porta. Na época, a Olympus tinha acabado de ser constituída. Adone Fragano era executivo da Paris Filmes e sempre trabalhou próximo à Fama Filmes/Titanus, antes de abrir sua própria companhia. Martins e Garcia não conseguiram levantar os seis milhões que diziam ter e contaram a Fragano, que deu duas sugestões: diminuíam o orçamento ou apresentavam outro projeto, menor, que custasse no máximo seis milhões. Como complicaria diminuir o orçamento de O Homem Ideal vs. A Mulher Fatal, resolveram seguir o conselho do produtor. Segundo Martins, “um filme com no máximo três locações para filmar em três semanas e que tenha, pelo menos, dezessete cenas de sexo, sendo que seis mais esticadas e uma situação de lesbianismo”67. Com o lucro desse filme, fariam então O Homem Ideal vs. A Mulher Fatal. Desesperados para filmar, em uma semana entregaram duas sinopses: Pinta como eu pinto, sobre pintores trabalhando no apartamento de um jogador de futebol, espiando a vizinha, e cada um contando o caso para os outros; e A Voyeuse. Fragano escolheu o último, com a condição de trocarem o título. A Voyeuse se transformou em A Vouyeuse e a Prostituta e em O Buraco do Amor, antes de ser batizado com o título que marcaria a estreia em longas da dupla, O Olho Mágico do Amor (1981). O roteiro foi escrito a quatro mãos em um mês e meio e o que era um filme de episódios passou a ser uma codireção. As cenas eram divididas entre os dois, enquanto um dirigia o outro fazia as vezes de assistente de direção. José Antonio Garcia dirigiu as cenas da casa da protagonista, Ícaro Martins as do escritório e as do quarto da prostituta, que consideravam as melhores, foram repartidas entre ambos. Foi filmado em junho de 1981, durante três semanas, com aproximadamente US$ 400 mil e 21 latas e negativo, o que influenciou na escolha das locações: a casa de Vera é onde José Antonio Garcia morava à época, o escritório é o da Olympus e o quarto de Penélope é o depósito de equipamentos da produtora Cinedistri. Martins e Garcia escolheram equipe e elenco a partir de uma lista tríplice. Eles apresentavam três nomes e Fragano escolhia um. Assim foram escolhidos os experientes boqueiros Antonio Meliande como diretor de fotografia e Jair Garcia Duarte como montador, além da inexperiente Cristina Mutarelli, ligada à turma da ECA, como diretora de arte. O Olho Mágico do Amor acompanha Vera Gatta (), uma jovem de 17 anos que reside num ambiente opressor de classe média e que consegue um emprego

67 Lila FOSTER. Da Boca ao Bandido: Entrevista com Ícaro Martins.

61 como secretária na Sociedade Paulista de Amigos da Ornitologia, localizada na Rua do Triumpho, coração da Boca do Lixo. Como o patrão (Sérgio Mamberti) se ausenta bastante, Vera troca a decoração de lugar e descobre um orifício na parede. Do outro lado, no apartamento vizinho, a prostituta Penélope (Tânia Alves) faz programas com os mais diversos tipos. Seduzida, Vera passa a observar o cotidiano de Penélope sempre que possível, excitando-se com essa realidade bastante libertadora. Um dia decide encontrar a prostituta, mas se depara com seu cafetão (Ênio Gonçalves) no caminho, que a estupra. Em depressão, Vera se demite. O prazer voyeur, porém, não lhe sai da cabeça, e ela volta ao escritório, matando o cafetão e enfim se encontrando com sua musa. O Olho Mágico do Amor estreou em São Paulo em 08 de março de 1982, conseguindo expressiva bilheteria. Em seu ano de lançamento, foi a décima maior brasileira do ano, com 202.654 espectadores68 – alcançando até o final do seu período de exibição, estima-se, 700 mil69. Exibido no 10º Festival de Gramado, ganhou o prêmio de melhor atriz coadjuvante para Carla Camurati. O filme foi bem recebido pela crítica, em especial a paulista, e levou quase todos os prêmios da APCA em 1983, incluindo os de melhor filme, direção, argumento, atriz (Tânia Alves e Camurati), atriz coadjuvante (Cida Moreira), fotografia, cenografia/figurino, montagem e trilha musical. Os críticos paulistas destacaram a ousadia e a qualidade da obra contrapondo-a a outras produções da Boca do Lixo, tidas como medíocres. Rubem Biáfora estampou nas páginas do Estadão: “Inacreditável, inesperado. De onde menos se poderia esperar (...) resultou um filme mágico, que é o que de mais feliz, consistente e artístico o cinema brasileiro produziu nos últimos 30 anos.”70 O Olho Mágico do Amor conseguiu, assim, ultrapassar a barreira para filmes da Boca do Lixo. Além da bilheteria, chegou a festivais de cinema importantes, que legitimaram a obra, conseguindo ampla repercussão crítica. O longa trabalha com elementos típicos aos filmes eróticos da Boca do Lixo, como a abundância de nudez feminina e cenas com insinuação de sexo, além do uso de convenções narrativas de gêneros – no caso, o melodrama – e da busca pela comunicação com grande público, entre outros. Os diretores, porém, não se contentam em reproduzir padrões. O filme retrata a questão sexual sem qualquer moralismo e sem se intimidar por

68 Cf. A notícia de O Estado de S. Paulo, Os campeões de bilheteria. 69 Martins conta que foi a época em que mais ganhou dinheiro na vida. Só a bilheteria do Rio de Janeiro pagou o filme. Ele tinha 7,5% do filme, Garcia um pouco mais. 70 Rubem BIÁFORA. Dois diretores paulistas e a melhora fita nacional dos últimos trinta anos.

62 tabus. Cenas que envolvem lesbianismo, travestis, sodomia, entre outras práticas e fetiches, são filmadas com naturalismo, sem condenações. O caráter libertário é especialmente explorado na personagem Vera, que se emancipa sexualmente ao ver o exemplo dado pela prostituta. O sexo passa a ser, assim, um prazer lúdico, quase escapista, frente ao seu descontentamento para com os pais e para com o namorado, inclusive frente à dor do estupro sofrido. Assume assim, explicitamente, o olhar feminino sobre a temática, acenando para a igualdade entre gêneros e subvertendo a lógica dos filmes da Boca do Lixo, que tem um olhar bastante masculinizado. Da mesma maneira, os diretores se utilizam de uma prática recorrente de caráter invasivo, o voyeurismo, e a ressignificam em um libelo da liberdade. Martins conta mais sobre a construção desse imaginário: Você tem o universo de uma menina caretinha, de uma família careta, e de repente o voyeurismo vira uma válvula de libertação. Ela não é recalcada. Ela transa com o namorado. É uma coisa de sair desse mundo classe média e careta e de certa maneira dar uma enlouquecida. O que grilava a gente era que as pornochanchadas, apesar de colocar um monte de cenas de sexo, eram super moralistas, super estereotipadas. Os homens eram sacanas, as mulheres também. No final, o viado era uma bicha caricata, quem sacaneava no fim depois se ferrava. Havia esse moralismo subjacente. Queríamos fazer uma pornochanchada que não fosse moralista, que fosse o contrário, que fosse para outro caminho.71

Para construir as diferentes perspectivas de Vera, Martins e Garcia contrastam duas abordagens. Por onde a jovem circula, como sua casa, o escritório e a rua, exploram um viés mais realista com atuações naturalistas e fotografia e arte verista – ainda que, narrativamente, haja cenas mais deslocadas, como quando a atriz e cantora Cida Moreira, que faz a mãe, canta My Man, de Billie Holiday. As cenas no quarto de Penélope, em que tudo que o espectador observa é mediado, diegeticamente, pelo olhar de Vera, ganham contorno mais lúdico e fantástico, com iluminação artificial (incluindo neons), arte burlesca e com atuações mais performáticas. Martins aponta que o pressuposto do filme era de que o quarto da prostituta seria uma projeção da imaginação da cabeça daquela menina. Por isso a proposta de linguagem era trazer o universo do sonho, o que a atraía. A intenção sempre era deixar no limite entre a verdade e a imaginação da personagem. Os cineastas extrapolam essa vertente na última cena, quando Vera e Penélope enfim se encontram. O cenário deixa de ser o quarto e elas passam a dividir a cama num estúdio de filmagem, com fundo infinito, onde, após transarem, celebram na presença de todo elenco, deixando em aberto se o encontro das duas é imaginação de Vera ou não. A

71 Em entrevista para o autor em 24 de setembro de 2014.

63 cena, que contradiz o caráter imersivo do cinema popular, traz a tônica da metalinguagem, bastante presente no cinema paulista dos anos 1980.

Figuras 7, 8 e 9 – O contraste de ambientes (7 e 8), em O Olho Mágico do Amor, e a metalinguagem escancarada (9)

Repleto de referências ao cinema e ao processo de criação de O Olho Mágico do Amor, ainda que nenhuma tão explícita quanto o final, o filme buscava apontar conscientemente outros caminhos na Boca do Lixo. Garcia conta: Dá para entender o interesse dos produtores nessa premissa. Deixamos que eles pensassem o filme por este viés da pornochanchada – para nós, ele representava muito mais. Nunca tive nada contra o gênero. (...) eu era rato de cinema, via de tudo, incluindo as chanchadas. Mas acho que o motivo pelo qual O Olho Mágico do Amor foi tão bem-sucedido, tanto de crítica quanto de público, é que havia ali um diferencial, uma outra ambição, uma outra abordagem. E todos notaram. O Olho Mágico do Amor, na verdade, simbolizava a nossa tomada da Boca. Era aquele espírito de botar para quebrar, mostrar a que veio, dar a cara a tapa. Uma tentativa de um cinema possível, uma alternativa ao que se fazia na ECA, uma alternativa ao que se fazia na Embrafilme. E, com nossos amigos, nossas referências e nosso universo, fazíamos um filme que interessava aos produtores, sim, mas que também tinha a nossa cara. Não era um trabalho de encomenda.72

72 Marcel NADALE. José Antonio Garcia – Em Busca da Alma Feminina, p. 74.

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Onda Nova (1983), o filme subsequente da dupla, segue a mesma tônica de O Olho Mágico do Amor quanto ao retrato do sexo. Para José Antonio Garcia, era radicalização: “O plano de tomar a Boca e fazer um cinema que mostrasse a nossa cara, iniciado em O Olho Mágico do Amor, aqui é levado às últimas consequências.”73 O longa acompanha um time semiprofissional de futebol feminino, recém-criado, o Gayvotas F. C., apoiado pelo Corinthians. Para além dos dramas envoltos no futebol e na tentativa de construir um time feminino, Onda Nova mostra a vida de algumas jogadoras em suas desventuras pela vida. Rita (Carla Camurati), rica, também atriz, chacrete74, obcecada pelo cineasta Walter Hugo Khouri, tem crises de ciúmes de seu namorado. Lili (Cristina Mutarelli) se rebela com seus pais que não aceitam que ela jogue futebol e se muda para a casa de Neneca, capitã do time que abriu sua morada para todas. Batata (Regina Carvalho) engravida de um famoso futebolista e busca levantar dinheiro para um aborto. Zita, filha da taxista Zazá (Cida Moreira), que a apoia em tudo, vive um romance com Vera (Vera Zimermann). Com vários personagens, o longa tem uma estrutura narrativa bastante anárquica, sem construir um roteiro bem amarrado. A história de Onda Nova é solta, episódica, sendo o espectador o responsável por criar vínculos entre os diversos eventos. Esse espírito anárquico na forma apenas reflete seu conteúdo. O longa se pretende uma colagem sobre a juventude paulistana, conversando e se opondo assim ao registro que o cinema carioca fazia dos jovens, em filmes como Menino do Rio (1981), de Antônio Calmon, e Bete Balanço (1984), de Lael Rodrigues, retratos edificantes sobre a juventude, repletos de música, praia, esportes etc. Onda Nova, ainda que também seja uma comédia juvenil, é muito mais livre e inconsequente. Apresenta seus dramas sem se importar com uma moral superior que dita o comportamento de seus personagens e sem amarras quanto a sexo, nudez, drogas e afins. Vemos assim cenas de coito entre homens e mulheres, entre homens, entre mulheres, troca de casais e outras tantas práticas sexuais, em sequências bastante ousadas e gráficas, quebrando tabus – a cena em que dois homens transam é um destaque a parte nesse sentido; nunca a Boca (ou o cinema brasileiro comercial de modo geral) registrou tal evento de maneira tão longa e expositiva até então. Assim como aconteceu em O Olho Mágico do Amor, Ícaro Martins e José Antonio Garcia filmam as cenas de sexo com bastante naturalidade, sem qualquer estigma ou preconceito.

73 Ibidem, p. 109. 74 A personagem é inspirada em Bia Whitaker, chacrete que vinha de uma tradicional família paulista.

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A continuidade da investigação da dupla sobre a liberdade sexual vai além da ousadia no registro das cenas e perpassa a discussão sobre gêneros. Logo no começo do filme, vemos homens e mulheres jogando, juntos, uma partida de futebol. Em um time, todos vestidos de homem; no outro, todos de mulher. O fato de abordarem um time de futebol feminino, à época muito marginalizado e insipiente, vem dessa proposta. O futebol sempre foi tido como um esporte essencialmente masculino e aqui é visto pelo prisma da mulher. Assim como também uma mulher ganha a vida como taxista, outra profissão atrelada a homens. Ocupações, aliás, vistas como masculinizantes, que supostamente apontavam – ou influenciavam a – homossexualidade da mulher. Em Onda Nova, a questão homossexual não é vista de maneira determinista. Ser gay independe do caminho profissional optado. O ponto mais interessante nessa relação que o filme estabelece com o gênero talvez seja na composição dos pais de Lili. O pai (Luis Carlos Braga) é submisso e passa o filme fazendo tricô, enquanto a mãe é autoritária e controladora. A mãe, aliás, é feita pelo ator Patrício Bisso, bastante feminino, famoso por personagens travestidos. O cineasta José Antonio Garcia comenta sobre essas opções: O objetivo geral do filme era brincar com os papéis: os papéis que homens e mulheres supostamente exercem na sociedade. Como parte da nossa crítica se concentrava contra aqueles que impediam as mulheres de se expressarem no esporte, espalhamos ao longo de Onda Nova várias referências trocadas do que se acredita ser masculino ou feminino. (...) A Tânia [Alves], aliás, protagoniza duas ironias nada sutis a respeito da ambigüidade sexual que estávamos abordando. Primeiro, ela faz uma proposta indecente bem sugestiva ao marido, oferecendo-lhe junto uma gilete. E, em outra cena, entoa Vale Tudo, do Tim Maia, no clube New Wave, onde as garotas vão para namorar e se divertir. Vale o que quiser, só não vale homem com homem, nem mulher com mulher, ela canta. E, enquanto isso, duas meninas do time estão se beijando na pista... A gente fez questão de mostrar que, assim como havia garotas heterossexuais jogando futebol, também havia homossexuais, sem nenhum problema ou constrangimento. Eram meninas superfemininas. Uma delas é a filha da taxista, que, brincando com a velha associação entre homens, carros e sexo, pega emprestado o fusca da mãe para poder transar com a namorada no banco de trás. Há também outro casal homossexual: os dois namorados da personagem da Cristina Mutarelli. Próximo do final do filme, eles deixam de disputá-la e protagonizam entre si uma cena de amor. Outro tabu que quebramos era o do nu masculino. Há um machismo que até hoje prega facilmente o nu da mulher no cinema, mas nunca o do homem. (...) As garotas do Gayvotas também apareciam peladas. O Onda Nova carregava um comportamento diante da nudez que era muito típico da minha geração. Aliás, hasteava várias outras bandeiras da nossa juventude. Ele fala muito sobre ir contra a opinião de seus pais e fazer o que se quer – pode ser futebol, no caso delas, ou cinema, no meu, ou seja lá o que for. Está lá tudo aquilo pelo que a gente brigava: liberação sexual, das drogas, do aborto...75

75 Marcel NADALE. José Antonio Garcia – Em Busca da Alma Feminina, p. 115-21.

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A narrativa anárquica e o caráter urgente de trabalhar certas questões de forma mais pungente apareceu meio por acaso, fruto provavelmente do acidente de trânsito que quase vitimou José Antonio Garcia. O cineasta voltava para sua casa em sua moto alcoolizado, sem capacete, quando bateu num caminhão. Teve um deslocamento da calota craniana, passou alguns dias em coma e outros tantos meses na UTI, sob observação. Ele e Ícaro haviam acabado de terminar o roteiro do que seria o próximo longa, Estrela Nua. Como o filme fugia um pouco da típica produção erótica da Boca, exigindo um maior orçamento, o produtor Adone Fragano sugeriu inscrever o projeto na Embrafilme. Durante a espera do resultado do chamamento da empresa, após a recuperação de Zé Antonio, os diretores resolveram fazer outro filme. Garcia aponta: “Não queria esperar, já queria rodar outra coisa. Foi assim que surgiu o Onda Nova, meu segundo filme. (...) todo o filme foi um enorme grito de Estou vivo! Estou vivo!”76 Ele já havia escrito um argumento sobre futebol feminino, inspirado na prima Regina Carvalho (atriz no filme), que participava de um time no Corinthians. Ícaro Martins conta que, com o sucesso de O Olho Mágico do Amor, ficou muito mais fácil emplacar qualquer projeto. “O produtor já tinha total confiança na gente. Tinha acabado o [nosso] dinheiro, a gente tinha que filmar, o produtor também e como Estrela Nua não dava para fazer, resolvemos fazer esse filme. A gente tinha data para filmar, mas não tinha roteiro”77. O roteiro, assim, foi sendo escrito enquanto o filme ia sendo rodado, entre abril e maio de 1983. Feito com pouco mais que os US$ 400 mil de O Olho Mágico do Amor, em cinco semanas, Onda Nova repete o interesse no musical, com dois números: a cena em que Tânia Alves canta Vale Tudo e Seu Tipo, de Eduardo Dusek e Luis Carlos Goes, numa boate com visual bastante estilizado remetente aos anos 1980, e quando Cida Moreira canta Groupie, de Beti Niemeyer, no ônibus que leva as meninas ao jogo. As principais complicações versavam sobre a necessidade de elenco que jogasse futebol. Várias das meninas do Gayvotas eram jogadoras semiprofissionais, sem qualquer experiência com atuação, e várias atrizes não sabiam sequer chutar uma bola78.

76 Ibidem, p. 107-109. 77 Em entrevista para o autor em 24 de setembro de 2014. 78 Segundo Ícaro Martins, “as cenas de futebol eram muito precárias, porque tinha pouco negativo e ninguém jogava nada”. O jogo contra o time da polícia feminina foi marcado com o time real da instituição e, assim, além de a produção conseguir uma equipe para o filme, conseguiram como locação o campo onde elas treinavam. Já o time que faz a seleção italiana foi montado especialmente para o filme. A escolha do time era uma alusão ao “grande trauma brasileiro [que] era a seleção italiana, depois da Copa de 1982” – quando o Brasil foi eliminado na segunda fase pela Itália, quando era o grande favorito. A Itália foi campeã naquele ano.

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Onda Nova fez sua première na 7ª Mostra Internacional de Cinema, em São Paulo, em 1983, e foi lançado comercialmente em 27 de agosto de 1984, na mesma cidade, sendo mal recebido pelo público e pela crítica, de maneira geral. Nas bilheterias, o filme mal equiparou os gastos com seus 120 mil espectadores79. O que motivou a dupla de diretores durante esse lançamento fracassado foi o resultado do concurso da Embrafilme. Estrela Nua (1985) tinha sido contemplado. Novamente com Adone Fragano e a Olympus Filmes a frente da produção, a dupla contou com um orçamento bem maior, equivalente a US$ 1 milhão da época. Filmado em cinco semanas, em junho de 1984, Estrela Nua retomava aspirações de um cinema mais sério, mais sombrio, sem cair no humor em que os filmes anteriores resvalavam. Estrela Nua acompanha Glória (Carla Camurati), uma jovem mãe e inexperiente atriz, que trabalha como dubladora. Ela é contratada para dublar Ângela (Cristina Aché), uma estrela do cinema e da TV, que se suicidara. No processo de dublagem, Glória incorpora gradualmente a persona de Ângela de maneira inconsciente. Assim como Ângela, Glória também fica obcecada pela morte. O longa nasce de um desejo dos diretores em falarem sobre cinema e trabalharem a metalinguagem. O filme se passa no estágio da pós-produção fílmica, num processo largamente usado pela produção brasileira da época, a dublagem. Era costumeiro, inclusive, que diferentes atores fizessem as vozes dos personagens. Segundo Garcia: “Queríamos algo radicalmente auto-referente. Estávamos, afinal, ambientando um filme na pós-produção de um outro filme.”80 Para além da influência anunciada de cineastas como Ingmar Bergman e Roman Polanski e escritores como e , e das diversas citações

79 Em entrevista para o autor em 24 de setembro de 2014, Ícaro Martins explica o porquê: “Quando o filme foi para a censura, teve um grande dilema. A primeira comissão que viu liberou o filme para 18 anos sem cortes, que era o que a gente queria. A segunda comissão liberou para 16 anos com cortes. E aí aquela famigerada Solange Hernandez, chefe do departamento de censura, resolveu assistir ao filme. Ela proibiu o filme inteiro, interditou dizendo que era amoral. De fato, era. Aí virou aquela coisa. Estavam começando a entrar os primeiros mandados de segurança. Só que custava uma fortuna. Era um mandado de segurança no Supremo Tribunal Federal. O produtor falou pra gente que não: ‘Só entro com o mandado de segurança se botasse sexo explícito, se vocês toparem botar umas cenas no meio, tudo bem’. Aí também não. Então, o filme ficou preso muito tempo na censura. Não sei se foram 6 ou 8 meses, uma coisa assim. Quando o filme finalmente foi liberado, estavam sendo liberados também os filmes de sexo explícito. O mercado deu uma super radicalizada: ou você tinha filmes sem sexo ou filmes com sexo explícito. Ele já não conseguiu ser lançado na Paulista, coisa que O Olho Mágico fez, na Paulista e em Santo Amaro. Ele foi lançado no Cine Marrocos, que estava passando em uma das salas um dos primeiros sucessos de sexo explícito brasileiro.” 80 Marcel NADALE. José Antonio Garcia – Em Busca da Alma Feminina, p. 132.

68 a obras cinematográficas espalhadas pelo filme, Estrela Nua constrói a metalinguagem em outras camadas. Não só vemos o processo de dublagem, como também flashbacks contendo cenas tétricas da filmagem, que não aparecem apenas para ilustrar a fase da pós-produção. Tais sequências são longas e quase autônomas dentro da narrativa, trazendo diversas mortes e momentos trágicos em textos de Nelson Rodrigues, bem como a conversa do diretor com Ângela em cena. Ícaro Martins revê o processo de criação do filme com bastante autocrítica: Com O Olho Mágico, passamos a gostar muito do processo de dublagem. Até hoje gosto. Duas coisas [também influenciaram o surgimento do filme]: um conto da Clarice Lispector que tinha lido e que estava no filme, e a outra era a história da Adriana Prieto81, em quem o roteiro é levemente baseado. Aí entra a coisa da metalinguagem, que talvez não seja tão bem resolvida no filme. Quem não conhece Nelson Rodrigues, não identifica direito isso, o filme dentro do filme. Era uma atriz que pira porque só faz papéis baseados na obra do Nelson Rodrigues. Ela morre e a dubladora começa a incorporar, receber a atriz. Sempre gostamos de brincar com metalinguagem. Já que estamos brincando com esse ambiente, queríamos ir até o fim. Hoje até acho que tinha referência demais. Estávamos com complexo de ter feito dois filmes na Boca e exageramos. (...) Tem a ver [também] com o pós-moderno, que é muito ligado a referências. E fazia parte da época. Talvez fosse até um prenúncio do fim. Você passa a querer construir um universo muito autorreferente. (...) O que talvez tenha sido o problema do Estrela Nua é que tenhamos nos inebriado por isso. Mesmo como uma descompressão do Onda Nova, tudo tem referência, e às vezes a gente se perde da história por conta disso82.

O trabalho com o cinema de gênero também se insere nesse universo metalinguístico, uma vez que incorpora códigos bastante referendados pela indústria, bem como reproduz certos estigmas dos gêneros narrativos. Estrela Nua versa sobre a transmutação de personalidade e a ideia do duplo, ambos bastante recorrentes na vertente do horror psicológico – além de trazer a presença do sobrenatural. Ângela torna-se cada vez mais uma presença fantasmagórica na trama, a povoar a mente de Glória – espelhos, fotos e, eventualmente, interferindo no cotidiano da dubladora. Glória, por sua vez, mimetiza aquela mulher que lhe causa estranhamento e dor. Em Estrela Nua, explicam que Ângela havia ficado depressiva com seu papel no filme e que isso a teria feito chocar seu carro contra uma árvore. A partir do momento em que Glória dubla Ângela, ela segue os mesmos passos, vestindo-se e comportando-se como ela, quase como se aquele papel

81 A atriz foi uma das principais musas de sua época, trabalhando em mais de 15 longas. Ela faleceu aos 24 anos, na véspera do Natal de 1974, num acidente automobilístico. Acabara de filmar O Casamento (1975), de Arnaldo Jabor, baseado na obra de Nelson Rodrigues. 82 Em entrevista para o autor em 24 de setembro de 2014.

69 fosse amaldiçoado. A busca pela tranquilidade guia Glória, a ponto de ela querer destruir os vestígios de Ângela em sua vida; porém matar Ângela é matar a si mesma.

Figuras 10 e 11 – A transmutação de Glória em Estrela Nua: das cores quentes e alegres para o escuro e sombrio

Para além da narrativa, os cineastas criam uma composição imagética atrelada às convenções do gênero fantástico, com o uso de quadros escuros e de luzes recortadas, locações peculiares e situações macabras – destaque para a cena em que Glória se banha na banheira preta, com velas coloridas acesas nas bordas. A dupla também constrói a atmosfera e o tempo do longa como filme de suspense, com uma trilha musical (composta por Arrigo Barnabé, com participação de Cida Moreira no vocal) calcada em vocalizes. Estrela Nua acompanha Glória e, portanto, o que vemos e descobrimos tende a ser o que Glória percebe. A montagem intensifica esse recurso para o suspense: pausas dramáticas quando ela observa com atenção; percepções breves que logo se desvanecem; o extracampo interferindo no campo e modificando a ação da personagem; alternância entre planos rápidos e passeios com a câmera etc.

Figura 12 – A mise-en-scène de horror em Estrela Nua

70

Mesmo sendo vendido e recebido como drama erótico, Ícaro Martins admite a influência e a utilização do gênero: “Estrela Nua surge do nosso gosto pelo fantástico, que vem desde O Homem Ideal vs. A Mulher Fatal. O trabalho com o suspense e o horror é totalmente consciente nesse sentido.” E especula a possível relação de não adesão para com o gênero: “Nós nunca levamos o esotérico a sério, nós sempre lidamos de maneira mais cínica.”83 O tom do filme, por mais que se filie ao suspense e ao horror, varia entre o realista e o farsesco. Os cineastas não temem trabalhar de forma irreverente e assimilar o humor, ainda que não explícito. Num filme sobre dublagem, por exemplo, colocam a atriz Cristina Mutarelli dublando a voz de Jorginho (Mathias Polen) em tom caricato como forma de ironizar o hábito que os estúdios têm de contratar mulheres adultas para fazerem a voz de crianças. Assim como em O Olho Mágico do Amor, Martins e Garcia optam por escancarar a metalinguagem e o questionamento da imagem diegética ao final do filme. Ao término de Estrela Nua, vemos Glória e Ângela – ou seria Carla Camurati e Cristina Aché? – como grandes amigas escrevendo uma história – a história de Estrela Nua? –, dentro de um quarto. A câmera se desloca e vemos que aquilo era um cenário de estúdio parcialmente construído, ao lado do fundo infinito branco. Ou seja, os cineastas descontroem o filme enquanto ficção (o que vimos até então), para logo em seguida descontruir essa nova ficção (em as duas jovens escrevem uma história). Estrela Nua estreou no 13º Festival de Gramado, em março de 1985, de onde saiu com o prêmio de melhor atriz coadjuvante (Aché) e prêmio especial do júri para Carla Camurati. Na mesma semana em que o filme foi lançado comercialmente em São Paulo (em 08 de agosto de 1985), o longa foi exibido e premiado no 1º Festival de Cinema da Cidade do Rio de Janeiro, o RioCine Festival. Estrela Nua saiu de lá com os troféus para melhor direção, melhor atriz (Camurati), cenografia, figurino e trilha sonora. A recepção crítica foi positiva, ainda que a dupla nunca mais tenha recebido as mesmas glórias que com O Olho Mágico do Amor. O resultado nas bilheterias foi de 280 mil espectadores. José Antonio Garcia e Ícaro Martins começaram Estrela Nua já sabendo que seria o último filme dos dois enquanto parceiros criativos. Desde o início, decidiram que cada um tomaria seu caminho depois. Ícaro explica: Havíamos começado a dirigir juntos meio por acaso, não era uma proposta estética. Ninguém pagava dois diretores. Ainda mais naquele esquema da

83 Id.

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Boca. É muito pesado você ficar só com o cachê de assistente. O que fazíamos era somar o cachê de um diretor e o de um assistente e dividir pela metade. E achamos que tínhamos feito uma trilogia, com uma temática próxima.84

Mesmo com o fim da parceria, a amizade continuou. Também comentavam roteiros e escolhas cinematográficas um do outro. Para os cineastas, os filmes que faziam eram pornochanchadas subversivas, que apontavam para um outro caminho. Martins comenta: “Vejo [isso] com o maior orgulho. Não tenho a menor vergonha de ter feito pornochanchada. Meus pais ficaram meio grilados no começo. Mas quando viram as críticas a O Olho Mágico, vieram até pedir desculpa. A pornochanchada foi algo super importante.” Ícaro Martins voltou ao longa-metragem apenas em 2010, com Luz nas Trevas – A Volta do Bandido da Luz Vermelha, em que foi convidado a dirigir o filme com Helena Ignez. Atualmente prepara um documentário sobre a escultora Maria Martins. José Antonio Garcia foi mais produtivo e fez O Corpo (1991), também com a Olympus e a Embrafilme, vencedor do 24º Festival de Brasília, e o filme de encomenda Minha Vida em Suas Mãos (2000) para . O crítico de cinema Rubém Biáfora, atento à produção paulista, já logo apontou algo de diferente naquele ano de 1982 nos filmes da Boca do Lixo: Para este ‘Duas Estranhas Mulheres’ (...), um impacto quase mágico, direto, e que, ligado a ‘O Olho Mágico’ e a ‘Retrato [Falado de uma Mulher sem Pudor, também de Correia]’, faz com que automaticamente o cinema paulista, tão desacreditado nos últimos anos pelos imediatismos comerciais da ‘Boca’, passa a existir, passa a fazer o cinema brasileiro existir de uma maneira realmente criativa, independente, sem pedantismos e essencialmente cinemática, daqui para diante.85

Ainda que não estivessem situados em outros pontos de produção, mais legitimados pela historiografia, Jair Correia, Guilherme de Almeida Prado, Ícaro Martins e José Antonio Garcia conseguiram perfurar as barreiras da Boca do Lixo, para o bem ou para o mal, muitas vezes sendo ligados a outro polo muito efervescente na época, a Vila Madalena.

84 Id. 85 Rubem BIÁFORA. A volta de Antonioni e um excepcional filme paulista.

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3 POLO DA VILA MADALENA

Além da Luz, onde ficava a Boca do Lixo, outros bairros paulistanos abrigaram cineastas e produtoras audiovisuais. No Bixiga, por exemplo, empresas voltadas para a publicidade dividiam as ruas com outras que transitavam também entre o cinema e a televisão. Quando o cinema da Boca entrou em crise, outra região em São Paulo começou a se destacar, a Vila Madalena. A região era pacata, bastante barata, formada essencialmente por imigrantes portugueses de classe média baixa que trabalhavam em fábricas. Com a construção da Cidade Universitária Armando de Salles Oliveira, que sedia a Universidade de São Paulo (USP), no distrito do Butantã, nos anos 1960, a Vila começou a receber mais moradores, em geral estudantes, especialmente após o fechamento do Crusp (Conjunto residencial da Universidade de São Paulo), em 1968, pelo regime militar, quatro dias após a promulgação do Ato Institucional nº5 (AI-5). As casas antigas, grandes e com aluguel baixo, foram transformadas em repúblicas estudantis e o bairro começou a se agitar – ainda que muito longe do que se tornou nos anos 1990. Predominavam na região estudantes da ECA/USP, que permaneceram no local mesmo após estarem formados. Essa presença massiva deu ao local o nome de Vila das Artes, ao longo dos anos 1970 e 1980. O bairro atraiu toda uma sorte de marginalizados sociais, como artistas, hippies, revolucionários – os ‘alternativos’. Com eles, o bairro foi se reformulando. Aos poucos, as casas cederam espaço a estabelecimentos comerciais e de serviços – abertos pelos novos ou antigos moradores – que atendiam à demanda da nova população. Era o início do surgimento de bares que serviam de ponto de encontro para artistas e intelectuais. Entre eles, estavam o Martin Fierro, mais conhecido como Empanadas, localizado na R. Wisard, 489, fundado em 1980 pelo argentino Hugo Ibarzábal e pelo chileno Reynaldo Zambrano, único estabelecimento ainda aberto daquela época; o Snack Bar Canarinho, na esquina da R. Wisard com a R. Mourato Coelho, conhecido como Sujinho e fundado em 1978 pelo baiano Renato de Souza Lima; o bar Catabi, do fotógrafo Djavan, instalado numa garagem de sobrado, apontado como o mais badalado da região em 1985; o Bartolo, que ficava na R. Fradique Coutinho, 830, e depois se mudou para o número 1097, fundado em 1983; e o Bar da Terra, primeiro a ser aberto na região, localizado na R. Mourato Coelho, 940, que teve vida curta.

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Para além dos bares, em 1977, nasceu a 1ª Feira da Vila Madalena, na Rua Girassol, com o intuito de incentivar a produção local e a mobilização social. A partir do ano seguinte, passou a ser organizada pelo Centro Cultural da Vila Madalena. O evento anual, que ocorre até hoje – com algumas interrupções no começo dos anos 1980 –, trazia barraquinhas diversas de comida, programação cultural, como exibição de filmes e apresentação de grupos musicais, entre outros. Não muito longe dali, na R. Teodoro Sampaio, 1091, na Praça Benedito Calixto, foi fundado em outubro de 1979 o Teatro Lira Paulistana. Em um porão, com 150 lugares, que podiam virar 300, dependendo do evento, funcionava um palco que, além de abrigar peças teatrais alternativas, serviu como promoção para uma nova geração de músicos em São Paulo, conhecida como Vanguarda Paulista. A denominação abarcava uma série de músicos independentes com propostas de experimentação, como o trabalho com músicas atonais e com o canto-falado. Destacaram-se nesse agrupamento nomes como Itamar Assumpção, Eliete Negreiros, Cida Moreira, Tetê Espíndola, Hermelino Neder, e grupos como Rumo, Língua de Trapo e Premeditando o Breque, além de Arrigo Barnabé, um dos nomes mais famosos da Vanguarda, que nunca se apresentou no Lira. Bandas de rock que posteriormente se tornaram ícones geracionais também começaram tocando no Lira, caso dos Titãs (na época, Titãs do Iê-Iê) e do Ultraje a Rigor. Para registrar essa cena, o Lira criou um selo fonográfico, pelo qual lançou artistas diversos. O Lira ainda teve um jornal, que durou 12 edições, e exibições de filmes alternativos e proibidos pela censura. A cena cultural na região da Vila Madalena-Pinheiros era bastante unida. Todos se conheciam. Escritores, cineastas, videastas, artistas plásticos etc. frequentavam o Lira e acompanhavam a Vanguarda. Muitos desses músicos apareciam nos filmes produzidos pelos cineastas da Vila, fossem como atores, fossem como trilheiros - destaque para Arrigo Barnabé e Cida Moreira. As atividades artísticas no bairro eram muito interligadas. Foi, por exemplo, após ouvirem Itamar Assumpção no festival da Feira da Vila Madalena, em outubro de 1979, que Wilson Souto Jr., o Gordo, e Chico Pardal, fundadores e proprietários do Lira, resolveram gravar um disco do compositor. Captaram recursos e prensaram 2 mil exemplares de Beleléu, Leléu e Eu, estreia de Itamar Assumpção e a banda Isca de Polícia. Tais empreitadas – os bares, a efervescência cultural – deram à Vila a pecha de bairro boêmio, sendo também apelidada de Village paulistano, associação de cunho pejorativo.

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Dentro desse contexto de mobilização cultural é que começaram a ser fundadas as primeiras produtoras cinematográficas na região. Em reportagem da Folha de S. Paulo de abril de 1985, Antonio Gonçalves Filho faz um balanço de como a Vila Madalena era vista. Durante muito tempo – os últimos dez últimos anos, para efeito de localização cronológica – a Vila Madalena foi identificada como uma espécie de ersatz geográfico do bairro boêmio nova-iorquino, Greenwich Village. Por ali circulavam os mais exóticos tipos, de remanescentes do movimento hippie a ex-guerrilheiros, que a trocaram a metralhadora por cordões com a foto do guru Rajneesh, passando por místicos consultores de assuntos metafísicos, especialistas em diagnóstico iriológico [sic], e professores de violão que ensinam ‘atonalismo e música biodegradável’. Além, é claro, de nostálgicos estudantes que trocaram a rua Maria Antônia e seus paredões ‘revolucionários’ por bares da rua Wisard, como o ‘Empanadas’ e o ‘Sujinho’. Para ‘sorte’ dos tradicionais moradores desse bairro-aldeia, a instalação de produtores cinematográficos na ‘Vila’ e o modismo que sempre acompanha o nada discreto charme da ‘gente de cinema’ transformaram a Vila numa área privilegiada, cuja verticalização pode ser medida pelo vertiginoso aumento dos aluguéis. E os tipos exóticos começaram a escassear, embora ainda circulem pelas feiras de sábado muitos chinelos de couro, calças de algodão cru, discos do Tarancón, ‘esquenta-pernas’ peruanos e devoradores de empanadas.86

A primeira produtora a se instalar na região foi a Raiz Produções Cinematográficas, criada em 1974, pelo cineasta João Batista de Andrade e sua então esposa, a produtora Assunção Hernandes. Batista era uma figura proeminente em São Paulo, com participação ativa nas discussões de políticas cinematográficas, em especial no âmbito paulista. Começou com documentários em curta e média-metragem nos anos 1960, bastante engajados politicamente, como Liberdade de Imprensa (1967), estreou no longa-metragem com a ficção Gamal, O Delírio do Sexo (1969) e fez vários documentários e episódios de longas antes de ir para a televisão, trabalhando na TV Cultura. Deu também aula de realização cinematográfica na USP entre 1969 e 1978. Assunção estudou Ciências Sociais, na USP, e como diretora do departamento cultural da União Estadual dos Estudantes começou a trabalhar com produção de documentários, conhecendo assim Batista. Convidados a realizarem uma série de documentários para a TV Globo, abriram a empresa, instalando-a nas dependências da casa onde moravam. A produtora também permitiu a Batista voltar a fazer curtas. Para o movimento Cinema de Rua, projeto que visava a fazer filmes para exibição em sindicatos, cineclubes e afins, fez dois, Restos (1975) e O Buraco da Comadre (1976). Nesses filmes, Batista deu a primeira oportunidade para estudantes de cinema da USP que depois desenvolveram carreira no

86 Antonio GONÇALVES FILHO. Chope, celulóide e empanadas.

75 cinema da Vila Madalena, como Reinaldo Volpato, Adilson Ruiz e Wagner de Carvalho, além de ter empregado diversos outros profissionais da região, como Walter Rogério, Alain Fresnot, André Klotzel, Eduardo Poiano, Sebastião Maria, entre outros. Até 1985, a Raiz produziu essencialmente filmes dirigidos por João Batista de Andrade, fossem curtas, especiais para a televisão e longas-metragens (incluindo Doramundo/1978, O Homem que Virou Suco/1980, A Próxima Vítima/1983 e Céu Aberto/1986), com exceção de alguns curtas a que se associava. A partir daí, a Raiz entrou como produtora principal ou coprodutora em filmes de diversos jovens cineastas, quase sempre com bastante repercussão. É o caso de A Hora da Estrela, Brasa Adormecida, A Dama do Cine Shanghai, Lua Cheia (1988), de Alain Fresnot, e Real Desejo. A Raiz continua ativa, tendo como sócios Assunção e seu filho com Batista, Fernando Andrade. Batista deixou a produtora após a dissolução do casamento, para abrir sua própria empresa, a Oeste Filmes, em 2000, pela qual tem produzido seus filmes desde então. A Raiz segue produzindo, sem, porém, alcançar o mesmo prestígio de imprensa, de festivais e mesmo de público dos anos 1980. Nessa época, companhias correlatas também começaram a sediar suas empresas na Vila Madalena, caso do estúdio de dublagem e laboratório de tratamento de som Álamo. Fundada em 1972, pelo técnico inglês Michael Stoll, que veio ao Brasil para compor a equipe da Vera Cruz, em 1950, a Álamo funcionou na R. Major Sertório, até se mudar para seu endereço definitivo em 1979, na R. Fidalga, 568, onde funcionou até 2011, quando encerrou as atividades. Surgiram, na região, outras produtoras voltadas ao cinema, seguindo outro modelo. Formadas por vários sócios, parceiros criativos, amigos da faculdade, que buscavam uma forma cooperativada de negócio, em que cada sócio desempenhava várias funções (p.e. direção, roteiro, montagem, fotografia), havendo um grande intercâmbio de profissionais e equipamentos entre as produtoras, inclusive. As produtoras eram montadas de acordo com afinidades e os projetos de cada uma delas tendia a reunir todos os sócios. A denominação ‘cinema da Vila’, ou a alcunha ‘Villa Città’ – em referência aos estúdios da Cinecittà, na Itália – foram criados justamente para dar conta dessa produção realizada por diretores estreantes dessas produtoras coletivas. Em Os Jovens Paulistas, Jean-Claude Bernardet escreveu, no afã do momento, em 1985, sobre a formação dessa geração: Uma geração emergente de cineastas paulistas? Sim. Vulgarmente conhecida como o cinema de Vila Madalena. Essa expressão é pejorativa: seriam jovens intelectualóides, vagamente herdeiros de um ‘hippismo’ fora de moda, isolados

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no gueto de uma espécie de ‘Village’ paulistano, mais afeitos a bares e papos- furados do que prontos para enfrentar as duras realidades da produção e do mercado cinematográfico. Mas isso é folclore. Grande parte desses cineastas passou pela ECA – Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo – donde a pecha de intelectualismo barato – e dela saiu em meados da década de 80. Estreiteza do mercado de trabalho na área de cinema, diferença de formação técnica e cultural que dificultava a sua inserção nas formas de produção já estabelecidas em São Paulo (principalmente a Boca do Lixo e o cinema publicitário), valorização do cinema independente e da expressão autoral: acredito que esses fatores tenham levado a tentar criar seus próprios meios de produção e fundar suas produtoras. Donde o aparecimento de uma série de pequenas firmas, das quais a Gira Filmes é provavelmente a mais antiga. Todas elas começaram com filmes de curta-metragem, algumas vezes produções institucionais, muitas vezes produções possibilitadas por órgãos públicos como a Embrafilme ou a Secretaria da Cultura do Estado de São Paulo.87

Do mesmo ano do texto de Bernardet, a reportagem de Antônio Gonçalves Filho, Chope, celulóide e empanadas, na Folha de S.Paulo, tenta desconstruir a pecha de ‘jovens intelectualóides’. Gonçalves retratou a geração a partir das mudanças no bairro da Vila Madalena: É tempo do cinema e os meninos já aprenderam que só uma ideia na cabeça e uma câmara na mão não pagam uma produção, cujo orçamento médio, nos dias de hoje, nunca é inferior a 150 mil dólares. Do modesto cinema da Villa Città de antigamente, também conhecido como ‘cinema-lúmpen’, passaram a filmes e reconhecido profissionalismo – e competência.88

Dentro desse modelo, foram montadas quatro produtoras: Gira Filmes, Barca Filmes, Tatu Filmes e Superfilmes.

3.1 Gira Filmes

A primeira, a Gira, foi a única ter uma sociedade formada por pessoas pouco experientes. Fundada por Augusto Sevá, Dionéia da Paixão, Isa Castro, Nilson Villas Bôas, Reinaldo Volpato, Rubens Xavier e Sebastião Maria, a Gira Filmes surgiu formalmente em 19 de setembro de 1978, por uma questão burocrática: permitir, frente aos órgãos oficiais, a produção do longa-metragem A Caminho das Índias (1982), dirigido por Sevá e Castro. O começo da história da Gira, portanto, confunde-se muito com o processo de feitura do filme.

87 Jean-Claude BERNARDET. Os Jovens Paulistas, p. 66. 88 Antonio GONÇALVES FILHO. Chope, celulóide e empanadas.

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No final de 1977, Sevá, Castro e equipe foram a Trancoso, distrito de Porto Seguro, no sul da Bahia, filmar o que supunham ser mais um curta-metragem, mas os diretores perceberam que poderia render um longa. O pouco dinheiro disponível para a produção que tinham foi logo consumido e as filmagens interrompidas. Para poder concluir o filme, entraram com pedido de financiamento na Embrafilme, solicitando um avanço de 40% sobre a distribuição. Para tal, era necessário ter uma empresa. Foi criada, assim, a Gira Filmes. A relação entre seus integrantes, porém, ia além do filme. Começou em 1974, quando Augusto Sevá e Reinaldo Volpato se conheceram na ECA/USP. Augusto César Correa Sevá (Campinas, 1954) gostava muito de cinema, mas não pensava na área profissionalmente. Prestou jornalismo na ECA, mudou-se para São Paulo e começou o curso em 1973. Logo, arranjou seu primeiro trabalho, como colunista de cinema do suplemento dominical do jornal campineiro Diário do Povo, única função possível visto que já não residia mais na cidade. Para escrever com propriedade, Sevá começou a frequentar a disciplina História do Cinema Brasileiro, ministrada pelo Paulo Emílio Salles Gomes, a quem diz dever muito. Nesse contexto, foi convidado a produzir o curta Boias Frias (1974), de Volpato, um média-metragem documental sobre os boias- frias, filmado em Londrina (PR). Segundo Sevá, o produtor executivo designado não tinha o pragmatismo necessário para o trabalho e ele logo assumiu a função também. A amizade com Volpato começou nesse filme. Sevá se transferiu para o curso de cinema e começou a trabalhar em outros filmes, em diferentes funções, como produtor, montador e técnico de som. Fazendo som direto com seu gravador Nagra, sustentou-se por um período. Nessa função, trabalhou na equipe de som dos longas As Três Mortes de Solano (1976), de Roberto Santos, Paranóia (1976), de Antônio Calmon, Andiamo In’Merica (1980), de Sergio Muniz, O Rei da Vela (1983), de José Celso Martinez Corrêa e Noilton Nunes, e dos curtas/médias Roças (1975), de Rogério Corrêa, Rio Tietê (1976), de Volpato, Tchau Bras (1976) de Rudá de Andrade, A Voz de Deus (1977), de Luiz Alberto Pereira, Pergunta de Amor (1979) e Paixão Maria (1979), ambos de Volpato, e A Voz do Brasil (1981), de Walter Rogério. Em 1975, a carreira de Sevá começou a mudar mais ainda, quando entrou para o universo da direção com dois documentários. Incentivado pelo amigo e fotógrafo Pedro Farkas, rodou o curta Gilda (1977). Convidado por Volpato, dividiu com ele a direção do curta Pau pra toda obra (1976), que integrou o movimento Cinema de Rua. Ambos filmes circularam por diversos festivais e foram premiados.

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Filmou ainda Nós e Eles (1978), em 1977. Envolvido com a produção do longa e com um filho a nascer, Sevá deixou a USP em 1977, sem concluir o curso. Após o Boias Frias, Sevá, Volpato e Sebastião Maria, amigo de Sevá dos tempos de Campinas, passaram a dividir uma casa na R. Artur de Azevedo, 1131. Sebastião Maria Neto (Campinas, 1950) cursava arquitetura (1971-1977) na Universidade Braz Cubas, em Mogi das Cruzes, e partilhava o interesse em cinema de Sevá e Volpato. Pouco depois, Isa Castro (Isa Maria Stamato de Castro, Campinas, 1953), então namorada de Sevá, mudou-se para a residência. Castro também havia iniciado o curso de jornalismo na ECA, em 1973. Em 1975, fez seu primeiro trabalho em cinema, como continuísta no longa As Três Mortes de Solano, feito com os alunos (e alguns professores) de cinema da ECA – incluindo aí diversos futuros profissionais do cinema da Vila Madalena, como Chico Botelho, Eduardo Poiano, José Roberto Eliezer, Pedro Farkas, Augusto Sevá, entre outros. Trabalhou em outros filmes, no período, em funções diversas, como produtora, roteirista e montadora. Sebastião Maria também levou sua então namorada Dionéia da Paixão para morar na república. Dionéia (Carapicuíba, 1952) igualmente cursou arquitetura na Universidade Braz Cubas, tendo se transferido para outra universidade pouco depois. Não tinha interesse em cinema, mas ao começar a frequentar o círculo de amigos de Tião, como era chamado, logo foi solicitada a trabalhar em diversas funções nos filmes que produziam. Augusto Sevá conta como o núcleo se formou: Por sermos da USP, trabalharmos com cinema e estarmos fazendo filmes, nossa casa virou um ponto de encontro de pessoas de cinema. Também nessa época, a gente começou a atuar politicamente através da Apaci e da ABD. Com isso, foi se alimentando um desejo de ser profissional mesmo. As pessoas que estavam próximas da gente por relação de amizade ou interesse profissional via USP passaram a frequentar nossa casa, que virou um lugar de discussão de cinema. Virou uma espécie de polo de encontro de uma geração toda que estava ali na USP e algumas pessoas que não eram da USP. Uma parte delas se agregou mais fortemente.89

Duas dessas pessoas que se agregaram mais fortemente foram Nilson ‘Bhig’ Villas Bôas (Nilson Panizza Villas Bôas, Bauru, 1952) e Rubens ‘Binho’ Xavier (Rubens Junqueira Xavier Filho, São Paulo, 1953). Bhig era amigo de adolescência de Volpato, nos tempos em que residiam em Botucatu (SP). Fez um curso na área de ciências exatas na Unicamp por sete anos, sem se identificar com a profissão, sendo convidado por Volpato a trabalhar com cinema. Rubens Xavier, por sua vez, havia largado a faculdade

89 Em entrevista para o autor em 26 de novembro de 2014.

79 de Economia, no Mackenzie, depois de dois anos de curso, entre 1973 e 1975. Em 1976, casou-se com Nilsen Villas Bôas, irmã do Bhig, com quem foram morar em Campinas. O casamento durou um ano e meio e Xavier voltou para São Paulo, sem destino certo. Foi quando Bhig o convidou para conhecer o que viria a se tornar a Gira, em 1978. Ele gostou e foi morar na república também. A casa se transformou no escritório da Gira Filmes. Como eram sete pessoas, mantiveram o escritório na R. Artur de Azevedo, 1131 e alugaram outra casa para morarem. Augusto Sevá conheceu Trancoso em 1976. Iria passar férias em Salvador (BA), mas um amigo falou de um povoado distante onde um amigo dele tinha ido morar. Para chegar ao local, tinha que tomar dois ônibus, até Eunápolis e depois até Porto Seguro, e andar mais 30km a pé até Trancoso. Ele conta: “Me encantei e não quis sair dali, fui fazendo amizade com o povo local. Era um povoado absolutamente isolado do mundo, não tinha nada, não tinha luz elétrica, não tinha água encanada, não tinha comunicação nenhuma, até mesmo o rádio não pegava bem.”90 Sevá e Castro chegaram a residir no local por alguns meses, onde tiveram seu primeiro filho. Foi nesse período que Isa Castro teve a ideia para A Caminho das Índias e escreveu o primeiro tratamento do roteiro. Augusto Sevá apenas produziria. Convidado a codirigir com Castro, aceitou. Juntos, assinam direção e roteiro no corte final, montado por eles e por Volpato. Sevá ainda assinou a produção e Castro a produção executiva. A equipe tinha por volta de vinte pessoas, todas começando no cinema, muitas vezes atuando em mais de uma função. A fotografia é de Pedro Farkas, que estreava no longa-metragem, tendo Eduardo Poiano como câmera e assistente. A arte coube a Tião Maria e Dionéia da Paixão (assinando Di da Paixão). Bhig Villas Bôas fez direção de produção. Entre os assistentes de produção, estava Rubens Xavier. Com o dinheiro ganho como técnico de som, Cr$ 500 mil, Sevá comprou os negativos Kodak 16mm pela Raiz e conseguiu manter a equipe em Trancoso por um mês. Ninguém foi pago. A verba alocada pela Embrafilme, em convênio com a Secretaria da Cultura do Governo do Estado de São Paulo – Cr$ 600 mil para coprodução e mais Cr$ 400 mil para distribuição –, em 1979, permitiu que a equipe voltasse outras vezes, em 1979 e em 1980, para concluir as filmagens.

90 Id.

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A Caminho das Índias acompanha a descoberta de Trancoso por forasteiros, encantados com as belezas naturais do local, que se assentam lá para fins turísticos e mercadológicos, no final dos anos 1970, associando-se numa firma de exploração de madeira. Zé Pessoa (Cacá Rosset) se afeiçoa com os locais, mas Nascimento (José Celso Martinez Corrêa) vê Trancoso apenas como um empreendimento. O distrito, que até então mantinha características da época colonial, sem grandes alterações desde o descobrimento, com pequenas casinhas uma ao lado da outra, dispostas ao redor de um gramado (Quadrado), e uma igreja ao fundo, começa a ser modificado com a chegada de diversos estranhos. Nascimento compra terras no local, cercando-as com arame farpado, desmatando-as, e se apropriando de terras ocupadas. Ele promete aos moradores modernidades, como luz elétrica, gás e mesmo cinema, propondo um escambo, em troca das terras e das nativas. A ausência de luz elétrica era um fato na época, fazendo com que Farkas tivesse que iluminar as cenas com luz a gás. A Caminho das Índias mistura ficção com documentário. O objetivo dos diretores era retratar as mudanças operadas no local a partir dos anos 1970. A própria passagem da equipe do filme é denunciada como parte dessa modernização acelerada pela qual passou Trancoso e que só se intensificou ao longo dos anos 1980 – como Sevá mostrou em seu filme seguinte sobre a região, Estórias de Trancoso (2007). A proposta da dupla é interventiva, colocando dois atores profissionais, Cacá Rosset e Zé Celso, nomes importantes do teatro paulistano, com objetivos claros de provocar a população para o que estava acontecendo. A direção deles, porém, foi bastante livre e os atores podiam ser eles mesmos. O conceito vinha de Roberto Santos, do personagem-sujeito91, ampliado e trabalhado por Volpato, em que o ator interpreta a si próprio. Rosset e Zé Celso interagem constantemente com os nativos, provocando-os em diferentes situações, enquanto a equipe registra. O filme segue assim a linha de Iracema, uma Transa Amazônica (1974), de Jorge Bodanzky e Orlando Senna – à época da primeira etapa da filmagem de A Caminho das Índias, em 1977, apenas com Cacá Rosset, interditado pela censura, tendo sido exibido clandestinamente na USP e em alguns outros lugares. Os locais também foram atores no filme, sendo que muitas das cenas foram sugeridas por eles, que repetiam

91 Esse conceito, que influenciou bastante os sócios da Gira, foi detalhado em reportagem da Folha de S. Paulo, de 30 de outubro de 1979: “Roberto acha que os atores são obrigados pelos diretores a incorporarem as personagens previamente criadas pelos diretores, ou seja, as personagens são tratadas como objetos. Roberto propõe que as personagens sejam tratadas como sujeito, atuantes e participantes, e não distante e à disposição do diretor como anteriormente”. Cf. O curta-metragem, em uma experiência de liberdade.

81 suas vidas para a câmera. Outras vezes, eram os diretores que pediam aos habitantes encenarem algum evento92. Sevá explica melhor: A proposta da gente era uma intervenção agressiva, a ideia era de provocação, não de interação. E veio a participação do Zé Celso, que era uma pessoa ideal, e o Cacá Rosset, que eram pessoas que tinham condição de fazer isso, inclusive de atuar improvisadamente ali na hora da filmagem. Muitas vezes, apenas tínhamos a ideia do que ia acontecer, tínhamos a concepção, mas não tínhamos os diálogos prontos, não tinha movimentação de câmera. Tanto que a gente usou muito a câmera solta mais para seguir a ação. Era uma ideia radical de intervenção cinematográfica numa comunidade, não tem a ver com interação, que era mais o caso do Iracema. Naquela proposta de cinema, você não dirige [os atores] como se estivesse dirigindo cinema, dirige muito mais como sendo uma intervenção. Você vai ver que grande parte das cenas existem por intervenção. E outra parte das cenas existe por construção. Imagino que só eles [Rosset e Zé Celso], naquele momento, seriam capazes de fazer aquilo que a gente fez.93

Além das intervenções diretas dos atores na paisagem local, para contarem as transformações sofridas na região, Sevá e Castro criaram um paralelo da história contemporânea do distrito com a descoberta do Brasil. Trancoso foi o local em que a esquadra de Pedro Álvares Cabral desembarcou em 1500. Para os diretores, Trancoso passa por uma nova colonização e isso é que buscam esmiuçar. Utilizando-se de tons experimentais e teatrais, Sevá e Castro provocam a população local para o paralelo de subserviência que aquela nova descoberta de Trancoso pode ter. Evocam, assim, textos da chegada portuguesa, como a carta de Pero Vaz de Caminha, usados como voz over, e, entre outros, colocam Cacá Rosset trajado de degradado do século XVI declamando o que lhe aconteceu a uma sala de aula. Sevá e Castro acenam que o Brasil começou quando degradados foram deixados nestas terras, transformando-se em fazendeiros e senhores. São essas mesmas pessoas que estariam comprando Trancoso e modificando-a. Sevá conta que a relação entre a descoberta do Brasil e aquele momento era meio óbvia: O turismo começou com a inauguração da BR 101 em Ilhéus. Foi inaugurada em 1971, 1972, um pouco antes de eu chegar. Dez anos antes, não tinha nada. Quando cheguei, já existia fazendas, culturas intensivas, um pouco de gado, e algumas pessoas que simplesmente queriam fugir da civilização, apenas uns dois ou três. Percebi que isso estava ocorrendo na região de forma sistemática. As questões que se encontrava eram as mesmas de quando Cabral chegou e se

92 Um exemplo pode ser visto na reportagem da Folha de S. Paulo sobre o filme, em 29 de novembro de 1982: “Um dia certo cidadão de Trancoso tomou um fogo. E saiu pelo vilarejo, pé ante pé, perna do lado de perna, tropicando em sombras e gritando: ‘Tenho de ir embora daqui, tenho de ir para a cidade’, e gritou a noite inteira. Dia seguinte, meio da manhã, Sevá foi ter um papo com o sujeito. É, ele se lembrava mais ou menos do que ocorrera, mas se se assustou quando o diretor quis filmá-lo repetindo a cena. De início, o caboclo ficou envergonhado. Depois topou. Mergulhou novamente na pinga e mandou ver.” Cf. Miguel de ALMEIDA. Descoberta do Brasil em filme. 93 Em entrevista para o autor em 25 de novembro de 2014.

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encontrou com os índios. Você tem uma sociedade que está ali, isolada, por séculos, por isso tendo uma cultura própria, não tendo acessos aos bens da civilização da década de 70 no Brasil. Não tinha geladeira, não tinha cerveja. Você ia no bar e só tinha bebida quente. Não tinha televisão. Rádio duas pessoas tinham, só pegava ruído. A economia era na base do escambo, ninguém era muito pobre e nem muito rico. Todo mundo tinha uma canoazinha para pescar e um terreno na praia para guardar sua canoa e todo mundo tinha uma roça e uma casinha para morar, que era no centro histórico de Trancoso, que estava abandonado. Não existia miséria. Existia uma ausência do consumo. Só tinha um bar e uma mercearia para fazer compra e tinha muito pouca coisa. Sardinha em lata, farinha, querosene, sal e açúcar. A civilização chega pela estrada. Eu cheguei lá dois anos depois da estrada. Começa a haver uma pressão da civilização sobre aquele local e identifiquei como sendo um fenômeno parecido com o que havia acontecido 500 anos atrás. Não foi nada genial, foi apenas constatar uma coisa óbvia.94

A herança da colonização portuguesa é bastante presente na obra de Sevá, como em suas duas outras incursões por Trancoso, com Estórias de Trancoso e Fala Sério! (2011), e em seus trabalhos para a TV, caso da minissérie Arquipélago de Abrolhos (1998) e do documentário Ilha Grande e as visões do paraíso (2001). A Caminho das Índias é o projeto mais político dos diretores até o momento, com um claro objetivo de denunciar a exploração mercadológica em Trancoso por forasteiros em detrimento da comunidade local. Curiosamente, a visão do filme tem um ranço cristão bastante forte, caráter nunca explicitado pelos diretores. Nos três filmes de Sevá, Trancoso é visto como um paraíso perdido, puro, inocente, corrompido pelos homens gananciosos. O longa trabalha um projeto de cinema bem diferente, que misturava díspares pensamentos e influências, muito mais próximo do cinema moderno do começo dos anos 1970 do que da estetização e da artificialidade cromática que marcaria o cinema paulista da década – e que estaria presente no filme seguinte de Sevá, Real Desejo. Por vezes, o longa evoca nítidas influências do chamado Cinema Marginal, através da anarquia narrativa, da evidente improvisação, do tom de deboche nas intervenções (muito por conta de Rosset e Zé Celso) e de uma liberdade em expressar o que quisessem sem amarras. Exemplo disso é a cena em que Zé Celso defeca na praia, filmado de costas, num plano aberto, mas próximo o suficiente para identificar a ação. A cena dialoga, por exemplo, com o experimentalismo superoitista do baiano Edgard Navarro em seu O Rei do Cagaço (1977). O filme também antecipa um recurso que seria posteriormente bastante usado por em seus documentários. Sevá e Castro exibem os copiões do filme

94 Id.

83 para os habitantes locais e filma suas reações, incluindo aí a cena de Zé Celso na praia. Sevá explica: Fazia parte do projeto mostrar o filme para os que tinham feito e registrar a reação dessas pessoas se vendo na tela, coisa que era uma novidade absoluta. Não se conhecia tela, mesmo televisão não tinha lá. Quando explicávamos para as pessoas que estávamos fazendo um filme, que íamos filmá-las, muitas vezes tínhamos a nítida impressão de que a pessoa estava concordando em ser filmada, mas não tinha a mínima noção do que era isso.95

A Caminho das Índias teve boa circulação por festivais internacionais. Foi exibido, em 1982, nos festivais de Locarno, San Sebastian e Bilbao, e, em 1983, na seção Panorama, do Festival de Berlim. No Brasil, o longa estreou diretamente no circuito comercial, em 29 de novembro de 1982, em três cinemas de São Paulo: Arouche B, cineclube do Bixiga e o pequeno auditório do Museu de Artes de São Paulo (Masp). Não há registros de estreia comercial no Rio de Janeiro. Sevá estima um público total de 70 mil espectadores. Documentos da Embrafilme apontam 1327 espectadores até março de 198496. Entre o começo das filmagens e o lançamento comercial, passaram-se cinco anos. Nesse intervalo, a Gira continuou a produzir curtas e média-metragens, de sócios da empresa, de amigos e de colegas, caso de Identidade (1978) e Kinema (1978), ambos de Tião Maria; Foi Assim (1978), de Adilson Ruiz; Paixão Maria; Pergunta de Amor; 7 Vidas (1979), de Rubens Xavier; Oro (1980), de Augusto Sevá; Afundação do Brasil (1980), de Moacyr Amorim Toledo; A Voz do Brasil; Fogo Fátuo (1981), de Goffredo Telles Neto; Lança (1981), de Nilson Villas Bôas; Só (1982), de José Carone Jr.; Malditas Calmarias (1983), em vídeo, e Ecos Urbanos (1983), ambos de Nilson Villas Bôas. A produtora também se associou à produção do longa Jânio a 24 Quadros (1981), de Luiz Alberto Pereira, o Gal, cedendo equipamentos e tendo quatro de seus sócios trabalhando no longa97. Todos os filmes se filiam ao gênero documental, ainda que tragam inserções e intervenções ficcionais Augusto Sevá aponta as consequências do pioneirismo: Isso nos deu know-how por trabalharmos em filmes diferentes, sabendo administrar esses filmes de uma maneira independente. Esse know-how foi transferido para a Tatu Filmes, na época de sua abertura. Me lembro que quando um grupo, com pessoas inclusive que faziam parte da nossa turma,

95 Id. 96 Apud André Piero GATTI. O consumo e o comércio cinematográfico no Brasil vistos através da distribuição de filmes nacionais: empresas distribuidoras e filmes de longa-metragem (1966-1990), Anexo XXXII. 97 Augusto Sevá montou e interpretou um dos personagens, Di da Paixão fez o figurino e a maquiagem, Tião Maria a cenografia, e Rubens Xavier fez produção de arquivo.

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como o Walter Rogério, resolveu montar a Tatu, foram na Gira entender como fazíamos a administração dos filmes nesse modelo que tínhamos, com características mais de cooperativa do que de empresa; uma empresa coletiva, como a gente chamava. Muitas pessoas passaram nos procurar para produzir os seus filmes. Nunca foi, porém, um projeto empresarial; a Tatu talvez já tivesse esse objetivo.98

O papel aglutinador da Gira foi muito positivo num primeiro momento, permitindo discussões sobre criação, cinema, política etc, concebendo novos padrões de produções, mais coletivos, com menores orçamentos, e aprendendo-se com a vivência em grupo. Esse foi o modelo exportado para as outras produtoras que surgiam no bairro. Rubens Xavier, porém, aponta também problemas na dinâmica inovadora da Gira: Havia uma hierarquia na Gira Filmes, não era coisa dos sonhos. Era interessante, aquele grupo o tempo inteiro pensando, vivendo, comendo. As pessoas todas de cinema se reuniam em volta da gente. Não era uma criação coletiva, cada um fazia a sua coisa. Eu e o Bhig trabalhávamos mais com produção, então estávamos mais nos projetos dos outros.99

Segundo depoimentos de Augusto Sevá e Reinaldo Volpato, à época, os filmes da Gira se guiavam pela ideia do “personagem-sujeito”, utilizada em A Caminho das Índias. Em entrevista a Cláudio Kahns, produtor e sócio-fundador da Tatu Filmes, em 1981, para a revista Filme Cultura, Volpato explica: A gente fala que está inventando o cinema brasileiro. Pode ser pretensioso, mas é isso. A gente quer inventar esta história do personagem-sujeito. ‘O que você acha importante falar com o Brasil inteiro? o que é importante registrar?’. Eu vou perguntar: - ‘De que jeito’, ‘como é que é’, ‘assim tá bom’, ‘assim tá errado’, e a gente vai construindo um trabalho cinematográfico juntos. E isso tem resultado. Começou com Pergunta de Amor, e todos os trabalhos seguintes fizemos assim. Começamos a perceber o seguinte: que este trabalho só pode ter uma função se ele for exibido da mesma forma como ele é produzido. Batalhamos para abrir uma nova frente de exibição. A Gira não quer passar como informação aquilo que a gente já sabe. Queremos descobrir qual a informação que existe. Não queremos manipular as informações na perspectiva de contar o que eu acho, minha análise da realidade. Quero que ela esteja presente na hora em que a gente estiver filmando, através da nossa construção. Não vou te pergunta quanto você ganha e provar que teu patrão te explora. Agora, vou querer ficar sabendo como é que você se relaciona com o teu patrão. E se esta informação existir, que ele explora, ela aparece. Acabar um pouco com esta história do cinema de autor, onde o cara vai lá e se expõe, manipula todas as informações para dizer o que ele quer.100

Em 1988, novamente para a Filme Cultura, Volpato voltou a falar do conceito: Isso significa trabalhar na perspectiva de que a pessoa que tem a informação para dar, a dê com total liberdade e responsabilidade por ela. Nosso trabalho se resume então em, juntamente com essas pessoas que vivenciam as

98 Em entrevista para o autor em 26 de novembro de 2014. 99 Em entrevista para o autor em 23 de novembro de 2015. 100 Cláudio KAHNS. Inventando o cinema, p. 61

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experiências que querem revelar para o mundo, co-dirigir e administrar a forma de falar essas coisas todas.101

O filme derradeiro da Gira foi seu segundo longa, Abrasasas (1984), de Reinaldo Volpato. Reinaldo José Volpato (Lavínia, 1951) cresceu no interior de São Paulo, em cidades como Campinas e Botucatu. Nesse período, frequentou muito os cinemas e se aproximou da prática teatral, atuando em peça do Grupo de Teatro São Luiz, em Campinas. Aos 17 anos, escreveu e dirigiu a peça Seis Dias na Semana, apresentada em Botucatu. Mudou-se para São Paulo em 1969 para cursar Teatro, na ECA/USP. Na primeira aula, ministrada por Paulo Emílio Salles Gomes, Volpato mudou a graduação para Cinema. Concluiu o curso em 1975. Durante a faculdade, começou a trabalhar na Raiz Produções, como montador e técnico de som de diversos documentários, rendendo- lhe vários convites para funções técnicas. Montou vários programas para o Globo Repórter, trabalho que sustentou a Gira por algum tempo, e curtas para o projeto Cinema de Rua, inclusos O Buraco da Comadre, Ambulantes (1976), de Wagner de Carvalho e Jorge Santos, e Herança (1976), de Penna Filho. Nesse período, também montou os longas Os Mucker (1979), de Jorge Bodanzky e Wolf Gauer, Certas Palavras com (1980), de Maurício Berú, e O Bandido Antônio Dó (1980), de Paulo Leite Soares. A aproximação com João Batista de Andrade também rendeu a montagem de Caso Norte (1977) e Greve (1979) e a assistência de direção para Alice (1978). Volpato começou a dirigir com Boias Frias. Seguiu com Pau pra toda obra. Dirigiu ainda, para a Raiz, os curtas Rio Tietê e Rio Paraíba (1976). O cineasta esteve bastante envolvido nos projetos da Gira Filmes. Montou o longa A Caminho das Índias e os curtas Foi Assim, Afundação do Brasil, Oro e A Voz do Brasil, roteirizou Identidade e dirigiu Pergunta de Amor e Paixão Maria. Abrasasas começou em 1979, como Nenhum Pássaro Abrasasas. O argumento, elaborado com sua irmã, Rita de Cássia Volpato (1960), que cursava cinema na ECA, ganhou Cr$ 300 mil, com o Programa de Desenvolvimento de Projetos da Embrafilme em março de 1980, para desenvolver roteiro, orçamento e análise técnica para produção. Em outubro do mesmo ano, o roteiro foi premiado para ser rodado. O contrato, porém, só foi assinado em março de 1982. Totalmente rodado em São José do Rio Preto, no interior de São Paulo, Volpato e equipe mudaram-se para a cidade no começo de 1982, mas com

101 “ABRASASAS”: um painel horizontal da juventude, p.135.

86 a liberação da verba dificultada, só filmou entre setembro e novembro do mesmo ano, com uma produção bastante acidentada, especialmente por estar a 454 km da capital. Quando Reinaldo convidou sua irmã para pensarem num argumento para um filme a ser inscrito no programa da Embrafilme, Rita, então com 19 anos, trouxe sua vivência como adolescente nos anos 1970 em São José do Rio Preto, para onde a família mudou depois de Reinaldo ir para São Paulo. A experiência, acompanhada por ele através de cartas trocadas e visitas em finais de semana, serviu de base para o retrato da juventude no interior paulista. Ambos assinam o roteiro e a montagem. Reinaldo dirigiu e Rita fez assistência. Dentre os sócios da Gira, apenas Sevá não assina uma função. Castro foi produtora executiva, Bhig fez a direção de produção, substituindo Xavier na função (ele assina a pré-produção), Tião fez a direção de arte e Dionéia a arte gráfica do projeto de merchandising. Em Abrasasas, Celinha (Jacqueline da Costa Silva) faz 15 anos e sonha com uma festa de debutante de gala no clube de alta classe da cidade, mas tem de se contentar com uma reunião em casa com os amigos organizada pela mãe. A partir da festa, o filme conta, em flashbacks, algumas situações expositivas e definidoras sobre os convidados, de forma a compor um painel sobre a juventude de São José do Rio Preto nos anos 1980. Curiosamente, circulam na festa pessoas das mais diferentes classes sociais, agregadas por Celinha, uma menina de classe média baixa. Vemos assim as histórias de, entre outros: Laudevino (Ulisses Pereira), rapaz negro e pobre da periferia que trabalha como cobrador de ônibus; Fátima, a menina supostamente virgem que engravidou; Ramiro (Paulo Casanova), apaixonado por Raquel, que não se vê compreendido pelo pai; o rico Fernando (Vladimir Fernandes), que não tem a atenção dos pais; Mocó (Gilberto Moura), negro com atividades criminosas; o rapaz negro que é barrado na porta de uma festa de ricos num clube, mesmo trazido por um amigo branco. O filme também parte do desejo de investigação do conceito ‘personagem- sujeito’, perseguido e ampliado por Reinaldo Volpato. A concepção do roteiro tinha uma linha narrativa definida, guiada pelo encontro de onze adolescentes de 14 a 19 anos. A partir dessa linha mestra, os irmãos Volpato foram a São José do Rio Preto aprofundar essas narrativas, tendo como base laboratórios com jovens locais. Depois disso, fizeram os testes de elenco, que eram escritos, buscando respostas que mostrassem um pouco da personalidade dos jovens e retratassem o que esses jovens pensavam do mundo. Não houve testes de interpretação. A escolha dos atores se deu a partir da proximidade dos jovens para com a história e seus personagens. Reinaldo Volpato conta:

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Colocamos uma placa: precisa-se de atores. Chegaram 160 pessoas, escolhemos 60. Onze para o elenco principal, três coadjuvantes e o restante figurantes. Foram três meses de ensaios onde as vivências e interferências do elenco levavam a alteração do roteiro. Dos laboratórios de expressão sentimental saía a predisposição para pensar os personagens.102

O único ator, entre os adolescentes, com alguma experiência cênica era Gilberto Moura, que havia feito Wilsinho Galileia (1978), de João Batista de Andrade, e Pixote – A Lei do Mais Fraco (1980), de Hector Babenco, entre outros. Também dentro dessa lógica, são inseridas diversas cenas documentais de São José do Rio Preto, como atividades na rua, nos colégios de diferentes tradições, crianças brincando em bairros periféricos e realizando tarefas, entre outros. Interessava aos irmãos Volpato compor um “painel horizontal” da juventude na época do fim da ditadura militar, ou seja, um panorama sobre o assunto, radiografando diferentes possibilidades e problemas do jovem, sem se estender e se aprofundar em nenhuma delas. Os temas abordados nesses retratos são tais como sexo, virgindade, drogas, família, escola, preconceito, natureza, desejos e perspectivas do futuro, enfrentamento de autoridade, entre outros. A proposta de Abrasasas é a de fazer um cinema juvenil, gênero com pouca tradição em São Paulo, mas que estava fazendo muito sucesso no Rio de Janeiro. Assim como os filmes cariocas – Menino do Rio, Bete Balanço etc. –, Volpato busca se conectar com seu público e seus personagens através do rock nacional. A trilha composta por Sérgio Sá traz emprestada várias músicas de artistas da Vanguarda Paulista, como Arrigo Barnané, Premeditando o Breque e Rumo, entre outros. A canção que abre o filme, composta para o longa, Sobre os rios pretos, de Sá, aproxima-se da toada e do ritmo do rock que sucesso na época, com as estrofes “Onde é que fica o coração desses pássaros?/ Vermelho é sangue/ Vermelho é coca-cola”. Os roteiristas também se preocupam em criar uma atmosfera de embate entre as diferentes gerações retratadas. Os jovens são apresentados como sendo liberais e sem preconceitos, ainda que, vez por outra, picuinhas típicas do ciúme e inveja adolescentes apareçam. Em contrapartida, todos os adultos, pais, tendem a um conservadorismo, ligados a uma moral religiosa dos anos 1940, 1950. Exemplo disso é quando uma moça é confrontada pela mãe sobre a virgindade dela, pois é inconcebível o sexo antes do casamento.

102 Ligia SANCHES. Os adolescentes do Interior, tema de filme.

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Ainda que traga pontos de encontro com a produção juvenil carioca do começo dos anos 1980, Abrasasas herda do cinema de acento social e político realizado por Volpato em seus curtas-metragens a problematização da vida de seus jovens, que enfrentam questões primárias, como preconceito racial, gravidez precoce, a necessidade de trabalhar para sustentar família etc., enquanto os problemas dos filmes cariocas não perpassam por condições básicas de infraestrutura. O filme de Volpato não se dedica apenas a classes menos favorecidas, mas questiona uma realidade em geral não retratada pelo gênero. O título do filme, Abrasasas, é uma junção de ‘abra as asas’, tendo duas referências. A primeira são as andorinhas que viajam para a cidade no verão, filmadas de maneira documental na abertura. A segunda é a ideia de liberdade. No filme, esse mote se apresenta de maneira lúdica, como desejo dos jovens, ainda presos aos pais e a uma imaturidade. O longa propõe que tudo é possível, se realmente seus personagens sonharem. Celinha é quem melhor incorpora tal ideal. Seus sonhos giram em torno de sair da condição social em que está e ter uma vida mais luxuosa. Logo no começo, vemos ela em um baile de gala, montado de forma a sabermos que aquela seria sua situação ideal. Em meio a todos os desejos de bonança e prosperidade na festa, o que mais a atrai é ser levada por uma nave espacial. Logo ela imagina a nave próxima do solo. Apenas Celinha tem seus sonhos apresentados em imagens para o espectador. Ainda que esses desejos não se concretizem, é o que permite a personagem seguir sua vida. Volpato explica: Eu queria fazer um filme com imagens, sons e ritmos que se diferenciassem do padrão internacional, que fosse desimperialista, descolonizado; que se dispusesse ao debate e à conversa mole dos botecos, instigando as cabeças a pensar outras coisas que não a trajetória dos heróis, mas a pessoa comum que cada um é, e a beleza intrínseca e enorme de ser assim a vida. Queria um filme que resgatasse para o sentimento nosso verdadeiro ato de ser e estar. E queria exprimir nos comportamentos da adolescência nascida e criada nestes últimos 20 anos de História, uma necessidade estrutural de transformação. Apresentar uma imagem virtual da sociedade brasileira, numa comunidade do interior do Estado de São Paulo, espelho claro das contradições criadas pela centralização de decisões, poderes e recursos. Queria fazer um filme que fosse um instrumento no empenho de criar novas situações de existência, mais livres e justas. Gostosas. E fiz o Abrasasas. Uma juventude, uma tentação.103

Abrasasas estreou comercialmente em 19 de março de 1984 em São José do Rio Preto, no aniversário de 132 anos da cidade, onde ficou em cartaz por três semanas com sessões lotadas, fazendo mais de 5 mil espectadores. Quase um ano depois, em 01 de

103 “ABRASASAS”: um painel horizontal da juventude, p.135.

89 fevereiro de 1985, o filme foi lançado em São Paulo, no Cinesesc, comemorando o Ano da Juventude. Sem estreia comercial na cidade, o longa foi exibido no Rio de Janeiro dentro do 1º Rio Cine Festival, em agosto de 1985, de onde saiu com os prêmios de melhor som e espírito carioca. Com o término de Abrasasas, a Gira encerrou informalmente suas atividades, com seus sócios abandonando o projeto aos poucos. Formalmente, a Gira ainda existe, mesmo que inativa. O primeiro a sair da empresa foi Sevá, em 1982. Por conta disso, participou pouco apenas do desenvolvimento do projeto de Volpato. Sevá e Isa Castro estavam se separando e Sevá preferiu deixar a Gira e abrir sua própria empresa, a Augusto Sevá Cinema, com a qual produziu seu filme seguinte, Real Desejo. Sevá conta: “Queria minha própria produtora, para fazer os meus filmes e não ter as complicações de ter uma empresa com sete sócios. Enquanto dura é muito bom, você tem sete energias concentradas no mesmo objetivo. Mas só enquanto dura.”104 Rubens Xavier também deixou a Gira em setembro de 1982. Ficou por seis meses fazendo a pré-produção de Abrasasas, à espera do dinheiro da Embrafilme. Recém- casado com Raquel Rolnik, com filha de dois meses, mudou-se para Nova York, nos EUA, onde ficou até 1984. Ele conta: “Quando chegou em 1981, 1982, ninguém estava se aguentando mais. As pessoas não foram saindo [da sociedade], foram abandonando, até que sobrou só o Reinaldo. Combinou-se que cada um pegava o seu [filme enquanto diretor] e pronto.”105 Xavier fez mais alguns curtas para cinema nos anos 1980, como Boca Aberta (1985), Ufogão (1986) e Pé de Guerra (1987), antes de se dedicar à publicidade e institucionais, além de programas televisivos nos vinte anos seguintes. Estreou no longa-metragem em 2010, com A Guerra dos Vizinhos. Nilson Villas Bôas também dirigiu curtas de sucesso, como Frio na Barriga (1987) e A Mulher do Atirador de Facas (1988). Mantém em Itajaí (SC), sua produtora, SetCom, desde 2001. Tem dirigido comerciais, documentários e séries televisivas, com destaque para O Último Kuarup Branco (2007), lançado em versões para TV e cinema. Dionéia da Paixão se separou de Tião Maria um ano depois do fim da Gira e largou o cinema, passando a trabalhar como arquiteta. Tião, por sua vez, dirigiu mais dois curtas, Karai – O Dono das Chamas (1985), com Inês Ladeira, e Ser Krahô (1987). Trabalha também como diretor de arte esporadicamente e se dedica às artes plásticas.

104 Em entrevista para o autor em 26 de novembro de 2014. 105 Em entrevista para o autor em 23 de novembro de 2015.

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Isa Castro produziu diversos curtas e coroteirzou Lua Cheia, nos anos 1980, entre outros trabalhos. Após ter largado a faculdade de cinema nos anos 1970, graduou-se em 1995. No período da Retomada, produziu longas como Oceano Atlantis (1993), de Francisco de Paula, Por Trás do Pano (1999), de Luiz Villaça, Janela da Alma (2001), de João Jardim e , Garrincha, Estrela Solitária (2003), com Milton Alencar Jr., e Benjamin (2004), de Monique Gardenberg. Atuou também como diretora executiva da Associação Paulista dos Amigos da Arte (APAA). Reinaldo Volpato fundou a Taus Produções Audiovisuais em 1987. Dirigiu séries e programas televisivos, como o Viola, Minha Viola, na TV Cultura, e documentários, como o curta Canabraba – A Necessidade de Expressão (1987), com Romildo Sant’Anna, e o longa A Moda é Viola (2010). Produziu e montou O Profeta das Águas (2005), de Leopoldo Nunes. Montou também os longas De passagem (2003), de Ricardo Elias, e Rua 6, Sem Número (2003), de João Batista de Andrade, além de vários curtas. Entre 2007 e 2009, foi gerente executivo de programação da TV Brasil. Atualmente, prepara a produção do longa ficcional Estranhas Cotoveladas, entre outros projetos que desenvolve no interior de São Paulo.

3.2 Barca Filmes

A Barca Filmes foi a segunda produtora de modelo cooperativado a ser constituída na Vila Madalena. Fundada em 27 de novembro de 1980, na R. Fidalga, próxima à esquina com a R. Wisard, era a mais numerosa, com dez sócios, e a única integralmente composta por estudantes e formados pelo curso de Cinema da ECA/USP, colegas que haviam trabalho juntos nos filmes feitos dentro da universidade: A. C. D’Ávila, Joel La Laina, José Roberto Eliezer, José Roberto Sadek, Marian Van de Ven, Regina Dias, Renato Neiva Moreira, Ricardo Dias, Rogério Corrêa e Wilson Barros106. Segundo Joel La Laina: As experiências e as amizades construídas durante a formação universitária motivaram a criação da produtora Barca Filmes com outros nove companheiros do Departamento de Cinema. A produtora facilitou a passagem de seus sócios para a vida profissional no difícil mercado cinematográfico dos anos 80. A Barca Filmes foi uma decorrência, e uma necessidade de consolidar o modo de trabalho desenvolvido na ECA. O estilo de produção não tomava o

106 A maior parte dos integrantes havia concluído o curso em 1979, com exceção de Correa (1980), Moreira (1981) e Van de Ven (1983).

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baixo orçamento destinado aos projetos como um problema e sim como um desafio à capacidade de realizar bons filmes.107

A Barca realizou apenas curtas-metragens enquanto existiu: Sorocaba, 326 Anos (1980) e Maria da Luz (1981), ambos de Wilson Barros; Paulo Emílio (1981), de Ricardo Dias; Por Puro Prazer (1982), de Eduardo Poiano; Prolegômenos (1982), de José Roberto Sadek; Renovo (1982), de Renato Neiva Moreira e Fausto Peres de Campos; A Terceira Idade (1982), de Eliane Bandeira e Marília de Andrade; Verão (1983) e Diversões Solitárias (1983), ambos de Barros; e Negra Noite (1985), de José Roberto Eliezer e Rogério Corrêa. Wilson Barros (Wilson Rodrigues de Barros, São Paulo, 1948-1992) era o mais velho do grupo. Cinéfilo, apreciador do cinema norte-americano e da nouvelle vague francesa, começou a cursar Arquitetura no Mackenzie em 1967. Descontente com a instituição, abandonou o curso após um ano. Prestou vestibular na USP para os cursos de Arquitetura e Urbanismo e de Cinema, sendo aprovado nos dois. Trancou o de Cinema e estudou Arquitetura por mais um ano. Na época, sua namorada trabalhava como fotógrafa still e foi convidada para fazer a fotografia de cena do longa Em Cada Coração um Punhal (1969), porém, por ser em locação, o pai não permitiu, a menos que Barros a acompanhasse. Como teria de estar no set, o diretor do episódio Transplante de Mãe, Sebastião de Souza, contratou-o como continuísta. Devido a um problema com o assistente de direção, Souza promoveu Barros ao cargo. Ele ainda fez assistência de direção do episódio Filho da TV, de João Batista de Andrade. Após o filme, Barros abandonou o curso de Arquitetura, e, em seguida, trabalhou como assistente de direção de Elas (1970), de José Roberto Noronha. Entre 1970 e 1971, foi assistente de estúdio da TV Record, e, em 1971, ainda foi assistente de produção da peça Abelardo e Heloísa, com direção de Flávio Rangel. Em 1972, viajou pela Europa, com objetivo de estudar cinema em Londres, o que não se concretizou. Lá, aprendeu serigrafia. De volta ao Brasil, em 1973, viveu como serigrafista até 1978, criando padronizações para tecido e estamparia para confecção. Em 1975, retomou o curso da ECA. Ele explica: Eu vivia bem melhor naquela época [de serigrafia]. Mas aí teve aquele momento em que eu estava naquela crise, vi que o meu barato era cinema e queria retomar de qualquer forma. Verifiquei que a única possibilidade era, apesar da minha idade avançada, enfrentar o básico da ECA, porque não tinha mais condições, eu não tinha mais mercado, não tinha mais contato com as pessoas, não tinha uma brecha para mim. E iniciar com o meu trabalho, porque

107 Joel La Laina SENE. Memorial Circunstanciado, p. 10.

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o que queria fazer era dirigir, eu não estava a fim de ficar trabalhando de produção, de assistente, me cansava, me enchia o saco. Já que eu ganhava dinheiro de outra forma, podia continuar ganhando dinheiro de outra forma.108

Dentro da estrutura universitária, dirigiu seus primeiros filmes. Dirigiu uma sequência do coletivo Loira que te Quiero (1977) e estreou efetivamente na direção e roteiro com Tigresa (1978), rodado em 16mm, e exibido na Jornada da Bahia, na Mostra Internacional de São Paulo e no festival de Brasília, onde foi premiado como melhor montagem (Ricardo Dias) em 1979. Na USP, ainda realizou o média-metragem Disaster Movie (1979), que antecipa o formato caleidoscópico de seu único longa, Anjos da Noite. Após se formar em 1979, ingressou, em 1980, no mestrado na ECA/USP. Por conta do curso de pós-graduação, fez Crimes da Lata (1980), como proposta de trabalho feita pelo professor Eduardo Peñuela Cañizal. Barros defendeu seu mestrado em 1983, com o curta Verão. Ainda em 1981, foi contratado pela USP como professor de direção e roteiro no curso de Cinema. Na Barca Filmes, realizou quatro curtas: o documentário institucional Sorocaba, 326 Anos; Maria da Luz, realizado com o Prêmio Estímulo do Governo do Estado de São Paulo e exibido na Jornada de Cinema da Bahia, na Mostra Internacional de São Paulo e no Festival de Gramado; Verão, selecionado para Gramado; e Diversões Solitárias, também realizado com o Prêmio Estímulo do Governo do Estado de São Paulo, premiado como melhor direção no Festival de Niterói e melhor filme experimental na Jornada da Bahia. Ricardo Dias (Ricardo Camargo de Souza Dias, São Paulo, 1950) estudou, na USP, Biologia entre 1970 e 1974 e Cinema entre 1975 e 1979. Ele conta: Na verdade, entrei na ECA por falta do que fazer durante a tarde, pois dava aula de Biologia de manhã e à noite. Então, olhei as listas de vestibular e o único curso vespertino era o de Cinema, nem sabia que havia esse curso. Já estava mais ou menos resolvido como biólogo, porém não muito satisfeito. Entrei no curso para preencher o tempo, só que gostei e acabei me dedicando ao cinema.109

Durante os anos de faculdade e de Barca, trabalhou em diferentes funções em curtas diversos, como montador, produtor e técnico de som, como Tigresa, Disaster Movie etc. Pela Barca, com o Prêmio Estímulo do Governo do Estado de São Paulo,

108 “IMAGINEI meu filme numa noite de insônia”, p. 50. 109 Lúcia NAGIB (org.). O Cinema da Retomada – Depoimentos de 90 cineastas dos anos 90, p. 171.

93 dirigiu e escreveu seu primeiro filme, o curta-metragem documental Paulo Emílio, sobre o professor e crítico Paulo Emílio Salles Gomes, de quem fora aluno. Joel La Laina (Joel La Laina Sene, São Paulo, 1951) começou no teatro experimental em 1972, após não conseguir passar no vestibular para Cinema na USP. Ligou-se ao grupo remanescente do TUCA (Teatro da Universidade Católica), com o qual apresentou o espetáculo Terceiro Demônio, trabalhando como ator e como parte da equipe de criação e direção coletiva. Em 1974, foi aprovado em Cinema, cursando de 1975 a 1979. Nesse período, continuou a trabalhar com teatro, em especial com o grupo Assaltimpraças, entre 1977 e 1980, apresentando-se nas ruas e praças de São Paulo aos domingos. Na ECA, La Laina se especializou em direção de fotografia. Na função, fez os curtas Rock, projeto coletivo em que assina também direção, produção, roteiro e montagem, Marilyn Tupi, O Tamanduá Taí - Ou Plus X + 85 B, Esses e ouros Bichos (1980), de Renato Neiva Moreira, e O Aprendiz (1981), de Claudio Neimanas. Também realizou integralmente o experimental Um Filme Dedicado à Solidão (1977). Após a conclusão do curso, em 1980, foi contratado como pesquisador de assuntos culturais, no setor audiovisual, do IDART, depois incorporado ao Centro Cultural de São Paulo (CCSP), onde permaneceu até 1987. Na Barca, entre outros, fotografou os curtas Prolegômenos e Renovo. Desde 1992, La Laina leciona no curso de Audiovisual da USP. Trabalha também como fotógrafo autônomo. A. C. D’Ávila (Antônio Carlos da Silva D’Ávila, São Paulo, 1955-1997) começou a carreira como fotógrafo em 1972. Realizou documentação fotográfica em viagens de trabalho ao Peru, Argentina, Chile e Bolívia, e participou de duas expedições à Antártica (1986 e 1988), a bordo do navio oceanográfico W. Bernard. Expôs seu trabalho em galerias de diferentes lugares do mundo. Cursou Cinema na USP, onde também se especializou em fotografia, realizando a função em boa parte dos curtas de Wilson Barros – Tigresa; Disaster Movie, dividindo o crédito com Jan Koudela; Maria da Luz; e Verão, com José Roberto Eliezer, os dois últimos pela Barca. Ainda dividiu a fotografia com Joel La Laina em Renovo. Tomado pela carreira de fotógrafo e pela vida acadêmica - lecionou na ECA/USP entre 1982 e 1997, onde também defendeu o mestrado (1987) e o doutorado (1995) -, trabalhou em apenas mais três filmes na carreira, como fotógrafo still: A Marvada Carne, No Rio das Amazonas (1995) e Fé (1999), ambos de Ricardo Dias. José Roberto Sadek (José Roberto Neffa Sadek, São Paulo, 1955) cursou Matemática na PUC-SP, em 1973, mas abandonou no primeiro ano. Em 1975, iniciou as graduações de Arquitetura e Urbanismo, no Mackenzie, formando-se em 1978, e de

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Cinema, na USP, que terminou em 1979. Durante o curso, realizou com Carlos Nascimbeni o curta Esquisitamente Familiar (1978), e fotografou, entre outros, Um Musical (1979), de Nascimbeni. Após o término da graduação, fotografou diversos curtas, caso de Um Dia na Vida do Dr. Fulano (1980), de Sérgio Tufik; Crimes da Lata; A Estória de Clara Crocodilo (1981), de Cristina Santeiro; Eh Pagu, Eh! (1982), de Ivo Branco; Mostrando Tudo (1982), de Inimá Simões; El Dolor dos Veces (1987), de Araken Vaz Galvão e Zenildo Barreto; e Strip-Tease (1988), de Ivo Branco, dividindo a função com Antonio Meliande. Fotografou também o episódio Fim de Semana Impossível, de Carlos Nascimbeni, do longa Made in Brazil (1984) e, com Gesvaldo Arjones Abril, o longa Yawar Mayu (1986), de Araken Vaz Galvão. Além de trabalhar em funções diversas nos filmes da Barca, dirigiu e escreveu o curta experimental Prolegômenos, feito com o Prêmio Estímulo do Governo do Estado de São Paulo. Ainda em 1981, iniciou o mestrado em Ciências da Comunicação, na ECA/USP, concluído em 1985. Entre 1986 e 1988, foi artista convidado pela Fulbright na Tisch School for the Arts, na New York University, onde realizou o curta Red Shoes (1987). O doutorado em Comunicação só foi obtido em 2006. Entre outros, Sadek tem se dedicado à televisão, como consultor de projetos e roteirista, e à gestão cultural, atuando como diretor da TV Escola do Ministério da Educação (1996-2000), superintendente do Instituto Itaú Cultural (2002-2003), secretário adjunto da Cultura, do município de São Paulo (2005-2012) e do Estado de São Paulo (2015-). Regina Dias (Regina Maria Dias da Silva, 1953) cursou Cinema entre 1975 e 1979, onde se especializou em montagem. No curso, editou, por exemplo, Complemento Nacional (1978), de Arlindo Machado. No período da Barca, Regina fez assistências de montagem e de produção. Em 1984, começou a trabalhar como montadora da produtora Companhia de Cinema, voltada para o mercado publicitário, sendo sócia até 2007. Trabalhou na equipe de montagem em alguns longas nos anos 1980. Fez assistência de montagem para Laércio Silva em Revolução de 20 (1980), de Sylvio Back, Mauro Alice em O Beijo da Mulher Aranha (1985), de Hector Babenco, e Renato Neiva Moreira em Anjos da Noite, e montagem de som em Fronteira das Almas, e Orí (1989), de Raquel Gerber, entre outros. Com o fim da Embrafilme, afastou-se do cinema. Voltou no final dos anos 2000, fazendo pré-seleção de imagem para O Menino da Porteira (2009), de Jeremias Moreira Filho, e montando Caminhos da Mantiqueira (2011), de Galileu Garcia Jr., em que divide o crédito com Italoã Lara.

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José Roberto Eliezer (José Roberto Albert Eliezer, Santos, 1954), mais conhecido como Zé Bob, ia muito ao cinema desde criança, aproveitando-se das muitas salas que existiam em Santos. Sem saber qual rumo tomar, aos 17 anos, fez um intercâmbio estudantil, passando 11 meses nos EUA, em 1971. No colégio norte-americano, onde podia optar pelas matérias, aprendeu fotografia (revelação, ampliação, entre outras técnicas). Estudou na Escola Superior de Propaganda antes de entrar na ECA/USP. Lá, iniciou seus primeiros exercícios cinematográficos, fotografando curtas, como Roças e Tem Coca-Cola no Vatapá (1976), de Pedro Farkas e Rogério Corrêa. Nessa época, fotografou também, entre outros, 32x78 (A Respeito da Revolução Constitucionalista de 1932) (1978), de Nuno Cesar Abreu, Divina Providência (1983), de Sérgio Bianchi, Hysterias (1983), de Inês Castilho, O Incrível Senhor Blois (1984), de Nuno Cesar Abreu, e Punks (1984), de Sarah Yakhni e Alberto Gieco. Pela Barca, fotografou Por Puro Prazer, A Terceira Idade, Verão e Diversões Solitárias, além de Negra Noite, que codirigiu com Corrêa. Sua primeira experiência em longa-metragem também se deu em âmbito acadêmico, como assistente de câmera de Chico Botelho em As Três Mortes de Solano. Eliezer chegou a trabalhar com Adrian Cooper, Lúcio Kodato e Zetas Malzoni, mas Botelho foi seu principal mentor, tendo assistido ele em Parada 88 – O Limite de Alerta, Curumim (1978), de Plácido Campos Jr., Estrada da Vida (1980), de Nelson Pereira dos Santos, entre outros. Foi Botelho também que lhe deu a primeira oportunidade de fotografar um longa, Janete, estreia de Botelho na direção de longas. Rogério Corrêa (Rogério Correa da Silva, Porto Alegre, 1954) começou o curso de Cinema, na ECA/USP, em 1973. Lá, dirigiu os médias Roças e Tem Coca-Cola no Vatapá, com Pedro Farkas, este último com participação de Paulo Emílio Salles Gomes sobre a afirmação do cinema brasileiro. Ainda realizou Os Queixadas (1978), feito com o Prêmio Estímulo do Governo do Estado de São Paulo. Em 1979, sua então esposa Eliane Bandeira foi admitida no Centro Sperimentale di Cinematografia na Itália. Corrêa a acompanhou. Lá, fez estágio voluntário como segundo assistente de som de La Luna (1979), de Bernardo Bertolucci, e de Oggetti Smarriti (1979), de Giuseppe Bertolucci. Por conta disso, graduou-se apenas em 1980, quando integrou a Barca. Pela produtora, dirigiu, escreveu e produziu seu primeiro curta de ficção, Negra Noite (1985), em parceria com José Roberto Eliezer. Em 1986, abriu a Leão Filmes, empresa que mantém até hoje, pela qual fez Ícaro (1986), também com o Prêmio Estímulo. Com dificuldade de trabalhar em cinema, dedicou-se ao comércio entre 1987 e 2002. De volta ao audiovisual, Corrêa

96 dirigiu os médias Na garupa de Deus (2002) e Perus, uma história feita de ferro, cimento e amor (2011), e os documentários para televisão A Civilização do Cacau (2002), Carpinteiros do Mar (2005), Antes do Futuro (2005) e Duplo Território (2009). Estreou no longa-metragem em 2010 com No Olho da Rua. Renato Neiva Moreira (Carlos Renato Neiva Moreira, Santos, 1953) também iniciou o curso de Cinema em 1973, mas só o concluiu em 1981. Durante o período universitário, realizou o curta documental Esses e Outros Bichos e, na Barca, Renovo, com Fausto Peres de Campos, feito com o Prêmio Estímulo. Foi, porém, como montador que Neiva se destacou. Assistente de montagem de Eduardo Leone em Os Amantes da Chuva (1979), de Roberto Santos, estreou como montador de longas em 1983, com A Próxima Vítima. Fez ainda (1984), de Denoy de Oliveira, Anjos da Noite, Orí, Oceano Atlantis, O Tronco (1999), de João Batista de Andrade, e Harmonia (2000), de Jaime Lerner. Foi o principal montador da Barca: Maria da Luz, Paulo Emílio, Prolegômenos, Diversões Solitárias e Negra Noite. Ainda montou curtas e médias diversos, caso de O Auto-Retrato de Bakun (1984), de Sylvio Back, Raso da Catarina – Reserva Ecológica (1984), de Guido Araújo, Ondas (1986) e Branco e Preto (Norte & Sul) (1988), ambos de Ninho Moraes. Última a se formar, apenas em 1983, Marian Van de Ven era a sonoplasta do grupo. Fez Maria da Luz, Paulo Emílio, Renovo, Diversões Solitárias e Verão, tendo uma longa parceria com Wilson Barros, que começou em Tigresa e Disaster Movie. Outros créditos incluem assistência de som em Pra Frente, Brasil (1982), de , microfonista em Eles Não Usam Black-Tie (1981), de Leon Hirszman, e som direto em Mato Eles? (1982), de Sérgio Bianchi, Punks, O Incrível Senhor Blois, e Marias da Castanha (1987), de Edna Castro e Simone Raskin. A Barca encerrou suas atividades em 1985, cinco anos após a criação. Wilson Barros e Ricardo Dias deixaram a sociedade quando foram estudar nos EUA e, em 1983, com a saída de Barros, a produtora tinha pouco trabalho. Os sócios se dedicavam a outras atividades, como a vida acadêmica, ou mesmo haviam se associado a outras produtoras ou aberto suas empresas individuais, o que levou a dissolução gradual da Barca.

3.3 Tatu Filmes

Em 04 de maio de 1981, a Tatu Filmes iniciou suas atividades. Após frequentarem a Gira Filmes e conversarem com os fundadores, os sete sócios da Tatu – Adrian Cooper,

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Alain Fresnot, Chico Botelho, Cláudio Kahns, Mário Masetti, Wagner de Carvalho e Walter Rogério - abriram sua própria empresa, voltando-se mais às possibilidades do mercado audiovisual. A sede escolhida foi uma casa na R. Wisard, 516, em frente ao Empanadas. A Tatu tinha como principal foco a realização de filmes para o cinema, fossem curtas, médias ou longas, mas, para manter a produtora operante, fez publicidade e institucionais110. Para Cláudio Kahns, à época da criação, a Tatu surgia como uma forma de viabilizar a feitura do cinema que lhes interessava fazer, fora da Boca do Lixo. Diz ele: Sozinhos não poderíamos arcar com despesas de casa, secretária, mais a manutenção que obrigatoriamente deve ser feita com os equipamentos. Mas pensamos que a ‘Tatu’ pode representar, também, uma força a mais para o cinema paulista, de certa forma desprestigiado e distante dos órgãos de apoio, instalados no Rio, como a Embrafilme.111

Um dos integrantes, não nomeado pela reportagem da Folha de S. Paulo, resumiu a experiência da seguinte forma: A ideia é atacar em várias frentes. Com isso estamos conseguindo um mercado permanente de trabalho para os cineastas, independente do fato de não existir, por parte do Estado, uma política cultural e trabalhista. Com a formação da Tatu, que funciona nos moldes de uma cooperativa, tornamos o grupo mais forte, inclusive para encontrar novas fontes de recursos. O fato é que, a partir da nossa união, estamos conseguindo sobreviver apenas às custas do cinema, uma alternativa, até então, quase inviável.112

Tudo começou com Alain Fresnot (Paris/França, 1951), que ainda criança veio para São Paulo com os pais. Pouco depois, começou a frequentar o Cine Joá e, na adolescência, o Foto Cine Clube Bandeirantes. Com 12/13 anos, fez seus primeiros experimentos cinematográficos em 8mm. Nos anos 1960, ainda fez alguns cursos de cinema, como o Seminário de Cinema, na FAAP, e parte do curso da Escola Superior de Cinema, das Faculdades São Luís. Chegou a estagiar na equipe de direção de As Amorosas (1968), de Walter Hugo Khouri, do qual foi demitido. Entrou no curso de Cinema da ECA/USP em 1971, formando-se em 1976. Durante o período em que esteve lá, fez estágio voluntário na Cinemateca Brasileira e realizou alguns curtas. Escreveu, dirigiu Doces e Salgados (1973) e Pêndulo (1973), e produziu e montou Omnibus (1972),

110 Fresnot pontua: “A situação financeira da Tatu Filmes não era segura, os filmes entravam, mas os curtas- metragens tinham taxa fixa de administração pequena. Apesar de nossos custos fixos serem baixos, tínhamos que fazer institucionais e comerciais. O Mário era o único profissional com contatos na área comercial e institucional e, generosamente, colocou na mesa os clientes que eram dele. Durante um certo tempo, fizemos institucionais da Shell, filmes para treinamento e alguns comerciais para a igreja Mormon.” Cf. Alain FRESNOT. Alain Fresnot – Um Cineasta sem Alma, p. 179. 111 Ligia SANCHES. “Tatu”, a saída do buraco para sete jovens cineastas. 112 CINEASTAS se unem e criam produtora.

98 de Sérgio Bianchi. Trabalhou também em outras produções, como diretor de produção em Cristais de Sangue (1975), de Luna Alkalay, assistente de direção em Paranóia, Caso Norte, Doramundo, Wilsinho Galiléia e Eles Não Usam Black-Tie, e montador em Alice, O Homem que Virou Suco e Partido Alto (1982), de Leon Hirszman. Dirigiu ainda o curta Nitrato (1975). Em junho de 1975, Fresnot montou sua própria produtora, a Acauã Produções Artísticas, na Boca do Lixo, no 134 da Rua do Triumpho. Com ela, realizou seu primeiro longa-metragem, Trem Fantasma (1976), feito com baixíssimo orçamento, graças a latas de negativo 16mm que a mãe trouxera da França, contando com equipamentos da ECA e sem pagar ninguém. O filme nunca foi ampliado para 35mm e, portanto, nunca lançado comercialmente, apenas circulando em mostras e cineclubes. Pela Acauã, produziu ainda três curtas: Capoeira (1979), de Fresnot, De Repente (1979), de Adilson Ruiz, e Mar de Lama (1979), de Wagner de Carvalho. Situado na Boca, aproximou-se do cinema que se fazia lá. Como técnico, havia optado por ser montador e adquiriu uma moviola, que ficava na Acauã. Montou, assim, Noite em Chamas (1978), de Jean Garrett, e Sede de Amar (Capuzes Negros) (1978), de Carlos Reichenbach. Foi a partir da Acauã que surgiu a Tatu. Fresnot, percebendo o movimento na Vila Madalena, resolveu adequar a Acauã para o projeto de produtora cooperativa. Convidou assim os outros futuros sócios. Gostaram da ideia, mas não quiseram manter o nome Acauã. Um novo grupo, um novo nome. Em 1981, a Acauã se transformou em Tatu Filmes. No grupo, cada um tinha sua especialidade técnica: Cooper e Botelho eram fotógrafos; Fresnot montador; Kahns e Carvalho produtores; e Rogério e Masetti trabalhavam com som, entre outros. Cada um deles trouxe para a produtora os equipamentos necessários para suas funções técnicas. Todos dirigiam, mas quem queria realmente se estabelecer como diretor eram Botelho, Rogério e Fresnot. Wagner de Carvalho (Wagner Paula de Carvalho), formado em 1975, foi colega de Fresnot na faculdade de Cinema. NA ECA, dirigiu os curtas Casa Tomada (1973) e O Trem (1974). Trabalhou muito com João Batista de Andrade nos anos 1970, de quem foi aluno, como diretor de produção de documentários e especiais para a TV diversos, como os curtas O Jogo do Poder (1975), O Buraco da Comadre, Caso Norte, Greve!, Trabalhadores Presente (1979), e para os longas O Homem que Virou Suco e A Próxima Vítima. Pela Raiz, produtora de Batista, dirigiu os curtas documentais Domingo em Construção (1975) e Ambulantes. Realizou ainda Vila Missionária (1979), com o Prêmio

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Estímulo do Governo do Estado de São Paulo, e Mar de Lama (1979). Na Tatu, Carvalho dirigiu Comitiva Esperança (1984) e dirigiu a produção de Janete (1983), entre outros. Mário Masetti (Mário Masetti Junior, São Paulo, 1951) começou como assistente de direção de , no Teatro de Arena, em 1967, com a peça Arena contra Tiradentes. Também foi assistente de Fernando Peixoto. Começou a dirigir em 1975, com Porandubas Populares, que lhe valeu o prêmio APCA de diretor revelação. Veio, em seguida, A Lenda do Vale da Lua, em 1977, Fogo Paulista, Fogo na Terra, entre outras. Foi no teatro que conheceu Fresnot, que, nos anos 1970, trabalhou como ator em algumas peças, incluindo Tambores da Noites, dirigida por Masetti no Lira Paulistana, em 1980. Masetti começou cedo no audiovisual também, em 1968, fazendo comerciais, seja como diretor, seja como técnico de som. Foi trabalhando com som que Masetti iniciou carreira no cinema. Nessa função, fez Do Sertão ao Beco da Lapa (1972), Elomar (1974) e O Último Dia de Lampião (1974), os três de Maurice Capovilla, Sangria (1972), de Luna Alkalay, Teremos Infância (1974), de Aloysio Raulino, Sargento Getúlio, entre outros. Fez também assistência de direção de O Jogo da Vida (1977), de Maurice Capovilla, Eles Não Usam Black-Tie e A Próxima Vítima. Na Tatu, Masetti foi o principal responsável por contratos de institucionais, em especial com a Shell. Lá, fez assistência de direção para Mulheres da Boca (1982), de Inês Castilho e Cida Aidar, e Janete. Adrian Cooper (Adrian Barrington Cooper, Paignton/Inglaterra, 1945), o mais velho do grupo, estudou artes plásticas em Londres, onde fez pós-graduação em cinema e televisão. Começou a carreira como fotógrafo em 1969, nos EUA, fazendo, especialmente, documentários. Residiu e trabalhou no México, no Chile – onde conheceu Lauro Escorel –, no Peru – onde ele e Escorel montaram uma produtora –, na Inglaterra, e, enfim, no Brasil, onde está radicado desde 1975. Cooper veio ao Brasil a convite de Escorel para participar de um projeto da Unicamp intitulado Memória e História da Industrialização no Brasil. Fotografou, assim, o média Libertários (1976), de Escorel. Na mesma época, filmou o material que deu origem a Chapeleiros, só finalizado em 1983, dentro já da Tatu. Filmou em 1979 o material que daria origem, em 1990, a ABC da Greve, de Leon Hirszman, entre outros projetos. Na Tatu, realizou o média 1ª CONCLAT (1981), sobre a Conferência Nacional da Classe Trabalhadora. Em 2011, Cooper voltou a dirigir, com 30 Anos Depois Lula Relembra a 1ª Conclat, novamente produzido pela Tatu. Cláudio Kahns (Cláudio André Kahns, São Paulo, 1951) estudou na Escola de Sociologia e Política, entre 1970 e 1971. Abandonou o curso para morar na França,

100 atendeu à École de Beaux-Arts entre 1973 e 1975. Lá estudeou linguagem arquitetônica, audiovisual, etc. Na França, teve aulas também na École Pratique des Hautes Études com Marc Ferro e no Musée de l'Homme com Jean Rouch. De volta ao Brasil, Kahns estudou Cinema, na ECA/USP, entre 1976 e 1980, sem se formar. Em paralelo, trabalhou junto com Adrian Cooper em produções e reportagens estrangeiras realizadas no Brasil. Trabalhou também, entre 1977 e 1980, como programador de cinema nas Bibliotecas Infanto-Juvenis da Secretaria Municipal de Cultura. Já atuando como produtor, foi diretor de produção de Que ninguém, nunca mais, ouse duvidar da capacidade de luta dos trabalhadores (1979), de Renato Tapajós, ABC da Greve, Corações a Mil (1983), de Jom Tob Azulay, e produtor em Os Anos JK, uma trajetória política (1980), de Silvio Tendler. Dirigiu o curta O Sonho Não Acabou (1980) e o média Santo e Jesus, metalúrgicos (1983), iniciado em 1978, com Antonio Paula Ferraz. Na Tatu, Kahns começou a ganhar espaço como principal produtor, estando a frente dos longas Janete e A Marvada Carne. Walter Rogério (Walter Luiz Rogério, Avaré, 1946) cresceu em Santa Cruz do Rio Pardo, no interior de São Paulo. Era assíduo frequentador do cinema local, onde via de tudo. No fim da adolescência, mudou-se para a capital para se preparar para o vestibular. Seu desejo por trabalhar com cinema se sedimentou após ver Deus e o Diabo na Terra do Sol (1964), de Glauber Rocha, no Cine Arouche. Estudou Física, na USP, por dois anos, em 1965 e 1966. Com a fundação da Escola de Comunicações Culturais, na USP, prestou vestibular para a primeira turma do curso de Cinema, sendo aprovado, e abandonou a faculdade de Física. Cursou Cinema entre 1967 e 1970, tendo como colegas Aloysio Raulino, Djalma Limongi Batista, Ismail Xavier e Plácido Campos, entre outros. Como técnico, Rogério se especializou em som. Iniciou a carreira, porém, como montador do longa Hitler 3º Mundo (1968), de José Agrippino de Paula. Em 1970, fez seu primeiro trabalho como técnico de som, em Bang Bang (1971), de Andrea Tonacci. Seguiu-se, entre outros, os longas Cristais de Sangue, Conversas no Maranhão (1977), de Tonacci, e O Rei da Vela, finalizado em 1983. Entre 1977 e 1980, Rogério trabalhou como diretor técnico do estúdio de sonorização Stopsom. Nesse período, sonorizou filmes como Mulher Desejada (1978), de Alfredo Sternheim, Braços Cruzados, Máquinas Paradas (1979), de Sérgio Segall e Roberto Gervitz, Os Mucker (1979), de Jorge Bodanzky e Wolf Gauer, A Ilha dos Prazeres Proibidos (1979), de Carlos Reichenbach, A Força dos Sentidos (1979), de Jean Garrett, Embalos Alucinantes (1979), Nos Tempos da Vaselina (1979) e Os Rapazes da

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Difícil Vida Fácil (1979), todos de José Miziara, O Prisioneiro do Sexo (1979) e Convite ao Prazer (1980), ambos de Walter Hugo Khouri, e O Homem que Virou Suco, entre muitos outros. Na Tatu, Rogério fez o som de Mulheres da Boca, Janete, Hysterias e A Marvada Carne, do qual também foi assistente de direção, e montou Chapeleiros, Comitiva Esperança e A Longa Viagem (1985), de Chico Botelho, entre outros. Paralelamente, foi técnico de som dos longas Ao Sul do meu Corpo (1982), de Paulo César Saraceni, Noites Paraguayas, Abrasasas, O Evangelho segundo Teotônio (1984), de Vladimir Carvalho, e dos curtas Fogo Fátuo, Gaviões (1982), de André Klotzel, Ecos Urbanos, além de ter montado O Melhor Amigo do Homem (1982), de Tânia Savietto, e Céu Aberto. Walter Rogério estreou como diretor em 1971, com São Paulo do Café à Indústria, realizado com o Prêmio Estímulo do Governo do Estado de São Paulo. Com o mesmo apoio, fez ainda O Noivo da Morte (1975) e, com produção da Gira, A Voz do Brasil (1981). Na Tatu, dirigiu Aquarela de São Paulo (1982). Chico Botelho (Francisco Cassiano Botelho Jr., Santos, 1948 – Rio de Janeiro, 1991) consumiu cinema em Santos até os 16 anos, quando se mudou para São Paulo. Estudou Cinema na ECA/USP, formando-se em 1973. Na ECA, dirigiu e fotografou Gare do Infinito (1972) e Os Cinco Patamares (1972). Em seguida, fotografou uma série de curtas para o Instituto Nacional de Cinema, como José Bonifácio e a Independência (1973), de Eduardo Leone, e Sob as Pedras do Chão (1973), de Olga Futemma, entre outros. Para o INC, dirigiu também Exposição – Henrique Alvim Correa (1973), com Ella Durst, e Corpo de Baile (1974). Em 1975, foi contratado como professor de direção de fotografia na ECA/USP, onde lecionou até o final de sua vida. Entre 1974 e 1976, trabalhou na TV Cultura. Fotografou ainda curtas, caso de Kaingáng (1979), de Inimá Simões, Fogo Fátuo e Gaviões. Estreou como fotógrafo de longa em As Três Mortes de Solano. Fez, em seguida, Daniel, o Capanga de Deus (1977), de João Baptista Reimão, Parada 88: O Limite de Alerta, Curumim, Estrada da Vida e O Evangelho Segundo Teotônio. Na Tatu, Botelho fotografou os curtas Mulheres da Boca, Aquarela de São Paulo e Hysterias, e estreou na direção de longas-metragens com Janete (1983). Janete começou antes da Tatu. Em meados dos anos 1970, o cineasta fez uma pesquisa para um documentário da TV Cultura sobre jovens marginalizados, nunca concretizado. Botelho conversou com garotos na Febem, jovens que perambulam pelas

102 ruas e prostitutas adolescentes. Para ele, as histórias que mais se destacaram foram as que ouviu na Penitenciária Feminina da Capital, em São Paulo, quando foi documentar o trabalho teatral de Maria Rita Costa na prisão. Essas histórias serviram de base para Janete. Janete, a personagem que dá título ao filme, nasceu como uma soma das meninas que conheceu no presídio. Botelho explica a inspiração: Percebi que, embora as possibilidades fossem muito pequenas para todos, para as meninas ainda eram mais difíceis. As garotas, tanto no mundo do crime como fora dele, tinham muito menos alternativas objetivas para encontrar uma vida melhor. Então, fantasiavam muito mais. E sempre essas fantasias tinham muito a ver com fotonovela e telenovela, quando eram românticas, ou quadrinhos, quando eram marginais.113

Assim como Abrasasas, Janete começou a virar realidade quando o argumento ganhou Cr$ 300 mil no Programa de Desenvolvimento de Projetos da Embrafilme, em março de 1980, para desenvolver roteiro, orçamento e análise técnica para produção. Em outubro do mesmo ano, o roteiro foi premiado para ser rodado. O contrato, porém, só foi assinado em maio de 1982, já sob os auspícios da Tatu. Rodado em junho e agosto do mesmo ano, durante oito semanas e meia, com Cr$ 62 milhões, Janete contou com os ‘tatus’ Cláudio Kahns na produção executiva, Wagner de Carvalho na direção de produção, Mário Masetti na assistência de direção, Adrian Cooper na fotografia still, Alain Fresnot na montagem (com Danilo Tadeu) e Walter Rogério na direção de som. A protagonista, Janete, é interpretada por Nice Marinelli, desconhecida do grande público, apesar de ter feito novela e cinema antes, uma das razões de Botelho tê-la escolhido. Janete é uma jovem prostituta da Boca do Lixo paulistana que também comete furtos. Num desses golpes, é presa no Viaduto do Chá. No presídio, um regime disciplinar severo. Janete, porém, sonha com o momento em que o namorado virá resgatá-la. Relaciona-se com uma detenta e, depois, com Iolanda (Lilian Lemmertz), a diretora da penitenciária, que lhe rende proteção e uma série de benesses no cárcere, inclusive uma visita ao circo. É na ida ao espetáculo circense que conhece Margarido (Flávio Guarnieri), o trapezista. Logo, Janete vê o circo como seu futuro: ao lado de Margarido, será também trapezista. Após tentativa de fuga, Janete é surrada por Iolanda, que se vê traída. Não tarda muito à jovem conseguir escapar e pegar a estrada, de carona num caminhão, até o que seria o próximo passo da trupe circense, Curitiba. Como agradecimento, Janete se entrega ao motorista. O Circo Royal partira para Serra Dourada, e Janete segue a trilha. Lá, permanece um tempo trabalhando num bordel, até descobrir para onde o circo foi. Ela

113 Helena SALEM. ‘Janete’ nas telas: a jovem-ladra-mulher busca o amor.

103 segue mais uma vez, enfim, alcançando-o. Aproxima-se de Margarido, mantendo com ele um romance, e começa a praticar no trapézio, causando uma celeuma entre os irmãos trapezistas, porque ela está longe da qualidade deles. Numa noite, já estabelecida, Janete é coagida por um policial à paisana a fazer sexo com ele. Ela refuta e consegue se desvencilhar. Durante uma batida policial, comandada pelo mesmo policial, Janete, sem documentos, é presa e achacada. Ao final, foge da delegacia e se põe novamente a pegar carona, em busca de uma nova aventura, uma nova vida, um novo sonho. Janete traz uma proposta bastante diferente para trabalhar o tema da delinquência juvenil e de jovens marginalizados. Para a protagonista, a prostituição, a prisão, o crime e o circo são ciclos, pedaços da vida que começam e acabam, alguns de sua preferência, outros não, mas sempre levados com uma atitude positiva. Janete não é vítima de sofrimentos, ainda que abusem e se aproveitem dela. O roteiro, por vezes, parece mal amarrado e sem grandes conflitos justamente por conta da atitude da personagem, que aceita tudo que lhe vem muito facilmente, assim como um tanto facilmente consegue superar seus obstáculos. O filme funciona por estar sempre em movimento, seguindo uma estrutura de , em que os eventos se desdobram e se resolvem à medida que o cenário muda. Curiosamente, à época, foi taxado como um “pixote de saias”, uma versão feminina do longa Pixote, a Lei do Mais Fraco, que circulou bem no exterior e levou multidões aos cinemas brasileiros. Janete não tem nada de Pixote; não é um filme sobre os dramas e agruras do menor abandonado e marginalizado pela sociedade. No release do filme, replicado aos borbotões em reportagens da época, Botelho já abordava a vontade de um diferente registro: Janete conta as aventuras de uma jovem marginalizada. Geralmente, em um grande número de filmes, o marginal é criticado por sua alienação ou, no decorrer da história, adquire uma ‘consciência social’ e, a partir daí, passa a tomar atitudes políticas. Com Janete não acontece nada disso. Ela não é tratada como alienada nem adquire nenhuma ‘consciência social’. Sua principal característica é um certo ‘camaleonismo’ que as pessoas que sobrevivem têm. Ela consegue adaptar-se com facilidade a qualquer situação nova que encontra e assim consegue sempre sair-se mais ou menos bem de todas elas. Essa capacidade de ser, a cada instante, uma coisa diferente, é a sua única coerência, sua frieza e seu amor, suas mentiras e sua sinceridade, o grande suporte para suas fantasias. Janete e seus companheiros são pessoas comuns. Nada do marginal visto como um ser de outro mundo. Os marginais de Janete são jovens de jeans e tênis, como os da rua. Seus sonhos e fantasias são muito próximos dos de qualquer adolescente de classe média e é com essas fantasias que o filme pretende comprometer-se.114

114 TATU FILMES. Janete (release). São Paulo, 1983.

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O circo funciona assim como mote para uma fábula. É nele que Maria Filomena da Silva se transforma em Janete, eleva-se dentro de sua própria idealização. Ali, pouco importa o que de fato é – a penúria do circo, a dificuldade de se entrosar, a continuidade do abuso –, mas sim como Janete vislumbra aquele mundo, tal qual um conto de fadas, a ascensão social e a busca por se encontrar. Mas, para Botelho, esse sonho de Janete está dentro do ciclo, como uma sobrevivente, abandona o circo quando se torna inviável e parte para outro sonho, que nós, espectadores, não sabemos qual é. Em Janete, Botelho aponta características que seriam melhor desenvolvidas em seu longa seguinte, Cidade Oculta, mas que aqui despontam para diferenciar o filme do panorama das produções brasileiras. O flerte com outras formas de comunicação de massa, como os quadrinhos, a fotonovela e a telenovela, em termos de mise-en-scène e estruturação narrativa, aproxima e afasta o filme do seguimento popular. Ele usa de enquadramentos que favorecem os atores, em close-ups, e de uma narrativa fragmentada, episódica, contada em muitos e rápidos planos, que colocam o filme em sintonia com a produção artística consumida pelo grande público. Essas escolhas, porém, são deglutidas por um cineasta cinéfilo, que mimetiza uma forma em um conteúdo nada comum para esse tipo de narrativa. A escolha de Arrigo Barnabé como compositor da trilha musical talvez seja uma boa analogia nesse caso. Barnabé é um músico erudito, com diversas referências do universo popular, que mescla o pop com experimentação, tanto nas músicas incidentais, quanto nas canções. Barnabé, à época, tinha forte apelo popular dentro de um nicho muito específico, de cultuadores da Vanguarda Paulista, mas não tocava nos rádios. Sua canção Janete, interpretada com , tem uma sonoridade bastante experimental e irreverente, travestida de popular, trabalhando com múltiplas vozes, sintetizadores eletrônicos, canto falado, atonalidade etc., bem aos moldes do que Barnabé fazia em seus discos autorais. O desejo de aproximação com qualquer público e que norteia boa parte da produção paulista dos anos 1980 já era tema de discurso de Botelho à época de lançamento de Janete: Quando pensei em fazer Janete, tinha uma proposta muito simples. Construir uma história fácil, de gente comum, que qualquer pessoa pudesse entender e que fosse um filme extremamente bem acabado sob o aspecto técnico. (...) Janete tinha que ser um filme tecnicamente sofisticado. E por que não ser? É a mais colonizada das visões aquela que quer exigir que a cinematografia de um país subdesenvolvido seja obrigatoriamente precária em sua técnica. O cinema mudou e nós mudamos com eles. Somos a geração que apareceu muito depois do cinema novo.115

115 Id.

105

O filme estreou no 11º Festival de Gramado, em março de 1983, onde recebeu os prêmios de fotografia e música original. Em outubro do mesmo ano, o filme competiu no 16º Festival de Brasília, vencendo nas categorias atriz (Marinelli) e montagem. No meio do caminho, o filme estreou em São Paulo, em 29 de agosto, nos cinemas Paulistano, Marabá e Calcenter, e no Rio de Janeiro em 17 de outubro. Até março de 1984, Janete fez 90236 espectadores, segundo dados da Embrafilme. O filme permaneceu em cartaz até 1988, quando encerrou seu ciclo de cinco anos, fazendo 2901 espectadores em seu último ano. Após Janete (1983), Botelho dirigiu o curta A Longa Viagem, premiado em Gramado como melhor filme, e fotografou, pela Tatu ainda, Interior na Praia (1984), de Cristina Prado. Paralelamente, fotografou Céu Aberto, entre outros. Criou, em 1985, a Orion Cinema e Vídeo, com a qual realizou seu longa seguinte, Cidade Oculta. O segundo longa da Tatu Filmes veio de fora do quadro de sócios. André Klotzel era bastante amigo dos sócios, em especial de Chico Botelho, de quem foi corroteirista e assistente de direção em Janete. André Klotzel (São Paulo, 1954) também cresceu interessado pelas artes, em seu caso, mais especificamente, pela fotografia. Desde pequeno gostava de tirar fotos. Adolescente, aprendeu a revelar e a ampliar. Era também cinéfilo, interessado nas películas italianas e independentes norte-americanas. A opção por cinema se deu ao assistir a uma aula de Álvaro Moya, aos 16 anos, em que Moya fez uma análise sobre Cidadão Kane, explicando a linguagem cinematográfica. Depois de ter contato com a câmera super-8 de um amigo, passou a ter a pretensão de ser diretor de fotografia. Entrou na ECA em 1973, no meio do ano, na turma da noite. Ainda no primeiro ano, enquanto estava no curso básico, assistiu, como ouvinte, às aulas de Paulo Emílio Salles Gomes, que o fizeram repensar o cinema brasileiro. Em 1974, por indicação de Paulo Emílio, começou a estagiar com Primo Carbonari. Pouco depois, acompanhou Alain Fresnot e sua turma em uma entrevista a Aníbal Massaini para a faculdade. Lá, voluntariou-se para trabalhar em suas produções, conseguindo seu primeiro emprego como assistente de produção do episódio O Despejo, de Adriano Stuart, do longa Cada um Dá o que Tem (1975). Na Boca do Lixo, trabalhou como assistente de produção em Exorcismo Negro (1974), de José Mojica Marins, diretor de produção em Os Três Assobios, de Stuart, para Sabendo Usar Não Vai Faltar (1975), fotógrafo de cena de A Carne (1975), de J. Marreco, e como assistente de direção de Stuart em Kung Fu Contra

106 as Bonecas (1976). Segundo Klotzel, a experiência na Boca foi fundamental para moldar sua forma de fazer cinema: [Trabalhar na Boca] era uma experiência muito boa. Acho que me enriqueceu demais, ao ter um contraponto muito grande com aquela coisa da ECA, meio cabeça, meio teórica, uma técnica meio despregada da prática. Quem tinha maior ligação prática com a área era o Roberto Santos, que dava aula de direção, e o Paulo Emílio, que sem dúvida fazia toda diferença, por ser ligado ao cinema brasileiro como um todo, não especificamente à produção. Ficávamos dias discutindo um filme. A Boca servia como um contraponto a isso, porque lá era muito profissional. Apesar de toda precariedade que existia nos filmes, existia um profissionalismo muito bem determinado, existiam regras que funcionavam no cinema industrial ou artesanal, talvez, mas que eram muito determinadas. Lá, soube o que era ser profissional, competente, capaz, que foi um aprendizado fundamental para mim com aquela idade. E me tirou um pouco da arrogância, de aluno metido à besta, que tinha na ECA.116

Paralelamente na ECA, Klotzel dirigiu os curtas Eva (1975) e Os Deuses da Era Moderna (1977), e fotografou ou cofotografou diversos curtas, entre eles, A (1976), de Giselle Gubernikoff, Hoje tem Futebol, Tem Coca-Cola no Vatapá, o qual também roteirizou, e Os Queixadas. Formou-se em 1978. Foi ainda assistente de produção em Curumim, da Nau Filmes. Através dela, começou a fazer a pesquisa para o longa Castro Alves em São Paulo, de Nelson Pereira dos Santos, com fotografia de Chico Botelho. O filme nunca saiu, mas serviu para aproximar Klotzel de Nelson, de quem foi assistente de direção em Estrada da Vida. Antes de estrear no longa-metragem, Klotzel filmou Gaviões, feito com o Prêmio Estímulo do Governo do Estado de São Paulo. O roteiro de A Marvada Carne (1985), seu primeiro longa, foi escrito em 1982, pouco antes de abrir as inscrições para o edital da Embrafilme para coprodução. O problema é que não tinha uma empresa por trás. O filme talvez nunca tivesse saído se Chico Botelho não oferecesse a Tatu Filmes para ser produtora de seu projeto. O roteiro foi aprovado em maio de 1983. A ideia para o filme, porém, é muito anterior, e remonta a 1977, quando Klotzel fez Curumim. Ele conta: Tinha uma faixa que precisava ser pintada. O cara que ia fazer era de Itu e ficava contando um monte de história. Na primeira conversa, já havia percebido como ele contava histórias caipiras, e que daria um belo filme. Ninguém tinha feito, só o Mazzaropi. Fiquei com aquilo na cabeça. Minha primeira ideia era um cara que tinha ‘nomadismo’, não conseguia parar no mesmo lugar.117

116 Em entrevista ao autor, em 29 de setembro de 2009. Cf. Gabriel CARNEIRO. Entrevista com André Klotzel. 117 Id.

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A história sofreu alterações até 1982, mas não o mote que interessava a Klotzel, a cultura caipira. Trabalhar em filmes como Curumim e Estrada da Vida, que se passam no universo rural, ajudaram a enriquecer o repertório do cineasta. Foram anos de pesquisa. Na biblioteca do Instituto de Estudos Brasileiros (IEB), da USP, indicaram-lhe Cornélio Pires. Foi grande descobriu o tom do filme. Conta: “Ele era o cara do caipirismo. O Cornélio Pires tem um pouco a ver com essa gênese do Mazzaropi. Foi nas mesmas raízes do Jeca do Mazzaropi que surgiu A Marvada Carne. A busca do humor popular, caipira” 118. Durante a pesquisa, também leu Os Parceiros do Rio Bonito, de Antonio Cândido. Num dos apêndices, ele fala sobre a fome psicológica, que em determinadas regiões, na cultura de subsistência – seja no Brasil, seja na Europa -, em lugares pequenos, não passam fome, são bem alimentados, mas têm desejo por determinados alimentos que são inviáveis de conseguirem nesse lugar - o que gera essa característica psicológica, que é quase fome. Caso da carne: “Ás vezes, até tem vaca, mas serve para tirar leite, para puxar arado. Também pode ser que não tenha gente para consumir um boi inteiro. Mata uma galinha, mata um porco, mas um boi não. E fica esse desejo. Um cara que quer comer carne, carne de boi. Dá uma ótima história! Assim que surgiu”119. A versão final foi escrita após a aprovação pela Embrafilme, que gostou do roteiro, mas o achou “cru”. Klotzel queria alguém que pudesse ajudá-lo. Recomendaram-lhe Carlos Alberto Soffredini, que havia escrito a peça Na Carrera do Divino, encenada pela primeira vez em 1979, com uma temática caipira. Klotzel, segundo afirma, não conhecia a peça. Ele conta: “[Li] o texto da peça, achava um pouco sociológico demais, queria outra coisa. Tive uma resistência muito grande. Fui falar com o Soffredini; ele era o cara que tinha o dialeto do caipira e o chamei para escrever comigo. Quis pegar o lado poético, o lirismo do caipira”120. Por conta do conhecimento do dialeto, em que o roteiro se esmerou a ser o mais verista possível, Soffredini também assina os diálogos. No filme, Nhô Quim (Adilson Barros) tem como maior desejo comer carne de boi. Como onde mora, não há sinal do animal ou do alimento, ele perambula pelos campos e vilarejos. Em um deles, conhece Sá Carula (), uma moça que implora a Santo Antônio para que lhe arranje um marido. Carula vê em Quim a chance de se casar. Para tal, arma um plano. Para descobrir seu segredo, bebe de sua caneca. Assim, fica

118 Id. 119 Id. 120 Id.

108 sabendo de seu desejo pela carne de boi. Carula espalha um boato de que seu pai, Nhô Totó (Dionísio Azevedo), dará um boi como dote. Nhô Quim decide então pedir a mão de Carula em casamento. Porém, Quim deve cumprir uma série de complicadas provas organizadas por Nhô Totó. Quim e Carula decidem fugir e se casar escondidos – pois assim o fato já estaria consumado e o boi poderia ser entregue. Apenas após a fuga Nhô Quim descobre que não há boi. Ele e Carula tocam suas vidas, mas a vontade pela carne de boi não passa. Quim decide assim fazer um pacto com o “coisa-ruim” na encruzilhada, mas se depara primeiro com o Curupira (Nelson Triunfo) e depois com a Mulher Diaba (Regina Casé). Ele havia levado uma galinha como oferenda. A Diaba diz ser uma mulher com muita fome e pede a galinha para saciar sua necessidade. Quim consegue enfim trocar a galinha por dinheiro e parte rumo à capital. Após ser enganado, aproveita um saque ao supermercado e rouba um pedaço de carne de vaca. Ao fim, algum tempo depois, Quim e família celebram em um churrasco na laje. A Marvada Carne foi rodado ao longo de oito semanas, entre julho e agosto de 1984, quase todo em Juquitiba, no interior de São Paulo. Por falta de dinheiro nas filmagens, houve uma interrupção de quatro meses para rodar a última etapa. O longa contou com um orçamento de Cr$ 370 milhões, à época, equivalente a US$ 150 mil. Para o filme, a casa da fazenda foi caiada e as demais foram construídas pela equipe de arte, liderada por Adrian Cooper, que estreou na função com esse filme. As moradas construídas utilizaram materiais como madeira, barro, palha, entre outros, de forma a compor um cenário realista, ainda que houvesse liberdades poéticas – cada casa metaforizava a personalidade de seus moradores. O filme conta com produção da Tatu Filmes e coprodução da Superfilmes, companhia que Klotzel fundou entre o resultado do edital e a filmagem com outros quatro amigos. Dos sócios da Tatu, além de Cooper, o filme teve Cláudio Kahns como produtor executivo, Walter Rogério como diretor de som e assistente de direção e Alain Fresnot como montador. Da Superfilmes, Pedro Farkas atuou como diretor de fotografia e Zita Carvalhosa como assistente de produção. Em A Marvada Carne, André Klotzel se afasta dos predecessores do cinema caipira, como, por exemplo, o ator, diretor e produtor Amácio Mazzaropi, que não só com o personagem Jeca moldou o imaginário popular para a figura do caipira, ou o diretor Jeremias Moreira Filho, responsável por filmes como O Menino da Porteira (1977) e Mágoa do Boiadeiro – todos grandes sucessos de bilheteria.

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A representação do caipira em Mazzaropi reforça o estereotipo do homem ingênuo, preguiçoso, acomodado, maltrapilho e indiferente às normas da língua portuguesa, mas a favor da moral e dos bons costumes, em que o humor vem da sensação de absurdo frente ao comportamento do personagem – o que pode parecer um riso do ridículo do caipira para quem o vê nitidamente como um sujeito atrasado, mas que traz toda uma particularidade da composição do Mazzaropi, egresso do circo e rádio, com um humor calcado no exagero. Nos seus filmes, porém, é evidente a noção de que esses sujeitos estão presos a um passado que não existe mais. Para Célia Tolentino, “a condição do Jeca, como se pode ver nesse [Jeca Tatu, 1959] e nos demais filmes de Mazzaropi, corresponde criticamente ao sujeito que não se adaptou ao moderno, ao mundo industrial e à ética do trabalho”.121 O caipira nos filmes de Jeremias Moreira Filho são homens do campo trabalhadores, com identidade própria, mas longe de reforçar um estereotipo. Moreira Filho olha para a cultura caipira com enorme nostalgia e seus sempre trazem uma aflição e uma lugubridade frente à iminente modernidade que toma conta do campo – isso é bastante forte em Mágoa do Boiadeiro, em que a profissão é substituída pela de caminhoneiros. A Marvada Carne segue outra linha. Há ali o retrato do matuto, com uma caracterização costumeira, entre o maltrapilho do Jeca e o vestual de Moreira Filho, a própria lógica linguística, o senso de comunidade, e o mundo essencialmente rural em contraste com o urbano. Para Klotzel, porém, esse universo que retrata não é visto como nostalgia de um bom passado, tampouco como atraso, e a mudança do rural para o urbano faz parte de um decorrer da adaptação do próprio ser humano às coisas que o afligem. O rural e o urbano se opõem apenas como choque fronteiriço inicial entre as duas diferentes realidades, mas a transição para o que vemos no final do filme parece natural para seus personagens, como mais um estágio de suas vidas. Não é uma oposição propriamente, mas sim uma completude. O senso de nostalgia que povoa os filmes caipiras em geral – mesmo em Mazzaropi, a inocência daquela realidade é vista como alternativa à urbanidade e ao caráter predatório dos endinheirados – não está presente em A Marvada Carne. Para narrar a história de Nhô Quim e de Sá Carula, Klotzel se ancora no humor irônico, diferente do pastelão de Mazzaropi. A irreverência vem, em A Marvada Carne,

121 Célia Aparecida Ferreira TOLENTINO. O rural no cinema brasileiro, p. 115. Tolentino, em seu livro, tem uma visão bastante negativa do trabalho de Mazzaropi para com o caipira – e do cinema popular e de gênero, de maneira geral –, preferindo o retrato cinema-novista sobre o sujeito rural.

110 em parte, do caráter lúdico e fantástico que a narrativa apresenta. A começar, há muito pouca ingenuidade no caipira de Klotzel. Seus personagens se assumem como atores interferindo nas próprias realidades. Bom exemplo disso é quando Sá Carula, querendo conquistar Nhô Quim, arma uma representação com Nhá Tomasa (Lucélia Machiavelli), à beira do rio. Primeiro, Carula nada nua no rio, pois, como Quim diz, “rio que moça donzela nada nua nunca mais dá peixe”, desviando-o de seu objetivo e fazendo-o passar por Carula e Tomasa, que lavam roupa. Sá Carula - Agora você pega e coloca uma cara disfarçada como se o acontecido não tivera acontecido, certo? Nhá Tomasa – Certo. Sá Carula – Depois você pergunta conforme a combinação. Nhá Tomasa – Deixe, deixe que eu tô ciente. Sá Carula – Entonce vamo. (começa a encenação para Nhô Quim, que escuta o diálogo) Nhá Tomasa – Sá Carula? Sá Carula – Foi? Nhá Tomasa – Vosmecê tá preparada modo de casamento? Sá Carula – Prontica, prontica. Sabe, Nhá Tomasa, o meu pai, Nhô Totó [com ênfase], tá sabendo qual que é? Nhá Tomasa – Tô sabendo, tô sabendo. Sá Carula – O meu pai possui um boi, você sabia? Nhá Tomasa [engasgando] – Ééé? Sá Carula – Ééé. E no dia do casório, dessa fia de meu pai, ele vai mandar matar [com ênfase] o boi modo de dar carne pro meu marido comer. (pausa, em que Sá Carula olha reprimindo Nhá Tomasa por ela não ter respondido) Nhá Tomasa – Ééé? Sá Carula – Ééé. Nhá Tomasa – Puxa, né? Sá Carula – Pois é.

Se o diálogo já se apresenta como representação, ele é extrapolado pelo tom bastante over e pela própria natureza inverossímil como é articulado. As falas são ditas de forma artificial, sendo gritadas, com enormes pausas entre as palavras, distanciando- se de uma conversa corriqueira. A Marvada Carne apresenta muito de sua irreverência pela inverossimilhança de seus ocorridos. O filme é pouco calcado no realismo pleno – a encenação parece emular uma ideia real do mundo caipira, mas se abre completamente ao lúdico do folclore -, mas o que parece mais curioso é como se relaciona com o fantástico. Todo o desenrolar do filme é mostrado meio como acaso e a explicação tende a ser bastante fantasiosa. Por mais que os personagens aceitem e acreditem nessa característica como parte daquela realidade diegética, eles mesmos acenam a um tempo imaginário. A questão é que o tempo, em A Marvada Carne, se liga a uma realidade própria do filme, pois não nos diz respeito. Se aquela vida rural parece o passado para nós – e o próprio protagonista se

111 refere a como se fosse –, a vida urbana é completamente presentificada122, descontruindo a lógica temporal do filme, pois entre o começo e o fim mal deve ter passado dez anos. Por isso, o fantástico parece se ligar a um tempo imaginário, lúdico que vão além da inserção de figuras como o Curupira e o diabo. O diretor de arte Adrian Cooper explica o conceito do tempo no filme em seu trabalho: Concebemos o filme como um conto de fadas, e imaginamos que o percurso do personagem Quim – das profundezas do mato até a cidade grande e moderna, passando pelo bairro caipira da Velha Torta e a Vila – passaria ao longo de 500 anos da história do Brasil. Cada bloco pensado como se fosse inserido numa época distinta dessa história. As casas, os objetos, os materiais utilizados, as cores e texturas, até o tipo de iluminação foram trabalhados dentro desse conceito geral.123

Exemplo disso é quando Nhô Quim contesta essa relatividade, ao explicar como Sá Carula descobriu o que ele almejava para poder ludibriá-lo a se casar com ela. Diz ele: “Hoje em dia num sei, porque hoje em dia as coisas todas andam muito diferente, mas naquele tempo, eu posso lhe garantir que quem bebesse no mesmo copo de um estrupício qualquer descobria o segredo dele. Ah, isso descobria mesmo.” Logo após a voz do narrador sair, Sá Carula bebe da caneca e dá uma olhada para câmera em cumplicidade, nos dizendo que ela descobriu o que deve fazer. A cena seguinte mostra um rio e pouco depois os pés nus de Carula. Antes de entrar na água, ela volta a olhar para a câmera sorrindo, em cumplicidade, quase piscando.

Figuras 13 e 14 – Sá Carula quebra a quarta parede, em A Marvada Carne

122 O saque ao supermercado que o filme apresenta é uma referência direta aos saques de abril de 1983 em São Paulo, que se iniciaram a partir de um ato de protesto de desempregados. Segundo o historiador Marcos Napolitano: “(...) não se tratava de uma categoria profissional em greve, de alguns estudantes radicalizados ou do movimento social organizado. A multidão, a ‘massa amorfa’ que cotidianamente ocupava as ruas da cidade, parecia ter saído do controle. À direita e à esquerda, a multidão em protesto colocava em xeque as estratégias e discursos que procuravam direcionar a ação coletiva.” Cf. Marcos NAPOLITANO. Cultura e Poder no Brasil Contemporâneo, p. 106. No filme, Quim se aproveita da desorganização geral no saque de um supermercado para afanar um pedaço de carne, já que não tinha dinheiro algum. 123 Vitor ÂNGELO. Adrian Cooper, in Brasil Anos 80: Cinema e Vídeo, p. 63-4.

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A Marvada Carne, assim, quebra a quarta parede – ou seja, o padrão clássico –, ao nos colocar como conluiados na história, sem buscar a total imersão ou adesão do espectador, pois suspende parcialmente a crença na história, desfazendo a ilusão. O filme trabalha com gags convencionais de comédias, como o uso da repetição da mesma frase de efeito cômico (“Ah é... me passou.”), e também com a ironia lúdica, como nas cenas com o Santo Antônio. Sá Carula conversa bastante com a estátua do santo, pedindo a ele um homem para se casar, ora amável, ora irritada, chegando inclusive a afogá-lo. Klotzel filma longos planos de Sá Carula falando e, em seguida, encaixa um plano do santo, que muda de expressão conforme o ocorrido, ora sério, ora sarcástico.

Figuras 15 e 16 – A estátua do Santo Antônio que muda de expressão, em A Marvada Carne

A Marvada Carne estreou no 13º Festival de Gramado, em março de 1985, onde consagrou-se como principal vencedor, levando os prêmios de melhor filme – pelo júri oficial e pelo popular -, direção, roteiro, montagem, cenografia, atriz (Fernanda Torres), especial do júri para Dionísio Azevedo e da crítica. Em maio, o longa foi exibido na Semana da Crítica, no Festival de Cannes. O lançamento comercial, porém, só se deu um ano depois, em 15 de maio de 1986, em São Paulo. Chegou ao Rio de Janeiro em 11 de agosto do mesmo ano. Segundo dados oficiais da Ancine, o longa levou 802451 pessoas aos cinemas. A produtora Superfilmes aponta 1,2 milhão de espectadores. No modelo cooperativo em que foi constituída, a Tatu durou até o final de 1985. Assim como com as demais produtoras desse contexto, os atritos gerados por serem vários os sócios desgastaram a relação interna do grupo. Para Adrian Cooper, o que ficou, porém, foi a mobilização: A Tatu Filmes teve uma grande importância na vida de cada um dos sócios, e na vida do incipiente Cinema Paulista. Era um ponto de contato e notícias, de convivência, de produção de diversos filmes, longas, curtas e de publicidade. Era um clube e um fornecedor de trabalho, um elo numa crescente cadeia de produção independente. E, sobretudo, permitia que cada um dos sócios viabilizasse seus projetos individuais, como o filme Janete de Chico Botelho,

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e filmes de outros cineastas amigos, como A Marvada Carne de André Klotzel. A realização do meu filme Chapeleiros se deve muito a Tatu Filmes.124

Para Alain Fresnot, o projeto da Tatu só funcionou no início: “No começo, quando a situação era confortável, as decisões estratégicas da produtora eram tomadas coletivamente.”125 Por rapidamente se firmar como a principal produtora da região, servindo como ponto de encontro, e por ser dona de equipamentos (câmera, luz, moviola etc.) locados por outras produtoras, a Tatu atraiu muitos cineastas interessados em fazerem seus filmes pela companhia, equilibrando as atenções da empresa para com as produções dos sócios. Assim, foram feitos os curtas como Mulheres da Boca, Hysterias, Qualquer Um (1983), de Rita Buzzar, e Interior na Praia126. Para Fresnot, Castilho, diretora de Mulheres da Boca e Hysterias, foi favorecida por ser, à época, namorada de Botelho, por exemplo. Diz ele: “Naturalmente, dentro da Tatu, prevalecia um jogo de poder pelo qual as alianças se faziam ao sabor dos projetos que estavam se viabilizando no momento. Para mim isto era absolutamente desconfortável, me parecia que a Tatu estava favorecendo os filmes de fora e não os dos sócios.”127 Segundo Fresnot, esse aspecto foi o que mais desgastou a Tatu e, finalmente, levou-a a seu fim enquanto projeto coletivo: Na área do longa-metragem ficou evidente que era impossível um mínimo de lógica. Dependíamos totalmente dos favores da Embrafilme. Dessa maneira o Chico estava fazendo seu segundo filme antes de eu conseguir fazer meu primeiro. O Mário, por exemplo, estava trazendo mais do que recebendo, e então me dei conta de que a produtora estava servindo mais de ponto de apoio a terceiros do que para os próprios sócios. Naturalmente, cada um passou a ser mais rigoroso, fazendo um balanço mais real do que estava ganhando em relação ao tempo, trabalho e empenho para o sustento da produtora. As pessoas foram se retraindo e, consequentemente, foi entrando menos dinheiro. (...) A história do fim da Tatu Filmes é triste. Se tivéssemos resistido até a retomada do cinema brasileiro, muito provavelmente seríamos hoje um dos principais núcleos de produção do país. (...) O fato da Tatu Filmes ter falido como projeto coletivo foi penoso. Atribuo o que aconteceu ao momento, mas também ao encaminhamento dado pelo Cláudio [Kahns]. A Tatu era naturalmente um pólo de atração de produções, assim fizemos A marvada carne, do André Klotzel. Imagino que Cláudio soubesse que o Roberto Gervitz tinha perspectiva de ser “premiado” com um longa-metragem e que o filme do Sérgio Toledo viria também. Ele então entendeu que tinha mais a ganhar se reduzisse o número de sócios e aos poucos foi gerando uma situação desconfortável para os parceiros. Quem é sócio de uma empresa tem sempre seu nome em risco, e não pode permitir que ele fique sujo. O Cláudio foi então aplicando a política do quanto

124 Vitor ÂNGELO. Adrian Cooper, in Brasil Anos 80: Cinema e Vídeo, p. 61. 125 Alain FRESNOT. Alain Fresnot – Um Cineasta sem Alma, p. 170. 126 Os curtas da Tatu nesse período ainda incluem as produções dos sócios 1ª Conclat, Aquarela São Paulo, Chapeleiros, Comitiva Esperança e A Longa Viagem. 127 Ibidem, p.175-6.

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pior melhor para afastar as pessoas. O Wagner [de Carvalho], como produtor que era, e por ter perdido espaço em favor do Cláudio, foi o primeiro a sair. Nós éramos sócios em partes iguais na Marvada carne, aí o Cláudio fez uma negociação, e ficou com uma porcentagem maior do filme. Acabou afastando todo mundo. Fui o último a sair porque percebi o jogo, mas finalmente cedi, pois minha responsabilidade junto à empresa de embalagens da minha família não me permitia arriscar sujar meu nome. (...) No final, ele acabou ficando sozinho com a marca Tatu Filmes, pensando talvez ter feito grande negócio. Então, chegou o Gervitz para fazer seu filme. Foi um desfecho inglório para um processo coletivo de trabalho.128

Com a saída dos demais sócios da Tatu, Cláudio Kahns seguiu com a produtora sozinho. Com ela, produziu Feliz Ano Velho e O Judeu, de Jom Tob Azulay, iniciado em 1987 e só finalizado em 1995, entre outros. Produziu também Vera e Como Nascem os Anjos (1996), de Murilo Salles. Voltou a direção com os longas documentais Mamonas Pra Sempre (2009) e Eu Eu Eu José Lewgoy (2011). Em 2001, Kahns abriu outra produtora, a Brasil 1500, com o objetivo de capitanear coproduções com outros países, em projetos ambiciosos que nunca deram certo. Atualmente, as produtoras desenvolvem filmes institucionais e comerciais para empresas, além de minisséries e documentários para TVs, algumas delas em coproduções internacionais. Após a saída da Tatu, Fresnot abriu a produtora Alain Fresnot Cinema e Vídeo, em 1986, pela qual realizou o curta Amor que Fica (1986) e o longa Lua Cheia, que tentava emplacar desde a Tatu. Com o fim da Embrafilme, em 1990, Fresnot foi trabalhar na fábrica de embalagens da família. Em 1993, com o cinema brasileiro tomando novamente rumo, abriu a A.F. Cinema e Vídeo, sua produtora até hoje. Com ela, realizou o curta Pé de Pato (1994) e os longas Ed Mort (1996), Desmundo (2002) e Família Vende Tudo (2011). Também produziu Kenoma (1998), de Eliane Caffé, Castelo Rá-tim-bum (1999), de Cao Hamburger, Através da Janela (2000), de Tata Amaral, e Raul – O Início, o Meio e o Fim (2012), de Walter Carvalho. Wagner de Carvalho, paralelamente à Tatu, trabalhou na produção de Noites Paraguayas e de O Baiano Fantasma, e, posteriormente, em Avaeté: Semente de Vingança (1985), de Zelito Viana, Cidade Oculta, Real Desejo, e Beijo 2348/72, entre outros. Em 1994, com Walter Rogério e o jornalista Luciano Delion, abriu a empresa VCR Cine Vídeo. Mário Masetti fez som para Fronteira das Almas e fez assistência de direção para Ugo Giorgetti em Boleiros – Era uma Vez o Futebol (1998), O Príncipe (2002) e Boleiros

128 Ibidem, p.180-2.

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2 – Vencedores e Vencidos (2006). Formou-se em Sociologia pela Universidade de Paris X (Nanterre). Atuou também na TVs Manchete, Globo, Cultura e Brasil. Só em 2011 Masetti estreou na direção em cinema, com o curta Anachronique. Fez depois, também para Del Picchia Filmes, Véspera de Natal (2012). Atualmente, Masetti segue dirigindo peças e, em 2013, lançou o romance Por Amor. Após a entrada na Tatu, Adrian Cooper passou a ser mais requisitado. No período, fez vários curtas como fotógrafo. Seguiram-se O País dos Tenentes (1987), de João Batista de Andrade, Orí, Beijo 2348/72, O Fio da Memória (1991), de Eduardo Coutinho, No Rio das Amazonas (1995), de Ricardo Dias, Anahy de las Misiones (1997), de Sergio Silva, Fé (1999), de Ricardo Dias, A Negação do Brasil (2000), de Joel Zito Araujo, Contra Todos (2004), de Roberto Moreira, Cabra Cega (2004), de Toni Venturi, e Rio Cigano (2013), de Júlia Zakia, entre outros. Em 1984, o convite a ser diretor de arte de A Marvada Carne lhe abriu um novo campo de trabalho, passando a fazer mais direção de arte do que fotografia para longas- metragens a partir dos anos 2000. Seguiram-se O Judeu, Memórias Póstumas (2001), de André Klotzel, Uma Vida em Segredo (2001), de Suzana Amaral, Desmundo, Jogo Subterrâneo (2005), de Roberto Gervitz, Batismo de Sangue (2006), de Helvécio Ratton, O Menino da Porteira (2009), Quincas Berro D’Água (2010), de Sérgio Machado, Capitães de Areia (2011), de Cecília Amado, O Segredo dos Diamantes (2014), de Helvécio Ratton, e Prova de Coragem (2015), de Roberto Gervitz, entre outros. Após sair da Tatu, Walter Rogério fez o som de Cidade Oculta, do qual ainda foi produtor associado e coroteirista, e Anjos da Noite, entre outros, mas seu foco foi a direção, realizando Beijo 2348/72, cujo projeto foi iniciado ainda na Tatu.

3.4 Superfilmes

Quarta produtora de modelo coletivo a abrir na Vila Madalena, a Cinematográfica Superfilmes foi fundada em 19 de setembro de 1983, na R. Felipe de Alcaçova, por André Klotzel, José Roberto Eliezer, Pedro Farkas, Ricardo Dias e Zita Carvalhosa. Klotzel conta: Já queria montar uma produtora, uma iniciativa independente, para poder fazer longa. Nesse tempo, era muito amigo do Pedro Farkas. O Pedro estava com um equipamento que precisava sair da casa da mãe dele, o Thomaz [Farkas, seu pai] tinha deixado para ele meio como herança. Tinha moviola, câmera 16 mm. Tinha meio que transferido a guarda para o Pedro, que não sabia o que fazer. A mãe queria que ele tirasse da casa, pois ocupava espaço. Propus a ele que

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montássemos uma produtora. Ele achou legal a ideia. Éramos muito amigos do Zé Bob e do Ricardo Dias. Pouco depois entrou a Zita, e fizemos a Superfilmes. Logo depois que inauguramos, foi aprovado A Marvada Carne na Embrafilme. O longa foi produzido pela Tatu Filmes, que ficava a um quarteirão de distância. A Superfilmes foi produtora associada.129

Pedro Farkas (São Paulo, 1954), filho do produtor e fotógrafo húngaro Thomaz Farkas, cresceu rodeado por equipamentos fotográficos na loja da Fototica do pai, na R. Conselheiro Crispiniano, e entusiasmado com as empreitadas dele pelo cinema nos anos 1960. Pedro estreou como fotógrafo de cena de O Picapau Amarelo (1973), de Geraldo Sarno, produzido por seu pai. Aprovado para Geografia na USP em 1974, pediu transferência para o curso de cinema na ECA/USP, o qual não concluiu. Por conta da USP, foi assistente de câmera em As Três Mortes de Solano e fotografou os curtas Ensaio (1975), de Roberto Duarte, Roças, Nitrato, A Segunda Besta (1977), de Sérgio Bianchi, Gilda e Os Queixadas, entre outros, além de ter escrito, fotografado e dirigido Tem Coca-Cola no Vatapá, feito com Rogério Corrêa. Paralelamente aos curtas, trabalhou como assistente de Lauro Escorel em filmes como Lúcio Flávio, o Passageiro da Agonia (1977), Mar de Rosas (1977) e Coronel Delmiro Gouveia (1978). Estreou na direção de fotografia de longa-metragem em 1977, com A Caminho das Índias. Seguiram-se Maldita Coincidência, O Boi Misterioso e o Vaqueiro Menino (1980), de Maurice Capovilla, Andiamo In’Merica, Certas Palavras com Chico Buarque, Índia, a Filha do Sol (1982), de Fábio Barreto, e Inocência (1983), de Walter Lima Jr. Após a entrada na Superfilmes, Farkas continuou a fotografar bastante para outras companhias. Fez ainda A Marvada Carne, Cinema Falado (1986), de Caetano Veloso, Fonte da Saudade (1986), de Marco Altberg, Ele, o Boto (1987), de Walter Lima Jr., Fogo e Paixão e Lua Cheia. No mesmo período, fotografou também curtas, caso de Mato Eles?, Ecos Urbanos, Idos com o Vento... (1983), de Márcio Kogan e Isay Weinfeld, Amor que Fica, Ufogão e Caramujo-flor (1988), de Joel Pizzini. Zita Carvalhosa (Zita Carvalhosa Leblanc, São Paulo, 1960) formou-se em cinema na Universidade de Paris III, Sorbonne, na França. Na Superfilmes, firmou-se como produtora. Começou como assistente de produção em A Marvada Carne. Por ser a única produtora do grupo, sua carreira confunde-se com a da Superfilmes.

129 Em entrevista ao autor em 29 de setembro de 2009.

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Paralelamente à função de produtora, foi curadora do Museu da Imagem e do Som (MIS-SP), entre 1988 e 1995, onde criou maior espaço para divulgação de curtas- metragens, dando origem ao Festival Internacional de Curtas-Metragens de São Paulo, que ela toca desde 1991. Desde 1995, o festival e outras atividades relacionadas à formação são realizados pela Associação Cultural Kinoforum, que Zita preside. Ricardo Dias e José Roberto Eliezer vinham da experiência da Barca Filmes. Pouco depois de realizar Paulo Emílio (1981), Dias fez mestrado em cinema pela New York University, com bolsa da Fundação Fulbright e da CAPES. Em 1983, após voltar dos EUA e ter saído da Barca Filmes, participou da fundação da Cinematográfica Superfilmes. A sociedade, para ele, não durou muito. Ele conta: Fiquei pouco tempo, percebi que não dava para insistir em fazer cinema, minha situação econômica estava complicada. Encontrei, então, espaço na televisão, na Fundação . Entre outras coisas, trabalhei no Globo Ciência pelo fato de ser biólogo. Foi sem dúvida uma decisão acertada, porque me permitiu produzir um programa por semana, o que era um exercício e tanto. No caso do Telecurso, às vezes eram dois programas por semana. Numa escola de cinema, leva-se mais de um ano para fazer um curta-metragem, enquanto na televisão se faz um curta por semana.130

A Superfilmes desde o início atraiu remanescentes de outras produtoras da região, como a Gira Filmes e a Barca Filmes, bem como novos diretores, em sua maioria provindos da ECA/USP, e, ao contrário das demais empresas coletivas, privilegiou os trabalhos de pessoas de fora. Além de coproduzir A Marvada Carne, a empresa produziu os curtas Punks, Folguedos no Firmamento (1984), de Regina Rheda, Frankie e Albert (1985), de John Perkin, O que Move?, Karai – O Dono das Chamas, A Rifa (1985), de Simone Raskin, Ondas, Pé de Guerra, Marias da Castanha, Branco e Preto (Norte & Sul), A Mulher do Atirador de Facas e A Garota das Telas (1988), de Cao Hamburger. Nos anos 1980, também produziu o longa Anjos da Noite. Realizou também trabalhos institucionais para, entre outros, a Companhia de Desenvolvimento Habitacional do Estado de São Paulo e para a Empresa Metropolitana de Planejamento da Grande São Paulo. Após a derrocada da Embrafilme, a Superfilmes produziu os curtas Os Calangos do Boiaçu (1992), de Ricardo Dias, A Princesa Radar (1992), de Roberto Moreira, Onde São Paulo Acaba (1994), de André Seligmann, Dente por Dente (1994), de Alice Andrade, Amor! (1994), O Bolo (1995) e A Alma do Negócio (1996), os três de José Roberto Torero, Criaturas que Nasciam em Segredo (1995), de Chico Teixeira,

130 Lúcia NAGIB (org.). O Cinema da Retomada – Depoimentos de 90 cineastas dos anos 90, p. 171-2.

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Caligrama (1995), de Eliane Caffé, Brevíssima História das Gentes de Santos (1996), de André Klotzel, O Postal Branco (1997), de André Barcinski, Todo Dia Todo (1998), de Flávio Frederico, Distraída para a Morte (2001), de Jefferson De, e os longas Capitalismo Selvagem, No Rio das Amazonas, Fé, O Cineasta da Selva (1997), de Aurélio Michiles, Tônica Dominante (2000), de Lina Chamie, Urbânia (2001), de Flávio Frederico, e Memórias Póstumas. A parceria inicial foi se dissolvendo aos poucos. Primeiro, saiu Ricardo Dias. Depois José Roberto Eliezer e Pedro Farkas. Após a produção de Memórias Póstumas, André Klotzel saiu da sociedade para fundar a Brás Filmes. Klotzel, que após A Marvada Carne havia realizado os curtas No Tempo da II Guerra (1989), Jaguadarte (1994) e Brevíssima História das Gente de Santos, e os longas Capitalismo Selvagem e Memórias Póstumas, realizou ainda os curtas O Bom Retiro é o Mundo (2006) e De Olaria para Helsinque: a história de um salto (2012) e o longa Reflexões de um Liquidificador (2010). Zita Carvalhosa, a única remanescente, e a Superfilmes fizeram vários filmes após a saída de Klotzel, entre eles, Como Fazer um Filme de Amor (2004), de José Roberto Torero, À Margem do Concreto (2006), de Evaldo Mocarzel, A Casa de Alice (2007), de Chico Teixeira, Sentidos à Flor da Pele (2008), de Evaldo Mocarzel, Um Homem de Moral (2009), de Ricardo Dias, Sudoeste (2012), de Eduardo Nunes, Rio Cigano e Obra (2014), de Gregório Graziosi. Em 1986, Ricardo Dias abriu sua própria produtora, a Noite Americana (Ricardo Camargo de Souza Dias Produções). Enquanto trabalhava com televisão, fez assistência de direção de Ugo Giorgetti, em Festa e codirigiu com Inácio Zatz os médias- metragens Memórias de um anormal (1989) e Uma noite com Oswald, episódio do longa-metragem Oswaldianas (1992), entre outros trabalhos como técnico. Pela Superfilmes, dirigiu também o documentário de curta-metragem Os calangos do boiaçú, primeira parceria com o músico e zoólogo , premiado como melhor curta 16mm nos festivais de Brasília (1992) e Gramado (1993). Estreou no longa-metragem com o documentário No Rio das Amazonas, em que acompanhou uma viagem pelo Rio Amazonas, de Belém a Manaus, com participação de Vanzolini. O longa seguinte, Fé, focou as crenças religiosas brasileiras. O terceiro longa de Dias só veio dez anos depois, Um Homem de Moral, sobre a carreira como músico de Vanzolini. Todos eles foram produzidos pela Superfilmes. No intervalo,

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Dias dirigiu o média-metragem Brasília dos 500 anos (2001) e o curta Pixinguinha e a Velha Guarda do Samba (2006). José Roberto Eliezer se tornou bastante requisitado, em especial na segunda metade dos anos 1980, sendo muito premiado em festivais como Gramado e Brasília. Seguiram-se os longas Filme Demência (1986), de Carlos Reichenbach, Cidade Oculta, Anjos da Noite, Rádio Pirata (1987), de Lael Rodrigues, A Dama do Cine Shanghai, Real Desejo e A Grande Arte (1991), de . Com o fim da Embrafilme, Eliezer voltou-se completamente ao mercado publicitário, tornando a trabalhar frequentemente com cinema apenas em meados dos anos 2000. Algumas exceções incluem o documentário Todos os Corações do Mundo (1995), de Murilo Salles, e Chatô – O Rei do Brasil, de Guilherme Fontes, iniciado em 1999 e só concluído em 2015. Seguiram-se, entre outros, Nina (2004), de Heitor Dhalia, Se Eu Fosse Você (2006), de Daniel Filho, Encarnação do Demônio (2008), de José Mojica Marins, Hotel Atlântico (2009), de Suzana Amaral, Luz nas Trevas: A Volta do Bandido da Luz Vermelha e São Silvestre (2013), de Lina Chamie. Para Eliezer, seu avanço na fotografia vem da cinefilia: “Eu sou, antes de tudo, um cinéfilo. (...) Acho que minha formação técnica é muito uma coisa de observação.”131 Após o fechamento da Embrafilme, Pedro Farkas continuou trabalhando como fotógrafo de cinema, ainda que em um volume menor. Fez Capitalismo Selvagem, Oceano Atlantis, O Monge e a Filha do Carrasco (1996), de Walter Lima Jr., A Ostra e o Vento (1997), de Walter Lima Jr., Ed Mort, Dois Córregos – Verdades Submersas no Tempo (1999), de Carlos Reichenbach, Memórias Póstumas, Desmundo, (2004), de Helena Solberg, (2006), de Sérgio Rezende, Não Por Acaso (2007), de Philippe Barcinski, Os Desafinados (2008), de Walter Lima Jr., O Menino da Porteira (2009), Os Homens são de Marte...e é para Lá que eu vou (2014), de Marcus Baldini, e Através das Sombras (2015), de Walter Lima Jr., entre outros.

131 Francisco Cassiano BOTELHO JR. Técnica e Estética na Imagem do Novo Cinema de São Paulo, p. 86.

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4 UM CINEMA POPULAR

O cinema paulista realizado nos anos 1980 seguiu, com algumas exceções, dois modelos de produção, o sistema da Boca do Lixo e o cooperativo da Vila Madalena. A Boca do Lixo entrou em declínio logo no início da década, quando a Vila Madalena floresceu. A entrada do cinema de sexo explícito, que usurpou o lugar da já esgotada tradicional produção ligeira e erótica, o videocassete, o fim dos cinemas de rua, a inflação econômica, entre outros, tirou o posto de liderança da Boca. Era um cinema eminentemente popular, autossustentável, que dependia dos resultados da bilheteria para manter a produção. Por isso, quando o cinema de sexo explícito entrou em voga, os produtores se voltaram completamente para esse segmento. Era o que pagava. A Boca sempre serviu como ponto de troca de experiências. Estudantes de cinema, produtores publicitários, intelectuais tinham as portas abertas na Boca. Se quisesse produzir um filme dentro daquele sistema, porém, deveria se submeter a uma série de códigos e condutas. Para quem não quisesse seguir esse caminho, sobrava, basicamente, a Embrafilme, empresa majoritariamente estatal, que investia de maneira irregular nas produções do Brasil inteiro. Como todo cinema dependente do Estado, havia uma série de burocracias que atravancavam o processo criativo. Era, porém, a forma que permitia maior liberdade aos cineastas. As produtoras coletivas na Vila Madalena, bairro que abrigava diversos profissionais recém-saídos da universidade, foram fundadas para buscar uma maneira de produzir o que lhes interessava e garantir o sustento, tentando agilizar o processo e trabalhando com menos dinheiro. Nos primeiros anos dessas empresas, produzia-se muitos curtas-metragens e alguns longas-metragens. Aos poucos, esses cineastas e outros profissionais dessa geração vislumbraram a importância de fazerem um cinema que conversasse com o público, que fosse amplamente visto, mas sem se atrelar a modelos cinematográficos, como fazia a Boca do Lixo. Em São Paulo, fora da Boca, apenas Hector Babenco alcançava índices altíssimos de bilheteria. Na Vila Madalena, se Janete já flertou com o popular, A Marvada Carne sedimentou o interesse em reconquistar o público por outras vias, tendo grande êxito. A geração anos 1980, boa parte com base na Vila Madalena, assim, aponta para sua vocação: a busca por uma nova forma de encontrar o grande público; uma maneira alternativa de cinema popular. Os cineastas dessa geração que fizeram filmes com apelo de público eram quase todos cinéfilos, consumidores de cinema desde pelo menos a adolescência, e estudados, frutos de classe média e alta, que, mesmo não formados na área, passaram pela

121 universidade, e trabalhavam em seus filmes múltiplas referências, em geral do próprio cinema. Os códigos do cinema de gênero, seja para serem emulados, seja para serem quebrados, são abraçados na construção narrativa e imagética. O trabalho com o lúdico e o artificial também colaboram para a comunicação popular, dando ao filme brasileiro a aura de sonho, de fantasia, opondo-o à tradicional abordagem realista que marcou a nossa produção, seja a do Cinema Novo, seja a da Boca do Lixo. Outra questão importante era a preocupação técnica dessa geração, em que a imagem e o som apresentados deveriam rivalizar com as melhores produções estrangeiras. São filmes, em geral, exuberantes, com especial cuidado de fotografia e arte. Essa vertente mais popular da produção paulista dos anos 1980 se desenvolve especialmente na segunda metade da década, a partir de 1985, com A Marvada Carne, de maneira mais sistêmica. De qualquer forma, já era possível vislumbrar algumas dessas preocupações em filmes de um momento transitório como Janete e Asa Branca – Um Sonho Brasileiro (1981), de Djalma Limongi Batista, cineasta egresso da USP, mas não ligado à Vila, além das produções de Guilherme de Almeida Prado, Jair Correia, Ícaro Martins e José Antônio Garcia na Boca do Lixo132. Os filmes seguintes de Chico Botelho, Cidade Oculta (1986), e Limongi, Brasa Adormecida (1986), aprofundam-se nessas questões, por exemplo. Preocupações similares são compartilhadas por Augusto Sevá – Real Desejo (1990) –, Guilherme de Almeida Prado – A Dama do Cine Shanghai (1988) –, Isay Wienfeld e Marcio Kogan – Fogo e Paixão (1988) –, Roberto Gervitz – Feliz Ano Velho (1988) –, Sérgio Toledo – Vera (1986) –, Walter Rogério – Beijo 2348/72 (1990) –, e Wilson Barros – Anjos da Noite (1987). Nem todos foram bem sucedidos quanto ao diálogo com o público, ao retorno de bilheteria e à boa receptividade de festivais e da crítica, vale dizer, mas certamente esforçaram-se em tentar uma nova via para o cinema popular paulista. Um interessante caso dessa busca é a produtora coletiva Casa de Imagens, capitaneada em 1988 por André Luiz Oliveira, Andrea Tonacci, Carlos Reichenbach, Guilherme de Almeida Prado, Inácio Araújo e Júlio Calasso. Reichenbach, Prado e Araújo vinham do cinema popular da Boca, enquanto Tonacci, Oliveira e Calasso eram frutos do chamado Cinema Marginal. Juntos, criaram essa empresa, em que cada um

132 Como aponta Jean-Claude Bernardet, são “jovens cineastas cultos que tiveram como ídolo Glauber Rocha, Antonioni ou outros, sentem que sua formação cultural os isola de um público maior, o que tem implicações não apenas econômicas, mas culturais. É o caso de Djalma, que busca quebrar o isolamento no qual o coloca o cinema culto dos anos 60 que o formou, e procura atingir, comunicar com um imaginário bem mais amplo da sociedade brasileira”. Cf. Jean-Claude BERNARDET. Os Jovens Paulistas, p. 78.

122 escreveria três argumentos. Dos três, em consenso, escolheriam um deles para virar roteiro. Os projetos todos deveriam ser baratos, voltados para um público mais popular, e serem feitos a doze mãos, em que cada um dos sócios efetivamente desempenharia uma função nos longas. Os seis filmes deveriam ser rodados juntos para baratear os custos. Prado explica: Estava acabando a Boca e a gente não queria ir para Embrafilme, não queríamos fazer cinemão. A ideia era de desenvolver uma nova versão do cinema popular brasileiro. Uma nova pornochanchada, porque não tinha mais sentido criar erotismo já que já tinha o sexo explícito.133

A Casa de Imagens foi encampada pela Embrafilme, que colocou dinheiro no empreendimento, fato inédito na história da empresa. Apesar do apoio, nenhum longa foi realizado pela Casa de Imagens134, que fechou as portas com o governo Collor.

4.1 Uma busca por um cinema popular brasileiro

A ideia de cinema popular da qual a geração paulista dos anos 1980 se apropriou foge das noções mais antigas de cultura popular, termo forte ainda hoje no Brasil para designar manifestações tradicionais de cultura, folclóricas, ligadas às raízes do povo brasileiro, muitas vezes vistas como primitivas, ainda que autênticas. Não interessa a uma parte dessa geração promover uma realidade essencialmente local, ainda que trabalhe signos de brasilidade. O cinema nasceu fora dessa tradição, dentro de uma perspectiva tecnológica e de fácil reprodução, na chamada indústria cultural. O conceito de cultura de massa, em especial o frankfurtiano, porém, não dá conta dessa produção. Segundo Teixeira Coelho, não é possível mais simplificar, atualmente, a noção de produção para um grande público: A ‘cultura de massa’ ou ‘da mídia’ não pode mais ser entendida nos termos marxistas relacionados exclusivamente com o conceito de classe social e tampouco pode ser explicada conforme um modelo freudiano ou lacaniano exclusivo. A cultura de massa, tanto quanto a popular e a erudita, é hoje (e já há algum tempo) atravessada por linhas de força diferentes - a da cultura da autenticidade, da reclamação, da performance, do consenso, da oposição - que a ligam com a cultura a seu lado sob algum aspecto ou dimensão, num movimento de criação, não de novas estratificações, mas de novas cintilações cujo sentido, embora deslizante, não é inteiramente inapreensível.135

133 Em entrevista para o autor em 04 de maio de 2008. 134 A Casa de Imagens realizou apenas o episódio Desordem em Progresso, de Carlos Reichenbach, para o longa coletivo holandês City Life (1990), da Fundação Hubert Bals. 135 Teixeira COELHO. Dicionário crítico de política cultural, p. 139. Mais além, Coelho aponta: “A partir dos anos 80, de modo particular, admitiu-se com mais facilidade que os produtos dessa indústria [cultural] transmitem mensagens - ralas ou não, desprezíveis ou não - que correspondem a sistemas específicos de significação, refletem hierarquias de valores e surgem de (tanto quanto propõem) modos de vida e de

123

Tampouco interessa a essa geração pensar o cinema entre o erudito (o filme de vanguarda, experimental ou atrelado ao chamado arthouse) e o comercial (feito apenas pelo retorno de bilheteria), mas trabalhando livremente com elementos de ambos. O cinema popular aqui resvala no senso comum do que é popular, para além das diversas correntes teóricas, sem entrar nos pormenores da discussão sobre as transformações do conceito ou da noção de cultura popular através dos tempos, classes sociais e ideologias 136, e não depende do resultado efetivo nas bilheterias, condicionado a fatores diversos. Cinema popular é aquele em que qualquer pessoa pode usufruir e entender o filme, conversando com padrões de imagens, procedimentos e conteúdos presentes no imaginário popular, os ditos clichês. Essa produção também se apropriou de atores que faziam sucesso na televisão e no cinema, como Antônio Fagundes, Maitê Proença, Fernanda Torres, Sérgio Mamberti, Cláudio Mamberti, com maior reincidência, e Carla Camurati, Malu Mader, , Paulo César Grande, Marco Nanini, Ana Maria Magalhães, Paulo César Pereiro, , Raul Cortez, Zezé Motta, Marília Pêra, Carlos Moreno, entre outros, em casos específicos, além de ter revelado nomes como , Cristina Mutarelli, Chiquinho Brandão, Marcos Breda e Guilherme Leme. A questão de fazer um filme popular, que se comunique com o público e com sua geração, pautou boa parte das escolhas dos cineastas. Não se trata de aplicar fórmulas ou de tentar adivinhar o que os espectadores querem ou esperam, mas de optar por uma linguagem que pudesse atrair qualquer pessoa, independente de classe social, escolaridade, credo etc. André Klotzel, responsável por um dos maiores sucessos do cinema paulista dos anos 1980, A Marvada Carne, vê essa busca pelo popular como uma possibilidade, aprendida nas aulas e conversas com Paulo Emílio Salles Gomes, mentor para quase toda essa geração, que assumiu um discurso em defesa do cinema brasileiro no final da carreira, revelando em suas aulas a importância de produções diversas de

entendimento do mundo expressos de maneira particular e definida, o que os toma objetos de estudo e compreensão de pleno direito. De outro lado, os veículos da indústria cultural ocasionalmente proporcionam às artes plásticas, à música erudita, à literatura de primeira linha, uma penetração de outro modo impossível. É verdade que não raro, como no Brasil, essa divulgação da cultura erudita se faz apenas nos horários mortos (final de noite, início da madrugada, quando a esmagadora maioria dos aparelhos receptores já está desligada). E discute-se, também, sobre os efeitos duradouros dessa divulgação e sua capacidade para promover práticas culturais perenes. De um modo ou de outro, a negação pura e simples do valor cultural dessa indústria não é mais uma unanimidade.” Ibidem, p. 217. 136 Ver John STOREY. Cultural Theory and Popular Culture: An Introduction.

124 cunho popular, geralmente mal vistas pela intelectualidade, como as chanchadas e as comédias eróticas da Boca do Lixo. Klotzel e seus colegas entendiam que para fazer cinema popular não era necessário se subjugar a fórmulas ou mesmo se inserir em determinado modelo estratificado de produção, mesmo tendo trabalhado na Boca do Lixo como técnico. Ele conta que nunca teve interesse em dirigir uma pornochanchada. Não tinha nem perfil para isso, não era o caso. Por outro lado, não queria fazer um cinema intelectualizado, um cinema que se mostrava inviável – filme muito cabeça não tinha público. Como, por exemplo, o das pessoas que tinham participado do Cinema Novo nos anos 60. Eram filmes muito falados, cabeças. Ficavam muito pouco tempo em cartaz. São os que a gente menos lembra, que não marcam época, não marcam nada. A preocupação era conseguir um projeto que fosse viável, e que demonstrasse alguma possibilidade de mercado. Afinal, porque a Embrafilme me daria dinheiro? Não ia fazer uma coisa com que eu não concordasse. Eu, cineasta que era, formado pela ECA, que assistia filme italiano e de arte, não faria algo que me violentasse, que contrariasse minhas convicções. (...) Por conta do Paulo Emílio, comecei a enxergar que o cinema não conseguia alcançar a amplitude que tinha a música. O Cinema Novo não tinha o mesmo apelo da MPB. A amplitude se dava por ser popular, não por ter muito público. Não é quantidade, é questão de presença. A música é muito presente, o cinema não. Era considerado um cinema ruim tecnicamente, primitivo. Hoje em dia, o cinema é uma coisa sofisticada, as escolas são concorridas, os ricos vão fazer cinema, os publicitários também. Na época, as pessoas achavam cinema brasileiro uma coisa vagabunda, de quinta categoria. Claro, existia o Cinema Novo, mas a população, a classe média em geral tinha essa noção do cinema, e via o cinema com maus olhos. As pessoas têm uma visão muito preconceituosa. Essa coisa do cinema popular tem a ver com o preconceito, é mais nesse sentido. Não é bilheteria. A postura era o que me preocupava mais que qualquer outra coisa - viabilizar o cinema popular no Brasil. Fazer algo importante, como a Música Popular Brasileira.137

Na mesma toada, Guilherme de Almeida Prado afirmou, em entrevista para a revista Afinal, em 1988: A minha geração já tem essa visão de cinema voltado para o espectador mesmo e não se confunda com cinema voltado para a bilheteria. Existe uma sutil diferença. Falo do espectador como sociedade, como o ser que vai ao cinema, que amplia seu universo imagético. Quanto mais o cinema tiver um leque de opções, o espectador vai estar interessado. O absurdo é ir ao cinema para assistir sempre ao mesmo tipo de filme.138

Guilherme de Almeida Prado também começou como diretor na Boca do Lixo e não cursou cinema na universidade. Sua pretensão nunca foi de realizar filmes eruditos, queria dialogar com o grande público, por isso participou da Casa de Imagens. “Eu não tinha intenção de fazer filmes de arte, nunca tive. Já antes da Boca. Os roteiros que tinha escrito já acharam muito chanchada”, conta. A problemática para ele, porém, é outra. Não é questão de querer fazer filme popular e sim de conseguir ter chance:

137 Em entrevista para autor em 29 de setembro de 2009. 138 Márcia ORTEGOSA. A história de um crime enigmático, p. 32.

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No fundo, você vai fazendo o filme que te dão oportunidade de fazer. Até hoje, adoraria fazer chanchada de novo, mas hoje é a Globo, a globochanchada, e para fazer globochanchada, você tem que ter a Globo, não adianta fazer a globochanchada, sem a Globo. A Globo não vai confiar no que eu vou fazer. Mas é claro que adoraria fazer uma chanchada de vez em quando. Adoraria. Não sei mais se ainda teria paciência de escrever um roteiro de chanchada. Teria um pouco mais de dificuldade, talvez. Dirigir adoraria.139

Márcio Kogan e Isay Weinfeld realizaram treze curtas em super-8 e estrearam no longa com Fogo e Paixão. Não cursaram cinema e não tinham relação com Paulo Emílio. Arquitetos de formação, também partilhavam de um desejo e de uma preocupação de se comunicarem com o público, desde os primeiros experimentos. Kogan conta que o super- 8 “tinha uma boa recepção do público, gostávamos disso. Era muitas vezes no auditório do Sírio Libanês, no ginásio, os filmes passavam para dez mil pessoas”. Em Fogo e Paixão, o fato de ser um filme de humor acarretava “uma empatia”. “[O filme também] tinha uma empatia grande com São Paulo, as pessoas gostam de reconhecer o local, era algo que sempre dávamos bastante importância.”140 Colega de Klotzel na USP, Ícaro Martins também foi para a Boca e não viu problemas em se adequar ao modelo local, realizando três filmes de cunho erótico com José Antônio Garcia. Os filmes da Boca eram eminentemente populares e comerciais, e buscavam um público alvo específico, homens de classes sociais mais baixas. O cinema de Martins e Garcia, porém, não se entregava completamente às regras, utilizando o meio para criar filmes ousados. E funcionavam com o público. Se havia um projeto de cinema popular, dos quais muitos trabalhavam nessa busca, isso podia ser fruto de um momento histórico. Martins crê que a marca mais forte de sua geração é que “estava saindo da ditadura. Embora as coisas ainda estivessem difíceis e ainda houvesse a censura, o país já via uma luz no fim do túnel. Houve a anistia; o Brizola tinha sido eleito no Rio de Janeiro etc.”. Para ele, “tudo isso nos possibilitava ver as coisas com mais leveza e humor, tentando fazer uma ponte entre o universo popular e popularesco da Boca do Lixo e o intelectual da Universidade de São Paulo”141. Há também cineastas que afirmam não ter uma preocupação popular, que não se pautaram por isso ao fazerem seus filmes, mas que é evidente e transparece em seus discursos um desejo de aproximação com o público. O compromisso parece ser mais consigo mesmo do que com o espectador, ainda que isso não inviabilize a busca pelo

139 Em entrevista para o autor em 04 de maio de 2008. Desde a entrevista, Prado realizou o evangélico A Palavra, aguardando lançamento, um filme por encomenda, tentando conquistar um novo público. 140 Em entrevista para o autor em 12 de fevereiro de 2015. 141 Vitor ÂNGELO. Ícaro Martins, in Brasil Anos 80: Cinema e Vídeo, p. 70.

126 popular. Sérgio Toledo, por exemplo, se preocupava em ser artista, em ser fiel aos seus princípios. Diz ele: “Queria fazer sucesso, mas não tinha muita [preocupação em fazer um cinema popular] não. Queria ser artista, que é também outra das mazelas do cinema brasileiro.” Porém, realizar um filme que atinja o público lhe é motivo de admiração: “Adoro os filmes que dão público no Brasil, sempre com uma certa qualidade, que não apelam, como o Tropa de Elite [2007, de José Padilha]. Eu gosto. Puta filme bem feito, interessante, importante nessa linha. Não tem cinema sem público.” Em retrospecto, Toledo vê que não se preocupou mais com o público – apesar de seu filme Vera estabelecer um claro diálogo: “Tinha essa prisão do artístico e nela eu era militante.”142 Roberto Gervitz também conta que, quando optou por adaptar Feliz Ano Velho, o livro não era o fenômeno editorial que se tornou: “Quando o livro cresceu, fiquei preocupado com o peso, [de] ter de fazer um blockbuster. Tanto que o filme foi muito criticado por causa disso, que poderia ter feito muito mais se tivesse outro tipo de tratamento, um personagem menos angustiado.” Não fez assim porque o filme não diria respeito a ele. Ainda assim, Gervitz aponta que o diálogo com o público é fundamental: Eu, como cineasta, sempre tive uma preocupação de me comunicar. Não quero fazer algo só para mim e para os meus pares. Há projetos e projetos. Eu sempre escolhi filmes que tratam de questões complexas. O Feliz Ano Velho teve uma ótima performance. Há quem diga que se não fosse a crise de 1988, que foi a ressaca total do Plano Cruzado, um ano terrível economicamente falando, a gente teria feito muito mais público. O [distribuidor] Marco Aurélio Marcondes disse que a gente teria feito 3 milhões.143

Os cineastas utilizam, nesses filmes, elementos do que se julga ser uma produção cultural popular – muitas vezes denominada como cultura de massa –, incorporando-os e emulando-os. Buscam, assim, comunicar-se com um público amplo, traduzindo no roteiro e na estética formatos que as pessoas possam compreender e se relacionar. Dialogam assim com a produção cultural em voga, com o imaginário popular dos anos 1980, seja as HQs (histórias em quadrinhos), o cinema hollywoodiano a partir dos anos 1940, a cultura caipira, o conceito de pós-modernidade, entre outros. Chico Botelho e Wilson Barros entendiam que popular, na São Paulo dos anos 1980, não poderia passar pelo registro de um Brasil rural, antigo, subdesenvolvido. Botelho, em reportagem de O Globo, afirmou que o “barato” de Cidade Oculta “é romper com o pensamento dos anos 60, cansei dele, não dá mais conta dos anos 80”. No longa, “há a barbárie cultural, um desrespeito às raízes culturais mesmo. Mas eu quis fazer um filme também que levasse

142 Em entrevista para o autor em 11 de março de 2015. 143 Em entrevista para o autor em 16 de janeiro de 2015.

127 muita gente ao cinema, e jovens, não um filme só para quarentões”144. Em entrevista à Filme Cultura, em 1988, Wilson Barros, por sua vez, explicou como seu caldeirão formativo cultural resultou em Anjos da Noite: (...) a gente é absolutamente colonizado. A gente depende de uma enxurrada de informações e de um imaginário que não é o nosso, principalmente de uma vivência urbana. A gente devora igualmente cangaceiro e Rambo. A gente vive numa sociedade totalmente louca, a procura da identidade tem que passar por aí também. (...) O Anjos, quando recicla essas coisas, tem um pouco a postura de crítica, de colocar o colonialismo cultural, quer dizer, como é que o nosso imaginário não nos pertence, mas que de certa forma nos pertence. Não há como você também criar um imaginário nacional hoje ignorando e fechando os olhos totalmente (...) O cinema paulista está começando sua história. Ele está jogando para a frente, não está jogando em cima de uma reflexão que veio atrás. Eu acho até que a característica mais brilhante desse novo cinema que está se fazendo em São Paulo é essa coisa que o Anjos da Noite propõe, que eu acho que todos eles propõem de certa forma, uma não abdicação integral da estética, das novas propostas, e sem negligenciar o espectador. Essa coisa de conciliar o espetáculo e a experimentação.145

No longa, o cineasta ainda declama contra a arte intelectual e vanguardista, apostando na arte popular, acessível a todos os espectadores, possível de ser entendida – mesmo que seu filme seja um dos mais rebuscados e provocativos em termos de estrutura narrativa na época. O personagem Leger (José Rubens Chachá) é um artista que morou em Nova York e trouxe para o Brasil um espetáculo que julgava ser revolucionário, vanguardista, porém o público apenas riu dele. Elitista, ele brada para a mecenas Malu (Zezé Motta) “eu tô acabado, é o fim, o fim da arte, da vanguarda” e, em seguida, dispara “essa gentalha é que me destrói, essa plebe nojenta, esses imbecis que rejeitam a vanguarda”. Leger se vê superior a seu público, que desprezou sua peça – e essa é sua condenação, nos diz o filme. Quem talvez melhor dimensionou essa noção de cinema nos anos 1980 foi Djalma Limongi Batista, o precursor de uma tendência que pensava o cinema popular como sonho, como fantasia. Apenas trabalhando o lúdico que essas produções, para parte dessa geração, poderiam estabelecer um entendimento com as pessoas. Em artigo emblemático para a Filme Cultura, em 1981, Limongi discorre sobre dois tipos de cinema em pauta no Brasil naquele momento: o social, mais vanguardista, feito por pessoas mais abastadas, e o popular erótico, que mimetiza procedimentos estilísticos codificados com uma típica má realização dos que não tem dinheiro. Para ele, nenhum dos dois modelos serve. Propõe ao cinema brasileiro, portanto, um retorno à fantasia:

144 Helena SALEM. Rio-Cine Festival, o público de um lado, o júri de outro. 145 “IMAGINEI meu filme numa noite de insônia”, p. 49, 56.

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Todo filme propõe uma fantasia. (...) Nenhum processo cognoscitivo em arte pode dispensar a fantasia. Senão passa a ser qualquer outra matéria (sociologia, antropologia, linguística etc.) menos objeto de arte (refiro-me tanto ao produto mais industrial/comercial como ao mais experimental, de vanguarda, no caso do cinema). (...) O cinema brasileiro precisa recuperar em seus filmes a fantasia (iconográfica e sonora) de seu público. (...) O cineasta brasileiro enveredou, por exemplo, por um dos seus maiores equívocos: confundiu as classes dominantes da sociedade brasileira com o povo em geral. E sujou tudo, e degradou seus filmes, extirpando deles toda a fantasia de um povo, de uma cultura, em nome do que seria crítica social. Na melhor das intenções, agrediu, pela capacidade intelectual e até pelo talento (ou nível de informação) de seus realizadores, aqueles que deveriam ser seus principais e únicos objetivos: o filme e o público. (...) Este desinteresse pelo público, ao nível de sua fantasia, parece situar-se na posição aristocratizante que, de certa forma, domina a cultura brasileira em geral. E o Cinema, sem dúvida, parece ter sido o setor cultural mais atingido por este elitismo.146

Foi esse discurso que o guiou ao realizar Asa Branca – Um Sonho Brasileiro e que acabou provocando a mídia e parte do cinema da época, em especial nos festivais em que concorreu, onde perdeu para filmes como O Homem do Pau-Brasil (1981), de , e Pra Frente Brasil, nomes ligados ao cinema político e social cariocas – ainda que Farias tenha consolidado sua carreira em filmes populares. Em texto de O Estado de S. Paulo sobre o Festival de Brasília, supostamente uma plataforma de lançamento de prestígio, o repórter não nomeado apontou a resistência ao aspecto popular do longa: Enquanto muita gente criticava o espírito comercial do filme, outros garantiam que terá uma excelente bilheteria. Limongi assinala que fez um filme propositadamente de massa, ‘porque não me interessa gastar Cr$ 7 milhões à toa, para o público não ver’. Diz também que sua preocupação maior é a de lidar com os mitos brasileiros, como ‘Asa Branca’, um jogador de futebol que se transforma em super star, saindo do Interior de São Paulo para ser tricampeão do mundo: ‘Quero me concentrar na fantasia brasileira. Povo sem fantasia não está com nada’.147

No filme seguinte, Brasa Adormecida, Limongi acentuou as características de fantasia. O percurso de realização foi tumultuado e isso transparece no aparente discurso contraditório do cineasta. Ele conta que, após Asa Branca, estava interessado “em fazer filmes que tivessem a minha cara. Que fossem autorais. Que fossem parte da cultura brasileira de vanguarda, não para dar corda na nascente indústria cultural nacional”. Ainda assim, o então dirigente da Embrafilme Carlos Augusto Calil, conta Limongi, designou-o para uma pornochanchada chamada Os Primos, sob produção de Aníbal Massaini. O cineasta transformou a trama de Os Primos em Brasa Adormecida, um filme

146 Djalma Limongi BATISTA. Estratégia da fantasia para o cinema brasileiro, p. 53-5. 147 EM Brasília, Jânio, futebol e Guimarães Rosa.

129 com maior dimensão popular do que Asa Branca. Mesmo dizendo que não queria “dar corda na nascente indústria cultural”, Limongi escreveu Brasa Adormecida não querendo que “traísse o que esperavam” dele, “um filme para o grande público”, ainda que a cada trabalho tentava se “reinventar”, se “renovar” – “Já achava ótimo que era uma comédia, um gênero diferente do drama de Asa Branca.”148 Os filmes aqui inclusos trabalham a fantasia a partir de algumas características, como o artificialismo (tanto na encenação, quanto na estética)149, a metalinguagem (seja a citação direta quanto a influência de um imaginário artístico, ou mesmo com histórias que trabalham a metalinguagem diegeticamente), e a associação a gêneros narrativos ou a clichês relacionados. Não são todos os filmes que apresentam todas essas características, mas as que trazem tem papel determinante em sua construção. A dimensão da fantasia, que engrandece no cinema paulista ao longo dos anos 1980, parece se ligar a uma ideia generalista do que é a pós-modernidade, conceito que ganhou vulto no final dos anos 1970 e começo dos 1980. O termo passou a ser utilizado de maneira rasteira ao longo da década de 1980, em geral com conotação pejorativa, para designar uma série de características do mundo artístico, inclusive o cinema. Renato Luiz Pucci Jr., em seu livro Cinema Brasileiro Pós-Moderno– O Neon- Realismo, elenca sete características do cinema pós-moderno brasileiro: oscilação entre narração clássica e recursos de linha modernista; preeminência da paródia lúdica; caráter estetizante que não se esgota na procura do belo; impureza em relação a outras artes e mídias; relação conciliável e, ao mesmo tempo, não integrada em relação à cultura midiática; não-exclusão a priori do espectador sem repertório sofisticado; e persistência da representação com predomínio hipertextual150. São características que se coadunam com o que os longas apresentam (artificialismo, metalinguagem, associação a gêneros narrativos). Em seu livro, Pucci

148 Marcel NADALE. Djalma Limongi Batista – Livre Pensador, p. 123. 149 Bernardet explica o artificialismo consciente desse cinema: “É um tom de ficção, mas ficção que não pede total adesão, de ficção que se desnuda e se mascara a um tempo. (...) Esse artificialismo não me parece da mesma natureza da paródia ou da representação grotesca em que se situam certos filmes ou trechos de filmes, pois aí a distância entre representação realista e o artificialismo é explícita. (...) [O artificialismo] não se localiza num sistema de paródia, nem na incompetência em fazer cinema realista, e sim numa forma de representação que alia aspectos do realismo à ironia, que não mascara seu caráter de representação, mas não o exibe ostensiva e agressivamente como um certo cinema de 15-20 anos atrás [à época, os anos 1960 e 1970]. (...) Como se o fato de reviver, no registro da ironia, uma sensibilidade passada, especialmente a dos anos 50, nos dispensasse de elaborar uma sensibilidade nova, de produzir novos sentimentos. Como se vivenciassem sentimentos dos outros, mas sem uma adesão total, pois a ironia está sempre presente.” Cf. Jean-Claude BERNARDET. Os Jovens Paulistas, p. 81-2.

150 Cf. Renato Luiz PUCCI Jr. Cinema Brasileiro Pós-Moderno – O Neon-Realismo, p. 199-201.

130 afirma que apenas alguns filmes do cinema paulista da década de 1980 são pós-modernos em sua completude: o episódio Programa Duplo, de As Taras de Todos Nós, Flor do Desejo e A Dama do Cine Shanghai, todos de Guilherme de Almeida Prado, Anjos da Noite, de Wilson Barros, e Cidade Oculta, de Chico Botelho – os três últimos rotulados como a ‘trilogia paulistana da noite’. Não cabe a esta dissertação refutar ou questionar a análise de Pucci a respeito do pós-moderno. Importa, aqui, saber que o pós-modernismo estava em voga e isso influenciou o processo de construção dos filmes, tanto em termos imagéticos, quanto narrativos – vemos nesse conjunto de longas um profundo irrealismo, seja nas atuações, seja na fotografia e arte etc., p.e151. Ou seja, a noção rasteira do que era pós-modernismo contaminou parte da produção paulista cinematográfica dos anos 1980, operando de forma impura e não conceitual. Feliz Ano Velho, por exemplo, traz matizes cromáticas diversas, como o azul, o verde, o vermelho, tanto na direção de fotografia quanto na arte. São cores evidentemente não realistas e filmadas para não serem vistas como realistas. Da mesma maneira, traz referências a outros universos artísticos e coloca Malu Mader, sua protagonista, personificando dois papéis – aspecto sempre evidente ao público. Feliz Ano Velho não é um filme pós-moderno e, ainda que Gervitz aponte que as escolhas estéticas no seu filme sejam essencialmente conceituais e não ornamentais como em muitos longas do período, o que se destaca é o rebuscamento das imagens e seu evidente artificialismo cromático, compondo um imaginário visual da urbanidade na segunda metade dos anos 1980. É possível, portanto, vislumbrar sintomas do pós-modernismo em filmes tão diversos como Feliz Ano Velho, Fogo e Paixão e Real Desejo, ainda que não se enquadrem como um todo nesse universo.

151 Pucci afirma sobre seu objeto de estudo, a trilogia paulistana da noite: “O profundo irrealismo, como se os filmes renunciassem tanto à verossimilhança do cinema clássico (isto é, à preocupação com o parecer real) quanto ao realismo que, sob os mais variados matizes, inclusive o realismo poético, marcou a mais aclamada parcela do cinema nacional.” Cf. Ibidem, p. 10. Tal afirmação parece caber, de maneira generalista, aos filmes aqui comentados.

131

Figuras 17, 18, 19 e 20 – A dimensão da fantasia em Feliz Ano Velho: acima, Malu Mader como Ana e como Ângela; abaixo, o domínio de cores artificiais (azul, verde, vermelho)

Empresto alguns conceitos de Pucci sobre sua análise do pós-modernismo e que parecem presentes neste corpo de filmes. Estes trabalham duas chaves de leituras: a superficial, que acompanha a diegese, e a que reconhece outras camadas e se deleita com elas também. O pesquisador aponta que a construção dos filmes “permite o distanciamento do público, que possui a alternativa de não se deixar levar pela história, mas apreciar as rupturas de normas, inclusive dos musicais, que se desencadeiam a cada momento”152. O espectador pode tanto desfrutar o filme na superfície quanto em outras camadas, que enriquecem a compreensão do longa, sem menosprezar quem não se interessa ou não compreende isso. Tal característica parece proceder de como os filmes trabalham características do cinema clássico e do cinema moderno. Pucci afirma que os longas pós-modernos fazem “referência ao clássico”, ou seja, como emulam procedimentos do cinema clássico: “não se trata de imitação pura e simples, mas de uma operação que incorpora tais elemento em vista de outros fins que não o ilusionismo.”153

152 Ibidem, p. 66. 153 Ibidem, p. 59.

132

Gervitz aponta que o diálogo com o cinema faz parte de qualquer produção e não esconde o uso de “soluções” estéticas, narrativas, dramatúrgicas etc. de outros filmes. A metalinguagem, por vezes, não é intencional e apenas remete ao imaginário do cineasta. [Há] uma prática tão condenada por alguns cineastas, que é a de inspirar-se em soluções ou achados de outros filmes. Tal postura me parece a de querer inventar a roda. A maioria das grandes descobertas da linguagem cinematográfica aconteceu, no máximo, até os anos 40 do século passado. A partir de então, o que se viu foram reelaborações, recombinações que levaram a novos significados e estilos, e que estabeleceram universos personalíssimos como, por exemplo, o dos filmes de Fellini. Muitas vezes, inventamos soluções sem nos lembrar que a vimos em um filme esquecido. Achar que inventou algo inédito no cinema é, no mais das vezes, um sintoma de ignorância cinematográfica.154

4.2 Cinema de gênero155

A comunicação com o público, na maioria das vezes, para além do senso da fantasia, é mascarada pela ideia de gênero narrativo. Os longas não podem ser vistos sob o mesmo prisma ou como um movimento unificado de cinema popular. Eles assumem características diversas de gêneros, apreendem códigos e reproduzem clichês específicos, ainda que não se filiem exclusivamente a um ou outro gênero necessariamente. O que fazem, efetivamente, é emular clichês do imaginário cinematográfico – e de outras manifestações artísticas e midiáticas, de maneira mais esparsa, como o vídeo, a televisão, o teatro, as artes plásticas, as HQs e a música, por exemplo – para estabelecer uma comunicação direta com sua audiência, com objetivos discursivos claros, ainda que tenham um roteiro complexo, não linear. Como aponta Jean-Claude Bernardet, em texto premonitório, de 1985: [A jovem produção paulista] cita filmes antigos que ama, (...) refere-se a monumentos do cinema passado ou presente de empatia coletiva. Mesmo quando o pastiche, a paródia, a citação não se evidenciam, sente-se a presença do cinema por trás desses filmes, como um duplo. Como se o cinema fosse o terreno onde brota essa jovem cinematografia. (...) Não se trata apenas de citações. (...) além das (...) específicas, os filmes constroem-se a partir de outros filmes ou outros textos: toda uma mitologia cinematográfica dos anos 50 em Asa Branca, e (...) o sertão visto pela literatura de Cornélio Pires [em A marvada carne].156

154 Roberto GERVITZ. Roberto Gervitz – Brincando de Deus, p. 118. 155 Cinema de gênero (ou Teoria de gêneros narrativos cinematográficos) é a leitura dos filmes, ou de um conjunto deles, a partir do prisma dos gêneros narrativos, forma de categorização que pressupõe certas convenções e códigos, quanto a temas, estilos, estruturas e contextos. 156 Jean-Claude BERNARDET. Os Jovens Paulistas, p. 79.

133

Os gêneros têm importante papel para o público leigo e para a indústria, como rótulo de um tipo particular de filmes, em que o senso comum permite às pessoas os relacionarem facilmente a partir de uma iconografia básica. Determinados gêneros também podem ser frutos de um contexto histórico, sendo bastante produzidos devido à sua popularidade, que se esvai com o tempo. Herdeiro da teoria literária, o conceito de gênero começa a ser delimitado com Aristóteles, em sua Poética. Em seu estudo, diferencia as diversas espécies poéticas produzidas em sua época. Escreve ele: A epopeia, a tragédia, assim como a poesia ditirâmbica e a maior parte da aulética e da citarística, todas são, em geral, imitações. Diferem, porém, umas das outras, por três aspectos: ou porque imitam por meios diversos, ou porque imitam objetos diversos, ou porque imitam por modos diversos e não da mesma maneira.157

Ou seja, a raiz do estudo de gênero está ligada a como as obras se imitam. O cinema de gênero sempre esteve intimamente ligado ao cinema popular. Nessa relação, os produtores percebem os tipos de filmes que se comunicam melhor com o público e buscam mimetizar certas características desses filmes, formando um corpo de produções, agrupadas em um gênero estabelecido. Isso é levado de maneira mais cartesiana pelo sistema de Hollywood, nos EUA, cuja indústria cinematográfica passa a ser dominante no mundo a partir de meados dos anos 1910. Durante o cinema clássico, boa parte dos gêneros é estabelecida, seguindo convenções narrativas e iconográficas rigidamente codificadas, criando mundialmente um padrão imagético e temático do gênero. Gêneros podem também apresentar subgêneros, dentro dessa mesma lógica de construção, como, por exemplo, os filmes noir, decorrentes do policial. O cinema moderno continuará a trabalhar, muitas vezes, com o cinema de gênero, mas, em geral, radicalizando e rompendo com os cânones estabelecidos. O mesmo se vale para as paródias, que se apropriam das convenções para ridicularizá-las. Os gêneros existem porque o público reconhece que um conjunto de filmes partilha características comuns e, portanto, há um gênero158. Ou seja, há uma ideia de contrato invisível entre o produtor e o espectador que permite a existência do sistema de produção, distribuição e consumo de filmes de gênero. A participação do público é premente não só para distinção do gênero, como para sua manutenção – tal filme só será

157 Aristóteles. Poética, p. 103. 158 Não pode se esquecer também do trabalho de pesquisadores e historiadores em sistematizar e teorizar os sintagmas e a semântica dos gêneros.

134 produzido em maior escala se houver interessados em o consumirem. Isso possibilita que a engrenagem continue a se mover no cinema clássico, que reafirma as convenções, mantendo o status quo necessário. Em contrapartida, para o cinema moderno, o uso do gênero só funciona porque o público reconhece as convenções e percebe o que está sendo feito de diferente. Steve Neale defende que os gêneros são melhores entendidos enquanto processos, em que, mesmo que se repitam, trazem também variações e mudanças. Ou seja, com o decorrer do tempo, os gêneros se adaptam ao momento em que são criados. Pontua Neale: Cada novo filme de gênero constitui uma soma a um corpo genérico existente e envolve uma seleção de um repertório de elementos genéricos disponíveis em determinado momento. Alguns elementos são incluídos; outros, excluídos. (...) Além disso, cada novo filme de gênero tende a estender esse repertório, seja por adicionar um novo elemento, seja por transgredir um dos antigos.159

Gêneros, por mais que se atualizem e se modernizem, podem cessar de existir, quando o espectador para de se interessar por ele, ficando confinado a determinados contextos históricos. Caso dos faroestes e dos musicais, que caíram em desuso a partir dos anos 1970, ainda que, vez ou outra, apareçam filmes que se inserem dentro dessas convenções narrativas, ou mesmo dos policiais noir, que tiveram seu auge nos anos 1940 e 1950, e foram retomados e repaginados nos anos 1970 e 1980, de maneira esparsa. A teoria literária de gêneros de origem clássica defende os gêneros puros, aqueles que se restringem aos limites das convenções. No cinema, os filmes, no começo, eram lidos como pertencentes a um único gênero. Após a teoria pós-moderna, em que a questão do gênero clássico foi reavaliada, muitos desses filmes tidos como puros foram relidos como híbridos, ou seja, trazendo a mistura em menor ou maior grau de elementos narrativos e imagéticos associados a dois ou mais gêneros distintos. Rick Altman aponta inclusive uma mudança na mistura de gêneros. A mistura de gêneros, no começo de Hollywood, para propósitos publicitários, era rudimentar na melhor das hipóteses, em geral envolvendo um número pequeno de gêneros combinados de um modo nada espetacular e de maneira bastante tradicional. (...) Filmes recentes, ao contrário, usam com frequência referências intertextuais e sublinhados conscientes de convenções genéricas para enfatizar conflitos típicos dos gêneros.160

O gênero passa, assim, a ser um elemento de constante reinvenção e reutilização no cinema, seja enquanto forma, seja enquanto conteúdo. Os filmes paulistas dos anos 1980 aqui elencados reportam-se ou filiam-se a gêneros narrativos diversos, trabalhando

159 Steve NEALE. Questions of , p. 56. 160 Rick ALTMAN. Film/Genre, p. 141.

135 hibridismos e propondo releituras de imaginários populares. São longas que operam dentro dos parâmetros do policial – Flor do Desejo – e de sua variação noir – Cidade Oculta, Anjos da Noite, A Dama do Cine Shanghai –, do melodrama – Asa Branca, Retrato Falado de uma Mulher sem Pudor, Vera, Feliz Ano Velho, Real Desejo –, da telenovela – Real Desejo –, do road movie – Janete, Real Desejo –, do horror – Duas Estranhas Mulheres, Estrela Nua, Shock –, do caipira – A Marvada Carne –, e das várias linhas da comédia: juvenil – Asa Branca, Brasa Adormecida –, de costumes – As Taras de Todos Nós, O Olho Mágico do Amor, Onda Nova, Flor do Desejo (os quatro com componentes eróticos), A Marvada Carne, Beijo 2348/72 –, e nonsense – Brasa Adormercida, Fogo e Paixão, Beijo 2348/72. O gênero mais frequente, porém, é o musical, ainda que não seja dominante em nenhum caso. Cenas que se reportam aos musicais hollywoodianos podem ser vistas em O Olho Mágico do Amor, Onda Nova, Estrela Nua, Flor do Desejo, Brasa Adormecida, Cidade Oculta, Feliz Ano Velho, Anjos da Noite, Fogo e Paixão, Real Desejo e Beijo 2348/72. Nesses filmes, o uso do gênero é consciente e proposital. Ícaro Martins aponta que: Quando você faz um filme, você quer dialogar com o público, quer que seja assistido. A partir do momento que você faz cinema, você lida com gêneros. Você até pode criar um gênero novo, mas tem os gêneros convencionais, o suspense, o policial, a comédia. Todo mundo que faz filmes hoje tem noção da história do cinema. Você dialoga com gênero. E trabalhar com gêneros não me limitava de maneira alguma. Estrela Nua inclusive achávamos que podia fazer melhor, porque tinha bastante Nelson Rodrigues.161

Figuras 21, 22 e 23 – Cláudio Mamberti como delegado, em Anjos da Noite: enquadramentos do filme noir

Por sua vez, Wilson Barros afirma, em reportagem de O Globo, que Anjos da Noite “muda muito de imaginário, e tem a ver com esse bombardeio de informações que a gente vive o tempo inteiro”. Isso se reflete em como se reporta aos gêneros: “‘Anjos’ é uma colcha de retalhos, cheio de citações. É musical, tem melodrama e, em alguns

161 Em entrevista para o autor em 24 de setembro de 2014.

136 momentos, como o que aparece Claudio Mamberti, o delegado, tem enquadramentos inspirados nos filmes noir.”162 O trabalho com o gênero, para além de um desejo de fazer um cinema que se comunicasse com um amplo público, parece fruto de uma cinefilia por parte dos diretores e roteiristas, e também de técnicos, como os diretores de fotografia. Fazer cinema deixa de ter uma função social (para questionar ou mudar o mundo), econômica (para ganhar dinheiro) ou simplesmente artística, e ganha contornos lúdicos, do prazer de labutar com algo que encanta enquanto assiste, que provoca fascínio. Como o cinema é íntimo do realizador, discuti-lo em suas obras torna-se natural – falar de cinema é o que lhes dá prazer, e esse cinema fala muito de prazeres, ainda que sejam melancólicos. Não parece à toa, então, que filmes como Feliz Ano Velho e Vera sejam as obras aqui citadas que menos se reportem a gêneros marcados. Seus diretores, ainda que gostem de cinema, não se consideram cinéfilos. Gervitz comenta suas preocupações: Sempre gostei muito de cinema, mas nunca fui cinéfilo, nunca tive essa coisa de cinema de gênero. Jamais faria um filme comentando gêneros, isso nunca me preocupou, minha trajetória que não passa por isso. Gostava muito dos filmes italianos que conseguiam juntar o pano de fundo político com assuntos individuais. Me marcaram muito. Nós que nos amávamos tanto [1974, de Ettore Scola], aquele universo meio onírico do Fellini, a questão existencial dos filmes do Antonioni. Sempre me preocupou o ser humano, o indivíduo, o homem163.

Como parte dos filmes assume o diálogo com determinados gêneros mais rigidamente codificados, eles raramente são sérios, parecendo resvalar, às vezes, na paródia, quando não filiados à comédia. Isso decorre do artificialismo, tratamento que quebra a adesão do espectador, em geral, dando-lhe um tom de farsa. Outro fator é a consciência diegética dos personagens sobre a existência do cinema e de determinados gêneros. Em A Dama do Cine Shanghai, Guilherme de Almeida Prado assume que seu universo diegético conhece o filme noir, podendo nos parecer estranho que seus personagens se comportem como num filme – porque emulam tipos que só são conhecidos no cinema. Ao escrever o longa, queria trabalhar o mistério, mas sem deixar de lado o fato de que os espectadores conhecem histórias de mistério – assim como os personagens de seus filmes. Quando escreveu o roteiro da A Dama do Cine Shanghai, era-lhe muito forte ideia de sempre “prender o espectador”. Mesmo sem ter um objetivo

162 Isa PESSÔA. O anjo da escuridão. 163 Em entrevista para o autor em 16 de janeiro de 2015.

137 claro, ao final de todas as sequências há sempre um gancho para a seguinte. A questão, para Prado, é que criar é quebrar e construir novas convenções. Me proponho a fazer cinema não apenas sobre cinema, mas principalmente de cinema. Ao invés de tentar fazer o espectador fingir que não está vendo um filme, eu insisto em chamar a atenção de que ele está sim vendo um filme. E que o prazer e a emoção devem sair de estar participando deste jogo onde a ilusão e o real são as peças e o tabuleiro é sua própria cabeça. O encanto da estória está no jogo, no prazer lúcido de jogar. O jogo tem sempre uma lógica, mas jogar é intuitivo. Todo jogo, se por um lado tem um aspecto muito cerebral, tem outro que é completamente aleatório, de como você embaralhar as cartas. E A Dama trabalha muito com esse elemento de embaralhar o filme. Na realidade, você embaralha uma estória e depois cria uma lógica daquela estória, conforme dá as cartas. A estória toda do filme trabalha sobre a lógica de como eu mostro as cartas, mas o espectador tem que fazer uma seqüência, tem que seguir os naipes, mesmo estando as cartas embaralhadas. A Dama era muito em cima disso, como o filme do Welles e a grande maioria dos melhores filmes noir.164

4.3 São Paulo, sinfonia da metrópole

Com exceção de Brasa Adormecida e de trechos de Asa Branca, todos os filmes aqui comentados se passam em São Paulo, representando a cidade como uma metrópole mundial. Para Gervitz, era “expressão de um Brasil que se modernizara durante os anos de um regime militar que havia promovido o chamado milagre econômico”. Isso é mais evidente na segunda metade dos anos 1980165, já na Nova República, e sem o obscurantismo do regime militar. Gervitz continua: “Era um momento especial, pois se sentia que a ditadura não aguentaria muito tempo; havia a percepção de que ela estava quase caindo, e só era necessário um pequeno empurrão. Na verdade, não era bem assim, mas sentíamos dessa forma; sopravam novos ventos pelo País.”166 Os cineastas voltaram-se completamente para o cosmopolitismo. Assim como abraçar os assuntos em voga e assumir múltiplas referências, filmar São Paulo, a urbe, era uma forma de mostrar que o cinema brasileiro havia superado os temas rurais, que dominavam parte da produção do passado. Filmar a cidade, assim, passa a ser, em alguns casos, um ato de rebeldia contra os cânones do cinema brasileiro, um ato político por parte dos realizadores, que queriam mostrar um outro Brasil, que já superou o êxodo rural, com bastante exuberância – envolvidos por um trabalho complexo de direção de fotografia e de arte –, e com apelo principal à noite. Não se trata de usar a cidade como

164 Luiz Zanin ORICCHIO. Guilherme de Almeida Prado: um cineasta cinéfilo, p. 163-6. 165 Até então, os filmes de cunho popular tinham também cenários menos urbanos – A Marvada Carne, Janete, Eva (de Duas Estranhas Mulheres), Brasa Adormecida e parte de Asa Branca –, ou em outras cidades – Flor do Desejo, Shock, O Tesourinha (de As Taras de Todos Nós). 166 Roberto GERVITZ. Roberto Gervitz – Brincando de Deus, p. 106. Grifo original.

138 um mero espaço para o desenrolar da história, mas de elevá-la ao status de personagem importante à trama. Wilson Barros era o cineasta dessa geração que mais vociferava em defesa de um cinema urbano, popular, lúdico. Para ele, era impensável a continuação de uma estética dos anos 1960 e 1970. Em reportagens de O Globo e O Estado de S. Paulo, durante o lançamento de Anjos da Noite, ele afirma: O pressuposto revolucionário do Cinema Novo, por exemplo, acabou sendo questionado por não encontrar o consumidor revolucionário: a massa, os operários. Eu não quero falar do campo nem vou ser paternalista. Só pretendo falar do que sei e vivo. A cultura dos anos 80 não pretende ter essa função revolucionária e, nesse caso, eu a considero mais honesta. É a cultura do pré- apocalíptico, produzida na urbe. Ela é devoradora também. Porque, nesse final de século, sabemos que não há nada de novo no front ocidental. É preciso retirar uma fênix das cinzas. Tudo é déjà-vu.167 É uma bobagem, hoje, fazer filme sobre mandioca. Essa coisa de Nordeste, de miséria, de realismo social, é uma chatice. São grandes mentiras, ainda mais agora que vêm glamurizados. (...) Meu filme não tem muito a ver com o cinema brasileiro. Assumidamente, tenho influências de Wim Wenders, Robert Altman e Coppola. Gosto quando dizem que a São Paulo do meu filme parece Nova York. Não quis tipificar nada..168

Da mesma maneira, os filmes paulistas realizados nessa época parecem consequência direta da vivência em São Paulo. Só poderiam existir nessa cidade e refletem isso. São filmes urbanos, cosmopolitas, que refletem a vida na metrópole de uma geração em seus 25-35 anos, convivendo com essa realidade desde o começo da vida adulta. E nessa cidade, onde se tem acesso a diferentes microcosmos culturais, há também uma solidão em meio à multidão, como se a agitação cultural noturna não suplantasse e ainda provocasse angústias. O retrato de São Paulo no cinema em geral foi agônico – O Grande Momento (1958), de Roberto Santos; Noite Vazia; São Paulo Sociedade Anônima (1965), de Luiz Sérgio Person; A Margem etc. -, mas esparso, em que a melancolia decorre de alterações na paisagem ou de questões ontológicas. Nos anos 1980, São Paulo já estava consolidado como o maior município do Brasil, flertando com outras metrópoles mundiais. Os personagens que trafegam pela cidade parecem conformados com o que ela pode oferecer e com seus problemas, mas não sabem como se situarem nesse emaranhado. Sérgio Toledo vê Vera como um fruto da opressão de São Paulo, não apenas na trágica história de sua personagem, como na maneira não realista que usou as cores, em especial o azul. São Paulo é feia, árida e de concreto. Esses filmes refletiam exatamente isso, um mundo de concreto, meio pesado e claustrofóbico. São Paulo é uma cidade

167 Isa PESSÔA. O anjo da escuridão. 168 Ana MUYLAERT; Maurício STYCER. Filme sobre mandioca é uma bobagem.

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claustrofóbica. É intensa, tem uma puta vida cultural, muito rica e o escambau, mas era claustrofóbica. Acho que o cinema dessa época refletia sobre isso.169 Acho que a influência [em Vera] vem muito mais de ser um paulista de São Paulo mesmo, que esteve sempre lá, do que propriamente do cinema, porque você observa que o cinema brasileiro tem uma tradição muito ligada aos cinemas sociais. Acho que o filme, se tem alguma outra influência é a de um sentimento para o lado extremamente urbano, extremamente moderno, porque São Paulo é uma metrópole muito moderna no sentido, inclusive, do anonimato. É uma massa de gente anônima, não tem essa coisa que, por exemplo, tem no Rio, das pessoas se encontrarem na praia, das pessoas se conhecerem, das pessoas que ainda têm uma certa dimensão de individualidade. Eu sinto que em São Paulo a coisa é cada vez mais sufocante, essa coisa tecnológica, da informática, dos bancos, da Avenida Paulista. E esse sentimento foi tão forte que fez com que o filme ficasse todo em exteriores.170

Além de Vera, Feliz Ano Velho, Real Desejo, Anjos da Noite e Cidade Oculta tem uma dimensão mais intimista, refletindo sobre a exaustão da metrópole, ainda que um cenário incontornável em suas vidas, como que se, mesmo descontentes, só em São Paulo poderiam ser felizes. Refletir a cultura urbana, paulistana, e muitas vezes noturna, parece também ser uma das razões do artificialismo desse cinema, por conta de um viés técnico. Filmar a noite é muito complicado, exige muito mais equipamento e técnica, extrapolando um irrealismo da imagem fabricada. Chico Botelho, em sua tese de doutorado, afirma que: A cidade noturna implica em opções técnicas diversas daquelas usadas para a natureza diurna. A necessidade de iluminação artificial, usada cada vez mais intensamente, é incompatível com aquele respeito ao real anteriormente dominante. Assim, ao ganhar um maior espaço na construção da narrativa, a luz artificial abre o caminho para que se possa trabalhar o artifício na construção da imagem e, através dele, o novo cinema de São Paulo começa a criar um também novo imaginário urbano.171

Ou seja, a possibilidade de uma alternativa ao cinema popular só parece possível em São Paulo, uma vez que o próprio espaço provoca uma relação diferente com a técnica, a estética e a narrativa – esse cinema, ao mesmo tempo, de ampla comunicação e de inovação artística.

169 Em entrevista para o autor em 11 de março de 2015. 170 “VERA”, um filme muito pessoal, p. 44. 171 Francisco Cassiano BOTELHO JR. Técnica e estética na imagem do novo cinema de São Paulo, p. 41-2.

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4.4 Os diretores e seus filmes

Para entender melhor como as questões de uma busca por um cinema popular foram desenvolvidas nos anos 1980, em São Paulo, tomo como base os dez filmes citados no início do capítulo.

4.4.1 Djalma Limongi Batista

Djalma Limongi Batista (Manaus, 1947) cresceu na capital amazonense, numa época em que tinha 150 mil habitantes e era “quase uma aldeia, estagnada no tempo e isolada no espaço – sem estradas que não fossem os grandes rios, sem luz elétrica nas casas, sem televisão”172. O pai de Limongi, Djalma da Cunha Batista, era um prestigiado médico, pesquisador de doenças tropicais, com grande trânsito pelos meios culturais, tendo sido presidente da Academia Amazonense de Letras. O pai mantinha um laboratório clínico, até hoje sustento da família Batista. Durante a infância e a adolescência, Limongi conviveu com personalidades como , Aurélio Buarque de Hollanda, Paulo Vanzolini e até Jean-Paul Sartre e Simone de Beauvoir, entre outros. Havia oito salas de exibição em Manaus e o cinema preencheu a vida de Limongi. Ele conta: Tendo nascido em Manaus, o cinema em minha vida foi uma janela para o mundo. Até 1970, a cidade era cercada por florestas e o contato com o resto do país era extremamente difícil. Lá, televisão chegou somente em 1973. Junto com o meu irmão Gualter, frequentava diariamente os cinemas da cidade. A distância dos grandes centros trazia a ausência da censura, o que nos permitiu assistir a todos os filmes em todas as sessões. Essa variedade de filmes trouxe- nos desde cedo um grande apuro na distinção de estilos. Quando criança, adorava as chanchadas e os melodramas mexicanos, mas não gostava dos westerns. No início dos anos 60 tive contato com o cinema japonês, a Nouvelle Vague, Buñuel e sobretudo os italianos, Fellini – que me marcou profundamente –, Visconti, Antonioni, Pasolini....173

Em 1960, Limongi e Gualter ganharam do pai uma câmera 8mm, a corda, trazida dos EUA. Com ela, rodaram o curta As Letras. No início da década de 1960, Limongi frequentou o Centro de Estudos Cinematográficos do Amazonas e montou um cineclube no colégio salesiano Dom Bosco. Em 1964, os irmãos mudaram-se para Brasília. Limongi planejava cursar Cinema, na recém-inaugurada UnB. Lá concluiu o colegial e ingressou no curso universitário. Com o regime militar, os professores foram demitidos em massa

172 Marcel NADALE. Djalma Limongi Batista – Livre Pensador, p. 12. 173 Lúcia NAGIB (org.). O Cinema da Retomada – Depoimentos de 90 cineastas dos anos 90, p. 103.

141 e o curso fechado no final de 1965. Surgiram duas oportunidades a Limongi. Seu pai lhe ofereceu a possibilidade de estudar na Universidade de Berkeley, na Califórnia, EUA, e os então professores da UnB Paulo Emílio Salles Gomes, Jean-Claude e Lucila Bernardet lhe falaram sobre o curso de Cinema que pretendiam montar na USP. Limongi optou por ir a São Paulo, em dezembro de 1965. Cursou Ciências Sociais em 1966 e 1967, e abandonou a graduação assim que a ECC foi inaugurada. Em 1968, iniciou o curso de Cinema, concluído em 1971. Limongi ainda se arrepende de ter escolhido a USP em relação a Berkeley. Ele conta: Fiz a maior besteira da minha vida! Eu era fascinado pelo Paulo Emílio. Mais importante ainda: eu era fascinado pelo cinema brasileiro! Que, se diga de passagem, naquela época, tinha mesmo uma força cultural muito grande. E meus professores, a universidade, Brasília, encarnavam isso! Eu amava o cinema norte-americano de paixão, mas como é que eu poderia me vender a Hollywood? Eu já estava com a cabeça feita... Preferi vir para São Paulo! (...) Só muito depois fui perceber o quanto a oportunidade de Berkeley representava. Porque, assim como eu fui da primeira turma de cinema da USP, também teria sido parte da primeira turma de Berkeley e colega de classe de, simplesmente, gente como Steven Spielberg, George Lucas e Francis Ford Coppola. Eu não seria da geração deles, eu seria colega deles! Colega dos atuais donos de Hollywood! Todos surgiram nessa época, dessa escola. E, com o tempo, eu fui notando que meu cinema tinha muito mais a ver com a revolução que eles praticaram nos anos 70 do que com os rumos que a produção brasileira tomou. Um cinema nacional que sempre me estranhou e colocou meu trabalho em dúvida. Desprezar a chance de ir para os EUA foi um erro imperdoável. Estou pagando por ele até hoje.174

Na época da USP, Limongi dirigiu três curtas, feitos com o dinheiro que o pai enviava de mesada para ele se sustentar em São Paulo. Os filmes, ousados tematicamente, abordam o universo gay, que permeou toda sua carreira. São eles: Um Clássico, Dois em Casa, Nenhum Jogo Fora (1968), fotografado por Aloysio Raulino, e vencedor dos prêmios de melhor filme, direção, roteiro, edição e ator no Festival JB/Mesbla; O Mito da Competição Sul (1969) e Hang-five (1970), ambos fotógrafos pelo seu irmão Gualter, que foi, posteriormente, corroteirista e fotógrafo de seus longas dos anos 1980. Ainda durante o tempo na USP, foi crítico de cinema do jornal O Diário de S. Paulo. Após se formar, Limongi trabalhou com fotografia e teatro, enquanto tentava emplacar seu primeiro longa-metragem. Abriu, com Gualter, um estúdio fotográfico na R. Oscar Freire, pelo qual fez reportagens fotográficas, moda, publicidade e still para filmes. Foi também fotógrafo do Idart nos anos 1970. O estúdio existiu até 1986 e foi o principal sustento dos irmãos no período. Colaborou ainda com Flávio Império em sua produção cenográfica para teatro.

174 Marcel NADALE. Djalma Limongi Batista – Livre Pensador, p. 32-4.

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No período, realizou o curta Porta do Céu (1973), com o Prêmio Estímulo do Governo do Estado de São Paulo, e Rasga Coração – O Teatro Brasileiro de Anchieta ao Oficina (1979-1986). Rasga Coração foi interrompido em 1979 porque, após muitas tentativas, Limongi havia, enfim, sido contemplado pelo convênio da Embrafilme com a SEC-SP, lançado em 1977. Por conta do longa, Asa Branca, um sonho brasileiro (1981), fundou a Cinema do Século XXI Produções Artísticas com Carlos Roberto de Souza. O filme acompanha Asa Branca (Edson Celulari), da adolescência em Mariana do Sul, no interior de São Paulo, quando sonha em ser um prestigiado jogador de futebol, até sua consagração, quase uma década depois, na Copa do Mundo de 1970. A trajetória de Asa é narrada de forma linear e episódica, atravessando dificuldades enfrentadas pelo jogador em nível pessoal e profissional. Ele passa por times locais, como Comercial e Sport, e por um grande da capital, o Bandeirante, quando mais sofre para encontrar seu lugar e mostrar seu futebol. Após ser afastado do time titular por indisciplina e acumular jogos no banco de reservas, o admirador Isaías (Walmor Chagas), um influente publicitário, convence o do time a lhe dar uma nova chance, quando enfim se consagra. Limongi teve contato com futebol desde criança. Seu tio, Flaviano Limongi, foi fundador e presidente da Federação Amazonense de Futebol, sendo o responsável pela construção do estádio de Manaus, e seu vizinho era Alfredo Barbosa Filho, técnico do Nacional Futebol Clube. Interessava-lhe, porém, fazer um filme sobre um personagem do futebol, o jogador, e não sobre o esporte em si. Ele explica: Acho que a chave para entendê-lo [o filme] é a transformação pela qual passou a figura do jogador de futebol a partir do tricampeonato mundial. Foi uma somatória da revolução comportamental dos anos 50 e 60 com o estrelismo gerado pela mídia, que consagrou o futebolista como o mais popular ícone do papel masculino de vitorioso e como símbolo de ascensão social, herói de massas e nacionalidades. Em torno de 1958, quando o Brasil foi campeão da Copa pela primeira vez, o jogador era visto quase como um xucro anônimo, um gladiador nas arenas, cuja função era divertir o público. (...) Aos poucos, porém, eles foram se impondo como pessoas ativas e influentes na sociedade, verdadeiros ídolos. Na década de 70, ocorre, enfim, uma mudança final, de uma fase puramente machista, para outra mais liberal, em que o craque é também alguém desejado sexualmente e que dita moda fora dos campos. (...) Quando realizamos a pesquisa para Asa Branca, eu e meu irmão trouxemos de Manaus a enorme coleção de revistas Placar de nosso irmão caçula, Cláudio. Além dos textos começarem a ironizar tabus como o homossexualismo no futebol, as fotos haviam ganhado a coragem de tratar os jogadores como corpos lindos, absolutamente deusificados. E era isso que eu queria, ainda na minha busca pela mítica do Brasil: pegar o brasileiro e transformá-lo em algo idealizado até as últimas consequências.175

175 Ibidem, p. 90-1.

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A mudança de perspectiva aponta para ênfase no lado humano do personagem. Ou seja, como os eventos do futebol afetam Asa Branca, um rapaz tipicamente brasileiro, que sonha em ser jogador de futebol. As brigas com técnicos e cartolas, a politicagem, a desilusão para com jogo e as dificuldades de se estabelecer, a penúria financeira, a glamourização dos desportistas nos anos 1960, o caráter essencialmente masculino do jogo são alguns dos temas abordados pelo filme, sob o olhar de Asa. Para tal, o diretor fez pesquisa de campo, em especial na Escola de Futebol Vicente Feola. Não à toa, não interessa ao cineasta tocar na questão política do Regime Militar, pois isso não afeta diretamente seu personagem. Asa Branca, um sonho brasileiro tem um viés realista, com atuações naturalistas, mas é tomado pelo lúdico em diversos momentos. O sonho do título é, assim, extrapolado para a diegese. A começar pelos nomes dos times e da cidade interiorana, todos inventados. Nessas cenas lúdicas, a fotografia é levemente repaginada, com um esfumaçamento das bordas e uma iluminação mais artificial. São momentos que se contrapõem ao verismo de parte do filme, como quando Asa e Cleyse (Regina Wilke), sua garota dos sonhos, dançam após ele ser sorteado no baile de final de ano do Sport, ou quando Asa, embriagado, vestido com asas de anjo e desmaiado na sarjeta é resgatado por Isaías, que o carrega em seu colo até o carro e saem em alta velocidade pelas areias da praia. Para além dessas cenas lúdicas inseridas na continuidade narrativa, há também os sonhos de Asa. A possível cena mais emblemática do filme é justamente um devaneio, que se coaduna com todo o tratamento lúdico do filme. Asa, nu, caminha pelo estádio do Maracanã vazio. Ele pega a lua e a usa como bola, treinando sozinho. Agora vestido com o uniforme do Comercial, aparece Poca (Cesar Augusto), seu amigo de infância que largou o futebol para ter uma vida familiar, e podem juntos jogar mais uma vez. Em seguida, Asa surge com o uniforme do escrete brasileiro. Junta-se a ele o lendário jogador Mané Garrincha176, campeão mundial pelo Brasil em 1958 e em 1962. Antes de ser acordado pelos colegas do Bandeirante, vê-se entrando no estádio lotado com a camisa da seleção, pronto para disputar uma partida. O sonho de Asa trabalha de maneira fantasiosa todos os receios e ansiedades do personagem, entre a sensação de deslocamento

176 Inicialmente, a cena contaria com todo o elenco da seleção de 1958, incluindo Pelé, porém Zagallo considerou o cachê simbólico oferecido pelo filme um valor irrisório e dissuadiu os demais colegas de participarem. Limongi resolveu assim usar a verba que seria para todos os jogadores apenas em Garrincha.

144 no clube atual – e a segurança de retornar às boas memórias do começo – e a vontade de se equiparar a um grande ídolo do futebol, passando ainda pelo caráter libertário da nudez e da lua como bola.

Figuras 24 e 25 – O sonho de Asa Branca: a lua vira bola e Garrincha o acompanha

Assim como no sonho, o filme contrapõe a promovida por Mariana do Sul, quando Asa julga sua vida boa, e cuja mise-en-scène colorida retoma os musicais e os romances juvenis norte-americanos dos anos 1950, com canções diversas pontuando interações importantes na narrativa, e a desilusão na cidade grande, em São Paulo, quando o filme fica mais pessimista e mais cinza. Para fazer Asa Branca, Limongi queria um ator desconhecido do grande público. Chegou, assim, a Edson Celulari. Rodado ao longo de três meses, entre setembro e dezembro de 1979, com uma média de 4 tomadas para 1, o filme custou Cr$ 7 milhões. A produção teve de recorrer a um adiantamento sobre a distribuição da Embrafilme para poder concluir o filme, o que demorou mais de um ano. As cenas de futebol, deixadas para serem filmadas por último, eram ensaiadas diversas vezes por um técnico do São Paulo Futebol Clube, que ensinou os “cacoetes e macetes” a Celulari. Nas filmagens, eram diversas as tomadas, sempre rodadas com duas câmeras. Alguns jogos que se passam no interior foram filmados nos campos de várzea que existiam próximo ao Rio Tietê, em São Paulo. Aproveitaram também jogos reais para filmar inserções narrativas, como Celulari em meio a jogadores profissionais no vestiário, entre outros. As cenas de Mariana do Sul foram rodadas em Santa Bárbara d’Oeste, onde ficaram 15 dias. Segundo Limongi: “Nossa produção era tão precária que, para hospedagem, alugamos umas casinhas bem simples. O núcleo de direção inteiro – eu, Gualter, Possi [José Possi Neto, diretor de atores] e [o diretor de arte Felipe] Crescenti –

145 dormíamos no chão de um quartinho apertado, com um ventilador barulhento e grande.”177 Asa Branca, um sonho brasileiro estreou no 14º Festival de Brasília, em novembro de 1981, onde ganhou os prêmios de melhor diretor, de melhor ator (Edson Celulari) e de melhor ator coadjuvante (Walmor Chagas). Foi, em seguida, exibido no 10º Festival de Gramado, em março de 1982, onde recebeu novamente os prêmios de melhor direção e de melhor ator (Walmor Chagas). O longa chegou ao circuito comercial em 26 de abril de 1982 em São Paulo e, no Rio de Janeiro, em 24 de maio de 1982. Segundo Limongi, fez 600 mil espectadores. Dados da Embrafilme apontam que, até março de 1984, Asa Branca fez 152498 pagantes. Com o sucesso de Asa Branca, um sonho brasileiro, Djalma Limongi Batista tentou emplacar diferentes projetos na Embrafilme, como Rio Máximo Amazonas, Pan, Amor e Fantasia e Ponte sem Retorno, nenhum deles aprovados. Carlos Augusto Calil, então presidente da Embrafilme, queria que Limongi fizesse um filme realmente voltado para o mercado e lhe sugeriu uma produção de Aníbal Massaini Neto intitulada Os Primos. Relutante, Limongi aceitou, por seu estúdio fotográfico estar falindo. Os Primos trazia elementos eróticos, próximo às comédias juvenis norte-americanas e às pornochanchadas, segundo ele. Avesso a isso, o cineasta mudou o roteiro, mantendo apenas o triângulo amoroso entre primos numa fazenda, demitiu Massaini e se associou à produtora Raiz Produções. Na escritura da nova versão do roteiro, os irmãos Gualter e Djalma resolveram aproveitar o cenário campestre para homenagear Brasa Dormida (1928), de Humberto Mauro, mudando o título do filme para Brasa Adormecida (1986). O longa foi contemplado, em março de 1985, pelo segundo convênio da Embrafilme com a SEC-SP. Em junho, o filme foi rodado, quase todo ele na fazenda Guariroba, próxima a Campinas, que mantinha elementos do Segundo Império. Para o filme, utilizaram diversos animais, inclusive um tamanduá, que teve de ser trazido do Mato Grosso com um fiscal do Ibama. Brasa Adormecida se passa em uma fazenda de classe alta no interior paulista durante os anos de presidência de Juscelino Kubitschek, na virada dos anos 1950 e 1960, evocando a atmosfera dos anos dourados e da Bossa Nova. A família se reúne por conta do casamento arranjado entre os primos Bebel (Maitê Proença) e Toni (Paulo César Grande). Ambos cresceram juntos e formavam um triângulo amoroso com outro primo,

177 Marcel NADALE. Djalma Limongi Batista – Livre Pensador, p. 104.

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Ticão (Edson Celulari). Ao contrário de Bebel e de Toni, que foram para a cidade construir suas vidas, Ticão ficou na fazenda, mantendo uma caipirice. Ele, porém, não está pronto para se afastar dos primos. Boicota duas vezes o casamento – primeiro, joga cobras nos oficiais de matrimônio e depois coloca uma poção dentro da comida, deixando todos alterados – e tenta reconquistar Bebel. Fica também implícita uma relação entre os Ticão e Toni. Ao término, descobrimos que tudo não passou de um sonho de Bebel na piscina. Ticão, agora, é padre e não pode se casar. Há, porém, uma troca de olhares entre eles que aponta para um romance furtivo que ainda não acabou. Embebido na atmosfera de comédias juvenis e musicais norte-americanos dos anos 1950 e 1960, Brasa Adormecida busca no humor ingênuo a sua essência. Esse humor é trabalhado em especial no caráter lúdico do filme, aspecto extrapolado em relação a Asa Branca, um sonho brasileiro. Se o período em que o longa se passa já emula a ideia de inocência – eram tempos do desenvolvimentismo de Juscelino, antes da repressão militar –, é quando, logo no começo do filme, Ticão joga cobras em cima do juiz de paz para postergar o casamento, que a tônica do humor se define. Outra artimanha de Ticão leva o longa para uma anarquia narrativa, ainda calcada no humor ingênuo e nonsense. É quando pede a um pai de santo () uma poção, que mistura à comida, deixando todos fora de si. Brasa Adormecida, assim, passa a acompanhar as desventuras dos convidados pela fazenda dentro de um transe mental desordenada, entre encontros e desencontros com outros personagens – permitindo um raro e interessante uso de efeitos especiais no cinema brasileiro, feitos por Cao Hamburger. Entre os delírios, há, por exemplo, o bispo que vê passarinhos de desenho animado; uma das primas que vê um saci; a mãe de Bebel que se cansa de tocar piano, sendo que suas luvas continuam o trabalho; a tia que se vê dentro do Brasa Dormida; a tia Cocota, que não percebe que está descendo a ribanceira em sua cadeira de rodas sem ninguém a segurando e cai de cabeça no lago; um sujeito trajado de mergulhador que passeia pela fazenda a esmo etc. Tais situações, sempre precedidas por um barulho de borbulhar e uma expressão gestual de loucura, ajudam a inserir o espectador no espaço da fantasia; aquilo é uma grande balbúrdia, uma traquinagem para com os demais personagens, mas sempre de maneira muito juvenil.

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Figuras 26 e 27 – Delírios em Brasa Adormecida: luvas tocam piano e o bispo vê passarinhos de desenho

O ponto alto dessa situação é a reunião de todos os primos na piscina. O primeiro efeito colateral da poção, neles, se dá num chá de panela. As meninas trocam animosidades enquanto os rapazes espiam – outra picardia de Ticão. Em determinado momento, as moças começam a se despir e os rapazes, alucinados, revelam sua presença. As primas decidem se vingar e se expõem em biquínis para mostrarem sua superioridade. Os primos pulam então na piscina. Ousando em coreografias, Limongi cria uma mise-en- scène típica de musicais. Aparece, logo depois, Ticão em roupas de banhos, deixando todas as moças boquiabertas. Pouco depois emula-se os filmes de império romano, colocando seus atores em posições específicas no quadro como estátuas. O humor é muito decorrente também da direção de atores. Limongi opta por interpretações over, num tom acima do naturalismo, mas de forma que ainda seja convincente dentro da trama. Cria-se, assim, uma sensação de absurdo, que casa com o lúdico da trama. O cineasta explica: “(...) a Maitê era a que mais precisava da minha orientação, pois sua interpretação precisava ser afetada, mas na medida exata, como eram as moças daqueles anos.”178 Ainda que trabalhe o humor ingênuo, há uma sensualidade latente entre o trio protagonista, sempre apresentado de modo implícito. A troca de olhares e o passeio da câmera, em visão subjetiva, pelos corpos semidespidos aponta o desejo sexual. Assim como o aspecto lúdico, o viés erótico também tem seu auge na piscina, em especial na cena em que Bebel emerge da água defronte a Ticão, filmada de modo a colocá-la entre as pernas dele.

178 Marcel NADALE. Djalma Limongi Batista – Livre Pensador, p. 139.

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Figuras 28 e 29 – A cena da piscina em Brasa Adormecida: a coreografia de musical e o erotismo

Limongi afirma que a falta de malícia e a pouca ousadia sexual vem de duas razões. A primeira, de um ranço para com o roteiro original de Os Primos, que via como uma pornochanchada vulgar. A segunda, a eclosão da Aids. Diz ele: Mais radical ainda foi a decisão de, ao tentar aniquilar a origem pornográfica do projeto, levá-lo sem querer para um puritanismo absoluto. (...) O roteiro original que eu e Gualter criamos, assim que destituímos Os Primos, previa que não apenas Ticão e Toni eram apaixonados pela Bebel como também mantinham uma relação entre si. Próximo do clímax, quando o trio se encontra sob a forca na qual Ticão queria se matar, o Almirante deveria flagrar, pelo binóculo, um beijo entre os dois rapazes. Seria a revelação daquilo que está subentendido em outros trechos: todos os três ali se amavam, sentiam ciúmes mútuos e queriam ficar juntos. Mas esse beijo jamais aconteceu. Ele é apenas sugerido, numa elipse. (...) eu, que sempre fui tão ousado e libertário, fui o único que disse não [a se filmar o beijo]. Eu estava apavorado e tinha motivos: no Brasil e no mundo, começavam a morrer as primeiras vítimas de Aids. Nem mesmo a ditadura militar, que colocou uma metralhadora na minha têmpora, me causou tanto pânico total quanto a descoberta da Aids. Era um inimigo desconhecido, sem origem, sem rosto, que estava matando amigos muito queridos ao meu redor. O próprio Flávio Império só não fez a cenografia do Brasa porque já estava morrendo. E foram-se Laurinho Corona, Carlos Augusto Strazzer, Marquito, Carlos, um amigo meu de Campinas, meu primo Fábio (o Gato do Asa), Edmar Pereira... que lista imensa! E, por fim, alguns anos depois, meu irmão Gualter. Não se sabia o que era. Não havia informações. Era simplesmente tida como uma peste gay. Isto era ainda mais dolorido: o estigma sobre algo tão importante para mim, uma escolha sexual alternativa a que eu creditava uma grande liberação filosófica, política, afetiva. E, muito assustado, eu pensava: não sei se tenho Aids ou não, não sei se vou morrer amanhã, semana que vem, mês que vem. Então decidi que não queria que aquilo estivesse no meu testamento. Não quis incluir o beijo com medo de tomar uma atitude ostensivamente gay e angariar todo o preconceito que a caça às bruxas da Aids havia despertado. Hoje, evidentemente, me arrependo.179

Limongi radicalizou, tanto nesse aspecto quanto na narrativa, em seu filme seguinte – e, por ora, derradeiro –, Bocage, o triunfo do amor (1997). Em seus filmes, a

179 Ibidem, p. 123, 142-4.

149 fantasia sempre se faz presente, ajudando a compor temas diversos com uma leveza que pouco se viu no cinema brasileiro. Brasa Adormecida estreou no II RioCine Festival, em agosto de 1986, onde foi mal recepcionado pela mídia e por seus pares. Ainda assim levou os prêmios de melhor atriz (Proença) – recebido com vaias –, cenografia, figurino e efeitos especiais. O longa foi lançado comercialmente em 14 de maio de 1987 em São Paulo e em 30 de julho do mesmo ano no Rio de Janeiro. Com o desmantelamento da Embrafilme e do Concine, Limongi foi para o teatro, onde concebeu e dirigiu o espetáculo Calígula, em 1991. A carreira da peça durou até 1993. Em seguida, o cineasta retomou um projeto anterior ao fim da Embrafilme, uma livre biografia do poeta português Manuel Maria du Bocage, Bocage, o Triunfo do Amor. O filme, após circular por festivais brasileiros, foi exibido no 15º Festival de Sundance, em 1998, entre outros. Sem conseguir filmar desde então, com exceção do documentário em vídeo Autovideografia (2003), Limongi trabalhou como professor universitário. Em 2015, lançou o ebook de contos Eternidade.

4.4.2 Chico Botelho

Após sair da Tatu Filmes, em 1985, Chico Botelho criou a Orion Cinema e Vídeo, com a qual realizou seu segundo longa-metragem, Cidade Oculta (1986). Durante a finalização de Janete, Botelho, o técnico de som Walter Rogério e o músico Arrigo Barnabé conversaram muito sobre temas diversos, como cultura, cinema, quadrinhos, e notaram muitas afinidades. Esse foi o ponto de partida para começarem a criar um roteiro influenciado por suas preferências – quadrinhos, mais notadamente The Spirit, de Will Eisner; filmes B norte-americanos; antigos seriados; e cinema japonês, entre outros. O processo durou mais de um ano, contando com colaborações do quadrinista e arquiteto Luiz Gê, quando enfim inscreveram o projeto de SP Zero no edital do segundo convênio da Embrafilme com a SEC-SP, em agosto de 1984. O resultado, positivo, saiu em maio de 1985 e o longa foi filmado no mesmo ano, ao longo de cinco semanas, já com o título de Cidade Oculta, a um custo de cerca de US$ 180 mil, sendo 60% oriundos da Embrafilme. A Secretaria da Cultura entrou com cem latas de negativo e a gravadora Polygram pagou o som em troca do lançamento simultâneo do filme e do disco, pelo selo Barclay, com a trilha musical original de Arrigo Barnabé – oficialmente, seu terceiro álbum.

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Após um acidente de carro, Anjo (Arrigo Barnabé) é preso por tráfico de drogas, numa campanha de repressão aos tóxicos promovida pelo delegado Ratão (Cláudio Mamberti). Sete anos depois, Anjo é solto e começa a trabalhar numa draga que recolhe o lixo do poluído Rio Pinheiros. O mundo do crime, porém, não está pronto para deixar Anjo em paz. Em uma noite, Japa (Celso Saiki), seu antigo parceiro, faz-lhe uma visita. Quer saber para onde foi a maior parte das drogas do carregamento que resultou em sua prisão, pois não foram apreendidas. Japa o leva para a boate SP Zero, uma espécie de cabaret, onde Anjo conhece Shirley Sombra (Carla Camurati), a principal dançarina do local, com quem tem um caso. Shirley e Japa são de uma gangue que rouba joias e as vende no mercado negro, comanda pelo mafioso Bozo (Jaime del Cueto). Querem levar Anjo para o mesmo caminho, apesar de suas reticências. O comprador das joias entrega Shirley para a polícia e Ratão cobra dela sua comissão pelos roubos. Com os subornos chegando atrasados, Ratão vai ao SP Zero à procura de quem lhe deve, esbarrando em Anjo, que lhe dá um soco. O delegado parte então em uma cruzada contra Anjo, assassinando as pessoas do bando. Bozo também entra na cruzada e comissiona a morte de Anjo para Japa. Após um tiroteio na draga, em que Japa salva o amigo, fogem para o bairro da Liberdade. A polícia descobre o paradeiro dos dois. Ratão, que descobrimos ser o verdadeiro chefe do tráfico, assassina Japa e namorada dele, bem como Anjo. Shirley chega a tempo de ver a morte do amante e atira em Ratão, matando-o. Apesar da trama policial que domina o filme, pode-se perceber três instâncias narradoras em Cidade Oculta, que dão margem a possíveis diferentes leituras do longa. A primeira linha narrativa é a que efetivamente abre e fecha o filme, com apenas mais uma aparição ao longo dos 70 minutos. Um ventríloquo (Chiquinho Brandão), com sotaque hispânico, e sua boneca (claramente uma mulher fantasiada), num palco, dizem: “Senhoras e senhores, boa noite. Enquanto você e eu dormimos o sono dos justos, entre luzes e sombras de ruas perdidas, começam algumas de muitas histórias, em essa cidade oculta.” O ventríloquo parece apenas apresentar a história para o espectador, como um prólogo. Segue-se o título do filme e os créditos e, só então, a trama policial que acompanha Anjo, Shirley e sua turma, guia o filme. A rápida inserção no meio do filme, em que diz “É quando o barco da noite rasga com suas sombras o coração da cidade”, rompe com a narrativa e aponta para a ideia de que a história que vemos está efetivamente sendo narrada por uma outra instância, no caso o ventríloquo. Isso é confirmado ao término. Ele aparece, relatando: “E quando a noite termina, termina também nossa história” Assim que termina de falar, a boneca remove a máscara e revela ser Shirley

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Sombra. “Enquanto outras começam”, diz ela. O plano, fechado nos dois, abre e vemos o palco onde estão, idêntico ao do SP Zero que vimos na trama. O entrecho policial, apresentado no resumo do parágrafo anterior, torna-se assim apenas um relato de um número teatral na boate, com pontos em comum com essa suposta primeira camada diegética – a trama policial sendo a segunda. A terceira instância é a máquina de tarô. O aparelho é uma espécie de fliperama, em que Shirley Sombra joga tentando a sorte. Na tela, a cada jogada, ela vê a imagem da cena que se seguirá, num decalque eletrônico – típico da estética do vídeo nos anos 1980 – dos personagens, como a própria Shirley e Anjo. Por diversos momentos, Chico Botelho interrompe a narrativa para mostrar um plano médio de Shirley olhando para a máquina, como se ela fosse uma espectadora da história que vemos e pudesse decidir, pelo fliperama, a máquina de tarô, o futuro.

Figuras 30, 31, 32 e 33 – Cidade Oculta em instâncias: o ventríloquo abre e fecha o filme, revelando a apresentação cênica (primeira); Shirley Sombra joga tarô como um fliperama (terceira)

Shirley, assim, aparece como uma personagem central das três instâncias (a boneca do ventríloquo, a dançarina de cabaret e a jogadora de tarô). A impressão que se fica é que a trama policial está subordinada tanto à ventríloqua quanto ao tarô – e de certa forma, à Shirley Sombra, que, na trama policial, sai-se vitoriosa. As questões são: há uma

152 relação de dominação entre o ventriloquismo e o fliperama? Essas duas instâncias interferem efetivamente na trama central do filme narrativamente ou apenas são artifícios do diretor? Talvez pouco importe se interferem, mas certamente são artifícios que Botelho usa para amparar sua trama cinematográfica numa rede, que vai da obsoleta ventriloquia à modernidade de jogo eletrônico. O cinema – a trama policial, por sua essência, que, como veremos, também está cercada por outras artes –, assim, integra um corpo artístico, ao qual influencia e pelo qual é influenciado. O cinema, vemos, está longe de ser uma arte pura ou isolada, parece nos dizer Botelho, em uma época que se pregava o purismo. O título Cidade Oculta é bastante certeiro para entender o filme tanto narrativa quanto esteticamente. O longa versa sobre um aspecto da cidade, seu lado marginalizado, criminal e notívago, que não chega ao conhecimento público, envolto pela escuridão. Imageticamente, o filme segue essa toada, apropriando-se de signos do cinema noir, em especial, do jogo de claro e escuro a partir do recorte da luz. A mise-en-scène, assim, privilegia alguns poucos elementos e compõe a atmosfera pelo que está fora da luz. Da mesma maneira, os quadrinhos dos anos 1930 e 1940, época em que surgem as primeiras histórias policiais de estética noir, cumprem papel semelhante na mise-en- scène. Os roteiristas, inclusive, estudaram os quadrinhos de The Spirit com o diretor de fotografia José Roberto Eliezer e a cenógrafa e figurinista Ana Maria Abreu. O objetivo principal era não trabalhar dentro das regras do naturalismo. Por isso, os clichês180 decorrentes dessas referências – o noir, os quadrinhos etc. Por isso também a glamourização do submundo a partir desses signos. Existe, em Cidade Oculta, uma idealização desse universo. Nesse sentido, a opção por um visual deslumbrante e trabalhado em termos de luz e arte, embelezando a noite, o poluído Rio Pinheiros, o lixo espalhado pela cidade etc., colabora para afastar o filme do realismo, da cidade como ela é. A noite ganha contornos azulados, dando uma dimensão onírica à marginalidade181.

180 Para o pesquisador Renato Luiz Pucci Jr., os clichês abundam em Cidade Oculta, desde as referências a outros gêneros até à escolha de simples imagens de transição e situação no filme, como os planos de São Paulo. Diz ele: “Cidade Oculta não se articula como discurso alegórico e, muito menos, como discurso alegórico com função crítica, como no cinema político nacional, de modo que é mais admissível que a imagem [do edifício do Banespa, no primeiro plano do filme] teria sido escolhida por ser caráter de clichê. (...) Em Cidade Oculta não se teme o uso de clichês; muito ao contrário, faz-se questão de abusar deles.”180 Cf. Renato Luiz PUCCI JR. Cinema Brasileiro Pós-Moderno – O Neon-Realismo, p. 59-60. 181 José Roberto Eliezer comenta: “Cidade Oculta é um filme absolutamente azul. O filme era todo noturno, um filme urbano e noturno. (...) Cidade Oculta foi uma exacerbação dessa coisa azulada. Era uma opção estética, era achar que a luz da noite é azulada. Não é uma luz da lua nem uma luz da cidade, de poste, não. A gente optou pela cor azul mesmo. (...) Os cenários eram mais iluminados com azul. Os fundos e o contra luz, tudo o que vinha e envolvia era azul.” Cf. Francisco Cassiano BOTELHO JR. Técnica e estética na imagem do novo cinema de São Paulo, p. 73-4. Na cena da draga, por exemplo, não tinha nada no fundo. A solução foi colocar uma fumaça e azular a fumaça.

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Cidade Oculta é um filme de cores puras, chapadas, próximas aos quadrinhos antigos, e tendo como referência imagética Blade Runner – O Caçador de Andróides (Blade Runner, 1982), de Ridley Scott. A cidade, assim, é embebida pelas luzes de neon, rosas, vermelhas, roxas e azuis, de sinais luminosos espalhados pelas ruas e pela boate, mesclando o cosmopolitismo dos anos 1980 e seu suposto futurismo182 e decadência elegante, cujo ápice está na superfície, como toda encenação de Cidade Oculta. Os personagens Anjo, Japa e Shirley, ainda que criminosos e não heróis, trazem características de bom mocismo (lealdade, honestidade, cumplicidade etc.), criando empatia e idealizando o espaço em que agem. Ratão, por sua vez, é um típico vilão, sem qualquer caráter, validando a ação do trio. Algo como ‘eles são criminosos, mas, ao menos, têm valores’. Em Ratão, reside a principal crítica social de Cidade Oculta. Ao contrário do que se espera de uma trama de crime, o vilão é o delegado de polícia, um traficante e usuário de drogas que abusa do aparato público para seu desfrute. Corrupto, é vendido pela mídia hipócrita como o grande benfeitor da cidade ao desmantelar organizações criminais. Cidade Oculta é um filme plano, de fáceis e lógicas associações, dentro da trama policial. Os personagens são todos tipos, assim como a história aposta na simplicidade narrativa, de causa e efeito, com alguns flashbacks que elucidam ao espectador um evento presente. Há pouca ambiguidade, e quando há, é desmistificada até o encerramento do longa. O enredo ainda apela para a universalidade desse tipo de trama policial. Essa objetividade e clareza do roteiro foram buscados pelos roteiristas na execução do trabalho, tendo os quadrinhos como principal referência nesse sentido. Chico Botelho explica, em entrevista para a Folha de S.Paulo e no material de release: Desde o roteiro, quisemos que o filme fosse radicalmente urbano, de aventura, quase todo passado de noite, com alguns toques de noir, sem ser de época. O aspecto visual seria o da linguagem, do enquadramento e dos elementos e estereótipos dos quadrinhos. Entre as várias histórias que marcaram a turma toda estavam as do Spirit. Só que o filme não é uma adaptação do personagem ou das fantasias criadas por Will Eisner. (...) Acho que o incrível desse tipo de trabalho é o lance da ficção radical. Todos os personagens têm elementos humanos reais. Mas é claro que a gente seleciona dentre as várias características de uma pessoa apenas alguns elementos, e os supervaloriza. É o que faz a caricatura. Isso dá uma carga narrativa intensa. O filme é ficção pura. O Ratão, por exemplo, não interessa se ele é casado, solteiro, se tem ou não filhos, onde mora. Ele interessa enquanto aquela figura ficcional, o policial

182 Tanto os quadrinhos de Luiz Gê à época quanto as narrativas dos discos anteriores de Arrigo Barnabé – Clara Crocodilo (1980) e Tubarões Voadores (1984) – emulavam um visual futurista das ficções científicas no presente da metrópole, como em uma realidade paralela. Tal característica também está presente na construção visual da São Paulo de Cidade Oculta.

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corrupto, drogado, traficante. Sua função é ser isso até as últimas consequências.183 Em Cidade Oculta isso começa pela própria escolha dos nomes dos personagens: Anjo, o marginal perseguido, Shriley Sombra, a mulher da noite, estrela de shows e bandida, Japa o amigo japonês, e finalmente Ratão, o policial corrupto e grande vilão da história. Esta seleção de traços se dá também na representação visual. Assim, no filme, cada personagem mantém sempre o mesmo contorno básico. Por exemplo, quase nunca mudam de roupa e se isso acontece segue-se mais ou menos o mesmo corte e a cor da anterior. O mesmo vale para o tratamento de luz, como no caso de Shriley Sombra que merece sempre um contra luz azulado.184

Tais características apontadas por Botelho ajudam a planificar o conteúdo de seu filme, criando uma trama ágil, de fácil assimilação pelo espectador, a partir de uma série de elementos artificiais (a simplificação do plot e dos personagens, na narrativa; a estética embebida no neon de São Paulo). Segundo Renato Luiz Pucci Jr., a “combinação de elementos inverossímeis e tratamento visual artificioso coloca Cidade Oculta mais próximo de desenhos animados do que de filmes naturalistas, sejam de Hollywood ou da Vera Cruz”185. A encenação de Cidade Oculta tem uma atmosfera lúdica186 que reside nas homenagens. Primeiramente, à cidade São Paulo, exibindo-a longe dos cartões postais, como o Rio Pinheiros, o centro velho e o bairro da Liberdade. Cidade Oculta, em seu deslumbre gráfico, é também uma declaração às diferentes artes. Por isso as referências a gêneros cinematográficos e aos quadrinhos, e uso narrativo da arquitetura (a São Paulo urbana), do vídeo (nas diversas reportagens televisivas), da música e das artes cênicas (nas cenas na SP Zero). O tom das referências é notado por Pucci Jr. em seu estudo sobre o filme: “[Em Cidade Oculta], os elementos textuais com que se relaciona não sofrem deturpação agressiva. Tanto o noir quanto o musical hollywoodiano são tratados com um respeito inadmissível para o padrão modernista.”187 Na boate, filmada na Madame Satã, o filme faz muitas referências ao gênero musical, com inspirações em filmes como Cabaret (1972), de Bob Fosse. Shriley Sombra canta e dança, em trajes sensuais, acompanhada de vários dançarinos e dançarinas, que fazem as vezes de backing vocals. Por diversos momentos, Botelho interrompe a narrativa para nos mostrar as apresentações na SP Zero – além dos números de Shirley, há uma strip-tease e um show da Patife Band,

183 SPIRIT, inspirando filme de Chico Botelho. 184 ORION CINEMA E VÍDEO. Cidade Oculta (release). São Paulo, 1986. 185 Renato Luiz PUCCI Jr. Cinema Brasileiro Pós-Moderno – O Neon-Realismo, p. 57. 186 A impressão que se tem é de que o filme é uma brincadeira, em que o espectador pode jogar com ele, como, por exemplo, nas chaves de leitura a partir das diferentes instâncias narrativas. 187 Renato Luiz PUCCI Jr. Cinema Brasileiro Pós-Moderno – O Neon-Realismo, p. 66.

155 de Paulo Barnabé. A música tem importância fundamental na construção de Cidade Oculta, para além das cenas na boate. A integração da música ao filme vem desde o roteiro e ela ajuda a contar a história, a situar os personagens, com temas específicos para as situações (como para as cenas de ronda policial e da máquina de tarô, por exemplo), além de baladas pop que traduzem a Vanguarda Paulista – o submundo da música, que flerta com as artificialidades do eletrônico e do atonal assim como o filme flerta com as artificialidades cromáticas cinematográficas. Todos esses aspectos elencados (a urbanidade, as múltiplas referências ao cinema de gênero e às outras artes, a planificação do roteiro e das personagens etc.) fazem de Cidade Oculta um filme muito diferente de Janete, longa anterior de Botelho. Neste, ele flertava com a fantasia, mas ainda uma fantasia realista, calcada no sonho e na ingenuidade da personagem, que buscava se libertar na estrada. Naquele, o diretor assume completamente o caráter lúdico, ficcional e nada realista, transpondo para imagética o conteúdo do sonho que representa o próprio cinema. Cidade Oculta ainda tem um compromisso com o pessimismo da segunda metade dos anos 1980, com a barbárie econômica e a desilusão política do fracasso das Diretas Já e a subsequente ascensão de José Sarney à presidência. Enquanto Janete aponta para um futuro de esperança, em 1983, Cidade Oculta, em 1986, só vê os fracassos em tentar lutar contra o sistema. Não à toa, o filme ganhou a pecha de “dark”, amplamente refutado pelo diretor e pela equipe.

Figuras 34, 35 e 36 – São Paulo e seu Rio Pinheiros exuberantes, o musical e a estética noir embebidos no neon e no azul, em Cidade Oculta

Cidade Oculta estreou em agosto de 1986, no II RioCine Festival, onde levou o prêmio principal, o Sol de Ouro (melhor filme pelo júri popular), além de prêmios para direção, música, trilha musical, fotografia e ator coadjuvante (Mamberti). O longa foi lançado comercialmente em 20 de novembro do mesmo ano, em São Paulo, e 05 de fevereiro do ano seguinte no Rio de Janeiro. Paralelamente à carreira de cineasta, Botelho também seguiu vida acadêmica, tendo defendido mestrado (1981) e doutorado (1991) na ECA/USP, em Cinema. Seu

156 doutorado, Técnica e Estética na Imagem do Novo Cinema Paulista, analisa o papel da fotografia para criar a imagem do cinema paulista na segunda metade dos anos 1980. Botelho faleceu devido a um enfarte do miocárdio, no Hotel Debret, no Rio de Janeiro, onde estava hospedado para gravar um dos programas da série Paisagens Urbanas, de Nelson Brissac Peixoto, para a TV Cultura.

4.4.3 Sérgio Toledo e Roberto Gervitz

Sérgio Toledo (Sérgio de Toledo Segall, São Paulo, 1956) e Roberto Gervitz (Roberto Edgard Gervitz, Nova York, EUA, 1957) se conheceram ainda no primário, em São Paulo. Gervitz nasceu nos EUA, onde os pais trabalhavam, e veio ao Brasil com um ano, crescendo numa casa de classe média na Vila Mariana. Toledo é oriundo de uma família proeminente: filho do museólogo e produtor teatral Maurício Segall e da atriz Beatriz Segall, neto do pintor Lasar Segall e da escritora e tradutora Jenny Klabin Segall e bisneto do fundador da empresa de papéis Klabin Maurício Freeman Klabin. Cinema, para ambos, era um passatempo. O que interessava a Gervitz era a música. Aos 7, começou a tocar violão. Toledo cresceu no universo das artes cênicas. Aos 15, um amigo de Toledo ganhou uma câmera super-8 e eles começaram a fazer filmagens e filmes, como O Recital, baseado nas poesias de Carlos Queiroz Telles, proibido de passar no festival de super-8 de Abrão Berman pela censura. Coube a Gervitz fazer a música do filme, e, assim, se aproximou do cinema, fazendo trilhas para esses curtas. Toledo estava tão interessado no processo do super-8 que seu pai lhe deu equipamento completo. No Colégio Santa Cruz, onde estudavam, Gervitz fundou o cineclube. Toledo entrou no curso de Ciências Sociais, na USP, em 1974. Gervitz apenas em 1976, por conta da diferença de idade entre eles de 1 ano e 4 meses. Em abril de 1975, porém, com Gervitz ainda no colégio e Toledo afundado nos estudos da sociologia, estourou uma greve na ECA/USP contra Manuel Nunes Dias, diretor que havia sido apontado pelo regime militar. Era a primeira greve estudantil desde 1968. Com a câmera de Toledo, filmaram as passeatas e a paralização. Segundo Toledo, “era um líder da USP, 40 gatos pingados, mas parecia que era um milhão de pessoas na rua”188. A partir desse material e de algumas entrevistas, montaram um curta de 15 minutos intitulado Parada Geral (1975). O filme teve circulação pelos movimentos estudantis.

188 Em entrevista para o autor, em 11 de março de 2015.

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Na época, o documentarista Renato Tapajós estava saindo da prisão e Toledo e Gervitz mostraram a ele o filme, que apontou uma série de deficiências formais e a falta de um discurso cinematográfico. Por conta disso, montaram um grupo de estudos de documentário – Gervitz, Toledo, Tapajós, Inês Villares e Olga Futemma – , com reuniões no Museu Lasar Segall e na ECA. Os dois frequentavam também, entre outros, as sessões de cinema do Museu Lasar Segall. Além disso, tiveram uma formação técnica com o sonoplasta Hugo Gama Por intermédio dos professores Francisco Weffort e José Álvaro Moisés, Toledo e Gervitz filmaram por cinco meses as comunidades de base do bairro Jardim D’Ávila, em Osasco, durante as eleições municipais de 1976. Em 1974, o partido de oposição MDB havia conseguido um resultado surpreendente. As eleições de 1976 eram vistas com expectativa. Para investigar esse momento, acompanharam dois amigos que se candidataram a vereadores, um pelo MDB, outro pela Arena. O média, de 30 minutos, intitulado A História dos Ganha-Pouco (1976), circulou bastante por organizações populares. Paralelamente, Gervitz e Toledo começaram a trabalhar como assistentes de montagem. Gervitz estagiou na produtora OCA Cinematográfica, com Silvio Renoldi e outros, em longas como Lúcio Flávio, Passageiro da Agonia e O Cortiço (1978), de Francisco Ramalho Jr., além de montar Xingu Terra (1981), de . Toledo, por sua vez, assistiu a Maurício Wilke em O Jogo da Vida e Paixão e Sombras (1977), de Walter Hugo Khouri, em que assina também como montador. Com a repercussão de A História dos Ganha-Pouco, em abril de 1978, Weffort e Moisés os indicaram para documentarem a eleição de uma nova diretoria para o Sindicato dos Metalúrgicos de São Paulo sob o viés da oposição sindical. Em 16mm e com Aloysio Raulino como diretor de fotografia, Toledo e Gervitz começaram a acompanhar o processo. Toledo aponta: Não era um filme, era para documentar o processo. Só que aquele negócio foi crescendo. De repente viraram as greves. Eram greves diferentes, porque, como era um teste, os caras entravam nas fábricas, iam pros postos de trabalho, e paravam dentro da fábrica. Não tinha piquete, porque tinham medo também. Começou a despontar aqui, ali, e virou uma febre em São Paulo. Como estávamos em contato com o movimento operário, estávamos sempre lá.189

Assim nasceu Braços Cruzados, Máquinas Paradas (1979). O longa-metragem circulou bem. Foi exibido, em 1979, nos Festivais de Havana e de Leipzig, de onde saiu com o prêmio especial do júri, e na mostra Fórum, do Festival de Berlim, em 1980. Foi

189 Id.

158 também bastante apresentado em sindicatos, cineclubes e em organizações populares diversas do Brasil inteiro. Com a exibição em Leipzig, os diretores aproveitaram para viajar pela Europa por seis meses, entre outubro de 1979 e abril de 1980, onde tomaram contato com muitos filmes proibidos no Brasil e com cineastas diversos. Por conta do longa, ambos largaram a faculdade de Ciências Sociais. Na volta, Toledo trabalhou com publicidade na Movie&Art. Gervitz montou Linha de Montagem (1982) e Em Nome da Segurança Nacional (1984), que coescreveu, ambos de Renato Tapajós. Juntos, montaram Das Tripas Coração (1982), de Ana Carolina. A viagem à Europa e o retorno ao Brasil resultaram em crises pessoais. O período na Europa despertou muitos questionamentos e reflexões nos jovens diretores. Decidiram cada um seguir seu caminho enquanto parceiros criativos. Resolveram também refrear a carreira de direção. Os filmes que faziam eram eminentemente políticos e sociais, com forte carga de denúncia, combativos de esquerda. Não queriam mais seguir esse caminho, cada um à sua maneira. O processo de voltarem a acalentar um filme como diretores e roteiristas está muito ligado a essa crise pessoal, em que Toledo e Gervitz buscavam trabalhar as angústias por meio de uma roupagem ficcional, em histórias muito diferentes, mas com origens bastante próximas. Tanto Vera (1986), de Toledo, quanto Feliz Ano Velho (1988), de Gervitz, retratam um indivíduo em confronto consigo mesmo.

4.4.3.1 Vera

A crise de Sérgio Toledo estava relacionada com sua formação e o que se esperava dele em termos políticos. Diz ele: Vera foi minha primeira viagem solitária e única. Nessa época, também estava fazendo psicanálise, porque era completamente louco e estava me repensando na vida. Era um garoto que tinha sido educado para ser comunista, o certo e o errado, o preto e branco. Você vai ficando mais velho, vem a sexualidade, vem a confusão do mundo, que não se encaixa naquela coisa quadradinha. Nesse contexto que me interessei pela história que deu origem ao Vera e resolvi pesquisar. O filme, na verdade, era uma reflexão sobre uma pessoa que é uma coisa e quer desesperadamente ser outra, que tem tudo a ver com esse momento que estava vivendo. Fiz esse filme com uma leitura muito pessoal, quase autobiográfica no sentido das emoções, de alguém que não quer ser uma coisa, quer ser outra; de alguém que cresceu num país ditatorial e quer ter democracia, quer ter liberdade, e não sabe bem o que é isso; que foi doutrinado ideologicamente e quer jogar essa merda fora e ter criatividade, pensar um pouco sua realidade pessoal e a sua individualidade também, coisa que no comunismo não existe – somos todos um grupo. Sou filho de um cara ligado

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ao Partido Comunista, que depois se desligou dele, que é o Maurício Segall, e foi militante da esquerda. Participou da ALN [Ação Libertadora Nacional], foi preso, torturado, condenado a dois, três anos de prisão, depois virou fundador do PT [Partido dos Trabalhadores]. Eu vivi um pouco essa influência. Essa fase documentária tinha muito essa preocupação social, com a realidade, com a desigualdade etc. Mas você vê que alguma coisa não está indo muito bem. A gente começava a olhar para a Europa do leste e falar ‘isso aqui é uma merda do cacete’.190

Essa mudança de perspectiva começou na Europa, quando Toledo conheceu o lado oriental da Alemanha e tomou contato com a reflexão que se fazia no continente sobre o socialismo, incluindo em filmes como Amador (Amator, 1979), de Krzystof Kieslowski, e O Homem de Ferro (Czlowiek z zelaza, 1981), de Andrezj Wajda. Ele conta: Comecei a ver esse tipo de cinema e comecei a refletir um pouco sobre a questão do que era mesmo o socialismo, porque comecei a viver. Muita gente já questionava, o XX Congresso [do Partido Comunista da União Soviética] tinha sido no ano em que nasci, em 1956. No Brasil ainda tinha muito essa coisa de esquerda e direita, e a luta pela democracia se misturava nesse embate ideológico. Um outro episódio me marcou muito. Quando eu e o Roberto estávamos saindo de Leipzig, com o prêmio, estava uma nevasca e a gente se enganou de aeroporto. Fomos para o aeroporto de Berlim oriental e deveríamos ter ido pro de Berlim ocidental. O jeito era ir ônibus, até um check point, e atravessar o muro de Berlim. Quando chegamos ali, era um campo de guerra. Objetos de ferro, arame farpado, pastor alemão, cara com metralhadora. Eu tinha 20 anos. Viram o passaporte, éramos brasileiros. Levaram a gente para uma salinha, reviraram tudo, deram um aperto, o Roberto com uma puta dor [estava com herpes zoster, mas não sabia]. Viram, lá embaixo, no final da mala, o prêmio do festival de Leipzig e liberaram a gente. Eu ia visitar meu pai na cadeia a cada 15 dias, fila, revista. Esses caras eram iguaizinhos. Que porra é essa? Socialismo não era outra coisa? Só faltou bater na gente. Humilhando, mandando tirar a roupa, gozando enquanto fazia, uns canalhas. Eles liberaram a gente e a gente atravessou a ponte. Até a metade da ponte, estávamos na praia Omaha no Dia D. Metade pra lá, não tinha porra nenhuma. Atravessamos, acabou. Fomos andando, tinha um táxi, um cara lendo jornal, desinteressado. Nos levou para o aeroporto sem problemas. Essas coisas foram marcando muito a maneira como eu via o mundo.191

O ponto de partida para Sérgio Toledo escrever Vera foi a história de Sandra Mara Herzer, que ele conheceu em 1982, quando a jovem transexual se suicidou aos 20 anos e foi publicado seu livro de poesias, A Queda para o Alto. Sandra Mara teve uma juventude complicada, ficou órfã cedo e, sem ninguém para cuidar dela, foi abrigada pelo estado na Febem (Fundação Estadual do Bem-Estar do Menor), local que encarcerava menores de idade criminosos. Lá, desenvolveu uma personalidade masculina, assumindo o nome Anderson e o apelido Bigode. Aos 17 anos, Herzer foi apadrinhado pelo deputado Eduardo Suplicy, que lhe deu um estágio no gabinete. Toledo conversou, na época, com

190 Em entrevista para o autor, em 11 de março de 2015. 191 Id.

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Suplicy e tentou comprar os direitos do livro. Ele conta que, após a irmã liberar, foi com Gervitz até uma cidade litorânea de Santa Catarina, de ônibus, falar com os tios. Ele relembra: O cara levantou da mesa, saiu e voltou com uma peixeira enorme, e falou: ‘se você fizer esse filme e usar o nome dela, eu vou te capar, não interessa onde você esteja. Está vendo essa peixeira? Eu vou guardá-la para você’. Pensei: ‘bom, além de perder a parte mais importante do meu corpo, se insistir, não vai acontecer. Só que tenho que contar essa história’. Não tem como contar essa história, porque preciso da anuência desses caras.192

À época do lançamento do filme, a imprensa sempre associou a história de Herzer ao filme, sistematicamente negada por Toledo, que preferiu se esquivar da polêmica – hoje, afastado do cinema, não viu problemas em admitir a influência. Após a tentativa frustrada de conseguir os diretos, Suplicy inclusive aconselhou o cineasta a fazer o filme. Toledo passou um ano e meio pesquisando para o roteiro na Febem, convivendo com as meninas, e também nos bares voltados para o público lésbico, criando um relacionamento que permitisse uma intimidade com aquele cotidiano. No processo de pesquisa, Toledo teve outra percepção: Percebi que a Sandra Mara – que não era nenhuma grande poetisa, o valor era a história dela – era uma produção em série na Febem. Tinha 400 meninas lá, todas escreviam poesia, se comportavam como homem, tinham suas mitomanias. Não estou fazendo só sobre essa menina, estou fazendo a história das meninas na Febem.193

Por conta do projeto, Toledo abriu, em novembro de 1984, a produtora Nexus Cinema e Vídeo. Vera foi premiado no segundo convênio da Embrafilme com a SEC-SP, em maio de 1985. Metade do orçamento de US$ 350 mil veio da Embrafilme, o restante foi captado com investidores privados. A Secretaria entrou com as latas de negativo. O filme foi rodado ao longo de nove semanas, no final do mesmo ano. Para o elenco, Toledo fez testes com mais de 300 candidatas e escolheu a novata Ana Beatriz Nogueira, então com 18 anos. Fez um mês e meio de ensaio com os atores. Toledo assina a direção, o roteiro e a produção194. Antiga residente de um internato estadual para moças, Vera Bauer (Ana Beatriz Nogueira) sai sob a tutela do professor Paulo Trauberg (Raul Cortez), que se interessa por sua história. Ele arranja um quarto de pensão e um emprego como assistente onde

192 Id. 193 Id. 194 Até Vera, o cineasta assinava Sérgio Segall. Assumiu Toledo para não ser confundido com o publicitário paulista, radicado em Curitiba, homônimo, responsável por dois filmes de cunho erótico, Os Galhos do Casamento e A Força do Sexo, ambos de 1978.

161 trabalha. A trama é intermediada por flashbacks de Vera no internato, em que ela relembra episódios que vão aos poucos definindo sua personalidade. No trabalho, cada vez mais assume uma identidade masculina, pois não se vê como mulher, e sim como homem, ainda que sua figura fuja dos estereótipos da “mulher-macho” – que o filme chega a explorar também em outras personagens, inclusive numa fala emblemática que identifica apenas duas pessoas no orfanato como autênticas mulheres masculinizadas. Vera, porém, passa por um processo de amadurecimento, de tentar se aceitar e de se mostrar como realmente se sente. Por isso, refuta seu primeiro nome e só aceita ser chamada pelo sobrenome Bauer, um signo sem gênero pré-determinado, e passa a se vestir de terno e gravata. Corteja a colega de trabalho Clara (Aída Leirner), quem, posteriormente, conquista. Bauer aposta no romantismo da poesia e também na truculência do machismo em seu relacionamento amoroso, entre outros. Sente-se extremamente desconfortável com seu corpo, a ponto de não deixar Clara vê-la sem roupa, inclusive nos momentos de intimidade. Seu objetivo é juntar dinheiro para fazer uma operação de mudança de sexo. A dificuldade de aceitar seu corpo faz com que seu namoro degringole e seja cada mais difícil trabalhar num ambiente hostil à sua masculinização. Vera talvez seja o filme síntese paulista da questão homossexual dos anos 1980, ainda hoje bastante atual, mesmo que Toledo não estivesse interessado, em especial, nesse aspecto, e sim em trabalhar a crise de identidade195. Nos filmes dessa geração, o retrato do gay poderia nem ser o foco do trabalho, mas permeava constantemente a obra – vide A Dama do Cine Shanghai ou mesmo Asa Branca, um Sonho Brasileiro. Em outros, como Romance, Onda Nova e Anjos da Noite, o retrato do homossexual é mais premente, seja no registro naturalista, sem pudor e moralismos, da afetividade entre pessoas do mesmo sexo, seja no discurso urgente e revoltado pelo tratamento da sociedade. A Vera, não interessa tanto nenhum dos dois caminhos, ainda que o filme os tangencie. O que está em

195 “Como a minha preocupação básica não era fazer um filme sobre a homossexualidade, usei como matéria prima muitas das minhas próprias emoções pessoais. Ainda mais estando dentro de um processo terapêutico, analítico etc., que é onde eu reconhecia dentro de mim uma identificação muito grande com o sentimento feminino, porque essa coisa de medo, da dificuldade de assumir uma postura mais firme, mais decisiva, de crescer, eu considero que tem muito a ver com a concepção feminina, com a maneira feminina de ser.” Cf. “VERA”, um filme muito pessoal, p. 44. Em entrevista para o autor, em 11 de março de 2015, ele ainda diz: “O principal era um ser humano querendo ser alguém, assim como eu, e não se encontrava nessa bagunça toda. Frágil, inseguro e tentando ser alguém, que de alguma forma construía essa armadura. Da mesma forma que ela vira um homem, eu também tinha aquela racionalidade política, intelectual, mas no fundo eu era uma bagunça, uma desorganização. Queria jogar fora todo aquele entorno e queria que as pessoas olhassem todo aquele sofrimento ali.”

162 xeque, no filme, é a crise psicológica de uma jovem que se sente homem, mas está aprisionada no corpo de uma mulher. A crise de identidade – a não identificação com seu corpo – vai, claro, para além de seu processo psicológico interno e perpassa muito a opressão social, em que o mundo, de maneira genérica, vê em seu comportamento um ato imoral. Seja o diretor do orfanato que quer obrigar as moças a serem mais femininas e, para tal, fazê-las usarem vestidos, seja os colegas de trabalho que olham estupefatos para o terno que Bauer veste. A opressão social, para Toledo, passa pela questão do consumismo, como afirma em entrevista para O Globo: Vivemos radicalmente na sociedade de consumo. O capitalismo soube recuperar os movimentos contestatórios dos anos 60 e transformá-los em direito ao consumo. As pessoas se sentem muito individualizadas, ficamos desarmados nos momentos em que não temos rótulos para nos definir, em momentos de crise. Vera de certo modo compreende que se for simplesmente ela, com suas emoções e independência, vai se dar mal. Por isso precisa se enquadrar em determinados padrões, o que faz com que sua masculinidade às vezes seja quase caricatural, como um clichê.196

O que está em jogo, porém, é o processo interno de Vera. Há duas cenas fortes no registro da crise, da falência no processo de entendimento por parte dessa garota: em uma, quando não consegue se desnudar na frente da namorada, enfim tirando a blusa que cobre os seios, o que a faz sentir-se completamente violada – pois fica gráfica sua realidade até o momento incontornável –; e, depois, quando sente o sangue quente da menstruação correndo em suas mãos, ao término do filme. Toledo consegue, em ambas as cenas, algo raro, em especial em filmes com temática tão delicada e que pode ser tão polêmica e engajada/esvaziada. São cenas que apontam para um entendimento da alma, que externam a complexidade e a dificuldade de ver escancarado algo que seja tão contrário à sua essência. Não à toa, o sonho de Vera é fazer uma operação de mudança de sexo. Não é homossexualidade apenas, é transsexualidade. De qualquer forma, é importante referendar que, mesmo Toledo optando por enfatizar o registro de alguém que se sente completamente deslocado de sua natureza, usando a temática da moça que se sente homem, o filme não deixa de ter sua abrangência política e social. Pode não ser um filme engajado, de denúncia, ainda que isso perpasse o enredo, mas encena a intimidade de alguém que atravessa uma crise de identidade ligada ao corpo e ao sexo numa sociedade que não aceita tais questões.

196 Mário MAGALHÃES. A cabeça do pai de ‘Vera’.

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Vera se beneficia de uma fotografia soturna e lúgubre, calcada em tons de azul, e bastante recortada, comandada por Rodolfo Sánchez, que exterioriza a própria crise da protagonista. O objetivo era fazer um filme frio. Para tal, conforme afirma Sánchez: “A gente tirou tudo o que havia de cores quentes no filme.”197 O mesmo pode se dizer da trilha de Arrigo Barnabé. Sérgio Toledo compõe sua história como uma tragédia, mas sem cair no dramalhão. Interessa-lhe mais a atmosfera de deslocamento de Vera e compor a personagem nesse mundo conforme a visão dela. Ele conta: Sou colecionador de obras de arte, estudei artes plásticas, sempre fui fanático, e tinha uma preocupação muito grande estética. Era muito influenciado pelo novo cinema alemão – [Werner] Herzog, [Rainer Werner] Fassbinder, [Alexander] Kluge, [Volker] Schlöndorff –, e também pelo meu avô, que tinha umas coisas melancólicas, os quadros deles parecem que caminham, e muita influência do expressionismo. Quando cheguei ao set, mandei pintar tudo. Era no espaço da Febem inclusive. Tinha feito um negócio tudo clean. E o filme acabou saindo daquele jeito. Acho que na verdade queria isolar o personagem nesse contexto sujo social. Queria que a essência fosse captada.198

O longa de Toledo apresenta uma São Paulo moderna, repleta de meios tecnológicos. Por isso o vídeo tem tanta importância na construção do filme. O primeiro plano de Vera é a imagem, em vídeo, da nave Apollo199 sendo lançada. A estética do vídeo representava a modernidade, a tecnologia, por conta da facilidade em obter a imagem magnética em comparação com a fílmica. Por sua vez, o vídeo apresentava o símbolo máximo da tecnologia no século XX, a viagem espacial. A imagem vidrográfica aparece diversas vezes no filme, incluindo o rosto de Bauer, ao final do longa. O visual eletrônico também está presente nas cenas que Bauer digita suas poesias no computador. Vera estreou na 10ª Mostra Internacional de Cinema de São Paulo, em outubro de 1986. Em fevereiro de 1987, Vera foi apresentado na competição do 37º Festival de Berlim, onde levou o Urso de Prata de melhor atriz para Ana Beatriz Nogueira. O lançamento comercial se deu em 30 de abril de 1987, nos cines Belas Artes, Vila Rica e Art-Palácio, em São Paulo. Chegou ao Rio de Janeiro em 28 de maio de 1987. Segundo dados da Embrafilme, o longa fez 175 mil espectadores em 1987. Toledo estima, no total da carreira, 300 mil. Após a repercussão de Vera, Sérgio Toledo foi convidado pela produtora britânica Ann Skinner, em 1988, para dirigir A Guerra de um Homem (One Man’s War, 1991), uma coprodução entres Inglaterra e EUA, com financiamento do Channel 4, da TVS e da

197 Francisco Cassiano BOTELHO JR. Técnica e estética na imagem do novo cinema de São Paulo, p. 151. 198 Em entrevista para o autor, em 11 de março de 2015. 199 Também uma metáfora ao fálico.

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HBO. O filme foi baseado na luta do médico e pintor Joel Filártiga para provar que a morte de seu filho, Joelito, ocorrida em 1976, foi perpetrada pelo exército do ditador paraguaio Alfredo Stroessner, de quem era opositor político. A Guerra de um Homem contou com elenco de peso internacional, com Anthony Hopkins como Joel Filártiga, além de , Rubén Blades e Fernanda Torres. Feito a um custo de US$ 5 milhões – inicialmente seria US$ 3 mi, mas Hopkins exigiu aumento –, foi todo rodado no México em 1990 e finalizado na Inglaterra. Foi exibido pela primeira vez em abril de 1991 na HBO, nos EUA. A expectativa inicial era de que o filme chegasse aos cinemas, almejando inclusive o Festival de Veneza como primeira vitrine. No Brasil, o filme chegou primeiro a TV paga e depois em vídeo, em novembro de 1993. Toledo relata que a experiência internacional foi muito ruim: Era um filme totalmente ultrapassado. Era como voltar ao passado. Estava fazendo filme social, de denúncia. Mas era uma chance de dar um salto internacional e arrisquei. É muito ruim fazer um filme sobre o qual você não está acreditando. Detesto esse filme, acho malfeito, acho tudo ruim. Foi uma experiência muito ruim. Foi muito ruim primeiro porque havia uma briga entre ingleses e americanos, a HBO e as tvs ingleses, que tinham um perfil mais autoral, e os outros que estavam ali rodando mais um filme. Depois tinha o doido do Anthony Hopkins, que complicava muito o ambiente. Ainda tinha o conflito ente as nacionalidades do filme e um diretor que não estava acreditando naquela história. Voltei pro Brasil super chateado, achando que tinha traído a minha pureza artística.200

Na volta ao Brasil, Toledo dirigiu episódios para a série documental institucional Gente que Faz, comandada por Roberto Gervitz, para o banco Bamerindus. Em 1995, acalentou dirigir uma adaptação de Olga, de Fernando Morais, pela Nexus. O projeto só foi à frente no início dos anos 2000 já com Jayme Monjardim na direção. A dificuldade em emplacar novos projetos no cenário cinematográfico brasileiro após o fim da Embrafilme e a experiência negativa com A Guerra de um Homem o afastaram do cinema. Em 1994, fundou com o primo Oscar Segall a construtora civil Klabin Segall S.A., responsável por, entre outros, criar o bairro Chácara Klabin. A firma foi incorporada em 2009 pelas empresas Agra e Veremonte como forma de saldar as dívidas. Hoje Toledo, que desde a desistência em trabalhar com cinema voltou a usar o sobrenome Segall, é investidor.

200 Em entrevista para o autor, em 11 de março de 2015.

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4.4.3.2 Feliz Ano Velho

A crise de Roberto Gervitz estava atrelada a uma sensação de impotência, de não saber o que fazer a seguir e o que queria para seu futuro. Foi nesse contexto, após dois anos refletindo sobre sua vida, que tomou contato com o livro de estreia de Marcelo Rubens Paiva, Feliz Ano Velho, lançado em 1982. Ele explica como estava naquele momento e o que foi a gênese para o longa: Já não estava mais interessado na questão política. Já não sabia mais no que estava interessado. Tinha visto muita pintura, muita arte. Senti vontade de mergulhar nesse universo. Comecei a ler muito, porque a literatura virou um espaço privilegiado para que pudesse dialogar com as questões dentro de mim. Tive uma relação muita intensa com uma mulher e quando acabou entrei numa crise muito grande, fui fazer análise e me voltei um pouco para o meu universo. Achei que tinha que privilegiar isso, resolver o meu nó, senão não ia conseguir fazer nada. Sabia que queria ser diretor, mas achava que não queria continuar no documentário. Quando comecei a ver uma luz no fim do túnel, li o livro do Marcelo. A imagem da imobilidade, da paralisia do personagem, apareceu para mim como uma metáfora do que tinha vivido, essa metáfora de estar paralisado e não saber o que fazer, pelo medo. Nesse momento, comecei a buscar o que me interessava e achei que o que tinha para dizer era o que tinha atravessado e vivido. Elaborar também era uma forma de me apropriar. Feliz Ano Velho foi a possibilidade de falar sobre esse processo de individuação.201

Gervitz e Paiva eram colegas do Colégio Santa Cruz, de classes diferentes. O cineasta soube do acidente que deixou o escritor tetraplégico em 1979 e adquiriu o livro em sua 2ª edição, ainda 1982. Feliz Ano Velho, o livro, é um romance autobiográfico em que Paiva relata o acidente ao mergulhar e bater a cabeça no fundo do lago, traçando seu passado como universitário e as memórias com o pai, o deputado Rubens Paiva, desaparecido pelo Regime Militar. Gervitz, assim que leu o livro, interessou-se em adaptá-lo para o cinema. Escreveu uma página sobre o porquê de querer transformá-lo em filme de maneira muito impulsiva e intimista, e a levou a Paiva. Desde o início, a proposta de Gervitz era fazer uma livre adaptação, fugindo da persona do escritor. O cineasta comprou os direitos no começo de 1983, quando iniciou o processo de escrita do roteiro. Para tal, Gervitz pesquisou a questão clínica da tetraplegia, a rotina, conversou com pessoas que faziam fisioterapia, entre outros. O processo demorou mais de dois anos e muitas versões do roteiro, que contou com leituras de Francisco Ramalho Jr., César Charlone e Sérgio Toledo.

201 Em entrevista para o autor em 16 de janeiro de 2015.

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No longa, Mário (Marcos Breda) volta à casa da mãe () após um acidente que o deixou tetraplégico. Seu cotidiano se resume em frequentar a fisioterapia. Desamparado emocionalmente, sem vontade de ver os amigos, Mário toca a vida, tentando encontrar algum significado para ela nesse estado de imobilidade. Ao presente diegético, Feliz Ano Velho alterna duas linhas narrativas: a do passado, em que rememora os tempos de estudante na Unicamp, o namoro com Ana (Malu Mader), a amizade com Klauss (Carlos Loffler), os colegas de república, o rock, a resistência à ditadura, e também a infância ao lado do pai (Odilon Wagner), morto pelo regime militar; e o limbo, um passado mais recente, em que se digladia com seu próprio processo operatório, na UTI do hospital. O passado e o presente convergem para a cena do acidente, ao final do filme, o mergulho em direção ao fundo do lago. Só quando entende o acidente que Mário consegue aceitar seu presente e seguir em frente, escrevendo sua história que acha importante registrar. Feliz Ano Velho apresenta uma história de superação, em que Mário tem que aprender com a situação presente, parar de se ver como vítima e assumir o controle, para só então voltar a viver. Gervitz enfatiza através de episódios que o protagonista não sabe como lidar quando confrontado, quando se sente inseguro e amedrontado. Nos tempos de universidade, o fantasma do desaparecimento do pai o leva ao movimento estudantil, mas não sabe bem o que faz lá, quer apenas assumir a figura do mártir, e, quando questionado sobre suas atitudes, aborrece-se facilmente, sem permitir o diálogo. O mesmo ocorre com o namoro com Ana: acuado, termina e se arrepende. Sem poder se mover, Mário não vê propósito na vida, ainda mais quando a sensação de que a fisioterapia é inútil e de que é um fardo, com quem ninguém quer se relacionar, fecha-se mais ainda em seu quarto. Como é comum em filmes de superação, um personagem externo, no caso Beto (Marco Nanini), um artista plástico e designer gráfico que teve paralisia infantil e anda de bengala, faz as vezes do mentor, jogando luz a alguns aspectos da vida de Mário que o fazem refletir sobre sua condição. É a partir desses ensinamentos que o jovem se transforma. Beto, como desenhista, fala do poder da tela branca, da possibilidade de projetar sobre ela o que quiser. Mário, num primeiro momento, refuta a ideia, mas depois a adota, pendurando em seu quarto um quadro em branco, tentando assim mentalizar e entender sua trajetória. Nesse processo, uma lembrança do dia do acidente, quando se vê tendo a mesma sensação do presente, em relação ao término do namoro com Ana. Ele diz: “Estou me sentindo um fracassado. Sabe a sensação de ter perdido uma coisa muito legal só por culpa do teu medo, insegurança ou sei lá que caralho?”

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Gervitz utiliza linhas diversas narrativas, como um mosaico, alternando episódios de sua vida, que se ligam – a infância com a universidade, com o presente, e com o pós- operatório. Cada sucessão na trama se encaixa a anterior e a próxima como um quebra- cabeça que está sendo montado por Mário, um processo de interiorização sobre seu estado. Ao mesmo tempo que tal estrutura possibilita uma desdramatização da trama, evitando uma forte carga emocional, denuncia uma certa funcionalidade do encadeamento e dos diálogos. Gervitz explica o porquê dessa escolha: O filme, ao contrário do livro, não começa com o mergulho que motivou a paralisia de Mário. Isto porque eu não via o mergulho como um acidente, mas sim como uma resultante da trajetória do personagem; Mário não é uma vítima do acaso, embora se sinta assim; suas escolhas o levaram ao mergulho e assim ele é responsável pelo que lhe ocorreu. Só quando consegue sair de uma posição de vítima é que ele toma a vida em suas mãos e se afirma como indivíduo.202

Para enfatizar a diferenciação dos períodos, Gervitz, ao lado do fotógrafo César Charlone e do diretor de arte de Clóvis Bueno, criou um elaborado tratamento visual, em que as cores representam conceitos. Charlone trouxe como influência o diretor de fotografia italiano Vittorio Storaro, em especial seu trabalho em O Fundo do Coração (One from the Heart, 1982), de Francis Ford Coppola, e o pintor Marc Chagall, pelo que chama da “cor onírica”. A ideia de Gervitz era fazer um “anti documentário”, algo completamente diferente do que havia feito antes. Por isso, Feliz Ano Velho tem “um jogo lúdico com as cores que se contrapõem à estética e à lógica do documentário político”203. Para tal, o presente ganhou um contorno mais frio, dominado pelo azul na fotografia e tons pastéis na arte, com lentes mais fechadas. As cenas exteriores eram filmadas em dias nublados, eliminando brilhos e diminuindo contrastes. O limbo, por sua vez, funciona como transição entre o presente e o passado, tendo apenas uma cor, o azul. O passado simboliza o idealizado. Por conta disso, optou-se por cores quentes vibrantes na fotografia e na arte, como o vermelho, o amarelo, o verde, o lilás, o rosa, entre outros. Nas cenas da infância, Gervitz usou cromatismos de uma só cor, em que a película foi tingida ora de verde, ora de vermelho. Os exteriores eram solares e as lentes abertas. Conforme aponta o cineasta: “O passado é a memória do personagem e a memória é o que você elaborou do jeito que lembra e precisa lembrar. Tem uma dimensão de ficção a memória. Quisemos dar essa dimensão onírica ao passado. Ele olhava nostalgicamente

202 Roberto GERVITZ. Roberto Gervitz – Brincando de Deus, p. 113-4. 203 Ibidem, p. 126.

168 para o passado, um mundo mais colorido.”204 Tal ideia de passado está inclusive explicitada no roteiro, através de uma fala de Gorda (Júlio Levy). Na UTI, ele fala para Mário: Eu adoro ficar lembrando das coisas. Sempre faço um filminho do meu passado. Romantizo tudo. Até meus pais ficam legais. Engraçado, né? Outro dia conversando com a Soninha ela me disse que tem saudade do tempo do primário. Na época, ela devia odiar com todas as forças. Saudade. Acho que logo que a gente nasce já tem saudade da barriga da mãe.

O caráter artificial oriundo das cores – a busca de realmente deixar claro o aspecto ficcional do filme, anti-documental – guiou a construção imagética como um todo. César Charlone aponta: A primeira vez que ele [Mário] lembra do passado, quando vai começar a cor, isso acontece dentro de um trem. Então, eu propus ao Roberto introduzir esse trem com um plano geral. Mas que, ao invés de fazer um plano de um trem real, fizesse de uma maquete, de um trem de brinquedo, de forma tal que ficasse ambíguo, que o espectador ficasse em dúvida, não soubesse se aquilo era um trem de brinquedo ou um trem de verdade. Uma coisa que pegasse o espectador pela mão nessa brincadeira e sugerisse a ele: ‘Olha, a gente não sabe se isso aqui é verdade ou mentira, se está exagerando ou não’. Então, o primeiro plano que aparece do passado é justamente o plano geral de uma maquete. Esse plano é uma ponte com o trem passando ao entardecer, exagerado, com o céu azulão e um raio de sol laranja.205

Assim como outros filmes do período, Feliz Ano Velho traz o registro de diferentes artes, como a música (a banda de rock de Mário), as artes plásticas (o trabalho de Beto como escultor e desenhista), a dança (a performance de Ângela, que ainda é repleta de televisores, trazendo também o vídeo), entre outros. Ainda que Gervitz refute, Feliz Ano Velho faz também um retrato de uma geração, a mesma do diretor, que cresceu nos anos 1970, sob a ditadura militar, e como ela se relacionou politicamente. O passado diegético, idealizado, traz episódios relacionados à política estudantil, com uma greve contra a reitoria da Unicamp (que remete ao primeiro filme do cineasta, Parada Geral), além de diversas menções ao desaparecimento do pai pelo regime militar. Ambos os eventos são conectados no filme e, ainda que não tragam um protagonismo político ao longa, resgatam um lado da juventude que era menosprezado ou ignorado àquela época. Feliz Ano Velho é melancólico, com pouco humor, mas que apresenta momentos diversos de euforia e diversão. Não deixa de ser um retrato pessoal de Gervitz sobre sua geração, mostrando hábitos, gostos, preferências, maneiras de se relacionar. O cineasta aponta:

204 Em entrevista para o autor em 16 de janeiro de 2015. 205 Francisco Cassiano BOTELHO JR. Técnica e estética na imagem do novo cinema de São Paulo, p. 207.

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[A política] me interessava dentro da perspectiva do que estava falando, o medo. O discurso da mãe é o discurso sobre o medo. Quando ele sai para enfrentar a política, está enfrentando o medo dele. Faço uma crítica ao pensamento político até. Na verdade, era como se estivesse querendo vingar o pai dele, não era um pensamento político. Ao mesmo tempo, isso o afastava das coisas que estavam dentro dele. Ele se apoiava no pensamento político para não discutir o que estava mais fundo dentro dele. É disso que vai se libertando ao longo do filme. Obviamente, o filme é contra a ditadura, especialmente contra ao assassinato do pai, mas me interessava ditadura do ponto de vista de uma geração que cresceu com medo. Só que esse medo que é mais psicológico se somava ao medo que estava na sociedade e isso potencializava o medo que todos nós já temos.206

Com o primeiro tratamento, Gervitz inscreveu o roteiro no segundo convênio da Embrafilme com a SEC-SP, sendo premiado em maio de 1985. O cineasta ainda trabalhou bastante no roteiro. O produtor inicial, Enzo Barone, deveria levantar o restante do orçamento de US$ 400 mil (Cz$ 8,5 mi). Segundo Gervitz, essa escolha de produtor atravancou o processo em dois anos. O publicitário não tinha o filme como prioridade e não fez nada por ele no primeiro ano. Demorou a devolver o dinheiro, fazendo-o sem correção monetária, criando problemas no acordo do filme com a Embrafilme. Isso só foi resolvido no final de 1986, quando então Gervitz rodou Feliz Ano Velho, ao longo de doze semanas, já sob os cuidados da Tatu Filmes e produção de Cláudio Kahns. Para o papel de Mário, Gervitz recebeu mais de 700 candidatos; queria alguém desconhecido. O escolhido foi o gaúcho Marcos Breda, com quem ensaiou mais de um mês. Foram seis meses de montagem, mais um bom tempo na finalização, quando tiveram problemas financeiros. Por conta disso, o filme só ficou pronto em 1988, estreando em junho no 16º Festival de Gramado, onde levou os prêmios de filme pelo júri popular, prêmio especial do júri, roteiro, fotografia (empatado com A Dama do Cine Shanghai), figurino, som e menção honrosa para a música. O lançamento comercial se deu em 25 de agosto de 1988, em São Paulo, e em 01 de setembro no Rio de Janeiro. Em 1988, o longa fez 468 mil espectadores, segundo dados oficiais da Embrafilme. Gervitz estima que Feliz Ano Velho tenha feito cerca de 1 milhão de espectadores em sua carreira total. Gervitz desenvolveu alguns projetos após Feliz Ano Velho, que foram engavetados com o fim da Embrafilme. Um desses foi Jogo Subterrâneo, que só concluiu em 2005, adaptado do conto Manuscrito encontrado em um bolso, de Júlio Cortazar. No meio do caminho, dirigiu a segunda unidade de Brincando nos Campos do Senhor (1991), de Hector Babenco, e dirigiu e coordenou a série documental institucional Gente que Faz

206 Em entrevista para o autor em 16 de janeiro de 2015.

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(1991-95), para o banco Bamerindus, entre outros. Ainda em 2005, dirigiu quatro episódios da série Carandiru – Outras Histórias, da Globo. Lançou, no Festival de Brasília, em 2015, o longa Prova de Coragem, a partir do romance Mãos de Cavalo, de Daniel Galera.

4.4.4 Wilson Barros

Em agosto de 1983, Wilson Barros partiu para Nova York, EUA, para fazer o doutorado em cinema na New York University, com uma bolsa de estudo. Sua tese era sobre o cinema do alemão Wim Wenders. Barros deixou a sociedade na Barca Filmes, seu trabalho como professor na ECA/USP e quatro projetos engavetados que não conseguiram financiamento. Ele conta que, enfastiado com o excesso de teoria que vinha estudando, escreveu o argumento de Anjos da Noite (1987) rapidamente como uma válvula de escape, em maio de 1984. A gênese, porém, é anterior. O primeiro esboço, intitulado A Cidade do Império, foi escrito anos antes e submetido a um concurso de desenvolvimentos da SEC- SP, sem sucesso. Por conta disso, guardou-o. Barros conta: A primeira ideia que gerou Anjos da Noite foi a de realizar uma espécie de versão noturna de Disaster Movie; ou seja, um grande painel da noite paulistana construído por várias personagens se entrecruzando e se associando das mais diversas formas durante uma única noite. Assim como Distaster Movie, também Anjos da Noite não teria como preocupação básica contar estória alguma, focando uma galeria de personagens e situações que refletissem algumas das caraterísticas da vivência urbana como a solidão, a ansiedade, a alienação e o cinismo, por exemplo.207

O que diferenciava A Cidade do Império de Anjos da Noite era a estrutura dramática, a forma como o mosaico era montado. Em férias no Brasil, em junho de 1984, Barros descobriu que estava aberto o edital para o segundo convênio da Embrafilme com a SEC-SP. O resultado final saiu em maio de 1985, com Anjos da Noite premiado. Barros tinha levado o projeto a Superfilmes, contando com a produção de André Klotzel e Zita Carvalhosa. Além da Embrafilme, que forneceu 70% do orçamento de Cz$ 6 milhões, e da Superfilmes, que disponibilizou o equipamento, entraram como produtores associados Barros, a atriz Marília Pêra e o músico Sérvulo Augusto.

207 Wilson BARROS. Anjos da noite, p. 8.

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O cineasta deixou Nova York, onde realizou o curta em vídeo Postcard (1985), e sua tese inconclusa, para rodar Anjos da Noite em São Paulo, entre maio e julho de 1986, durante sete semanas. O longa acompanha diversos personagens na noite paulistana, que por vezes se cruzam. O ator Mauro (Chiquinho Brandão), que faz o travesti Lola tanto numa peça teatral dirigida por Jorge (Antônio Fagundes) quanto em shows numa boate gay, aguarda a chegada do namorado executivo. Jorge, por sua vez, tenta se aproveitar da aspirante a atriz Maria Clara (Ana Ramalho). Guto (Marco Nanini) agenda um encontro com o ex- amante Teddy (Guilherme Leme), um garoto de programa. Encontram na rua Marta Brum (Marília Pêra), uma decadente estrela de teatro e TV. Cissa (Bé Valério), estudante de sociologia, vai à casa de Malu (Zezé Motta), ex-modelo, rica, mecenas de artistas pobres, pesquisar a coleção de fitas de vídeo dela sobre personagens da vida noturna. Na casa de Malu, circulam também Milene (Aída Leiner), sua ajudante, e Bimbo (Aldo Bueno). Completam a trama o artista de vanguarda Leger (José Rubens Chachá), em crise com o fracasso, e Fofo (Cláudio Mamberti), delegado de polícia e gângster. Fofo, por exemplo, contrata Bimbo para assassinar um executivo, namorado de Mauro, e também manda prender o travesti. A cena inicial de Anjos da Noite estabelece a base para se entender o jogo que ele propõe ao espectador e que é o grande diferencial de sua estrutura narrativa208. Fade in. A câmera filma o reflexo de Lola no espelho olhando diretamente para a câmera: “Chega de fantasia, chega de mentira, chega!” Ela prossegue falando de como ele, como mulher divina, é uma mentira, já que é dotado de um pênis, enquanto remove a maquiagem. Primeiro, vem o choque, a impressão de que Lola está falando diretamente com o espectador, suspendendo a adesão momentânea realista – vemos ali uma ficção. Logo, percebemos que está falando com outro homem, talvez seu amante, que está fora de quadro. Lola sai do plano. A câmera corrige para baixo e para trás, focando, ainda no reflexo do espelho, um homem aparentemente morto em uma banheira ensanguentada. Deduz-se que Lola falava com o homem morto. A câmera continua o movimento para trás e passeia para um lado – um movimento de grua –, e vemos a divisória da parede entre o banheiro e o quarto, onde Lola se veste, dividindo o quadro meio a meio, em que

208 Tal cena já foi amplamente analisada e discutida desde as primeiras críticas. Ver Tales AB’SABER. A Imagem Fria, p. 125-7, e Renato Luiz PUCCI JR. Cinema Brasileiro Pós-Moderno: O Neon Realismo, p. 105-110. Aqui não se pretende uma diferente análise ou mesmo expandi-la, e sim registrá-la a fim de entender a lógica do filme e a motivação do diretor.

172 acompanhamos as duas situações paralelas. A câmera se afasta mais ainda da cena, revelando estarmos diante de um cenário teatral, um palco. Corta, Jorge aparece, no escuro, pedindo para repetir. É um ensaio. Barros, com um plano sequência, descontrói a nossa expectativa a cada instante, fazendo com que o espectador reflita sobre a construção da imagem. A câmera nos engana e em seguida mostra esse engano, criando um distanciamento no público. O que está em jogo no filme é a representação e sua crise por intermédio da imagem fotográfica e todas as suas possibilidades de exploração. O diretor, na sequência apontada, usa-se de um artifício: o extracampo. Quando mais abre o quadro, mais elemento nos revela e mais em xeque coloca a imagem inicial. Segundo Pucci Jr., “é a construção cinematográfica que produz por alguns momentos a ilusão de realidade, e em seguida a desfaz”, sendo que a abertura “sintetiza componentes centrais do filme, nesse caso a oscilação entre autorreflexividade e ilusionismo (ou seja, a verdade e mentira, realidade e falsidade)”209.

Figuras 37, 38, 39 e 40 – A desconstrução de expectativa pelo extracampo em Anjos da Noite: Lola fala para a câmera (37); o espelho denuncia o outro (38); o espaço aumenta (39); estamos no teatro (40)

Ao longo de todo o filme, Wilson Barros trabalha com a ideia de mudança de perspectiva a partir do movimento de câmera, questionando o que seria a realidade diegética – se é que há – e a construção cênica. Muitas vezes, a ideia é propositadamente provocar o espectador sobre a diegese inserindo elementos claramente artificiais. Exemplo disso é quando Jorge e Maria Clara se beijam numa esquina enquanto amanhece.

209 Renato Luiz PUCCI Jr. Cinema Brasileiro Pós-Moderno – O Neon-Realismo, p. 107.

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Acompanhamos até aquele momento o romance entre os dois personagens. A cena se inicia com eles andando por uma rua escura, de construção realista. Amanhece, ou seja, a luz clareia, porém, o fundo causa um estranhamento, parecendo ser um cenário ilustrado com a luz do amanhecer. Ele fala para a moça que o papel é dela, vira-se para o lado e comenta com o iluminador que amanheceu muito rapidamente. Corta, e vemos o cenário montado no palco. O espectador mal se acostuma com a realidade diegética e ela é em seguida questionada. A busca de Barros é por fazer um filme inverossímil, nesse sentido. O mesmo ocorre com a representação do vídeo. Enquanto que o espectador já está habituado a olhar para o cinema esperando a ficção, a representação, a mentira, ainda que creia em uma história sendo contada, o vídeo, naquele momento, era amplamente usado como uma ferramenta jornalística e documental. Em Anjos da Noite, Barros se apropria dessas linguagens. O vídeo aparece exclusivamente como um telejornal, parte da programação televisiva, ou como a coleção de depoimentos de Malu. Esses relatos são frontais à câmera, em que os personagens discursam sobre suas vidas marginais – prostitutas, travestis, michês, bandidos etc. A imagem jornalística, documental, é tida como absoluta, verdadeira, real. Em determinado momento, após assistir vários depoimentos, Cissa vê um vídeo de Bimbo, em que fala da realidade sofrida. O plano seguinte mostra Bimbo ao lado do vídeo, questionando a estudante: “você está acreditando nessa baboseira toda mesmo?” Ela indaga sobre a veracidade do depoimento, ao que ele responde “não” e, em seguida, “é”, “eu acho”, porque tudo o que ele disse é o que ouviu falar e assumiu para si o papel. Barros apela para o formato jornalístico para questionar inclusive a realidade do que se é tido como verdade absoluta. O que importa é a representação, não a realidade, pois a realidade é subjetiva, passível do ponto de vista, da perspectiva; ela pode mudar – temos assim as representações. Conforme aponta Pucci Jr., é a crise da representação: “as câmeras podem mentir, todas as imagens são manipuláveis, tudo é discurso.”210

Figuras 41 e 42 – O vídeo como realidade, em seguida descontruído, em Anjos da Noite

210 Renato Luiz PUCCI Jr. Cinema Brasileiro Pós-Moderno – O Neon-Realismo, p. 152.

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Wilson Barros explica a proposta do filme e seu trabalho com a metalinguagem dentro da trama, em entrevista para O Estado de S. Paulo e na abertura do livro com o roteiro do longa: O filme coloca em xeque o tempo todo essas noções de verdade e mentira. É uma tentativa de implosão da estética cinematográfica. Uma tentativa de minar a estrutura da ficção por dentro dela mesma. É uma falácia levar o espectador a acreditar na imagem enquanto um dado de realidade. Ao mesmo tempo, acho que o distanciamento, tipo Godard, afasta o espectador. Minha intenção: resgatar o espectador sempre, dentro de um jogo lúdico. (...) É uma brincadeira estrutural com a estética. Cinema é ficção. Assumi isso ad-escessum. Tem um filme dentro do filme, tem uma peça dentro do filme, tem um vídeo dentro do filme. Os níveis de realidade vão mudando, como ocorre numa cidade em que você é bombardeado por imagens reais e irreais.211 O princípio básico seria desmontar o que em teoria se conhece como nível diegético da narrativa, ou seja: seu nível de realidade. Partindo da interação entre três meios de comunicação diferentes, três linguagens (cinema, teatro e vídeo), a estrutura do filme nunca definiria esse nível. A realidade no interior de uma peça teatral seria depois assumida como realidade dentro do filme; a ação no filme se completaria no palco de um teatro; o discurso de uma personagem no vídeo daria continuidade a seu discurso, no filme; em determinado momento tudo poderia parecer um outro filme dentro do próprio filme. Dessa forma, a narrativa se libertaria de qualquer compromisso com a linearidade ou a lógica do naturalismo, tecendo seu discurso entre a realidade e a fantasia, nunca se decidindo nem por uma nem por outra.212

Para além dessas diferentes camadas narrativas e do trabalho de câmera, Barros também se vale bastante da artificialidade para criar essa provocação sobre a representação. O aspecto artificial faz-se presente nas mais diversas áreas do filme, da fotografia embebida por luzes neon e cromatismos artificiais ao som da música melancólica de Sérvulo Augusto, passando pela arte muitas vezes cênica, criada em estúdio. O ponto mais forte da artificialidade parece ser a atuação. Todos os atores são dirigidos de maneira não naturalista. Alguns mais, outros menos over. Marília Pêra, por exemplo, que faz a estrela decadente Marta Brum, talvez seja a que busque um tom mais caricatural. Ela é uma diva que não aceita o agônico fim, tal qual Norma Desmond, em Crepúsculo dos Deuses (Sunset Blvd., 1950), de Billy Wilder, comportando-se como uma grande atriz hollywoodiana do passado. A atuação afetada de Pêra tem um quê de atriz ruim de filme barato e reforça essa decadência pela qual ela passa em sua carreira. A representação é evidente. Novamente Pucci Jr.: Anjos da Noite esmera-se em evidenciar não só a ausência de autenticidade da personagem como também a quebra do naturalismo em suas aparições. Os gestos de Marta são uma fieira de clichês da história do cinema, sempre

211 Ana MUYLAERT; Maurício STYCER. Filme sobre mandioca é uma bobagem. 212 Wilson BARROS. Anjos da noite, p. 9.

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executados de maneira over, sem a mínima intenção de esconder sua natureza paródica.213

Barros ainda a coloca numa cena descolada da narrativa, emulando os musicais. Debaixo do Masp, ela e Teddy dançam, num palco iluminado, a mesma coreografia do bailado de Cyd Charisse e Fred Astaire em A Roda da Fortuna (The Band Wagon, 1953), de Vincente Minelli. As múltiplas referências ao próprio cinema criam assim mais um elemento de distanciamento e de aproximação, porque são feitas para serem reconhecidas, o que pode funcionar de maneira distinta para cada espectador. Além de influências assumidas de Wim Wenders, Francis Ford Coppola e Jonathan Demme, Barros emula filmes noir, melodramas, comédias românticas etc.: Me fascinam o caos e a decadência das grandes cidades, o que fica revelado de forma mais aguda em suas noites e madrugadas. Além do reflexo dessa vivência, Anjos traz muito de minha memória afetiva-cinematográfica, da minha formação enquanto espectador ingênuo dos musicais da Metro, dos melodramas do Douglas Sirk, das comédias açucaradas da Doris Day. Sempre fui um cinéfilo apaixonado, desde essa fase, quando devorava as fofocas da revista ‘Cinelândia’ até a sofisticação intelectual, bem menos ingênua dos ‘Cahiers du cinema’ e das especulações teóricas de Metz, Baudry, Comolli. Anjos da Noite é um pouco disso tudo: imagens que permaneceram em minha memória somadas a observações de pessoas, cidades e noites.214

Anjos da Noite ainda discute algumas questões, como a solidão da metrópole, em que, ainda que pareça agitada, repleta de atividades, em todas as horas do dia, e seja múltipla, faz apenas com que as pessoas sejam solitárias na multidão. As relações são superficiais e efêmeras e, ainda que lúdicas, enganadoras. Assim como na forma, os relacionamentos urbanos são representações, ilusionismos em que se pretende crer apenas para evitar o sentimento de desgarro, abandono e isolamento. Esse isolamento pode ser pelo tratamento social. O longa faz um retrato bastante contundente e poético sobre como o homossexual é visto pela sociedade. Barros tinha como objetivo fugir das caricaturas sexuais e das posições moralistas. O discurso desesperado e raivoso de Lola, quando tenta fugir da prisão, sob a chuva e frente a um sinal luminoso neon, com música fúnebre ao fundo, é uma das cenas mais emblemáticas do cinema paulista dos anos 1980. Em seu monólogo, ele aponta a hipocrisia de sua perseguição: Eu não fiz nada, porra. Por que eu? Porque eu sou viado? Porque me visto de mulher e acredito nisso? Eu sou a fantasia barata de todos vocês. E vocês, porque me olham com essas caras de imbecis? Seu bando de bunda-moles, passivos. Mesmo com toda promiscuidade, vocês nunca deixaram de ser muito

213 Renato Luiz PUCCI Jr. Cinema Brasileiro Pós-Moderno – O Neon-Realismo, p. 85. 214 SUPERFILMES. Anjos da Noite (folder). São Paulo, 1987.

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bem comportados. Eu conheço o sonho de todos vocês, seus viados, frouxos. Suas esperanças são pobres, miseráveis. Hipócritas. Vocês gostariam mesmo é de serem mulherzinhas, maridinhos, se pudessem teriam um bando de filhinhos, uma fileira de adoráveis monstrinhos reproduzindo essa merda toda!

Anjos da Noite estreou em abril de 1987 no 15º Festival de Gramado, onde ganhou os prêmios de direção, atriz (Pêra, empatada com , em Anjos do Arrabalde), ator coadjuvante (Leme), fotografia, cenografia, e prêmio da crítica. O longa ainda foi exibido no 20º Festival de Brasília, em outubro, onde venceu como melhor filme. Anjos da Noite foi lançado comercialmente entre os dois festivais, em 01 de outubro, no Rio de Janeiro. Chegou ao circuito comercial de São Paulo apenas em 12 de novembro de 1987. Segundo a Embrafilme, no ano de estreia, o público foi de 136 mil espectadores. Após Anjos da Noite, Wilson Barros fez assistência de direção para Tânia Savietto em Aquele Breve Encanto (1990) e montou Frio na Barriga (1987), de Nilson Villas Boas. Estava com outros roteiros para longa-metragem quando faleceu, vítima de pneumonia e insuficiência respiratória, decorrentes da Aids, em 26 de setembro de 1992, aos 44 anos.

4.4.5 Guilherme de Almeida Prado

Quando Guilherme de Almeida Prado realizou Flor do Desejo, esperava que o retorno financeiro lhe daria a chance de filmar um projeto bastante ambicioso e caro, A Hora Mágica. Flor do Desejo, porém, foi um fracasso de bilheteria. O resultado deixou o cineasta desanimado com o meio. “Escrevi o roteiro de A Dama do Cine Shanghai para desligar. As coisas que faço, às vezes, para desligar é ir ao cinema ou escrever. Escrevi o roteiro de brincadeira mesmo”, explica o cineasta215, que aproveitou algumas ideias e o mesmo universo de A Hora Mágica, numa versão mais econômica. Prado conta que o então diretor da Embrafilme Roberto Parreira, que havia se negado a assinar o contrato com Flor do Desejo, arrependeu-se após a carreira do filme em festivais, e incentivou o cineasta a entrar em novo concurso da empresa, pois seria aprovado. Inscreveu A Dama do Cine Shanghai com a certeza de que seria vetado, por ser um devaneio cinéfilo. Segundo o diretor, o plano original era propor um adiantamento para contratar Walter George Durst para escrever o roteiro de O Caçador de Crepúsculos, para o qual se sentia

215 Em entrevista ao autor em 04 de maio de 2008.

177 imaturo. Surpreendeu-se ao receber o parecer anônimo elogiando o projeto e premiando- o216, já em 1986. Prado delegou a produção de A Dama do Cine Shanghai para Assunção Hernandez e sua Raiz Produções. A Star Filmes, de Prado, foi coprodutora. 42% do filme pertenciam à Embrafilme. O orçamento foi de US$ 450 mil. Parte do dinheiro foi levantado via Lei Sarney, com o Banco Nacional. Além da Raiz e da Star, entraram como produtores associados os protagonistas Maitê Proença e Antônio Fagundes. A SEC-SP forneceu os negativos. O longa foi filmado em duas etapas, de novembro a dezembro de 1986, em que José Roberto Eliezer foi diretor de fotografia, e de fevereiro a março de 1987, tendo Cláudio Portioli na função. A Dama do Cine Shanghai foi concebido brincando com o imaginário do filme policial de estética noir217. No longa, o corretor de imóveis Lucas (Antônio Fagundes) conhece, durante uma sessão no Cine Shanghai, Suzana (Maitê Proença), uma mulher bela, sensual, enigmática, e acompanhada do marido, Walter Desdino (Paulo Villaça). No dia seguinte, coincidentemente, mostra para o mesmo casal um apartamento hipotecado. Durante a visita, num momento a sós, Suzana dá a Lucas uma caixinha de fósforos do restaurante Chuang Tzu. Lá, ele é confundido com o gângster Tenente, mas, entediado, entra no jogo. A missão da gangue, liderada por Bolívar (José Mayer), era matar um marinheiro. Mickey chega antes e o liquida. Lucas vai atrás de Suzana e se beijam. Sai no jornal que ele é o principal suspeito do assassinato do marinheiro – sua carteira estava ao lado do morto, plantada pelo pessoal da gangue. Em busca de Mickey, Lucas vai a diferentes lugares, sem sucesso. Lucas conversa com Suzana e diz acreditar ser Desdino o culpado; ela concorda. Suzana então o convence a matar o marido. O plano sai errado

216 A seleção se deu já no regime de Carlos Augusto Calil, em que uma junta de pareceristas anônimos ligados ao audiovisual elegiam os premiados. 217 Curiosamente, a escolha pelo gênero policial que permeou toda a carreira de Prado é econômica. Ele explica, em entrevista para o autor em 04 de maio de 2008: “As pessoas acham que o policial é meu gênero favorito. Não é. Se fosse para escolher um gênero favorito, seria o faroeste, é o que gosto mesmo. A questão é que filme policial é o gênero mais barato. No Brasil, temos pouco dinheiro. Policial é um gênero que dá para fazer filmes baratos, mas que não pareça que houve falta de dinheiro. Se fizer um faroeste sem dinheiro, vai ficar um faroeste vagabundo; um musical sem dinheiro vai ficar ridículo. O noir não. Lembro-me que, quando filmávamos A Dama do Cine Shanghai, havia muita coisa que simplesmente não iluminávamos, ficava escuro, porque obviamente não dava para você trocar, tirar o carro, mudar o poste etc., não dava para fazer nada disso, então o que fazíamos era simplesmente não iluminar, iluminávamos o ponto que achávamos interessante mostrar. Acabei fazendo mais filmes nessa linha porque a condição financeira permitiu. Acho que o pior tipo de filme é aquele que a gente assiste e diz: ‘se o cara tivesse mais dinheiro, o filme ficaria melhor, mas ficou aquela droga porque não tinha’. Isso que me levou a me interessar mais pelo policial. Eu tinha e tenho outros projetos que não tem nada a ver com noir, mas esses projetos simplesmente não dão certo, não saem do papel.”

178 e Lucas é emboscado por Desdino. Consegue a melhor, e vai ao encontro de Suzana. Ele se aproxima e a toma em seus braços. Ela levanta a mão com a faca, e apaga a luz. Não à toa, o cineasta assina como “um filme B de Guilherme de Almeida Prado”. A ideia é remeter aos filmes baratos feitos na Hollywood dos anos 1930 a 1950, no qual o noir triunfou como um dos principais gêneros. Para ele, a realidade brasileira só permitia esse tipo de filme, como explica em entrevista a O Estado de S. Paulo: Se você analisar todos os filmes brasileiros são filmes B. Nós trabalhamos com um orçamento ridículo, em termos de uma produção. O que a gente faz é tapear. Fingir que não é um filme B. Tentar dar uma embalagem de filme A. E a gente consegue coisas brilhantes. (...) Da minha parte, resolvi assumir que ia fazer um filme B. Em vez de, com o orçamento de um filme B, fazer um filme A, tapeando, resolvi fazer um filme, assumindo que estou fazendo um filme B.218

O noir enquanto gênero existe devido a alguns elementos básicos: a femme fatale, a mulher fatal, sedutora e erotizada, que leva o protagonista a cometer crimes, à destruição moral e, muitas vezes, à morte; a figura de um investigador, um detetive, um jornalista ou mesmo o suspeito do crime, que tentará resolver o caso; a atração sexual central; uso da voz over219, que reflete os pensamentos do narrador em primeira pessoa e nos faz submergir na sua intimidade; pouca iluminação, pois os ambientes retratados são escuros, amedrontadores e enigmáticos; e personagens desorientados, angustiados e confusos. São códigos que habitam o imaginário cinéfilo. Muitas dessas características, inclusive, eram sinônimas do filme policial, ainda que o gênero tenha existido essencialmente entre nos anos 1940 e 1950. Filmes como Chinatown (1974), de Roman Polanski, traduziram o noir para os aos 1970. Nos anos 1980, leituras bastante particulares foram feitas, retomando um gênero já fora de moda, como o estilizado Hammet – Mistério em Chinatown (Hammet, 1982), de Wim Wenders, e a paródia Cliente Morto Não Paga (Dead Men Don’t Wear Plaid, 1982), de Carl Reiner. No Brasil, Cidade Oculta e Anjos da Noite emularam características do noir em suas construções, mas foi Guilherme de Almeida Prado quem se preocupou em conceber um filme que seguisse todos esses códigos. O olhar de Prado, porém, é bastante particular. Sua relação com o gênero é de cinéfilo, de alguém que viu muitos filmes noir e nutre por eles um fascínio. Ele não faz referência direta a qualquer filme em particular – com exceção de A Dama de Shanghai (The Lady from Shanghai, 1948), de Orson Welles, do qual empresta o título e passa um trecho na televisão do restaurante Chuang Tzu –; apropria-se dos códigos que fecundam

218 Márcia Lúcia FRÓES. Noites de suspense em Gramado. 219 Quando o portador da voz que está narrando não é mostrado na imagem concomitantemente.

179 o imaginário do noir. Seu A Dama do Cine Shanghai assume a existência desse imaginário, através de seus personagens. Prado também assume que seus espectadores conhecem as referências gerais, criando com eles um jogo lúdico. A ideia de jogo, aqui, está em identificar e desfrutar os clichês e seu desenrolar na trama. Conforme aponta Pucci Jr: “A Dama opera ludicamente em suas referências hipertextuais. Em outras palavras, faz uso de seus hipotextos, brinca com eles, a fim de proporcionar uma experiência de jogo aos seus espectadores – o que não se confunde com meras homenagens.”220 A partir dessa noção, Prado subverte alguns desses códigos, de maneira humorada e irônica, atrelada à metalinguagem, uma brincadeira com o próprio estilo e fazer do noir. Tal operação parece se remeter à herança do cineasta, enquanto produto da Boca do Lixo. Seu humor sofistica alguns elementos das paródias das comédias de costumes e dos filmes marginais. O principal elemento dessa subversão é o discurso, a voz over de Lucas que transmite sua visão pessoal sobre os acontecimentos do filme. Costumeiramente, ainda que a narração do cinema noir traduza a maneira um tanto debochada do personagem de olhar o mundo, com cinismo e sarcasmo, raramente esse deboche é fruto da forma. Em A Dama do Cine Shanghai, as falas de Lucas emulam a cadência e o estilo do noir. Sempre empostados e pretensamente sérios, os monólogos contrastam com o conteúdo – ao invés de simplesmente reproduzir o clichê, Prado quebra a ilusão ao fim, expondo o diálogo metalinguístico. Por exemplo: No mundo existem dois tipos de homens: aqueles que olham a chuva escorrendo pela janela e dizem ‘veja, está chovendo’, e os outros, mais espertos, que sabem que a chuva pode ser apenas alguém com um esguicho no andar de cima, tentando passar a perna em você. Mas a paixão é como a justiça, cega. Além disso, não estava chovendo.

No caso, ainda que a fala trabalhe a questão da perspectiva, a metáfora usada extrapola a lógica do gênero, ao apostar no absurdo. O discurso aponta uma tendência do filme em sempre trabalhar o óbvio (das situações, mas também do noir) de maneira rebuscada221, a ponto de explicitar essa operação para o espectador. Diz Lucas: “Me desculpem se interrompo às vezes a história com comentários tentando me justificar, sei que todo mundo encontra uma desculpa quando banca o trouxa, ao invés de simplesmente dizer: que trouxa que eu sou.” Prado, assim, transforma a angústia e o drama de Lucas em um relato cínico sobre a própria patetice do personagem.

220 Renato Luiz PUCCI Jr. Cinema Brasileiro Pós-Moderno – O Neon-Realismo, p. 194 221 P.e.: “O destino é um braço que nos empurra para aquilo o que, mais cedo ou mais tarde, acabaríamos por fazer. Um cara sensato iria à polícia e tentaria explicar tudo. Um cara sensato, eu disse. Não eu.”

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A irreverência do filme está em como ele opta por brincar com os clichês e as convenções. O cinema noir é legitimado na farsa, construída a partir da caricatura, seja no já citado discurso, seja no exagero anacrônico da arte, seja no tom over das atuações. Ele propõe ao espectador desvendar o mistério da trama (quem incriminou Lucas?), bem como as referências ao gênero e os cruzamentos entre o filme (A Dama do Cine Shanghai) e o filme dentro do filme (também A Dama do Cine Shanghai). A metalinguagem assim transcende as referências que Prado faz ao noir na composição de seu filme noir – evocando desde o roteiro e os diálogos até a fotografia e a arte –, e versa também sobre a influência do cinema no destino das pessoas, pensando- se em pessoas como o diretor, cinéfilas, mas também em quem se deixa levar pelo cinema – e por extensão, pela arte. O cinema, de maneira geral, em sua herança como entretenimento, especialmente, propõe uma imersão, uma adesão irrestrita do espectador à história, à diegese. Os filmes de Prado não. Seus filmes sempre se assumem como filmes, como produtos, ainda que tenham uma história e trabalhem a diegese. Neles, independentemente dessa história, há uma reflexão sobre o cinema e sobre o papel do cinema e da imagem nas pessoas. Segundo Tales Ab’Saber: “Dama inicia-se sobre o signo da auto-reflexão, não sobre o fazer ou o significar do meio, mas sobre o cinema como experiência subjetiva, pessoal e intransferível, que traz riscos iminentes a quem está disposto a aceitá-la plenamente.”222 Na primeira cena, Lucas vai ao Cine Shanghai assistir a A Dama do Cine Shanghai, dirigido por Jorge Meliande, um filme noir caricatural como é o longa de Prado. Lucas, em voz over, fala sobre o que o levou a ir ao cinema. A imagem evoca o visual dos policiais antigos. Um homem com um sobretudo e chapéu, de costas para a câmera, anda por um quarto até uma mesa onde tem um telefone e uma faca. Enquanto Lucas fala que resolveu entrar no cinema, vemos a imagem de duas mãos abrindo uma cortina de miçangas. O contraplano, em ponto de vista, revela que a cortina dá para o quarto onde o sujeito caminha. Corta para um plano muito similar em que Lucas abre a cortina do cinema e entra na sala. Ao entrar na sala, a voz de Lucas emudece e dá espaço para o som do filme. Após o corretor de imóveis observar os frequentadores da sala, descobrimos que as imagens iniciais (o homem etc.) eram do filme a que Lucas foi ver. Suzana entra na sala. Lucas gosta do que vê e se muda de lugar para poder observá-la melhor. Muda-se novamente para o lado de Suzana, onde começa a acaricia-la, até que se

222 Tales A. M. AB’SABER. A Imagem Fria, p. 139.

181 beijam. Corta, e Lucas está em seu lugar anterior: foi apenas sua imaginação. Chega, em seguida, Desdino, o marido de Suzana. O filme na tela se alterna com a diegese (Lucas se vê acariciando Suzana, enquanto na tela o homem acaricia a mulher etc.). Um jogo de sedução entre Suzana e Lucas se estabelece, ao menos da cabeça de Lucas. Voltamos a ver o filme. O sujeito arromba a porta e brada “não matei seu marido a troco de nada”. A mulher pega uma faca. O plano, em close, confirma o que há muito suspeitamos: Suzana e a atriz (Lyla Van) são a mesma pessoa, ou ao menos são interpretadas pela mesma pessoa, Maitê Proença. Todos os elementos que se seguem no filme de Prado estão contidos na primeira cena. Nisso, percebe-se o poder que o cinema exerce nas pessoas, em especial como fuga da realidade, a possibilidade de se imaginar em outras situações – evento que já estava presente em Programa duplo, episódio de As Taras de Todos Nós. O cinema contamina a vida de Lucas, ou, ao menos, a vida em que se imagina, uma vida provavelmente muito mais interessante que a sua, em que a sala de cinema é um refúgio contra o calor, por exemplo. Logo na primeira cena, Lucas se vê, várias vezes, mantendo alguma forma de contato com Suzana, que pouco parece concreta. O fato de Lyla Van, vista por Lucas antes, ser idêntica a Suzana já induz para a transposição das telas para a vida real, ou para essa contaminação da ficção para a realidade. O gênero policial noir do filme também contamina a narrativa diegética e a monótona vida de Lucas vira um quebra-cabeças em que deve provar sua inocência. Personagens da ida ao cinema ganham sua vida: a lanterninha (Imara Reis) dará a feição a mais quatro personagens na trama, incluindo à atriz Lyla Van; o ator do filme (José Mayer) será o criminoso Bolívar; além do papel central que Suzana terá em sua vida. Tudo se transforma em referência, como se o cinema fosse a primeira peça de um quebra-cabeça para o filme A Dama do Cine Shanghai (de Prado) e para a história de Lucas. Ao término do filme, duas cenas fecham o ciclo dessa relação. O reencontro de Suzana e Lucas após ele ter matado Desdino é muito similar à cena vista do cinema e relatada acima. Em seguida, um fade out anuncia os créditos finais, que são interrompidos para mais uma cena, em que Lucas sai do Cine Shanghai, após ver o que aparenta ser A Dama do Cine Shanghai. Suas roupas são iguais às da primeira cena, uma camisa florida e uma bermuda – únicas ocasiões em que ele se veste dessa maneira; no desenrolar do longa está sempre de terno, como nos filmes policiais. O cinema anuncia sua próxima programação, A Hora Mágica. Em determinada cena no meio da investigação, Lucas vai a uma festa de casamento e conversa com quem julga ser um suspeito, Linus Mickevicius (José

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Lewgoy). Descobrimos que ele é um antigo cineasta, que dirigiu um filme de sucesso, O Caçador de Crepúsculos, mas, por dificuldade no meio, prefere imaginar os filmes a fazê- los. O entrecho aponta para a liberdade criativa da mente em arquitetar histórias e do fascínio que esse faz de contas exerce nas pessoas. A vida de Lucas ser contaminada pelo filme que vê no início apenas indica o poder da narrativa para Guilherme de Almeida Prado. O filme, assim, é uma declaração sobre o prazer de ir ao cinema e de aceitar as diferentes subjetividades de cada filme e de como eles podem influenciar as pessoas nas pequenas coisas. A Dama do Cine Shanghai, pronto desde janeiro, estreou em junho de 1988 no 16º Festival de Gramado, de onde saiu com os prêmios de filme, direção, fotografia (empatado com Feliz Ano Velho), cenografia, montagem e música, além do prêmio da crítica. O resultado impulsionou a carreira do filme, levando a Embrafilme a fazer uma campanha popular, promovendo-o como filme policial e de ação. Foi lançado em São Paulo, Rio de Janeiro e Porto Alegre em 01 de setembro de 1988. No ano de estreia, fez 196 mil espectadores. Prado estima um público total de 800 mil. Após A Dama do Cine Shanghai, Prado integrou o projeto da produtora coletiva Casa de Imagens, gerando Perfume de Gardênia, só concretizado em 1992, já pela Raiz. Realizou, em seguida, o curta Glaura (1995) e os longas A Hora Mágica (1998), Onde Andará Dulce Veiga? (2007), ambos projetos antigos retomados, e A Palavra, filme de encomenda de cunho evangélico que aguarda lançamento.

4.4.6 Isay Weinfeld e Marcio Kogan

Isay Weinfeld (São Paulo, 1952) e Marcio Kogan (São Paulo, 1952) se conheceram no cursinho pré-vestibular e logo ficaram muito amigos. Ambos pretendiam cursar arquitetura e tinham uma paixão pelo cinema. Weinfeld conta, em entrevista para O Globo: Sempre tive muitos interesses na vida, desde pequeno. Aos 16 anos, adorava Ingmar Bergman, um cineasta que geralmente não está na lista de diretores preferidos de moleques dessa idade. No cursinho para a faculdade, encontrei o Marcio, e percebemos que nossos gostos eram muito parecidos, e nossos interesses, os mesmos. A gente fazia arte povera, que nada mais era do que instalações feitas de sucata, e até fomos premiados em algumas exposições.223

223 Gilberto SCOFIELD JR. A arquitetura do elemento-surpresa.

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Kogan, filho do engenheiro Aron Kogan, responsável pelos edifícios São Vito e Mirante do Vale, entre outros, frequentou na infância as obras com o pai, assassinado em 1960, um evento traumático para o filho. Ele conta que, quando tinha 16 anos, entrou por acaso numa sala de cinema que passava O Silêncio (Tystnaden, 1963), de Bergman, e o filme mudou sua vida. Ele relata: “Me vi no filme, e comecei a compreender a importância da arte, do cinema, da arquitetura, de tudo em volta, como uma forma de expressão. Isso parece que libertou minha alma. Fiquei totalmente obcecado e não sabia mais se seria arquiteto ou não.”224 Kogan e Weinfeld cursaram arquitetura na Universidade Presbiteriana Mackenzie, entre 1972 e 1976, quando se formaram. Paralelamente, começaram os primeiros experimentos fílmicos. Na época, fizeram inclusive cursos técnicos de cinema. Aos 18 anos, Kogan comprara uma câmera super-8. De 1973 a 1979, realizaram 13 curtas em super-8. Faziam de tudo: roteiro, direção, fotografia, som, montagem etc. O primeiro filme era influenciado por Bergman, Carmen Jones (1973). Os demais já enveredavam para o humor sutil que marcou a carreira conjunta. Seguiram-se: The Laughing Gnome (1973), Oh! Lonely Cow (1974), A Outra Face da Felicidade (1975), A Bela Adormecida (1975), Paixão maldita (1975), Nosso Primeiro Musical (1975), Canon 1218: Vida e obra (1976), Melhor Trilha Sonora (1978), Melhor Desenho Animado (1978), Melhor Filme de Enredo (1978) e No fim todos acabam dormindo... (1979). Os filmes participaram de festivais diversos dedicados à bitola, como o Super Festival Nacional do Filme Super-8, em São Paulo, do Festival Brasileiro do Super-8 de Curitiba e da Bienal de São Paulo. Para Kogan, foram seus melhores filmes: Era um momento no Brasil em que essa bitola era espetacular. Muita gente achava que o super-8 era uma arma. Nós já representávamos uma corrente mais alienada. Não importa. Você entrava num festival, acabava tendo pelo menos dez filmes incríveis. Coisa que depois, em 35mm, a gente já não via. O movimento de super-8 foi bem incrível. Pessoalmente, acho que foi o jeito que a gente soube fazer melhor, inclusive em comparação com o longa.225

Em março de 1980, pensando em se profissionalizarem em cinema, abriram a W.K.W Filmes. Por ela, realizaram o primeiro curta na bitola 35mm, Idos com o Vento... (1983). O filme era baseado na orelha do livro ...E o Vento Levou e contava brevemente a história da autora Margaret Mitchell. Segundo Kogan, fizeram o curta sobre a orelha do livro porque não tinham dinheiro para fazer a versão brasileira de ...E o Vento Levou. Idos

224 Em entrevista para o autor em 12 de fevereiro de 2015. 225 Id.

184 com o Vento... custou US$ 8 mil, pagos pelos diretores, e ganhou prêmios de melhor curta em Gramado e em Huelva, Espanha, em 1984. Cinema sempre foi uma atividade secundária para Weinfeld e Kogan. O que os sustentava e garantia este ofício era a arquitetura. Em 1976, Kogan abriu seu estúdio de arquitetura, intitulado Marcio Kogan, na Al. Tietê, 505, criando o edifício sede em 1977. Weinfeld, que desde 1973 tinha seu escritório, fundou sua empresa Isay Weinfeld em 1976, na Vila Madalena. Ambos sempre trabalharam com projetos de edificações, interiores, mobiliário, entre outros. Após Idos com o Vento..., que não conseguiu Certificado de Produto Brasileiro (CPB) pelo fato de o Concine julgar não tratar de tema brasileiro, os realizadores partiram para o longa-metragem. Foi mais de um ano na escrita do roteiro e outro ano levantando os recursos para fazerem Fogo e Paixão (1988). Sem conseguirem apoio da Embrafilme, captaram na iniciativa privada. Foram necessários 19 empresários para amealharem o orçamento de US$ 700 mil226 (equivalente a Cz$ 15 milhões, à época). O filme foi rodado ao longo de sete semanas, em janeiro e fevereiro de 1987, em São Paulo e no Guarujá. No longa, o japonês Akira Kaneko (Kenichi Kaneko) mostra a seus amigos um vídeo que fez da excursão de ônibus nas férias em São Paulo. A partir disso, o filme acompanha um tour pela cidade, com os mais diversos tipos sociais e estereótipos, provindos de diferentes países. Duas amigas, Vilma (Mira Haar) e Helena (Cristina Mutarelli), vão para encontrar um companheiro e fazer amizades. Dois sujeitos chamam a atenção delas, o duque Demétrio Bernardo Adolfo (Carlos Moreno) e o executivo da bolsa valores Gaspar (Fernando Amaral). Completam a excursão o casal norte-americano Miller (Edwin Stanton e Yvonne Buckingham), a senhora russa Milena (Riva Nimitz), o português Antônio (Julio Levy), a francesa má humorada (Virgínia Punko), a moça triste (Iara Jamra) e o sujeito comunista (Cassiano Ricardo), além da guia hispânica Rosa (Mariana Suzá) e do motorista (Norival Rizzo). Enquanto visitam marcos da cidade de São Paulo, como o parque do Ibirapuera, o prédio da Bienal de artes, o zoológico, o Museu do Ipiranga, entre outros, flashbacks contam ou especulam o passado dos personagens. Dois mistérios acompanham o tour: quem será o fiscal disfarçado e o que está na maleta que Antonio não larga? É nítido o olhar de arquitetos em Fogo e Paixão, um filme que extrai seu humor da forma. A própria ideia do tour já expressa uma visão arquitetônica da cidade. Todos

226 Kogan descreve o processo como “bem desagradável”. “A gente saía para vender de porta em porta como enciclopédia”, complementa, em entrevista para o autor em 12 de fevereiro de 2015.

185 os elementos técnicos e estéticos do longa estão a serviço de compor uma atmosfera possível de se fazer uma comédia. A base está na artificialidade. Kogan e Weinfeld optam por uma direção de atores bastante exagerada e over. A direção de arte trabalha com anacronismos (roupas e um ônibus dos anos 1950; objetos contemporâneos, como a filmadora etc.) e idealiza São Paulo a quase uma esterilidade, em que tudo é limpo, claro, novo e colorido – muito diferente dos filmes noturnos da época227. Da mesma maneira, a artificialidade preenche a construção dos personagens, todos tipos, estereótipos, buscando a graça pela repetição. Os discursos são clichês e a atuação debochada dão vida para a fofoqueira, o comunista, a sonhadora, o esnobe, o paranoico, o casal velho estrangeiro, o japonês com a câmera etc. O humor nesse caso é bastante clínico, fruto dos padrões que são exagerados228. As principais gags, porém, parecem nascer da mise-en-scène. O humor, como já dito, vem da forma, do visual, não da palavra, que dão um tom fabular ao longa229. Kogan e Weinfeld trabalham com o extracampo e com a mudança de perspectiva objetivando extrair a graça justamente da surpresa em relação ao inesperado que se torna a realidade. Por exemplo, um casal ( e Roberto de Carvalho), trajados como camponeses do século XIX, desfrutam um piquenique, deitados em uma toalha em cima da grama. A câmera começa fechada em Lee, abre para um plano conjunto, em que ela diz ter cansado e sugere irem embora. Enquanto Lee guarda as coisas na cesta, Carvalho se levanta. O quadro se abre mais e Carvalho enrola o tapete de grama. Vemos que estão na Av. Paulista, em frente ao prédio do Tribunal Regional Federal. Outro exemplo é a cena da rainha caolha (). Ela sai na varanda de seu castelo, comportando-se como realeza. A medida que o quadro abre, vemos que ela está num sobrado em forma de castelo, do lado de um viaduto, no centro de São Paulo – no caso, no castelinho da R. Apa, ao lado do Minhocão. O mesmo procedimento é também utilizado com a repetição, uma das fórmulas do humor no mundo todo, como em uma sequência no zoológico. Primeiro, a câmera preenche o quadro com a pele de uma zebra, abrindo-o para a zebra toda. Pouco depois, aparece a pele de um hipopótamo e depois abre mostrando o animal

227 Kogan afirma, em entrevista para o autor em 12 de fevereiro de 2015: “A gente gostava do estereótipo, desse mundo artificial, fazia muito a nossa cabeça. A gente faz uma São Paulo estetizada.” 228 “A gente tinha uma francesa que só fala ‘mérde’, um intelectual, um microcosmos da nossa vida estereotipada; as pessoas completamente mecanizadas, frias, meio tatianas [de Tati] mesmo.” Id. 229 Kogan conta: “É uma coisa nossa, até mesmo pelo olhar de arquiteto, um pouco de esteta, acho que vem muito daí. No super-8 já tinha isso. De forma geral, o mundo era muito mais ingênuo. Você vai jogando para trás, vai aumentando a ingenuidade. Acho que hoje a gente perdeu isso totalmente, até infelizmente. Às vezes, vou rever um filme que adorava morrendo de medo de achar a coisa mais ingênua do mundo”. Id.

186 por inteiro. Algum tempo depois, vemos a textura da pele de um elefante e depois ele por inteiro. Momentos posteriores, vemos a pele de um leopardo. Quando a câmera abre, ao invés de vermos o animal, vemos uma mulher trajando um casaco de pele com estampa de leopardo.

Figuras 43 e 44 – A gag visual em Fogo e Paixão: a nova perspectiva da câmera aponta a brincadeira

Os exemplos são inúmeros e na maioria das vezes protagonizados por figurantes de luxo230, em cenas completamente deslocadas da narrativa central, a excursão – caso dos dois primeiros exemplos; o terceiro, mesmo ocorrendo no mesmo local da excursão, acompanha personagens externos. Fogo e Paixão trabalha com uma narrativa episódica, fruto do passado com curtas-metragens quase esquetes, como os filmes em super-8 da dupla. Os diretores compõem uma história livre, em que é possível a câmera sair do grupo central e descobrir personagens locais, assim como a trama pode ser interrompida por respiros cômicos, montados paralelamente. Kogan conta que a ideia se deu meio por acaso: “Um dia pensamos: e se chamássemos a Fernanda Montenegro para fazer a cena da rainha caolha? A gente não era completamente desconhecidos, ligamos. As pessoas simpatizavam com a brincadeira e aceitavam.”231 O enredo alterna o tour, os flashbacks dos personagens, a imaginação do núcleo central (Vilma, Helena, Gaspar e o duque) e os episódios deslocados. Kogan e Weinfeld não temem tomar um longo tempo de construção de uma impressão, numa elaborada movimentação de câmera, para então desconstruí-la. O efeito pretendido não é a gargalhada e sim o sorriso. São gags ingênuas, sem a pretensão de provocar a reflexão sobre a imagem, como faz Wilson Barros em Anjos da Noite.

230 Os diretores amealharam diversos famosos para figurações: Fernanda Montenegro, Fernanda Torres, Tônia Carrero, , Rita Lee, Roberto de Carvalho, Monique Evans, Zezé Macedo, Regina Casé, Sérgio Mamberti, Nair Bello, Giulia Gam, Ruy Rezende e Abrahão Berman. 231 Em entrevista para o autor em 12 de fevereiro de 2015.

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O humor no filme também se faz presente a partir das referências ao mundo das artes, em especial na sequência do prédio da Bienal, em que mais uma vez brincam com a forma232. Vemos a Mona Lisa (Giulia Gam) fora da moldura, por exemplo. Há inclusive uma brincadeira explícita com a principal influência do filme, o cineasta e cômico francês Jacques Tati. Na Bienal, um sujeito personificado de Mr. Hulot, célebre personagem de Tati, observa um quadro e vê a cauda de um avião atravessar o lado externo das janelas, como em Playtime – Tempo de Diversão (Playtime, 1967). Fogo e Paixão ficou pronto em 1987, mas só estreou em agosto de 1988, no 8º Festival Internacional de Filmes de Comédia de Vevey (VIFFF), na Suíça. No Brasil, a primeira exibição foi em outubro de 1988, na 12ª Mostra Internacional de Cinema de São Paulo, após recusas em outros festivais, como Gramado. O filme ficou parado, pois os diretores tentaram, sem sucesso, distribuição pela Embrafilme e por outras empresas. O caminho encontrado foi fazerem a distribuição independentemente, em circuitos alternativos. O lançamento comercial se deu em 13 de abril de 1989, no Cinesesc, em São Paulo, em cinco sessões diárias. Em dez dias de exibição, o longa levou 10 mil espectadores à sala com 375 lugares. Inicialmente programado para cinco semanas, o resultado surpreendente, rivalizando com sucessos estrangeiros alternativos, fizeram com que a sala prorrogasse a temporada em mais duas semanas. Com quatro semanas, havia chegado à marca de 16 mil pessoas. Em 10 de maio, Fogo e Paixão estreou na Estação Botafogo, no Rio de Janeiro. Segundo o Jornal do Brasil233, até agosto de 1989, o filme tinha feito 55 mil espectadores. Kogan estima um total de 80 mil espectadores durante toda a carreira no cinema. O lançamento em home vídeo, pela CIC Vídeo, ocorreu logo após a estreia no Rio de Janeiro, ainda em maio de 1989. Para fazerem Fogo e Paixão, Weinfeld e Kogan pararam de frequentar os escritórios de arquitetura por seis meses, o que os levou a perderem seus clientes. Com o fracasso do filme, quase faliram. Ainda escreveram o roteiro de Palace Hotel, pelo qual conseguiram apoio da Fundação Hubert Bals, mas as dificuldades de viabilizar a obra após o fim da Embrafilme fizeram com que desistissem do cinema e focassem na carreira de arquitetos. Kogan conta que a experiência, ao término, foi traumática: Fomos nos dedicar integralmente à arquitetura. Fogo e Paixão tinha sido um fracasso econômico. Não havia incentivo nenhum, praticamente. Não queria mais passar por essa dificuldade, vender cotas. Estávamos mais consolidados

232 Kogan: “O longa tem bastante metalinguagem, coisa que detesto hoje em dia. É difícil fazer uma análise dele hoje porque o mundo era outro. É um filme dos anos 1980, a época da metalinguagem. Acho que fiquei traumatizado com isso. Na época, eu gostava, lógico.” 233 Susana SCHILD. Cineastas em ação.

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[como arquitetos]. [Foi] por uma comodidade. Para mim, acho que o sonho acabou. É impossível conciliar as duas profissões, ainda mais que te exigem o tempo todo. Para fazer cinema, tem que estar lá o dia inteiro, viver disso. Fomos aventureiros na minha opinião. Sonhadores, sem um pé na realidade.234

A parceria dos dois prosseguiu na arquitetura, em projetos como a Casa Goldfarb (1989), o Edifício Metrópolis (1996) e o Hotel Fasano (2003). Continuaram, de certa forma, o projeto cinematográfico em exposições e instalações de arquitetura e humor, caso de Arquitetura e Humor (1995), Arquitetura Ornitológica (1998), Umore und Architektur (2001), Happyland, uma visão da próxima grande metrópole do mundo (2002), para a 25ª Bienal Internacional de São Paulo, e Happyland Vol. 2 (2004). Hoje, Weinfeld e Kogan estão entre os mais respeitados arquitetos brasileiros, com projeção internacional. Desde 2001, o escritório de Kogan se chama Studio MK27 e deu mais liberdade aos associados. Ele é responsável pelo Museu de Micro Biologia do Instituto Butantã, pela Casa Paraty, pela Casa de Punta, pela Livraria Cultura Iguatemi, pela Casa Cubo, pelo Studio R, pelo Bar Riviera e pela Casa Txai, entre outros. Entre os principais projetos de Isay Weinfeld, estão as lojas da Livraria da Vila, o Square Nine Hotel em Belgrado, o Hotel Fasano Las Piedras, o Bar Número, Midrash, a Casa Vertical, a loja das Havaianas da R. Oscar Freire, e uma linha de móveis para escritório para a Geiger/Herman Miller, além de cenografia para peças. Atualmente, ambos mantêm canais online na plataforma Vimeo em que filmam como veem a arquitetura, em curtas de poucos minutos, a partir de suas obras. Kogan (Studio MK27) voltou a filmar a convite da 13ª Bienal de Arquitetura de Veneza de 2012, com Peep, codirigido por Lea Van Steen, em que filma uma casa que fez em São Paulo entre frestas. Para Kogan, lhe interessa a “obra de arquitetura como pretexto para uma história”235. São filmes realizados em 3 ou 4 dias, em digital, com completo controle de produção. Weinfeld (IW Filmes) começou em 2013 e é mais frequente. Posta, em média, um vídeo a cada mês.

234 Em entrevista para o autor em 12 de fevereiro de 2015. 235 Id.

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4.4.7 Walter Rogério

Quando ainda era sócio da Tatu Filmes, Walter Rogério, que labutava especialmente com som e montagem, começou a trabalhar em seu primeiro longa- metragem como diretor, a comédia O Beijo. A ideia surgiu em 1981. O cineasta conta: Eu tinha feito um curta-metragem chamado A voz do Brasil, que passei na Jornada de Curta-metragem da Bahia (...). Conversando com Ilma Esperança, que estava entrevistando os premiados, disse-lhe que me interessava por humor e comédia. Ela então me contou um caso interessante. Ela era ligada ao sindicato dos têxteis e tinha encontrado um processo engraçado de um casal de empregados, na década de 70 – época moralista do regime militar –, que haviam se beijado dentro da empresa e foram despedidos por justa causa. O rapaz entrou com um processo trabalhista. Achei que era uma ótima ideia para um filme. Em São Paulo, fui ao sindicato, eles me deram todas as indicações, fui à Justiça do Trabalho, ao Tribunal Regional e consegui a íntegra do processo, um calhamaço.236

Rogério escreveu um projeto a partir do processo 2348/72, movido na Justiça Trabalhista de São Paulo em 1972, e ganhou um concurso da Secretaria de Cultura de São Paulo para desenvolver o argumento. Em 1984, inscreveu-se com o argumento no segundo convênio da Embrafilme com a SEC-SP, dividido em duas fases. Beijo 2348/72 (1990) foi um dos vinte finalistas. Convidou o escritor Mário Prata para ajudá-lo nos diálogos, elaborou o roteiro e o projeto negocial, mas não foi um dos dez premiados para produção. Em 1986, tentou novamente a Embrafilme, conseguindo um acordo. Rogério rodou o longa em 1987. Sem dinheiro para finalizá-lo, só conseguiu retomá-lo em 1989. Beijo 2348/72 teve um orçamento total de US$ 600 mil, equivalente a Cr$ 51 milhões à época. Nesse ínterim, ele fez o som de Cidade Oculta, do qual ainda foi produtor associado e corroteirista, e Anjos da Noite. O filme apresenta duas linhas narrativas. Em uma, o desenrolar do processo 2348/72 até o Tribunal Superior do Trabalho, movido por Norival (Chiquinho Brandão) e pelo sindicato contra a tecelagem que o demitiu por justa causa, alegando que ele beijou, durante o expediente, uma colega de trabalho, a casada Catarina (Maitê Proença), também demitida. Na outra linha, acompanhamos a vida do migrante Norival, entre conhecer Claudete (Fernanda Torres) num forró no Brás e ela lhe conseguir o emprego na fábrica, até sua vida após a demissão, quando assume diversas profissões, para além do desemprego, como catador de papel, cafetão, macaco pra fotos em parque de diversões etc. Nesse percurso, Norival conhece Catarina, objeto de desejo do supervisor Avarino

236 Lúcia NAGIB (org.). O Cinema da Retomada – Depoimentos de 90 cineastas dos anos 90, p. 401.

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(Ary Fontoura), despertando o ciúme de Claudete, que é apaixonada por Norival. O triângulo amoroso se desenvolve até o momento que, enciumada, Claudete denuncia Norival e Catarina para Avarino. Entre os bicos que faz, após ser demitido, Norival ainda tenta engatar um romance com Catarina, que passou a se dedicar à casa e à família. Também reencontra Claudete, agora casada com o supervisor. Em 1976, quatro anos após o processo ser movido, o Tribunal Superior do Trabalho decide que a demissão foi injusta e o caso é arquivado. Beijo 2348/72 foi vendido por seu diretor como uma “comédia burocrática”, em alusão ao fato de ser um filme sobre um processo trabalhista. O trunfo do filme parece ser o de conseguir transformar uma história desinteressante, chata e ordinária numa comédia de costumes bastante diferente e atraente por apostar nas excentricidades e no apelo do exagero. A história de Norival ganha contornos folhetinescos, com ares hollywoodianos, extraindo dos clichês dos filmes norte-americanos de comédia e de romance do passado os elementos para construção do humor. Exemplo disso é a criação de um triângulo amoroso, em que o ciúme é catalisador para a demissão. Ao invés de ser um simples romance em local inapropriado, Rogério constrói um drama, que envolve diversos personagens e interesses para justificar a ação. A comédia surge do absurdo da situação. A trama lembra várias comédias eróticas feitas na Boca do Lixo, mas o cineasta tem outro referencial. Seu filme é bastante ingênuo, não há erotismo, como se fosse feito nos anos 1950. As situações se desenrolam como uma comédia de erros. A estratégia para com a linha narrativa do processo é um pouco diferente. O diretor trabalha com a lógica da , em que o evento fica cada vez mais desproporcional à medida que avança juridicamente. Começa com as duas partes numa sala pequena, passa para um pequeno auditório e termina com um grande tribunal, com diversos juízes e um público massivo assistindo. Ao término, a cena final do tribunal, com os juízes de toga, ganha contornos lúdicos, com papel voando de um lado para o outro – trazendo dramaticidade –, luz azulada banhando os personagens e o cenário, uso de gelo seco para esfumaçar o ambiente. O salão é enorme e Rogério filma com lentes abertas para aumentar o espaço. O número de juízes é enfatizado com um longo travelling lateral, por exemplo.

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Figuras 45, 46 e 47 – A evolução do tribunal em Beijo 2348/72

Rogério explica o que o levou a seguir essa estrutura: Nos documentos, consta que a empregada Waldete – seu nome verdadeiro – viu o beijo dos dois. Daí, criamos um triângulo amoroso, em que entra a personagem Claudete. O filme virou um pouco ‘tribunal’, um pouco de comédia de costumes e, conforme se desenvolve, vai se tornando surrealista – é quando começo a citar as coisas de que gosto, Buñuel etc.237

Ou seja, para Rogério é importante explicitar suas referências, brincar com o imaginário cinéfilo, transformando o cotidiano em absurdo, construindo a comédia a partir do exagero das referências. Se, por um lado, suas citações vão da chanchada e do teatro de revista ao melodrama e ao romance de Hollywood dos anos 1950, a desconstrução cômica perpetrada por Rogério também se coaduna com o cinema do espanhol Luís Buñuel, no que ele chama de surrealismo. Essa dimensão surrealista que Rogério cita está nos exageros ao ordinário que parecem frutos do inconsciente, dando um ar lúdico às soluções dramáticas. Tal objetivo já era vislumbrado no primeiro projeto do filme, em janeiro de 1985, em que, para Rogério, há um terceiro nível narrativo: [Nele], composto por irrupções de ‘imaginários’ implícitos nas personagens e situações dos níveis anteriores [o desenrolar do processo burocrático e os fatos que geraram o processo]: elementos oníricos; ‘surrealistas’; ‘musicais’ e ‘românticos’ no sentido hollywoodiano; etc. Estas irrupções podem se dar em cenas independentes (ex. cena do ‘beijo hollywoodiano’), ou contaminar cenas realistas (ex. a sentença do juiz se transforma num número musical – VAMPIRO S/A [cortada da montagem final]; ou o caráter ‘surrealista’ das cenas de idílio entre herói e heroína).238

Para além do desejo metalinguístico do diretor, o exagero na encenação do processo faz de Beijo 2348/72 um filme mais crítico à realidade. As sequências no tribunal dão um viés kafkiano ao filme. O tom entre o surrealismo e o expressionismo – entre o absurdo e o assombroso – com que Rogério trabalha na representação transfiguram a sensação de impotência das pessoas comuns frente à burocracia jurídica brasileira. Um

237 Id. 238 TATU FILMES. Beijo 2348/72 (projeto do filme para a Embrafilme). São Paulo, 1985.

192 simples beijo, visto por uma suposta testemunha, leva a uma demissão. Essa situação já é absurda por si só. Porém, os intermináveis quatro anos do processo são ainda mais inacreditáveis – como algo pouco importante que levou um segundo para ocorrer possa se arrastar por tanto tempo. O cineasta filma essa história como ela soa, transpondo em imagens lúdicas e fantasiosas a sensação do absurdo que é a burocracia, utilizando ainda os diálogos reais existentes no processo. Por conta disso, ele opta por nunca mostrar o beijo incriminador – como nas adaptações cinematográficas de O Beijo no Asfalto, de Nelson Rodrigues, em que um beijo gay em um moribundo desencadeia toda uma sorte de discriminações. Pouco importa se realmente aconteceu o beijo. Não justifica o desenrolar. “O beijo mesmo não existe no filme, ele é um sonho, uma fantasia que se passa a partir do processo, no final a câmera sai do papel, fecha e aparece ‘arquiva-se’. Tudo se passa numa fração de segundos, toda aquela história que dura anos”239, aponta o cineasta. Por isso a sequência equivalente ao beijo alterna entre a luxúria e a ingenuidade, em que, ao invés de línguas, colocam um a mão na boca do outro. Quando o beijo enfim ocorre no filme, ao término do processo trabalhista, é fruto da imaginação. De Norival? Dos juízes? Não faz diferença. Aquela situação só é justificável se o beijo for apoteótico, desproporcional assim como o processo, mesmo que não seja razão para a demissão. Por isso, imagina-se o beijo dessa maneira. O diretor explica: Meu grande barato era encenar aquela dramaturgia toda do filme romântico americano em que o herói tem um objetivo e, para realizá-lo, passa por vários obstáculos. Em Beijo, o personagem passa o filme inteiro tentando beijar a heroína. Na hora de filmar a sequência em que Catarina e Norival vão namorar, quando Chiquinho e Maitê estavam quase se beijando, eu não os deixava beijar. Porque a fábrica é um lugar tão anti-romântico, que dar um beijo é difícil, toda a conjuntura impede. Tanto que o beijo, no fim, é totalmente idealizado, eles flutuam e se beijam. O objetivo do personagem era beijar e ele foi despedido porque beijou. Então, o beijo está no começo e no fim, é a entidade que, de certa maneira, coroa todo o filme. Essa é a lógica da estrutura narrativa. Então, tem que ficar uma hora e meia sem beijar? Como não beijar? É preciso criar o idílio dos dois, que é cômico e ao mesmo tempo romântico, criar o obstáculo. Como criá-lo? Lembrei-me do idílio de A idade do ouro, que é aquela coisa surrealista tratada de maneira quebrada, que é o romance dos dois no jardim enquanto soa Tristão e Isolda, de Wagner. Os dois ficam namorando no jardim, o rapaz cai, levanta, bate a cabeça. Lembrei-me dessa cena e fiz igual. Aí brinquei, introduzi o lado surrealista de o personagem ficar sem dedos na mão, aquelas coisas freudianas do Buñuel.240

239 Lúcia NAGIB (org.). O Cinema da Retomada – Depoimentos de 90 cineastas dos anos 90, p. 403. 240 Ibidem, p. 404-5.

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Figuras 48 e 49 – O não-beijo e o beijo, em Beijo 2348/72

Outro ponto forte do humor de Beijo 2348/72 é a composição do personagem Norival. Rogério opta por uma linha pastelão, em que a comédia é muito calcada na fisicalidade. A atuação de Chiquinho Brandão evoca constantemente Charles Chaplin, o clown circense241, um tipo de humor pouco usual nos filmes sofisticados dos anos 1980. O longa associa-se assim à chanchada e a cômicos como Amácio Mazzaropi e os Trapalhões, todos ligados ao cinema popular, procurando aí uma intersecção com o público. Diferentemente dos contemporâneos Trapalhões, Beijo 2348/72, ainda que esboce malícia, concebe seu humor físico ingenuamente, com Norival caindo, trombando, sendo derrubado etc. Mesmo nessa linha, o diretor continua o trabalho com referências e homenagens explícitas, como, por exemplo, a participação especial do cômico Ankito, figura proeminente das chanchadas. “Eu queria fazer uma representação chapliniana, mas que tivesse um pouco de Buster Keaton, de Ankito – a chanchada tinha aquela coisa do cara meio trapalhão que, onde pisa, cai”242, conta o cineasta. Beijo 2348/72 estreou em agosto de 1990 no 18º Festival de Gramado, onde levou os prêmios de fotografia e montagem, além de Cláudio Mamberti ter levado um prêmio especial do júri pelo conjunto da obra no festival, incluindo aí Beijo. O filme recebeu bastante críticas da imprensa especializada, o que levou o cineasta de volta à ilha de edição, tirando dez minutos do filme – incluindo a cena que ele intitulou de Vampiros S/A. Exibido em outubro do mesmo ano no 23º Festival de Brasília com a nova

241 Para além do humor físico, Norival também evoca o clown pela falência do romance, tanto com Catarina, quanto com Claudete; não pode ser feliz. Ao analisar Em Busca do Ouro (1925), de Chaplin, John Grierson escreveu: “Os clowns não podem submeter-se a esse tipo de romance. Eles são, em essência, super-realistas: isto é, são atores de tragédia dissimulados. Seus finais são felizes para todos, menos para eles próprios.” Cf. John GRIERSON. A lógica da comédia, p. 153. Catarina e Claudete mudam de vida para melhor. Norival, mesmo ganhando o processo, recebe quase nada de indenização e se vê sem profissão e sem rumo. 242 Lúcia NAGIB (org.). O Cinema da Retomada – Depoimentos de 90 cineastas dos anos 90, p. 402.

194 montagem, ganhou os prêmios de melhor filme, ator (Brandão) e ator coadjuvante (para a figuração de Joel Barcellos). Com o desmonte da Embrafilme e do Concine operados em 1990, Beijo 2348/72 ficou sem distribuidora e o cinema brasileiro ficou sem espaço no mercado. Rogério optou por esperar. Por conta do Programa Banespa de Incentivo à Indústria Cinematográfica, de 1993, conseguiu verba para lançar comercialmente o longa, que estreou em 29 de julho de 1994, no Cinesesc, onde ficou em cartaz por dois meses, alcançando um público de 9500 pessoas. Chegou ao Rio de Janeiro em 23 de setembro de 1994. A exibição na televisão aberta se deu pouco depois, em 1 de outubro, na TV Bandeirantes, que comprou os direitos de exibição antes de ele ser lançado nos cinemas. Estima-se que a obra ficou em cartaz por seis meses e fez um total de 83 mil espectadores. Entre a finalização do longa e seu lançamento, Walter Rogério trabalhou como técnico de som de Capitalismo Selvagem e de A Causa Secreta, entre outros. Seu foco, porém, era a direção. Ainda em 1994, o cineasta foi um dos selecionados do 1º Prêmio Resgate do Cinema Brasileiro, do Ministério da Cultura. Nesse ano, ele filmou Olhos de Vampa (1996) com US$ 160 mil. Só conseguiu finalizar em 1996, após ganhar um prêmio da Prefeitura de São Paulo. “Acabei do jeito que deu”. O longa acompanha um fotógrafo e um investigador, ambos da polícia, na tentativa de descobrir um serial killer, que mata as vítimas, deixando-as em poses sensuais, nuas, com as nádegas empinadas e com uma marca de mordida de vampiro nelas. Bastante diferente de Beijo 2348/72, Olhos de Vampa assume a estética da Boca do Lixo, com bastante nudez, sangue, palavras de baixo calão e um ar mundano, entre o horror, o policial e a comédia. Obra bastante atípica da Retomada, o filme estreou no 29º Festival de Brasília, onde foi muito mal recebido pela crítica e não levou nenhum prêmio. Rogério nunca conseguiu lançá-lo comercialmente nos cinemas. Chegou ao mercado de home-vídeo em 2004. Nos anos 2000, Rogério deu aula em cursos de cinema. Entre 2005 e 2007, lecionou na FIAM-FAAM. Em 2008, foi para a Anhembi-Morumbi. Atualmente, está aposentado.

4.4.8 Augusto Sevá

Augusto Sevá saiu da Gira Filmes em 1982 para tocar seus projetos individualmente. Em janeiro de 1985, ele fundou a Augusto Sevá Cinema, por conta de um novo projeto, Real Desejo (1990), que era finalista do segundo convênio da

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Embrafilme com a SEC-SP. Em maio do mesmo ano, foi um dos selecionados para financiamento. O filme, rodado em duas etapas, teve vários problemas de produção, arrastando sua conclusão para 1990. Na primeira, em março e abril de 1986, durante cinco semanas, Sevá filmou 70% do material, as cenas exteriores. O dinheiro acabou e o cineasta só conseguiu voltar ao set um ano depois, para completar os 30% faltantes, com as cenas de interiores em estúdio, num total duas semanas, em dias esparsos. A verba levantada foi insuficiente para a pós-produção. O processo de finalização só se deu no final de 1989, com o longa chegando a um orçamento total de US$ 300 mil (Cr$ 25,5 milhões, em valores da época). Por conta desse intervalo de filmagens, houve bastante modificação na equipe. Assunção Hernandez e a Raiz Produções entraram na segunda etapa. Sevá, que produziu inteiramente a primeira parte, preferiu se encarregar apenas da direção e delegar a administração para outra pessoa. A produção executiva, feita por Wagner e Margareth de Carvalho, ficou a cargo de Assunção. A direção de fotografia é assinada por cinco pessoas, sendo que José Roberto Eliezer participou da primeira parte. Sevá conta: “Foi- se ajeitando com a disponibilidade. Teve gente que fez uma diária. Às vezes, tinha que filmar uma externa que tinha que ser naquela data, eu ia lá e filmava com a equipe que era possível filmar. Não podia me dar ao luxo de esperar o profissional.”243 Nisso, assinam ainda na função Aloysio Raulino, Eduardo Poiano, Kátia Coelho e o próprio Sevá. Foram quatro assistentes de direção no processo: Rubens Xavier, Tânia Savietto, Edith Siqueira e Cristina Santeiro. Real Desejo acompanha um dia na vida da atriz Gilda Oliveira (Ana Maria Magalhães), famosa por seus papéis no cinema e na novela. O filme começa de manhã, em que Gilda, sentada num vagão de um trem, lembra-se do dia. Uma amiga a deixa próxima a um ponto de ônibus, onde ela aguarda que alguém a busque. Após conversar com estranhos, ela se dirige até uma esquina, onde uma prostituta lhe arranja um michê. Ela segue no carro do sujeito até um terreno baldio e eventualmente foge, sem se entregar a ele, até uma estação de trem, onde embarca. Já à noite, ela desce do trem e pega um táxi, indo até o aeroporto, onde vê seu marido, o também ator Paulo (Paulo César Pereio), com outra mulher. Sai de lá, pega outro táxi, quando enfim chega em casa. Sua amiga Lisa (Isa Kopelman), que há muito não via, aparece sem avisar. Pouco depois, quando já

243 Em entrevista ao autor em 26 de novembro de 2014.

196 sozinha em casa, Paulo retorna. Eles discutem sobre o relacionamento e, pela manhã, Gilda decide deixá-lo. O longa é, até o momento, o único filme urbano de Augusto Sevá e isso parece bastante sintomático para entender Real Desejo. O cineasta aponta que uma das razões de ter escrito o longa era que queria “filmar São Paulo. Embora eu tenha um grande interesse por interior, por litoral, lugar pequeno, por natureza, queria um filme sobre São Paulo, uma homenagem”244. Porém, o longa sobre São Paulo que fez é bastante lúgubre, melancólico, sobre a solidão na metrópole. Sua Gilda parece estar sempre desconfortável, sem se encontrar nesse turbilhão de sons, luzes e imagens que se configura a São Paulo de Real Desejo. Nos demais filmes do diretor, ainda que haja aspectos críticos e problemáticos no seu retrato, há sempre uma alegria intrínseca a alguns personagens, um ponto de retorno atingível para eles. Em Real Desejo, não. Gilda vive o conflito entre ser quem esperam dela a partir de sua figura midiática e quem realmente é, ou como se sente para além dessa fabricação. A exposição faz com que estranhos a abordem na rua e conversem com ela como se fossem íntimos, seja confundindo-a com a personagem da novela (como a babá no ponto de ônibus, que discute minúcias da trama televisiva), seja assumindo uma identificação com a atriz a partir da leitura de tabloides e afins (como a mãe com bebê no trem, que despeja os problemas maritais sobre ela). Faz também com que homens se interessem por ela por acharem que ela se parece com a estrela Gilda (caso do aparente criminoso que contrata seus serviços como prostituta ou do taxista que a leva para o aeroporto). Ainda que quase sempre Gilda seja simpática com seus interlocutores desconhecidos, aparenta sempre desconforto, como se estivesse deslocada. O refúgio que incessantemente busca é seu apartamento, como se só ali pudesse se livrar da opressão da metrópole. Porém, nem lá, descobrimos, ela consegue isso. Sua amiga vem lembrá-la de como a cidade as afastou e que nada mais tem em comum. E mesmo numa cidade de milhões de habitantes, o marido faz-se ver em situações que prejudicam o casamento. Gilda tenta superar seu desconforto com o sexo furtivo, que nunca concretiza, e com cocaína, sem sucesso. São Paulo, em Real Desejo, é caótica. A beleza cromática do filme, que abusa do azul na noite, apontam a artificialidade da metrópole. Ela é esteticamente bela, sobretudo no skyline visto no apartamento da atriz, que tem um belo desenho. Porém, a paisagem é

244 Id.

197 falsa, construída em estúdio, a partir de uma retroprojeção. Para Sevá, a cidade tinha que ser esteticamente bela. Ele conta: Procurei fazer um filme visualmente exuberante. Não é um filme de grande produção, mas a ideia era que tivesse uma exuberância na imagem e que ela estivesse no limite do realismo. Toda a parte que é dentro do quarto dela, quando se tem uma vista para São Paulo, aquela vista é falsa. Se filmasse aquilo num apartamento com a vista para São Paulo – cheguei a estudar essa possibilidade – não aparecia com aquela exuberância. Nos meus filmes, tem a relação do homem com a natureza. [Em Real Desejo] tem a relação da Gilda com a natureza urbana, a cidade. Aquela história só é possível numa grande cidade. Tinha que ter o plano aberto na cidade. Tinha que ter o trânsito da cidade, essa certa opressão que a cidade tem sobre as opressões. Ao mesmo tempo que ela é libertadora, porque você tem acesso a tudo, ela é opressora.245

A solidão na metrópole – a sensação de estar só mesmo rodeado de pessoas – era um tema comum no cinema paulista dos anos 1980. Nenhum dos filmes, porém, apresentava a genérica solidão como um permanente desconforto de existir nesse espaço. A crise pode vir do fato de Gilda não conseguir saber quem exatamente é246, mas esse conflito só é possível na metrópole e só intensificado porque a cidade constantemente a lembra disso. Não parece à toa que Sevá prefere filmar locais afastados e pouco populosos. Para trabalhar a crise existencial de Gilda na cidade, o diretor optou por um roteiro intrincado, bastante fragmentado, que aos poucos vai construindo a linha narrativa. O que liga a primeira metade do filme, quando ela está na rua, é a voz over estruturada como fluxo de pensamento, em que uma ação se liga a outra que parece não ter muito a ver, a piori, mas que enfatiza alguma questão. Assim, uma imagem liga-se a outra, as situações vão e voltam – por exemplo, o filme começa com ela no trem; passa para ela num carro, do qual ela desce, vai para uma banca de jornal, depois um orelhão, até ser abordada na rua; volta para ela num trem; volta para ela na rua com a moça; ela no trem; ela sendo abordada pela prostituta; ela no trem; ela entrando no carro com o sujeito etc., até enfim termos certeza de que, no trem, ela está lembrando do dia, através do flashback. O discurso em over de Gilda pouco tem a ver com as imagens que vemos e atentam, num

245 Id. 246 Para Sevá, em entrevista para o autor, essa é a questão fundamental do filme: “Eu tinha um roteiro que ocorreria ele todo em um dia só e seria uma mulher querendo chegar em casa, mas as adversidades que encontra a levam a não chegar. Ela vai cada vez mais longe do que ela quer. É um road movie urbano, de certa forma, um street movie. É a mesma estrutura: um personagem num caminho e esse caminho revela o próprio personagem. A questão de ela ser uma atriz nem tem tanta importância – interessa o fato de ela ser reconhecida em alguns lugares. Era mais a questão de trabalhar a vida real e a vida que não é real, que é a questão existencial dela. Ela não sabe se está sendo ela mesma ou se está sendo o personagem que as pessoas esperam que seja. É a questão fundamental do filme. Nessa caminhada, ela tentar entender o que é ela e o que é a personagem que ela criou para ela.”

198 registro bastante formal e literário, para sua desilusão com o mundo. Sevá também monta seu filme ora avançando, ora atrasando a narrativa, repetindo situações aparentemente já conclusas, além de permitir refações – exemplo disso é quando Gilda conta a Paulo sobre seu envolvimento com a prostituição, em que a ocasião ganha contornos de filmes de ação, com direito a tiroteios e explosões. A questão é que, como todas as imagens que vemos parecem estar mediadas pelo pensamento de Gilda, nenhuma das duas representações é certeira. O fato de ela ser atriz também rende outras confusões diegéticas. Em determinado momento, Gilda entra no aeroporto e vê uma equipe de filmagem rodando uma cena em que Paulo e uma mulher, Catarina (Martha Mellinger), se beijam. Gilda parece incomodada com o que vê. Na cena seguinte, ela entra no restaurante de aeroporto e se senta na mesa em que Paulo e Catarina estão. Todos estão com roupas diferentes, mas se chamam pelo mesmo nome. A maneira como Sevá monta não deixa claro se aquela é uma cena ficcional, continuação direta da filmagem no saguão do aeroporto – e por isso Gilda teria ido até lá, fato que nunca fica claro –, se é um flashback real na diegese, em que Gilda nos revela a traição do marido, ou se é uma especulação da atriz, em que filmagem e realidade se confundem. Real Desejo ainda tem cenas deslocadas da diegese, lúdicas, como o tango dançado entre a atriz e Paulo, sob luzes coloridas e um fundo preto. Sevá justifica a estrutura: Era para mostrar a confusão mental da personagem. A questão do flashback aparece em todos os meus filmes e tenho uma facilidade de deixar claro para o espectador que ele entrou e saiu. O flashback é um recurso fantástico na narrativa, em que você consegue esclarecer uma série de coisas que estão acontecendo na história sem precisar se delongar na explicação delas. Outra questão é: ela fica lembrando. A cada situação em que ela se defronta, ela lembra de outra situação. Gilda é conturbada. Ela está num momento de pré- ruptura que só ocorre no final do filme. Ela pensa no que aconteceu e no que pode acontecer, ao mesmo tempo tendo de enfrentar o quê? Ela pegou um metrô e vai parar na periferia da cidade. Ela está perdida, por conta da quantidade de conflitos que ela tem que resolver naquele dia.247

Real Desejo estreou em julho de 1990, no 18º Festival de Gramado, onde teve uma recepção muito negativa tanto do público quanto da crítica. Levou apenas menções, nos prêmios especiais do júri: Cláudio Mamberti, pela participação em quatro filmes concorrentes, incluindo Real Desejo, e Ana Maria Magalhães, por Real Desejo e pela sua participação no cinema brasileiro.

247 Id.

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Com a extinção da Embrafilme, Real Desejo ficou sem distribuidora, nunca sendo lançado comercialmente no cinema ou em home-vídeo, e indo diretamente para a televisão. Após Real Desejo, Sevá faliu. Voltou a Campinas, onde iniciou carreira com administração pública. Trabalhou como assessor especial de audiovisual, na Secretaria de Cultura de Campinas, entre 1991 e 1992, e como assessor de cinema e vídeo, na Secretaria de Cultura do município de São Paulo, em 1994 e 1995. No intervalo, em 1993, dirigiu publicidade. Em 1996, conseguiu regularizar todas as dívidas da Augusto Sevá Cinema e a fechou. Paralelamente, fundou a Albatroz Cinematográfica, com o objetivo de retornar à carreira de cineasta, com a popularização das leis de incentivo. Fez a minissérie documental Arquipélago de Abrolhos e o telefilme documental Ilha Grande e as Visões do Paraíso. Membro da Comissão Nacional de Cinema do Ministério da Cultura entre 1999 e 2001, órgão responsável pela criação da Agência Nacional de Cinema (Ancine), tornou-se diretor colegiado em sua fundação, em 2002, exercendo o cargo até 2004. Em 2001, havia filmado um projeto iniciado em 1994, a ficção Estórias de Trancoso, em que ele retorna ao cenário de A Caminho das Índias. Por conta da Ancine, interrompeu o trabalho no filme, só concluído em 2007. A trinca sobre Trancoso se completou em 2011, com Fala Sério! Ambos os longas utilizam estética e procedimentos bastante similares. Foram pensados a partir de histórias coletadas com os habitantes locais para compor o roteiro, reforçando o caráter da beleza natural, em tramas que pendem para a comédia e para o romance, buscando uma chave muito mais popular de acesso, e utilizando atores não profissionais escolhidos dentro da população. Atores e assistentes foram formados em oficinas locais para os filmes. Estórias de Trancoso, lançado comercialmente em outubro de 2009, recria o imaginário do distrito entre 1980 e 1990, quando passa de uma província rural a um pequeno paraíso turístico. Fala Sério!, por sua vez, acompanha três amigas no começo da juventude, nascidas já com as modernizações, que engravidam. O filme chegou ao circuito em abril de 2015. Atualmente, Sevá finaliza Taís & Taiane, filmado em 2014, na Chapada dos Veadeiros.

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5 UM CINEMA POLÍTICO

O cinema paulista realizado pela nova geração, nos anos 1980, ficou marcado por sua estética lúdica, artificial, e por sua relação com o cinema de gênero, o pós- modernismo e a metalinguagem. À época, tal tendência, bastante singular no panorama brasileiro, foi determinante para definir uma geração. As discussões estavam voltadas para o cinema paulista que se mostrava belo e moderno, urbano, tido como o futuro do cinema, atento à produção mundial, ou como reflexo tardio das inovações de autores vanguardistas dos anos 1960. A percepção do filme paulista era tão polarizada nessa leva que um outro cinema feito em São Paulo nos anos 1980 é costumeiramente deixado de lado ou desconsiderado como pertencente a uma geração: o cinema de cunho político e social, engajado ou não, que refletia discursos, denúncias e problemas da sociedade da época; questões ainda pertinentes, presentes no cinema brasileiro desde os anos 1950, com os primeiros filmes que levaram aos chamados Cinema Novo e Cinema Marginal. Esse cinema político é bem conceituado pela crítica, mas parece existir à parte, não integrado a essa geração248. Ainda assim, essa vertente é bastante importante para a história do cinema paulista e recupera uma notável tradição do cinema brasileiro. São diretores como Sérgio Bianchi – Maldita Coincidência (1980), Romance (1988) –, Hermano Penna – Sargento Getúlio (1980), Fronteira das Almas (1987) –, Aloysio Raulino – Noites Paraguayas (1982) –, Suzana Amaral – A Hora da Estrela (1985) – e Ugo Giorgetti – Jogo Duro (1985) e Festa (1989) –, que fizeram filmes bastante premiados, revelados na época e que construíram longas carreiras (com exceção de Raulino). Enquanto o denominado, por este autor, de cinema popular existe hoje quase como uma curiosidade antropológica sobre a década, visto com certa anacronia e como um capítulo superado na cultura, o cinema político é ainda hoje pauta e representativo na história do cinema brasileiro construída pela crítica. É só ver os filmes pertencentes a essa geração que estão na lista dos 100 melhores filmes brasileiros de todos os tempos da Associação Brasileira de Críticos de Cinema: constam, nela, A Hora da Estrela (42º), A Marvada Carne (83º) e Sargento Getúlio (84º)249. Dos

248 Dos dois livros que repercutem diretamente a geração, Cinema Brasileiro Pós-Moderno, de Renato Luiz Pucci Jr., e A Imagem Fria, de Tales Ab’Saber, apenas o último aborda filmes aqui recortados neste capítulo, A Hora da Estrela e Noites Paraguayas, muito mais por conta das aproximações com o cinema que marcou a geração. 249 Cf. ABRACCINE organiza ranking dos 100 melhores filmes brasileiros. Disponível em: < https://abraccine.org/2015/11/27/abraccine-organiza-ranking-dos-100-melhores-filmes-brasileiros/>. Acesso em 15 de abril de 2016. Vale dizer que o autor participou da votação.

201 três, dois se filiam ao cinema de cunho político e social e um, A Marvada Carne, ao de cunho popular, porém desvinculado da tendência urbana e da estética das demais produções. Porém, o que seria exatamente esse cinema político? Tomo como base a filosofia de Aristóteles para entender, de maneira ampla, a noção de política: Vemos que toda cidade é uma espécie de comunidade, e toda comunidade se forma com vistas a algum bem, pois todas as ações de todos os homens são praticadas com vistas ao que lhes parece um bem; se todas as comunidades visam a algum bem, é evidente que a mais importante de todas elas e que inclui todas as outras tem mais que todas este objetivo e visa ao mais importante de todos os bens; ela se chama cidade e é a comunidade política. (...) Na ordem natural a cidade tem precedência sobre a família e sobre cada um de nós individualmente, pois o todo deve necessariamente ter precedência sobre as partes. (...) a justiça é a base da sociedade; sua aplicação assegura a ordem da comunidade social, por ser o meio de determinar o que é justo.250

Para Aristóteles, portanto, o fim da política seria encontrar formas de alcançar o bem da comunidade. O cinema político, assim, seria aquele preocupado em problematizar questões candentes da vida social de uma comunidade, trazendo explicações para tal situação e/ou propondo soluções, dando espaço, na maioria das vezes, para as partes prejudicadas.

5.1 Pensando política no Brasil nos anos 1980

O cinema brasileiro constrói uma forte tradição política a partir dos anos 1950, com filmes que passam a discutir, sob o viés do materialismo histórico de Karl Marx251, a realidade de pessoas não privilegiadas na hierarquia social. Tais filmes são frutos de uma conjuntura política, econômica, social e cultural decorrentes da polarização da Guerra Fria e da consolidação da URSS e do socialismo no mundo, bem como da efervescência provocada pelas lutas de independência na África e na Ásia, entre outros, vistos inclusive no cinema mundial, refletidos no Brasil em uma série de questionamentos sob o prisma de um engajamento político de esquerda.

250 ARISTÓTELES. Política, p. 13-6. 251 A ideia de que o desenrolar da História se dá através de confrontos entre diferentes classes sociais – a luta de classes –, por conta da exploração do homem pelo homem. A postura de Marx era contrária à ordem burguesa e a favor dos excluídos.

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À medida que os conflitos na esfera social se acirravam, o cinema de cunho político ganhou força no Brasil, embebidos ainda pela verve nacional-popular252, nas mãos de um grupo de diretores que se aproximaram sob a alcunha de Cinema Novo. O principal articulador do grupo, Glauber Rocha, tinha uma clara defesa do que se pretendia com esse cinema. Diz ele: “Queremos fazer filmes anti-industriais; queremos fazer filmes de autor, quando o cineasta passa a ser um artista comprometido com os grandes problemas do seu tempo; queremos filmes de combate na hora do combate e filmes para construir no Brasil um patrimônio cultural.”253 No livro Revolução do Cinema Novo, escreve ainda, a respeito de 1964: “Hoje, o cinema novo não projeta uma revolução solitária burguesa nas características da nouvelle vague, mas uma revolução social nas exigências do momento em que vive.”254 Dentro do escopo do cinema político brasileiro estavam, então, a relação explorador-explorado, personagens e comunidades marginalizados socialmente pelo viés financeiro (favelados, retirantes e migrantes nordestinos, aldeia de pescadores etc.), a ressignificação de figuras socialmente condenáveis (o cangaceiro, o ladrão de pequena envergadura etc.), o retrato da corrupção do burguês, do industrial e/ou do mandatário, entre outros. A partir dos filmes, depreende-se ainda uma valorização do campo e das tradições populares e folclóricas – o Brasil autêntico – em detrimento da urbe e sua modernização industrial – o Brasil fabricado aos moldes do capital estrangeiro. Ou seja, a questão basilar era a identidade do povo brasileiro. Ismail Xavier aponta: Complicada e contraditória, a questão da identidade, de diferentes modos, marcou o cinema que queria discutir política, ganhando maior relevo à medida que o país foi se enredando num movimento heterônomo de modernização que se mostrava em descompasso com as ideias de transformação e justiça social vinculadas aos projetos de liberação nacional que mobilizavam os jovens de esquerda.255

A prerrogativa desse cinema político – engajado, de esquerda, voltado para a narrativa marxista – continuou pautando a produção cinematográfica até meados dos anos 1990. Ou seja, pensar e aceitar um cinema político só é possível quando lida com questões

252 O binômio nacional-popular moldou boa parte da produção cultural dos anos 1960. O nacional referia- se ao intento de se opor aos padrões do sistema cinematográfico hollywoodiano, valorizando uma forma nacional, bem como priorizando os temas essencialmente brasileiros e a língua portuguesa como falada cotidianamente no país. O popular refere-se à inspiração no povo, sendo sua voz. 253 Glauber ROCHA. Revolução do Cinema Novo, p. 52. 254 Ibidem, p. 60. Rocha afirma que o Cinema Novo surgiu da crise geral da arte brasileira, em que a crise da literatura coincidiu com a crise política, e, diz ele, à época da Revolução Cubana, em 1959, existia apenas “uma imagem raquítica de política e filmes”. Por conta disso, “o filme brasileiro se incorporou à política e tende, neste processo, a influenciar o processo dialético da História”. Id. 255 Ismail XAVIER. O Cinema Brasileiro Moderno, p. 22.

203 voltadas às desigualdades sociais de classe. Por isso, nos anos 1980, apenas filmes como os citados no início do capítulo eram associados – pelos diretores e pela intelectualidade – à ideia do cinema com função social, deixando de fora filmes como Vera e Anjos da Noite, tratados no capítulo anterior como um cinema que buscava maior ligação com o público, e hoje tidos como filmes que esboçavam uma tendência política e de denúncia a problemas sociais. Tais discrepâncias quanto ao conceito do que é político se deve à transformação operada nos últimos 40 anos no arcabouço teórico. Renato Luiz Pucci Jr. explica: Esse tratamento da questão das disparidades de classe, que a esquerda tradicional ressaltou durante décadas como o problema fundamental do Brasil, é sintomático da posição do pós-modernismo quanto à política. Trata-se de recusar uma das ‘grandes narrativas’, ou seja, o discurso de fundo marxista que coloca a luta de classes e a revolução no centro da História, e que pretende tudo explicar através dessa preposição totalizadora. Em troca, surge a preocupação com questões antes consideradas irrelevantes. Considere-se o realce quase absoluto que há em Terra em Transe sobre a questão de classe, que fundamenta o discurso glauberiano acerca da nação: ali não se desenvolvem questões ‘menores’, como a do negro, da mulher ou do homossexual. A alegoria volta- se inteiramente para a grande política, isto é, para as questões do poder de Estado, da luta de classes, da dominação do povo.256

Ainda que o considerado cinema político, até meados dos anos 1980, tenha trabalhado a questão do negro e do nordestino, sempre a partir do viés da exploração e da dominação, a mulher e o homossexual, por exemplo, eram excluídos do debate – e, curiosamente, o/a homossexual era personagem bastante presentes nessas produções não vistas como políticas, mesmo que não sempre como o cerne do longa, mas certamente para além do viés de escárnio do retrato das comédias de costumes e das produções televisivas. Isso pode ser verificado no texto de Lúcia Nagib que introduz seu livro sobre a utopia no cinema brasileiro da Retomada. Segundo a autora, nos anos 1980, um núcleo sediado no bairro da Vila Madalena, em São Paulo, produzia filmes urbanos, “aparentados à produção pornô da Boca do Lixo e concebidos enquanto paródias e citações do americano”. Para ela, predominava neles “o efeito cintilante do neon, iluminando cinefilias nostálgicas em cenários artificiais, em que o lúdico dos quadrinhos e das ‘diversões eletrônicas’ permanecia alheio a determinações culturais nacionais”257. Ou seja, há uma desqualificação de qualquer registro de cunho político ou social nessa produção, mesmo a autora citando uma mudança na perspectiva do engajamento a partir

256 Renato Luiz PUCCI Jr. Cinema Brasileiro Pós-Moderno – O Neon-Realismo, p. 155-6. 257 Lúcia NAGIB. A utopia no cinema brasileiro: matrizes, nostalgia, distopias, p. 16.

204 dos estudos culturais, dando margem à manifestação de minorias étnicas e sexuais, nos anos 1990, com a Retomada. É compreensível. Ainda que uma ideia vaga e pouco efetivamente estudada do pós-modernismo fosse bastante presente no discurso midiático dos anos 1980, aproximando parte dos filmes pelo artificialismo, entre outros, a incorporação dos estudos culturais como parte da ressignificação do pensar o mundo não fazia parte do repertório. Os estudos culturais, aliás, que voltaram os olhos para outras percepções de identidade258, só foi institucionalizado e mais largamente debatido na academia brasileira em meados dos anos 1990. Para Linda Hutcheon, segundo Pucci Jr., questões como as de raça e de orientação sexual, antes menosprezadas, passam a fazer parte do domínio do político, assim como que “a oposição à política da esquerda tradicional não resulta em despolitização, mas numa política heterogênea”259. A ausência de percepção política em tais filmes não se restringia aos discursos midiáticos e intelectuais, como também às falas dos próprios cineastas quando reportavam, em entrevistas e afins, suas intenções. Sérgio Toledo, ao fazer Vera, não se interessava em discutir a questão homossexual, por exemplo260. Ícaro Martins, ao lado de José Antônio Garcia, trouxe para o centro de seus filmes a sexualidade da mulher e do homossexual, mas ainda assim não vê seus filmes como políticos. Ele explica: Pegamos o final da geração anterior à nossa sendo destruída. Isso deixou todo mundo com um pé mais atrás. Você não vai entrar numa coisa em que todo mundo está morrendo. A gente viu a guerrilha sendo aniquilada. Ao mesmo tempo, lembro, fui às primeiras manifestações em 1976, o ato público pela morte do Herzog. No cinema, tinha uma proposta de não entrar na política diretamente, não é o tema mais aparente dos filmes. E mesmo quando abordava comportamento, minorias, não era defesa de direitos de minoria, era ‘vamos tentar ser o mais livres possível’.261

Roberto Gervitz, que ao lado de Toledo, começou com um documentário militante e engajado (Braços Cruzados, Máquinas Paradas), vê outra razão para parte dessa geração não se interessar tanto pelo cinema político e social e não o priorizar em seu

258 “A questão da identidade está sendo extensamente discutida na teoria social. Em essência, o argumento é o seguinte: as velhas identidades, que por tanto tempo estabilizaram o mundo social, estão em declino, fazendo surgir novas identidades e fragmentando o indivíduo moderno, até aqui visto como um sujeito unificado. A assim chamada ‘crise de identidade’ é vista como parte de um processo mais amplo de mudança, que está deslocando as estruturas e processos centrais das sociedades modernas e abalando os quadros de referência que davam aos indivíduos uma ancoragem estável no mundo social.” Cf. Stuart HALL. A identidade cultural na pós-modernidade, p. 7. 259 Linda HUTCHEON. The Politics of Postmodernism, p. 49, e Poética do Pós-Modernismo, p. 66, 247- 8, apud Renato Luiz PUCCI Jr. Cinema Brasileiro Pós-Moderno – O Neon-Realismo, p. 157-8. 260 Em entrevista ao autor em 11 de março de 2015. 261 Em entrevista para o autor em 24 de setembro de 2014.

205 escopo fílmico (Feliz Ano Velho, de Gervitz, por exemplo, traz personagens às voltas com a repressão política, mas esse não é o cerne da ação). Diz ele: Acho que o cinema brasileiro começou a descobrir outros temas. O cinema não pode ser monotemático. O Cinema Novo teve isso, foi um momento específico da história do cinema brasileiro, precisou marcar essa posição, revelou o cinema político. Uma cinematografia que só faz cinema político, só faz um tipo de cinema, é um puta pé no saco. Não existe, é muito pobre. Foi um choque ver que os filmes não seguiam uma tradição que se esperava que seguissem. Acho que também tivemos uma ressaca da política, porque fomos tão políticos, nos envolvemos tanto, que uma hora basta, vamos viver a democracia. A vida é feita de outras coisas também.262

Nesse sentido, vale relatar uma anedota do cineasta João Batista de Andrade, um dos mais engajados politicamente na produção paulista, não só com longas, mas especialmente com curtas, documentários e programas televisivos. Andrade lecionou Realização Cinematográfica no curso de Cinema, da USP, entre 1969 e 1978. A partir de 1972, ele queria que os alunos desenvolvessem um trabalho documental, que procurassem descobrir o Brasil que, segundo o cineasta, estava despontando nesse início de redemocratização. Eu queria que os alunos pegassem as câmeras e fossem filmar as pessoas, os bairros, descobrir as questões sociais. Eu era extremamente crítico na avaliação dos trabalhos que a maioria realizava, achava-os alienados demais para o momento em que estávamos vivendo. As aulas, então, se tornavam uma discussão sem fim, muitas vezes acalorada. O que eu custei a ver, na verdade, foi que a abertura, para a maioria dos alunos, despertava a vontade de outro sentido de liberdade, o de tentar outros caminhos, outras formas, não exatamente no sentido ‘militante’ que eu dava ao meu trabalho nos primeiros anos de TV, na Cultura. E nem documental: a ficção os atraía mais.263

A fala de Andrade demonstra como, até o fim dos anos 1980, o cinema político era visto, preso à esquerda tradicional e seus temas, militante e crítico.

5.2 As discussões políticas da geração paulista de 1980

Assim como parte do cinema paulista se dedicou a mostrar uma São Paulo metropolitana, outra parte se voltou para os contínuos problemas relacionados ao campo, seja na realidade rural enfrentada no passado e no presente, seja na decorrência desse mundo na urbe. Hermano Penna, por exemplo, tentou entender suas raízes, o pensamento do homem sertanejo, em Sargento Getúlio, que versa sobre a mudança na ordem política no

262 Em entrevista para o autor em 16 de janeiro de 2015. 263 Maria do Rosário CAETANO. João Batista de Andrade: alguma solidão e muitas histórias, p. 373.

206 final dos anos 1940 e a diminuição do poder do coronelismo. Penna, como seus predecessores, ainda investiga a formação política e social do sertão nordestino tomando como base um policial que não sabe interpretar as transformações do jogo político – e, por consequência, de sua própria existência como ser social. O cineasta faz, no filme, um ajuste de contas com a origem de uma parte do Brasil. No filme seguinte, Fronteira das Almas, Penna se debruçou sobre uma questão ainda muito pouco discutida no Brasil, a colonização da região Norte e os muitos conflitos de terra. O cineasta conhecia bem a Amazônia e se baseou em sua percepção sobre as famílias nordestinas que chegaram no sul do Paraná para colonizar, onde receberam as terras. Depois foram pelo sul do Mato Grosso e a última fronteira era Rondônia. Por isso, incialmente, o longa se chamou Agora Será como Sempre? O filme traduz uma ideia sobre esse processo: o governo chama, as pessoas vão, lutam contra os índios, destroem as florestas e, quando está tudo pronto, vem alguém mais poderoso e tira deles a terra. Para Penna, Fronteira das Almas esboça uma preocupação latente ainda não concreta: “O filme aponta para um futuro em que o parceleiro do Incra e o posseiro serão expulsos de suas terras e é exatamente o que aconteceu. O filme termina com ele dizendo ‘nós vamos invadir umas terras’.”264 Naquela época, o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem- Terra (MST) estava começando a se organizar e não havia invasões de terra. Para além do tema, Penna faz questão de imprimir um tom crítico de denúncia contra o sistema que oprimia e se aproveitava desses trabalhadores – como é crítico também à condição de Getúlio, no primeiro longa. Seus filmes tem um objetivo para além do espectro artístico ou comercial e defendem claramente um ponto de vista. São filmes combativos, com o objetivo de provocar um debate social. Penna afirma: “[Me interessava fazer um cinema] político, militante. Sempre me interessa falar sobre o que não falam, sobre o que não dizem. Sempre. São filmes que buscam ser cinema, mas sempre tem aquela coisa do cinema humanista em que fui formado e vou morrer assim.”265 Para ele, inclusive, o cinema que faz está diretamente ligado ao Cinema Novo enquanto proposição: Sabia que [Aos Ventos que Virão (2013), escrito nos anos 1980] era um filme um pouco velho na estrutura, tanto que todo mundo associou ao Cinema Novo. Era Cinema Novo mesmo, eu quis fazer Cinema Novo, quis fazer o projeto que estava na Embrafilme há 35 anos. Mesmo porque acho que 35 anos em termos de cultura é uma mosca. Tô dizendo que nós vamos descobrir, no futuro, que

264 Em entrevista para o autor em 05 de março de 2015. 265 Id.

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todos os filmes feitos aqui eram Cinema Novo, daqui 70, 80 anos. Que visão se terá?266

Em artigo da época, coescrito com Antonio de Pádua e Denise Banho, o cineasta defende inclusive uma nova tendência, uma síntese entre o cinema dos anos 60 e dos anos 70, “fundindo a importante experiência de renovação de linguagem e atuação política”. Nos anos 1980, os filmes poderiam ser ao mesmo tempo “populares e críticos”, “criativos e comunicativos”, “políticos e industriais”267. Ainda que Penna tenha construído sua carreira em São Paulo, apenas trechos de Mário (1999) se passam na cidade. Todos os demais se passam no campo, seja no sertão, seja na floresta. A verve militante do cineasta se fez presente em quase todos os trabalhos, mas nenhum tão enfaticamente quanto em Fronteira das Almas. No longa, mesmo que não seja central à discussão, retrata-se o migrante brasileiro, que sai de sua terra natal em busca de melhores condições, já que parece insustentável permanecer em seu local de origem. A migração sempre foi um tema presente no cinema político brasileiro, mas raramente ela era concretizada. Os retirantes erravam pelas terras ermas. Entre 1960 e 1980, o êxodo rural se acentuou. O destino desses migrantes foi as grandes cidades e São Paulo abrigou muita gente, que dificilmente foi bem recebida. É a migração que guia Noites Paraguayas e A Hora da Estrela. No primeiro, um guarani paraguaio, no segundo, uma nordestina. Nos filmes, por interesses espúrios, não conseguem se adaptar e por isso precisam sempre se mover, sem criar raiz. Nos dois longas, o campo e a cidade se encontram, mostrando o conflito de duas tradições díspares. As motivações para seus diretores, porém, são diferentes. Aloysio Raulino se interessava em discutir e discorrer sobre as relações entre os povos latino-americanos e ao mesmo tempo contribuir para a reavaliação, em curso, da história das relações Brasil- Paraguai268. Entender o protagonista Rosendo era entender as diferenças culturais e descobrir porque o Brasil se tornou o que era em 1980. Ele afirma: (...) eu queria mostrar o itinerário de um migrante latino-americano que resolve abandonar o campo, partir para a capital de seu país e, depois, para a maior cidade da América do Sul, São Paulo. Queria também remexer políticas transculturais. E aí está o mote do meu fascínio pelo Paraguai: lá o colonizador espanhol não conseguiu destruir a cultura primeira – a dos guaranis. Ainda hoje a cultura guarani se mantém íntegra no País. A maioria da população não fala espanhol.269

266 Id. 267 Cf. Associação Paulista de Cineastas. Boletim nº 15. 268 Cf. Pedro del PICCHIA. O primeiro filme falado em guarani. 269 Maria do Rosário CAETANO. Contracultura na barra pesada.

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Para o cineasta, no campo paraguaio viceja uma cultura forte, orgânica, a cultura guarani, enquanto em São Paulo, o imigrante encontra uma cidade de cultura estilhaçada. A dualidade entre campo e cidade só existe para coroar a autenticidade do primeiro: um lugar melhor para se viver, apesar das condições minguadas financeiras, acentuadas pelo capitalismo predatório – que mal espera o pai de Rosendo morrer para especular sobre a propriedade. Já Suzana Amaral, em A Hora da Estrela, não se preocupa propriamente em falar sobre a migração. Esse não é o tema principal para a diretora. Mas o retrato de Macabéa vislumbra o processo de adaptação de alguém de origem nordestina e pobre numa cidade grande e hostil. A diferença está no tratamento formal. Enquanto Penna e Raulino tem um discurso enfático sobre o objeto, Amaral se volta para o íntimo da personagem. É um filme de cunho existencial sobre uma realidade social brasileira muito premente na época, mas não deixa de relativizar e refletir sobre um tema candente. A Hora da Estrela não era visto como um filme político pela diretora270 e nem pela crítica271, por não apresentar uma abordagem nacionalista, combativa e engajada, tanto no longa, quanto nas falas de Amaral. A Hora da Estrela parte de um desconforto da diretora, mas traz esse signo forte ao cinema político brasileiro. Outros filmes paulistas da época abordaram o migrante nordestino, como O Homem que Virou Suco e O Baiano Fantasma – os três, aliás, com José Dumont –, porém, por conta das trajetórias dos diretores, entre outros motivos, sempre foram vistos como um cinema social. A principal diferença de A Hora da Estrela para esses dois filmes talvez seja o protagonismo feminino, ou, ainda, o olhar feminino para a questão da migração. Em certo sentido, A Hora da Estrela se comunica mais com Vera pela abordagem de uma questão indentitária. Em compensação, a principal diferença talvez seja o registro – não só entre Vera e A Hora da Estrela, como para, de maneira genérica, o filme popular e o filme político. Enquanto aquele se especializou no tom lúdico e no registro artificial da mise-en-scène e

270 “Tenho vontade de falar da mulher, não é uma coisa intelectual, é intuitiva. Aí, depois desse próximo filme [Perto do Coração Selvagem, nunca realizado], eu vou empatar, vou ficar livre de mim. Então imagino que meu terceiro filme poderá ser político.” Cf. Helena SALEM. Um mergulho na alma feminina. 271 Em texto para a Veja, na estreia comercial do filme, Mário Sérgio Conti escreveu: “O maior mérito de A Hora da Estrela é flagrar esses personagens na sua dimensão mais digna e verdadeira – a da emoção – sem fazer panfletarismo político com eles ou usá-los como emblemas de problemas sociais. Nas mãos de Suzana Amaral, eles são pessoas de carne e osso falando do duro ofício de viver.” Cf. Mário Sérgio CONTI. Duro cotidiano. Para Conti, a delicadeza do filme de Amaral, centrado nos problemas de adaptação de Macabéa, desqualifica-o como cinema político.

209 da atuação, este – excetuadas algumas cenas esparsas em Abrasasas, A Hora da Estrela, Noites Paraguayas e os filmes de Bianchi – se apropriou de um registro naturalista. Conforme Ismail Xavier: Em todos os níveis, a palavra de ordem é ‘parecer verdadeiro’; montar um sistema de representação que procura anular a sua presença como trabalho de representação. O uso do termo naturalismo não significa aqui vinculação estrita com um estilo literário específico, datado historicamente, próprio a autores como Emile Zola. (...) Quando aponto a presença de critérios naturalistas, refiro-me, em particular, à construção de espaço cujo esforço se dá na direção de uma reprodução fiel das aparências imediatas do mundo físico, e à interpretação dos atores que busca uma reprodução fiel do comportamento humano, através de movimentos e reações ‘naturais’.272

Tais filmes buscavam, assim, formas de aproximar o filme da realidade, comunicando ao espectador que o longa é uma extensão do mundo em que vive, criando empatia e prospectando questionamentos mais diretos. Ugo Giorgetti, por exemplo, não via razão para outro tipo de registro: “Cinema é naturalismo mesmo, as grandes invenções de linguagem já foram feitas e estão no nível técnico; o sonho de inovar é bobagem.” A clareza da comunicação é uma das tônicas do cinema de Giorgetti. Porém, ao invés de tentar dramatizar a vida de seus personagens, o diretor opta pela casualidade dos eventos, em que os conflitos carregam em si um matiz do absurdo. Giorgetti prefere o tom da comédia irônica, crítica e mordaz. Em seus filmes, ele dá voz a personagens periféricos, tipos não representados no extrato social (“Essa minha opção pelos personagens marginais tem a ver com o fato de achá-los mais ricos, mais curiosos. (...) Prefiro falar deles [dos marginais] que de um burguês em crise de casamento, são menos banais.”273). Porém, as questões sociais e políticas, diferentes dos demais cineastas aqui trabalhados, nunca perpassam a superfície. Não se discute a luta de classes ou a exclusão social. A abordagem do diretor é quase antropológica: tais temas são apreendidos das situações em que os personagens se encontram, do subtexto das trivialidades que falam. A ausência de engajamento e de denúncia, que para o cineasta tem um motivo específico (“não estou interessado em integrá-los, não tenho pena deles”), fazem seus filmes mais diferentes do cenário do cinema político dessa geração, não apenas pelo conteúdo, mas pela forma. A isenção frente a seus personagens permite ironiza-los todos e todas as situações. Tematicamente, Hermano Penna é o cineasta que mais se identifica com a tradição do cinema político brasileiro, em especial com o Cinema Novo. As questões caras a Penna

272 Ismail XAVIER. O discurso cinematográfico: a opacidade e a transparência, p. 41-2. 273 Luís André do PRADO. Ugo Giorgetti, uma festa de humor bandido.

210 são as mesmas. Porém, uma das premissas do movimento era a estética: fazer um cinema revolucionário tanto no conteúdo quanto na forma. Sérgio Bianchi não se aproxima do Cinema Novo nem em conteúdo e nem na forma, mas sim na premissa. Seu estilo é diretamente ligado ao teor de seus filmes. O discurso do cineasta, porém, aplica-se mais ao anarquismo do que ao marxismo, assim como sua narrativa bebe na fragmentação anárquica do Cinema Marginal. Bianchi é também o cineasta que se faz mais enfático textualmente nos filmes. Seus personagens são verborrágicos, destilam críticas e comentários ardorosos sobre inclinações políticas, sociais e econômicas, entre outros. Seu cinema é também essencialmente urbano e cosmopolita – ainda que as questões indígena e ecológica perpassem seus filmes. Não lhe interessa a lógica nacional-popular: “Não se trata de nacionalismo babaca, aquela coisa da década de 60 de adorar Mestre Vitalino ou cultura rural. Trata-se de tentar entender a nossa realidade, que é tão ampla, tão louca. Para que ficar atrelado à realidade americana ou europeia?”274 Seu tom combativo, inclusive, vem de um descontentamento com a realidade e a perspectiva de imobilidade e de perpetuação dos problemas. As dificuldades com a política cultural também afetam seu discurso e sua proposta de cinema (“Já pensou se uma pessoa faz um filme arriscando dizer coisas e esse filme dá dinheiro, é bonito, inteligente e faz sucesso, o que vai ser desses quilos de intermediários do funcionalismo público que se atravessam pelo caminho do cinema brasileiro?”275), por considerar que as medidas oficiais trabalham contra seu projeto de cinema. Diz ele: “Eu gostaria de um dia fazer um filme leve. Gostaria mesmo, até histórias de amor, esperançosas, otimistas, seria uma sensação boa. Mas eu precisaria me sentir assim, precisaria viver num país que tem um projeto cultural.”276 Mesmo com concepções diferentes de cinema, é curioso notar a influência do cinema político dos anos 1960 na formação desses diretores. O mais novo dos cinco, Aloysio Raulino, nasceu em 1947 e tinha 17 anos quando do Golpe Militar em 1964, portanto, já entrava na vida adulta. Todos eles – Sérgio Bianchi, Hermano Penna, Aloysio Raulino, Suzana Amaral e Ugo Giorgetti –, ainda que só começando carreira no longa- metragem nos anos 1980, presenciaram a efervescência cultural dos anos 1960 e acompanharam o desenrolar da ditadura militar com idade para ter melhor formação

274 Lúcia NAGIB (org). O Cinema da Retomada – Depoimentos de 90 cineastas dos anos 90, p. 115. 275 Eva SPITZ. Denúncia no cinema. 276 Lúcia NAGIB (org). O Cinema da Retomada – Depoimentos de 90 cineastas dos anos 90, p. 119.

211 crítica. Dos que se voltaram para um cinema menos politizado, apenas Djalma Limongi Batista, Walter Rogério, Wilson Barros e Chico Botelho nasceram nos anos 1940 – o mais velho, Rogério, é de 1946 –, sendo que a maioria é dos anos 1950, ou seja, eram adolescentes na década de 1960. Esse talvez seja um dos pilares para entender os diferentes caminhos desses cineastas. Estavam, cada qual, preocupados com seu tempo, porém os tempos de cada eram muito diferentes.

5.3 Os diretores e seus filmes

Para entender melhor como o cinema político se desenvolveu na geração de 1980, em São Paulo, ponderamos sobre os oito filmes citados no início do capítulo.

5.3.1 Sérgio Bianchi

Durante a adolescência, Sérgio Luís Bianchi (Ponta Grossa, 1945) assistiu a quase todos os filmes que estrearam na cidade onde nasceu e cresceu. Seu avô, o fotógrafo Luís, fundou em 1909 a Foto Bianchi, que se tornou o negócio familiar, passando para seu pai, Rauly, e depois para seu irmão, Raul, que a manteve até pouco antes de seu falecimento em 2002. Aos 17 anos, Bianchi fugiu de casa e se estabeleceu em Curitiba, quando começou a fotografar, influenciado pelas atividades familiares. “Tinha uma ânsia de criar coisas, de me exprimir”277, conta. Começou no cinema ainda em Curitiba ao trabalhar como assistente de produção e ator em Lance Maior (1968), de Sylvio Back. Em 1969, ingressou no curso de Cinema da USP, pelo qual dirigiu o curta Omnibus (1972), adaptado de Julio Cortázar. No período como estudante, atuou como crítico da Folha da Tarde, em 1970, e fez assistência de direção para Maurício Rittner em Uma Mulher para Sábado (1970), Regina Jehá em Bexiga, Ano Zero (1971) e Mário Kuperman em O Jogo da Vida e da Morte (1971), entre outros. Durante os anos 1970, trabalhou como fotógrafo e em filmes institucionais e publicitários. Realizou em seguida A Segunda Besta (1977), novamente a partir de Cortázar. Ainda em 1977, iniciou as filmagens do longa Maldita Coincidência (1980), sob o título Casa de Deus – que também se chamou Um Caso de Sujeira. Na primeira etapa, em outubro e novembro, Bianchi filmou sem dinheiro, com rolos de película 16mm

277 Lúcia NAGIB (org). O Cinema da Retomada – Depoimentos de 90 cineastas dos anos 90, p. 114.

212 doados e sem ninguém receber. Filmava-se de acordo com a disponibilidade do elenco. O fotógrafo Pedro Farkas emprestou seu equipamento para o longa e Bianchi, para pagar sanduíches para a equipe e o elenco, vendeu diariamente, após as filmagens, rifas para um anel de ouro que ganhou de uma amiga. Sem verba, o filme foi interrompido, sendo retomado apenas em maio de 1978, quando foi contemplado pelo convênio da Embrafilme com a SEC-SP, na categoria para acabamento de filmes de longa-metragem. Por conta disso, em abril de 1978, o cineasta fundou sua empresa Sérgio Bianchi Produções Cinematográficas. O grande número de profissionais no filme se deu por conta da falta de verba e das interrupções no processo. Maldita Coincidência acompanha 22 personagens que residem em um castelinho abandonado na Av. Brigadeiro Luís Antônio, construído no século XIX278, em 1973. A casa recebe um comunicado da prefeitura dizendo que, caso o lixo acumulado não seja retirado, o local será fechado. O longa mostra o dia na vida de todos os moradores da casa, com suas idiossincrasias e ideologias. A reunião para debater o lixo fica marcada para o dia seguinte, quando, após discursos conflitantes, um personagem portando uma espada, na impossibilidade de consenso, crava-a no chão e todos eles são dizimados. Bianchi se baseou em uma experiência pessoal de quando morou em Londres. Havia uma lei dos anos 1940, a Scotia Law, que permitia viver em uma casa abandonada, sem pagar nada, mas o Estado não recolheria o lixo produzido por ela – e, segundo o cineasta, por isso o jogavam pela janela. Para ele, o filme é realista e trabalha conceitos que formulou quando conviveu com hippies, freaks e marginalizados diversos, figuras representativas do início dos anos 1970. O longa foi feito sem roteiro, estruturado a partir da improvisação e livre criação dos atores, dos espaços que ocupavam e da simbologia dos arcanos do tarô279 - tinha personagem que representava o diabo, o enforcado etc. O cineasta tinha apenas a premissa e o fechamento da história. Para Bianchi, em O Globo, o importante “é que o filme busca sair do marasmo criativo que está se generalizando no cinema”280. Na primeira cena, o cineasta assinala o tom que guia Maldita Coincidência. Em um plano aberto, congelado, vemos Patrício Bisso, com um vestido roxo e um véu cobrindo-lhe a cabeça, enquanto correm os créditos. Em seguida, com a cena em movimento, ele se dirige ao espectador: “Você veio assistir (risos), então sente-se.” Corta-

278 A casa, então tombada, pertencera ao poeta e médico Martins Fontes. 279 Conjunto principal das 22 cartas do tarô, em que cada arcano retrata uma cena e uma simbologia. 280 Miguel PEREIRA. ‘Maldita coincidência’, os anos 70 num filme do novo cinema paulista.

213 se para um plano médio, ao som de uma música instrumental, em que Bisso descobre o rosto e começa a dançar um balé. Tal fragmento alterna o plano aberto, estático, e o médio, acompanhando o bailado do ator. O que se seguem são planos que situam a casa e a leitura da carta da prefeitura, apresentações do espaço e do mote da trama. A cena de Bisso não tem relação nenhuma direta com que vem na sequência seguinte e o personagem só volta a aparecer brevemente com 50 minutos de projeção, trajado da mesma maneira, comendo uvas, e no fechamento. O seguimento de abertura, episódico, introduz um personagem à margem, não reconhecido pela sociedade, e atrelado à contracultura, tipo que domina a trama de Maldita Coincidência. No conjunto do filme, aponta para a influência do Cinema Marginal, de estrutura narrativa livre, em que a imagética traduz uma contestação do cineasta e de seus atores. A cena, irreverente, aparentemente desconexa, apresenta estranheza. Primeiro, por conta da imagem congelada de Bisso com um pano na cabeça; depois, por revelar que é um homem com um vestido e maquiagem, fugindo do que se pressupunha normativo – contesta-se, assim, a natureza da moral e dos costumes, especialmente pensando-se num filme realizado durante o Regime Militar.

Figuras 50 e 51 – O estranhamento e a irreverência da imagem de Patrício Bisso, abrindo Maldita Coincidência

Tal contestação do socialmente aceito permeará todas as imagens do filme, muitas delas acompanhadas de um discurso anárquico e incrédulo a qualquer sistema político em voga no Brasil daquela época – verve, inclusive, que domina todo o cinema de Bianchi, que questiona os discursos institucionalizados tanto da direita quando da esquerda. Em determinado momento, por exemplo, o personagem de Luiz Roberto Galizia discursa frontalmente a câmera – já quebrando também uma normativa do cinema narrativo de cunho mais clássico: Não tem essa de direita, esquerda. O que importa é o avesso. Porque no fundo é tudo a mesma coisa. O que atrapalha tudo é a falta de comida. A natureza acaba, não é uma coisa inesgotável, uma coisa que não acaba nunca. Não tem

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essa de, como Lavoisier dizia, que na natureza nada se perde, tudo se transforma. Aliás, tudo se transforma, mas se transforma em lixo.

Bianchi também faz uso de legendas que complementam a cena, como se o cineasta estivesse comentando sobre como vê os personagens – em textos que contradizem o discurso verbal – ou aludindo à construção do filme – como, por exemplo, quando a alternância de ângulos sobre uma cena e uma música de mistério são acompanhadas da legenda “Cinema Americano”.

Figura 52 – A inserção de legendas em Maldita Coincidência como comentário extradiegético

Nos filmes de Bianchi, a política é deslocada das convenções para um outro lugar de engajamento – um engajamento como performance, em que o ator carrega a política nos atos e nos gestos, seja no consumo de drogas ou no sexo libertário, no caso de Maldita Coincidência, por exemplo. O cineasta também contesta seus personagens, reforçando certas atitudes através da repetição, caso da personagem que abandona as drogas porque lhe fazem mal e substitui pela comida macrobiótica, que se torna uma obsessão. A questão ecológica é um dos temas mais presentes no longa, a começar pela própria ideia do acúmulo do lixo, que polui o espaço de convivência. Em determinado momento, um hippie pergunta ao personagem de Galizia se pode pegar alguns pedaços de madeira que estavam no lixo para fazer uma fogueira e cozinhar. Galizia responde que não, que não poderia mexer no lixo, porque era a única coisa acabada na casa. Em compensação, permite que o hippie corte e use a madeira das árvores da propriedade. Ou seja, o personagem que aponta que tudo se transforma em lixo, acabando com a natureza, não permite que se recicle e propaga a ideia de destruição da natureza. Pouco depois,

215 enquanto uma personagem arranca plantas e árvores da terra, com um som de choro de bebê extradiegético, uma voz em off diz que “a ecologia caminha pela escuridão”. No longa, não há um discurso unificado, um ponto de vista defendido, e sim uma profusão de olhares sobre o mundo, muitos dos quais se confrontam, num espaço limitado e alternativo, nada usual, uma comunidade anarquista, e numa estrutura fragmentada281. Em reportagem da Folha de S.Paulo de 1978, Bianchi apontou que cada personagem tem uma história e uma loucura que é sua individual e, na vida em comum no casarão, surgem as inter-relações destas loucuras particulares. Diz ele: No começo dos anos 70 ocorreu um estouro de contestações. Cada um via erros e ia contra, a seu modo. Hoje alguns deles estão com as velhas gravatas dos seus pais e avós. Cada personagem pode ser uma destas várias formas de contestação, mas colocadas num ambiente comum vivendo juntas um cotidiano carregado da mesma loucura que caracteriza a época que vivem.282

Ao final da trama, quando discutem, enfim, sobre o destino do lixo, as contradições se tornam mais evidentes. Quando Galizia fala da necessidade de organizarem o lixo, por exemplo, logo apontam que não basta organizar o lixo, é preciso dar um sentido ideológico, uma motivação à atividade, ao que ele retruca que “sentido ideológico é ação”. Bianchi confronta duas posições das esquerdas – a ideologia antes da ação e a ação como ideologia – e aponta para o esvaziamento do discurso, pois inconclusivo, impossível de ser concluso. Os personagens deliram, discutem, propõem, mas, diante do impasse e da falência de se organizarem democraticamente, só a implosão/destruição parece possível. Após a espada explodir os personagens, Sérgio Mamberti – um dos residentes – ensina, para a câmera, a fazer um coquetel molotov, dizendo que sua receita é muito melhor. Com encenação debochada, Mamberti diz que a arma representa o “suicídio revolucionário”. Mesmo com o fim da trama, o filme continua em episódios desconexos. Segue com Sérgio Bianchi em cena, conversando com uma das personagens do longa, contando reminiscências, e depois com a atriz e militante política de esquerda Lélia Abramo falando sobre o papel do trabalho na sociedade283. No trecho, ela discorre sobre

281 Para Jean-Claude Bernardet, em texto para a Filme Cultura, a falta de um discurso unificado é a própria base do filme: “[Diz-se que] Maldita Coincidência é desorganizado, parte em todas as direções e não vai para nenhuma. Ao contrário: é um filme estruturado, cuja estrutura é a fragmentação; fragmentação essa que está desesperadamente em busca de uma ordem, de uma unidade, de uma coerência.” Cf. Jean-Claude BERNARDET. Maldita Coincidência, Eles não Usam Black-Tie, p. 74. 282 C. M. A “Casa de Deus” em SP. 283 Bianchi conta que a ideia da cena final com Lélia, uma pessoa que ele admirava, surgiu na montagem, ao ver que certas ações se repetiam entre os personagens. A partir disso, quis que Lélia falasse sobre a função do trabalho para a humanidade. A fala foi filmada sem roteiro e sem corte, improvisada por ela.

216 a importância do trabalho e como ele só é válido como prazer, não como imposição. A sequência justifica o caráter libertário do próprio filme, de seu projeto enquanto cinema livre, coletivo, colaborativo, anárquico, feito de maneira experimental e amadora – no sentido de amor ao projeto, desvinculado de dinheiro. A demora para finalizar o longa, segundo o diretor, decorreu da demora de quase três anos para a liberação do orçamento de Cr$ 2,2 milhões pela Embrafilme. Pronto em 1980, Maldita Coincidência ficou preso na censura federal, que atravancou o lançamento ao propor liberação para comercialização apenas com corte de oito minutos do longa. Após negociações, Bianchi conseguiu lançar em setembro de 1981, no Cine Groff, em Curitiba, com dois minutos de corte. O filme chegou em São Paulo em 30 de outubro, na sala B do Cine Arouche, onde ficou um mês em cartaz, e no Rio de Janeiro em 16 de junho de 1982, no cine Cândido Mendes. Até março de 1984, o longa foi visto por 4131 espectadores, segundo a Embrafilme. Após Maldita Coincidência, Bianchi realizou os premiados Mato Eles? (1982), média documental sobre a questão indígena no interior do Paraná, Divina Providência (1983), curta sobre a burocracia governamental, e Entojo (1985), curta que versa sobre ecologia. Em 1986, o cineasta iniciou as filmagens de seu segundo longa-metragem, Romance (1988), que teve interrupções, atrasando o término do projeto, montado em 1987 por Marília Alvim. Em Romance, a morte inesperada do intelectual de esquerda Antônio Cesar (Rodrigo Santiago), que preparava um livro em que denunciava um escândalo internacional vinculado a autoridades políticas brasileiras, repercute em três pessoas que com ele se relacionavam. Regina (Imara Reis) pesquisa a relação entre cultura e poder a partir da obra do intelectual e parte à procura de informações que desvendem o escândalo. Fernanda (Isa Koplemann), amante de António César, crê no amor ao próximo e tenta viver dentro desses parâmetros, mas se perde e se vê mergulhada na angústia. André (Hugo Della Santa), homossexual e amigo, entrega-se à libertação sexual. Todos enlouquecem frente ao legado de Antônio Cesar. Fernanda não suporta e se mata. Soropositivo, André entra em depressão e só encontra conforto no sexo furtivo com estranhos. Regina, após ficar paranoica, achando que querem matá-la, aceita um emprego na Secretaria da Cultura do Paraná, curando o museu dedicado a Antônio Cesar construído pelo Deputado Tavares (Sérgio Mamberti), o principal suspeito de ter mandado matar Cesar e ter sumido com seu livro.

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Se em Maldita Coincidência era possível vislumbrar o confronto de ideias políticas e a descrença no sistema, em Romance isso se torna evidente e é o mote do filme. A fragmentação narrativa permanece, mas com uma trama muito mais complexa e articulada. O registro cínico, irônico e satírico, entre o realismo e o histriônico, dá o tom da encenação, questionando a veracidade de todas as imagens apresentadas e todos os discursos proferidos. É um cinema combativo, que denuncia as hipocrisias da direita e da esquerda, pelo qual ganhou a pecha de polemista e provocador. Tais características, ensaiadas em Maldita Coincidência e delineadas em Romance, guiarão todos os trabalhos seguintes do diretor, com exceção de Os Inquilinos (2009). Romance apresenta diferentes pensamentos. Está no centro Antônio César, evocado em flashbacks ou em vídeos/filmes caseiros, em que fala para a câmera, ou em reportagens e afins. As falas dele pontuam toda a trama, de forma a construir o mistério que é sua morte a partir do que critica e discute. As intervenções de Antônio César no filme ora são diegéticas, em que algum personagem se depara com algum registro seu ou abre espaço para alguma lembrança, ora não diegéticas, colocadas por Bianchi, como se fosse um complemento à narrativa. Sabemos dele ainda por relatos de terceiros, que ajudam moldar sua figura, na esfera pública e privada. César parece carregar um discurso tradicional da esquerda, falando sobre a luta de classes, a exploração dos mais fracos e pobres, o interesse dos mais ricos manterem o status quo e sobre a corrupção dos políticos empossados. Através de Antônio César, Bianchi guia alguns tópicos de discussão. Logo no início do filme, em reportagem televisiva, projetada no velório, o intelectual versa sobre a busca de identidade do brasileiro, ligado ao subdesenvolvimento e ao terceiro mundo, em que a condição do país parece atrelada à luta de classes. Diz ele: “Nos novos tempos, o brasileiro continua procurando sua própria face. É uma face trágica, enegrecida pela fome, desdentada, terrível, mas que está aí, em qualquer esquina, de qualquer rua, de qualquer cidade desse país.” Com cinismo, complementa: “E o brasileiro a carrega como se a miséria fosse um desígnio divino e não o resultado de uma batalha perdida onde outros saíram ganhando. Agora eu pergunto: vai continuar sempre assim?”. Pouco depois, vemos um vídeo dele em que repercute o papel da globalização na dominação sobre as pessoas, a ponto de desqualificar princípios humanos básicos: Como falar em desenvolvimento industrial nesses moldes? O modelo da sociedade americana parece ter acabado definitivamente com o mínimo de bom senso que nos restava. Enquanto naquele modelo, a competição leva sempre ao aumento da produção, a uma melhoria dos produtos, a uma melhoria da vida, o que se passa aqui é ridiculamente diferente. Nós competimos ao

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nível da incompetência. Exportamos soja para alimentar animais, importamos feijão para alimentar seres humanos. Exportamos algodão para ficar sem camisa. Agora, como nós vivemos num mundo de ficção alucinada, é bem possível que nossos economistas pensem que um homem não precisa de comida e nem de roupa para ser feliz.

Em sua pesquisa, Antônio Cesar investiga o Deputado Tavares, do Paraná, corrupto, que se apropria da máquina estatal da Nova República para financiar empreendimentos imobiliários e industriais que o beneficiem às custas da população. Outro ponto evocado por Bianchi através do intelectual é a questão do sexo. Para ele, o prazer carnal voltou a ser um tabu social, especialmente por conta da Aids, doença sexualmente transmissível que aterrorizou o mundo nos anos 1980, quando surgiu em larga escala, sem muito se saber a respeito. Na época, ganhou a preconceituosa pecha de ‘epidemia gay’, por afetar muitos homossexuais. Para Antônio Cesar, a Aids parece carregar um sentido de culpa, dentro de uma teoria da conspiração que promove o ato solitário sexual: Eu não estou falando nada que vocês não saibam, mas nunca é demais repetir. Nos últimos tempos em que vivemos, nessa ridícula política de contenção, nós estamos sendo reprimidos até no nosso próprio prazer. E quando falo de prazer, não estou falando do cineminha, da pizza do sábado. Estou falando do corpo, estou falando da carne. Estou falando de foder. Há um novo moralismo no ar disposto a imprimir aos nossos desejos animais, os nossos desejos naturais, um terrível sabor de doença, de culpa. Há um estímulo descarado à masturbação, à solidão, para que os mecanismos do poder se reforcem através da nossa frustração sexual, do nosso profundo desgosto de sermos animais, trágica e biologicamente necessitados de sexo para sobreviver.

Em Romance, André sofre as consequências da doença284, vitimado pela abstinência, quando, na depressão enfrentada decorrente da morte do amigo e colega de apartamento, encontra-se só e abandonado. Ele deseja a carne, mas, por conta da doença, se vê como um assassino em potencial. Encontra prazer na masturbação, mas um prazer ingrato, triste, sem contato. Ainda tenta pagar um michê, mas desiste. Até que, sem conseguir se conter, procura o local de “pegação” homossexual, escondido, escuro, sob uma marquise, em que estranhos apenas transam. Ele ainda sente culpa por estar lá, apesar de tudo. Fernanda também busca no sexo furtivo uma tentativa de apaziguar a alma, levando desconhecidos para casa. Porém, não consegue se relacionar com eles e enlouquece, sendo internada.

284 O ator Hugo Della Santa, que interpreta André, inclusive, faleceu em decorrência da Aids antes de ver o filme pronto, em 1988.

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Por fim, outro tópico central na concepção do longa é a questão ecológica, em que a natureza cede espaço para as corporações. Novamente o viés marxista acerca da exploração dá a tônica do discurso de Antônio Cesar, em que cada tema, por mais distante e diverso que seja, parece ter a mesma raiz, a eterna luta de classes. Em um filme caseiro, ele profere: É preciso desconfiar sempre, pode ser paranoico – e é –, mas há um verdadeiro complô para acabar com a natureza, com a vida. Desde que, claro, esse complô signifique lucro imediato, dinheiro, grana, e por trás desse complô a cabeça deformada, monstruosa, é a indústria química, é esse o nome. Um lavrador que mal sabe ler e escrever conhece muito bem o nome dos pesticidas, dos defensivos agrícolas, uns nomes bem difíceis até, com que o mandam envenenar suas alfaces e nossos corpos, e quem ensina isso? É o vendedor da casa agrícola, é o agrônomo da casa da lavoura, é o jornal, é o rádio, a televisão, todos, todos devidamente cooptados pelo sistema e cooptados pelo fabricante, todos responsáveis pela nossa morte, pelo nosso lento e irreversível apodrecimento.

O cerne ecológico sempre pautou o cinema de Bianchi, em especial nos anos 1980, quando ele trabalhou a questão indígena, a química e a do desmatamento. Para além do pensamento central de Antônio César, Bianchi pontua o longa com discursos aleatórios, que circundam os personagens, constroem a atmosfera cáustica e complexa de confrontos ideológicos. Fernanda, por exemplo, de maneira completamente deslocada da narrativa e fora de tópico de conversa, fala a Regina: “É bom ser bonito nesse país. E não se esqueça: é muito importante nesse país ser rico, branco, pele clara, olhos azuis, bem educado, perfumado, e, principalmente, ter todos os dentes.” A frase, solta, versa sobre a imagem aceita pelas classes dominantes no Brasil, e se coaduna com a lógica da miséria apresentada pelo amante. Outras ações apontam para um comportamento intolerante de parte da sociedade brasileira. É o caso do taxista que leva Regina. Ele personifica o comportamento preconceituoso da direita, que crê em mandos como “bandido bom é bandido morto”. Diz ele: É uma vergonha, dona, não se pode mais sair na rua sem ser atacado por essa gente. Devia ter lei proibindo. A polícia é que devia estar cuidando dessa gente toda aí. Mas a polícia a senhora sabe como é... a polícia é uma merda. Depois a gente atropela um desgraçado desse e ainda se fode com a polícia. Quem trabalha não tem a menor garantia, viu, dona. Eu, por exemplo, trabalho, e tudo que eu ganho está sujeito a roubo. Tinha que matar essa desgraçada toda aí. Eu ouço cada barbaridade que essa moçada faz no rádio. Se o Brasil fosse um país civilizado, tinha pena de morte. Eu, por mim, matava todos. Matava tudo. Se eu fosse governador de São Paulo, Paraíba não entrava aqui não. Fica tudo por aí, desempregado, sem fazer nada, vira ladrão, vira bandido, marginal.

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Em outra cena, Márcia (Cristina Mutarelli), colega de apartamento de Regina, vai jantar em um restaurante. Em determinado momento, ela reprime o garçom por seu pedido estar demorando muito. Ela humilha o rapaz e pede para falar com o gerente, de maneira repetitiva e insistente, dizendo que ele é garçom e nem para isso serve. A montagem é picotada, constantemente interrompida, porém o plano permanece o mesmo, provocando uma sensação de saltos. Em seguida, uma voz off recrimina Cristina. É Bianchi, dizendo que ela, a atriz, está fazendo a cena errada – criando um efeito de sobreposição entre o extradiegético (a direção de Romance) e o diegético (Márcia no restaurante). A recriminação é a mesma: não sabem fazer direito seu trabalho. Bianchi, assim, aponta efeito cíclico que mobiliza a relação de trabalho, em que a frustração é descontada no próximo de forma renitente. Bianchi ainda se coloca em cena, substituindo Mutarelli, e encenando o que espera dela.

Figuras 53 e 54 – O diretor Sérgio Bianchi assume o papel de Cristina Mutarelli sobrepondo o extradiegético e o diegético, em Romance

O cineasta constantemente questiona todas as posições. Tavares, que se apresenta como bom moço, apesar de investigado por Antônio César, é visto em conluio com outros representantes do poder público para desviar verbas e enriquecer-se a custas dos outros. Há também a desmistificação do intelectual de esquerda, tido quase como um profeta por Regina. Descobrimos, por exemplo, que quem financiava sua atividade era a tia multimilionária, de família tradicional oligarca, que dava a ele uma mesada. César, assim como a tia e sua família toda, nunca teve que trabalhar, por isso ele podia seguir essa atividade. César ainda é retratado como um sujeito afeito ao culto de personalidade, distante de partidos políticos e de sindicatos, que queria enfrentar o mundo sozinho – e tomar todas as glórias desse confronto. Para além disso, vemos Regina esnobar um morador em situação de rua, entre outros. São atitudes que contradizem a imagem que se faz de idealistas militantes, pois reproduz o que combatem. Percebe-se que Bianchi opta, em geral, por discursos estereotipados, institucionalizados pela esquerda e pela direita. São falas que se repetem e que repetem

221 uma lógica associada a cada lado político (a teoria da conspiração, o discurso de ódio etc.). O cineasta questiona assim a crença em ambos os discursos e os problematiza através da estratégia farsesca, pelo olhar cínico. Nada do que é proferido é levado muito a sério, pois Bianchi busca chavões, clichês políticos. Parece haver verdade em tudo que dizem, mas não muita, porque são falas genéricas e esvaziadas. Não à toa, o discurso político (os vídeos de Antônio César, a postura do Deputado Tavares, as discussões acaloradas e mesmo as intervenções de Márcia) é um ato performático, afetado e por vezes histérico, como se para discutir política só é possível se atuar, deixando de lado a naturalidade e a organicidade, para assumir um artifício e conquistar os outros. O tom cínico e crítico é evidenciado pelos diferentes formatos audiovisuais com que o cineasta trabalha. Além dos vídeos já citados, há segmentos desconexos da trama que ilustram a relação que Bianchi tem com a institucionalização do discurso. Duas sequências emulam o formato publicitário, que busca vender certo produto ou ação. Porém, forma e conteúdo se contrastam, criando a ironia. Primeiro, uma vendedora apresenta um condomínio erigido pela tia de Antônio César, Vivendas Verticais, um empreendimento para mantê-la sem trabalhar, contando sobre sua origem. Depois, um institucional sobre a Rodovia Marechal Osvaldo, que liga Curitiba a São Paulo, inicia falando das belezas naturais, e passa por eventos que aconteceram em seu perímetro, como a expulsão dos arrendatários da fazenda Buriti, trabalhadores rurais que veem suas vidas levadas à miséria e morte por negligência dos poderes públicos e ganância do setor privado. Nezi de Oliveira fala sobre o alcance de Romance a partir dessas várias estratégias: (...) o filme não descarta a pretensão de incitar reflexões a respeito da realidade sócio-política do país – a corrupção sistêmica e a ambição inescrupulosa corroendo a preservação da vida e da natureza; a falência ética das instituições; a crise moral e a falta de solidariedade presentes no exercício cotidiano da cidadania – e disparar críticas aos modelos dominantes de representação (da ficção, do documentário, da publicidade), numa chave auto-reflexiva temperada por boa dose de farsa, sarcasmo e ironia.285

Ao término do longa, parece haver apenas dois caminhos possíveis no mundo, a corrupção ou a morte. Antônio César morre, Fernanda se joga de seu prédio e André está condenado pela Aids. A militante de esquerda Regina aceita um cargo público, em que terá todas as benesses, sob as asas de seu opositor. Não há como reverter o cenário, aceita- o ou deixa-o – o “Ame ou Deixe” da ditadura militar ainda rondando o Brasil, mesmo em

285 Nezi Heverton Campos de OLIVEIRA. O cinema autoral de Sérgio Bianchi: uma visão crítica e irônica da realidade brasileira, p. 98-9.

222 tempos de Nova República do governo Sarney. Para Bianchi, nada mudou e nada mudará; a desesperança é completa286. Ele, porém, não descarta o confronto, o combate a partir do filme, por conta de seus retratos céticos: ‘Romance’ saiu assim porque era a maneira como eu estava vendo as coisas. É um filme sobre anarquistas que acaba incomodando muita gente. A esquerda não gosta do final onde a militante vira funcionária pública. O católico vai se ofender com a transa homossexual de 20 minutos, e assim por diante. Eu acho ótimo.287

Romance estreou comercialmente em 28 de abril de 1988, no Rio de Janeiro, no Cine Ricamar, e em São Paulo, no Belas Artes. O filme foi recusado no 16º Festival de Gramado e exibido, em outubro, no 21º Festival de Brasília, onde levou os prêmios de direção (dividido com O Mentiroso), atriz (Imara Reis, dividido com Cláudia Magno, de Presença de Marisa) e atriz coadjuvante (Isa Kopelman, dividido com Xala Felippi, de O Mentiroso). Sérgio Bianchi continuou a carreira de maneira atribulada, fazendo seus filmes sempre em meio a burocracias com a qual não concordava, atrasando o resultado para além do pretendido, acerca das contradições dos discursos políticos. Desde então, realizou A Causa Secreta (1994), Cronicamente Inviável (2000), Quando Vale ou é Por Quilo? (2005), Os Inquilinos e Jogo das Decapitações (2013).

5.3.2 Hermano Penna

Hermano Penna (Crato, 1945) cresceu na região do Cariri, no sertão do Ceará, local que o encantou e marcou muito por conta das histórias que ouvia sobre os habitantes da região e por conta das feiras, do circo e das festas religiosas. Desde cedo ia ao cinema. Aos 11 anos, mudou-se por razões familiares para Salvador, um choque cultural – “a diferença entre sertão e mar”. Pouco depois, entrosou-se com jovens que lidavam com poesia e passou a viver a cultura da cidade num momento de ebulição, de 1957 a 1964, que deu origem ao Ciclo Baiano de Cinema, por exemplo. Penna era assíduo frequentador do Clube de Cinema da Bahia, cineclube de Walter da Silveira, no Museu de Arte

286 Bianchi aponta que essa interpretação cabe apenas ao filme, em entrevista para a Folha de S. Paulo. Em esfera pessoal, acreditava na mudança: “Eu ainda acredito numa coisa bem romântica, que vai acontecer nos próximos meses: o ressurgimento de uma energia, não na minha geração (chegando aos 40), nem na sua (aos 30), mas na geração jovem, que de repente não vai aceitar mais o erro como inevitável, a possibilidade e a cabeça colonizada (eu não sou xenófobo) como inevitáveis. Acho que vai ter uma espécie de vitalidade de novo.” Cf. Amir LABAKI. Bianchi não se considera um cineasta ‘maldito’. 287 José Carlos CAMARGO. Sérgio Bianchi sai deprimido do festival.

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Moderna, assim como Glauber Rocha, sua grande influência. Nesse período, assistiu a O Túmulo do Sol (Taiyo no Hakaba, 1960), de Nagisa Oshima. Ele queria ser pintor, mas o filme o fez reconsiderar. Em dezembro de 1965, Penna mudou-se para Brasília com o objetivo de cursar comunicação visual na UnB, porém a universidade tinha sido interditada e o curso praticamente extinto. Ele, para se manter lá, trabalhou como artificie no ateliê de xilogravura do Instituto Central de Artes (ICA/UnB), e, no período, engajou-se na política estudantil para reformular a universidade. Paralelemente, fez um curso de fotografia como aluno especial. Por conta disso, começou a fotografar filmes de colegas. Em 1967, dirigiu o curta documental Smetak. No ano seguinte, filmou a CPI sobre a situação dos povos indígenas, interrompida pelo AI-5. O cineasta foi expulso da UnB e os negativos foram exigidos por ela288. Em 1969, foi para São Paulo, trabalhar com Maurice Capovilla, de quem havia se aproximado em Brasília, em O Profeta da Fome (1970), como assistente de produção. No filme, conheceu o fotógrafo Jorge Bodanzky, de quem passou a ser assistente, em filmes como Gamal, o delírio do sexo e Compasso de Espera (1973), de Antunes Filho, entre outros. Juntos, dirigiram o curta Caminhos de Valderez (1971), como pesquisa estética para Iracema, uma Transa Amazônica, em que Penna coescreveu o argumento. Trabalhou também como técnico de som e diretor de fotografia em curtas, médias e produtos televisivos. Entre 1969 e 1974, Penna morou em Brasília, onde tinha família, e vinha a São Paulo semanalmente para trabalhar. Em 1973, Capovilla o convidou para fotografar Do Sertão ao Beco da Lapa, um documentário para o Globo Repórter, pela Blimp Filmes, de Carlos Augusto de Oliveira, o Guga, e Walter Carvalho. Penna vendeu o média Folias do Divino (1974), que tinha filmado, mas não finalizado, para a Blimp, com o objetivo de ser um Globo Repórter. Com isso, foi contratado pela produtora como fotógrafo de documentários televisivos e eventualmente emplacou alguns projetos como diretor, caso de A Mulher no Cangaço (1976) e África Novo Mundo (1977), ambos para o programa global, entre outros. Dentro da Blimp também surgiu o primeiro longa de Hermano Penna, Sargento Getúlio (1980). Em agosto de 1977, a Embrafilme lançou o Programa Especial de Pilotos

288 Em 1980, Penna recuperou os negativos e finalizou o material no curta CPI do Índio (1980) e no média Índios, Memória de uma CPI (1998). Segundo Penna, em entrevista para o autor em 05 de março de 2015: “A universidade exigiu os negativos da CPI do Índio – primeiro filme profissional da minha vida –, uma pressão moral terrível. O AI-5 levou meu filme. Todo mundo ficou com medo desse material. Eu continuei a frequentar o ICA até que o reitor chegou um dia em mim e disse: ‘à esquerda, tem um táxi que chamei; à direita, um carro do DOPS: qual você prefere?’ Fiquei 12 anos sem voltar na UnB.”

224 para Séries de TV, com o objetivo de financiar um produto referencial para que o cinema pudesse entrar na televisão – sem fazer qualquer consulta, porém, à mídia. O dinheiro era para conteúdos de 30 minutos. Guga fez um acordo com seu irmão, Boni, então superintendente de produção e programação da Rede Globo, para exibirem e cofinanciarem uma série de três telefilmes que adaptassem três momentos da moderna literatura brasileira. O projeto de Os Melhores Momentos da Literatura Brasileira foi aprovado pela Embrafilme, com o valor total de Cr$ 2,25 milhões. Em 1978, porém, Guga foi convidado a assumir o setor jornalístico da Rede Tupi, cancelando a série com a Globo. Ele, como produtor, não tinha interesse em fazê-la, mas os diretores insistiram em realizar os longas-metragens com a verba minguada da Embrafilme e com o equipamento em 16mm da Blimp. Denoy de Oliveira dirigiu 7 Dias de Agonia (O Encalhe) (1982), a partir do conto Encalhe dos 300, de Domingos Pellegrini. José de Anchieta assumiu o filme de Guga, A Hora dos Ruminantes, de J. Veiga, nunca concluído. Guga também convidou Penna para dirigir um dos filmes. O cineasta optou por Sargento Getúlio, a partir do romance homônimo de João Ubaldo Ribeiro, roteirizado com Flávio Porto. Penna filmou no sertão de Sergipe, nas cidades de Poço Redondo, Nossa Senhora da Glória, Laranjeiras, São Cristóvão, Aracajú e Barra dos Coqueiros, durante um mês, em 1978, com uma equipe mínima, formada por dez pessoas. Sargento Getúlio se passa no final dos anos 1940. Getúlio Santos Bezerra (), sargento da polícia militar de Sergipe, é encarregado de levar um prisioneiro (Fernando Bezerra), inimigo político de seu chefe, de Paulo Afonso/BA a Aracajú/SE, na companhia do motorista Amaro (Orlando Vieira). Getúlio perpetra atrocidades contra o prisioneiro ao longo do caminho. No meio da viagem, fazem uma pausa na fazenda de Nestor Franco (Otávio Salles), onde são interpelados por um batalhão policial que manda soltar o prisioneiro. Getúlio refuta as novas ordens e decapita o tenente. Por conta disso, embrenha numa fuga na tentativa de cumprir sua missão original, de levar o prisioneiro a Aracajú. Passando por diversos esconderijos e quase sem apoio, o sargento se vê frente a derrota, vociferando sua imortalidade. Herdeiro do Cinema Novo e influenciado por seu trabalho como documentarista, Penna optou por um trabalho de câmera livre, solta, passeando pela cena, em planos sequências com a câmera na mão, ora utilizando-se do zoom para encontrar os rostos nos personagens. Assim como a luz na maioria das vezes é natural, compondo uma fotografia suja, rudimentar, como o sertão. Penna conta que “não adaptei um livro, documentei um

225 livro”, no sentido que tentou ser o mais fiel à história possível, dando um caráter altamente realista à ação. Sargento Getúlio fala sobre o período de transição da forma de se fazer política no Nordeste através de seu protagonista, um rude militar que não entende exatamente o que acontece e se vê ameaçado por isso. Para Getúlio, a política é simplesmente a lealdade ao chefe, é executar o que lhe mandaram, dentro de uma lógica coronelista e clientelista. O sargento obedece a ordens porque entende o mundo através das hierarquias, sem questionamentos, e dentro dessa lógica ele também exerce poder – sobre seus funcionários/assistentes, sobre seus prisioneiros etc. –, o que lhe é bem importante. Inclusive, pouco importa quem é o prisioneiro. Nós, espectadores, nada sabemos sobre ele, apenas que “tem ginásio”, como diz Amaro, com certo ranço pela educação do homem, como se fosse deslegitimado no sertão. Por vezes, Getúlio fala de política, de partidos, do poder público, mas é evidente que pouco entende do que fala, que apenas reproduz conceitos de seu patrão, esse sim com interesses ideológicos mais bem arquitetados, menos ingênuos do que os do sargento. Para ele, tudo é muito simples. Ele entende como deve agir, o que deve fazer, mas não sabe os motivos ou implicações reais de seus atos, apenas o que julga a consequência imediata deles – e isso já justifica. Logo no início do filme, ele explica sua lógica de trabalho: Mais de vinte nas costas, veja, vosmecê. É feito mulher, você consegue lembrar de todas. A primeira é mais difícil, mas depois você aprende a não olhar na cara do infeliz para não empatar a obra. Eu não sou pistoleiro, eu sou político, não mato à toa. Às vezes tem umas coisas que a gente tem que fazer e só dar umas porretadas e pronto, como quando a gente foi quebrar o jornal dos comunistas. Essa quebra não foi encomendada, mas o jornal aporrinhava o chefe de modo que um dia pegou fogo e não tinha água no corpo de bombeiro. (...) Foi o fim dos udenistas comunistas.

A UDN, União Democrática Nacional, era um partido de oposição ao governo de Eurico Gaspar Dutra, do PSD (Partido Social Democrático), antigetulista e antipopulista, defensor do liberalismo econômico e da moral e dos bons costumes, em teoria, mais conservador do que o partido governista. De comunista ou mesmo de esquerda não tinha nada, mas para Getúlio essa parece ser a maior ofensa a se fazer, em tempos de Guerra Fria, provavelmente por influência de seu inominado chefe. O sargento nota que o sistema político não é mais o mesmo e isso lhe é um problema, ainda que se contenha por ordem. Ele fala ao fazendeiro Nestor: “Por mim, eu sangrava logo, mas infelizmente a gente vai ter que esperar para sangrar em Aracajú. Isso

226 aí é boi de matadouro, é um animal cheio de ideias, não pode ser morto assim no meio do mato. Nem sei se lá em Aracajú ele é despachado.” Esse descontentamento é acompanhado pela sua percepção do jogo político: “A política tá mudando, tá ficando uma política maricona.” Isso não impede, porém que o sargento espanque, torture ou discipline o prisioneiro como julga correto. Tanto João Ubaldo Ribeiro quanto Hermano Penna negam qualquer paralelo entre a conduta militar do sargento Getúlio e as atividades clandestinas no porão do DOPS, a tortura a opositores do Regime Militar, no auge quando o romance foi escrito (1971) e ainda pairando quando o longa foi rodado (1978). Independentemente de ser uma motivação, a tortura no filme, gráfica, visual, aponta para o absurdo dos atos do sargento, um homem que sente prazer em fazer mal ao próximo, que acha o que faz justificável. O filme tem um tom naturalista, mas o sofrimento dos opositores de Getúlio frente às agressões nunca é naturalizado dentro da narrativa. Talvez por isso as cenas de truculência perpetradas por Getúlio sejam filmadas em contra-plongée, como se a violência só pudesse ser vista de baixo, dando-nos uma sensação de impotência frente à brutalidade, que sempre parece enorme por conta do posicionamento da câmera. O filme começa com Getúlio, Amaro e o prisioneiro dentro do carro, à noite, pela estrada. Getúlio devaneia, dialoga com o prisioneiro e com Amaro. Penna opta por planos fechados nos rostos dos personagens. Na fala citada acima, o sargento conversa com os personagens como se estivesse falando com o público, olhando para a câmera vez por outra. Rindo, ele menciona sobre a carreata de votos empreendida pelo chefe. Corta para um plano aberto e claro em que um caminhão leva pessoas para votarem no PSD. No plano seguinte, Getúlio, em contra-plongée, indica para as pessoas no caminhão entrarem num casarão. Placas dizem “Com o PSD vamos vencer” e “PSD é nosso”. Elas carregam pessoas ensanguentas, espancadas por serem eleitores da oposição, nos revela Getúlio pouco depois. É o primeiro contra-plongée do longa – aqueles corpos sem vida, estirados, sendo carregados por várias pessoas que invadem a cena. O procedimento se repete quando o sargento faz o prisioneiro correr amarrado do lado de fora do carro tentando acompanhar a velocidade do automóvel e quando ele tira dentes do opositor com um alicate. Penna depois se utiliza do recurso na luta entre o sargento e o tenente. O contra-plongée assume a visão subjetiva do tenente e assim Getúlio se avoluma no quadro, ostentando uma soberania em cena; ele, ali, é a própria violência. Após jogar o tenente no chão, ele sobe

227 sobre ele, leva o facão à égide da lente e faz um movimento de corte. Em seguida, ele tira do extracampo uma cabeça decepada e a joga ao alto. Getúlio é a selvageria, assim como é, para o filme e seu diretor, a ideia de tortura – enorme, porque hedionda. Ao receber uma contraordem, o sargento fica desestabilizado, sem saber como se portar. Ele não acata a nova ordem porque significa trair a antiga, personalizada pelo patrão. Há uma lealdade intrínseca à ação de Getúlio não recíproca. Aos poucos, isso o leva a acessos de loucura, fica obstinado em levar o prisioneiro a Aracajú, mesmo que aquilo não faça mais sentido ou não haja mais razão para tal. Comparsas tentam demovê- lo, falam para que ele solte o prisioneiro e suma – uma vez que, ao matar um superior, torna-se alvo da polícia, invertendo a lógica do poder. Em constante diálogo interno, ainda que por vezes exteriorizados, diz que ele não pode sumir, porque não consegue sumir de si mesmo; quem some são os outros. Ele passa a se questionar, passa a questionar suas ações, buscando lampejos de explicação. “Eu não gosto que o mundo mude. Me dá uma agonia, não consigo entender as coisas direito”, diz. Em determinada cena, a câmera rodeia e acompanha Getúlio, em plano americano, sem som direto, apenas uma música leve, que parece de sonho, e com ele falando, como se o personagem estivesse em transe: “Morrer é como que dormir. E dormindo é quando a gente termina as consumições. Por isso que a gente sempre quer dormir, só que dormir pode dar sonhos, e tudo fica no mesmo. Por isso que é melhor morrer, por que não tem sonhos.” Ele se alonga dizendo como é melhor morrer macho. Ou seja, as mudanças políticas não podem ser apreendidas por um homem sertanejo como Getúlio, que, matuto, aprendeu a ver o mundo de uma forma. A modernização, os adventos da capital, são-lhe incompreensíveis, como se traíssem sua alma, sua existência. Para Penna, o romance o fascinava tanto por conta dessa dicotomia entre o homem que é algo e deixa de sê-lo: “Era tudo, esse meu mundo, sertão/mar, a luta de um homem para levar aquilo que não entende, o meu mundo do Crato, a alma, uma enciclopédia do pensamento do homem sertanejo.”289 À medida que Getúlio se digladia, torna-se mais performático. Fala com os outros, mas é como se falasse consigo mesmo. Seus pensamentos continuam em falas e vice-versa. Ainda em tom naturalista, Lima Duarte assume o devaneio – ele, Sargento Getúlio, atua na loucura, no descompasso para o mundo, interpreta um homem em contradição.

289 Em entrevista para o autor em 05 de março de 2015.

228

Ao término do filme, após os périplos enfrentados por Getúlio, carregando o prisioneiro, à margem do rio, ele vira vítima. Prestes a ser capturado pela milícia que avança em batalhão pelo rio, sem ter para onde fugir e não tendo alcançado seu objetivo, resta-lhe apenas se encontrar. Num close em contra-plongée, para quem quiser ouvir, ele vocifera seu destino e diz que nunca morrerá. O sargento virou mártir, vítima, está prestes a ser violentado por quem o contratou.

Figuras 55, 56, 57, 58 e 59 – A contra-plongée em Sargento Getúlio como símbolo da violência: a brutalidade física perpetrada por Getúlio e, ao final, a agressão moral que sofre

Depois que a Blimp fechou, com a ida de Guga para a Tupi, Sargento Getúlio ficou sem produtor e Penna assumiu a função. Finalizado em 16mm em 1978, ele tentou envolver a Embrafilme na distribuição por anos, solicitando ampliação do material para 35mm para poder ser comercializado. A primeira oferta da estatal foi a de lançar o filme em 16mm mesmo, só com cartaz em preto-e-branco, pois não acreditavam na viabilidade do longa. A estreia se deu em fevereiro de 1980, na mostra de filmes inéditos Perspectivas do Cinema Brasileiro, no Masp, sem qualquer resposta. Um ano depois, em 24 de fevereiro de 1981, o crítico Orlando Fassoni escreveu na Folha de S. Paulo “Pronto há meses, o filme ‘Sargento Getúlio’ ainda não conseguiu ser lançado”290, pedindo atenção ao longa. Em 1982, Penna conseguiu exibi-lo privadamente para o produtor Luiz Carlos

290 Orlando L. FASSONI. Narrativa épica de um homem leal.

229

Barreto, buscando vendê-lo. Barreto, por sua vez, intercedeu por Penna na Embrafilme. O diretor de operações não-comerciais, Carlos Augusto Calil, fez um acordo com o cineasta. A Embrafilme adiantou uma verba para que Penna obtivesse os direitos do filme, então pertencentes à Blimp, fez a ampliação para 35mm e se comprometeu a fazer um bom lançamento. Em março de 1983, Sargento Getúlio foi exibido no 11º Festival de Gramado, tornando-se sensação, e levou os prêmios de melhor filme, ator (Lima Duarte), ator coadjuvante (Orlando Vieira), som, além do prêmio da crítica. No mesmo ano ainda levou o Leopardo de Bronze especial de direção no 13º Festival de Locarno. Foi lançado comercialmente em 01 de junho de 1983, em São Paulo, no cine Belas Artes, e no Rio de Janeiro. Até março de 1984, fez 120 mil espectadores. No meio do processo, Penna coroteirizou e cofotografou com Aloysio Raulino Noites Paraguayas. Em agosto de 1984, inscreveu Fronteira das Almas (1987), para o qual tinha aberto a empresa Cine Documento, em julho de 1983, no edital do segundo convênio da Embrafilme com a SEC-SP, sendo contemplado em maio de 1985. Originalmente intitulado Agora Será como Sempre?, o roteiro, que só mostrava a colonização de Rondônia, foi modificado ao ouvir relatos do escritor Murilo Carvalho, repórter do jornal Movimento, sobre as lutas camponesas no sul do Pará. Para o roteiro de Fronteira das Almas, ambos viajaram bastante para as regiões retratadas. A parte sobre Rondônia traz muito da vivência do cineasta na região amazônica, cujo irmão morava no estado e o pai em Santarém/PA. Já o segmento no sul do Pará aborda questões presenciadas por Carvalho. O projeto nasceu como um desejo de falar sobre uma população ignorada, conta Penna: “Conheci a colonização de Rondônia e fiquei muito impressionado. Sempre fui muito ligado à questão popular, meu cinema sempre está próximo às minhas raízes e à minha alma, muito ligado aos sofrimentos dessa gente.”291 Com um orçamento de US$ 250 mil, ele rodou Fronteira das Almas ao longo de seis semanas em Ji-Paraná e em outros locais de Rondônia, em 1986. O longa acompanha duas histórias paralelas que se passam na Amazônia sobre posse de terra. Em Rondônia, um grupo de parceleiros do INCRA (Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária) é deixado por um ônibus no meio da mata. Receberam uma parcela de terra virgem da floresta num projeto de colonização oficial do estado.

291 Em entrevista para o autor em 05 de março de 2015.

230

Entre eles, está Genésio (Orlando Vieira) e Cassiano (Antônio Leite), que tenta se assentar antes de trazer a esposa (Marcélia Cartaxo) e o filho. Eles recebem a terra, mas nenhum dinheiro, o que dificulta a instalação no local, pois não conseguem financiar o cultivo das terras e nem deflagrar outras atividades. A densa mata virgem, quase impenetrável, e os surtos de malária dificultam a colonização. Tentam, com outros colonos, bamburrar, sem sucesso, e buscam em empréstimos bancários um alento. Porém, sem conseguir manter a terra, com mais gastos do que recebimentos, vendem o terreno e abandonam o local. Já no sul do Pará, Tião (Fernando Bezerra) e outros vivem em uma comunidade de posseiros que ocupam terras devolutas. Sofrem, porém, constantes ataques armados de um grileiro sanguinário que quer a terra para ele. O grileiro comprou a polícia e o juiz local. Tião e seus comparsas recorrem a um advogado, porém ele é afastado pelo inimigo. Num crescendo de tensão, as condições de sobrevivência se deterioram, imperando a seca e a miséria, e eles enfim deixam a terra. É evidente a preocupação política do diretor em Fronteira das Almas. Penna denuncia os abusos da política de terra no Brasil, em que um governo omisso e a ganância capitalista fazem com que trabalhadores rurais sofram, sem casa, sem meios, passando fome, morrendo por conta de doenças ou de jagunços. Nas duas histórias, o tom político impera quanto à resistência aos coronéis e poderosos. A necessidade de manutenção do trabalhador é quase uma ode a um movimento social. O cineasta conta que os diálogos do filme se basearam em reais conversas ouvidas durante a pesquisa e os eventos em situações observadas. O longa mostra o cotidiano desses personagens, buscando humanizá-los para além da mensagem político-social. Vemo-los conversando à beira da fogueira, bebendo, jogando futebol, nadando no rio, buscando trabalho e afins. Penna aposta no registro desdramatizado, quase observacional de seus personagens, conferindo ao longo um tom documental, prosódico. Também registra a natureza, as árvores, os animais – que será desmatado e destruído pelas grandes corporações em larga escala. Há um equilíbrio entre as cenas cotidianas e as que demonstram maior engajamento dos personagens, porém o tom de denúncia destaca-se, em especial nos diálogos. As falas são explicativas, traduzindo a mensagem do diretor sobre o assunto. São textos indignados, resilientes, mas de certa forma cansados e desesperançosos com o porvir. Dois diálogos explicam as duas condições. De um lado, um grupo de posseiros conversam sobre as opções:

231

Posseiro 1 - Não consigo mais andar o mundo, enfrentar outra mata, outra derrubada. É muito sofrimento. Posseiro 2 - Já penso de outro jeito: chegamos aqui primeiro, terra do governo. Ele não disse que ia legalizar? O que Vladislau quer é tomar terra que não é dele. Nós temos o direito, a justiça tem que estar do nosso lado. Posseiro 1 - Você ainda é muito moço. A única autoridade aqui é a gente todo mundo junto, unido, com os pés fincados no chão. Chega o que aconteceu com a gente lá em Goiás, expulsaram todo mundo das terras, a gente ficou pelas estradas, passando fome em cidade, trabalhando de peão em fazenda dos outros. Posseiro 3 – Eu até poderia trabalhar de empregado, se ganhasse para ter uma vida decente. Mas não como esses, que vive por aí, parece bicho, trabalhando na fazenda dos outros, pegando doença, quase morrendo. Não! Posseiro 1 – Ninguém perguntou se peão é gente, é homem. Eles só querem o braço no machado, no terçado, eles só querem as mãos da gente.

Os posseiros discorrem sobre a exploração do trabalhador rural, sobre a injustiça e a negligência com os mais pobres, bem como aventam a corrupção local e a violência para com eles, em algumas poucas falas, que exteriorizam o conflito central do núcleo do sul do Pará. Um dos posseiros inclusive defende uma postura engajada, coletiva, física, de luta pelo espaço que pertence a eles. Esse mesmo posseiro, depois, aponta a crueldade da luta de classes: “Nesse negócio de terra tá morrendo muita gente. É luta do povo miúdo contra os grandão. E o governo só assiste.” Os parceleiros não enfrentam a violência física dos grileiros e seus jagunços, mas sofrem com a negligência do governo e a ganância predatória dos endinheirados, que se aproveitam da falta de verba e de condições das pessoas humildes para comprar suas terras a preços baixos e erigir latifúndios. Genésio faz um paralelo entre a vida de luta pela terra e uma prisão: Parece que a gente vive numa cadeia, mas uma cadeia de ferro que a gente não escapa. O governo chama, a gente vai. Derruba mata, briga com os índios, enfrenta a saúde, enfrenta as doenças. Morre a mulher, morre os filhos. Amansa a terra. E, depois de tudo pronto, vem o grandão e toma tudo. O governo bota a gente pra mais longe. A gente vai. E vai os filhos, vai os netos, andando. Andando, andando, andando...

Para Genésio, a função do parceleiro é apenas abrir caminho para os fazendeiros, realizando todo trabalho duro de colonização, para depois ter de entregar sua vida por um preço módico e continuar a andar, num ciclo eterno. A preocupação maior em denunciar a condição do trabalhador rural na região amazônica suplanta o trabalho de mise-en-scène, mais clássico e objetivo, em toada diferente de Sargento Getúlio. Em Fronteira das Almas, Penna opta por uma câmera no tripé, com poucos movimentos, acompanhando, de maneira comportada, os posseiros e parceleiros. O rebuscamento estético está na montagem, ao construir as duas histórias

232 paralelamente. Os personagens não aparentam ter relação alguma entre elas, mas a similaridade do tema aproxima as tramas. O recurso é bem sucedido até a última cena, quando Penna reúne ambos os personagens (Tião e Cassiano), que se cruzam no meio da estrada, indo para caminhos opostos. O cineasta buscou nessa estrutura, em que duas histórias paralelas se encontram ao final e que considera para a época “inovadora”, juntar as duas origens do roteiro. O problema é que o encontro parece fortuito, ao acaso e sem importância, porém eles parecem se conhecer. O motivo só é conhecido fora do filme: ambos personagens são irmãos, dando novos significados ao longa. Em nenhum momento de Fronteira das Almas isso fica claro, porém. Penna sabe que seu filme tem poucas chances de fazer realmente o tema repercutir nacionalmente292, mas impera um desejo de transformação. Mesmo que o encontro dos dois narrativamente seja mal executado, aponta para um anseio de continuar na luta; não desistiram. Fronteira das Almas estreou em agosto de 1987, no II Festival do Cinema Brasileiro de Fortaleza, e ainda foi exibido no III Rio Cine Festival, no mesmo mês, onde levou os prêmios de melhor filme segundo o júri oficial, direção, roteiro, montagem e som. Não priorizado pela Embrafilme, o longa só foi lançado comercialmente em 1989, chegando em Curitiba, no Cine Groff, em 17 de fevereiro, e, em São Paulo, em 24 de novembro, no Cinesesc. Penna estima um público de 15 mil espectadores. Após Fronteira das Almas, Penna fez institucionais e documentários para a televisão, além de ter fotografado alguns filmes. Em 1993, fundou a empresa Luz XXI Cine Vídeo. No contexto da Retomada, voltou ao tema da terra na Amazônia por um viés intimista e individualizado, de recusa da metrópole, em Mário (1999), filmado em 1995 e em 1997, com produção acidentada. Fez o telefilme Vôo Cego Rumo Sul (2004) e os longas Olho de Boi (2007) – seu único filme em que não fez o roteiro – e Aos Ventos que Virão (2013).

5.3.3 Aloysio Raulino

Em Noites Paraguayas (1982), Rosendo (Rafael Ponzi) sai de sua terra natal, no interior do Paraguai, após a morte do pai, e parte para Assunção, em busca de meios para

292 Tanto que coloca uma provocação na boca do personagem advogado, que diz: “Sabe quando é que vai mudar: quando a luta dos posseiros tiver na televisão, em edição nacional, ou numa novela com Tarcísio Meira ou Francisco Cuoco. Não tô brincando não, tô falando sério.”

233 manter a propriedade rural. De etnia guarani, surpreende-se com a modernização da capital, onde consegue um trabalho no porto. Conhece Pedrito (Ramon del Rio), também guarani, que acabou de chegar de São Paulo. Com ele, Rosendo parte em direção à cidade brasileira. Ambos ficam numa pensão de inquilinos paraguaios no centro da cidade. Pedrito toca harpa no Trio Hermanos Beija-Flor, grupo especializado em guarânias. Rosendo, porém, torna-se vendedor ambulante de artesanato paraguaio na Boca do Lixo e, depois, carroceiro. No longa, Aloysio Raulino parte do íntimo, do afetivo, para falar do social. Há duas instâncias de esfera familiar que movem a história. A primeira delas é diegética e representa o primeiro ponto de virada: a morte do pai. Até então, acompanhamos o cotidiano da fazenda da família de Rosendo, que trabalha na terra, no plantio. A filha adverte o pai para não se exceder, porque está velho. Pouco depois, ele adverte aos dois filhos homens que não deve durar muito mais tempo. A morte anunciada do pai é uma disrupção, que faz os filhos reverem seus caminhos, em especial após um topógrafo medir a propriedade. Esse evento provoca o percurso migratório de Rosendo em busca de dinheiro, mas que o faz conhecer o mundo para além de sua origem. A segunda instância é a guarânia, estilo musical proveniente do Paraguai que foi incorporado ao cancioneiro popular brasileiro já na primeira metade do século XX. O caráter afetivo da música, presente na diegese, é muito mais extrafílmico, decorrente da memória de Raulino sobre sua infância, quando escutava na rádio ou na vitrola, e o apreço que tinha pelas peças293. A guarânia, mais que profissão, representa uma identidade para os paraguaios fora de casa. As duas instâncias íntimas se transfiguram em duas instâncias sociais que parecem ser o foco de discussão do diretor no longa: a migração e a identidade cultural. Noites Paraguayas expõe a trajetória de um imigrante em busca de melhores condições de vida, porém seu percurso é fadado ao quase fracasso, pois suas possibilidades de ascensão são mínimas. Rosendo não parece saber isso, tudo lhe vem com muita esperança, recebe o que a vida lhe dá com sorrisos. Em São Paulo, dorme num quarto com mais três outras pessoas, dividindo um beliche, levanta cedo para trabalhar, sem muito sucesso em vender seus artefatos, e apenas acompanha o trio de músicos. O público alvo de Rosendo são

293 Raulino, em entrevista para a Folha de S. Paulo, em 1982: “Nos anos 50, a música paraguaia era das mais tocadas no Brasil, no apogeu de Cascatinha e Inhãna. E o curioso é que, no caso da guarânia, não se tratava de uma importação musical que deu certo, como o bolero, mas sim da absorção de um ritmo e uma melodia que tem muito a ver com o Brasil. Os brasileiros também sofreram na sua formação cultural grandes influências da nação guarani.” Cf. Pedro del PICCHIA. O primeiro filme falado em guarani.

234 donas de casa, artistas da Boca do Lixo, entre outros, figuras populares que desaparecem em meio à multidão, assim como ele, que sequer consegue vislumbrar como seria um mundo mais endinheirado. Rosendo só descobre a urbanidade – as modernidades tecnológicas, o caos, o trânsito, os aglomerados, como também a periferia, a violência etc. O imigrante, pobre, sofre tanto quanto qualquer migrante brasileiro, retrato muito trabalhado pela cinematografia local desde o Cinema Novo e que se faz presente no longa, com a citação a Vidas Secas, tanto o romance de Graciliano Ramos, lido por um personagem, quanto pelo filme de Nelson Pereira dos Santos, que ilustra a narração. Rosendo e Fabiano são duas faces da mesma moeda; ambos traduzem os mesmos problemas sociais. Os próprios episódios descolados da narrativa e que pouco avançam a história parecem surgir como metáforas esporádicas sobre o espectro do desfavorecido: a vida que não dá tréguas e sempre sabota suas expectativas (como na sequência do garçom e do diabo); a desilusão com o próprio caminho externada como pequeno poder sobre os outros [a trajetória do empresário Berto (Felisberto Duarte) e a subsequente exploração do trio]; e o fantasma do passado histórico, que revela o presente (a historieta que o rapaz negro conta sobre a origem dos negros, segundo seu avô) ou aponta para uma possível superação (o sonho de Rosendo, em que, morto na Guerra do Paraguai, se levanta). A discussão principal, porém, parece ser sobre a identidade cultural desses imigrantes e de Rosendo em particular. Quando o protagonista decide deixar o vilarejo natal, um sujeito na janela o alerta aos potenciais problemas de seu ato. Raulino filma-o frontalmente, emoldurado pela janela, numa casa de barro. A medida que o personagem fala, o enquadramento muda, em cortes secos, abrindo o quadro. São cinco cortes. Cada salto nos distancia mais do orador. Nós estamos na posição de Rosendo e a cada momento o protagonista se distancia da sua origem, de sua cultura local, a ponto de Raulino enfatizar essa distância ao recuar o quadro no corte, colocando tarjas pretas ao redor dele. Aquele sujeito torna-se apenas um fragmento, um pedaço do passado, como se estivesse assistindo aquela cena de longe. A montagem enfatiza o discurso do homem, que aponta que sair do vilarejo é sair de si mesmo, é perder identidade por conta de dinheiro (“Se você vai fugir da pobreza, vai fugir de si mesmo.”) – e não a recuperar é decorrência do orgulho (“Muita coisa pior eles sofrem, porque não querem voltar do mesmo jeito que saíram.”).294

294 Vale acompanhar todo o discurso: “Pois bem, amigo, mas acho que você não devia ir. Que vamos fazer? Você não vai embora para se perder/, mas para ver se lá tudo melhora. Quero lhe falar uma coisa: / Se você

235

Figuras 60, 61, 62, 63, 64 e 65 – A evolução do distanciamento em Noites Paraguayas pela forma

Na sua jornada, Rosendo conversa com um índio guarani ribeirinha, que vive com sua tribo. Rosendo é guarani, apesar das feições indígenas já terem se dissipado, mas ainda mantém o idioma. O índio que ele encontra não, fala em espanhol, apesar das feições e da tribo alternar vestes ocidentais com tradicionais, inclusive a pintura e a nudez. Ele, porém, parece mais integrado ao processo urbano e queixa-se das condições a que é entregue, suscetível às doenças e à fome. Há uma batalha interna para manter a identidade daquele grupo, mas pouco se adequada ao mundo em que vive. Conforme Manuel Castells, a identidade é “o processo de construção de significado com base em um atributo cultural, ou ainda um conjunto de atributos culturais inter-relacionados, o(s), qual(is) prevalece(m) sobre outras fontes de significado”295. Além da fala do homem na janela, Rosendo se depara com a ressignificação da identidade ao encontrar o índio. Em São Paulo, ele também passa por um processo de aculturação, ao aprender um novo idioma (o português), ainda que se comunique em guarani com os conterrâneos, e ao se adequar a uma nova realidade tão distante dele. Os malgrados o fazem repensar seu papel social no Brasil e vislumbra retornar. O que aciona esse desejo é a maneira como olha para a música, o elo que vê com sua terra natal. A guarânia é o atributo cultural que dá significado à sua origem e, a partir dela, pode se sentir em casa

vai fugir da pobreza, vai fugir de si mesmo. Nosso país tem tudo do que os outros países chamam grandeza. / Só nós não podemos alcançar. Não vá acreditar que nossos amigos que foram para outros países e não voltaram mais estão felizes. Não é assim. Muita coisa pior eles sofrem, porque não querem voltar do mesmo jeito que saíram. / Sob o perigo está o ganho, disse o contrabandista. Você deve experimentar. Como dizia minha avó: Quando alguém é pobre e ignorante, não cabe em nenhum lugar. / Diabo! Onde estaria a pobreza e a ignorância, se os ricos e os intelectuais não existissem?” (Cada “/” aponta para a mudança do quadro.) 295 Manuel CASTELLS. O poder da identidade, volume II, p. 22.

236 mesmo que em terra estrangeira. Porém, a música não faz parte de Rosendo, ele é um mero espectador, e por isso considera voltar ao Paraguai. Isso é evidenciado quando conversa com Pedrito: Eu já estou sonhando em voltar. Para mim é mais difícil viver aqui do que para vocês. Os problemas são iguais. Para mim o mais difícil é que me sinto mais longe de nossa terra. Você, Pedrito, com o som da harpa, leva o Paraguai onde estiver. Vicente e Don Ciríaco a mesma coisa com as canções. Eu não. Para mim ficou tudo muito longe. É como uma derrota.

Na cena seguinte, ele sonha com a Guerra do Paraguai e a derrota. Ele é um dos soldados mortos. Ensanguentado, levanta-se, ato reproduzido por seus pares. O sonho parece uma encenação de guerra, porém, tem uma conotação mais forte, quase como se Rosendo superasse uma potencial inferioridade em relação aos vencedores, como o Brasil, e assim pudesse seguir em frente, voltar às origens, sem ter de provar mais nada. Dessa forma, a morte do pai leva à migração, que faz com que Rosendo se distancie de sua identidade cultural, devolvida ao compreender o papel da música. Ele volta para sua terra, onde se casa e constitui família. Entender a cultura guarani, aliás, foi uma das buscas de Raulino quando esboçou Noites Paraguayas. Em entrevista para o Correio Braziliense, em 1984, ele afirma: Voltei minha atenção para o Paraguai, porém, para tentar compreender um povo que passou por duas guerras extremamente cruéis – a da Tríplice Aliança e a do Chaco – e não foi exterminado no que tem de mais forte: a cultura guarani. Nós, nas escolas brasileiras, ouvimos falar da Guerra do Paraguai, por alto. Nunca tomamos contato real com os fatos: Argentina, Brasil e Uruguai quase destruíram o país dos paraguaios. Quando a Guerra acabou, 90% da população masculina do Paraguai estava exterminada. Isto no fim do século passado (o XIX). De 1930 a 1932, o País sofreu outra guerra, a do Chaco, contra a Bolívia, por causa do petróleo. Em 1949, o Paraguai viveu uma verdadeira Guerra Civil. Foi então que o General Strossner assumiu o comando do País, que mantém até hoje. Que povo é este? Que País sofrido, mas forte, é este? Que carisma carrega a Nação guarani, para sobreviver a tantas dificuldades? Estas perguntas me fascinavam.296

Raulino alterna duas formas de representação quando filma o Paraguai e o Brasil. No Paraguai, em especial no vilarejo, domina um olhar documental, à distância, observacional, em que atos cotidianos sobrepõem os conflitos e o desenrolar narrativo é simples, ordenado, linear. No Brasil, as histórias se cruzam e se alternam. Raulino permite que eventos deslocados da narrativa assumam o protagonismo momentâneo, dando voz para o lúdico, o performático e o notadamente ficcional – mesclando estratégias da fantasia, vistas no capítulo Um cinema popular, com uma evidente preocupação política

296 Maria do Rosário CAETANO. Contracultura na barra pesada.

237 e social. São cenas como a da estreia do Trio no restaurante, em que o garçom é atrapalhado pelo diabo rechonchudo e vermelho, como numa comédia pastelão, ou como a sequência em que Berto conta sua história para a câmera de maneira over, por exemplo. A linearidade narrativa dá lugar ao caos, assim como o Paraguai dá lugar ao Brasil. Para as sequências no Brasil, o cineasta opta por retrabalhar gêneros e se utiliza muito mais do humor, ainda que evoque o tom documental em diversos momentos – em especial nas sequências da guarânia. Raulino deu o nome de cinepoema tragicômico para essa estrutura, que ele chamou de filme colagem297. Ou seja, ainda que use estratégias de fantasia, Raulino se atrela mais à vanguarda, ao cinema experimental que sempre fez, do que a uma busca de conversar com o público mais amplo – ainda que haja isso também. Noites Paraguayas foi esboçado em 1977 por Raulino e Tânia Savietto, que o inscreveram no primeiro convênio da Embrafilme com a SEC-SP. Premiado em 1978, na categoria produção, a verba só saiu em 1980, atrasando o início das filmagens, realizadas em 1981. No meio tempo, o cineasta chamou Hermano Penna para trabalhar com ele no roteiro. Além de pesquisa in loco, ambos recorreram às investigações de Leon Pomer e à trilogia de Julio José Chiavenato (O Genocídio Americano: A Guerra do Paraguai, A Guerra do Chaco (leia-se petróleo), Stroessner: Retrato de uma Ditadura). Querendo preocupar-se apenas com a direção, Raulino convidou Penna para a fotografia. No processo, porém, optou por fazer a fotografia também298. Os atores paraguaios foram escalados no grupo Teatro Libre, especializado em dramaturgia guarani. O longa estreou na 6ª Mostra Internacional de Cinema de São Paulo, em outubro de 1982, e ainda foi exibido, em março de 1983, no Nosso I Festival de Cinema Brasileiro do Rio de Janeiro, onde levou o prêmio de melhor intérprete masculino (José Dumont). Não foram encontrados registros de estreia comercial. Quando realizou Noites Paraguayas, Aloysio Raulino (Aloysio Albuquerque Raulino de Oliveira, Rio de Janeiro, 1947 – São Paulo, 2013) já havia realizado mais de vinte curtas documentais, entre eles, São Paulo (1967), Lacrimosa (1970), codirigido por

297 Diz ele: “Eu quis evitar a pura reprodução dos gêneros esquematizados pelo cinema brasileiro. Fugi dos padrões sacramentados, do erótico ao policial, passando pelo político. Juntei numa mesma obra o experimento e a velha ingenuidade das chanchadas; fiz uma colagem de gêneros que foi surgindo à medida que o filme foi feito, pois mesmo com o roteiro já pronto eu não tinha ainda idéia de como filmar as sequências. (...) Quis fazer um filme cuja narrativa rompesse com as estruturas do romance burguês do século XIX, de estilo bem demarcado. Fiz um filme-colagem.” Cf. Pedro del PICCHIA. O primeiro filme falado em guarani. 298 Raulino: “Não conseguia ver o que estava acontecendo fora do visor. Era um vício, quase um trauma.” Cf. Francisco Cassiano BOTELHO JR. Técnica e estética na imagem do novo cinema de São Paulo, p. 168. Penna fotografou todas as cenas em estúdio em São Paulo e Raulino fez os exteriores na cidade e as cenas no Paraguai.

238

Luna Alkalay, Jardim Nova Bahia (1971), Teremos Infância (1974), Tarumã (1975), O Tigre a Gazela (1976), Porto de Santos (1978), além do episódio censurado A Santa Ceia, do longa coletivo Vozes do Medo (1971), coordenado por Roberto Santos, na USP. Foi, porém, como diretor de fotografia que Raulino se estabeleceu. Nascido no Rio de Janeiro, mudou-se criança para São Paulo, mas voltou à capital fluminense em 1966, quando se entusiasmou com cinema, marcado pelo Cinema Novo e pela Geração Paissandu, e comprou uma câmera. Voltou para São Paulo em 1967 para cursar, na primeira turma, Cinema, na ECA/USP, e se formou em 1970. Em abril de 1974, fundou a empresa Atalante Produções Cinematográficas, em que produziu seus filmes, além dos de Luna Alkalay e Tânia Savietto. Na graduação, começou a dirigir e fotografar, em geral, combinando as duas atividades. Com o curta Um Clássico, Dois Lá em casa, Nenhum Jogo Fora, Raulino estreou como fotógrafo em filme que não dirigiu. A partir daí, trabalhou na função em mais de uma centena de filmes, entre curtas, médias e longas. Os longas incluem, por exemplo, Paulicéia Fantástica (1970), capitaneado por João Batista de Andrade; Cristais de Sangue, em que também produziu e corroteirizou; Canudos (1978), de Ipojuca Pontes; Braços Cruzados, Máquinas Paradas; O Homem que Virou Suco; O Baiano Fantasma; Senta no Meu, que Eu Entro na Tua (1986), de Ody Fraga; Real Desejo; Mário; O Prisioneiro da Grade de Ferro (2003), de Paulo Sacramento; (2006), de Andrea Tonacci; Cartola (2007), de Hilton Lacerda e Lírio Ferreira; FilmeFobia (2008), de Kiko Goifman; Os Residentes (2010), de Tiago Mata Machado; Corpo Presente (2012), de Marcelo Toledo e Paolo Gregori; Riocorrente (2013), de Paulo Sacramento; e Anna K. (2015), de José Roberto Aguiar. Depois Noites Paraguayas, Raulino só voltou a dirigir curtas e médias-metragens, muito possivelmente pelas dificuldades de emplacar um projeto e por sua viabilidade comercial. Fez, entre outros, Inventário da Rapina (1985), Como Dança São Paulo (1991), São Paulo Cinemacidade (1994), com Regina Meyer e Marta Dora Grostein, a trilogia Puberdade (1994-7) e Celeste (2009).

5.3.4 Suzana Amaral

Suzana Amaral (Suzana Amaral Rezende, São Paulo, 1928) teve uma infância e adolescência financeiramente confortáveis, estudando em colégios americanos ou ingleses, no Brasil e na Argentina. Irmã da crítica de arte Aracy do Amaral e do artista plástico Antonio Henrique do Amaral, entre outros, Suzana frequentou algumas

239 disciplinas do curso de Letras, mas abandonou os estudos quando conheceu Marcos Pimenta Rezende, com quem se casou em 1949. Após Rezende concluir a faculdade de medicina, em 1950, o casal se mudou para Cornélio Procópio, no norte do Paraná. Tinham oito filhos, quando, já em São Paulo, Suzana, aos 40 anos, decidiu cursar Cinema, na USP, em 1968 – outro filho nasceu quando ela já estava na faculdade. Formou-se em 1971 e, entre 1972 e 1975, lecionou roteiro no curso. Suas primeiras experiências como diretora foram com os curtas documentais A Semana de 22 (1970), Sua Majestade Piolin (1971) e Os Mortos Viram Terra (1971). Em 1972, Suzana foi trabalhar na TV Cultura. Começou como repórter no telejornal e depois foi para o setor de produção, até começar a dirigir documentários para o canal, em 1973, com Museus. Seguiram-se Érico Veríssimo (1975) e Santos Dumont (1976), entre outros. Em 1976, Suzana mudou-se para os EUA, onde fez mestrado em Fine Arts, na New York University299, até 1979. Paralelamente, fez dois anos de Actor’s Studio. Como trabalho de conclusão de curso, fez o média documental em 16mm Minha Vida, Nossa Luta (1979), premiado como melhor filme no Festival de Brasília. Ao voltar dos EUA, a cineasta retornou ao expediente na TV Cultura, realizando diversos documentários e alguns teleteatros até 1988. Ainda na NYU, em 1979, Suzana Amaral começou a ler literatura brasileira em busca de alguma história que pudesse encenar no cinema. Foi quando leu A Hora da Estrela, de Clarice Lispector, publicado em 1977. Comprou os direitos da novela em 1982 e começou o processo de adaptação, que durou dois anos e contou com o argentino Alfredo Oroz no processo, embora Amaral afirme que a versão final é só dela. A cineasta chama seu processo de adaptação de transmutação, em que ela transpõe o espírito do livro, sem se preocupar com cenas, falas ou personagens específicos. Ela lê a obra diversas vezes e só então começa a escrever, a partir do que julga importante. A Hora da Estrela custou US$ 150 mil, sendo 70% financiado pela Embrafilme. Amaral ensaiou por um mês os atores, em dezembro de 1984, e filmou em São Paulo ao longo de 26 dias, de 5 de janeiro a 3 de fevereiro de 1985. A produção ficou a cargo de Assunção Hernandez e sua Raiz Produções. Para a protagonista, Amaral escolheu a

299 Suzana Amaral, em entrevista para o autor em 05 de setembro de 2012: “Depois que saí da ECA, fui trabalhar na TV Cultura, e no fazer cotidiano dos meus afazeres nos programas de televisão percebi que não sabia nada. [Depois], fiz mestrado em direção na NYU. Foi lá que aprendi a fazer cinema. Saí de lá sabendo que eu sabia.”

240 estreante Marcélia Cartaxo, paraibana descoberta por ela na peça Beiço de Estrada, do grupo amador Terra, que fazia turnê pelo Brasil dentro do Projeto Mambembão. O longa estreou em setembro de 1985, no 18º Festival de Brasília, e levou quase todos os prêmios: melhor filme, segundo o júri oficial, popular e da crítica, direção, atriz (Cartaxo), ator (Dumont), montagem, fotografia, cenografia, trilha sonora, além do prêmio OCIC. Em fevereiro de 1986, o longa foi exibido na competição principal do 36º Festival de Berlim, recebendo o Urso de Prata de atriz, para Cartaxo, além dos prêmios da OCIC e CICAE. A estreia comercial se deu em 24 de abril de 1986, no Rio de Janeiro e em São Paulo. A Hora da Estrela narra a história de Macabéa (Marcélia Cartaxo), uma imigrante nordestina de 19 anos, que vem a São Paulo em busca de uma vida melhor. Mora numa pensão, dividindo o quarto com mais três garotas, e labuta como datilógrafa, recebendo menos que o salário mínimo e sendo constantemente criticada pela falta de limpeza no trabalho. Acanhada, sem jeito, com uma série de idiossincrasias, ela arranja um namorado, o metalúrgico Olímpico de Jesus (José Dumont), também imigrante nordestino, com quem tem uma relação desigual. A colega de Macabéa, Glória (Tamara Taxman), desiludida com a vida amorosa, procura a cartomante Madame Carlota (Fernanda Montenegro), que a manda fazer um trabalho e roubar o namorado de uma colega para conseguir o marido ideal. Assim ela faz com Olímpico, que termina com Macabéa. Ela, por sua vez, também consulta a vidente, que a promete um marido rico e estrangeiro, que vai tirá-la da miséria. Ao sair, é atropelada por uma Mercedes, dirigida pelo seu suposto futuro marido. Assim como Rosendo, em Noites Paraguayas, Macabéa também sai do interior, do mundo rural, tentando melhorar de vida na metrópole. São Paulo, até hoje, é a terra das oportunidades, o símbolo brasileiro, latino, marcado por uma economia forte, um estigma do laboro e da oferta de trabalho. Macabéa e Rosendo pensam que vão se estabelecer em São Paulo, porém apenas encontram subempregos e uma vida difícil. Se em Noites Paraguayas o enfoque é a aculturação e a perda de identidade, em A Hora da Estrela há a busca de entender o porquê da difícil adaptação. Para Suzana Amaral, o problema principal é a comunicação, questionamento que permeará todos os longas da diretora. Adaptação, para ela, é parte da comunicação300. Trabalhar esse choque de diferentes universos é o que motivou a cineasta:

300 Amaral, em entrevista para o autor em 05 de setembro de 2012: “É muito difícil a relação das pessoas, é muito difícil se relacionar com as pessoas. Quanto mais as cidades crescem, mais difícil fica. Você não

241

Como sou documentarista há muitos anos, essa coisa de migração nordestina em São Paulo, da não adaptação, me impressiona muito. Lembro que quando cheguei aos Estados Unidos, me senti uma Macabéa. Eu tinha um problema de comunicação. Acho que o problema maior na história de Macabéa é o problema da comunicação. É difícil para o migrante essa comunicação com um outro ambiente: o que vai comer, como se fala, quais os costumes. Eu senti na pele o que é ser Macabéa num ambiente urbano estranho. Acho que a Macabéa tem a cara do Brasil. Ela é o que todo mundo é. Ela é um Macunaíma de saia, uma anti-heroína aqui do Brasil, mas com uma universalidade muito grande. Na Alemanha, as turcas são assim; em Nova York, as porto-riquenhas são assim. O imigrante não é um problema só brasileiro. Existem Macabéa no mundo inteiro.301

Descartando a aparente contradição entre Macabéa representar a “cara do Brasil” e existir no “mundo inteiro”, a fala de Amaral aponta para a questão existencial do migrante, como se a investigação da alma da personagem que não consegue se adaptar, se comunicar, se enxergar como alguém de São Paulo pudesse balizar uma mudança – assim como a diretora conseguiu, enfim, habituar-se nos EUA. Macabéa, a princípio, parece ser incompatível com o mundo ao seu redor. Não sabe se comportar como alguém de São Paulo – e isso tudo que versa sobre a comunicação do migrante que a diretora apontou. Ela, porém, flerta com uma solução: o mimetismo – assim como, novamente, a diretora fez302. Aqui empresto o conceito de mimese apresentado por Aristóteles sobre a poesia e a tragédia: (...) tal como é necessário que nas demais artes miméticas una seja a imitação, quando o seja de um objecto uno, assim também o mito, porque é imitação de acções, deve imitar as que sejam unas e completas, e todos os acontecimentos se devem suceder em conexão tal que, uma vez suprimido ou deslocado um deles, também se confunda ou mude a ordem do todo. Pois não faz parte de um todo o que, quer seja quer não seja, não altera esse todo.303

Macabéa entende que, para fazer parte do todo, ela precisa imitar ações que legitimam as pessoas ao seu redor. Primeiro, ela assume que as curiosidades contadas pela Rádio Relógio, estação que escuta constantemente, são interessantes o suficiente para reproduzi-las para as pessoas que conhece (Olímpico, Glória etc.), como se o interesse que ela tem na Rádio se transferisse a ela quando passa a ser a emissora. tem tempo, é tudo muito rápido. Como sou fanática por pontualidade, não quero atrasar nada. Estou sempre correndo atrás de mim, sinto que falta esse tempo para você se comunicar. A comunicação dos imigrantes, dela que vem da roça pra cidade. Adaptação, que é uma comunicação; sem uma comunicação você não se adapta.” 301 Marcia Ligia GUIDIN. Roteiro de Leitura: A hora da estrela de Clarice Lispector, p. 96-7. 302 Em O Globo, em 1986, Amaral afirmou: “Quis fazer um filme universal, sobre todos os que chegam a uma grande cidade sem conhecer o código cultural vigente, a forma de falar e os costumes do local. Me senti uma Macabea, quando estive em Nova York para estudar cinema e precisei refrear minha impulsividade natural para me acomodar à economia de gestos anglo-saxã.” Cf. Graça MAGALHÃES. O sucesso em festival dominado por machistas. 303 ARISTÓTELES. Poética, p. 115.

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Glória, porém, é o alvo principal de Macabéa. Colega de trabalho, Glória aparenta ser tudo que ela não é: bonita, sensual, fina, inteligente, capaz de conseguir o homem que quer. Primeiro, Macabéa mimetiza a mentira para não trabalhar, como vira Glória fazendo. Macabéa inventa um dentista para folgar e ir passear no parque, ocasião em que conhece Olímpico. Ela usa essa desculpa novamente, quando vai à cartomante, e adiciona um toque que percebe sensibilizar o patrão – e usado por Glória: “o senhor é como um pai para mim”. Glória se aproveita dos outros e Macabéa entende que esse é o caminho a se tomar. Outro momento é mais simbólico. Glória sempre recebe ligações de amantes e homens interessados nela. A colega faz questão ainda de enfatizar e fazer inveja em Macabéa – essa atitude a valoriza. Ao namorar já um tempo Olímpico, ela pede que ele a ligue ao trabalho, uma vez só, e lhe entrega uma ficha, para que ele não tenha que custear o ato. Ela quer se sentir como Glória e, se possível, provocar em Glória a mesma inveja que ela tem. A comunicação é sim uma chave para se compreender a difícil adaptação de Macabéa. É possível, porém, apontar uma causa social para inadequação da migrante: o ambiente hostil. São Paulo, em seus personagens e seus locais, oprime Macabéa. Ela trabalha num escritório fechado, escuro, com pessoas que a rejeitam, e mora numa pensão, dividindo o quarto com três colegas. Macabéa se sente invadida a ponto de se trocar debaixo dos lençóis para que sua nudez não seja vista. Não à toa, ela prefere ambientes abertos, como o parque da Luz, o zoológico e o metrô, que mesmo fechado, tem uma área enorme e a coloca na situação de anonimidade, em que ninguém repara nela e, portanto, não a mal diz. Os demais personagens, porém, são a principal razão de Macabéa sentir-se tão deslocada. Ela é chamada, pelos chefes, por Glória e por Olímpico, entre outros, de diversos adjetivos e expressões pejorativas: “feia”, “feíssima”, “maracujá de gaveta”, “cara de sonsa”, “suja”, “desbotada”, “cheiro dela que é meio...”, “cara de quem comeu e não gostou”, “sem jeito”, “cabeça chata”, “baiana”. Além de falas diversas que a inferiorizam: “a zona está cheia de rapariga que perguntou demais”; “você está fingindo que é idiota ou é idiota mesmo?”; “não presta nem para dar cria”; “você é um cabelo na minha sopa, não dá nem vontade de comer”; “ser feia dói?”; entre outros. Os demais personagens humilham constantemente Macabéa por ela ser diferente, ignorante, nordestina e mulher. Ela não consegue se adaptar, porque ninguém a aceita como é. Olímpico, por exemplo, não admite que ela faça perguntas que ele não saiba responder, ficando na defensiva e partindo para o ataque a ela – ela, que só exercia sua

243 ignorância e sua vontade de aprender. São Paulo apresenta-se como um lugar hostil a Macabéa, como se ela fosse inferior por ser mulher, por ser nordestina, por ser pobre e precisasse aceitar essa inferioridade para conseguir viver na cidade. Essa pressuposta inferioridade faz com que a tratem mal e com condescendência (Raimundo, madame Carlota), reforçando uma pretensa superioridade dos outros. A migrante entende e isso lhe faz mal. Ela quer ascender, mas não porque é gananciosa, como Olímpico, que refuta a ignorância com agressividade e deseja ser deputado, mas porque quer “ser gente”, “ter jeito”, para que não se doa o tempo todo. O que parece prejudicar Macabéa especialmente é o fato de nunca se impor304 – porque não “está acostumada a ser gente”. Isso faz com que os demais personagens se aproveitem dessa suposta fraqueza – São Paulo é terra de ninguém e para sobreviver precisa ser forte. Em determinada cena, Olímpico pega uma flor da mão de Macabéa e poda as folhas. Em nenhum momento, ele pergunta se ela deseja isso, mas nota-se que a enorme felicidade no rosto dela se desvanece com o ato. Ela, que não tem voz em lugar algum, representa os migrantes nordestinos que vem à hostil São Paulo305. Suzana Amaral opta por uma direção discreta, clássica, naturalista, apostando no realismo das situações e no minimalismo das atuações (gestos, olhares, expressões) para externar os sentimentos dos personagens, em especial de Macabéa. O único momento em que Amaral permite um devaneio lúdico é ao término, quando, após ser atropelada, vemos Macabéa maquiada e bem vestida, aparentando glamour, correndo em direção ao estrangeiro previsto pela cartomante. A diretora filma a cena em câmera-lenta, esfumaçando as bordas do quadro, dando um viés de sonho para a cena, uma versão em que Macabéa não morreu e realizou seus desejos. Segundo Amaral: Ela morre. Queria que ela voltasse, por isso o final. Tenha uma concepção diferente da morte. As pessoas acham que acaba. Para mim não. Sou budista. Você continua, tem uma passagem. Para mim, aquilo é a continuação do filme. Ela foi na mulher [cartomante] e a mulher disse que ia ter o príncipe. O príncipe

304 Amaral, em entrevista para o autor em 05 de setembro de 2012, afirma: “Sabe aquela coisa de que, quando você está fora do Brasil, você descobre o Brasil? Descobri o Brasil estando lá [nos EUA] e descobri que a Macabéa é o Brasil. Uma metáfora do Brasil naquela época. Foi na época da repressão, anos 1970. Em 1975, quando saí daqui, os anos eram pesados.” A partir da fala de Amaral, é possível pressupor que Macabéa representava um Brasil sem voz, que não conseguia falar e nem impor dentro de um regime ditatorial, assim como a migrante não conseguia se impor em suas relações cotidianas. 305 É possível traçar uma trajetória entre diferentes obras que retratam o migrante nordestino no cinema brasileiro. Em Vidas Secas (1963), de Nelson Pereira dos Santos, a família de Fabiano é retirante e busca um local para fugir da seca e das mazelas sociais, a ponto de Sinhá Vitória desejar humanidade, um local onde seus filhos não sejam bichos. Em A Hora da Estrela, os migrantes estão na metrópole, São Paulo, mas continuam bichos, tidos como seres inferiores pelos locais. Em Que Horas Ela Volta? (2015), de , os nordestinos, em decorrência de uma série de avanços sociais por conta de medidas do governo, não precisam mais dos locais para encontrarem seu lugar na sociedade e se colocam como pares, e não como párias.

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não tinha acontecido, o filme tinha acabado, e ela não casava com o príncipe. Então foi para outra vida.306

Após viajar o mundo com A Hora da Estrela, Suzana Amaral acalentou diversos projetos, como as adaptações de Perto do Coração Selvagem, Mar Morto e O Caso Morel, além dos internacionais Love and Liberacion, coprodução EUA-Holanda, sobre Manuela Saenz e Simon Bolívar, e Um Estranho Vampiro (Vampire’s Kiss, 1988), que ficou a cargo de Robert Bierman. Dirigiu institucionais, publicidade e documentários. Fez, em 1992, a minissérie Procura-se, para a televisão portuguesa, e quase realizou O Caso Morel em 1997. Só voltou ao longa-metragem em 2001, com Uma Vida em Segredo, a partir da obra de , e em 2009, com Hotel Atlântico, baseado no texto de João Gilberto Noll. Desde 1999, leciona na graduação de cinema – na USP, entre 1999 e 2003, na FIRB entre 2003 e 2009, e na FAAP desde 2005 –, além de fazer consultoria de roteiro.

5.3.5 Ugo Giorgetti

Descendente de italianos, Ugo César Giorgetti (São Paulo, 1942) nasceu e cresceu no bairro de Santana, na zona norte de São Paulo. O gosto pelas artes veio do lar, especialmente por literatura e pintura, mas o esporte lhe chamava mais atenção, sendo armador do time de basquete do Espéria entre 1957 e 1963. O interesse por cinema foi tardio, passando a acompanhá-lo com afinco nos anos 1960 por conta do Neorrealismo italiano e da Nouvelle Vague francesa. Cursou Filosofia, na unidade da Maria Antônia, da Universidade de São Paulo, entre 1963 e 1965, sem, no entanto, concluir a graduação. Giorgetti deixou o curso porque precisava se sustentar. Em 1964, começou a trabalhar no departamento pessoal da Gessy-Lever, até 1966, quando foi demitido. Pouco depois foi admitido no setor de atendimento, como assistente de contato, na empresa publicitária Alcântara Machado, onde galgou posições até se tornar diretor, tendo como seu mestre Júlio Xavier da Silveira. Até os anos 1980, passou por diversas empresas publicitárias, como Denison, Proeme, Companhia de Cinema, Espiral, Frame, entre outras, trabalhando também como autônomo. Nesse período, tornou-se um dos principais diretores de comerciais do país. Foi com a publicidade que aprendeu como funciona o cinema

306 Em entrevista para o autor em 05 de setembro de 2012

245 tecnicamente e como é o cotidiano de um filme. O comercial também lhe instituiu valores como o apuro técnico e a clareza na abordagem dos temas307. Paralelamente, realizou seus primeiros exercícios cinematográficos: Campos Elíseos (1973), curta documental sobre o bairro homônimo de São Paulo, e o média documental Rua São Bento, 405 - Edifício Martinelli (1976). Em 1977, iniciou as filmagens de um documentário sobre o pugilista Éder Jofre e sua família. Feito em 16mm, com equipamentos emprestados, nas horas vagas, Quebrando a Cara só foi concluído em 1986 e não teve lançamento comercial. A opção pelo documentário foi orçamentária: saía mais barato que a ficção. Durante o percurso, escreveu e dirigiu a peça teatral Humor Bandido (1982). O primeiro longa ficcional veio quando Giorgetti sentiu estar preparado para fazer um filme profissional e organizado. Em 1982, associou-se ao produtor Raul Rocha, egresso da Boca do Lixo, para fazer Jogo Duro (1985). O longa foi realizado de forma cooperativa com outros profissionais da publicidade, com orçamento de US$ 80 mil, US$ 40 mil de Giorgetti e US$ 40 mil de Rocha. O fotógrafo Pedro Pablo Lazzarini, a diretora de arte Maria Isabel Giorgetti (e ex-mulher do diretor), o técnico de som Miguel Ângelo dos Santos Costa e o montador Paulo Mattos Souza entraram como sócios, declinando o cachê por porcentagem do filme. A câmera e a moviola foram emprestadas da Fathom Filmes e a luz da CPU. A ideia, para Giorgetti, era fazer um filme muito barato, por isso escreveu pensando em apenas uma locação fechada – sem variáveis de temperatura e sem deslocamento de equipe –, sem mobília para não precisar fazer com cenário, com poucos atores – um trio central formado por Jesse James, Cininha de Paula e Carlos Augusto Carvalho, além de Valéria de Andrade – etc. Jogo Duro foi filmado durante quatro semanas, em 1983. O filme foi bem recebido pelos festivais. Estreou no I RioCine, em agosto de 1985. Em 24 de fevereiro, estreou comercialmente em São Paulo – nunca chegou nessas condições ao Rio de Janeiro. Segundo Giorgetti, o público foi “ridículo”. O filme seguinte, Festa (1989), contou com melhores condições de produção e patronato oficial. Em 1986, Giorgetti ainda era um renomado e caro diretor publicitário e

307 Em entrevista para o autor, em 12 de março de 2015, Giorgetti afirmou: “Todo meu cinema é devedor da publicidade até hoje. Publicidade é uma forma de fazer cinema como outra qualquer, aliás igual. Era um longa-metragem em 30 segundos do ponto de vista técnico. Se você sabe fazer aquilo, você sabe fazer um longa. O que difere um filme publicitário, na essência, de um longa: um filme publicitário não é uma exposição sua ou sobre o mundo; ele só tem uma ideia: ‘compre esse produto’. E vou convencer você a comprar esse produto. Fora isso, a técnica, a maneira de fazer, não diferia muito pouco do longa-metragem.”

246 aceitou renovar contrato com a Companhia de Cinema, de Germano Dias da Silva, pelo valor proposto, se ele cedesse o estúdio pequeno, madeira e cenotécnico por dois meses para realizar um longa. Passou o tempo, Giorgetti mudou de empresa e só depois começou a levantar o novo filme, com dinheiro dele e de Nello de Rossi. O cineasta procurou Silva, que cumpriu o trato. Por conta da recepção de Jogo Duro, a Embrafilme entrou com 40% do orçamento, que teve um custo total de US$ 300 mil. Só depois de assegurar a produção que Giorgetti pensou no roteiro, submetendo a história às condições que tinha. Filmou ao longo de seis semanas, em 1987, em um único ambiente, criado em estúdio. Festa estreou em junho de 1989, no 17º Festival de Gramado, levando os prêmios de melhor filme, roteiro, ator (Abujamra e Stuart), edição de som (empatado com Faca de Dois Gumes), figurino e o prêmio da crítica. O lançamento comercial se deu em 29 de junho de 1989, no cine Belas Artes, em São Paulo, onde fez relativo sucesso. No Rio de Janeiro, chegou em 17 de agosto do mesmo ano. Até outubro, o filme tinha feito pouco mais de 20 mil espectadores. Tanto Jogo Duro quanto Festa fazem um retrato bastante peculiar sobre os diferentes extratos da população paulistana, tomando o ponto de vista dos marginalizados. Com um humor ácido e crítico, por diversas vezes cínico, em um único espaço, Giorgetti explora a exclusão social dando o protagonismo a esses personagens invisíveis – tão invisíveis que nem têm nome próprio. O cineasta aponta que o interessava fazer um filme sobre pessoas que não tinham nenhuma importância, pessoas que não tinham sindicato: “Se fala que a ditadura oprimiu o operário, mas ele tinha um sindicato. O Lula está aí para provar, ele tinha uma representatividade social. Era oprimido, mas tinha representação. Peguei uma marginalidade que não tinha chegado a se exprimir, era o lúmpen.”308 Em Jogo Duro, um corretor de imóveis (Antônio Fagundes) leva um conhecido, um ex-pugilista (Jesse James), para uma mansão abandonada. Ele mostra o local a esse sujeito mal ajambrado e lhe explica o serviço: deve mostrar a casa para quem se interessar em conhecer o espaço, vendendo seus melhores atributos. Se ele quiser um lugar para ficar, é o preço a pagar. Na casa, descobre que uma mulher (Cininha de Paula) e sua filha (Valéria de Andrade) a habitam clandestinamente, colocadas lá pelo vigia da rua (Cacá Carvalho)309.

308 Em entrevista para o autor em 12 de março de 2015. 309 Giorgetti, id.: “[Retratar] três pessoas que não faziam absolutamente nada era a coisa que me interessava nesse filme e me interessa até hoje. São profissões das quais você senta e fica olhando o eterno. Vejo no meu prédio. Tem um cara pago para ficar numa guarita de noite. Às vezes, chego tarde e tenho vergonha de apertar a campainha e acordar o cara. Tem que dormir mesmo. O que faz um cara sentado numa guarita

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No longa, o microcosmo em questão é o Pacaembu, bairro de classe alta, formado por enormes casarões, em franca decadência. Com o aumento da criminalidade no local, bem como a falta de dinheiro dos outrora abonados que não conseguem mais se manter no mesmo patamar, o Pacaembu viu seus terrenos abandonados. É nesse contexto que acontece Jogo Duro. A maior ocupação do bairro se dá, justamente, nos dias de jogos de futebol que acontecem no estádio vizinho. Esse ponto de partida permite a Giorgetti reunir (quase) sob o mesmo teto três figuras bastante próximas no espectro social. Logo se inicia um triângulo amoroso que descamba para um lado passional que o diretor abdicou em Festa. Em Jogo Duro, o cineasta explora, de maneira espontânea, quase antropológica – ainda que o roteiro seja completamente construído –, as diferenças entre os protagonistas do filme e a alta ordem social. Essa oposição se dá entre eles e o meio que passam a habituar, nunca há confronto direto. Os três têm de lidar com uma construção social que não os legitima e sequer os admite. A função do vigia só existe por conta da violência urbana que se torna mais comum em meados dos anos 1980, mas o guarda da rua é completamente despreparado e seria inútil em um caso real. Sua função é apenas uma aparência. Giorgetti opõe, assim, a aparência (o mundo rico, em que o tamanho da casa demonstra status social e a existência de um anônimo com uma arma denota segurança, por exemplo) e o corpo físico, o real (os três marginalizados, que só existem enquanto corpo, matéria, já que invisíveis em termos de aparência e status). Não à toa, o cineasta reforça a imagem dos personagens e diminui o peso do local. Vemos apenas a rua e partes de uma casa abandonada, vazia, nos planos abertos e como pano de fundo dos planos fechados do trio que permeiam o filme. Já em Festa, a oposição entre os marginalizados e os mais abastados se faz presente. No longa, a classe alta requisita a baixa. Um jogador de sinuca (Adriano Stuart), seu ajudante (Antônio Abujamra) e um gaiteiro () são contratados para entreter os convidados de uma festa grã-fina na mansão de um senador, porém devem esperar em uma antessala, até serem chamados. Ou seja, coabitam o mesmo espaço. A secção, porém, é arquitetônica. Enquanto os convidados aproveitam a noite no andar de cima, os subalternos circulam e aguardam no de baixo.

olhando pras trevas? O que faz um cara esperando um comprador que nunca vem naquelas casas do Pacaembu? Não vai ninguém lá olhar. Essas profissões inúteis me interessam até hoje. Às vezes fico olhando pessoas que passam a vida esperando alguma coisa acontecer e não acontece.”

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A diferença ente o trio (Stuart, Abujamra e Mautner) e os demais subordinados é que estes são funcionários, empregados registrados, que sabem seu papel social e tem uma representação. Apenas cumprem suas funções. O trio não. São pessoas que não parecem acostumadas àquele arranjo, que circulam em meios apenas em que parecem iguais – e exigem certa dignidade para exercerem seu trabalho, como todos ali, mas não tem uma função social específica designada. O que difere Festa de Jogo Duro é a relação dos lumpén para com a alta sociedade. Enquanto este mostra esses personagens ocupando um espaço vazio deixado pelos ricos, confrontando-se com a ideia da fortuna, aquele trabalha o embate físico, em que os marginalizados são constantemente lembrados de sua condição social pelos endinheirados. Eles não se esgueiram por onde não foram chamados. Eles foram requisitados para entreter a alta classe. A espera é eterna. Pouco importa se serão chamados para fazerem algo, devem permanecer à disposição e é por isso que são pagos. Para sobreviverem, precisam se vender. Uma regra logo lhes é imposta: não devem sair daquela sala, onde há a mesa de bilhar. Descobrem também que comes e bebes são restritos aos convidados de verdade. São os serviçais com uma nova roupagem. Enquanto aguardam, uma série de tipos se alternam no ambiente (os garçons, a babá, a filha do dono, um convidado alcoolizado, um grupo que desce para jogar sinuca). Nesse contexto, aparece um personagem um tanto inusitado. Um ator global, interpretado por Ney Latorraca, deve fazer um discurso pró-senador, que será novamente candidato. Está ali como os outros, contratado, para entreter os convidados. Mas ele é famoso, reconhecível, e, portanto, é um igual e já ascendeu daquele porão de obscurantismo. Como proclama diversas vezes o personagem de Abujamra: “Ele é alguém.” A fala denota a consciência da invisibilidade de forma um tanto melancólica. Não à toa, Jogo Duro apresenta seus protagonistas ocupando o espaço deixado por uma nobreza decadente, a aristocracia que não tem mais lugar no mundo moderno, enquanto, em Festa, Giorgetti se debruça sobre a fortuna contemporânea, os mandantes de hoje – no caso, de 1989 –, em que nunca vemos quem os excluem, apenas seus intermediários (os funcionários). Nele, a festa é de um senador da Nova República, que nunca aparece, rico, com uma casa moderna enorme e um jardim gigante. Os marginalizados não ascenderão jamais ao andar de cima. Giorgetti explica:

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[Me interessava] transformar os figurantes em atores principais. Na vida, você ver a situação em que ele claramente é um figurante e olhar do ponto de vista dele. É uma festa que não é deles. A nação inteira, hoje, participa de uma festa que não é dela. No Brasil, tradicionalmente, a população é coadjuvante na festa. O Festa foi uma tentativa de mostrar isso, que o poder é invisível. Isso é uma coisa que me atrai até hoje, estar sempre em um lugar em que você está tentando descobrir o que é.310

No longa, enquanto aguardam, o trio central tenta tirar o melhor proveito, de preferência financeira, daquele evento, para eles, falido. Surgem, assim, as conversas cotidianas, insignificantes, em que a intenção de cada figura dramática é delineada. Giorgetti constrói as personagens a partir dessas interações. Recurso já visível em Jogo Duro e mais aprofundado em Festa – já que, para eles, restava basicamente conversar. Ugo Giorgetti, aliás, arquiteta quase todos seus filmes a partir da fala, dos diálogos. As ações são pequenas, quase inexistentes, e o diálogo suprime uma ausência de movimentação. As discussões dos três (James, Carvalho e Cininha) giram em torno de uma certa malandragem recatada, em que justificam o discurso do jogador de sinuca de Festa: o importante é se garantir, ou seja, saber exatamente o que fazer para conseguir melhorar sua vida; em que o individualismo vem da necessidade de sobrevivência. Interessa ao personagem de Jesse James, por exemplo, que a casa não seja vendida, assim como deixar transparecer a ideia de que a mulher só tem casa porque ele a deixa ficar, entre outros. Não é, porém, por retratar personagens estigmatizados pela sociedade que Giorgetti é benevolente com eles. Entre os conflitos, estão o exercício de poder dos homens sobre a mulher em Jogo Duro. Ambos lutam pelo amor e pela posse dela, como se ela fosse uma propriedade ou se a manutenção dela no espaço tivesse um preço. Ela, a mais esperta dos três, sabe jogar com os dois, de forma a conseguir, mesmo que sob um preço, o que quer. Em Festa, o jogador de sinuca e seu parceiro tentam engrupir o músico, servindo-lhe álcool e afins, para que apostem num jogo de sinuca; ou seja, não há ética entre os pares. O que mais diferencia os filmes de Giorgetti, porém, é a construção do humor e da comédia, sempre moldando seus filmes, a partir dos diálogos e da encenação. Seu humor é contido, crítico e melancólico, sem apostar na piada e no riso fácil, mas buscando encontrar um respaldo no real, seja através do absurdo da situação, seja na lembrança do passado. Rosane Pavam aponta:

310 Em entrevista para o autor em 12 de março de 2015.

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Seu humor frio é exercido a ponto de, muitas vezes, negar o próprio humor, ou seu efeito imediato que tomamos por sinônimo, o riso. A depender da situação social agravante, da cultura em desfacelamento que esses filmes comentam, o humor dentro deles ganhará apenas seu significado primitivo de bílis da amargura.311

As tramas de Jogo Duro e Festa são sérias, mas Giorgetti traz a leveza do humor e da ironia. Por exemplo, Jogo Duro começa com uma narração em voz over e imagens de um casarão e do bairro do Pacaembu montados como uma peça publicitária de venda do local. Dentro das circunstâncias de um longa-metragem cinematográfico, o início parece deslocado, já que, sabemos, o filme não está vendendo imóvel algum. A narração cadenciada descortina um humor fino, quase paródico, provocando maior estranhamento sobre o que vemos. A intenção de Giorgetti é clara: introduzir o espaço da aparência, valorizado como só poderia ser na publicidade, mas que, na realidade, está decadente e abandonado – como descobrimos pouco depois. No mesmo tom, vemos o ensaio do discurso do ator acerca do senador, em Festa. O conteúdo, em si, não provoca o humor, mas sim a atuação, a encenação dele para aquele trio que nem sabe quem ele é e pouca se importa com o que ele diz – o tom solene, as refações, a movimentação premeditada, apontando suas intenções, com a assessora imitando cada passo ensaiado ao lado. A política é uma performance. Os filmes de Giorgetti tendem sempre a serem diretos, objetivos. Não só nos temas e nas discussões propostas, como na forma. Seus longas têm narrativa linear, as lembranças são geralmente faladas (e não mostradas em flashbacks, com exceção de Boleiros), e a câmera trabalha basicamente com a ideia de campo. Tudo que interessa à ação é enfocado, movimentando-se de forma a revelar nuances, perspectivas e dar agilidade a um filme que se passa quase todo no mesmo espaço. Esses procedimentos se coadunam com a premissa central de seu cinema: ser claro. Ele explica: [Existe] um cinema que cuidadosamente ou de propósito oculta o que tem a dizer, porque torna enigmático, faz acrobacias, cortes. Senhores, o que esse cara está querendo me dizer exatamente que não estou vendo com clareza? Recomendo a bibliografia a respeito (risos). Tem uma entrevista com o sempre brilhante professor Antonio Candido em que perguntam para ele: ‘O senhor é um sociólogo de formação, um crítico, mas escreve de maneira clara, simples’. ‘Simples não, mas clara, sim. Eu, escrevendo claramente, a mensagem se torna não um privilégio de alguns, mas um bem comum.’ Ele foi bondoso. Não é privilégio de alguns, é privilégio de ninguém. Não tenho saco para isso. Aliás, a arte moderna é defendida teoricamente e isso é o terror da arte moderna. Para você fazer um quadro hoje, você precisa ter um ensaio explicando-o. Não tem o menor sentido.312

311 Rosane PAVAM. O cineasta historiador: O humor frio e o filme Sábado, de Ugo Giorgetti, p. 183. 312 Em entrevista para o autor em 12 de março de 2015.

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Após Festa, Giorgetti lançou Sábado (1994), longa que o demoveu de inscrever filmes em festivais. Em 1996, fundou a produtora SP Filmes de São Paulo para realizar o episódico Boleiros – Era uma Vez o Futebol (1998), já feito dentro do modelo de produção da Retomada. O filme ganhou continuação em 2006, com Boleiros 2 – Vencedores e Vencidos. Fez ainda O Príncipe (2002), um balanço sobre a sua geração, Solo (2009), um monólogo com Antonio Abujamra, Cara ou Coroa (2012), filme de época sobre a ditadura militar, e Uma Noite em Sampa (2016), em que remonta às suas origens em termos de produção para falar do medo invisível da classe média. Sem trabalhar com publicidade desde os anos 1990, o cineasta dedicou-se também aos telefilmes: Uma Outra Cidade (2000), Uma História Toscana (2002), Variações sobre um Quarteto de Cordas (2004), Pizza (2005), Dr. Sampaio (2008), Em Busca da Pátria Perdida (2008), Santana em Santana (2009), Paredes Nuas (2009) e Cidade Imaginária (2014). Fez também a direção cênica da ópera Norma, de Vincenzo Bellini, em 2010.

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6 POLÍTICAS CINEMATOGRÁFICAS

Como aponta em seu ensaio Cinema brasileiro: propostas para uma história, Jean-Claude Bernardet vê o desenvolvimento do cinema brasileiro atrelado ao “papel fundamental exercido pelo Estado” ao longo de sua história, tendo o marcado “tão profundamente quanto a própria presença do cinema estrangeiro, pois ambos constituem as duas balizas entre as quais se estruturou a produção cinematográfica”313. Publicado em 1979, o texto do crítico continua atual e a relação do Estado com o cinema foi fundamental para a proliferação da geração paulista dos anos 1980. Ela parece ter florescido apenas por conta dos convênios entre a Empresa Brasileira de Filmes S/A (Embrafilme) e a Secretaria do Estado da Cultura de São Paulo (SEC-SP), assinados em 1977 e 1984, e tão batalhados pela Associação Paulista de Cineastas (Apaci). Juntos, foram responsáveis por 11 dos 30 filmes abordados neste trabalho – sendo que 7 destes 30 foram feitos na Boca do Lixo e outros dois foram realizados com capital privado apenas. Vale ressaltar que, no primeiro convênio, de 1977, quase todos os inscritos foram selecionados. Não foi encontrado o registro de quem ficou de fora, mas é possível assumir que o baixo contingente de diretores não atrelados à Boca do Lixo em São Paulo à época permitiu que estreantes conseguissem maior espaço, dado que as produções da Boca eram bastante mal vistas pela empresa, possibilitando a abertura para uma nova geração, formada, em maioria, pela universidade, em cinema. Outros apoios e editais da Embrafilme, de maneira não sistêmica como os convênios com São Paulo, também contribuíram para a geração. Entender, portanto, a geração paulista dos anos 1980 é entender também como a classe, o Estado, o mercado e as políticas cinematográficas se articularam, através de órgãos como a Apaci, a Embrafilme e o Concine. Especialmente porque, assim como os convênios da Embrafilme com a SEC-SP, articulados pela Apaci, promoveram a existência e a expansão dessa geração, foi a extinção da Embrafilme, do Concine e das políticas para o setor com o governo de Fernando Collor de Mello, em 1990, que esse cinema foi desmantelado.

313 Jean-Claude BERNARDET. Cinema brasileiro: propostas para uma história, p. 61. O crítico ainda aponta que: “Na posição indefesa em que se encontravam os produtores diante da agressividade das empresas estrangeiras, só no Estado encontraram eles uma força, a única, que lhes permitisse enfrentar de alguma forma a presença avassaladora do cinema estrangeiro.” Cf. Ibidem, p. 52.

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6.1 Apaci

A Associação Paulista de Cineastas foi fundada em 23 de junho de 1975314, nos moldes da Abraci, a Associação Brasileira de Cineastas, criada meses antes e sediada no Rio de Janeiro, com predominância de profissionais que atuavam no estado. Como aponta no artigo segundo de seu regimento, a “associação tem por fim o estudo, a divulgação e a defesa do cinema paulista, bem como o exercício e defesa dos direitos de seus associados”. Ou seja, foi a partir do ensejo de se batalhar melhores posições na política cinematográfica para o cinema paulista que a Apaci foi fundada, transformando os problemas e as reivindicações em questão de classe315. Já no primeiro boletim, de julho de 1975, a associação pontua como particularidades específicas da classe de São Paulo a serem superadas e que deveriam nortear a política: as dificuldades encontradas no relacionamento junto às agências INC e Embrafilme e a reativação das fontes de captação de recursos objetivando a dinamização da produção de filmes de curta e longa metragens em São Paulo, “para que se possa aproveitar a grande disponibilidade e potencialidade existentes em nosso Estado”316.

314 Na R. Albuquerque Lins, 171, residência do cineasta Maurice Capovilla que a cedeu para a reunião. Estavam presentes na fundação (por ordem de assinatura): Reinaldo Volpato; Alain Fresnot; George Richard; Adilson Ruiz; João Batista de Andrade; Wagner de Carvalho; Ignácio de Loyola Brandão; Roberto Mauro; Luiz Castilini; José Marreco; José Sebastião de Souza; Silvio Bastos; Enzo Barone; Luna Alkalay; Maria Salma Buzzar; Eduardo Leone; Mario Kuperman, Heron D’Ávila; Jan Koudela; Carlos Xavier Shintomi; Jorge Alfredo Pfister; Maria Aparecida (?) Bastos; José Antonio Garcia; Cleto Mergulhão; Plácido de Campos Jr.; Adilson Rocci (?); Margarida Ferreira Caldas; José C. de Souza; Lisete Laghetto; ?; Liviu Norbert Spiegler; Cristina Santeiro; Virgilio Roveda; Jefferson dos Santos; Marta Salomão Jardini; Miklos Burger; Nilton Nascimento; Roberto Malzoni Filho; Renato Tapajós; Roberto Duarte; Lucio Kodato; Mario Masetti; Djalma Limongi Batista; Ismael Fernandes; Aloysio Raulino; dos Santos; Sidnei de Paiva Lopes; Amilcar Monteiro Claro; Tania Savietto; Ubirajara de Carvalho e Castro; Eda Tassara; Marcelo Tassara; Hector Babenco; Jorge Bodanzky; Francisco Ramalho Jr.; Guido Juvêncio Ramos; Maurice Capovilla; Tito Teijido; Ricardo Lua; Eder Mazini; Walter Rogério; Pio Zamuner; Kuja; Jean Garrett; Ana Elisa Bueno; Egydio Eccio; Sergio Muniz; Edward Freund; Antonio Carlos Contrera; Thomaz Farkas; Alberto Roger Hemsi; George Walfurd; Vicente de (?); Sérgio Dávila Almada; Paulo Piccai; Antonio G. dos Santos (Ticão); José Adalto Cardoso; Chico Guerrissi; Ercilio Tranjan; Nilce Cervone; José Vedovato; Enoque Batista; ?; Pedro Grimaldi; Fernanda Ferraz; Denoy de Oliveira; Ugo Giorgetti; Esmeraldo Camargo; Adilson Bonini; José Deocleciano (?); Daniel Alves Farias; Antonio da Silva; ? (Azeitona); José de Anchieta; Rodolfo Sanchez; Carlos Alberto Riccelli; Inácio Araujo; ; José Mota; Penna Filho; Carlos Reichenbach; Nelson Tavares José; Suzana Amaral; Alfredo Sternheim; Roberto Santos; João Callegaro; Carlos Alberto Dalia; Flavio Portho. 315 Antes da Apaci, o cinema de São Paulo contava com o Sindicato da Indústria Cinematográfica do Estado de São Paulo (Sicesp), voltado para os produtores, e com o Sindicato dos Artistas e Técnicos em Espetáculos de Diversão (Sated), para artistas e técnicos. Após a fundação da Apaci, outros órgãos foram criados no estado, como a Associação Brasileira de Documentaristas e Curtametragistas de São Paulo (ABD-SP), em 1978, e a Cooperativa Paulista de Cinema, em 1980. 316 ASSOCIAÇÃO PAULISTA DE CINEASTAS. Boletim Informativo nº 01, p. 1.

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Com eleições bianuais e primeira sede na R. Afonso Celso, 362, no Museu Lasar Segall317, a associação elegeu como primeira diretoria Egydio Eccio (diretor presidente); Roberto Santos (diretor vice-presidente); Carlos Alberto Dalia (diretor secretário- executivo); Maurice Capovilla, Suzana Amaral, Claudio Portioli e João Batista de Andrade (diretores); Sérgio Muniz, Flávio Portho e Marcelo Tassara (conselho fiscal efetivo); Gianfrancesco Guarnieri, Denoy de Oliveira e Edward Freund (conselho fiscal suplente). Percebe-se, a partir dos documentos e da atuação pública da entidade, que duas questões efetivamente balizaram o discurso da Apaci ao longo dos anos 1970 e 1980. Uma, de viés nacional-desenvolvimentista, repercutia em toda classe no Brasil e visava a implementação de uma política que, segundo os cineastas, permitiria competir mais equilibradamente com o cinema estrangeiro, aumentando assim o market share da produção local. Questionava-se a hegemonia do cinema norte-americano por uma concorrência desigual, visto que o filme estrangeiro já vinha pago (pelo mercado interno) e, portanto, podia ser comercializado com distribuidores e exibidores por um preço menor, além de não pagar taxas alfandegárias, saindo mais barato inclusive que o negativo virgem para as produções nacionais que tinha de ser importado e taxado. Outra reivindicação é que a cota de tela (a lei de reserva de mercado) incidia sobre o cinema brasileiro e não sobre o estrangeiro. Os cineastas acreditavam que deveria haver um limite máximo de dias para o filme de fora e não um mínimo para o cinema brasileiro – ainda que tenha sido a reserva de mercado que garantiu parte do sucesso em ocupação de mercado do nosso cinema no final dos anos 1970 e início dos anos 1980. Com isso, acabava por se favorecer as multinacionais, pois o filme nacional era naturalmente mais caro, tornando-se quase inviável frente ao produto estrangeiro mais atraente. Segundo a associação318, foi o favorecimento da justiça que fez esmorecer a Lei do Curta319, por conta das sucessivas liminares concedidas contra a exibição dos filmes. Em textos bastante enfáticos, a Apaci também reivindicava, entre outros, a implementação, em nível

317 Em 1977, a Apaci mudou para a R. do Triunfo, 134/68, no coração da Boca do Lixo. Atualmente, está na R. Cristiano Viana, 1430. 318 Cf. ASSOCIAÇÃO PAULISTA DE CINEASTAS. Boletim nº 15. 319 A chamada Lei do Curta tem como base o artigo 13 da Lei Federal 6281/75, em que diz que nos programas em que constar filme estrangeiro de longa-metragem, seria estabelecida a inclusão de filme nacional de curta-metragem, de natureza cultural, técnica, científica ou informativa, além de exibição de jornal cinematográfico. Outras resoluções do Concine, que passou a regulamentar a lei (18, 37, 52 etc.), instituíram a exibição obrigatória nas cidades com mais de 100 mil habitantes, bem como a necessidade de Certificado de Produto Brasileiro (CPB) e 5% da renda bruta da bilheteria para os curtas (em sua cadeia, produtor, distribuidor e exibidor), entre outros. Os exibidores ainda encontraram outras formas de driblar a obrigação: passaram a produzir filmes de baixa qualidade e a comprar os direitos de exibição a preço fixo.

255 nacional, de circuitos de exibição comercial ligados aos setores de produção cinematográfica; uma legislação que garantisse para o filme brasileiro uma parte do espaço destinado a filmes nas televisões brasileiras, “pondo fim à absurda presença estrangeira num espaço cultural e economicamente nosso, cuja ocupação e manipulação tem efeitos sobre o controle psico-social da população”320; e estímulo e sistematização da difusão do filme brasileiro em áreas que lhe são cultural e geograficamente afins, como a América Latina e África, tornando-o competitivo nesses mercados. A segunda questão – e a que mais pautou as ações da associação em seus primeiros vinte anos de atuação – era o centralismo do Rio de Janeiro quanto ao repasse de recursos públicos, notadamente pela Embrafilme. Havia, de fato, uma facilidade: a Embrafilme, diferentemente do governo, era sediada no Rio de Janeiro, o que facilitava o trânsito entre cineastas locais nas premissas. Para o cineasta paulista (ou de qualquer outro estado), era necessário um deslocamento, o que inclui gastos com viagens, hospedagem ou, ao menos, longos interurbanos. Em suas primeiras gestões, a Apaci acusou a Embrafilme de clientelismo, privilegiando cineastas que atuavam no Rio e amigos da direção – em especial na gestão de Roberto Farias (1974-1979), notável diretor, produtor e distribuidor carioca. A Embrafilme foi criada em 1969, através do Decreto nº 862, como órgão auxiliar ao Instituto Nacional de Cinema (INC), com o objetivo, de distribuir e promover filmes brasileiros no mercado externo, podendo exercer atividades comerciais ou industriais relacionadas com o objeto principal de suas atividades. Em 1970, passou a ter o controle do programa de financiamento de filmes brasileiros de longa-metragem, antes pertencente ao INC, fator que promoveu o fortalecimento da Embrafilme. Os financiamentos funcionavam como empréstimos aos produtores com juros baixos. Em 1973, houve uma reformulação das políticas públicas para o cinema, resultando na criação do Conselho Nacional de Cinema (Concine), na fusão do INC com a Embrafilme e na distribuidora, com a lei 6821, em 1975. A empresa passou a assumir os riscos do cinema brasileiro, atuando como coprodutora e/ou distribuidora dos filmes. A receita da empresa era constituída, além dos rendimentos sobre os filmes, por uma taxa por título exibido no mercado brasileiro e sobre percentual da remessa de lucros das distribuidoras de filmes estrangeiros (40%).

320 ASSOCIAÇÃO PAULISTA DE CINEASTAS. Boletim nº 17, p. 7.

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Entre 1970 e 1975, a Embrafilme financiou 105 filmes, sendo que 89 eram cariocas e 16 paulistas. Como coprodutora, entre 1973 e 1975, dos 41 filmes, 38 vinham do Rio de Janeiro e 3 de São Paulo. A criação da Apaci surge exatamente para reverter essa situação. Em reportagem da revista Visão, de 07 de julho de 1975, duas semanas após a fundação da associação, cineastas paulistas reclamavam do fato de que, dos 78 projetos à espera de aprovação na Embrafilme para financiamento, apenas 4 eram de São Paulo, enquanto os outros 74 eram cariocas. O estabelecimento de uma associação de classe regional inclusive acirrou os ânimos do cinema brasileiro, aumentando a rivalidade entre Rio e São Paulo – este, de um lado, buscando para si um quinhão; aquele não querendo ceder suas conquistas. Nisso, é curioso notar a reação dos cineastas cariocas frente às reclamações paulistas e à criação da Apaci: Lucy Barreto (...) não vê razão nas queixas contra a Embrafilme, achando que ‘isso é conversa de paulista’. É praticamente a mesma opinião de outros realizadores cariocas, como Gustavo Dahl, que explica a disparidade de projetos de financiamento aprovados de cariocas e paulistas como ‘um problema de criatividade: os cariocas têm mais’. Para Dahl, a criação da Apaci não passa de ‘uma atitude provinciana e divisionista dentro do cinema brasileiro’.321

As falas de Lucy Barreto, esposa e sócia do principal produtor brasileiro da época, Luiz Carlos Barreto, e de Gustavo Dahl são combativas e trazem um ranço preconceituoso, sem se preocuparem em manter uma imagem cordial. Parece mais problemático, no caso, Dahl que, entre 1975 e 1979, ascendeu de assessor de Farias na Embrafilme para superintendente de comercialização, sendo um dos principais aliados do diretor-geral em sua gestão. Dahl ainda foi presidente do Concine entre 1985 e 1987. Na mesma reportagem, Roberto Farias disse que São Paulo “merecia uma outra Embrafilme”, já que a sede local não tinha autoridade, servindo apenas como transmissor. Ou seja, havia uma insuficiência em atender o cinema paulista; apenas no Rio conseguia- se fazer um trabalho eficiente. Em 1980, já na gestão Celso Amorim, na Embrafilme, a Apaci continuou a questionar os poucos recursos para São Paulo. No Boletim nº 17, há um balanço do cinema brasileiro em 1979. Nele, registra-se que, dos 94 filmes lançados, 56 filmes eram paulistas, contra 34 do Rio e 4 de outros estados (DF, RS, AM e GO). No entanto, a configuração da participação da empresa era bastante diferente. Dos 26 filmes por ela

321 O vazio cinema paulista, Visão.

257 amparados, 8 eram de São Paulo, o equivalente a 14% do total do estado, enquanto os cariocas tiveram 17 filmes contemplados, 50% do total – além de um de Brasília. Enquanto o cinema paulista representava 60% da produção nacional, era apenas 30% do apoio da empresa; inversamente proporcional ao apoio no Rio, com 36% da produção e 65% do apoio. Tal resultado colocou a Apaci em duas frentes: “criar novos esquemas de incentivo à produção” e “garantir um circuito de exibição comprometido com uma produção brasileira e diversificada”. Segundo o Boletim ainda, boa parte dos filmes de São Paulo são de fácil apelo erótico. Os que fogem desse esquema, porém, mesmo com apoio da Embrafilme, recebem um “sub-lançamento”, por conta de uma “discriminação (...) dos programadores de exibição”322. Os ataques menos velados à administração da empresa, porém, podem ser vistos no Boletim nº 16, de novembro/dezembro de 1979, em que se utiliza de um mote pequeno, quase insignificante, para explicitar como veem a relação da companhia com o cinema de São Paulo e estruturar seus argumentos contrários à centralização no Rio de Janeiro. Nele, a associação reserva a última nota para criticar o informativo da Embrafilme: Apesar da regular produção de filmes em São Paulo, às vezes em número superior aos demais Estados, o boletim da Embrafilme é paupérrimo em notícias paulistas. Claro que um Boletim bolado, escrito e rodado no Rio, acabaria por tecer os mínimos detalhes sobre o cineasta carioca, seus filmes, seus projetos, desde roteirização, escolha de locação etc. Isto não teria grande importância se não refletisse o centralismo da Embra no Rio, com total prejuízo para nossa produção. Nossas constantes viagens, nossas contas telefônicas vão a custos impossíveis de serem mantidos, especialmente pelo realizador. A presença de um representante da Diretoria Geral em São Paulo, em que o pese o esforço despendido pelo mesmo, será sempre ridículo diante de nossas necessidades e dos projetos que realizamos. A desinformação do Boletim tem um lado negativo para o cinema brasileiro, que fica desconhecendo nossas tentativas de realizar um cinema sem recursos e sem associações inconvenientes; É fundamental o boletim se intitular ‘Nosso cinema informativo’.323

Antes, no mesmo boletim, a Apaci questionava o papel na questão da finalidade da empresa: “EMBRAFILME para prestígio de grandes filmes de ‘qualidade’ ou EMBRAFILME como organismo a serviço dos cineastas para implantação de uma política democrática de produção e avanço sobre a exibição?”, relativizando ainda o apoio financeiro que “tem sido até um pouco bissexto”. Dez anos após a fundação da associação, em 1985, houve uma revisão do estatuto, em que a eleição passou a ser anual, entre outros, e se alterou o artigo segundo, em que o

322 ASSOCIAÇÃO PAULISTA DE CINEASTAS. Boletim nº 17. 323 ASSOCIAÇÃO PAULISTA DE CINEASTAS. Boletim nº 16.

258 termo “cinema brasileiro em São Paulo” substituiu “cinema paulista”324. A mudança é bastante simbólica. Em tempos de transformações no sistema político brasileiro e da discussão em torno da democracia, tornou-se muito mais politicamente correto assumir o discurso da descentralização da Embrafilme, ao invés de simplesmente a maior participação do cinema paulista. Isso, porém, não significou que a Apaci tenha parado de exigir a aprovação de mais filmes de São Paulo, mas que o discurso passou a ser sobre a necessidade de a empresa não centralizar os recursos na produção carioca e não apenas sobre a importância e volume do cinema paulista dentro do panorama brasileiro. Exemplo disso é a carta do então presidente da Apaci, Reinaldo Volpato, ao então Ministro da Cultura Aluísio Pimenta, em 03 de fevereiro de 1986. Volpato reivindica uma transformação radical da Embrafilme e aponta a sensação de centralismo da empresa sem advogar maior participação paulista, apesar de isso estar no subtexto. Escreve ele: “A extrema centralização das decisões e controle sobre os projetos na atual forma de atuação da Empresa contribui enormemente para o sufocamento da atividade cinematográfica e isto é lastimável, enervante e principalmente inflacionário.”325 A sensação de que a Embrafilme privilegiava o cinema feito no Rio de Janeiro perpassa até hoje o discurso dos diretores da época. Djalma Limongi Batista, por exemplo, em sua biografia, aponta que a empresa foi “criada para proteger os egressos do Cinema Novo do regime capitalista bravo que a ditadura havia imposto. Era, no entanto, um clube fechado, uma panelinha impenetrável”326. Na mesma toada, Alain Fresnot defende que a empresa fora fundada “pelas lideranças cinematográficas cariocas e evidentemente era o pessoal do Rio que ditava as regras”. Para ele, como o cinema paulista era fraco na época, tinha pouca vantagem. Diz: “Era um momento em que o cinema brasileiro era casa de pouco pão, como ainda é, e assim, todo mundo brigava e ninguém tinha razão, como ainda é.”327 Nada se compara, porém, à colocação de Jair Correia: “Era tão difícil emplacar projetos na Embrafilme que quando o Egydio Eccio ganhou o edital de filmes para televisão com o projeto João Juca Jr., Detetive Carioca teve um enfarto e morreu. A Embrafilme era quintal dos diretores cariocas.”328 Aqui importa menos se Eccio de fato faleceu devido à animosidade frente à vitória na

324 Passando a ser: “A associação tem por fim o estudo, a divulgação e a defesa do cinema brasileiro em São Paulo, bem como o exercício e defesa dos direitos de seus associados.” 325 Reinaldo VOLPATO. [Carta] 03 de fevereiro de 1986, São Paulo [para] Aluísio PIMENTA. 326 Marcel NADALE. Djalma Limongi Batista: Livre Pensador, p. 85. 327 Alain FRESNOT. Alain Fresnot: Um Cineasta sem Alma, p. 172. 328 Em entrevista para o autor em 22 de novembro de 2011.

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Embrafilme. A anedota de Correia ilustra bem, de maneira um tanto radical, um pensamento do cinema paulista acerca das dificuldades de se fazer cinema com apoio do Estado.

6.2 Polo cinematográfico de São Paulo

Por conta da pressão exercida pela Apaci e por outros segmentos do cinema afastados do Rio de Janeiro, Roberto Farias tentou pôr em prática um programa de criação de polos regionais, em que a empresa entraria com o dobro de recursos investidos por qualquer governo estadual. O plano de Farias chegou a render alguns poucos filmes no Rio Grande do Norte, em Minas Gerais e na Bahia, porém São Paulo teve uma quantidade significativa por força do volume de produção e influência política da associação. A Embrafilme e a SEC-SP acordaram a realização de 12 longas-metragens e a finalização de outros seis, num total de 18 longas, que deveriam ser selecionados pela Comissão Estadual de Cinema. Assinado no segundo semestre de 1977 por Roberto Farias e pelo então Secretário da Cultura Max Feffer, o convênio dispunha de Cr$ 32 milhões, sendo Cr$ 21 milhões da Embrafilme e Cr$ 11 milhões do Estado. A divisão da contribuição no filme era: 20% do governo do Estado, 40% da Embrafilme e 40% do produtor – além da possibilidade de adiantamento da Embrafilme sobre rendimentos da bilheteria de 20% do orçamento. Foram inscritos 27 projetos. A seleção foi anunciada no começo de 1978. Na categoria produção, foram contemplados: Manelão, o Caçador de Orelhas, de Ozualdo Candeias; O Homem que Virou Suco, de João Batista de Andrade; O Baiano Fantasma, de Denoy de Oliveira; Paula, a história de uma subversiva, de Francisco Ramalho Jr.; O Último Vôo do Condor, de Emílio Fontana; Asa Branca, um sonho brasileiro, de Djalma Limongi Batista; Noites Paraguayas, de Aloysio Raulino; Guichê do Lado, de Jorge Bodanzky; Café com Creme, de Chico Botelho; Uma História de Luxo e Lixo, de Ugo Giorgetti; O Fim de Semana no 3º Mundo, de Antonio de Pádua; Muro de Arrimo, de Beca Produtora, com roteiro de José Rubens Siqueira e possível direção de Rodolpho Nanni. Na categoria finalização, foram selecionados: Aopção, de Ozualdo Candeias; Jânio a 24 Quadros, de Luiz Alberto Pereira; Diacuí: A viagem de volta, de Ivan Kudrna; O Rei da Vela, de José Celso Martinez Corrêa329; Maldita Coincidência, de Sérgio

329 Noilton Nunes integrou posteriormente o projeto como codiretor.

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Bianchi; e A Caminho das Índias, de Augusto Sevá e Isa Castro. Dos 18 projetos, 10 eram de estreantes330. Porém, o polo tardou a realmente funcionar. Em reportagem da Folha de S.Paulo, em outubro de 1978, Sérgio Bianchi reclamou da demora no repasse das verbas: Aqueles que estão realmente fazendo cinema em São Paulo não conseguem financiamento porque estão fora do jogo de pressões, contrapressões e ameaças; porque têm de lutar contra as influências, do MIS, contra a burocracia da Comissão de Cinema da Secretaria da Cultura e da própria Embrafilme em São Paulo, que não funciona.331

Apenas em junho de 1979 foram assinados os primeiros contratos. Como só dois anos depois o dinheiro começou a ser liberado, a verba prometida se tornou insuficiente para contemplar todos os selecionados por conta da inflação, sendo possível apenas para a metade na categoria produção e a primeira parcela para finalização. Além disso, por já estarem aprovados, a Embrafilme não permitiu que esses roteiros selecionados, mas não remunerados, fossem inscritos em outros editais da empresa. Na primeira leva, os priorizados na produção foram os filmes de Candeias, Batista, Denoy, Fontana, Ramalho e Limongi. Os outros seis seriam assinados aos poucos, em outra leva. Iniciou-se uma longa batalha, encampada pela Apaci, para o cumprimento do convênio. Muitas reivindicações foram feitas ao longo de 1979 e 1980, com várias reportagens a respeito, declarações da associação e dos contemplados. Em julho de 1980, os premiados anunciaram que todos os filmes, inclusive os financiados, ficariam paralisados até a verba completa sair, assinando contratos apenas coletivamente. Com a inflação galopante e o aumento do preço de insumos (negativos etc.), os orçamentos ficaram muito maiores do que originalmente cotados. Escreveram no manifesto: Os cineastas paulistas abaixo-assinados, participantes do Pólo Cinematográfico, vêm declarar que não aceitam mais tentativas de soluções parciais dos problemas atuais do Pólo, atendendo uns e relegando outros. Estas soluções parciais, ao contrário de resolver, agravam os problemas do cinema brasileiro feito em São Paulo e a própria continuidade do Pólo.332

330 Eram eles: Asa Branca, um sonho brasileiro; Noites Paraguayas; Café com Creme; Uma História de Luxo e Lixo; Fim de Semana no 3º Mundo; Jânio a 24 Quadros; Diacuí: A viagem de volta; O Rei da Vela; Maldita Coincidência; e A Caminho das Índias. Os filmes de Botelho, Giorgetti e Pádua não foram realizados. Os de Pereira e Kudrna são documentários e o de Zé Celso é uma documentação/encenação da montagem do do texto homônimo de Oswald de Andrade. Os demais foram abordados neste trabalho. 331 A via crucis de um financiamento. 332 Federico MENGOZZI. Pólo de cinema, a caminho da conciliação.

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Segundo João Batista de Andrade333, na mesma época que o polo foi firmado, vinte filmes cariocas foram aprovados e, três anos depois, foram reajustados, o que não ocorreu com os paulistas. Em agosto de 1980, após as diversas reclamações, a Embrafilme e a SEC-SP assinaram o contrato de Noites Paraguayas, prometendo regularizar os demais em 18 meses, desde que os cineastas não recebessem outro financiamento da Embrafilme nesse período, e a SEC-SP confirmasse a possibilidade do produtor em financiar os 40% que lhe cabem. A promessa não foi cumprida e os outros cinco filmes não foram realizados. Aloysio Raulino via os atrasos e não cumprimentos do edital como uma afronta ao novo cinema que se configurava em São Paulo. Para ele, mesmo que com patrocínio, tais filmes seriam relegados dentro da distribuidora. Em junho de 1981, para a revista Movimento, disse: Eu tenho certeza de que ‘Noites Paraguaias’ não será exibido corretamente, porque a Embrafilme está ‘demarcando’ o mercado. ‘Eles’ pegam ‘Eu te Amo’ e dizem: ‘é isso o cinema brasileiro’. Mas isso é um massacre! Essa gente está muito arrogante! Nós queremos trabalhar, cada um com sua tendência, beleza, mas essa gente não quer, não quer a pluralidade no cinema e acha ‘uma irresponsabilidade’ dar dinheiro para São Paulo, para os novos.334

Noites Paraguayas sequer foi lançado comercialmente. Dos filmes coproduzidos pela empresa, apenas O Homem que Virou Suco e Asa Branca tiveram uma distribuição em maior escala. Em agosto de 1984, após contínua pressão da classe acerca do centralismo do Rio, a Embrafilme e a SEC-SP assinaram novo acordo para um concurso de filmes de longa- metragem, com o objetivo de reativar a política de polo cinematográfico em São Paulo. Em tempos de decadência da Boca do Lixo e dificuldades em manter o cinema de lá para além do filme de sexo explícito, os cineastas da região aderiram em massa ao concurso. No total, foram 101 inscrições, de 92 produtores. O edital teve duas fases. Em 06 de novembro de 1984, o secretário Jorge Cunha Lima e o diretor-geral da Embrafilme Roberto Parreira assinaram protocolo de intenções, premiando vinte projetos e garantindo a realização de dez longas. O concurso tinha três categorias: estreantes, segundos filmes e veteranos. Foram selecionados na primeira fase, por uma comissão formada por Jean-Claude Bernardet, Aloysio Raulino, Carlos Augusto Calil e Nelson Hoineff: Anjos da Noite, de Wilson Barros; Aonde Vamos, de Luiz Alberto

333 CINEMA paulista parado, enquanto dinheiro não vem. 334 Flávio DIEGUEZ; Ilma SANTANA. Cinema Alternativo, p. 19.

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Pereira; Beijo 2348/72, de Walter Rogério; As Bellas da Billings, de Ozualdo Candeias; Bianca, de Tânia Savietto; Brasa Adormecida, de Djalma Limongi Batista; Cidade Oculta, de Chico Botelho; Debaixo da Árvore, de Andrea Tonacci; Diversões Eletrônicas, de Cristina Mutarelli e Cristina Santeiro; Feliz Ano Velho, de Roberto Gervitz; Fronteira das Almas, de Hermano Penna; Grilados, de Adilson Ruiz; Luz no Céu, de Rita Buzzar; O Médico Monstro, de Rogério Corrêa; Miguilim, de Roberto Santos; O País dos Tenentes, de João Batista de Andrade; Poranga, de Denoy de Oliveira; À Procura da Moça Nova, de José Aurélio Michiles; Real Desejo, de Augusto Sevá; e Vera, de Sérgio Toledo. Cada projeto recebeu Cr$ 5 milhões para desenvolver o roteiro, o orçamento e o plano de produção. Em março de 1985, foi divulgada a lista com os dez selecionados: três estreantes (Feliz Ano Velho, Vera e Anjos da Noite), quatro segundos filmes (Brasa Adormecida, Fronteira das Almas, Cidade Oculta e Real Desejo) e três veteranos (As Belas da Billings, O País dos Tenentes e Miguilim). Roberto Santos não conseguiu realizar Miguilim por dificuldade de conseguir os direitos do espólio de João Guimarães Rosa. Fez, no lugar, Quincas Borba (1987). A SEC-SP entrou com 100 latas de negativos e a Embrafilme com até 70% do orçamento. Curioso notar que dos três estreantes premiados, apenas Wilson Barros não havia feito longas-metragens. Gervitz e Toledo dividiram a direção anteriormente de Braços Cruzados, Máquinas Paradas. Feliz Ano Velho e Vera foram seus primeiros longas de ficção.

6.3 Embrafilme: gestões Celso Amorim e Roberto Parreira

De maneira geral, os mandatos de Celso Amorim e de Roberto Parreira a frente da Embrafilme continuaram o trabalho de Roberto Farias, sem grandes alterações estruturais ou políticas. A principal mudança foi o maior controle do Regime Militar sobre o processo. O diplomata Celso Amorim assumiu a direção-geral da Embrafilme em abril de 1979, indicado pelo governo, em tempos em que a classe não conseguia estabelecer apenas um nome para apoiar. Sua saída em abril de 1982, um tanto conturbada, deu-se por conta da polêmica em torno de Pra Frente, Brasil, que traz um personagem torturado pela ditadura. Amorim permitiu a coprodução de filmes tematicamente ousados e políticos, dando liberdade criativa aos projetos, muito por conta do arrefecimento do

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Estado quanto à censura – ainda que tenha endurecido com a ascensão ao cargo de Solange Hernandes (1981-84). Com a saída de Amorim, foi nomeado o advogado e ex-presidente da Funarte, então diretor da TV Educativa do Rio de Janeiro, Roberto Parreira, nome próximo ao governo. Visto sempre com suspeita pelo meio, como um “burocrata”, “interventor”, Parreira tentou aproximar-se da classe, através de um Conselho Consultivo, que só passou a ser mais efetivo em 1984, após pressões da categoria. O sistema de financiamento permaneceu o mesmo: a Embrafilme entrava com uma parte do orçamento para a realização e adiantava um percentual sobre os rendimentos do filme, associando-se ao longa na produção e na distribuição, pela qual era responsável, e assumia os riscos negociais com o produtor. Houve tentativas de reduzir a máquina empresarial, com a extinção da Superintendência de Produção (Suprod), em 1982, cujas funções foram assumidas pela diretoria Os dois convênios da Embrafilme com a SEC-SP, cuja parceria continuou de maneira não sistemática nos anos seguintes, fizeram parte das duas gestões. Parcela do primeiro foi cumprida por Amorim e o segundo foi lançado por Parreira. Outros programas da empresa possibilitaram a nova geração do cinema paulista existir. Na gestão Celso Amorim, foi implementado o Programa de Desenvolvimento de Projetos em 1979, que contou com verba de Cr$ 75 milhões do BNDE (Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico), acordo assinado em 29 de maio de 1980, para a realização. O modelo precedeu o do segundo convênio da empresa com o Estado de São Paulo, em que numa primeira fase premiaram-se 44 projetos com Cr$ 300 mil para desenvolver o roteiro, o orçamento e a análise técnica, em março de 1980. Em outubro nova seleção foi feita, com 23 projetos para serem realizados335. Entre os filmes paulistas, estavam Exército Encantado, de Alain Fresnot; Janete, de Chico Botelho; Nasce uma Mulher, de Roberto Santos; Abrasasas, de Reinaldo Volpato; Okinawa, Okinawa, de Olga Futemma; e O rei da Boca do Lixo, de Galileu Garcia. Apenas os filmes de Botelho, Volpato e Santos foram efetivamente realizados. Botelho, por exemplo, abdicou de seu projeto premiado no convênio com a SEC-SP, Café com Creme, para fazer Janete. Outro grande edital em lote foi feito na gestão Roberto Parreira. Em maio de 1983, saiu o resultado de um edital de janeiro da Embrafilme para coproduzir 28 filmes até 1984, em 3 categorias: consagrados, segundos filmes e estreantes. Além da qualidade e

335 Para a lista completa, ver EMBRAFILME escolhe os 23 projetos que financiará.

264 da viabilidade do projeto, buscou-se pensar no mercado: “variedade de gêneros e temáticas para atender ao fim da carteira de produção”. Foram inscritos 183 projetos. Entre os 28 selecionados336, estavam os paulistas Amor Voraz, de Walter Hugo Khouri; O Beijo da Mulher Aranha, de Hector Babenco; Estrela Nua, de José Antonio Garcia e Ícaro Martins; A Marvada Carne, de André Klotzel; Propriedade Privada, de Carlos Reichenbach; O rei da Boca do Lixo, de Galileu Garcia; Rio Máximo Amazonas, de Djalma Limongi Batista; Quarup, de Jorge Bodanzky; e A Turma da Mônica337, de Maurício de Souza. Como nos outros concursos, nem todos os contemplados foram produzidos pela empresa. Eles não tinham todo o dinheiro; a ideia era assinar aos poucos os contratos, dois a três filmes por mês. Dos paulistas, não foram feitos os filmes de Limongi, Bodanzky e Garcia (novamente)338. O que se nota, porém, é que, além de continuar o modelo da direção de Farias, que começava a sofrer com as transformações sociais, políticas e econômicas do país, firmou o descrédito na empresa. Burocratizada e lenta, demorava a cumprir acordos e prometia verba sem ter dinheiro no caixa. Com isso, vários filmes contemplados não foram feitos, paralisando a classe e dificultando a consolidação do mercado para filme brasileiro. Na gestão Parreira, isso se acirrou. As sucessivas dívidas não sanadas ano a ano chegaram ao ápice durante sua saída, em março de 1985, quando assumiu o Funtevê. Estimava-se um débito de Cr$ 20 bilhões. Carlos Augusto Calil, diretor técnico e de operações não- comerciais – voltado para atividades ditas culturais e educativas, como curtas, cineclubes, preservação etc. – desde 1979, assumiu a diretoria-geral interinamente, sendo oficializado apenas em julho de 1985, já dentro da Nova República.

6.4 Nova República

Com a posse de José Sarney, em 15 de março de 1985, o presidente criou, conforme desejo do eleito Tancredo Neves, então hospitalizado, o Ministério da Cultura (MinC), dentro de uma proposta democrática de governo, findando o Regime Militar. Pela primeira vez, a Cultura se dissociava do Ministério da Educação e Cultura (MEC), com o objetivo de promover e expandir o setor. Os órgãos do cinema, Embrafilme e

336 Para a lista completa, ver EMBRAFILME vai co-produzir 28 filmes até meados de 84. 337 Presume-se que tenha chegado ao circuito como As Novas Aventuras da Turma da Mônica (1986). 338 Reichenbach recebeu a verba, porém o atraso fez com que seu projeto não fosse viável. Fez, assim, Filme Demência.

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Concine, passaram a responder ao MinC, assim. O primeiro ministro foi José Aparecido de Oliveira, que ficou dois meses e meio no cargo, abandonando-o para exercer plenamente o cargo de governador do Distrito Federal, nomeado por Sarney. Durante a gestão de Oliveira, em 28 de março de 1985, foi sancionada a lei 7300 do deputado federal José Sarney Filho (PFL-MA) que equiparava o setor às empresas jornalísticas, proibindo a participação estrangeira em empresas que atuassem no mesmo cinematográfico brasileiro, mesmo minoritariamente. Com a sanção, as empresas distribuidoras e exibidoras (Columbia, Gaumont, Fox, CIC etc.) teriam de vender seus direitos e patrimônios a empresários brasileiros. Juristas contestaram a interpretação de que a lei nacionalizava o cinema brasileiro. Quando a lei equipara as empresas cinematográficas às empresas jornalísticas, é apenas para fins de responsabilidade civil e penal, não há nada que se refira à propriedade. Ou seja, qualquer empresa cinematográfica passa a estar sujeita a ser penalizada pelos crimes de calúnia, difamação e injúria. Por conta disso, a lei não serviu aos propósitos de Sarney Filho e, apesar da comoção gerada num primeiro momento no setor, acabou sendo ignorada. Aluísio Pimenta assumiu o ministério em 30 de maio de 1985. O principal legado de Pimenta foi o relatório da Comissão Pimenta/Sarney, formada em julho de 1985, e a Proposta para uma Política Nacional do Cinema, documento unificado feita por representantes de diversos setores da classe339 que deveria direcionar as medidas do Estado em cinema. Ele só foi concluído oito dias após saída de Pimenta do ministério, em 21 de fevereiro de 1986, com o economista Celso Furtado já no cargo.

6.4.1 Propostas para uma Política Nacional do Cinema

O intuito da política proposta é legitimar o cinema brasileiro como a) manifestação cultural e artística de consumo eminentemente popular e que promove a integração social das populações; b) capaz de refletir, de forma ampla e pluralista, as realidades regionais do país; c) importante instrumento de valorização, regate e fixação da memória nacional, pela durabilidade do seu registro; d) uma indústria nacional.340

339 Roberto D’Utra Vaz (Grupo Villares), Álvaro Pacheco (Artenova), Hermano Penna (Apaci), Leon Hirszman (Abraci), Luiz Carlos Barreto (Fiapf), Antônio Francisco Campos (Federação Nacional de Exibidores), Ana Thereza Meirelles (Seplan), Edson Oliveira Nunes (Seplan), Gustavo Dahl (Concine) e Carlos Augusto Calil (Embrafilme). 340 JORNAL da Tela, edição especial, p. 5.

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Num primeiro momento, o relatório busca entender e diagnosticar a crise em que o cinema se encontra, com a queda, em 7 anos, do número de espectadores, de 212 milhões de espectadores, em 1978, para 90 milhões em 1984 – mesmo com aumento do market share do cinema brasileiro, de 29% a 34% – e do número de cinemas – do auge, em 1975, com 3276 salas para 1553 em 1984, chegando a 1372 em 1986341. Aponta, entre os problemas para a produção cinematográfica nacional, a pouca participação nas grades das emissoras de televisão (máximo de 5% dos filmes exibidos entre 1980 e 1984) e a existência de um mercado ilegal de home vídeo, movido a 85% de pirataria. Constata-se ainda que há uma tendência de elitização do espectador cinematográfico, com expansão do videocassete, a redução em 54% das salas de cinema do interior, frente a 18% nas capitais, e a melhor ocupação de salas multiplex com padrão internacional de conforto e projeção, mesmo que mais caras. Entre os problemas da Embrafilme, está o fato de boa parte da receita ser consumida na manutenção da estrutura burocrática. O encarecimento do filme nacional é, segundo o relatório, relacionado à dolarização do cinema, que depende de equipamentos e negativos virgens importados, bastante taxados – 63% do valor dos negativos e 83% das câmeras. A necessidade de comprar película no Brasil através de um fornecedor oficial e de ter que fazer a pós-produção aqui criou monopólios da Kodak e da Líder que encarecem o filme sem contar com a qualidade do serviço norte-americano. A política nacional do cinema é composta por 23 medidas de emergência de aplicação imediata, de 58 medidas setoriais recomendadas à Embrafilme e ao Concine e por metas para serem atingidas em até 5 anos, visando a superar as causas conjunturais e estruturais da crise do cinema brasileiro. Entre as medidas emergenciais, estavam a definição do que é filme nacional; a garantia de financiamento de 50 longas; a determinação a abertura de créditos em órgãos oficiais de fomento; a regulamentação e a restrição aos filmes pornográficos; a instituição de lei de incentivo fiscal à cultura; a isenção dos impostos de importação a aquisições de equipamentos e material de consumo; o aumento de recursos à preservação da memória audiovisual; e a realização de um estudo econômico da indústria cinematográfica. Entre as medidas setoriais, estavam a substituição da produção pornográfica por outra linha popular na Boca do Lixo e no Beco da Fome; a regionalização da produção; a construção de estúdios em São Paulo e no Rio de Janeiro; o estabelecimento de programas

341 Segundo dados da Ancine.

267 de criação de roteiros; o restabelecimento do Prêmio Adicional de Bilheteria e do de Qualidade; a modificação do percentual de remuneração entre exibidor e produtor/distribuidor; a autorização de importação de cópias de filmes estrangeiros; o oferecimento de créditos para reforma de salas de exibição; a sugestão de criação do vale- lazer; o combate à política de lotes a preço fixo de filmes estrangeiros; a criação de um circuito universitário de exibição; e a redução das despesas de custeio da Embrafilme a, no máximo, 30% do orçamento da empresa. As demais propostas perfazem um Plano de Metas para 5 anos, nos campos operacional, institucional e financeiro. Entre elas, duplicar a produção de filmes visando a ocupação de 50% do mercado; assegurar o emprego de 40 mil profissionais e criar 20 mil; fomentar a produção de filmes para a televisão; recuperar as salas existentes e financiar a abertura de 500 novas salas; promover o cinema brasileiro no mercado internacional, visando um market share de 0,5%; atualizar e ampliar a infraestrutura técnica; e investir Cr$ 5,7 trilhões nos cinco anos seguintes. Previa-se também a criação da Lei do Cinema Brasileiro, contemplando reforma jurídica, tributária e institucional: equivalência de filmes nacionais e estrangeiros na televisão; taxa sobre a venda de fita virgem de videocassete em varejo; substituição do sistema de ingresso único padronizado por imposto agregado ao valor de venda do ingresso; e extinção de obrigatoriedade de cinejornal. As reformas nos órgãos estatais consistiriam em dar autonomia ao Concine e dividir a Embrafilme em Embrafilme e Embrafilme Distribuidora S.A. A Embrafilme seria pública, submetida ao Ministério da Cultura, assim como o Concine, e se ocuparia de filmes de “caráter cultural, institucional ou educativo, da pesquisa tecnológica e de novas linguagens, da preservação da memória cinematográfica, da fiscalização, da informatização etc.”342 A Embrafilme Distribuidora S.A., de capital misto – 50% privado, 50% público – e gestão privada, responsabilizar-se-ia pela produção e comercialização nos mercados interno e externo. A ideia é que, com o tempo, teria todo seu capital privado. O documento demonstra uma percepção clara dos problemas que o cinema nacional enfrentava na época, bem como propõe soluções com potencial para reverter o cenário, porém parece pouco calcado nas possibilidades reais, prevendo enormes investimentos do Estado, que, em crise, jamais poderia efetivamente realizar, e trabalhando com uma leitura idealizada em que o Estado conseguiria se impor frente ao

342 JORNAL da Tela, edição especial, p. 8.

268 mercado (estrangeiro, privado) sem objeções. O relatório prega a privatização de partes do setor, que parece contraditória com a enorme participação do Estado prevista nas propostas, em que, ao mesmo tempo, prega uma inserção maior no mercado, mas num mercado completamente regulado pelo Estado para equiparar ou favorecer a indústria nacional.

6.4.2 Crise econômica

A crise a que tanto se refere o relatório da Comissão Pimenta/Sarney começara ainda nos anos 1970. Quando os militares tomaram o poder em 1964, buscando conter a inflação que chegava a 85% ao ano343, eles promoveram a abertura completa para entrada e saída do capital estrangeiro e o arrocho salarial (o aumento do salário mínimo abaixo da taxa de inflação). Tais medidas, ao lado da expansão do mercado internacional no início dos anos 1970, promovem o chamado Milagre Econômico, entre 1968 e 1973, quando o aumento do PIB (Produto Interno Bruto) sobe para a casa dos 10%, chegando a 13,9%344 em 1973. Isso se deu especialmente pelo grande aporte de divisas internacionais no país, com o assentamento de várias multinacionais em setores de bens de consumo duráveis. Ao mesmo tempo, o Estado se incumbiu das indústrias de base e dos projetos faraônicos (transamazônica, hidrelétrica de Itaipu etc.). Como consequência, houve a diminuição da inflação, com média anual de 20% até 1973, assim como do poder de compra das classes menos abastadas, e o aumento da dívida externa. A primeira grande crise do petróleo, em 1973, prejudicou o balanço de pagamentos, pois o Brasil importava mais de 80% do total de petróleo que consumia, revertendo o crescimento do país e prejudicando a imagem do Milagre. Em 1974, o PIB caiu para 8%, a inflação subiu de 13% para 33% e a dívida externa chegou a US$ 100 bilhões. Até 1978, o país manteve uma inflação na casa dos 40% e um PIB de 5%, com aumento em 20% da dívida externa. Porém, a segunda crise do petróleo, em 1979, deflagrada com a Revolução Iraniana, desiquilibrou mais ainda a economia brasileira. A diminuição no fluxo de capital

343 Dados de inflação emprestados do Índice de Preços ao Consumidor da Fundação Instituto de Pesquisas Econômicas (IPC-Fipe), entre 1940 e 1979, e do Índice Nacional de Preços ao Consumidor (INPC), do IBGE, a partir de 1980. 344 Dados do PIB emprestados do Instituto Brasileiro de Economia, da Fundação Getúlio Vargas (IBRE/FGV).

269 estrangeiro no país, o aumento das taxas de juros internacionais e a subsequente desvalorização cambial em decorrência da dívida externa elevaram a taxa de inflação a 100% em 1980. Este patamar foi mantido até 1982, quando o México decretou moratória, causando o cancelamento de empréstimos de bancos internacionais ao Brasil com o medo de tal fato se repetir. A nova elevação dos juros no mercado internacional ajudou a comprometer a estabilidade brasileira, tornando impossível sequer o pagamento dos juros. Com a ausência de recursos externos, o governo emitiu dinheiro internamente, possibilitando ainda mais o crescimento do déficit das contas públicas e da inflação, que chegou a níveis alarmantes em 1985 (240%), período de estagflação (inflação e estagnação econômica). O achatamento dos salários, a diminuição do número de salas de exibição (1428 em 1985, menos da metade de dez anos antes) e a inflação galopante – além do início do esgotamento do modelo de filmes pornográficos, e da expansão do mercado televisivo e de home vídeo – promoveram uma crise sem precedentes no cinema brasileiro. O cinema, como um todo, ia mal, mesmo com o preço médio do ingresso mantendo-se abaixo de US$ 1. Em sete anos, perdeu 55% do público. O filme nacional subsistia. O market share do cinema brasileiro, que desde 1980 estava acima dos 30%, tendo 34% em 1984, caiu 10% em um ano, chegando a 24% em 1985. A Embrafilme, por sua vez, viu sua receita diminuir em 30% entre 1982 e 1984, com filmes que tiveram resultado pouco competitivo – mesmo os longas dos Trapalhões ficaram abaixo do usual. Os custos operacionais da máquina burocrática eram mais altos que os rendimentos. Com cerca de 600 funcionários, a Embrafilme dispendia 50% do orçamento com sua manutenção, investindo menos que isso em novos filmes. Quando Carlos Augusto Calil assumiu efetivamente a direção-geral da empresa, a situação era complicada. Sem dinheiro no caixa, com uma dívida estimada em Cr$ 20 bilhões – que aumentou com a inflação e o resultado pífio dos filmes lançados –, Calil refreou as atividades da empresa, assinando menos contratos e lançando apenas 11 longas – contra 23 de 1984 –, que não renderam nem 3 milhões de espectadores no total. Títulos premiados O Beijo da Mulher Aranha, A Hora da Estrela e A Marvada Carne foram deixados para 1986, sem poder investir devidamente na promoção dos longas. A distribuidora, inclusive, foi brevemente paralisada em setembro de 1985, com a saída de Jorge Correia, o responsável pelo setor. Calil já defendia menor intervenção do Estado e maior participação da iniciativa privada, querendo incentivá-la a tomar parte no processo de distribuição. A distribuidora só voltou a operar após os aportes promovidos pelo

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Ministério do Planejamento – Cr$ 33 bilhões, em dezembro de 1985 –, para pagar as dívidas, e pelo Ministério da Cultura – Cr$ 126 bilhões, em janeiro de 1986 –, para levantar a empresa, lançar e promover os filmes, além de custear sua manutenção. Mudaram de estratégia e chamaram Marco Aurélio Marcondes para cuidar do setor de distribuição. Outra medida que permitiu um novo suspiro à Embrafilme foi o Plano Cruzado, lançado pelo governo em 28 de fevereiro de 1986, que congelou os preços de bens e serviços nos níveis do dia anterior, alterou a moeda para o cruzado (Cz$), cujo valor equivalia a mil unidades do cruzeiro (Cr$), e permitiu reajustes salariais automáticos sempre que a inflação alcançasse 20%, entre outros, reduzindo a inflação a 59% no ano. Com o preço do ingresso congelado e aumento real nos salários, o público reencontrou o cinema brasileiro. Até agosto, nove filmes lançados renderam 9,5 milhões de espectadores. No total, foram 16 filmes lançados, sendo que sete fizeram mais de 1 milhão de pagantes345. O Plano, porém, gerou uma crise de desabastecimento e cobrança de ágio, diminuindo as exportações e esgotando as reservas cambiais. Previsto para durar um ano, mas sem sustento já com quatro meses, o governo o manteve até depois das eleições em 15 de novembro, buscando garantir maioria partidária do PMDB. Em 21 de novembro de 1986, foi lançado o Plano Cruzado II, que liberou o preço dos produtos e serviços e, entre outros, não permitiu que empresas estatais que não possuíssem agentes financeiros realizassem operações de financiamento. Assim, a Embrafilme teve de suspender a assinatura de contratos de produção e de comercialização de filmes, nos quais fornecia um adiantamento de renda – o que só foi resolvido em abril de 1987, quando se associou ao Finep (Financiadora de Estudos e Projetos). Com isso, a inflação voltou a crescer, atingindo 395% em 1987346.

345 Os Trapalhões e o Rei do Futebol (1986), de ; O Beijo da Mulher Aranha; Eu Sei que Vou Te Amar (1986), de Arnaldo Jabor; Os Trapalhões no Rabo do Cometa (1986), de Dedé Santana; Rock Estrela (1986), de Lael Rodrigues; Com Licença, Eu Vou à Luta (1986), de Lui Farias; e A Marvada Carne. 346 Bresser-Pereira ainda aponta a questão trabalhista no processo: “É preciso assinalar, entretanto, que a partir de 1985 já começa a ocorrer um processo de aceleração da inflação que decorre do agravamento do conflito distributivo real entre trabalhadores e empresas. Em 1985 temos a redemocratização do país depois de vinte anos de regime autoritário. As aspirações dos trabalhadores e funcionários de recuperar o que havia sido perdido principalmente durante o período de ajustamento 1981/1983 aumentam fortemente. As reivindicações dos assalariados médios do setor privado e em especial do setor estatal, que haviam sido penalizados por uma correta política de redução do leque salarial a partir de 1979, são muito grandes. A palavra de ordem de todos é a ‘reposição salarial’, que é em parte lograda em 1985, mas provoca uma clara aceleração da inflação nas vésperas do Plano Cruzado.” Cf. Luiz Carlos BRESSER-PEREIRA. Da inflação à hiperinflação: uma abordagem estruturalista, p. 12. Outros planos de congelamento ainda foram lançados

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6.5 Fim dos tempos

O fim da ditadura militar e o início da Nova República, através da eleição indireta do primeiro presidente civil em vinte anos, em 1985, acarretou uma série de mudanças na sociedade. Transformações simbólicas que apontavam para mudanças profundas ideológicas. A ditadura, nesse contexto, já vista como nefasta, precisava ficar para trás, assim como tudo que ela representava: a censura, as perseguições, a tortura, e também o nacionalismo, o intervencionismo estatal etc. A crise econômica em que o país se encontrava e a conjuntura internacional (globalização, formação de blocos econômicos de livre comércio, declínio do bloco socialista etc.), somados à necessidade de superar o passado político recente, encaminharam o Brasil ao neoliberalismo, ideologia efetivamente concretizada mundialmente nos anos 1990. Pela lógica neoliberal, o Estado deve ser mínimo, com poucas ou nulas ações intervencionistas e protecionistas, e subordinando a economia ao mercado global. O fim da Embrafilme começa com a Nova República. A crise da empresa em 1985 aponta como solução uma maior participação privada. A mídia, notadamente a Folha de S. Paulo, e parte da classe defendem o fim do patronato estatal no cinema (e em outras artes). E o governo ensaia uma política econômica neoliberal na cultura com a Lei Sarney (Lei 7505/86), sancionada em 2 de julho de 1986. Proposta pela primeira vez em 1972, no primeiro mandato como senador de José Sarney, a lei apenas foi concretizada com a ascensão do político à presidência. Com a Nova República, o governo e a sociedade buscaram se distanciar da política nacionalista da ditadura e tentaram encontrar vias no capital privado. A lei veio de encontro às ânsias da sociedade como um todo e da própria classe, conforme visto na Política Nacional do Cinema. A legislação regulamentava a renúncia fiscal para o setor cultural e artístico, ou seja, o contribuinte do imposto de renda poderia abater da renda bruta, ou deduzir como despesa operacional o valor das doações, patrocínios e investimentos inclusive despesas e contribuições necessárias à sua efetivação, realizada através ou a favor de pessoa jurídica de natureza cultural, com ou sem fins lucrativos, cadastrada no MinC. Caso não

durante o governo Sarney, caso dos Planos Bresser (1987) e Verão (1989), que não conseguiram conter a inflação.

272 houvesse uma produção específica que interessasse ao contribuinte, ele poderia destinar ao Fundo de Promoção Cultural, gerido pelo ministério. Apesar de ter ajudado o cinema na época, a lei era pouco conhecida e não conveio ao seu potencial pretendido. Ela serviu de base para a Lei Rouanet (1991) e para a Lei do Audiovisual (1993).

6.5.1 Campanha da Folha de S.Paulo contra a Embrafilme

Em 22 de fevereiro de 1986, o jornal Folha de S.Paulo publicou o relatório Propostas para uma Política Nacional de Cinema na íntegra, no caderno Ilustrada. Tal publicação parece ter sido motivada por uma razão: a possibilidade de pautar o debate cultural a partir de um ideal neoliberal, criticando o próprio projeto da Embrafilme e a participação do Estado no cinema. No editorial Burocratas do cinema, ataca-se as medidas sugeridas pelo relatório, em que, dizem, uma análise preliminar permite constatar “uma insistência renovada em classificar a interferência do Estado como a panacéia para a famosa ‘crise do cinema no Brasil’”. Para o autor, porém, “é certo que burocratizar a liberdade de criação (...) representa a mais absurda maneira de se tratar a questão cultural”. O editorial sugere que a atuação do governo deveria se dar na defesa da memória audiovisual e na implantação e aperfeiçoamento de escolas para a formação artística e técnica. Conclui-se, afirmando: (...) não será impingindo aos exibidores e ao público filmes de qualidade duvidosa, produzidos sob os auspícios do Estado, que se fortalecerá a arte cinematográfica brasileira. Bem ao contrário, será esta a forma mais rápida de acelerar o abandono às traças das salas de exibição – caminho direto para seu fechamento em série – e de estigmatizar inexoravelmente os cineastas nacionais como meros burocratas do cinema.347

O texto ecoa outro editorial, publicado em 26 de janeiro de 1986, Cinema fora do Estado, em que diz: “É inaceitável que se mantenha um organismo que se tornou – conforme uma expressão feliz – um ‘Inamps do celulóide’.”348 Tendo como base esses dois textos opinativos, que defendem a postura do jornal frente ao cinema brasileiro, em 15 de março de 1986 a Folha lançou uma série de reportagens e textos opinativos intitulada Este Milhão é Meu349 denunciando corrupção

347 BUROCRATAS do cinema. 348 CINEMA fora do Estado. O Inamps (Instituto Nacional de Assistência Médica da Previdência Social) era o órgão responsável pela assistência médica pública de todos que contribuíam com a previdência. Em 1985, a Polícia Federal denunciou um esquema fraudulento revelando um rombo de Cr$ 1,5 trilhão. 349 Em alusão à chanchada de Carlos Manga Esse Milhão é Meu (1959).

273 administrativa e uso indevido de dinheiro público. Até 02 de abril, com exceção do dia 26, dedicado ao Oscar, houve textos criticando a empresa, sendo pauta por 18 dias seguidos no jornal. A Folha acessou diversos relatórios e dados contábeis da Embrafilme liberados para interessados durante a direção-geral de Calil, procurando associar a empresa ao regime democrático através da transparência da gestão de um órgão oficial. Nesse período, a Embrafilme também ganhou vários destaques na capa, a começar no dia 15 de março, em que a chamada sintetiza a principal denúncia da série e que fomenta toda a discussão porvir. Ao pé da página, Terminam as facilidades na Embrafilme: Os produtores de cinema no Brasil perdem com o choque econômico as grandes facilidades que tinham junto à Embrafilme para financiarem suas obras. Eles deixarão de contar com um artifício que lhes trazia o sistema de contas-correntes empregado pela Embrafilme. Através dele, os produtores não tinham incidência de correção monetária sobre os débitos contraídos junto à empresa. Isto fazia com que filmes deficitários se transformassem em ‘lucrativos’ por causa da inflação. Nos últimos dois anos, os 31 longas distribuídos pela Embrafilme trouxeram prejuízos que, corrigidos em seus valores, geram uma dívida de pelo menos 257.343 ORTNs350, ou Cz$ 23,9 milhões em 1º de março. Ao assumir o Ministério da Cultura, em maio do ano passado, Aluísio Pimenta encontrou um déficit de Cz$ 34 milhões na Embrafilme.351

Segundo a Folha352, no sistema da Embrafilme, a empresa se torna sócia do filme com um aporte financeiro, usado para produzir e lançar o longa. Todo retorno de bilheteria e outras vendas vão para a conta bancária conjunta (entre empresa e produtor). O objetivo primeiro é recuperar o adiantamento de rendimentos feito pela empresa. A Embrafilme só passa a lucrar depois de equivaler o caixa. Para a Embrafilme, cabe metade do percentual de participação no longa. Ainda segundo a Folha, dos 31 longas lançados entre 1984 e 1985, apenas dez conseguiram pagar o que deviam, sem considerar a correção monetária. Considerando a correção, seriam oito filmes353. No mesmo dia, em outra reportagem, o produtor Aníbal Massaini Neto afirmou que a ausência de correção monetária nos débitos “não incentiva a ‘eficiência e a performance’ e é fruto de um modelo que se deteriorou com o tempo, privilegiando

350 Obrigação Reajustável do Tesouro Nacional: modalidade de título público visando a pagar uma remuneração monetariamente corrigida, usada como base para contratos da Embrafilme. 351 TERMINAM as facilidades na Embrafilme. 352 Fernando MOLICA. Cruzado derruba facilidades do cinema. 353 O Filho Adotivo; Os Trapalhões e o Mágico de Oroz (1984), de Dedé Santana e Victor Lustosa; Bete Balanço; Erêndira (1983), de ; A Filha dos Trapalhões (1984), de Dedé Santana; Patriamada (1984), de ; Os Bons Tempos Voltaram: Vamos Gozar outra Vez (1985), de John Herbert e Ivan Cardoso; e Os Trapalhões no Reino da Fantasia (1985), de Dedé Santana.

274 cineastas afeitos à ‘política de gabinete’”354. O cineasta ainda alegou que, por conta de tal medida, muita gente atrasou a conclusão de seus filmes em função desse benefício – com a inflação, quanto maior o tempo de espera para estrear, menor o público necessário para sanar as dívidas. Outra denúncia atrelada à má administração – escolha ruim de projetos, equívocos contábeis e medidas que prejudicam o caixa da empresa e facilitam o dos produtores etc. – é o clientelismo, ou seja, o privilégio que alguns produtores e diretores conseguem dentro da empresa para produzirem seus filmes, caso de Luiz Carlos Barreto, Cacá Diegues, Nelson Pereira dos Santos, Roberto Farias, entre outros nomes ligados ao Cinema Novo e carioca. Em carta, publicada em 22 de março, por exemplo, o cineasta Luiz Paulino dos Santos ataca os privilégios: “Esta elite [a do Cinema Novo] domina a direção da Embrafilme, joga com o Concine, influencia nos ministérios da Velha e Nova República e bajula a Presidência. São pelegos de luxo, controlam as entidades; estão milionários e poderosos na arte e indústria proletárias do cinema brasileiro.”355 Ele continua dizendo que, além de tudo, tais produtores/diretores remuneram mal os técnicos, enquanto garantem sua parte, e gastam fortunas com equipamentos. Na Folha, é possível ver dois discursos: um, que é mais factual e busca informações sobre os problemas do gerenciamento de verba pública na Embrafilme, e outro assumidamente ideológico em termos de discurso. Porém, mesmo em textos factuais, é possível perceber o uso de manchetes e chamadas sensacionalistas, que vão de encontro à percepção opinativa do veículo. Por exemplo, outra reportagem do dia 15 estampa uma página da Ilustrada: Calil diz que empresa não precisa de lucro. A reportagem com Calil apenas aponta que o lucro não é a principal preocupação da empresa de capital misto (mas essencialmente estatal, com quase 99% das ações), mas a manchete sinaliza para uma suposta deficiência da administração da empresa – como se fosse ruim não buscar o lucro, ainda mais face às outras matérias do dia da série Este Milhão é Meu. Ao lado da reportagem, um breve texto do editor da Ilustrada, Matinas Suzuki Jr., em que elenca cinco conclusões da análise que fez a partir dos relatórios da Embrafilme: 1) A empresa não possui nenhum critério racional, objetivo e democrático para a distribuição de suas verbas. 2) Há favoritismos. É só conferir. 3) A empresa não sabe se patrocina filmes de alto teor cultural, de difícil mercantilização, ou

354 Fernando MOLICA. Produtor critica privilégios. 355 Luiz Paulino dos SANTOS. “A jogada da correção monetária é imoral”.

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alia-se aos produtores comerciais, com maiores possibilidades de retorno. Na dúvida, dá dinheiro para todos. 4) Aparecem evidência da suspeita de uma prática velada entre os pares cinematográficos: como não havia correção monetária, muita gente atrasava a realização do filme como maneira de barateá- lo. Outros, que aplicavam o dinheiro, ganhavam duas vezes com a inflação. 5) Perto dos escândalos financeiros, o baú do cinema brasileiro gastou pouco, o que não diminui a gravidade da situação. Resta uma profunda questão ética e moral para os artistas. Esta sim, será de difícil acerto de contas. A história da cultura brasileira do período terá que mostrar a verdade sobre este capítulo.356

O texto opinativo ganha espaço para além do editorial e das primeiras páginas do jornal, figurando em artigos na Ilustrada, reforçando a posição do veículo através de diferentes nomes e, assim, pode influenciar diferentes leitores. No dia 16 de março, Leão Serva publicou enfático texto condenando a intervenção estatal no cinema e a forma como a Embrafilme selecionava projetos. Diz ele, em Aos cineastas as batatas: Ao se sustentar o cinema sem exigir eficácia e qualidade (este é um país onde a população sustenta o cinema brasileiro que não vê e prestigia o cinema estrangeiro como especatadora [sic]), se favoreceu uma geração de cineastas semi-amadores, acostumados a frequentar corações, mentes e bolsos de Brasília, sem necessariamente seduzir as mesmas partes do público. (...) A moralização da Embrafilme, adequando-a às normas de toda a economia, (...) é imposição de um projeto cultural decente, que não existe na cabeça dos que se beneficiam da situação. Entregá-la à falência ou à vitória, segundo as normas do mercado, e segundo o que determinar sua própria eficiência, é necessário para levar a competência a seus bezerros, os cineastas.357

Nova reportagem, Co-produção aumenta déficit da Embrafilme358, no dia 18, versa sobre um fator não lembrado pelos registros da Folha: a Embrafilme também coproduz os filmes, ou seja, financia parte da produção. Os valores apresentados por ela se referiam apenas à distribuição e à comercialização, sem contabilizar a produção. Com isso, o prejuízo seria muito maior. Outro ponto de crítica do jornal é que Roberto Parreira, além de ter abolido a correção monetária, acabou com as contas-correntes unificadas do produtor. Por um período, a conta-corrente de um produtor com a empresa agrupava os diversos filmes em que ele estava trabalhando. A ideia seria de que um lucro cobrisse um déficit. Ao encerrar essa política, o produtor retirava o dinheiro do filme lucrativo, mas não pagava o que estava em débito. Em nota, em 23 de março, a Embrafilme disse que os contratos de coprodução deixaram de ser feitos no final de 1983, trabalhando apenas com a distribuição (e

356 Matinas SUZUKI JR. Relatório mostra falta de critério para usar verbas. 357 Leão SERVA. Aos cineastas as batatas. 358 Cf. Renato RANGEL. Co-produção aumenta déficit da Embrafilme.

276 adiantamento sobre receita de comercialização), que as contas unificadas permaneciam e que a correção monetária continuou existindo para empréstimos. A Embrafilme esteve na capa nos dias 18, 19 e 20, respectivamente com as chamadas O rombo da Embra pode ser maior359, Parreira sai em defesa da Embrafilme360 e Furtado acusa cineastas de desonestos361. A reportagem com Celso Furtado, por exemplo, aponta uma intenção de desestruturar a classe. No corpo do jornal, o título é menos chamativo: Ministro diz que só apoiará filme cultural362. Ele diz que há gente desonesta, referindo-se mais especificamente a Enzo Barone, que, segundo reportagem363 na mesma página, quer devolver o dinheiro que pegou para realizar Feliz Ano Velho. No dia seguinte, Furtado desmentiu que tivesse chamado a classe de desonesta, simplesmente teria respondido que quem deve e não paga é desonesto. Além de deturpar a fala, a Folha destacou na capa que o ministro da Cultura taxa genericamente os cineastas de desonestos, enquanto sua resposta foi publicada no meio da Ilustrada, sem qualquer destaque. Em resposta às acusações, Cacá Diegues escreveu o artigo De quem é mesmo o dinheiro da Embra364, publicado em 20 de março, em que questiona a prerrogativa da

359 “O déficit financeiro da Embrafilme pode ser ainda maior do que os Cz$ 23,9 milhões de débito dos produtores, relativos a verbas de adiantamento de distribuição e comercialização dos filmes no período 1984/85. Sobre ele não incidia a correção monetária, extinta na gestão de Roberto Parreira. O ex- superintendente de comercialização, Luiz Gonzaga Luca, disse que os investimentos em filmes que a Embrafilme foi co-produtora (uma espécie de sócia), e que não tiveram retorno, fazem crescer muito esse número. Estima-se que o déficit da empresa chegaria hoje a Cz$ 2 bilhões. Além da correção monetária, Parreira extinguiu a conta-corrente unificada, introduzida para tentar regular a relação dívida/lucro dos produtores.” Cf. O rombo da Embra pode ser maior. 360 “O ex-diretor da Embrafilme, Roberto Parreira, disse ontem que a medida de extinção da correção monetária sobre créditos de adiantamento de distribuição foi proposta em reunião do Conselho de Administração da empresa, a 30 de abril de 1984. Afirmou que a proposta foi encaminhada por cineastas e produtores, entre eles, Roberto Farias, Nelson Pereira dos Santos e . O presidente da Embrafilme, Carlos Augusto Calil, afirmou que está consultando seu serviço jurídico para ver se terá que aplicar a tabela de conversão de cruzeiro para cruzado para cobrar a dívida dos cineastas. No Rio, o assessor de imprensa Arthur Reis disse que a empresa não exige dos produtores recibos que comprovem os gastos durante a produção.” Cf. PARREIRA sai em defesa da Embrafilme. 361 “O ministro da Cultura, Celso Furtado, disse ontem que a Embrafilme deixará de funcionar apenas como uma agência financiadora e passará a operar no ‘campo cultural, apoiando projetos de filmes culturais’. Segundo Furtado, a desonestidade do produtor cinematográfico ficou comprovada em dois setores: utilizando dinheiro público para aplicações no mercado e não cumprindo o objetivo de produzir o filme já previamente financiado pela Embrafilme. O ministro disse não estar interessado nos ‘erros do passado’ e que está consultando o departamento jurídico do Ministério para saber como será cobrada a dívida que os cineastas têm com a empresa. Ontem, em Brasília, a atriz Sônia Braga teve uma audiência com o presidente Sarney e ouviu dele a informação de que será criada, através do Banco do Brasil, uma linha especial de crédito aos cineastas nacionais para comercialização dos filmes.” Cf. FURTADO acusa cineastas de desonestos. 362 Cf. MINISTRO diz que só apoiará filme cultural. 363 Cf. UM produtor que quer devolver o dinheiro. 364 Carlos DIEGUES. De quem é mesmo o dinheiro da Embra.

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Folha. Ele afirma que o cineasta não deve nada, pois a compra dos direitos é capital de risco numa sociedade e o custo com comercialização é responsabilidade da distribuidora, que estabelece o patamar em função de suas expectativas. Questiona ainda a ideia de correção monetária, porque o dinheiro é pela compra dos direitos e isso não se corrige. Diz ainda que se for corrigir os valores, devem corrigir também os créditos. Sucederam-se nas páginas da Folha durante esses 19 dias artigos e entrevistas de pessoas da classe a favor e contra a Embrafilme, em especialmente contrárias – caso dos cineastas Sérgio Santeiro, Deni Cavalcanti, Luiz Paulino dos Santos, Adnor Pitanga; dos produtores Enzo Barone, Aníbal Massaini Neto; do jornalista Adilson Laranjeiras; e das associações Federação Paulista de Cineclubes e Federação de Cineclubes do Estado do Rio de Janeiro. Entre os mais alinhados, estavam os diretores, Carlos Diegues, Reinaldo Volpato, Ícaro Martins, Rogério Sganzerla, Roberto Gervitz e Sérgio Toledo, e o produtor Luiz Carlos Barreto. Além de profissionais relacionados ao cinema, a Folha deu espaço para diversos dirigentes e nomes vinculados à política cultural cinematográfica, ora defendendo (Carlos Augusto Calil, Ney Braga, Gustavo Dahl, José Carlos Avellar), ora criticando (Rodrigo Saturnino Braga, Luiz Gonzaga de Luca, Maria das Graças Sena365, João Carlos Rodrigues), ora ambos (Roberto Parreira, Celso Furtado). Entre os que criticavam a empresa, é possível apreender dois discursos: os que reivindicavam mais reconhecimento financeiro da Embrafilme (Cineclubes, Santeiro/ABD, Paulino, Pitanga, o Polo Mineiro) e os que acreditavam na política de mercado de cunho neoliberal (Barone, Cavalcanti, Massaini, Luca etc.). Impressiona na cobertura da Folha a ausência de novas informações factuais, para além das primeiras reportagens sobre as dívidas e a má gestão – que, efetivamente, trazem apurações e indagações aparentemente corretas e necessárias, já que de interesse público. Viu-se uma campanha contra uma instituição (e uma ideologia), em que as páginas do veículo ganharam tons sensacionalistas com acusações, réplicas e tréplicas entre os entrevistas e representantes da classe que assinavam textos. Conflitos tornaram-se públicos e a cobertura passou a se sustentar por boatos: relatos de terceiros, com suas próprias agendas políticas em expor tais ideias. Com desinformações, inclusive.

365 Chefe da Divisão de Apoio Técnico do Concine, demitida pelo presidente Gustavo Dahl em suposta represália a uma carta acusatória de Sérgio Santeiro.

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Celso Furtado, por exemplo, tentando desvincular a crise do cinema brasileiro da imagem de má administração pública, da qual ele passava a fazer parte, culpou o filme erótico de afastar as pessoas do cinema, em reportagem do dia 22. Disse ele: Não podemos ficar apoiando pornochanchadas. Até o ano passado, elas constituíam 70% da produção cinematográfica nacional. Hoje, muitas pessoas não vão ao cinema, porque têm medo. É preciso restabelecer a dignidade do cinema, não só como divertimento mas também como meio de difusão cultural.366

Furtado, em 1986, confunde o filme de sexo explícito com pornochanchada, e fala como se a Embrafilme apoiasse tais filmes – o máximo que fazia, nos anos 1980, eram filmes de pessoas ligadas ao Cinema Novo, com apelo erótico, mas também com penetração no exterior, como Eu Te Amo (1981), de Arnaldo Jabor, e Gabriela Cravo e Canela (1983), de . Dentro do proposto pelo jornal, os textos opinativos das primeiras páginas – e que em tese alcançam mais leitores, não apenas aqueles interessados na pauta cultural da Ilustrada – parecem ter maior peso na campanha, quando a Folha pode enfatizar sua posição. No dia 20, por exemplo, em editorial, intitulado Cine catástrofe, o veículo clama: “Basta de pactos de silêncio, de mediocridades recompensadas regiamente e de sinecuras sustentadas pelo contribuinte.”367 O editorial do dia 24, O Brasil no Oscar, parece sintetizar o papel que o cinema deve ter no país: A inclusão do filme ‘O Beijo da Mulher Aranha’, de Hector Babenco, na lista de candidatos oficiais ao Oscar, (...) representa (...) uma prova eloquente da desnecessidade da subvenção do Estado – leia-se Embrafilme – para que o cinema nacional produza obras de qualidade e se consolide em definitivo, tanto no mercado interno como no Exterior. Concretizada unicamente com o emprego de capitais privados brasileiros e norte-americanos, a fita de Babenco foi totalmente concebida e executada sem qualquer auxílio por parte daquela empresa estatal, cuja participação nos destinos da película se limita a sua distribuição no país. Nada disso, no entanto, foi obstáculo a que o filme realizasse uma carreira internacional vitoriosa e alcançasse um nível de excelência compatível com sua indicação para o troféu mais disputado da indústria cinematográfica mundial.368

O texto aponta o Oscar, prêmio da indústria cinematográfica norte-americana, como principal baliza de reconhecimento de um filme. Para a Folha, o bom cinema brasileiro é aquele feito para ser bem sucedido no mercado estrangeiro – mas não qualquer um, já que A Hora da Estrela, por exemplo, então competindo em Berlim é sequer citado

366 FURTADO quer mudar Embrafilme. 367 CINE catástrofe. 368 O Brasil no Oscar.

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–, mesmo que, para tal, tenha que se amoldar aos padrões da indústria hollywoodiana, com atores mundialmente famosos e em língua inglesa. Além do mais, toma um caso bastante específico – Babenco – como uma possibilidade de regra, sugerindo uma viabilidade de todos os filmes brasileiros serem realizados nesse modelo. A Folha ainda traça uma relação direta entre não ter subvenção estatal e ter uma carreira internacional “vitoriosa”, ao tentar desmentir (alguém disse o contrário?) que apenas filmes associados à Embrafilme não teriam obstáculos para tal. Por fim, o jornal desconsidera que a distribuição no Brasil esteja atrelada a aportes financeiros da empresa. A Embrafilme foi também pauta da seção Tendências/Debates, no dia 29 de março, quando a Folha perguntou: “Você acha que a Embrafilme deve ser extinta?” Quem respondeu “Sim” foi o editor da Folha da Tarde Adilson Laranjeira, que defendeu o livre comércio e a lei do mercado, alinhado ao tom dos editoriais do veículo: (...) quem pretenda fazer um filme [que] corra os riscos de qualquer outro negociante – arrume financiadores, calcule bem os gastos e trate de fazer um produto que desperte o interesse do consumidor, que se pague e que não dê prejuízo. E se este último for inevitável, apesar de tudo, que recaia no bolso dos responsáveis pela sua produção e não no de nós outros contribuintes, que nunca somos ouvidos, com antecedência, sobre os riscos e conveniências de aplicações que depois se revelam desastrosas. (...) O livre jogo de mercado, onde sobrevive quem tem competência e talento, ainda é a melhor solução para todos. Para o governo, para os cineastas e principalmente para o público, pois este, além de não ter mais o seu dinheiro gasto inutilmente, via Embrafilme, ainda ficará livre de um monte de filmes chatos.369

Carlos Augusto Calil, então diretor-geral, assinou o texto de “Em termos”. Enquanto defende maior participação do capital privado no setor e a renúncia fiscal como um caminho, aponta a necessidade do Estado e aproveita para explicar a lógica do adiantamento de rendimentos, defendendo a existência do processo no campo mercadológico: (...) os contratos de adiantamento que não estipulavam correção monetária traziam uma cláusula de compensação: a partir do ressarcimento em valores nominais do investimento na produção, a Embrafilme se tornava automaticamente sócia do filme, na proporção de metade do seu aporte financeiro. Este mecanismo se apoiava num raciocínio: se o filme não obtinha receita expressiva, ele não remunerava o investimento, com ou sem correção monetária. Já o filme de bom resultado comercial paga rapidamente a dívida e passa a trazer retorno financeiro simultaneamente ao produtor e à Embrafilme. É uma espécie de estímulo ao produtor competitivo. Esta modalidade contratual só é possível porque a Embrafilme também age como distribuidora dos filmes, recolhendo receita junto ao exibidor e garantido seu repasse a todos os detentores de direitos.370

369 Adilson LARANJEIRA. Incompetência estabelecida. 370 Carlos Augusto CALIL. Empresas e empresas.

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A defesa, ou o “Não”, feita por Rogério Sganzerla, embasava-se em alguns caminhos: o fato de o cinema não ser apenas mercado, mas também cultura; a subvenção estatal para outras áreas, inclusive à imprensa; a dominação do capital estrangeiro na área e a falta de legislação realmente protecionista ao cinema – preço caro de insumos importados, o filme estrangeiro já pago sem grandes taxações etc.; a falta de penetração na televisão; a pirataria no mercado de home vídeo etc. Ou seja, exaurindo um discurso de décadas de reivindicações do cinema brasileiro – assim como os dois outros textos se repetem, mas sem a mesma longevidade. O que fica premente ao longo das pouco mais de duas semanas de campanha é que a Folha percebeu um momento de transformação na sociedade brasileira, buscando distanciar-se de um passado recente, autoritário e nacionalista, ao apontar para um futuro universal, e, com isso, uma economia de mercado global, sem fronteiras. O cinema, braço da cultura mais evidente em termos de políticas culturais pelo próprio custo de produção, tornou-se o alvo, por conta da crise que se instaurou no meio e, mais especificamente, na Embrafilme, símbolo de uma empresa do Regime Militar. O discurso de parte do setor, ainda afeito à intervenção estatal, perdeu espaço, talvez pela sua ineficiência. O tom neoliberal dos textos da Folha, que opõem o cinema ao público, através do dinheiro de impostos transformado em produto cultural sem retorno financeiro, conseguiu grande adesão entre os leitores e ajudou a desestabilizar ainda mais a Embrafilme. Exemplo disso é a carta do leitor Júlio Ricardo Vieira, de Santos, em 01 de abril. Diz ele: Tem sido enfadonhas as transmissões dos treinos da seleção brasileira por três emissoras de televisão simultaneamente! Será que não temos o direito de optar por outros programas? Sempre me pergunto o que faz a Embrafilme, além de utilizar mal o dinheiro do contribuinte em produções medíocres e no sustento de meia dúzia de intelectuais oportunistas. Será que nenhuma emissora de televisão teve a ideia de investir na transmissão de importantes festivais de cinema realizados no país? Tem muita emissora engajada neste derrame diário de verde-amarelismo barato.371

O texto nada tem a ver com as atividades da Embrafilme, mas a transforma na culpada pela grade televisiva (por não intervir nela), aproveitando o espaço para desqualificar o que ela promove, o cinema brasileiro. Ou seja, a empresa ganhou um espectro tão maior por conta da cobertura da Folha que passou a ser referência de problemas no âmbito cultural, qualquer que fossem.

371 Júlio Ricardo VIEIRA. Embrafilme / Painel do leitor.

281

Com a crise administrativa da Embrafilme, em novembro de 1985 foi contratada por Calil a empresa Boucinhas, Campos e Claro para realizar uma auditoria das contas da empresa. O relatório revelou que ela não conseguia apurar os débitos dos produtores e que, entre as irregularidades, havia concessão de financiamentos em troca de bens e a guarda de patrimônio em imóveis de terceiros. Vale atentar que boa parte das acusações – privilégios, má administração etc. – da Folha faziam parte das reclamações da Apaci desde sua criação, mas a associação saiu em defesa à empresa, mesmo porque vinha conseguindo emplacar várias reivindicações.

6.5.2 Gestão Celso Furtado no MinC

O economista Celso Furtado assumiu o Ministério da Cultura em 14 de fevereiro de 1986, com o objetivo de implementar a Lei Sarney e com um projeto neoliberal para a cultura em vista. Com os escândalos envolvendo a empresa na mídia, os órgãos culturais deixaram de ser transparentes quanto a valores. Empossado dias após a divulgação do plano de ações para o cinema brasileiro, ele ignorou a maioria das medidas, seguindo apenas as que condiziam com sua política, no caso, a privatização da Embrafilme. Quando assumiu, Furtado, inclusive, disse à Folha de S.Paulo que muito dinheiro, quando se fala em cultura, é perigoso: “O Ministério não é um guichê de banco.”372 Furtado tinha como proposta privatizar a Embrafilme e criar uma Fundação Nacional do Cinema, pois não via como o cinema nacional poderia deslanchar sem investimentos anuais de US$ 10 milhões. À Embrafilme caberia apenas a comercialização do filme brasileiro, cujo patrimônio seria transformado em cotas de ações e colocados à venda. À Fundação, o fomento à produção, captando recursos junto ao BNDES, que emprestaria o dinheiro visando retorno, mas com a vantagem do juro reduzido. O Concine apenas fiscalizaria e normatizaria. Filmes “de alto risco” (curtas, filmes de arte etc.) teriam acesso a uma linha de financiamento a fundo perdido, a partir dos impostos gerados pelo cinema. Para ele, a Embrafilme é “um instrumento inadequado”373. Furtado pretendia financiar os filmes de arte e não os de mercado (esses seriam custeados à base de empréstimos), o que indignou o meio, com a questão ‘o que seria de arte e de mercado?’.

372 CHOQUE econômico esvazia pacote da Cultura. 373 A reforma da Embrafilme deve mudar cinema e vídeo.

282

O ministro explica melhor sua posição sobre a relação cinema e Estado em entrevista no televisivo Roda Viva, dentro do contexto da Nova República e ressoando a Lei Sarney: Estamos hoje vivendo um esforço enorme para sair dessa mentalidade paternalista. Essa é que é a verdade, nós estamos hoje em dia com uma lei que transfere a iniciativa para a sociedade, que estimula a organização de grupos culturais e, portanto, dá as costas a essa coisa do passado, que o Estado faça tudo. É um pouco da tradição brasileira, não só no campo da cultura, mas em todos os outros campos. (...) o cinema tem de se encaminhar também como indústria para se financiar no sistema financeiro. Assim nós pretendemos que o cinema - todo filme - comece com um projeto, com seu roteiro sendo apreciado por uma organização financeira, bancária - que pode ser do governo. Mas os bancos dizem logo: ‘Não, eu não posso financiar cinema, porque o risco é muito grande’. Mas quando o risco é muito grande a sociedade assume parte desse risco. Assim se viveu no Brasil, [por exemplo, como] na agricultura brasileira. Os riscos são muito grandes, mas, no dinheiro do governo, de 10% emprestado a agricultura, depois a compensação, a absorção, é dada na verdade pelo governo. É assim que nós pretendemos fazer no cinema. Mas queremos sim que a mentalidade empresarial domine naquilo que é verdadeiramente indústria. E o que for curta metragem, cinema de arte e ensaio, o cinema experimental, etc, tudo isso tenha pleno apoio do governo.374

A ideia de privatização consistia em colocar os 99% da Embrafilme pertencentes ao Estado em ações no mercado, bem como colocar cotas dos filmes na Bolsa de Valores, como no mercado de ações. Em 05 de novembro de 1986, após a proposta de privatização da Embrafilme começar a circular pelo MinC, a Folha de S.Paulo lançou outro editorial, Maquiagem na Embrafilme, contra o papel estatal na empresa, remontando à campanha: (...) a semiprivatização não solucionará o problema de ingerência do Estado. Atira-se para o futuro uma decisão que precisa ser tomada hoje e de forma definitiva. A empresa tem que abandonar suas atividades comerciais, se restringindo a incentivar escolas de cinema, preservar arquivos e cinematecas e apoiar a difusão da cultura e da técnica cinematográfica. É esta a reformulação que precisa ocorrer no cinema brasileiro. Enquanto não for realizada, qualquer mudança na organização da Embrafilme não passará de uma medida burocrática e superficial.375

Carlos Augusto Calil saiu da Embrafilme em 16 de dezembro de 1986, após discordâncias com Furtado. O que pontualmente motivou seu afastamento foi o fato de que o Fundo de Apoio à Produção Cinematográfica (Funcine), incluído no projeto de reformulação do cinema, foi atrelado à Secretaria Geral do MinC e não à Fundação do

374 CELSO Furtado (transcrição da entrevista cedida ao Roda Viva em 09 de fevereiro de 1987), in Memória Roda Viva. Disponível em: . Acesso em 25 de abril de 2016. 375 MAQUIAGEM na Embrafilme.

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Cinema Brasileiro, como esperava. Era também contrário à maneira como seria dividida a empresa. Calil criticou a centralização do Ministério na pessoa de Furtado – por exemplo, o MinC deveria ser o avalista dos cineastas e produtoras frente ao BNDES para empréstimos/financiamentos ao cinema, no novo esquema. Segundo Calil, o MinC “destituiu ou esvaziou esses órgãos [Funarte, Embrafilme, Sphan etc.] e, sem sequer formular uma política abrangente, passou a administrar diretamente a demanda cultural”376. Quem assumiu interinamente quando Calil se demitiu foi Eduardo Escorel, então diretor de operações. O ministro não queria outra pessoa de cinema para assumir a Embrafilme e convidou o livreiro Fernando Ghignone, ex-secretário da Cultura do Paraná, nomeado diretor-geral em 24 de dezembro de 1986. Ghignone assumiu apenas em 22 de janeiro de 1987. O projeto de Furtado demorou a sair e foi decretado apenas em 05 de novembro de 1987, com a Lei 7.624/87, em que foram autorizadas a instituição da Fundação Nacional Pró-Leitura (Pró-Leitura), da Fundação Nacional de Artes Cênicas (Fundacen) e da Fundação do Cinema Brasileira (FCB), vinculadas ao MinC. A FCB herdou as seguintes atribuições da Embrafilme: festivais e mostras, formação, pesquisa, acervo e produção de filmes educativos, científicos, técnicos e culturais – ou seja, o que cabia à diretoria de operações não-comerciais, por sua vez, oriundas do antigo INCE (Instituto Nacional de Cinema Educativo), criado em 1936 e extinto em 1966, quando foi absorvido pelo INC. A Fundação teria seu orçamento formado a partir de aportes do governo e eventuais receitas. A Embrafilme passou a ser denominada como Embrafilme – Distribuidora de Filmes S.A., mantendo as demais funções (coprodução, distribuição e comercialização de longas-metragens). O estatuto da FCB foi aprovado em 27 de janeiro de 1988, através do decreto 95.673. O diretor de fotografia Affonso Beato assumiu a presidência da Fundação em 05 de abril e ficou até o final do ano. Pouco depois, tomou posse Ruy Solberg. A gestão de Ghignone na Embrafilme foi marcada pela cisão da empresa e pela tentativa de sanar as dívidas em detrimento da produção. Em dezembro de 1987 e em fevereiro de 1988, a Embrafilme divulgou 61 projetos selecionados que iria financiar dentre 223 inscritos de uma chamada pública. Eram três modalidades: produção, desenvolvimento de projeto e desenvolvimento de roteiro.

376 André Piero GATTI. Cinema Brasileiro – Entrevista com Carlos Augusto Calil, p. 14.

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Durante o segundo anúncio, Ghignone declarou também que 1987 foi o primeiro ano desde a criação em que a Embrafilme apresentou um lucro ao final do ano, com um saldo de Cz$ 100 milhões, quantia equivalente a um repasse de verba do governo federal no final de 1987. O diretor-geral foi amplamente criticado pelos cineastas por privilegiar o lucro à realização de filmes, já que assinou apenas sete novos contratos no ano – apesar de ter, segundo Ghignone, liberado recursos para a conclusão de 31 longas. Outra denúncia, feita pelo então presidente da Apaci, Denoy de Oliveira, versava sobre o fato de que pessoas premiadas participaram como consultores de projetos para liberação de verba, caso de Fernando Coni Campos, Walter Lima Jr., Ruy Guerra, Carlos Alberto Prates Corrêa e Helvécio Ratton, equivalente a 1/3 dos consultores. Para além disso, a principal contestação ao resultado foi da Apaci e residia em uma reivindicação antiga, a participação maior de São Paulo dentre os premiados. Levantamento feito pela associação apontou que dos 61 projetos aprovados, 42 eram do Rio de Janeiro, enquanto 10 eram de São Paulo377 e 8 de outros estados (MG, PR, RS e DF). Em comunicado da Apaci, divulgado logo após sair a relação completa de aprovados, em 20 de fevereiro de 1988, a associação apontou as decorrências para o cinema paulista: Este quadro recessivo imposto a São Paulo aprofunda o desemprego e debilita uma cinematografia que nos últimos 10 anos foi um fato novo no Cinema Brasileiro e vem se impondo com sucesso de público e premiações no Brasil e no Exterior. (...) Cem milhões de lucros (jogada contábil? Dividendos do ‘open’ – não sabemos – a empresa não tem mais transparência!) são ridículos diante do desemprego da categoria e do desmantelamento da reserva de mercado.378

As denúncias da Apaci repercutiram bastante na mídia entre 22 e 25 de fevereiro. Além da Apaci, o Sindicato de Trabalhadores da Indústria Cinematográfica do Estado de São Paulo, através de seu presidente Tony de Sousa, também denunciou o preconceito contra o cinema paulista. Disse que, em agosto de 1987, Ghignone prometeu a São Paulo dez novas produções, mas só duas foram aprovadas (Festa e Forever). Também foi

377 Festa, de Ugo Giorgetti; Forever, de Walter Hugo Khouri; Vlado, de João Batista de Andrade; O Corpo, de José Antônio Garcia; Atrás da Máscara, de André Klotzel; A Tela Rasgada, de Ícaro Martins; A Travessia, de Rodolpho Nanni; O Médico-Monstro, de Rogério Corrêa; Promessas de Amor, de Denoy Oliveira; e o projeto Casa de Imagens. 378 ASSOCIAÇÃO PAULISTA DE CINEASTAS. Comunicado (a).

285 prometido para a classe cinematográfica de São Paulo uma sede paulista, com o mesmo peso da carioca379, nunca cumprido. Novo comunicado da Apaci denunciou a atuação de Ghignone e o desmonte da Embrafilme: O Sr. Ghignone insiste em levar ao público uma imagem de que tudo vai às mil maravilhas, quando sabemos das dificuldades dos produtores em terminar seus filmes, a falta de novas produções, o desemprego quase total como foi denunciado pelo Sindicato dos Trabalhadores, a incompetência no lançamento comercial de filmes com claras possibilidades de mercado, o desmantelamento da distribuidora e a incapacidade de até mesmo colocar os filmes em festivais internacionais.380

Ghignone chegou a responder às acusações de privilégio, dizendo que a proporção de aprovados foi próxima a de inscritos – 138 de RJ (61,8%), 59 de SP (26,4%) e 26 do resto (11,6%) –, porém, seus números de aprovados parecem errados – respectivamente, 40, 15 e 8 segundo ele. O embate se arrefeceu após Celso Furtado se comprometer com a produção de 40 filmes em 1988 e Ghignone a que, pelo menos, 10 fossem de São Paulo. O diretor-geral não aguentou muito mais à frente da Embrafilme e se desligou da empresa em maio de 1988 para concorrer a vereador em Curitiba. Em 23 do mesmo mês, assumiu Fábio Magalhães, antigo secretário municipal de cultura e diretor de apoio à produção cultural na Embrafilme, com o objetivo de implantar a FCB. Sua gestão durou até 29 de julho. Demitiu-se após Furtado ser exonerado como ministro, no dia 28. O diretor de operações Moacir de Oliveira assumiu interinamente e depois efetivamente. No MinC, sucederam-se Hugo Napoleão do Rego Neto (até 19 de setembro de 1988), então Ministro da Educação, acumulando os cargos, e novamente José Aparecido de Oliveira (até 14 de março de 1990), substituído por Joaquim Roriz como governador do Distrito Federal pelo presidente Sarney.

6.5.3 A classe não quer mais a Embrafilme

A campanha da Folha de S. Paulo só foi eficiente porque muitos diretores e produtores endossaram as reivindicações. O modelo da Embrafilme era visto como

379 Em 26 de junho de 1987, a Apaci recebeu uma carta do diretor de operações da Embrafilme Ivan Negro Ísola dizendo que, “com o objetivo de agilizar a atuação da Embrafilme em São Paulo, está sendo criado neste um Departamento de Produções que terá todos as funções do DEPRO do Rio de Janeiro”. Cf. Ivan Negro ÍSOLA. [Carta] 26 de junho de 1987, Rio de Janeiro [para] Denoy OLIVEIRA. 380 ASSOCIAÇÃO PAULISTA DE CINEASTAS. Comunicado (b).

286 ultrapassado; muito benéfico para o cinema brasileiro nos anos 1970, mas inábil frente à crise, em que a máquina estatal burocrática e corrupta não conseguia mais atender a quem deveria. Se, por um lado, o mercado ser seu próprio regulador parecia um desejo de parte do setor, outros pensavam num recomeço, numa estrutura sem os ranços da Embrafilme, moldada aos filmes de cunho cultural. Havia já cineastas interessados no fim da Embrafilme desde o começo dos anos 1980, mas o movimento só ganhou força depois com a crise. Em maio de 1984, por exemplo, Cacá Diegues, ainda que tenha defendido a empresa na campanha da Folha, visava propor um modelo novo, adequado à realidade mundial do cinema, às novas formas de produção e tecnologias, aos rumos políticos e econômicos da sociedade brasileira como todo, que não deveria ser decidido pela Embrafilme, mas pelos cineastas. Ele defendia um modelo sem intervenção do estado – sem explicitar como –, integrado à televisão e plural. Disse ele: (...) depois de duas crises do petróleo e outras viradas de mesa, a economia brasileira marcha em outra direção e o Estado, à beira da falência, manda a população apertar o cinto, enquanto negocia tudo à sombra da dívida externa. Como é que o Estado que tenta se livrar da Petrobrás vai se comprometer com o cinema? O resultado são filas desesperadas à porta da Embrafilme, essa espécie de INPS cultural, falida, esvaziada, impotente, tentando curar chagas profundas com atendimento de mercúrio-cromo. Do outro lado do balcão, cineastas dançam o balé autofágico do desespero, disputam entre si o melhor lugar na fila de espera, elegem como inimigos os que ainda conseguem receber alguns últimos trocados, antes que o saco de espórtulas fique vazio de vez.381

Em fevereiro de 1988, Diegues voltou a se opor à empresa, assumindo o discurso neoliberal: Eu quero que a Embrafilme feche, que ela acabe ou se transforme naquilo que deve ser a sua vocação natural de empresa do estado: fazer experiências, auxiliar estreantes, ajudar tudo aquilo que não tem lugar no mercado. (...) não desejo paternalismo do estado de jeito nenhum. Eu quero é mercado.382

Além de Diegues, outros nomes ligados ao Cinema Novo, como Gustavo Dahl, Roberto Farias, Arnaldo Jabor, Ruy Guerra e Luiz Carlos Barreto, defenderam o fim da Embrafilme em prol do mercado. A radicalidade também estava presente no discurso de Hector Babenco em 1988: “(...) queria mesmo é que se fechassem todos os mecanismos de auxílio estatal.”383 Os diretores que conseguiam, à época, bons resultados nas bilheterias tendiam a ser a favor da lógica mercantil.

381 Carlos DIEGUES. Por um cinema mais democrático. 382 Caio Túlio COSTA. Em Paris, Diegues prega o fim da Embrafilme. 383 Amir LABAKI. Babenco volta ao Brasil para estrear no teatro.

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Um dos mais fervorosos críticos da Embrafilme foi o cineasta Ipojuca Pontes, que chegou a reunir em livro – Cinema Cativo, 1987 – diversos artigos que publicou na imprensa contrários à empresa entre 1980 e 1987. No volume, é possível perceber uma evolução do discurso de Pontes. Ele inicia repreendendo os supostos privilégios a alguns produtores e ao mercado externo384, e passa pelos problemas da gestão Celso Amorim385, pela dominação norte-americana no cinema do Brasil e pelo desemprego “crônico” ao qual culpa a Embrafilme. Pontes apela inclusive ao sensacionalismo mais simplista, ao utilizar as condições financeiras de técnicos de cinema no Rio como mote para criticar as gestões da empresa. Por um lado, aproveitou-se do caso do suicídio do maquiador Gilberto Marques: (...) por que morre de fome um técnico especializado do cinema nacional e vive bem, e vive muito bem, e vivem muitíssimo – com bons salários, viagens ao Exterior e mordomias de praxe – interventores e burocratas incompetentes que não apresentam a menor perspectiva para o desenvolvimento do cinema nacional?386

Por outro, valeu-se de anedotas que não poderiam ser comprovadas para marcar um ponto: Na última sexta-feira do mês de agosto (1982), sem querer ou querendo, passei no célebre Beco. Lá, encontrei um técnico de cinema, figura digna em todos os sentidos. Num canto, pediu-me sigilo e a dádiva de um almoço. Sua voz traduzia revolta e vergonha: - Ainda não almocei esta semana.387

Os últimos textos, de 1987, são combativos à existência da Embrafilme e do papel do Estado no cinema. No texto Estado, cultura e cinema, por exemplo, Pontes propõe a extinção de órgãos “burocráticos fomentadores do empreguismo, do paternalismo, da incompetência e da corrupção”. (...) a intervenção do estado na vida econômica do País resulta quase sempre em burocracia, corrupção e incompetência. (...) No âmbito das relações culturais, (...) a intervenção do estado tem-se definido, no mínimo, como

384 “Porque se de um lado a Embrafilme banca a política concentracionista, optando pela escalada do mercado externo, os recursos fatalmente ficarão restritos a meia dúzia de produtores, determinando-se, assim, o achatamento da produção. Por outro lado, a distribuição dos recursos entre os produtores independentes levaria à insatisfação o bloco internacionalizante. (...) De um lado (...), teremos os golfinhos lutando em favor da produção de filmes empenhados na conquista do mercado interno. De outro, testemunharemos os tubarões procurando engendrar produções sofisticadas, visando ao mercado externo, tendo como paradigma o sonho impossível de Hollywood.” Cf. Ipojuca PONTES. Cinema Cativo, p. 20. Texto Conflito, legitimidade e poder, de 1980. 385 “Não se pode avaliar ainda a extensão do mal que a gestão Amorim causa ao cinema brasileiro, mas pode-se afirmar agora, sem margem de erro, que Embrafilme se tornou um entrave para o desenvolvimento do nosso cinema e até um obstáculo para sua sobrevivência.” Cf. Ibidem, p. 31. Texto Senhor interventor, de 1981. 386 Ibidem, p. 38. Texto O último ato, de 1981. 387 Ibidem, p. 57. Texto Previsão metereológica, de 1982.

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criminosa e inconsequente. A Embrafilme, por exemplo, (...) nasceu e cresceu sob o signo da discriminação e da miséria. No histórico, sua completa desmoralização enquanto empresa pública provocou a queda de cerca de 15 interventores e determinou o enriquecimento ilícito de dois ou três produtores mais enfeudados e sabidos. Em contrapartida, nenhum problema real do cinema brasileiro – na área da exibição, produção e distribuição – nem sequer foi arranhado, em que pese o investimento de mais de 1 bilhão de dólares no terreno cinematográfico nos últimos 12 anos. O que fazer? Simplesmente restringir o estado.388

Hermano Penna, por exemplo, relata que os rumos tomados pela Embrafilme nos últimos anos o fizeram ser a favor do fim da empresa, porém, para trocá-la por outro órgão, mais empenhado em dar espaço ao cinema de menor apelo de público. Penna, inclusive, aponta que muita gente em São Paulo desejava o mesmo: Havia uma reação à Embrafilme dentro da classe, do pessoal ressentido como Ipojuca Pontes e um grupo de pessoas, e por parte do cinema paulista. Houve uma assembleia da Apaci em que foi discutido quem era a favor e quem era contra a extinção da Embrafilme, antes do Collor assumir. O índice foi 33 a favor e 33 contra. Inclusive o presidente da Apaci era a favor da extinção. [Eu] era a favor. Vinha tomando pau, achava que era uma loucura aquilo. Eu, Júlio Bressane. Queríamos outra coisa. Precisaria refundar aquilo porque tinha se tornado, naquele momento, um instrumento só do cinemão e enganava todo mundo com as pequenas migalhas. Chegava no lançamento e não lançava nada. Tinha se deteriorado violentamente, desde o momento quando o Calil saiu de lá. A gente queria outra coisa.389

6.5.4 Uma penada

Em meados da década de 1980, o cinema de sexo explícito dominava a produção brasileira e o circuito, sendo um dos responsáveis pelo market share acima dos 30%. Sem legislação específica para veiculação de tais filmes em salas especiais – como aconteceu no resto do mundo –, o circuito popular, em busca do lucro rápido e fácil, preencheu sua programação apenas com tais filmes, afastando parcela do público. Em 1980, pela resolução 62 do Concine, a lei de reserva de mercado ao cinema brasileiro, que fixava um número mínimo de dias em que a sala deveria exibir filmes nacionais, passou a ser 140 dias/ano, aproximadamente 40% da programação. O mercado exibidor nunca foi afeito à cota de tela e sempre combateu na justiça a obrigatoriedade, ainda mais ao ser pressionado pela Motion Picture Export Association of America (MPEA), que regulava a presença do filme norte-americano no país – braço estrangeiro

388 Ipojuca PONTES. Cinema Cativo, p. 92. Texto Estado, cultura e cinema, de 1987. O cineasta ainda repete um dos mantras do neoliberalismo para criticar a Embrafilme: apenas conseguiu distribuir o escasso lucro entre poucos e socializar o prejuízo entre muitos. 389 Em entrevista ao autor em 05 de março de 2015.

289 da Motion Picture Association of America (MPAA) para impedir monopólios locais, comandadas, respectivamente, por Harry Stone e Jack Valenti. Os exibidores entraram com pedidos de mandados de segurança contra a cota alegando que o cinema nacional não tinha produções suficientes de boa qualidade (apenas filmes ligeiros e pornográficos, que os faziam perder dinheiro). Afirmavam que primeiro deveria se produzir filmes bons e, só então, exigir a reserva. Em 1985, ano de queda do market share, pouco se cumpria a cota de tela e a lei da dobra390, seja por mandados conseguidos, seja por simples inadimplência – atrelados a isso, ainda, a crise da fiscalização pela Embrafilme/Concine. O assunto era tão premente em São Paulo que foi pauta de carta do então presidente da Apaci, Reinaldo Volpato, ao então Ministro da Cultura Aluísio Pimenta, em 03 de fevereiro de 1986, em que reivindican maior ação do Concine para se fazer cumprir a lei da obrigatoriedade391. Segundo o Boletim nº 19392 da associação, Marco Aurélio Marcondes, ao assumir a distribuidora da Embrafilme em 1986, solicitou intermediação do Concine para que os exibidores voltassem a exibir filmes da Embrafilme. O Concine propôs que os exibidores tirassem os mandados do Supremo Tribunal e voltassem a exibir os filmes. Em troca, o Concine seria tolerante no cumprimento da reserva de mercado. Assim, teria se institucionalizado o não respeito à lei da obrigatoriedade e à lei da dobra pelos exibidores. Se a história é factual ou não, pouco importa. A história, propagada pela Apaci, aponta para o enorme descrédito que os órgãos oficiais passavam perante os cineastas. De qualquer forma, era fato que a reserva de mercado passou a ser descumprida cada vez mais a partir de meados da década, com salas que chegavam a ter débito de 668 dias de exibição do filme brasileiro em 1990393. Por conta de, entre outros, diminuição do número de salas de exibição394, não cumprimento da lei da reserva de mercado, crescimento do mercado televisivo e de home vídeo, e recessão econômica no país, com inflação galopante395, houve uma queda do

390 Resolução 10 do Concine, de março de 1977, que aponta a manutenção do filme brasileiro em cartaz por mais uma semana de exibição se superar o índice de frequência semanal do cinema em questão no semestre anterior. 391 Cf. Reinaldo VOLPATO. [Carta] 03 de fevereiro de 1986, São Paulo [para] Aluísio PIMENTA. 392 ASSOCIAÇÃO PAULISTA DE CINEASTAS. Boletim nº 19, p. 2. 393 Cinema 1, no Rio de Janeiro. Cf. José Inácio de Melo SOUZA. A morte do cinema brasileiro e outras mortes. 394 Entre 1985 e 1990, o número de salas variou entre 1372 e 1520, sendo que apenas metade não era ocupada por filmes de sexo explícito. Vale lembrar que o auge foi em 1975, apenas dez anos antes, com 3276. 395 Depois do baixo índice anual conseguido graças ao Plano Cruzado, em 1986, com 59,2%, a inflação explodiu: 394,6% em 1987, 993,28% em 1988, 1863,56% em 1989 e 1585,18% em 1990.

290 público do cinema brasileiro396. Os problemas enfrentados pela Embrafilme, pelo Concine e pela FCB, completamente sucateados397, sem poder de produção398, atrelados à pouca ocupação de mercado, levaram o cinema brasileiro a uma crise sem precedentes. Além disso, a campanha da imprensa neoliberal e de parte da classe consolidou no brasileiro a desvinculação do cinema e do Estado. O Datafolha perguntou a 517 frequentadores de cinema de São Paulo: “Na sua opinião as verbas para a produção de filmes brasileiros devem vir de um órgão público como a Embrafilme, ou de entidades privadas?” Na pesquisa, publicada na Folha de S.Paulo, em 19 de junho de 1988399, 49% dos entrevistados achavam que a produção de filmes brasileiros deveria ser financiada por entidades privadas. Apenas 23% apontaram órgãos públicos, como a Embrafilme. 25% os dois – e 3% não sabiam responder. Ou seja, a maioria apontava o cinema como questão de mercado e achava que o dinheiro do contribuinte não deveria financiar os filmes brasileiros. Fernando Collor de Mello foi eleito prometendo levar o Brasil rumo ao primeiro mundo, ao instaurar efetivamente uma política neoliberal, defendida por setores da comunicação e da cultura, apenas ensaiada no governo de Sarney. Ao assumir a presidência do Brasil em 15 de março de 1990, extinguiu o Ministério da Cultura, rebaixando a pasta a uma Secretaria Nacional, submetida diretamente à presidência. Collor nomeou ao cargo Ipojuca Pontes, notório detrator da Embrafilme. Com uma penada, um dia após a posse, extinguiram a Embrafilme, o Concine, a Funarte, a Fundacen, a FCB, a Fundação Cultural Palmares, a Pró-Memória, a Pró-Leitura e a Fundação Museu do Café, além de suspenderem a Lei Sarney. A Funarte e a Palmares integraram o Instituto Nacional de Atividades Culturais (Inac). O Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan) absorveu o Sphan, a Pró-Memória e a Pró-Leitura. A Fundação Roquette Pinto englobou a Funtevê e o Inep. Tentando conservar a Embrafilme e seu cargo, Moacir de Oliveira assinou 34 contratos de longas entre dezembro de 1989 e março de 1990. Coube ao liquidante da empresa, José Coelho Fabrizzi, levado ao cargo em 11 de abril de 1990, a decisão de

396 Market share: 24% em 1985; 23%, em 1986; 18%, em 1987; e 22%, em 1988. 397 Em março de 1989, a Embrafilme contava com 254 funcionários e tinha uma receita média mensal de NCz$ 540 mil, sem receber dotações orçamentárias do Estado – que parou de colocar dinheiro nela depois da criação da Fundação. A FCB, por sua vez, tinha 253 funcionários e não avançou nenhuma política de produção. 398 Pouquíssimos filmes aprovados em concursos foram efetivamente realizados. Muitos dos longas lançados comercialmente pela empresa entre 1988 e 1990 eram de anos anteriores que demoraram a conseguir espaço no mercado. 399 49% ACHAM que Estado não deve financiar cinema brasileiro.

291 mantê-los ou, como foi feito, rescindi-los, interrompendo vários filmes em processo de produção e distribuição. O projeto de política cultural de Ipojuca Pontes era acabar com a lei de reserva de mercado para o cinema (que já não era cumprida) e com os investimentos estatais diretos na produção. O governo disponibilizaria US$ 30 milhões ao BNDES, através da Carteira Nacional de Fomento à Produção Cultural. O banco emprestaria esse dinheiro a produtores pensando no lucro, como em qualquer outro negócio, com a vantagem de juros a 12% ao ano. Em 08 de março de 1991, Pontes pediu demissão, para ser adido cultural na Argentina e diretor do Centro de Estudos Brasileiros em . Considerou sua gestão terminada, com o anúncio da nova política audiovisual. O último ato de Pontes foi a entrega de um anteprojeto de lei sobre a atividade cinematográfica, diminuindo a cota para 70 dias de obrigatoriedade de filmes brasileiros e de 25% para 10% de filmes brasileiros em vídeo, e desobrigando a copiagem de filmes estrangeiros no Brasil e a pós- produção de filmes brasileiros no país. O diplomata Sérgio Paulo Rouanet assumiu a pasta no dia 10 e reconduziu a união entre cultura e Estado, especialmente por conta da Lei Rouanet, nome mais conhecido da Lei Federal de Incentivo à Cultura (Lei nº 8.313 de 23 de dezembro de 1991), baseada na Lei Sarney. Em 1992, determinou-se a exibição de filmes brasileiros em 42 dias dos 18 meses seguintes, de julho de 1992 até o final de 1993. Com o fim da Embrafilme, que distribuía os filmes, e do Concine, que regulava o mercado, o cinema brasileiro se viu sem norte, com dificuldades de encontrar espaço para lançar os longas que aguardavam posição da distribuidora e os que ficaram prontos na época ou depois da extinção da empresa. Ao ver a possibilidade de extinção da Embrafilme, Nuno Cesar Abreu desovou seu Corpo em Delito (1989) no dia 01 de março de 1990, com receio de piora do cenário. O lançamento foi pequeno e o resultado pífio. Em 15 de junho de 1991, o grande vencedor do festival de Gramado de 1990, Stelinha, de Miguel Faria Jr., foi lançado em apenas duas salas no Rio de Janeiro, com campanha promocional de US$ 20 mil, e ficou apenas uma semana em cartaz, levando 3 mil espectadores aos cinemas. O fracasso do longa de apelo popular assustou os outros diretores, que postergaram o lançamento de seus filmes. Forever (1990), de Walter Hugo Khouri, estreou apenas em 1993. Outros filmes paulistas também sofreram para chegar ao circuito comercial: Beijo 2348/72 (1990), lançado em 1994; Perfume de Gardênia (1992), em 1995; O Corpo (1991), em 1996. O mesmo se deu com outros longas, caso dos cariocas O Escorpião Escarlate (1990),

292 lançado em 1993, e Barrela (1990), de Marco Antônio Cury, em 1994. Filmes como os paulistas Real Desejo (1990), Mais que a Terra (1990), de Elizeu Ewald, e O Vigilante (1992), de Ozualdo Candeias, e o carioca Natal da (1988), de Paulo Cesar Saraceni, entre outros, sequer foram lançados comercialmente. O fim da Embrafilme e do Concine, sem qualquer proposta de política cinematográfica, associou aos nomes de Collor e Pontes a morte do cinema brasileiro. Percebe-se, porém, que o fim foi fruto de uma conjuntura que envolveu muitas pessoas com diferentes expectativas, muitas das quais se arrependeram, ajudando a construir uma história que culpou apenas ambos400.

6.5.5 Recortes sobre o fim da Embrafilme: cineastas paulistas

Invariavelmente, o fim da Embrafilme (e do Concine) atingiu a todas parcelas da classe, quisesse ela o seu término ou não. Para o cinema paulista, foi um golpe que encerrou uma cinematografia em desenvolvimento, que amadurecia novos caminhos frente aos paradigmas do cinema popular e político. Além disso, nem mais com a Boca poderiam contar. Para onde ir? Como solucionar a crise profissional? Para além das leis, dos editais e das estatísticas, os relatos ajudam a compreender o que se passou em São Paulo após a ruptura em 1990. Os cineastas:

Walter Rogério: Com o desmonte da Embrafilme, tudo isso dançou. Todo mundo ficou desempregado, foi aquela miséria, houve uma diáspora e todo mundo correu para o vídeo. Mas com as crises econômicas todas, houve muita retração no mercado de vídeo, que ficou inflacionado, algo que ocorre até hoje. Mas pelo menos dava para sobreviver.401

Ícaro Martins: Foi uma hecatombe. O Collor seria alguém para ser apedrejado sob vários pontos de vistas, não apenas cultural e cinematográfico. Tem uma coisa que é péssima no Brasil: se algo começa a dar problema, se resolve mudar completamente o sistema e começar tudo do zero. Isso é uma coisa terrível. Desde que me entendo por gente, peguei três sistemas. Peguei o fim do INC, o surgimento da Embrafilme e Concine, depois o fim da Embrafilme e Concine e o surgimento da Ancine e Fundo Setorial do Audiovisual [FSA]. Em outros países, isso não ocorre. O INCAA [Instituto Nacional de Cine y Artes Audiovisuales, da Argentina] é o mesmo modelo do INC, contemporâneo a

400 Segundo Calil: “Não foi o Collor quem liquidou com a empresa. Ele assinou o seu atestado de óbito. Quem quebrou a espinha dela foi o ministro Celso Furtado.” Cf. André Piero GATTI. Cinema Brasileiro – Entrevista com Carlos Augusto Calil, p. 13. 401 Lúcia NAGIB (org.). O Cinema da Retomada – Depoimentos de 90 cineastas dos anos 90, p. 398.

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ele. Todas essas instituições passaram por crise, mas temos essa mania de derrubar e começar do zero, ao invés de corrigir. Há uma psicose nacional, não sei. A Embrafilme é o mesmo sistema de uma grande empresa nacional, como a Petrobrás, o modelo que o Getúlio começou. Temos as empresas multinacionais que dominam o nacional. Você então cria uma grande empresa nacional pública que terá cacife para brigar com ela. Essa é a história da Petrobrás e também da Embrafilme. Os militares, por um período, continuaram com esse modelo de política nacional que funciona – como o INC também funcionava. Com a crise dos anos 1980, a Embrafilme começou a fazer água. Com a inflação acima de 100% ao ano, nenhuma produção é autossustentável, mas graças a ela se garantia toda a produção, não só a que ela produzia. A Boca existia porque, tendo um distribuidor forte que peita as majors, propiciou crescerem as distribuidoras do Circuito Sul, do Chiquinho, o Grupo Severiano Ribeiro. Propiciava isso. Porque tinha uma grandona que não deixava o mercado ser completamente dominado pelas majors, pela MPAA. O modelo da Embrafilme era o seguinte: a dívida que você contraiu com a Embrafilme não tinha correção monetária. Quando a inflação ficou maior que 100% ao ano, o produtor quitava sua dívida, mas o dinheiro parou de girar. Todo mundo sabia que estava em crise, o dinheiro estava minguando, a produção começou a sofrer muito, as pessoas começam a reclamar. A Embrafilme tinha vários problemas, como tudo. O Celso Furtado não resolveu a questão e quando o Collor assumiu, bastou uma penada para acabar. Eu estava com um projeto em desenvolvimento. Desenvolvi, mas não tinha como produzir. O Zé Antonio já tinha aprovado a produção, e demorou um tempão, a verba não chegava, fez a duras penas, demorou quatro ou cinco anos para fazer O Corpo. Todo mundo foi trabalhar em publicidade, TV, mudou de ramo. O problema dessa coisa cíclica no Brasil sempre dá grandes problemas. O que aconteceu com a geração da Vera Cruz? Alguns foram para a publicidade, Chick Fowle etc. Boa parte dos italianos voltou, outra foi fazer outras coisas. O custo social, cultural e até econômica é enorme. Cada vez que há uma ruptura é uma coisa absurda.402

Roberto Gervitz: Foi terrível. A classe não estava preparada. A Embrafilme estava sofrendo uma campanha muito grande contra ela, muito negativa, dentro de uma perspectiva do neoliberalismo no mundo inteiro, que o jornalismo daqui abraçou com tudo. Era aquela coisa de acabar com o Estado, que não podia subvencionar nada, que o mercado que decidia. Isso era uma estratégia completamente suicida. Sabíamos que se o cinema fosse entregue ao mercado, não ia durar nada, duraria pouco. Para ser entregue ao ser mercado, teria que estabelecer uma disputa de igual para igual no seu mercado, mas nisso nunca ninguém quis mexer. Sofreu ameaças até na dimensão internacional de distribuição de produtos. Quando o Brasil criou a cota de tela foi um escândalo. Cinema brasileiro sempre foi estrangeiro dentro do seu próprio país, no que diz respeito à criação de condições de igualdade na competição do mercado. Quando a Embrafilme começou a ter problemas que diziam respeito à mudança do desenho do mercado, o cinema brasileiro perdeu muito público na década de 1980 para a televisão, que entrou com tudo. Acho que existia uma falta de visão em grande parte da classe do cinema brasileiro, da parte mais hegemônica, e o público do cinema estava caindo. Aquilo que o cinema brasileiro fez nos anos 1970, a televisão estava fazendo melhor nos anos 1980. A Embrafilme foi ficando cada vez mais frágil, com um discurso neoliberal cada vez mais forte. Toda semana tinha um cineasta falando no jornal para acabar com a Embrafilme, que era um desperdício de dinheiro. Quando veio o Collor, ele veio para cumprir com o projeto neoliberal. Acabou com a Embrafilme e foi uma tragédia. Só começou a existir de novo quando criaram novas políticas para o cinema ressurgir. Me lembro de que na época o discurso era: ‘se a Alemanha faz bem um chip, porque fazer? Melhor trazer da Alemanha. Se os

402 Em entrevista para o autor em 24 de setembro de 2014.

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EUA fazem bem cinema, por que a gente tem que fazer? Eles fazem melhor que a gente’. Ouvi o assessor do Collor, Luiz Paulo Vellozo Lucas, que foi prefeito de Vitória depois, falar isso. Não acreditei, parecia queima de livros no nazismo. Tinha acabado de ter minha filha, parei de fazer cinema. Foi um baque muito grande, uma descontinuidade terrível. Pouca gente resistiu. Os filmes que saíam disso eram obviamente muito precários, poucos recursos.403

Ugo Giorgetti: Pra mim, a quebra da Embrafilme foi fundamental. Estava com o filme saindo, distribuído por ela, que foi truncado completamente. A classe como sempre foi omissa. A classe não tem força nenhuma, ninguém ouve o que cineasta fala. Mas teve muita gente que foi a favor da quebra da Embrafilme. Alguns nomes fortes. Não precisava acabar nada. Se achava que tinha corrupção na Embrafilme, muito simples, substitui o cara. Mas não, fizeram como: se o médico é corrupto, você fecha o hospital. Porra. Que idiotice é essa? O Collor foi o único cara sincero com a gente. Falou: ‘vocês vão pro diabo que o carregue, eu odeio vocês. Fechou, acabou’. É verdade que depois ele voltou atrás quando ouve buchicho, mas foi o único cara sincero com a gente. Todos os outros falam isso com seu travesseiro, mas nos deixam ligado por um soro que desce no nosso nariz e nos deixa mais ou menos vivos, porque é chato matar cinema. Nenhum país civilizado fez isso na vida. No Brasil, que tem sonhos dourados de grandeza, é pior ainda.404

Jair Correia: Os produtores perderam todos os mecanismos de defesa em relação ao cinema estrangeiro sob domínio do cinema americano – e até hoje a influência da MPAA na rede distribuidora brasileira é cada vez mais forte. Várias vezes o senhor Jack Valenti barrou as leis que protegiam o cinema nacional ameaçando o comércio internacional de produtos brasileiros como o café, o calçado e outros.405

Augusto Sevá: Quando o Collor entrou, estava mixando o Real Desejo. Fiquei numa situação financeira super difícil, porque uma parte grande da parcela do filme era na cópia, que só foi pago três ano depois, quando o Sérgio Paulo Rouanet entrou no ministério e acertou as dívidas da Embrafilme com os fornecedores, artistas e produtores. Só que o dinheiro, três anos depois da posse do Color, tinha desvalorizado 80%. Ou seja, recebi três anos depois o equivalente a 20%. Isso me custou ficar três anos sem cartão de crédito, sem cheque, sem nada. Só fiquei com conta poupança e um cartãozinho, e só podia mexer com dinheiro vivo. Acertei as dívidas com a equipe trabalhando, e depois, quando recebi esse dinheirinho, paguei o restante dos fornecedores e consegui acertar tudo. Eu não tinha recursos para lançar o filme e não tinha nenhuma linha de financiamento, não tinha nada. Tanto que praticamente nenhum filme foi lançado nesse período.406

Hermano Penna: A Embrafilme dividiu a classe, dividiu a Apaci, só que hoje todo mundo [fica] caladinho. Nós pensávamos que íamos ter um [novo] órgão logo depois e o

403 Em entrevista para o autor em 16 de janeiro de 2015. 404 Entrevista ao autor em 12 de março de 2015. 405 Em entrevista ao autor em 13 de fevereiro de 2015. 406 Em entrevista para o autor em 26 de novembro de 2014.

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Collor chegou a cobrar. As pessoas que estavam contra a Embrafilme nunca imaginaram que [ele] fosse colocar o Ipojuca [Pontes], uma pessoa inteiramente ressentida e vingativa, e que a resposta fosse tão grosseira. Além de o terem escolhido a dedo pelo ressentimento, [o governo] ao menos tempo era ligado aos americanos. A extinção do Concine já mostra um sinal de desregulamentação que os americanos [queriam]. Foi muito violento. As pessoas precisam raciocinar porque o Brasil tinha 3500 cinemas e acordou com 700. Collor apenas atendeu o que a grande imprensa pediu. Quando o Collor e o Ipojuca fizeram a terra arrasada, as lutas internas não deixaram criar nada; hoje todo mundo bota a cabeça de avestruz na terra e grita ‘Collor’.407

6.6 O cinema paulista tenta se reerguer

Em agosto de 1989, um novo convênio foi divulgado entre a Embrafilme e a SEC- SP, intitulado I Projeto Cinema Paulista, para a produção de até dez longas-metragens em São Paulo. O prêmio, de US$ 300 mil, a fundo retornável, era composto por US$ 200 mil da SEC-SP e US$ 100 mil da Embrafilme. Foram premiados, ainda em novembro de 1989: Sábado, de Ugo Giorgetti; O Cangaceiro, de Galileu Garcia; Capitalismo Selvagem, de André Klotzel; O Vigilante, de Ozualdo Candeias; Bocage, O Triunfo do Amor, de Djalma Limongi Batista; Perfume de Gardênia, de Guilherme de Almeida Prado; A Alma que Tirou o Corpo Fora, de André Luiz Oliveira; Amélia, de Ana Carolina; O Gato Toscano, de Ricardo Lua; e A Causa Secreta, de Sérgio Bianchi. No meio do processo, a Embrafilme foi liquidada. A SEC-SP entrou com a verba, mas sem a contraparte da empresa, não era possível caminhar com os projetos. Apelaram à Secretaria da Cultura, tanto a Pontes, quanto a Rouanet, sem efeito. Em novembro de 1990, a Secretaria Municipal de Cultura anunciou fomento a Perfume de Gardênia, A Causa Secreta e Sábado, como copatrocínio. Além dos três, também foram concluídos O Vigilante, utilizando apenas a verba da SEC-SP, e Capitalismo Selvagem, com aportes de outras fontes. Bocage e Amélia só foram realizados com a Lei do Audiovisual, dentro do contexto da Retomada. Antes, porém, de poder contar com a Lei Rouanet (1991) e com a Lei do Audiovisual (1993), ambas mais utilizadas a partir de 1994, o cinema paulista pode utilizar a Lei Mendonça, lei municipal de incentivo fiscal de São Paulo (Lei 10.923, de 30 de dezembro de 1990), e do Programa de Incentivo à Cultura (PIC), promulgado em 23 de novembro de 1992 pela Lei 11291/92, uma evolução do apoio de 1990, em que a secretaria copatrocinava longas. Outras fontes de recursos públicos incluíam o Polo de

407 Em entrevista para o autor em 05 de março de 2015.

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Cinema e Vídeo de Brasília, criado em 1991, e o Prêmio Resgate do Cinema Brasileiro, de 1993, que disponibilizou os recursos da Embrafilme para a produção. Aos poucos, e com persistência, o cinema paulista retomou sua produção. Muitos dos cineastas revelados na década de 1980 demoraram mais de uma década – às vezes, duas – para voltar a filmar (Augusto Sevá, Elizeu Ewald, Hermano Penna, Ícaro Martins, José Antonio Garcia, Reinaldo Volpato, Roberto Gervitz, Suzana Amaral), outros abandonaram a carreira ou seguiram/seguem tentando (Aloysio Raulino, Isa Castro, Isay Weinfeld e Márcio Kogan, Jair Correia, Sérgio Toledo, Nuno Cesar Abreu, além de Djalma Limongi Batista – que demorou onze anos para lançar o terceiro longa, em 1997, e desde então não fez mais filmes – e Walter Rogério – cujo último trabalho é de 1996). O fim da Embrafilme encerrou um ciclo muito rápido do cinema paulista, geracional, que, quando ressurgiu, estava completamente diferente.

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7 CONSIDERAÇÕES FINAIS: apontamentos para um futuro passado

Com uma penada, a Embrafilme e o Concine foram extintos. O que veio depois foi um abismo, um curto hiato, de 4 a 5 anos, suficiente para reformular o fazer e o pensar cinema no Brasil. Já se foi dito que o cinema brasileiro vive de ciclos. É verdade. Pouco se continua, efetivamente. Os sistemas de produção são mudados, os cineastas dificilmente conseguem se renovar e se adequar aos novos tempos. São poucos os que conseguiram atravessar modelos com sucesso, muito porque aprendem a trabalhar dentro de um esquema e o cinema brasileiro opera, em geral, com rupturas. Em termos nacionais, o cinema paulista da geração de 1980 faz parte do encerramento de um ciclo maior, o da Embrafilme. Em São Paulo, é um ciclo à parte, com raízes no passado, mas com um início e fim muito próximos a seu auge. Na década, o cinema paulista ganhou a maioria das edições em Gramado408, à época o principal do país, além de três vitórias da geração em Brasília409 e duas no RioCine Festival410. Também foi premiado na mostra competitiva de alguns dos mais importantes festivais do mundo inteiro, como em Berlim e em Locarno. Mesmo bastante premiado e com alguns (poucos) sucessos de bilheteria, nota-se a ingerência do cinema da época, que não conseguiu sobreviver sem a tutela do Estado – a partir de seu financiamento ou de sua legislação. A geração de 1980 que concebia uma alternativa ao cinema popular, uma substituição do papel da Boca do Lixo para o público, terminou antes de poder avançar. De tudo o que o cinema paulista propôs ao cinema brasileiro da época – as novas formas de pensar o popular e o político, o trabalho com gêneros cinematográficos, a metalinguagem etc. –, o que ficou? Ouso dizer que nada. Ou melhor: quase nada.

7.1 A técnica na estética

No começo dos anos 1980, houve uma renovação na tecnologia de filmar no Brasil. As câmeras 35mm blimpadas da Arri se tornaram mais acessíveis. A Zeiss lançou

408 6 vezes, sendo 4 da nova geração (Sargento Getúlio, A Marvada Carne, A Dama do Cine Shanghai e Festa) e 2 da antiga (O Baiano Fantasma e Anjos do Arrabalde). 409 A Hora da Estrela, Anjos da Noite e Beijo 2348/72. 410 Cidade Oculta e A Dama do Cine Shanghai. O RioCine dava o Sol de Ouro, o prêmio principal, ao melhor filme segundo o júri popular. O júri oficial concedia o Sol de Prata ao melhor filme. Nessa categoria, ganharam Fronteira das Almas, O País dos Tenentes e A Dama do Cine Shanghai.

298 uma lente de alta velocidade, grande abertura de diafragma, de 1.7. A Kodak lançou negativo de 500 e de 800 asas. Foram tais inovações que permitiram tecnicamente se filmar a noite de São Paulo, sem uma necessidade de uma iluminação específica para além do objeto que você estava filmando. Ela imprimia a luz própria de São Paulo. Isso facilitou a filmagem em externas e influenciou os cineastas a utilizarem tal visual nos filmes. Houve também um domínio muito maior do negativo colorido, que se tornou popular no Brasil apenas na década de 1970. Como aponta Augusto Sevá: “Houve um tempo de adaptação, primeiro da tecnologia e depois de formação dos fotógrafos para trabalhar com o negativo colorido. Essa conjunção do know-how de trabalhar com uma tecnologia que também se aperfeiçoou vai acontecer na virada para os anos 1980.”411 Além disso, a nova geração contava com jovens técnicos egressos da universidade ou com nomes experientes da publicidade, que buscavam um maior nível de qualidade técnica412. Com os novos equipamentos, foi possível filmar cenas tecnicamente mais complexas e isso exigia mais precisão, que veio acompanhada de uma série de acessórios mais modernos, como tripés com cabeças de maior qualidade, carrinhos, dollys, trilhos e gruas. Nos anos 1980, os diretores de publicidade também começaram a fazer o caminho inverso, migrando para o cinema, como é o caso de Ugo Giorgetti. Em entrevista a Filme Cultura, ele disse: Minha concepção de cinema é a seguinte: o país é subdesenvolvido mas eu não. Portanto, eu me reporto ao cinema internacional. Eu sempre fui contra o cinema lixo. Tem que ser caprichado, tem que ser bem feito, nesse ponto eu sou exaustivamente chato. (...) Acho que quem não conhece as técnicas do ofício devia se afastar.413

A fala de Giorgetti demonstra uma mentalidade do cinema publicitário que passa a dominar o cinema paulista nos anos 1980 muito por conta do intercâmbio entre as áreas. O cinema publicitário brasileiro se concentrou em São Paulo desde o desmantelamento

411 Em entrevista para o autor em 26 de novembro de 2014. 412 É o caso do fotógrafo José Roberto Eliezer: “(...) acho que a técnica existe para ser usada. Se você tem uma câmera e uma lata de filme, você tem mil maneiras de juntar essas duas coisas e fazer uma terceira. Eu acho que você deve procurar expor esse filme da melhor maneira possível e usar a sua lente no melhor diafragma que ela puder dar, em relação ao efeito que você quer ter. (...) acredito que é fundamental você dominar a técnica e usar a técnica para fazer arte. O cinema é uma arte técnica, fundamentalmente técnica. (...) se você está concorrendo no mercado com um produto bem acabado, você tem que ter um produto bem acabado também, você tem que partir disso, isso é básico. Então, eu faço questão de ter um bom produto, uma boa imagem, uma coisa que dê prazer de se ver. Não uma coisa mal iluminada, mal enquadrada, desfocada, granulada, mal copiada. Eu batalho por uma excelência técnica, eu acredito nisso, acho que é por aí que se consegue as coisas.” Cf. Francisco Cassiano BOTELHO Jr. Técnica e estética na imagem do novo cinema de São Paulo, p. 86-7. 413 GIORGETTI, experiência obtida nos comerciais.

299 da Vera Cruz, nos anos 1950, pelo parque de equipamentos e pelos técnicos de qualidade internacional que estavam ali, cuja estética industrial não era muito bem vista pelo cinema emergente. A publicidade tornou-se um nicho e apenas começou a se expandir para outros setores nos anos 1980. O segmento tinha uma vantagem: a primazia técnica – os profissionais estavam sempre atualizados quanto aos novos equipamentos e sabiam usar essas potencialidades. Quando houve a paralisação quase completa da produção em 1990, os profissionais de cinema que subsistiram buscaram outras fontes de renda, como a televisão, o vídeo, e, principalmente, a publicidade – caso de José Roberto Eliezer, que só voltou ao cinema nos anos 2000. Nos anos 1990, após a Retomada, o pessoal do publicitário conseguiu inserção no cinema, com empresas que prosperaram em tempos de crise como a O2, em São Paulo, e a Conspiração, no Rio de Janeiro. O intercâmbio de técnicos e diretores do cinema e da publicidade, que começa timidamente em São Paulo, nos anos 1980, vira praticamente regra na Retomada. O cinema promove o desejo, enquanto a publicidade paga as contas. Com isso, a preocupação excessiva com a qualidade técnica e com a exuberância da imagem do cinema paulista da geração de 1980, resultado dos novos processos e da influência mútua da publicidade, é normatizada na Retomada. Se, antes, havia uma vontade de expor as possibilidades estéticas das tecnologias, com o ressurgimento da produção essas possibilidades já foram completamente absorvidas e assimiladas. Não é mais uma preocupação incorporar a técnica; ela já está interiorizada no processo, dando certa liberdade de criação. Reflexo disso é o aumento da equipe, dos equipamentos e dos orçamentos. A perspectiva da técnica na estética pode ser vislumbrada na pecha da ‘cosmética da fome’ para uma série de filmes que estetizavam a miséria. Essa glamourização, esse embelezamento da imagem, que vigoram na publicidade, já estavam presentes no cinema paulista dos anos 1980, inseridos, porém, em outro contexto e em outros temas. Não é o caso aqui analisar como se deu a transformação dessa perspectiva, interessa-me apontar esse germe, ver quando surgiu esse processo. Da mesma forma, outra tendência pode ser traçada a essa geração e que prepondera na Retomada, a ideia de cinema do ‘eu’.

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7.2 O cinema do ‘eu’

O conceito que uso de cinema do ‘eu’ aqui é diferente do proposto por Raymond Bellour, que versa sobre a presença do autobiográfico nos filmes. O que proponho se conecta ao subjetivo de outra forma. O cinema brasileiro, até então, poderia ser dividido, de maneira geral, em duas grandes esferas: o cinema de função comercial, com o intuito de gerar lucro, levando pessoas aos cinemas (chanchadas, Vera Cruz e estúdios, Boca do Lixo, Trapalhões, Mazzaropi etc.); e o cinema de função social, aquele preocupado em provocar reflexões, seja de ordem política, social e/ou econômica, seja de inquietação com a linguagem (p.e., Cinema Novo, Cinema Marginal e seus egressos). De qualquer forma, são filmes que pensam nos outros, no público que vai assistir. Imagina-se, primeiro, o que o espectador quer ver (para se divertir, para conhecer novas ideias) ou o que deve ver (para repensar, para discutir). No cinema paulista da geração de 1980, existe o cinema de função social (especialmente os de cunho político) e o de função comercial (alguns na fase da Boca do Lixo), mas parece aparecer outra tendência. O cinema do ‘eu’ seria aquele que não parte da expectativa do outro, mas da expectativa de si, do ‘o que eu quero ver?’ Boa parte dos filmes surgem assim, de um desejo interno de reproduzir um tipo de produção que interessa. Porque, parece, para essa geração, o ‘eu’ equivale a ‘o público’. Ou seja, fazer um filme para si próprio é fazer um filme para o outro, já que ‘eu’ sou ‘o público’. Isso não significa que tais filmes abdiquem de táticas do cinema comercial e do social. São produções que pensam em linguagem, buscando explorá-la ao máximo dentro de suas propostas, e que pensam em estratégias populares e em voga, como vistas em Um cinema popular, por exemplo. São complementares, porque, ainda que se faça um filme tendo uma satisfação pessoal enquanto espectador como mote, buscam dialogar com outros setores – ou mesmo porque, como espectador/realizador, interessa-se por tais estratégias; ou ainda porque, dentro do cinema brasileiro, gastar dinheiro público para satisfazer um desejo próprio pode ser mal visto. Feliz Ano Velho, Vera e A Hora da Estrela, por exemplo, partem de angústias pessoais de seus diretores, do desejo de expô-las ao mundo. Já A Dama do Cine Shanghai e Cidade Oculta exploram estéticas e temáticas que os diretores apreciavam, que gostavam de ver, acrescidos de uma irreverência no tratamento narrativo.

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Tal mudança de perspectiva só me parece possível por conta de dois motivos, próprios da geração: a educação formal e o dinheiro público. O financiamento estatal não era novidade nos anos 1980, a Embrafilme já fazia isso desde os anos 1970, além de participações não sistemáticas anteriores. Porém, a geração paulista é a primeira a contar com esse benefício de maneira mais ampla e plural, fruto das batalhas da Apaci pela maior inclusão de São Paulo entre os aprovados. São possíveis, assim, arroubos pessoais, tentando caminhos, sem precisar do lucro, ainda que, claro, fosse muito benvindo, já que não precisavam devolver esse dinheiro. Quanto à educação formal, é a primeira geração que, em sua maioria, passou pelo curso universitário de cinema e escolheu a profissão pela cinefilia. Na faculdade, puderam ampliar o arcabouço fílmico, teórico e prático, de forma que refletir sobre os filmes que apreciam era prática comum. Ao estudar, podiam entender de maneira mais certeira quais elementos os interessava e reproduzi-los. É muito diferente do que houve com o cinema popular carioca dos anos 1980, que fazia um grande público. São filmes essencialmente comerciais, oriundos de tradições outras, e afinados com interesses realmente pop (caso dos filmes juvenis, por exemplo). Apontam sempre para o outro. Na Retomada, continua existindo o cinema de função comercial e o de função social, mas parece imperar o cinema do ‘eu’ e não para o ‘outro’, especialmente porque, com as leis de incentivo fiscal e o mercado fragilizado, remunerar-se no processo é básico. Não se espera mais o resultado de bilheteria, porque está cada vez mais difícil atingir o público – ainda mais depois da entrada da Globo Filmes no cenário, que dominou o segmento para filmes nacionais. A partir de 1995, a maioria dos cineastas estreantes vinha de cursos universitários de audiovisual. Os filmes tendem a ser feitos para satisfazer uma vontade, em especial os independentes e de baixo ou médio orçamento. Cito, como exemplo, os longas do Filmes do Caixote, que também trabalham com releituras bastante particulares de gêneros consagrados, os de Chico Teixeira, que versam sobre o íntimo de relações na classe média baixa, os primeiros de Anna Muylaert e José Eduardo Belmonte, além do regionalismo gaúcho sob o prisma de Tabajara Ruas, entre muitos outros. Essa tendência do ‘eu’ se fortifica com a consolidação das leis de incentivo, na primeira metade dos anos 2000, quando os estreantes conseguem perfurar seus espaços após bem-sucedida carreira no curta-metragem. Que fique claro que não há nenhum demérito nisso, não há juízo de valor em se vislumbrar o ‘eu’ antes do ‘outro’ ao fazer o filme.

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Tais apontamentos – o tecnicismo e o ‘eu’ –, porém, são circunstanciais, apreendidos nas entrelinhas do método de realização fílmica no Brasil e na São Paulo dos últimos 35 anos, não necessariamente determinantes para compreender os filmes, ainda que possam dar pistas sobre o processo. São aventamentos para outra pesquisa por vir.

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Acervos Apaci – Associação Paulista de Cineastas Biblioteca da ECA/USP Biblioteca do IA/Unicamp CCSP Cinemateca Brasileira MIS-SP

Acervos (imprensa) Cine Jornal (Embrafilme) Cineasta Cisco Filme Cultura Folha de S.Paulo Jornal da Tela (Embrafilme) Moviola O Estado de S. Paulo O Globo Revista Zingu! Veja

Sites consultados Ancine (http://www.ancine.gov.br) Apaci (http://apaci.com.br/) Cinemateca Brasileira (http://www.cinemateca.gov.br) Cinematográfica Superfilmes (http://www.superfilmes.com.br/) ECA/USP (http://www.eca.usp.br/) Ipea Data (http://www.ipeadata.gov.br/) Portal IBRE (http://portalibre.fgv.br/) Raiz Produções Cinematográficas (http://www.raizprod.com.br/) Studio MK27 (http://studiomk27.com.br/) Tabloide digital – Aramis Millarch (http://www.millarch.org/)

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APÊNDICE A: Filmografia comentada

A Caminho das Índias (1982), de Augusto Sevá e Isa Castro Roteiro: Augusto Sevá e Isa Castro; Produção: Augusto Sevá (Gira Filmes); Fotografia: Pedro Farkas; Montagem: Augusto Sevá, Isa Castro e Reinaldo Volpato; Cenografia: Tião Maria; Elenco: Cacá Rosset e José Celso Martinez Corrêa Festivais (sem prêmios): Locarno, San Sebastian, Bilbao, seção Panorama, de Berlim Fortuna crítica: Orlando Fassoni, na Folha de S. Paulo: “Uma obra intrigante, que pode revelar, em Sevá e em Isa, novos talentos de uma geração paulista cheia de vontade e de imaginação e que começa agora a dar seus primeiros passos.”414 Carlos M. Motta, em O Estado de S. Paulo: “‘A Caminho das Índias’ não é documentário com cenas de ficção. As cenas, numa linha documentária, são posadas.”415

Abrasasas (1984), de Reinaldo Volpato Roteiro e Montagem: Reinaldo e Rita Volpato; Produção executiva: Isa Castro (Gira Filmes); Fotografia: Marco Bottino; Direção de arte: Tião Maria; Som: Walter Rogério; Música: Sérgio Sá; Elenco: Jacqueline da Costa Silva, Ulisses Pereira, Gilberto Moura, Paulo Casanova, Vladimir Fernandes Prêmios: som e espírito carioca, no 1º Rio Cine Festival; autoria, ator coadjuvante (Moura), som e cenografia, no Prêmio Governador do Estado (de São Paulo) Fortuna crítica: Carlos Fonseca, em O Globo: “ Uma agradável surpresa (...) o diretor faz sua metáfora sobre a juventude com muita sensibilidade e revelando talento, tanto na espontaneidade do trabalho com atores amadores (todos bem) como na técnica semidocumentária, a revelar um estilo.”416

Anjos da Noite (1987), de Wilson Barros Roteiro: Wilson Barros; Produção: André Klotzel e Zita Carvalhosa (Superfilmes); Fotografia: José Roberto Eliezer; Montagem: de Renato Neiva Moreira; Música: Sérvulo Augusto; Elenco: Marília Pêra, Zezé Motta, Antônio Fagundes, Marco Nanini,

414 Orlando L. FASSONI. “A Caminho das Índias” e nova trama de Aldrich. 415 Carlos M. MOTTA. Retorno ao descobrimento, “A Caminho das Índias”. 416 Carlos FONSECA. A nova geração e imagens sensíveis.

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Chiquinho Brandão, Aldo Bueno, Cláudio Mamberti, Sérgio Mamberti, Aída Leiner, Letícia Imbassay, José Rubens Chachá, Ana Ramalho, Guilherme Leme, Bé Valério Prêmios: filme, fotografia, e prêmio da crítica, além dos paralelos AGFA de fotografia e ABRACI de diretor, no 20º Festival de Brasília; direção, atriz (Pêra, empatada com Betty Faria, em Anjos do Arrabalde), ator coadjuvante (Leme), fotografia, cenografia, e prêmio da crítica, no 15º Festival de Gramado; direção, montagem e som, no IV Rio Cine Festival Fortuna crítica: Amir Labaki, na Folha de S. Paulo: “‘Anjos da Noite’ esbanja inteligência e criatividade. Wilson Barros tem a linguagem cinematográfica sob seu jugo. Acelera e diminui o ritmo sem comprometer a tensão. Dialoga diretamente com o espectador, rompendo o discurso tradicional. Ilude-o também, manipulando habilmente todos os recursos cinematográficos a seu dispor. ‘Anjos’ é um mergulho expressionista no universo de ‘outsiders’ universais, imersos na noite paulistana.”417 E: “(...) diante das falências das ilusões políticas e do ideal iluminista, eles desenvolvem suas obras como se fosse chegada a hora de uma arte canibalesca, autocrítica, exposta através do discurso tão fragmentado quanto a percepção que se pode ter do mundo. É o império da metaficção, como Jorge Luis Borges como Deus supremo.”418 Carlos Volpato, na Veja: “(...) algumas soluções fáceis de enredo (...) fazem de Anjos da Noite um filme vazio. No fim das contas, depois de toda a ciranda de personagens e situações sobre a impressão que esta jornada noite adentro se transformou em algo muito mais longo do que realmente é. Para o espectador, a noite é interminável.”419

Asa Branca, um sonho brasileiro (1981), de Djalma Limongi Batista Roteiro: Djalma Limongi Batista; Produção executiva: Carlos Roberto de Souza (Cinema do Século XXI); Fotografia: Gualter Limongi Batista; Direção de arte e figurino: Felipe Crescenti; Montagem: José Motta; Elenco: Edson Celulari, Walmor Chagas, Eva Wilma, Gianfrancesco Guarnieri, Rita Cadillac, Flávio de Souza, Mira Haar, Iara Jamra e Regina Wilke Prêmios: diretor, ator (Celulari) e ator coadjuvante (Chagas), no 14º Festival de Brasília; direção e ator (Chagas), no 10º Festival de Gramado; filme, direção e ator (Celulari) no Prêmio Air France de Cinema; o prêmio especial no Festival des Trois Continents

417 Amir LABAKI. SP, a Weimar do ocaso do século. 418 Amir LABAKI. Metalinguagem é a virtude de ‘Anjos’. 419 Carlos VOLPATO. Longa jornada.

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Fortuna crítica: Orlando Fassoni, na Folha de S.Paulo: “Djalma Batista (...) sabe como fazer cinema simples, bem acabado, divertido, espirituoso e criativo ao narrar a ascensão de um jovem, ‘Asa Branca’, interiorano, tímido e meio desajeitado que (...) vai ocupar sua posição como ídolo do futebol.”420 Edmar Pereira, na Filme Cultura: “Ele leva o espectador a um nível paralelo da realidade, onde convivem sem atropelos tanto os símbolos quanto os fatos. E mostra, em cada sequência, uma enorme habilidade como encenador, sem falar de uma capacidade incomum de apreender pequenos pormenores decisivos na criação de personagens, climas e situações.”421 Valério de Andrade, em O Globo: “Pode ser irônico, estranho, inexplicável, mas o fato é que a grande paixão do brasileiro jamais deu um grande ou mesmo um bom filme de ficção. E a situação não se altera com o advento de ‘Asa Branca’. (...) ‘Asa Branca’ se perde por excesso de ambição e a inevitável tentação de querer dizer e mostrar tudo de uma vez. Em sua visão panorâmica, o roteiro torna-se reducionista, fragmentado, num enfoque excessivamente descritivo.”422

Beijo 2348/72 (1990), de Walter Rogério Roteiro: Walter Rogério; Produção: Wagner de Carvalho, Zita Carvalhosa e Ivan Novaes; Fotografia: Adrian Cooper; Montagem: Danilo Tadeu; Elenco: Chiquinho Brandão, Maitê Proença, Fernanda Torres e Ary Fontoura, Antônio Fagundes, José Rubens Chachá, Miguel Falabella, Cláudio Mamberti, Orlando Vieira, Iara Jamra, Walter Breda, Ari França, Walmor Chagas, Gianfrancesco Guarnieri, Miriam Pires, Sérgio Mamberti, Joel Barcellos, Prêmios: filme, ator (Brandão) e ator coadjuvante (para a figuração de Joel Barcellos), no 23º Festival de Brasília; fotografia e montagem, além de Cláudio Mamberti ter levado um prêmio especial do júri pelo conjunto da obra no 18º Festival de Gramado, incluindo aí Beijo. Fortuna crítica: Inácio Araújo, na Folha de S. Paulo: “’O Beijo’ não é um filme perfeito, embora a muito estrutura narrativa esteja muito bem resolvida. Seria melhor caso Rogério investisse de

420 Orlando L. FASSONI. “Asa Branca”, desde já forte concorrente. 421 Edmar PEREIRA. Um sonho brasileiro, p. 80. 422 Valério de ANDRADE. Asa Branca.

318 uma vez em Chiquinho Brandão. Sempre que investe em Brandão, temos um caso raro de comédia brasileira que não passa pela tradição da chanchada, nem por certas experiências mais recentes, supostamente sofisticadas. (...) bela estréia, uma comédia nada burocrática e um filme que se assiste com prazer.”423 José Geraldo Couto, na Folha de S. Paulo: “A grande façanha do diretor Walter Rogério foi equilibrar muito bem o realismo (a linha de produção, os ônibus lotados) e a fantasia (os sonhos, os números musicais), para realçar a tensão essencial que move o filme: o embate entre o princípio da realidade e o do prazer. O trabalho e o beijo.”424 Luciano Trigo, em O Globo: “Fica a impressão de que, para um longa, a ideia era curta: algumas situações são artificialmente prolongadas, como as audiências do processo que o operário demitido move contra a tecelagem. E a classificação de ‘comédia burocrática’ dada pelo diretor ao seu filme acaba ganhando uma conotação negativa. Ainda assim, ‘Beijo 2348/72’ vale pelo desempenho do elenco e o carinho com que o diretor trata seus personagens.”425

Brasa Adormecida (1986), de Djalma Limongi Batista Roteiro: Djalma e Gualter Limongi Batista; Produção: Assunção Hernandez (Raiz Produções); Fotografia: Gualter Limongi Batista; Cenografia: Felipe Crescenti; Figurino: Patrício Bisso; Montagem: José Motta; Música: Tom Jobim; Elenco: Edson Celulari, Maitê Proença, Paulo César Grande, Anselmo Duarte, Ilka Soares, Mirian Pires, Sérgio Mamberti, Cristina Mutarelli, Patrício Bisso, Grande Otelo, Marcélia Cartaxo, Ana Maria Nascimento e Silva, Mira Haar, Iara Jamra Prêmios: atriz (Proença), cenografia, figurino e efeitos especiais, no II RioCine Festival Fortuna crítica: Carlos Fonseca, em O Globo: “‘Brasa Adormecida’ (...) é uma decepção. O argumento do próprio diretor pretende recriar o clima eufórico dos primeiros anos 60, ao embalo da bossa nova e das promessas de ‘paz e amor’ para todos. Todavia, tanto o roteiro como a direção perdem-se ao enfatizar e prolongar em demasia o romantismo do trio central, e no exagero da caricatura que se faz presente quando são muitos os personagens coadjuvantes em cena. (...) A narrativa muitas vezes cai na monotonia e o ritmo é

423 Inácio ARAÚJO. ‘O Beijo 2348/72’ faz rir da burocracia. 424 José Geraldo COUTO. ‘Beijo’ investe no humor popular. 425 Luciano TRIGO. Burocracia contamina comédia.

319 cansativo. Em termos de conteúdo humano é um fracasso quase total - os personagens parecem envoltos em papel celofane, como bonecos de corda.”426 Amir Labaki, na Folha de S.Paulo: “‘Brasa Adormecida’ perde-se no acúmulo insuportável de clichês, referentes tanto ao período em questão [os anos JK] quanto ao folclore brasileiro. Uma das marcas do teatro ‘besteirol’ é exatamente esta: atirar sobre os espectadores um avalanche [sic] de clichês, todos devidamente recobertos com forte dose de sarcasmo. Em ‘Brasa Adormecida’ sobra ingenuidade para que isto seja alcançado. Tenta-se criar humor não pela sátira, mas pela mera identificação nostálgica. Quem ainda aguenta ver sacis e poções mágicas preparadas por velhos negros sendo utilizados a sério para obtenção de risadas?”427 Maurício Stycer, em O Estado de S. Paulo: “Brasa Adormecida (...) [conta] a história deste período [1962] – uma história colorida, ingênua e suave, como a voz de João Gilberto cantando Chega de Saudade. ‘É o filme que o cinema brasileiro ficou devendo, nesses 25 anos, à bossa nova’, definiu Djalma. É o filme que o Cinema Novo esqueceu de fazer, diria o crítico. Até porque em 1962, ano em que os personagens de Brasa se reúnem para nos divertir, o Cinema Novo só tinha tempo para subir favelas cariocas ou percorrer caatingas nordestinas. Brasa Adormecida recupera o tempo perdido, em todos os sentidos.”428

Cidade Oculta (1986), de Chico Botelho Roteiro: Chico Botelho, Walter Rogério e Arrigo Barnabé, colaboração de Luiz Gê; Produção executiva: Wagner de Carvalho (Orion Cinema e Vídeo); Fotografia: José Roberto Eliezer; Som: Walter Rogério; Montagem: Danilo Tadeu; Música: Arrigo Barnabé; Elenco: Arrigo Barnabé, Carla Camurati, Celso Saiki, Cláudio Mamberti, Jaime del Cueto, Chiquinho Brandão, Jô Soares Prêmios: filme pelo júri popular, direção, música, trilha musical, fotografia e ator coadjuvante (Mamberti), no II RioCine Festival Fortuna crítica: Leon Cakoff, na Folha de S. Paulo: “O cinema paulista finalmente reflete a fascinante grandeza de realidade que o gera. É raro topar com um filme sensível o suficiente para arrancar da arquitetura de São Paulo a tão perseguida imaginação futurista pós-‘Blade

426 Carlos FONSECA. Triângulo de amor e brasa. 427 Amir LABAKI. Limongi escorrega com clichês da brasilidade. 428 Maurício STYCER. Em busca do delicioso tempo perdido.

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Runner’, de Ridley Scott. ‘Cidade Oculta’ é este tão esperado filme. De um roteiro original de Chico Botelho, Arrigo Barnabé e Walter Rogério, como por brincadeira, sai a síntese para o fascínio e delírio dos novos cinéfilos. Mais dark e sonâmbulo seria impossível. ‘Cidade Oculta’ só tem personagens e cenários noturnos. A fotografia de José Roberto Eliezer consegue embelezar o rio Pinheiros, só para citar um exemplo. Nasce aqui um novo cinema, encerrando todos os ciclos de existencialismo e masturbação, beira-mar, palanques ou apartamentos claustrofóbicos. As imagens de ‘Cidade Oculta’ valem mais do que qualquer descida aos tradicionais infernos cinematográficos, aos clichês sociais e marginais que ainda são confundidos com solidariedade. ‘Cidade Oculta’ tem mais solidariedade do que qualquer filme nacional que conheço. Não pode ser desprezível o fato dele tornar bela e futurista uma cidade que abriga a louca sobrevivência de mais de dez milhões. A geração de Chico Botelho e todos os seus colaboradores sugere na prática tudo que o pós-moderno gerou em tese. Esta nova geração tira poesia do lixo, já que ela existe e faz parte do cenário real. Sabe quando pode dispensar a pose rancorosa. A beleza e o humor inspiram mais confiança e provocam percepção. E o filme é jovem.”429 Bernardo Carvalho, na Folha de S. Paulo: “No privilégio das citações, tudo se transforma em clichê. Esse procedimento já teve seu tempo. Foi irreverente em Godard, nostálgico em Wim Wenders. Atualmente, não tem oura finalidade senão sustentar filmes pelo que realmente não são. Através da citação, não mais como ironia ou transgressão, qualquer filme é justificável; a condição de cinéfilo o isenta de qualquer questionamento. A citação é, hoje, uma camuflagem da fraqueza do cinema. E isso não poderia ser mais evidente do que em ‘Cidade Oculta’.”430

Dama do Cine Shanghai, A (1988), de Guilherme de Almeida Prado Roteiro: Guilherme de Almeida Prado; Produção: Assunção Hernandez (Raiz Produções); Fotografia: José Roberto Eliezer e Cláudio Portioli; Montagem: Jair Garcia Duarte; Música: Hermelino Neder; Elenco: Antonio Fagundes, Maitê Proença, Paulo Villaça, José Mayer, Imara Reis, Matilde Mastrangi, Jorge Dória, John Doo, Liana Duval, Sérgio Mamberti, José Lewgoy, Miguel Falabella Prêmios: filme, direção, fotografia (empatado com Feliz Ano Velho), cenografia, montagem e música, além do prêmio da crítica, no 16º Festival de Gramado; filme pelos

429 Leon CAKOFF. O fim da masturbação. 430 Bernardo CARVALHO. O império de citações de Botelho.

321 júris popular e oficial, direção, fotografia, direção de arte, figurino, cenografia, trilha sonora e edição de som, no 5º Rio Cine Festival; filme em Natal, Bogotá, Sesc de Melhores do Ano, Air France Fortuna crítica: Amir Labaki, na Folha de S.Paulo: “‘A Dama do Cine Shanghai’ não tem qualquer pudor em se estruturar sobre os principais clichês do gênero, mas o faz de forma tão inteligente que os transcende, ganhando autonomia e se formando como um espetáculo cinematográfico eficiente.”431 Miguel de Almeida, em O Globo: “‘A Dama do Cine Shanghai’ foi o melhor produto acabado mostrado no Festival de Gramado. Mas essa mania de remake de clichês, mesmo deliciosa e ainda inventiva, tem lá seus perigos: vai virar trocadilho, apenas.”432

Duas Mulheres Estranhas (1981), de Jair Correia Roteiro: Jair Correia e Leila Maria Bueno; Produção: Cassiano Esteves (E.C. Marte Filmes); Fotografia: Toni Rabatoni; Montagem: Jair Correia; Som: Pedro Luiz Nobile; Elenco: Patrícia Scalvi, Hélio Porto, Misaki Tanaka, John Doo, Fátima Celebrini, Vandi Zaquias Prêmios: direção, atriz (Scalvi) e ator coadjuvante (Zaquias), no Prêmio APCA Fortuna crítica: Rubèm Biáfora, em O Estado de S. Paulo: “(...) um filme em que, para falar dele, teremos de nos reportar ao injustiçado clássico da Vera Cruz em 52 (‘Veneno’), ao referido ‘Na Solidão da Noite’ e até a ‘Stroszek’, de Herzog (o mesmo clima da subida à montanha, no final, para o ‘Paraíso ou para o Inferno’), um filme nosso, por todos os títulos, excepcional e totalmente obrigatório. Nota máxima.”433 Angela Leite de Souza, em O Globo: “O mais intolerável nos pornofilmes que invadiram a produção brasileira atual é certamente o tom de seriedade que a maioria tenta adotar. Criam-se histórias implausíveis e mascara-se essa improbabilidade sob um tratamento aparentemente seguro, dentro da melhor técnica cinematográfica. Para dar tal impressão, a fotografia costuma ser de boa qualidade, empregam-se alguns truques de filmagem, mas o problema está em disfarçar o péssimo desempenho dos atores, a vulgaridade, em suma,

431 Amir LABAKI. Clichês e humor em “Cine Shanghai”. 432 Miguel de ALMEIDA. Brincadeira para cinéfilos. 433 Rubem BIÁFORA. A volta de Antonioni e um excepcional filme paulista.

322 os verdadeiros propósitos do filme, traídos, afinal, pelo título. E a plateia, já advertida, chega a dar boas risadas quando essa pretensão leva a história ao ridículo”434.

Estrela Nua (1985), de Ícaro Martins e José Antonio Garcia Roteiro: Ícaro Martins e José Antonio Garcia; Produção: Adone Fragano (Olympus Filmes); Fotografia: Antonio Meliande; Montagem: Eder Mazini; Música: Arrigo Barnabé; Elenco: Carla Camurati, Cristina Aché, Jardel Mello, Ricardo Petraglia, Selma Egrei, Cida Moreira, Vera Zimermann, Patrício Bisso Prêmios: direção, atriz (Camurati), cenografia, figurino e trilha sonora, no 1º RioCine Festival; atriz coadjuvante (Aché) e prêmio especial do júri para Camurati, no 13º Festival de Gramado Fortuna crítica: Sérgio Augusto, na Folha de S.Paulo: “‘Estrela Nua’ é um progresso em todos os sentidos. Os mais fanáticos entusiastas de ‘O Olho Mágico do Amor’ discordam, recriminando a dupla por haver trocado a estética da fome pela estética da fama. Aparência chique o filme sem dúvida possui, mais isso não o desabona, muito pelo contrário.”435 Eduardo Vivacqua, em O Globo escreve: “Os dois cineastas buscam uma abordagem da cultura brasileira dos anos 80 através das visões diversas daqueles escritores [Nelson Rodrigues e Clarice Lispector]. O filme se perde, chegando ao limite do drama pornô, embora recheado de símbolos e signos intelectuais. Ao deixarem óbvias as influências recebidas de Truffaut e Godard, os cineastas paulistas – aos quais não se pode negar talento – realizaram um filme ambicioso, mas frustrado.”436

Feliz Ano Velho (1988), de Roberto Gervitz Roteiro: Roberto Gervitz; Produção: Cláudio Kahns (Tatu Filmes); Fotografia: Cesar Charlone; Direção de arte: Clóvis Bueno; Montagem: Galileu Garcia Jr.; Música: Luiz Henrique Xavier; Elenco: Marcos Breda, Malu Mader, Eva Wilma, Odilon Wagner, Marco Nanini, Isabel Ribeiro, Carlos Loffler, Beth Godman, Júlio Levy

434 Angela Leite de Souza. Duas estranhas mulheres. 435 Sérgio AUGUSTO. A estrela nua de Ícaro. 436 Eduardo VIVACQUA. Nelson e Clarice à beira do pornô. Curiosamente, ainda que a crítica, de maneira geral, tenha apontado o filme como um quase pornô, é o longa da dupla que menos tem cenas de nudez, sexo e erotismo. Martins, em entrevista ao autor, explica: “Por nós, até teria mais [cenas de sexo]. Pegamos gosto pela coisa. Foi mais pela resposta do mercado a cenas de sexo. Foi uma questão mercadológica”.

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Prêmios: filme pelo júri popular, prêmio especial do júri, roteiro, fotografia (empatado com A Dama do Cine Shanghai), figurino, som e menção honrosa para a música, no 16º Festival de Gramado; ator (Breda), atriz coadjuvante (Ribeiro), roteiro, produção e montagem, no 5º Rio Cine Festival Fortuna crítica: Ely Azeredo, em O Globo: “‘Feliz ano velho’ é um brado contra a omissão e o imobilismo. Um filme importante, principalmente para a juventude, justamente perplexa com as trevas que ainda se acumulam no fim do túnel.”437 Jairo Ferreira, em O Estado de S. Paulo: “Evitar a pieguice era um desafio, que a narrativa soluciona pelo dinamismo e, principalmente, pelo alto nível profissional da abordagem. Se o drama é contundente, a visão do diretor é cria. Por vezes parece faltar algum senso de humor, mas ao final se compreende que qualquer tentativa nesse sentido iria desequilibrar o despojamento emocional do filme. Prevalece um tom de desdramatização, o que só faz aumentar o alcance, a comunicabilidade da crônica.”438

Festa (1989), de Ugo Giorgetti Roteiro: Ugo Giorgetti; Produção: Nello de Rossi (NDR Filmes); Fotografia: Rodolpho Sanchez; Direção de arte: Isabel Giorgetti; Som: Miguel Ângelo; Música: Mauro Giorgetti; Montagem: Marc de Rossi; Elenco: Adriano Stuart, Antonio Abujamra, Jorge Mautner, Iara Jamra, Otávio Augusto, Ney Latorraca, José Lewgoy Prêmios: filme, roteiro, ator (Abujamra e Stuart), edição de som (empatado com Faca de Dois Gumes), figurino e da crítica, no 17º Festival de Gramado; direção, ator coadjuvante (Augusto), roteiro, figurino e montagem, no VI RioCine Fortuna crítica: Ely Azeredo, em O Globo: “É um exercício de humor inteligente, bem apoiado e (modesta) estrutura de produção e acionando com habilidade a colaboração de intérpretes (...) – a coluna dorsal de um roteiro onde nada de espetacular acontece.”439

Flor do Desejo (1984), de Guilherme de Almeida Prado Roteiro e Produção: Guilherme de Almeida Prado (Star Filmes); Fotografia: Antonio Meliande; Montagem: Jair Garcia Duarte; Elenco: Imara Reis, Caíque Ferreira, Tamara

437 Ely AZEREDO. Mergulho revelador. 438 Jairo FERREIRA. Feliz Ano Velho, mais que um filme de época. 439 Ely AZEREDO. Humor e inteligência.

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Taxman, Sergio Hingst, Matilde Mastrangi, Roberto Miranda, Mário Benvenutti, Leda Amaral, Maristela Moreno, Alvamar Taddei, Armando Tirabosqui, Adilson Barros Prêmios: cenografia e de atriz coadjuvante (Moreira), no 17º Festival de Brasília; Festival (sem prêmios): 12º Festival de Gramado Fortuna crítica: Ely Azeredo, em O Globo: “Fácil perceber que Guilherme de Almeida Prado tem um caso de amor o cinema.”440 Sergio Bazi, em Correio Braziliense: “Flor do Desejo é um dos filmes mais curiosos e surpreendentes da última safra. É tão bom e ousado quanto Olho Mágico do Amor, de José Antonio Garcia e Ícaro Martins, o filme com que mais nutre afinidades. É mais uma prova de que um produto da Boca do Lixo – reduto dos pornofilmes nativos – pode ser pessoal e até refinado. (...) Flor do Desejo é uma espécie de antipornochanchada. Recorre a recursos não só de produção mas também de linguagem, mas para operar uma ‘desmontagem’. E não para oferecer, como alternativa à grosseria do cinema pornô, o erotismo sofisticado. O filme não quer ser mais um pornô chic.”441 João Luiz Vieira na Filme Cultura: “No atual panorama da produção cinematográfica brasileira (1984-85), Flor do Desejo surge como mais uma proposta de um cinema comercialmente viável e caráter populares de fácil identificação com seu público e de qualidade tanto no seu acabamento textual quanto textural, isto é, na competência artesanal do elenco, fotografia, cenografia e montagem. (...) [Flor do Desejo] em sua extrema habilidade de ficcionalizar o banal, compromissado com uma outra realidade brasileira, a do sonho e da fantasia.”442

Fogo e Paixão (1988), de Isay Weinfeld e Márcio Kogan Roteiro e direção de arte: Isay Weinfeld e Márcio Kogan; Diálogos: Flávio de Souza Produção: Sérgio Ajzemberg (W.K.W. Filmes); Fotografia: Pedro Farkas; Cenografia: Felipe Crescenti; Montagem: Mauro Alice; Música: Sérvulo Augusto e Gil Reyes. Elenco: Mira Haar, Carlos Moreno, Cristina Mutarelli, Iara Jamra, Fernando Amaral, Kenichi Kaneko, Riva Nimitz Festivais (sem prêmios): 8º Festival Internacional de Filmes de Comédia de Vevey (VIFFF), na Suíça, e 12ª Mostra Internacional de Cinema de São Paulo,

440 Ely AZEREDO. Evidente amor pelas imagens. 441 Sergio BAZI. “Flor do Desejo”: uma surpresa. 442 João Luiz VIEIRA. Flor de plástico.

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Fortuna crítica: Carlos Hee, na Veja: “(...) mostra-se uma sucessão de gags de humor sutil, em que muitas vezes a graça está no protagonista da ação e não na ação em si, e os diretores aproveitam para fazer uma profusão de citações e homenagens cinematográficas. Fogo e Paixão é uma comédia para público restrito, na medida em que pode se tornar incompreensível para quem procure nela um roteiro que faça sentido ou para quem não tenha intimidade com a história do cinema.”443

Fronteira das Almas (1987), de Hermano Penna Roteiro: Hermano Penna e Murilo Carvalho; Produção: Cine Documento; Cenografia e figurinos: Jefferson Albuquerque Jr.; Som: Mário Masetti; Montagem: Laércio Silva; Música: José Luiz Penna; Elenco: Antônio Leite, Fernando Bezerra, Orlando Vieira, Marcélia Cartaxo, Joel Barcelos, Manfredo Bahia, Cláudio Mamberti, Julio Calasso Prêmios: filme segundo o júri oficial, direção, roteiro, montagem e som, no III Rio Cine Festival; especial do júri e atriz coadjuvante (Cartaxo) Festival (sem prêmios): II Festival do Cinema Brasileiro de Fortaleza Fortuna crítica: Humberto Saccomandi, na Folha de S. Paulo: “Primeiro, num país sem memória, retomar uma história ainda mal contada. Segundo, trazer para o público das grandes cidades, os únicos que ainda tem acesso a filmes nacionais, os problemas da ocupação da Amazônia por camponeses sem terra.”444

Hora da Estrela, A (1985), de Suzana Amaral Roteiro: Suzana Amaral e Alfredo Oroz; Produção: Assunção Hernandez (Raiz Produções); Fotografia: Edgar Moura; Cenografia e figurino: Clóvis Bueno; Montagem: Idê Lacreta; Elenco: Marcélia Cartaxo, José Dumont, Denoy de Oliveira, Umberto Magnani, Tamara Taxman, Fernanda Montenegro Prêmios: Urso de Prata de atriz (Cartaxo), da OCIC e CICAE, no 36º Festival de Berlim; filme, segundo o júri oficial, popular e da crítica, direção, atriz (Cartaxo), ator (Dumont), montagem, fotografia, cenografia, trilha sonora, OCIC, no 18º Festival de Brasília; filme, no Festival de Havana Fortuna crítica:

443 Carlos HEE. Bolas trocadas. 444 Humberto SACCOMANDI. Estréia hoje filme de Penna sobre sem-terras.

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Caio Fernando Abreu, em O Estado de S. Paulo: “Macabéa é a cara do povo brasileiro, no seu sem-gracismo, na sua falta de futuro, no passado tragicamente vago e no presente quase inexistente.”445

Janete (1983), de Chico Botelho Roteiro: Chico Botelho, André Klotzel e Inês Castilho; Produção executiva: Cláudio Kahns (Tatu Filmes); Fotografia: José Roberto Eliezer; Montagem: Alain Fresnot e Danilo Tadeu; Som: Walter Rogério; Música: Arrigo Barnabé; Elenco: Nice Marinelli, Flávio Guarnieri, Lilian Lemmertz, Lélia Abramo, Ruthinéa de Moraes, Cláudio Mamberti, Turíbio Ruiz Prêmios: fotografia e música original, no 11º Festival de Gramado; atriz (Marinelli) e montagem, no 16º Festival de Brasília Fortuna crítica: Ely Azeredo, em O Globo: “O razoável encanto do filme se encontra na personagem- título, interpretada com sensibilidade pela novata Nice Marinelli. (...) A concentração na personagem central, sem suporte ponderável nos demais, deixa o filme um pouco no ar, como se sua jovem equipe se contentasse em preparar terreno para o próximo empreendimento mais ousado”.446 Inácio Araújo, na Folha de S. Paulo: “‘Janete’, um filme simpático onde a humanidade é idealizada ao máximo (nele, até os vilões são bons, o que afrouxa um pouco a intriga), foi recebido com frieza (e algumas vaias) pelo público. Recepção injusta para uma narrativa que, embora com frequência imatura, rejeita os clichês em circulação sobre adolescência transviada, etc. Tenta o seu caminho, por um gênero difícil como o ‘filme itinerário’, onde é muito fácil tomar a circunstância pela essência, mas não se entrega em momento algum ao comercialismo”.447

Jogo Duro (1985), de Ugo Giorgetti Roteiro: Ugo Giorgetti; Produção: Raul Rocha (Luar Produções); Fotografia: Pedro Pablo Lazzarini; Direção de arte: Isabel Giorgetti; Som: Miguel Ângelo; Música: Mauro Giorgetti; Montagem: Paulo Mattos Souza; Elenco: Jesse James, Cininha de

445 Caio Fernando ABREU. Belíssima e dolorosa secura. 446 Ely AZEREDO. Janete. 447 Inácio ARAÚJO. Em seu primeiro dia, o festival decepciona.

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Paula, Carlos Augusto Carvalho, Valéria de Andrade, Antonio Fagundes, Cleyde Yaconis, Paulo Betti, Prêmios: som e especial do júri para o argumento, no 18º Festival de Brasília; ator (James e Carvalho) e atriz coadjuvante (Andrade), no I Festival de Fortaleza do Cinema Brasileiro Festivais (sem prêmios): I RioCine, 14º Festival de Gramado Fortuna crítica: Carlos Fonseca, em O Globo: “Giorgetti conseguiu fixar uma mensagem social meio fatalista, mas um tanto fantasiosa, no drama de personagens que não aproveitou bem. (...) A narrativa é monótona.”448 Inácio Araújo, na Folha de S.Paulo: “(...) mostra grande dignidade, mas nem por isso deixa de ser um equívoco.”449. Caio Fernando Abreu, em O Estado de S. Paulo: “Jogo Duro é um filme nu, direto e sem meias palavras para falar sobre a decadência urbana e social.”450

Maldita Coincidência (1980), de Sérgio Bianchi Produção: Jefferson de Albuquerque Jr, André Rosa, Ivan de Sá Pereira, André Klotzel e Micky Neo (Sérgio Bianchi Produções); Fotografia: Pedro Farkas e Dudu Poiano; Montagem: José Carvalho Motta, Alberto Melnechuky, Bia Bracher e José Carone Jr.; Elenco: Luiz Roberto Galizia, Patricio Bisso, Sérgio Mamberti, , Carlos Nascimbeni, Isa Kopelamn, Walter Breda, Rodrigo Santiago e Bronie Lozneanu Fortuna crítica: Miguel Pereira, em O Globo: “[O] enfoque centrado sobre a repercussão individual dos fatos e da sociedade, assume, deste modo, a característica de um depoimento sincero e quase bruto. O diretor teve a coragem de se expor. (...) ele em cena parece apenas confirmar que participa integralmente daquilo que seus personagens dizem ou fazem durante o filme. Organizado de uma forma não tradicional (...), destina-se a provocar a discussão sobre os temas que aborda. Não é, pois, um filme que o grande público gosta de ver. Além disso, não aprofunda os questionamentos que faz. Mas, a espontaneidade de

448 Carlos FONSECA. Vidas sem rumo em história monótona. 449 Inácio ARAÚJO. Personagens à procura de história. 450 Caio Fernando ABREU. Jogo Duro, da cor de São Paulo.

328 muitas de suas imagens e a sinceridade com que foi feito conferem ao filme um sentido de autenticidade que merece respeito e consideração.”451

Marvada Carne, A (1985), de André Klotzel Roteiro: André Klotzel e Carlos Alberto Soffredini; Produção executiva: Cláudio Kahns (Tatu Filmes); Fotografia: Pedro Farkas; Direção de arte: Adrian Cooper; Montagem: Alain Fresnot; Som: Walter Rogério; Música: Rogério Duprat; Elenco: Adilson Barros, Fernanda Torres, Lucélia Machiaveli, Dionísio Azevedo, Genny Prado, Nelson Triunfo, Tonico e Tinoco, Regina Casé e Chiquinho Brandão Prêmios: filme – pelo júri oficial e pelo popular -, direção, roteiro, montagem, cenografia, atriz (Fernanda Torres), especial do júri para Dionísio Azevedo e da crítica, no 13º Festival de Gramado Festivais (sem prêmios): Semana da Crítica, no Festival de Cannes. Fortuna crítica: Pola Vartuck, em O Estado de S. Paulo: “A Marvada Carne é uma lufada de ar fresco no cinema brasileiro. É uma comédia, se não inovadora, pelo menos tão diferente e singular que quase se poderia dizer que o jovem diretor paulista André Klotzel renovou o chamado gênero caipira”452. Leon Cakoff, na Folha de S.Paulo: “(...) ‘A Marvada Carne’ foi apenas o menos pior. Intenções de realismo fantástico, de consagrar um anti-Jeca com respeito, de choque cultural, tudo recheado com casos folclóricos, mito e magia, resumem-se apenas a uma brincadeira com momentos raros e descontínuos de humor. É um filme de jovens e sem profundidade emocional. Por mais respeito que se tenha pelo universo caipira, falta ao filme a grandiosidade das sagas, a convicção de encontro à desconfiança matreira. O desenho do personagem caipira não convence. O seu desejo de comer ‘carne de vaca’ tampouco. A tradição culinária dos caipiras de São Paulo, que eu saiba, concentra-se sobre as variedades de frangos e carne de porco. E de frango e porco o filme até que está bem servido. Fernanda Torres aparece graciosa mas exagera com seu fraco repertório de trejeitos ingênuos e tímidos. A melhor figura em cena sequer foi lembrada para alguma homenagem em Gramado: Geni Prado, que aparece como mãe caipira, e escolada

451 Miguel PEREIRA. Maldita coincidência. 452 Pola VARTUCK. Uma lufada de ar fresco na sisuda tela dos brasileiros.

329 justamente na série de filmes de Amácio Mazzaropi que fazia um tipo vulgar de caipira e um gênero que a geração de ‘A Marvada Carne’ diz abominar.”453

Noites Paraguayas (1982), de Aloysio Raulino Roteiro e Fotografia: Aloysio Raulino e Hermano Penna; Produção executiva: Tânia Savietto (Atalante Produções); Cenografia e figurino: Jefferson Albuquerque; Som: Walter Rogério; Montagem: José Motta; Elenco: Rafazel Ponzi, Cláudio Mamberti, Sérgio Mamberti, José Dumont, Chiquinho Brandão, Isa Kopelman, Felisberto Duarte, Célia Maracajá, Ramon del Rio, Ciriaco Cardozo Prêmios: intérprete masculino (Dumont), no Nosso I Festival de Cinema Brasileiro do Rio de Janeiro Festivais (sem prêmios): 6ª Mostra Internacional de Cinema de São Paulo Fortuna crítica: Inácio Araújo, na Filme Cultura: “(...) equilibrado entre sinceridade comovente e simples e as facilidades de artifícios vanguardistas (...) [tendo] o mérito de revelar um cineasta. Isto é, alguém capaz de amar seu objeto e seu instrumento. Condições indispensáveis para, no correr de outros filmes, encontrar sua expressão mais madura.”454 Jean-Claude Bernardet: “O cinema a que pertence Noites paraguaias procura conciliar os antigos contendores, numa atitude amena em que o vermelho do [O Bandido da] Luz [Vermelha] fica esmaecido e o preto e branco de Vidas secas se colore. Nada de radicalismos. Essa geração nem retoma os arroubos revolucionários do Cinema Novo, nem o dilaceramento do underground. Talvez para não tornar a viver os grandes desesperos desses dois poderosos movimentos cinematográficos, evitar comportamentos potencialmente suicidas. Talvez para não se isolar tanto das estruturas institucionais como do público, preferindo assim uma atitude de compromisso. Talvez também porque não é uma geração dogmática e não vê motivos para que, se A for verdadeiro, seu oposto B também não o seja. O contrário de uma verdade não é necessariamente falso. Toda atitude encontra-se unida a seu oposto.”455

453 Leon CAKOFF. “Marvada” ganha em Gramado. 454 Inácio ARAÚJO. Duas paixões simultâneas. 455 Jean-Claude BERNARDET. Os Jovens Paulistas, p. 76.

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Olho Mágico do Amor, O (1981), de Ícaro Martins e José Antonio Garcia Roteiro: Ícaro Martins e José Antonio Garcia; Produção: Adone Fragano (Olympus Filmes); Fotografia: Antonio Meliande; Montagem: Jair Garcia Duarte; Direção de arte: Cristina Mutarelli; Elenco: Carla Camurati, Tânia Alves, Ênio Gonçalves, Sérgio Mamberti, Cida Moreira, Arrigo Barnabé, Jorge Mautner, Nelson Jacobina, Ismael Ivo Prêmios: filme, direção, argumento, atriz (Alves e Camurati), atriz coadjuvante (Moreira), fotografia, cenografia/figurino, montagem e trilha musical, no Prêmio APCA; atriz coadjuvante (Camurati), no 10º Festival de Gramado Fortuna crítica: Maribel Portinari, em O Globo: “Embora tenha sido apresentado no Festival de Gramado e alguns críticos paulistas o tratem com benevolência, ‘O olho mágico do amor’ não escapa ao gênero que pretendeu ridicularizar: a pornochanchada. (...) Desfilam pela tela cenas e mais cenas de sexo e a parte do leão sobrou para Tânia Alves (Penélope) mostrada em todos os ângulos com sua vasta clientela, na qual se inclui o patrão de Vera, Prolíxenes (Sérgio Mamberti). Assim a proposta de José Antonio Garcia e Ícaro Martins se esvai em lugares comuns e seu trabalho está longe de exibir a qualidade de ‘Mulher objeto’ que, no ano passado, impressionou favoravelmente como filme erótico bem elaborado e original. Faltou a ‘O olho mágico do amor’ a justa medida que o tornaria aceitável.”456 Luciano Ramos, na Folha de S. Paulo: “(...) uma produção engajada por inteiro num empreendimento comercial e sensacionalista revela seu caráter de exceção, destacando- se da mediocridade que marca os demais produtos da mesma linha, (...) separando-se do rebanho original a que pertence.”457

Onda Nova (1983), de Ícaro Martins e José Antonio Garcia Roteiro: Ícaro Martins e José Antonio Garcia; Produção: Adone Fragano (Olympus Filmes); Fotografia: Antonio Meliande; Montagem: Eder Mazini; Direção de arte: Cristina Mutarelli; Elenco: Carla Camurati, Cristina Mutarelli, Vera Zimermann, Neide Santos, Lúcia Braga Cristina Bolzan, Cida Moreira, Ênio Gonçalves, Patrício Bisso, Sérgio Hingst, Luis Carlos Braga, Tânia Alves, Pita, Wladimir, Casagrande, Osmar Santos, Regina Casé, Caetano Veloso Festival (sem prêmio): 7ª Mostra Internacional de Cinema Fortuna crítica:

456 Maribel PORTINARI. O olho mágico do amor. 457 Luciano RAMOS. Subvertendo a onda das pornochanchadas.

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Carlos M. Motta, em O Estado de S. Paulo: “‘Onda Nova’, se sofre em comparação com o filme de estreia, reafirma a veia cinematográfica dos dois realizadores”458. Leon Cakoff, na Folha de S. Paulo: “Mais irreverência e provocação. (...) será melhor aceito caso lido como uma colagem. É com esse espírito que as participações especiais do filme têm graça.”459

Real Desejo (1990), de Augusto Sevá Roteiro: Augusto Sevá; Produção: Augusto Sevá (Augusto Sevá Cinema) e Assunção Hernandez (Raiz Produções); Fotografia: José Roberto Eliezer, Aloysio Raulino, Eduardo Poiano, Kátia Coelho e Augusto Sevá; Montagem: José Carone Júnior; Música: Hermelino Neder; Som: Marian Van de Ven e Paulo Márcio Galvão. Elenco: Ana Maria Magalhães, Paulo César Pereio, Rosi Campos, Rosaly Papadol, Claudio Mamberti, Júlio Calasso, Chiquinho Brandão, Rosa Maria, Isa Kopelman. Prêmios: trilha sonora, no 4º Festival de Natal; especiais do júri para Cláudio Mamberti, pela participação em quatro filmes concorrentes, incluindo Real Desejo, e Ana Maria Magalhães, por Real Desejo e pela sua participação no cinema brasileiro, no 18º Festival de Gramado Fortuna crítica: Amir Labaki, na Folha de S. Paulo: “‘Real Desejo’ foi o real bocejo da noite de abertura. (...) Um roteiro calcado num Barthes de almanaque e uma produção conturbada (...) condenaram ‘Real Desejo’ – uma pretensa tragicomédia intimista – à mais tragicômica sessão de cinetortura. (...) filme com Isa Kopelmann como a amiga retardada de plantão declamando monólogos como ‘não sei se prefiro ser livre ou ser feliz’ torna heroico não o seu empenho realizador, mas sim o paciente espectador que permanece sentado até o insistentemente adiado fim.”460 Eugênio Bucci, na Folha de S. Paulo: “É um filme alucinadamente prolixo, em imagens e palavras. Gilda (...) passa o tempo todo falando ‘em off’ de suas desgraças, de seus dissabores amorosos com Paulo. Ela fala sem parar. Demais. (...) Toda a história de Gilda se resume a um dia, durante o qual ela gira por São Paulo. É metrô, é trem, é táxi. Anda,

458 Carlos M. MOTTA. A semana traz fitas do Brasil e EUA. 459 Leon CAKOFF. “Onda Nova”, um painel da juventude urbana. 460 Amir LABAKI. Abertura de Gramado tortura plateia semivazia.

332 anda, sem sair do lugar. Gira em falso. (...) Sem entender o que se passa consigo mesmo, não há personagem capaz de safar-se com elegância.”461 Eduardo Bueno, em O Estado de S. Paulo: “Real Desejo talvez seja menos do que um equívoco. É uma inutilidade. (...) O roteiro de Real Desejo é de um raquitismo dramático assustador. As situações são inverossímeis. Os personagens, ocos. Os diálogos, prolixos, falsamente literários, inúteis. Quase tudo é gratuito.”462

Retrato Falado de uma Mulher sem Pudor (1982), de Jair Correia e Hélio Porto Roteiro: Hélio Porto; Produção: Geraldo Marinho e Péricles Campos (Fita Filmes); Fotografia: Toni Rabatoni; Montagem: Mauro Alice; Música: Egberto Gismonti; Elenco: Monique Lafond, Paulo César Pereio, John Herbert, Jonas Bloch, Serafim Gonzales, Luiz Carlos Moraes, Eduardo Abbas, Hélio Porto, Zélia Toledo, Imara Reis, Nicole Puzzi, Fúlvio Stefanini Fortuna crítica: Carlos M. Motta, em O Estado de S. Paulo: “(...) a provável surpresa do cinema paulista deste ano – embora tenha passado no Rio em brancas nuvens.”463 Rogério Bitarelli, no Jornal do Brasil: “A trama é mero pretexto (ou intervalo) para cenas de sexo.”464 Miguel Pereira, em O Globo: “Para evitar cair no vazio, os diretores ainda tentaram vender a ideia de uma mulher ‘liberada’, vítima da intransigência e do machismo. Na verdade, porém, o filme está mais para o esquema ‘voyeurista’ do que para drama social ou psicológico de alguma seriedade. Mas, acima de tudo é moralista e conformado.”465

Romance (1988), de Sérgio Bianchi Roteiro: Fernando Coni Campos, Mário Carneiro, Caio Fernando Abreu, Cristina Santeiro, Claudia Maradei e Suzana Semedo; Produção: Sérgio Bianchi Produções; Música: Grupo Chance; Elenco: Rodrigo Santiago, Imara Reis, Isa Kopelman, Hugo Della Santa, Sérgio Mamberti, Cristina Mutarelli, Beatriz Segall, Emílio di Biasi, Cláudio Mamberti

461 Eugênio BUCCI. ‘Real Desejo’ tem palavras demais. 462 Eduardo BUENO. Tragédia na primeira noite. 463 Carlos M. MOTTA. Monique Lafond e filmes dos EUA. 464 Rogério BITARELLI. Bonequinha de luxo. 465 Miguel PEREIRA. Retrato falado de uma mulher sem pudor.

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Prêmios: direção (dividido com O Mentiroso), atriz (Imara Reis, dividido com Cláudia Magno, de Presença de Marisa) e atriz coadjuvante (Isa Kopelman, dividido com Xala Felippi, de O Mentiroso), no 21º Festival de Brasília Festivais (sem prêmios): Montreal, Toronto, Munique, Roterdã, New Directors/New Films e Berlim. Fortuna crítica: Ely Azeredo, em O Globo: “Entre tantas turbulências da ‘desconstrução’, uma pretensão estética anula a outra, assim como na postura política do filme (que só até certo ponto parece identificar-se com o patético esquerdismo carismático do ‘acidentado’) um discurso se choca com outro e a pletora de denúncias não garante bom termo para nenhuma delas.”466, Amir Labaki, na Folha de S. Paulo: “[São elas] a degeneração moral, da qual a corrupção política é o sintoma mais explícito na área pública, a degradação da qualidade de vida (isto é, a sistemática violação da ecologia), e o verdadeiro ‘macartismo’ sexual que se fortaleceu na esteira da Aids. A principal qualidade de ‘Romance’ é tratar desses temas sem assumir um tom moralista e professoral e também sem ter se limitado aos clichês que empobrecem e, logo, matam toda discussão. Bianchi apresenta como que um ‘polaroid’ das tensões fartamente disseminadas nestas áreas, captando-as na concretude que apenas a experiência individual garante.”467

Sargento Getúlio (1980), de Hermano Penna Roteiro: Hermano Penna e Flávio Porto, diálogos de João Ubaldo Ribeiro; Produção: Blimp Filmes; Fotografia: Walter Carvalho; Som: Mário Masetti; Montagem: Laércio Silva; Música: José Luiz Penna; Elenco: Lima Duarte, Fernando Bezerra, Orlando Vieira, Otávio Salles, Antônio Leite, Flávio Porto, Ignês Maciel Santos Prêmios: filme, ator (Duarte), ator coadjuvante (Vieira), som e da crítica, no 11º Festival de Gramado; Leopardo de Bronze especial de direção, no 13º Festival de Locarno Festivais (sem prêmios): Perspectivas do Cinema Brasileiro, 13º Festival de Moscou Fortuna crítica:

466 Ely AZEREDO. Falatório sem humor. 467 Amir LABAKI. ‘Romance’ surpreende e supera imperfeições.

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Ely Azeredo, em O Globo: “Além das virtudes dramático-cinematográficas, ‘Sargento Getúlio’ estarrece como retrato da violência que impregna a cultura, o dia-a-dia, e com este e aquela se confunde.”468 Rubens Ewald Filho, em O Estado de S. Paulo: “Há muito tempo que o cinema brasileiro não tinha um filme de tanta garra, tanta força, capaz de empolgar o espectador. Ao mesmo tempo, com uma história muito nossa, com cheiro, gosto, sabor de Brasil. (...) Parte do encanto (...) é reencontrar o estilo de cinema feito pelo Cinema Novo. Lá estão de novo a ideia da cabeça e a câmera na mão.”469 Cremilda Medina, em O Estado de S. Paulo: “Na catedral se consumam todos os sinais e expressões da sensibilidade humana – da arquitetura ao paladar, ao cheiro... (...) Hermano Penna passou para seu filme a busca do mito da catedral [na cultura nordestina] e do que lá acontece. Cumprem-se, no momento em que as velas estão acesas, sons de órgãos, gestos largos, harmonia arquitetônica e desarmonia de sentimentos pessoais. Ou a grande comunhão de um encontro: o inconsciente coletivo e a circunstância histórica, cultural de um povo. É justamente o que o diretor inquietamente quis atingir em ‘Sargento Getúlio’ (...).”470

Shock (1984), de Jair Correia Roteiro: Jair Correia e Gertrude Eisenlohr; Produção: Luiz Carlos Dupont (Distribuidora Internacional de Filmes); Fotografia: Toni Rabatoni; Música: Palhinha Cruz do Vale; Montagem: Jair Correia; Elenco: Aldine Müller, Cláudia Alencar, Mayara Magri, Elias Andreato, Taumaturgo Ferreira, Vandi Zaquias, Kiko Guerra Fortuna crítica: Carlos M. Motta, em O Estado de S. Paulo: “Excepcionalmente embalado em recursos de produção dos melhores, desde a equipe até o som. (...) um assassino psicopara, do qual só se vêem as botas do tipo militar, símbolo talvez de alguma espécie de repressão – ou o criminoso não passaria de uma espécie de reflexo dos anseios e temores de uma juventude sem perspectiva? (...) Um lançamento promissor.”471 João Cândido Galvão, na Veja: “Correia aprendeu como contar bem uma história brutal e violenta. A ação se passa em 12 horas, nas quais o diretor consegue mostrar o efeito

468 Ely AZEREDO. Sargento Getúlio. 469 Rubens EWALD FILHO. Garra e força recuperadas com “Sargento Getúlio”. 470 Cremilda MEDINA. Torturador e torturado convivem na mesma alma. 471 Carlos M. MOTTA. Estréias trazem suspense nacional.

335 destruidor do medo sobre as personalidades. A fotografia de Tony Rabatoni mergulha os atores numa sufocante atmosfera azul de aquário e os personagens agem bem. Uma falha está nos diálogos, artificiais a ponto de, às vezes, beirarem o ridículo. Mas tudo é salvo pela câmara lenta e tensa e pelo pulso do diretor com os atores. As caminhadas do assassino levam a tensão até o fim, num desfecho engenhoso e surpreendente. Mais surpreendente é que, no Brasil, alguém faça com competência um filme de terror e suspense.”472

Taras de Todos Nós, As (1981), de Guilherme de Almeida Prado Roteiro: Guilherme de Almeida Prado; Produção: Sérgio Tufik (Spectrus Produções); Fotografia: Odon Cardoso; Elenco: Neide Ribeiro, Jocelaine Rodrigues, Matilde Mastrangi, Amilton Monteiro, Flávio Porto, Roberto Miranda e Lola Brah Prêmio: menção honrosa no Prêmio APCA, pelo espírito efetivo do filme Fortuna crítica: Amylton de Almeida, em A Gazeta, de Vitória/ES: “Nenhum outro filme, do gênero ou não, chegou tão perto de uma crítica social. Programa Duplo é, em seus vinte minutos, um dos mais contundentes filmes do cinema brasileiro e uma obra-prima de ironia.”473 Salvyano Cavalcanti de Paiva, em O Globo: “Grosseiro e pouco imaginoso, este filme de Guilherme de Almeida Prado não emplaca nem mesmo com os que apreciam fantasias sexuais. No primeiro episódio a pedofilia (sic) é o tema; mas, ai de nós, o ‘estudo’ do fetiche está há vários anos-luz de Stelky, Masoch, Sade e outros especialistas como o Dr. Kinsey. O segundo, ao contrapor gerações, esmera-se em visuais grotescos. E o terceiro, ao tentar explorar o ‘vouyeurismo’ como plataforma moralista, esboroa-se num primarismo de fundo e forma difícil de igualar. Em suma, um espetáculo lamentável no qual só brilha, mesmo, a carnosidade patética de Matilde Mastrangi. Chega! Basta!”474

Vera (1986), de Sérgio Toledo Roteiro e Produção: Sérgio Toledo (Nexus Cinema e Vídeo); Fotografia: Rodolfo Sanchez; Cenografia e figurinos: Naum Alves de Souza e Simone Raskin; Música: Arrigo Barnabé; Elenco: Ana Beatriz Nogueira, Raul Cortez, Aída Leiner, Imara Reis,

472 João Cândido GALVÃO. Medo até o fim. 473 Amylton de ALMEIDA, A pornochanchada tem sua obra-prima. 474 Salvyano de Cavalcanti PAIVA. As taras de todos nós.

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Norma Blum, Abram Faarc, Liana Duval, , Cida Almeida e Adriana Abujamra Prêmios: Urso de Prata de atriz (Nogueira), no 37º Festival de Berlim; atriz (Nogueira, empatada com Louise Cardoso por Baixo Gávea), trilha sonora e som, no 19º Festival de Brasília; filme, em Uppsala; atriz (Nogueira), em Nantes Festivais (sem prêmios): 10ª Mostra Internacional de Cinema de São Paulo Fortuna crítica475: Antônio Gonçalves Filho, na Folha de S. Paulo: “[Vera] é um filme irregular, realizado com sensibilidade mas com insegurança. O tema, entretanto, é complexo, surpreendendo que um jovem cineasta tenha evitado o tom de escândalo”476. Amir Labaki, na Folha de S. Paulo: “Respeitando o maior dos cânones expressionistas, Toledo (...) descarta a realidade visível para filmar a tradução imagética do drama anterior de seu personagem. Várias das marcas típicas da estética expressionista (...) compõem as imagens de ‘Vera’. A fotografia instaura um império de sombras, o correspondente visual à angústia que tortura o personagem central. Os cenários são superestilizados, assépticos até a mais palpável impessoalidade.”477 Caio Fernando Abreu, em O Estado de S. Paulo: “O olhar de Sérgio Toledo sobre o moderno vai além do folclore modernoso, da mitificação gratuita do urbano – está cheio de uma desolação árida (...) A contraposição de vídeos, armas e foguetes, sugerem um paradoxo inquietante: no meio da tecnologia mais desenvolvida, o humano mais primário ainda não foi resolvido. O olhar de medo de Vera/Bauer/Ana Beatriz/Sérgio no final – dói. Porque ninguém pode ajudar o humano que deu errado quando o social está errado, e para resolver o de dentro seria necessário corrigir o de fora. E então quem somos nós, tão impotentes e arrogantes?”478

475 A recepção crítica foi positiva, ainda que antes da consagração em Berlim fosse morna. 476 Antônio GONÇALVES FILHO. Uma mulher em busca da identidade perdida. 477 Amir LABAKI. ‘Vera’ usa estética expressionista. 478 Caio Fernando ABREU. Doris, Antonio e Vera.

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APÊNDICE B: Filmografia citada

1ª CONCLAT (1981), de Adrian Cooper; 30 Anos Depois Lula Relembra a 1ª Conclat (2011), de Adrian Cooper; 32x78 (A Respeito da Revolução Constitucionalista de 1932) (1978), de Nuno Cesar Abreu; 7 Dias de Agonia (O Encalhe) (1982), de Denoy de Oliveira; 7 Vidas (1979), de Rubens Xavier; A (1976), de Giselle Gubernikoff; A Alma do Negócio (1996), de José Roberto Torero; A Arte na Madeira de Agenor (1979), de Jair Correia; A Arte no Mármore (1979), de Jair Correia; A Bela Adormecida (1975), de Isay Weinfeld e Marcio Kogan; A Boca Macia (1985), de Daniel Santos; A Bola na Escola (1979), de José Antonio Garcia; A Carne (1975), de J. Marreco; A Casa de Alice (2007), de Chico Teixeira; A Causa Secreta (1994), de Sérgio Bianchi; A Ciência Milenar da Acupuntura (1979), de Jair Correia; A Civilização do Cacau (2002), de Rogério Corrêa; A Dama da Zona (1979), de Ody Fraga; A Dama de Paus (1989), de Mário Vaz Filho; A Dama de Shanghai (The Lady from Shanghai, 1948), de Orson Welles; A Estória de Clara Crocodilo (1981), de Cristina Santeiro; A Filha dos Trapalhões (1984), de Dedé Santana; A Força do Sexo (1978), de Sérgio Segall; A Força dos Sentidos (1979), de Jean Garrett; A Garota das Telas (1988), de Cao Hamburger; A Grande Arte (1991), de Walter Salles; A Guerra de um Homem (One Man’s War, 1991), de Sérgio Toledo; A Guerra dos Vizinhos (2010), de Rubens Xavier; A História dos Ganha-Pouco (1976), de Roberto Gervitz e Sérgio Toledo; A Hora do Medo (1986), de Francisco Cavalcanti; A Hora Mágica (1998), de Guilherme de Almeida Prado;

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A Idade do Ouro (1930), de Luis Buñuel e Salvador Dalí; A Ilha dos Prazeres Proibidos (1979), de Carlos Reichenbach; A Índia na Porta do Brasil (1979), de Jair Correia; A Longa Viagem (1985), de Chico Botelho; A Margem (1967), de Ozualdo Candeias; À Margem do Concreto (2006), de Evaldo Mocarzel; A Moda é Viola (2010), de Reinaldo Volpato; A Mulher do Atirador de Facas (1988), de Nilson Villas Bôas; A Mulher no Cangaço (1976), de Hermano Penna; A Negação do Brasil (2000), de Joel Zito Araujo; A Noite das Taras (1980), de David Cardoso, John Doo e Ody Fraga; A Noite das Taras 2 (1982), de Cláudio Portioli e Ody Fraga; A Noite dos Bacanais (1981), de Fauzi Mansur; A Ostra e o Vento (1997), de Walter Lima Jr.; A Outra Face da Felicidade (1975), de Isay Weinfeld e Marcio Kogan; A Princesa Radar (1992), de Roberto Moreira; A Próxima Vítima (1983), de João Batista de Andrade; A Rifa (1985), de Simone Raskin; A Roda da Fortuna (The Band Wagon, 1953), de Vincente Minelli; A Rota do Brilho (1990), de Deni Cavalcanti; A Segunda Besta (1977), de Sérgio Bianchi; A Semana de 22 (1970), de Suzana Amaral; A Terceira Idade (1982), de Eliane Bandeira e Marília de Andrade; A Voz de Deus (1977), de Luiz Alberto Pereira; A Voz do Brasil (1981), de Walter Rogério; ABC da Greve (1979-1990), de Leon Hirszman; África Novo Mundo (1977), de Hermano Penna; Afundação do Brasil (1980), de Moacyr Amorim Toledo; Alice (1978), de João Batista de Andrade; Alucinada pelo Desejo (1979), de Sérgio Hingst; Aluga-se Moças (1981), de Deni Cavalcanti; Aluga-se Moças 2 (1983), de Deni Cavalcanti; Amador (Amator, 1979), de Krzystof Kieslowski; Ambulantes (1976), de Wagner de Carvalho e Jorge Santos;

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Amélia (2000), de Ana Carolina; Amor que Fica (1986), de Alain Fresnot; Amor Voraz (1984), de Walter Hugo Khouri; Amor! (1994), de José Roberto Torero; Anachronique (2011), de Mário Masetti; Anahy de las Misiones (1997), de Sergio Silva; Andiamo In’Merica (1980), de Sergio Muniz; Anjo Loiro (1973), de Alfredo Sternheim; Anna K. (2015), de José Roberto Aguiar; Antes do Futuro (2005), de Rogério Corrêa; Ao Sul do meu Corpo (1982), de Paulo César Saraceni; Aopção (1981), de Ozualdo Candeias; Aos Ventos que Virão (2013), de Hermano Penna; Aquarela de São Paulo (1982), de Walter Rogério; Aquele Breve Encanto (1990), de Tânia Savietto; Aqui, Tarados! (1980), de David Cardoso, John Doo e Ody Fraga; Arapuca do Sexo (1983), de Alcides Caversan; Arquipélago de Abrolhos (1998), de Augusto Sevá; As Amorosas (1968), de Walter Hugo Khouri; As Aventuras da Turma da Mônica (1982), de Maurício de Sousa; As Bellas da Billings (1987), de Ozualdo Candeias; As Letras (1960), de Gualter e Djalma Limongi Batista; As Meninas de Madame Laura (1981), de Ciro Carpentieri Filho; As Novas Aventuras da Turma da Mônica (1986), de Maurício de Souza; As Prisioneiras da Selva Amazônica (1987), de Conrado Sanchez; As Safadas (1982), de Antônio Meliande, Carlos Reichenbach e Inácio Araújo; As Taras do Mini-Vampiro (1987), de José Adalto Cardoso; As Três Mortes de Solano (1976), de Roberto Santos; As Viúvas Eróticas (1982), de Antônio Meliande, Cláudio Portioli e Mário Vaz Filho; Atração Satânica (1989), de Fauzi Mansur; Através da Janela (2000), de Tata Amaral; Através das Sombras (2015), de Walter Lima Jr.; Autovideografia (2003), de Djalma Limongi Batista; Avaeté: Semente de Vingança (1985), de Zelito Viana;

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Avesso do Avesso (1986), de Tony de Sousa; Bacanal (1980), de Antonio Meliande; Bang Bang (1971), de Andrea Tonacci; Barrela (1990), de Marco Antônio Cury; Batismo de Sangue (2006), de Helvécio Ratton; Benjamin (2004), de Monique Gardenberg; Bete Balanço (1984), de Lael Rodrigues; Bexiga, Ano Zero (1971), de Regina Jehá; Blade Runner – O Caçador de Andróides (Blade Runner, 1982), de Ridley Scott; Boca Aberta (1985), de Rubens Xavier; Bocage, o triunfo do amor (1997), de Djalma Limongi Batista; Boias Frias (1974), de Reinaldo Volpato; Boleiros – Era uma Vez o Futebol (1998), de Ugo Giorgetti; Boleiros 2 – Vencedores e Vencidos (2006), de Ugo Giorgetti; Braços Cruzados, Máquinas Paradas (1979), de Roberto Gervitz e Sérgio Toledo; Branco e Preto (Norte & Sul) (1988), de Ninho Moraes; Brasa Dormida (1928), de Humberto Mauro; Brasília dos 500 anos (2001), de Ricardo Dias; Brevíssima História das Gentes de Santos (1996), de André Klotzel; Brincando nos Campos do Senhor (1991), de Hector Babenco; Cabaret (1972), de Bob Fosse; Cabra Cega (2004), de Toni Venturi; Caçadas Eróticas (1983), de Cláudio Portioli e David Cardoso; Cada um Dá o que Tem (1975), de Adriano Stuart, John Herbert e Silvio de Abreu; Calibre 12 (1987), de Tony Vieira; Caligrama (1995), de Eliane Caffé; Caminhos da Mantiqueira (2011), de Galileu Garcia Jr.; Caminhos de Valderez (1971), de Hermano Penna e Jorge Bodanzky; Campos Elíseos (1973), de Ugo Giorgetti; Canabraba – A Necessidade de Expressão (1987), de Reinaldo Volpato e Romildo Sant’Anna; Canon 1218: Vida e obra (1976), de Isay Weinfeld e Marcio Kogan; Canudos (1978), de Ipojuca Pontes, Capitães de Areia (2011), de Cecília Amado;

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Capitalismo Selvagem (1993), de André Klotzel; Capoeira (1979), de Alain Fresnot; Cara ou Coroa (2012), de Ugo Giorgetti; Caramujo-flor (1988), de Joel Pizzini; Carmen Jones (1973), de Isay Weinfeld e Marcio Kogan; Carpinteiros do Mar (2005), de Rogério Corrêa; Cartola (2007), de Hilton Lacerda e Lírio Ferreira; Casa Tomada (1973), de Wagner de Carvalho; Caso Norte (1977), de João Batista de Andrade; Castelo Rá-tim-bum (1999), de Cao Hamburger; Celeste (2009), de Aloysio Raulino; Cercado pelo Ódio (1981), de Ulisses Alves; Certas Palavras com Chico Buarque (1980), de Maurício Berú; Céu Aberto (1986), de João Batista de Andrade; Chapeleiros (1983), de Adrian Cooper; Chatô – O Rei do Brasil (2015), de Guilherme Fontes; Chinatown (1974), de Roman Polanski; Cidadão Kane (Citzen Kane, 1941), de Orson Welles; Cidade Imaginária (2014), de Ugo Giorgetti; Cinema Falado (1986), de Caetano Veloso; Cliente Morto Não Paga (Dead Men Don’t Wear Plaid, 1982), de Carl Reiner; Coisas Eróticas (1981), de Raffaele Rossi; Com Licença, Eu Vou à Luta (1986), de Lui Farias; Comitiva Esperança (1984), de Wagner de Carvalho; Como Dança São Paulo (1991), de Aloysio Raulino; Como Fazer um Filme de Amor (2004), de José Roberto Torero; Como Nascem os Anjos (1996), de Murilo Salles; Compasso de Espera (1973), de Antunes Filho; Complemento Nacional (1978), de Arlindo Machado; Conflito em San Diego (1981), de Maurício Miguel; Confronto Final (2005), de Alonso Gonçalves; Contra Todos (2004), de Roberto Moreira; Conversas no Maranhão (1977), de Andrea Tonacci; Convite ao Prazer (1980), de Walter Hugo Khouri;

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Corações a Mil (1983), de Jom Tob Azulay; Coronel Delmiro Gouveia (1978), de Geraldo Sarno; Corpo de Baile (1974), de Chico Botelho; Corpo em Delito (1989), de Nuno Cesar Abreu; Corpo Presente (2012), de Marcelo Toledo e Paolo Gregori; CPI do Índio (1980), de Hermano Penna; Crepúsculo dos Deuses (Sunset Blvd., 1950), de Billy Wilder; Criaturas que Nasciam em Segredo (1995), de Chico Teixeira; Crimes da Lata (1980), de Wilson Barros; Cristais de Sangue (1975), de Luna Alkalay; Cronicamente Inviável (2000), de Sérgio Bianchi; Curumim (1978), de Plácido Campos Jr.; Daniel, o Capanga de Deus (1977), de João Baptista Reimão; Das Tripas Coração (1982), de Ana Carolina; De Olaria para Helsinque: a história de um salto (2012), de André Klotzel; De passagem (2003), de Ricardo Elias; De Repente (1979), de Adilson Ruiz; Dente por Dente (1994), de Alice Andrade; Desafio à Bala (Requiem for a Gunfighter, 1965), de Spencer Gordon Bennet; Desmundo (2002), de Alain Fresnot; Deus e o Diabo na Terra do Sol (1964), de Glauber Rocha; Diacuí: A viagem de volta (1984), de Ivan Kudrna; Disaster Movie (1979), de Wilson Barros; Distraída para a Morte (2001), de Jefferson De; Diversões Solitárias (1983), de Wilson Barros; Divina Providência (1983), de Sérgio Bianchi; Do Sertão ao Beco da Lapa (1972), de Maurice Capovilla; Doce Delírio (1982), de Manoel Paiva; Doces e Salgados (1973), de Alain Fresnot; Dois Córregos – Verdades Submersas no Tempo (1999), de Carlos Reichenbach; Domingo em Construção (1975), de Wagner de Carvalho; Doramundo (1978), de João Batista de Andrade; Dr. Sampaio (2008), de Ugo Giorgetti; Duplo Território (2009), de Rogério Corrêa;

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E Agora, José? – Tortura do Sexo (1979), de Ody Fraga; Ecos Urbanos (1983), de Nilson Villas Bôas; Ed Mort (1996), de Alain Fresnot; Eh Pagu, Eh! (1982), de Ivo Branco; El Dolor dos Veces (1987), de Araken Vaz Galvão e Zenildo Barreto; Elas (1970), de José Roberto Noronha; Ele, o Boto (1987), de Walter Lima Jr.; Eles Não Usam Black-Tie (1981), de Leon Hirszman; Elomar (1974), de Maurice Capovilla; Em Busca da Pátria Perdida (2008), de Ugo Giorgetti; Em Busca do Ouro (The Gold Rush, 1925), de Charles Chaplin; Em Cada Coração um Punhal (1969), de Sebastião de Souza, José Rubens Siqueira e João Batista de Andrade; Em Nome da Segurança Nacional (1984), de Renato Tapajós; Embalos Alucinantes (1979), de José Miziara; Encarnação do Demônio (2008), de José Mojica Marins; Ensaio (1975), de Roberto Duarte; Erêndira (1983), de Ruy Guerra; Érico Veríssimo (1975), de Suzana Amaral; Esquisitamente Familiar (1978), de José Roberto Sadek e Carlos Nascimbeni; Esse Milhão é Meu (1959), de Carlos Manga; Esses e ouros Bichos (1980), de Renato Neiva Moreira; Estórias de Trancoso (2007), de Augusto Sevá; Estrada da Vida (1980), de Nelson Pereira dos Santos; Eu Eu Eu José Lewgoy (2011), de Cláudio Kahns; Eu Matei o Rei da Boca (1987), de Agenor Alves; Eu Sei que Vou Te Amar (1986), de Arnaldo Jabor; Eu Te Amo (1981), de Arnaldo Jabor; Eva (1975), de André Klotzel; Eva, o Princípio do Sexo (1981), de José Carlos Barbosa; Exorcismo Negro (1974), de José Mojica Marins; Exposição – Henrique Alvim Correa (1973), de Chico Botelho e Ella Durst; Fala Sério! (2011), de Augusto Sevá; Família Vende Tudo (2011), de Alain Fresnot;

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Favela (1976), de Ícaro Martins; Fé (1999), de Ricardo Dias; Fêmea do Mar (1980), de Ody Fraga; Filme Demência (1986), de Carlos Reichenbach; FilmeFobia (2008), de Kiko Goifman; Fogo Fátuo (1981), de Goffredo Telles Neto; Foi Assim (1978), de Adilson Ruiz; Folguedos no Firmamento (1984), de Regina Rheda; Folias do Divino (1974), de Hermano Penna; Fonte da Saudade (1986), de Marco Altberg; Força Estranha (1983), de Pedro Mawashe; Forever (1990), de Walter Hugo Khouri; Fragmento (1973), de José Antonio Garcia; Frankie e Albert (1985), de John Perkin; Frio na Barriga (1987), de Nilson Villas Bôas; Fruto Proibido (1976), de Egydio Eccio; Fúria do Dragão (Jing wu men, 1972), de Lo Wei; Gabriela Cravo e Canela (1983), de Bruno Barreto; Gaiola da Morte (1992), de Waldir Kopezky; Gamal, O Delírio do Sexo (1969), de João Batista de Andrade; Gare do Infinito (1972), de Chico Botelho; Garrincha, Estrela Solitária (2003), com Milton Alencar Jr.; Gaviões (1982), de André Klotzel; Gilda (1977), de Augusto Sevá; Glaura (1995), de Guilherme de Almeida Prado; Greve (1979), de João Batista de Andrade; Guerra é Guerra (1976), de Alfredo Palácios, Ary Fernandes e Egydio Eccio; Gugu, o bom de cama (1980), de Mário Benvenutti; Halloween – A Noite do Terror (Halloween, 1978), de John Carpenter; Hammet – Mistério em Chinatown (Hammet, 1982), de Wim Wenders; Hang-five (1970), de Djalma Limongi Batista; Harmonia (2000), de Jaime Lerner; Herança (1976), de Penna Filho; Hitler 3º Mundo (1968), de José Agrippino de Paula;

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Hoje tem Futebol (1977), de José Antonio Garcia; Horas Fatais – Cabeças Trocadas (1987), de Francisco Cavalcanti; Hotel Atlântico (2009), de Suzana Amaral; Hysterias (1983), de Inês Castilho; Ícaro (1986), de Rogério Corrêa; Identidade (1978), de Tião Maria; Idos com o Vento... (1983), de Isay Weinfeld e Marcio Kogan; Ilha Grande e as visões do paraíso (2001), de Augusto Sevá; Império das Taras (1980), de José Adalto Cardoso; Índia, a Filha do Sol (1982), de Fábio Barreto; Índios, Memória de uma CPI (1998), de Hermano Penna; Inocência (1983), de Walter Lima Jr.; Instrumento da Máfia (1988), de Francisco Cavalcanti; Interior na Praia (1984), de Cristina Prado; Inventário da Rapina (1985), de Aloysio Raulino; Iracema, uma Transa Amazônica (1974), de Jorge Bodanzky e Orlando Senna; J.J.J. – O Amigo do Super-Homem (1979), de Denoy de Oliveira; Jaguadarte (1994), de André Klotzel; Janela da Alma (2001), de João Jardim e Walter Carvalho; Jânio a 24 Quadros (1981), de Luiz Alberto Pereira; Jardim Nova Bahia (1971), de Aloysio Raulino; Jogo das Decapitações (2013), de Sérgio Bianchi; Jogo Subterrâneo (2005), de Roberto Gervitz; José Bonifácio e a Independência (1973), de Eduardo Leone; Kaingáng (1979), de Inimá Simões; Karai – O Dono das Chamas (1985), de Tião Maria e Inês Ladeira; Kenoma (1998), de Eliane Caffé; Kinema (1978), de Tião Maria; Kung Fu Contra as Bonecas (1976), de Adriano Stuart; La Luna (1979), de Bernardo Bertolucci; Lacrimosa (1970), de Aloysio Raulino e Luna Alkalay; Lança (1981), de Nilson Villas Bôas; Lance Maior (1968), de Sylvio Back; Liberdade de Imprensa (1967), de João Batista de Andrade;

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Libertários (1976), de Lauro Escorel; Linha de Montagem (1982), de Renato Tapajós; Loucura (1979), de José Antonio Garcia; Lua Cheia (1988), de Alain Fresnot; Lúcio Flávio, o Passageiro da Agonia (1977), de Hector Babenco; Luz nas Trevas – A Volta do Bandido da Luz Vermelha (2010), de Helena Ignez e Ícaro Martins; Made in Brazil (1984), de Carlos Nascimbeni, Francisco Magaldi e Renato Pitta; Mágoa do Boiadeiro (1978), de Jeremias Moreira Filho; Mais que a Terra (1990), de Elizeu Ewald; Malditas Calmarias (1983), de Nilson Villas Bôas; Mamonas Pra Sempre (2009), de Cláudio Kahns; Manelão, o Caçador de Orelhas (1982), de Ozualdo Candeias; Mar de Lama (1979), de Wagner de Carvalho; Mar de Rosas (1977), de Ana Carolina; Maria da Luz (1981), de Wilson Barros; Marias da Castanha (1987), de Edna Castro e Simone Raskin; Marilyn Tupi (1978), de José Antonio Garcia; Mário (1999), de Hermano Penna; Mato Eles? (1982), de Sérgio Bianchi; Melhor Desenho Animado (1978), de Isay Weinfeld e Marcio Kogan; Melhor Filme de Enredo (1978), de Isay Weinfeld e Marcio Kogan; Melhor Trilha Sonora (1978), de Isay Weinfeld e Marcio Kogan; Memórias de um anormal (1989), de Inácio Zatz e Ricardo Dias; Memórias Póstumas (2001), de André Klotzel; Menino do Rio (1981), de Antônio Calmon; Mentes, de Guilherme de Almeida Prado; Minha Vida em Suas Mãos (2000), de José Antonio Garcia; Minha Vida, Nossa Luta (1979), de Suzana Amaral; Monótonus, de Guilherme de Almeida Prado; Mostrando Tudo (1982), de Inimá Simões; Mulher Desejada (1978), de Alfredo Sternheim; Mulher Natureza (1983), de Dorival Coutinho; Mulheres da Boca (1982), de Inês Castilho e Cida Aidar;

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Museus (1973), de Suzana Amaral; Na garupa de Deus (2002), de Rogério Corrêa; Na Solidão da Noite (Dead of Night, 1945), de Alberto Cavalcanti, Basil Dearden, Charles Crichton e Robert Hamer; Não Por Acaso (2007), de Philippe Barcinski; Nasce uma Mulher (1983), de Roberto Santos; Natal da Portela (1988), de Paulo Cesar Saraceni; Negra Noite (1985), de José Roberto Eliezer e Rogério Corrêa; Nina (2004), de Heitor Dhalia; Nitrato (1975), de Alain Fresnot; No fim todos acabam dormindo... (1979), de Isay Weinfeld e Marcio Kogan; No Olho da Rua (2010), de Rogério Corrêa; No Rio das Amazonas (1995), de Ricardo Dias; No Tempo da II Guerra (1989), de André Klotzel; Noite em Chamas (1978), de Jean Garrett; Noite Vazia (1964), de Walter Hugo Khouri; Nós e Eles (1978), de Augusto Sevá; Nós que nos amávamos tanto (C'eravamo tanto amati, 1974), de Ettore Scola; Nos Tempos da Vaselina (1979), de José Miziara; Nosso Primeiro Musical (1975), de Isay Weinfeld e Marcio Kogan; O Ano Passado em Marienbad (L’année dernière à Marienbad, 1961), de Alain Resnais; O Aprendiz (1981), de Claudio Neimanas; O Auto-Retrato de Bakun (1984), de Sylvio Back; O Baiano Fantasma (1984), de Denoy de Oliveira; O Bandido Antônio Dó (1980), de Paulo Leite Soares; O Beijo da Mulher Aranha (1985), de Hector Babenco; O Boi Misterioso e o Vaqueiro Menino (1980), de Maurice Capovilla; O Bolo (1995), de José Roberto Torero; O Bom Retiro é o Mundo (2006), de André Klotzel; O Buraco da Comadre (1976), de João Batista de Andrade; O Cangaceiro do Diabo (1980), de Tião Valadares; O Cangaceiro do Vale da Morte (2008), de Tião Valadares; O Castelo das Taras (1982), de Julius Belvedere; O Cineasta da Selva (1997), de Aurélio Michiles;

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O Corpo (1991), de José Antonio Garcia; O Cortiço (1978), de Francisco Ramalho Jr.; O Dia do Gato (1988), de David Cardoso; O Escândalo na Sociedade (1983), de Arlindo Barreto; O Evangelho segundo Teotônio (1984), de Vladimir Carvalho; O Filho Adotivo (1984), de Deni Cavalcanti; O Fio da Memória (1991), de Eduardo Coutinho; O Fundo do Coração (One from the Heart, 1982), de Francis Ford Coppola; O Gato de Botas Extraterrestre (1990), de Wilson Rodrigues; O Grande Momento (1958), de Roberto Santos; O Homem de Ferro (Czlowiek z zelaza, 1981), de Andrezj Wajda; O Homem do Pau-Brasil (1981), de Joaquim Pedro de Andrade; O Homem que Virou Suco (1980), de João Batista de Andrade; O Império dos Sentidos (Ai no corrida, 1976), de Nagisa Oshima; O Incrível Senhor Blois (1984), de Nuno Cesar Abreu; O Inferno Começa Aqui (1982), de Emanoel Rodrigues; O Jogo da Vida (1977), de Maurice Capovilla; O Jogo da Vida e da Morte (1971), de Mário Kuperman; O Jogo do Poder (1975), de João Batista de Andrade; O Judeu (1995), de Jom Tob Azulay; O Melhor Amigo do Homem (1982), de Tânia Savietto; O Menino da Porteira (1977), de Jeremias Moreira Filho; O Menino da Porteira (2009), de Jeremias Moreira Filho; O Menino Jornaleiro (1982), de Alcides Caversan; O Mito da Competição Sul (1969), de Djalma Limongi Batista; O Monge e a Filha do Carrasco (1996), de Walter Lima Jr.; O Noivo da Morte (1975), de Walter Rogério; O País dos Tenentes (1987), de João Batista de Andrade; O Picapau Amarelo (1973), de Geraldo Sarno; O Postal Branco (1997), de André Barcinski; O Preço da Fama (1988), de Henrique Borges; O Príncipe (2002), de Ugo Giorgetti; O Prisioneiro da Grade de Ferro (2003), de Paulo Sacramento; O Prisioneiro do Sexo (1979), de Walter Hugo Khouri;

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O Profeta da Fome (1970), de Maurice Capovilla; O Profeta das Águas (2005), de Leopoldo Nunes; O Recital, de Sérgio Toledo; O Rei da Vela (1983), de José Celso Martinez Corrêa e Noilton Nunes; O Rei do Cagaço (1977), de Edgard Navarro; O Segredo dos Diamantes (2014), de Helvécio Ratton; O Sexualista (1975), de Egydio Eccio; O Silêncio (Tystnaden, 1963), de Ingmar Bergman; O Sonho Não Acabou (1980), de Cláudio Kahns; O Tamanduá Taí - Ou Plus X + 85 B (1980), de Ícaro Martins; O Tigre a Gazela (1976), de Aloysio Raulino; O Trem (1974), de Wagner de Carvalho; O Tronco (1999), de João Batista de Andrade; O Túmulo do Sol (Taiyo no Hakaba, 1960), de Nagisa Oshima; O Último Dia de Lampião (1974), de Maurice Capovilla; O Último Kuarup Branco (2007), de Nilson Villas Bôas; O Último Vôo do Condor (1982), de Emílio Fontana; O Vigilante (1992), de Ozualdo Candeias; Obra (2014), de Gregório Graziosi; Oceano Atlantis (1993), de Francisco de Paula; Oggetti Smarriti (1979), de Giuseppe Bertolucci; Oh! Lonely Cow (1974), de Isay Weinfeld e Marcio Kogan; Olho de Boi (2007), de Hermano Penna; Olhos de Vampa (1996), de Walter Rogério; Omnibus (1972), de Sérgio Bianchi; Ondas (1986), de Ninho Moraes; Onde Andará Dulce Veiga? (2007), de Guilherme de Almeida Prado; Onde São Paulo Acaba (1994), de André Seligmann; Orí (1989), de Raquel Gerber; Oro (1980), de Augusto Sevá; Os Amantes da Chuva (1979), de Roberto Santos; Os Anos JK, uma trajetória política (1980), de Silvio Tendler; Os Bons Tempos Voltaram: Vamos Gozar outra Vez (1985), de John Herbert e Ivan Cardoso;

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Os Calangos do Boiaçu (1992), de Ricardo Dias; Os Cinco Patamares (1972), de Chico Botelho; Os Desafinados (2008), de Walter Lima Jr.; Os Deuses da Era Moderna (1977), de André Klotzel; Os Galhos do Casamento (1978), de Sérgio Segall; Os Homens são de Marte...e é para Lá que eu vou (2014), de Marcus Baldini; Os Indecentes (1981), de Antonio Meliande; Os Inquilinos (2009), de Sérgio Bianchi; Os Mortos Viram Terra (1971), de Suzana Amaral; Os Mucker (1979), de Jorge Bodanzky e Wolf Gauer; Os Queixadas (1978), de Rogério Corrêa; Os Rapazes da Difícil Vida Fácil (1979), de José Miziara; Os Residentes (2010), de Tiago Mata Machado; Os Trapalhões e o Mágico de Oroz (1984), de Dedé Santana e Victor Lustosa; Os Trapalhões e o Rei do Futebol (1986), de Carlos Manga; Os Trapalhões no Rabo do Cometa (1986), de Dedé Santana; Os Trapalhões no Reino da Fantasia (1985), de Dedé Santana; P.S. Post Scriptum (1980), de Romain Lesage; Paixão e Sombras (1977), de Walter Hugo Khouri; Paixão maldita (1975), de Isay Weinfeld e Marcio Kogan; Paixão Maria (1980), de Reinaldo Volpato; Palácio de Vênus (1980), de Ody Fraga; Parada 88 – O Limite de Alerta (1977), de José de Anchieta; Parada Geral (1975), de Roberto Gervitz e Sérgio Toledo; Paranóia (1976), de Antônio Calmon; Paredes Nuas (2009), de Ugo Giorgetti; Partido Alto (1982), de Leon Hirszman; Patriamada (1984), de Tizuka Yamasaki; Pau pra toda obra (1976), de Augusto Sevá e Reinaldo Volpato; Paula, a história de uma subversiva (1980), de Francisco Ramalho Jr.; Paulicéia Fantástica (1970), de João Batista de Andrade, João Silvério Trevisan, Charles Almeida, Marcelo Tassara e Maria Rita Galvão; Paulo Emílio (1981), de Ricardo Dias; Pé de Guerra (1987), de Rubens Xavier;

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Pé de Pato (1994), de Alain Fresnot; Peep (2012), de Marcio Kogan e Lea Van Steen; Pêndulo (1973), de Alain Fresnot; Perfume de Gardênia (1992), de Guilherme de Almeida Prado; Pergunta de Amor (1978), de Reinaldo Volpato; Perus, uma história feita de ferro, cimento e amor (2011), de Rogério Corrêa; Pintando o Sexo (1977), de Egydio Eccio; Pixinguinha e a Velha Guarda do Samba (2006), de Ricardo Dias; Pixote – A Lei do Mais Fraco (1980), de Hector Babenco; Pizza (2005), de Ugo Giorgetti; Playtime – Tempo de Diversão (Playtime, 1967), de Jacques Tati; Por Puro Prazer (1982), de Eduardo Poiano; Por que as Mulheres Devoram os Machos? (1980), de Alan Pek; Por Trás do Pano (1999), de Luiz Villaça; Por um Corpo de Mulher (1979), de Hércules Breseghelo; Pornô! (1981), de David Cardoso, John Doo e Luiz Castellini; Porta do Céu (1973), de Djalma Limongi Batista; Porto de Santos (1978), de Aloysio Raulino; Postcard (1985), de Wilson Barros; Pra Frente, Brasil (1982), de Roberto Farias; Príncipe Natan e a Princesinha Curiosa (1988), de Pedro Luiz Nobile; Procuro uma Cama (1982), de Deni Cavalcanti; Prolegômenos (1982), de José Roberto Sadek; Prova de Coragem (2015), de Roberto Gervitz; Puberdade (1994-7), de Aloysio Raulino; Punks (1984), de Sarah Yakhni e Alberto Gieco; Quando Vale ou é Por Quilo? (2005), de Sérgio Bianchi; Que Horas Ela Volta? (2015), de Anna Muylaert; Que ninguém, nunca mais, ouse duvidar da capacidade de luta dos trabalhadores (1979), de Renato Tapajós; Quebrando a Cara (1986), de Ugo Giorgetti; Quincas Berro D’Água (2010), de Sérgio Machado; Quincas Borba (1987), de Roberto Santos; Rádio Pirata (1987), de Lael Rodrigues;

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Rasga Coração – O Teatro Brasileiro de Anchieta ao Oficina (1979-1986), de Djalma Limongi Batista; Raso da Catarina – Reserva Ecológica (1984), de Guido Araújo; Rastros na Areia (1988), de Hércules Breseghelo; Raul – O Início, o Meio e o Fim (2012), de Walter Carvalho; Red Shoes (1987), de José Roberto Sadek; Reflexões de um Liquidificador (2010), de André Klotzel; Renovo (1982), de Renato Neiva Moreira e Fausto Peres de Campos; Restos (1975), de João Batista de Andrade; Revolução de 20 (1980), de Sylvio Back; Rio Cigano (2013), de Júlia Zakia; Rio Paraíba (1976), de Reinaldo Volpato; Rio Tietê (1976), de Reinaldo Volpato; Riocorrente (2013), de Paulo Sacramento; Ritual Macabro (1991), de Fauzi Mansur; Roças (1975), de Rogério Corrêa; Rock (1976), de Cristina Santeiro, Ícaro Martins, Joel La Laina e Helena Bastos; Rock Estrela (1986), de Lael Rodrigues; Rodeio de Bravos: Onde o Chão é o Limite (1982), de Coriolano Rodrigues Mineiro; Rua 6, Sem Número (2003), de João Batista de Andrade; Rua São Bento, 405 - Edifício Martinelli (1976), de Ugo Giorgetti; Sábado (1994), de Ugo Giorgetti; Sabendo Usar Não Vai Faltar (1975), de Adriano Stuart, Franciso Ramalho Jr. e Sidnei de Paiva Lopes; Sangria (1972), de Luna Alkalay; Santana em Santana (2009), de Ugo Giorgetti; Santo e Jesus, metalúrgicos (1983), de Antonio Paula Ferraz e Cláudio Kahns; Santos Dumont (1976), de Suzana Amaral; São Paulo (1967), de Aloysio Raulino; São Paulo Cinemacidade (1994), de Aloysio Raulino, Regina Meyer e Marta Dora Grostein; São Paulo do Café à Indústria (1971), de Walter Rogério; São Paulo Sociedade Anônima (1965), de Luiz Sérgio Person; São Silvestre (2013), de Lina Chamie;

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Se Eu Fosse Você (2006), de Daniel Filho; Sede de Amar (Capuzes Negros) (1978), de Carlos Reichenbach; Senta no Meu, que Eu Entro na Tua (1986), de Ody Fraga; Sentidos à Flor da Pele (2008), de Evaldo Mocarzel; Ser Krahô (1987), de Tião Maria; Será que Ela... Aguenta? (1977), de Roberto Mauro; Serras da Desordem (2006), de Andrea Tonacci; Sexo e Violência no Vale do Inferno (1981), de Domingos Antunes; Sexta-Feira 13 (Friday the 13th, 1980), de Sean S. Cunninghan; Smetak (1967), de Hermano Penna; Só (1982), de José Carone Jr.; Sob as Pedras do Chão (1973), de Olga Futemma; Solo (2009), de Ugo Giorgetti; Somewhere in Brazil (1992), de Alonso Gonçalves; Sorocaba, 326 Anos (1980), de Wilson Barros; Stelinha (1990), de Miguel Faria Jr.; Strip-Tease (1988), de Ivo Branco; Sua Majestade Piolin (1971), de Suzana Amaral; Sudoeste (2012), de Eduardo Nunes; Tara Maldita (1982), de Alonso Gonçalves; Tarumã (1975), de Aloysio Raulino; Tatuagem (1980), de Ícaro Martins; Tchau Bras (1976) de Rudá de Andrade; Tem Coca-Cola no Vatapá (1976), de Pedro Farkas e Rogério Corrêa; Teremos Infância (1974), de Aloysio Raulino; The Laughing Gnome (1973), de Isay Weinfeld e Marcio Kogan; Tigresa (1978), de Wilson Barros; Todo Dia Todo (1998), de Flávio Frederico; Todos os Corações do Mundo (1995), de Murilo Salles; Tônica Dominante (2000), de Lina Chamie; Trabalhadores Presente (1979), de João Batista de Andrade; Trem Fantasma (1976), de Alain Fresnot; Treze Pontos (1985), de Alonso Gonçalves; Tropa de Elite (2007), de José Padilha;

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Ufogão (1986), de Rubens Xavier; Um Clássico, Dois em Casa, Nenhum Jogo Fora (1968), de Djalma Limongi Batista; Um Dia na Vida do Dr. Fulano (1980), de Sérgio Tufik; Um Estranho Vampiro (Vampire’s Kiss, 1988), de Robert Bierman; Um Filme Dedicado à Solidão (1977), de Joel La Laina; Um Homem de Moral (2009), de Ricardo Dias; Um Musical (1979), de Carlos Nascimbeni; Um Pistoleiro Chamado Papaco (1986), de Mário Vaz Filho; Uma História Toscana (2002), de Ugo Giorgetti; Uma Mulher para Sábado (1970), de Maurício Rittner; Uma Noite em Sampa (2016), de Ugo Giorgetti; Uma Outra Cidade (2000), de Ugo Giorgetti; Uma Vida em Segredo (2001), de Suzana Amaral; Urbânia (2001), de Flávio Frederico; Variações sobre um Quarteto de Cordas (2004), de Ugo Giorgetti; Verão (1983), de Wilson Barros; Véspera de Natal (2012), de Mário Masetti; Vida de Menina (2004), de Helena Solberg; Vidas Secas (1963), de Nelson Pereira dos Santos; Vila Missionária (1979), de Wagner de Carvalho; Viúvas Precisam de Consolo (1979), de Ewerton de Castro; Vôo Cego Rumo Sul (2004), de Hermano Penna; Vozes do Medo (1971), de Roberto Santos, Maurice Capovilla, Giafrancesco Guarnieri, Aloysio Raulino, Roman Stulbach, Plácido Campos, Hélio Leite de Barros, Mamoru Miyao, Adilson Bonini, Augusto Correa, Ruy Perott Brbosa e Cyro del Neto; Wilsinho Galileia (1978), de João Batista de Andrade; Xingu Terra (1981), de Maureen Bisilliat; Yawar Mayu (1986), de Araken Vaz Galvão; Ytaipú (1978), de Jair Correia; Zuzu Angel (2006), de Sérgio Rezende;

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APÊNDICE C: Entrevistas realizadas

André Klotzel (São Paulo, 29 de setembro de 2009) Augusto Sevá (São Paulo, 25 e 26 de novembro de 2014) Guilherme de Almeida Prado (São Paulo, 04 de maio de 2008 e 09 de abril de 2016) Hermano Penna (São Paulo, 05 de março de 2015) Ícaro Martins (São Paulo, 24 de setembro de 2014) Jair Correia (email, 22 de novembro de 2011, 13 de fevereiro e 10 de setembro de 2015) Márcio Kogan (São Paulo, 12 de fevereiro de 2015) Roberto Gervitz (São Paulo, 16 de janeiro de 2015) Sérgio Toledo (São Paulo, 11 de março de 2015) Suzana Amaral (São Paulo, 05 de setembro de 2012; dentro do projeto Memória do Cinema, do MIS-SP/Heco Produções) Ugo Giorgetti (São Paulo, 12 de março de 2015)

Depoimentos complementares:

Cláudio Kahns (email, fevereiro de 2016) Emanoel Rodrigues (facebook, 30 de julho e 03 de agosto de 2015) Rubens Xavier (São Paulo, 23 de novembro de 2015) Tony de Sousa (São Paulo, 07 de junho de 2011, e email, 14 de julho de 2015)